dantas, vinicius - entre a negra e a mata virgem[1]

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ENTRE "A NEGRA" E A MATA VIRGEM*

Vinicius Dantas

RESUMO Enquanto reescrevia as Memrias sentimentais de Joo Miramar, Oswald de Andrade assistiu em Paris evoluo da pintura de Tarsila do Amaral que, na poca, era sua namorada e frequentava os atelis de vrios artistas modernos. Ambos estavam por sua vez sob a mira de Mrio de Andrade que, da Barra Funda, chamava-os por carta de novos-ricos e futuristas. Este estudo analisa o intercmbio, manifesto ou latente, desses trs artistas, procurando entender como foi possvel formular uma reinterpretao modernista da vida brasileira. Palavras-chave: Modernismo brasileiro; Poesia Pau-Brasil; Oswald de Andrade; Mrio de Andrade; Tarsila do Amaral; nacionalismo cultural; vanguarda brasileira. SUMMARY As he was rewriting The Sentimental memoires of Joo Miramar in Paris, Oswald de Andrade accompanied his girlfriend Tarsila do Amaral's development as an artist, as they often visited the studios of several modern artists. At the same time, both were being observed by Mrio de Andrade, at home in the Barra Funda neighborhood of So Paulo, who referred to them as nouveau-riche and futurists in his correspondence. This study analyzes the exchange, both open and latent, between these three artists, in an effort to understand how it became possible to formulate a modernist interpretation of Brazilian life. Keywords: Brazilian modernismo; Pau-Brasil poetry; Oswald de Andrade; Mrio de Andrade; Tarsila do Amaral; cultural nationalism.

Acompanhemos o itinerrio de nosso Autor e vejamos de que modo no umbigo do mundo acabou por assim dizer descobrindo uma placenta brasileira. De incio, demoremo-nos naquele que foi o grande feito pblico da temporada de 1923 a conferncia "O esforo intelectual do Brasil contemporneo", dita em maio na Sorbonne 1 . Ao invs do modernista desembaraado, com traquejo internacional, vamos a deparar com um Oswald prudente, acanhado, com tamanha reverncia pela cultura oficial de seu pas que at hoje desaponta. Se recordarmos ser a conferncia simultnea reescrita das Memrias sentimentais, o desapontamento fica maior, embora exista a atenuante de que ele andasse a fazer propaganda de lbas a servio da Embaixada do Brasil. Mas, afinal, o que significa quela altura, aps a campanha vitoriosa da Semana, o elogio cerimonioso a naturalistas, a filsofos neotomistas, a parnasianos de velha cepa e passadistas em geral, ainda atuantes e muito influentes, isso para no citar sua admirao rasgada pelo genuno intrprete da modernizao que Monteiro Lobato? To grande a reverncia de Oswald que o prprio Futurismo paulista desaparece no oficialismo da tradio prestigiada, 100 NOVOS ESTUDOS N. 45

(") Este estudo parte de um ensaio bastante comprido sobre o Modernismo brasileiro e a Poesia Pau-Brasil nos anos 20, na verdade, um de seus captulos iniciais. Uma introduo s posies oswaldianas, decisivas para o perodo, encontra-se noutro artigo de minha autoria, "Oswald de Andrade e a poesia", publicado em Novos Estudos, n 30.

(1) Andrade, O. "O esforo intelectual do Brasil contemporneo". In: Batista, Marta Rossetti, Lopez, Tel Porto Ancona e Lima, Yone Soares de, orgs. Brasil: 1 tempo modernista 1917/1929. So Paulo: IEB, 1972, pp. 208-16.

VINCIUS DANTAS

qual no s d continuidade como aprofunda a impregnao nacional. Mesmo desenxabidas simpatias primitivistas, de passagem confessadas, colocam-se no mesmo plano do regionalismo e do caboclismo, um pouco mais atualizadas claro, contanto que recuperem a experincia nacional que se transforma. Aplacando a ansiedade positivo-evolucionista, a conferncia anuncia a partir de uma interpretao catlica e mtico-cultural da formao brasileira que o desenlace do conflito racial e cultural no s est prximo como ser decoroso. Oswald faz a apologia explcita da "fora latina de coeso, de construo e cultura", representada pelo padre latino, e da ndole sonhadora do portugus, em estilo que chega a lembrar Elysio de Carvalho, ressaltando porm que o negro fez a sua parte. A este se atribui o senso de realismo que no s abrandou o idealismo do elemento europeu como, alastrando-se, atuou para que a lngua se desafetasse e o conhecimento da terra fosse efetivamente aumentado. Eufemismo parte, Oswald estima favoravelmente a disposio ao trabalho e a plasticidade do elemento negro, deixando subentendido que a herana da escravido no carrear dificuldades. A originalidade forte dessa mescla, estuante na miscigenao geral, o que lhe afiana que a "matria psicolgica" existente no pas se predispe modernizao e expresso de um sentimento tnico novo e nacional. Escondido no mago tradicionalista da exposio, est o desejo patritico de que seu pas progrida, se atualize, sem que perca o contato com as fontes da nacionalidade. o prcer modernista quem apregoa que a modernizao vivel, tem futuro e est praticamente em curso, pois a "ecloso das realidades presentes", isto , urbanizao somada a industrializao e imigrao, se concilia com o "sentimento tnico" da tradio nacional e no o alterar2. Se os temas da fase inaugurada pelo Manifesto da Poesia Pau-Brasil j se esboam, aqui eles ainda aparecem vagamente na formulao persistente do patriotismo ornamental. Concebido para desdobrar as potencialidades do "idealismo so" que corre na veia brasileira, ou seja, o idealismo do elemento europeu e cristo mitigado pela multirracialidade, o empenho modernizador se torna uma espcie de agente apotetico da sublimizao do pas 3 . Para que no reste dvida, Oswald grava com altissonncia o seguinte fecho de ouro: "O Brasil, sob um cu desta, toma conscincia de seu futuro"4. Entre conferncia e Manifesto existe um abismo difcil acreditar que, no perodo de meses, o mesmo escritor possa ser autor de uma e outro. Quem fala na Sorbonne um senhor de provncia, culto e patriota, cuja f no progresso do Brasil se expressa com a facndia dos figures do sculo XIX; j a voz do Manifesto exibe tamanha desinibio modernista que desorienta, sobretudo por tomar como seus aqueles temas que at ento eram a especialidade de um debate que h cem anos queimava as pestanas de escritores e idelogos brasileiros. Na conferncia, o modernista literalmente sucumbia ao legado de romnticos e naturalistas; no Manifesto, tal personagem tira das costas o fardo do passado, a ponto de sua resoluo artstica dar a aparncia de ter se desvencilhado do localismo que sempre inspirou as reaes mais americanistas da literatura brasileira. Numa, dirigida audincia estrangeira, o argumento pr-modernizao pode at passar despercebido, dado que seu porta-voz fala do ponto de vista da permanncia da tradio preexistente (desde a Colnia); noutro, dirigido elite futurista de sua terra, a feio modernista e seu -vontade obscurecem o elogio da tradio que subsiste e pode nem se fazer notar. Patriotismo e modernismo no faltam a ambos, foram porm suas doses ministradas to desproporcionadamente que nos escapa a continuidade entre eles e quase no se enxerga o elegante bacharel e globe-trotter como autor de uma e outro. Se h ruptura e esta inegvel, como especific-la se o conservador da primeira to modernista quanto o modernista do segundo conservador? Ou, como tantos acreditam, a adoo de recursos tais como a fluncia coloquial, a notao telegrfica e o geometrismo construtivo, suficiente em si mesma para que haja modernismo? Contra a impresso primeira de ruptura, h continuidade dos termos de uma problemtica local, cuja resoluo modernista ocorre fora do mbitoJULHO DE 1996 101

(2) Idem, ibidem, p. 212. (3) Muito antes de Pau-Brasil, a figurao patritica oswaldiana j se diferenciava da intelligentsia brasileira do tempo pela ausncia de pessimismo e excesso de catolicismo. Tanto que a atrao dominadora das teses deterministas e evolucionistas foi nele quebrantada por um progressismo pragmticoburgus, menos afeito teoria dos herdeiros "cientficos" do Naturalismo. Antonio Candido, que j apontou o "veio recessivo" de Naturalismo em alguns dos romances, indicou que ele se manifestava com uma feio eminentemente estilstica, liberta das questes doutrinrias (Vrios escritos. 2. ed. So Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 80). preciso lembrar que, noutros companheiros de gerao em que o contrapeso catlico no atuou to intensamente, a inflexo agnstica e cientificista implicava uma projeo negativa do futuro, embora o indefectvel patriotismo de fundo subsistisse de p. Se a pieguice catlica nuns entravava a manifestao de racismo cientfico, o pessimismo positivo-evolucionista noutros facultava o discernimento dos interesses econmicos e polticos implicados na formao nacional. Sob esse aspecto vale um cotejo com exposio similar em matria de convencionalismo, o ensaio de Ronald de Carvalho, "Bases da nacionalidade brasileira", includo na primeira srie dos Estudos Brasileiros, originalmente publicado em 1924 (Rio de Janeiro: Nova Aguilar/INLMF.C, 1976, pp. 11-34). Outro fator pondervel da positivao nacional, talvez estivesse no crculo de atuao de Eduardo Prado, cuja obra, com seu louvor da presena jesutica na formao brasileira (louvor por Oswald ainda repetido na Sorbonne), celebrando a colonizao menos violenta que criou uma "unio fecunda das raas", gozava de prestgio no meio intelectual conservador de So Paulo ("O catolicismo, a Companhia de Jesus e a colonizao do Novo Mundo". In: Collectaneas. Vol. IV. So Paulo: Escola Typographica Salesiana, 1906, pp. 13-101). Todavia no possvel esquecer que em um meio como era ento o de So Paulo, onde a mobilidade social e a experimentao tnica eram mais intensas do que em qualquer outro do Brasil da poca, o determinismo e o racismo cientficos eram modelos de explicao rebatidos, na prtica, pelo ritmo das transaes e da vida burguesa. A percepo de Oswald nesse particular estava excepcionalmente adestrada nos aspectos novas do meio, uma vez que sua experincia na imprensa popular, na politicalha e na literatura

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dela, fora de suas formulaes e expectativas previsveis, s quais ainda assim se liga5. No s a aparncia vanguardista do Manifesto que por assim dizer escamoteia a continuidade, deixando-a irreconhecvel, mas o prprio contedo do seu nacionalismo que, ao invs de unir, produzindo unanimidade, agora divide e cria confuso, da mesma maneira que seu modernismo, custa da tradio, se torna primitivista. O fio da continuidade precisa portanto ser puxado da tradio nacionalista, muito embora Oswald embaralhe e confunda programaticamente as noes de primitivo e moderno, nacional e cosmopolita, vanguardismo e tradio, por aderir com igual nimo radical, a um s tempo, aos dois lados. Monteiro Lobato, mestre que era em caricaturizar os lances de cabotinismo de nossa vida intelectual, viu a algo que chamou de "processo da atrapalhao"6. Oswald aprontaria um "angu completo dos valores e regras universalmente aceitas" para quebrar a pasmaceira ele quer parar o jogo por sab-lo viciado. Todavia acrescenta Lobato: se o humorismo dessa interveno calculada um protesto contra o atraso do pas, esse protesto no se solidariza com os que sofrem suas mazelas. O inventor de Emlia lembra que Oswald est fazendo humorismo para um pblico que dificilmente o compreender, nem alcanar as sutilezas de uma stira da qual no partilha. Atrapalhao subentende que Oswald sentiu o problema e tambm a dificuldade de resolv-lo artisticamente nas condies brasileiras. Por outro lado, o processo da atrapalhao permite que ele intervenha ao mesmo tempo com grossura e... finura, desobrigando-se de expor sua opinio ou comprometer doutrinariamente sua posio. Igualmente atrapalhao implica, a nosso ver, remanejar a matria local, reorganiz-la e recombin-la manipulao tcnica que a desloca de seu contexto de origem, do contexto da tradio nacionalista. Tirando da mistura de tradio e modernidade um efeito de choque e surpresa, Oswald apresenta a "matria psicolgica", de que falava em Paris, limpa dos constrangimentos morais, raciais e culturais que consumiam o debate nacionalista, deslocado que ficava, nessa moldura vanguardista, para segundo plano. O efeito conhecido: os materiais da realidade brasileira purgados afinal dos dilemas internos de sua formao histrica, e metodizados pelas exigncias artsticas e literrias da "esttica de Paris", estavam afinal franqueados criao modernista. A referncia direta e factual da realidade brasileira passa assim a gozar de autonomia, isto , a ser valorizada pelo critrio exterior e proeminente da vanguarda internacional eis nesse desafogo o princpio de sua inverso positivadora. A passagem conferncia/ Manifesto ainda nos revela o processo de criao oswaldiano, sua impressionante capacidade de deslocar matria antiga, esvazi-la das referncias anteriores mediante tratamento novo, este sim modernssimo 7 . Aps o Manifesto, ultrapassada a fase de "acertar o relgio imprio da literatura nacional", o que modernista a prpria vida brasileira um paradoxo que vai ser o motor de todas as atrapalhaes desse suposto primitivismo. Da prosa cubista das Memrias sentimentais, reescritas francesa, captao da "originalidade nativa" de sua poesia de exportao, capacitou-se nosso Autor para a percepo mais ntida das disparidades entre o iderio da vanguarda de l e o contexto local de c. J vimos de que modo a inverso positivadora do Manifesto foi preparada pela reescrita das Memrias, assim como a provocao oswaldiana visava o universalismo abstrato de A escrava que no Isaura e do Futurismo paulista8. Mudando um pouco o foco, podemos acrescentar a essas motivaes as relaes mais ntimas daqueles que eram os mais avanados artistas do Modernismo do perodo. Apoiada em dados, consistente em matria de cronologia e verossimilhana, a hiptese que lano a de que a Poesia Pau-Brasil tem algo de uma criao coletiva e se configurou a partir da inquietao (prodigiosa) de nosso Autor, sua mulher e um amigo paulistano. Reunidos no af de radicalizar os propsitos revisionistas do Futurismo paulista, nosso trio submeteria o modernismo internacional, e a vanguarda francesa em particular, refrao de um prisma nacional. Tal convergncia de projetos permitiria que o processo da atrapalhao fosse imagina102 NOVOS ESTUDOS N. 45

anarco-oligrquica de O Pirralho e de sua garonnire suplantava de muito sua educao terica. Do ponto de vista da produo anarquista, essa ambincia popular foi tratada no captulo "Sinais do vulco extinto" de Nem ptria, nem patro (Vida operria e cultura anarquista no Brasil), de Francisco Foot Hardman (So Paulo: Brasiliense, 1983, pp. 111-49). (4) Andrade, O. "O esforo intelectual...", loc. cit., p. 216. (5) Wilson Martins foi dos primeiros estudiosos, tomando a srio as indicaes de Mrio de Andrade em "O movimento modernista" (In: Aspectos da literatura brasileira. So Paulo: Martins, s.d., pp. 231-55), a insistir na permanncia do iderio nacionalista, tanto que sua histria da "poca modernista" comea em 1916. Preferimos no entanto ver a ecloso desses aspectos nacionais do Modernismo e o prprio pragmatismo nacionalista de Mrio como a perspectiva brasileira de um processo mais geral e internacional de conscincia da condio moderna que, forosamente, precisava se haver com as realidades arcaicas e coloniais da periferia capitalista parte constitutiva, de alguma maneira, dessa condio moderna. Se o ngulo for este, o reconhecimento crtico-afetivo da realidade prxima no tem comparao possvel, seja com a propaganda nacionalista seja com a literatura regionalista e caipirista, que se limitavam a lisonjear platias citadinas, burguesamente educadas, com a autoimagem positiva da superioridade delas. Ainda que elementos da tradio nacionalista tenham subsistido em mltiplas combinaes, impossvel no diferenciar a compreenso modernista de Mrio e Oswald do conformismo desta tradio que eles renovaram por inteiro. Se muitos de seus temas vieram mesmo do Romantismo, essa permanncia foi retrabalhada em profundidade pelos recursos das vanguardas, o que inegavelmente lhes alarga o interesse. Alm de tardio, porque desencadeado a partir de 1924, o pragmatismo nacionalista interpretado por Wilson Martins, com a habitual malevolncia, como retrocesso a uma tradio ainda vigente, mais antiga, ou como ele prprio diz, referindo-se questo da lngua: "Ainda aqui, o Modernismo no inventou nada, herdando, mais do que inovando, as tendncias que, nesse particular, o caracterizam" (A literatura brasileira. Vol. VI O Modernismo (1916-1945). 2. ed. So Paulo: Cultrix, 1967, pp. 13751; para a citao: p. 149).

VINICIUS DANTAS do e discutido por Tarsila e Mrio de Andrade, antes que Oswald o inventasse. Foi o que lhe redobrou a fora e, atendendo s solicitaes de toda uma gerao, multiplicou o fascnio de to precrio tratamento artstico. Em tom de gozao, desejando adverti-la para os riscos de despersonalizao que a pintura dela corria, caso no se detivesse criticamente na lio cubista, Mrio de Andrade em novembro de 1923 envia a Tarsila do Amaral uma carta. Nela se alternam chistosamente conscincia esttica em dia, senso de historicidade, independncia de esprito, afetao provinciana, veleidades nacionalistas, caipirismo estilizado tudo sob a aparncia de um aconselhamento charmoso. Atentemos no seguinte trecho:Vale lembrar que para um modernista cosmopolita e burgus como Rubens Borba de Moraes, justamente o trao mais caracterstico e herico do movimento era o oposto ruptura completa com o meio e a literatura brasileira, em consequncia, filiao direta literatura francesa contempornea, cujo cosmopolitismo era fecundo. "A verdade que eles [os modernistas] fizeram em So Paulo o que os franceses faziam em Paris: revolucionaram tudo para pr seu pas dentro das correntes de idias do momento, criaram uma arte e uma literatura que exprimia a poca em que viviam. Por isso eram modernos" ("Recordaes de um sobrevivente da Semana de Arte Moderna"; h transcrio em Amaral, Aracy. Artes plsticas na Semana de 22. So Paulo: Perspectiva, 1970, p. 298). Ningum diria o contrrio, embora nessa viso retrospectiva Rubens Borba pretenda comprimir o Modernismo nos marcos de uma importao atualizadora e atualizada, praticada com bom gosto francelho e educao paulista posio que jamais foi a de Mrio nem a de Oswald (o incrvel que o autor de Domingo dos sculos no se d conta disso). Mas essas pretenses cosmopolitas, de boa f confessadas, chamam a ateno para quo pouco nacionalista no sentido poltico, e mesmo cultural, foi o "nacionalismo pragmtico" do movimento brasileiro. (6) Lobato, Monteiro. "O nosso dualismo". In: Na antevspera. So Paulo: Editora Brasiliense, 1946, pp. 109-10. Esse artigo foi originalmente publicado cm 1926 e mereceu uma rplica agressiva de Mrio de Andrade. (7) Esse aspecto j foi assinalado por Antonio Candido quando notou que nos melhores livros de Oswald a "maneira" sobrepuja a "matria" (Vrios escritos, p. 83) e por Roberto Schwarz que lhe definiu a poesia como um "lirismo luminoso, de pura soluo tcnica..." cuja modernidade "no consiste em romper com o passado ou dissolv-lo, mas em depurar os seus elementos e arranj-los dentro de uma viso atualizada e, naturalmente, inventiva, como que dizendo, do alto onde se encontra: tudo isso meu pas" (Que horas so?So Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 22). (8) Aspecto tratado em "Oswald de Andrade e a poesia", loc. cit. (9) Amaral, A. Tarsila sua obra e seu tempo. So Paulo: Perspectiva, 1975, Vol. I, p. 369.

Cuidado! fortifiquem-se bem de teorias e desculpas e coisas vistas em Paris. Quando vocs aqui chegarem, temos briga, na certa. Desde j, desafio vocs todos juntos, Tarsila, Osvaldo, Sergio [Milliet] para uma discusso formidvel. Vocs foram a Paris como burgueses. Esto pats. E se fizeram futuristas! hi! hi!hi! Choro de inveja. Mas verdade que considero vocs todos uns caipiras em Paris. Vocs se parisianizaram na epiderme. Isso horrvel! Tarsila, Tarsila, volta para dentro de ti mesma. Abandona o Gris e o Lhote, empresrios de criticismos decrpitos e de estesias decadentes! Abandona Paris! Tarsila! Tarsila! Vem para a mata virgem, onde no h arte negra, onde no h tambm arroios gentis. H MATA VIRGEM. Criei o matavirgismo. Sou matavirgista. Disso que o mundo, a arte, o Brasil e minha queridssima Tarsila precisam9.

Temos de convir que o que predomina nessa passagem a caoada, malgrado a afetao anticosmopolita quase beirar a xenofobia mas onde o nacionalismo comea e a brincadeira acaba? Nas frases de Mrio existe muito de fanfarrice de provinciano se mordendo de curiosidade pela temporada parisiense dos amigos. Mrio jamais concebera a nacionalidade de uma perspectiva isolacionista e como seu nacionalismo jamais fora um "nacionalismo por subtrao" nos termos de Roberto Schwarz, fica difcil compreender de que maneira a pureza brasileira se contrape falsificao cosmopolita 1 0 . O fato que o iderio da vanguarda, mesmo falando sua imaginao de poeta, lhe parecia discrepar do ritmo incerto e da incipincia das tradies locais, com cujo amilhoramento sonhava. Ao invs, o movimento modernista representa para ele a possibilidade de que a cultura brasileira, agora dentro do "presente do universo", encontre sua prpria coeso e funcionalidade, desmanchando afinal o velho mecanismo do transplante cultural, embora outra vez tenha de recorrer s correntes internacionai s " . Isso porque no caso modernista o patamar de exigncia e atualidade artsticas no s mais alto que os anteriores, como lhe parece mais favorvel experincia local 12 . Portanto, a carta revela que ele se molestava com o perigo de um descaminho na carreira da amiga, caso ela cedesse aos modismos e s injunes da Escola de Paris. Tal perigo existia e no era improvvel que uma artista de to promissoras qualidades tivesse l seu momento de fraqueza ou insinceridade. Mrio simplifica demais a questo ao propor como remdio uma "volta para dentro de si", tratando psicologicamente as complexas relaes da imitao cultural, como se elas se localizassem em foro ntimo e essa "volta" fosse artisticamente vivel. Fica porm a nota de q u e m confia numa resposta interior ao desconforto de viver na inautenticidade local. O que no fica claro o ponto de vista brasileiro implicado na mata virgem: matavirgismo significa alguma coisa? A o nacional celebrado na natureza intocada, algo brbara e originria; a divergncia com o Futurismo paulista est no fato de que a lembrana da mata no lisonjeia os compatriotas com os sinais de progresso e civilizao, ao contrrio trazia cena certa regressividade primitivizante. O problema do smbolo que ele, reagindo ao presente, no se vincula a JULHO DE 1996 103

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alguma tradio histrico-cultural mais definida que fosse matriz do presente. Mata virgem uma espcie de remdio (nietzschiano?) para o mal da cultura postia, idealizado para fortalecer o impulso vital de uma civilizao no comeo. Falta a ele no entanto definio mais ntida de estilo nacional e do carter popular, pois sua especificao histrica rala. Em resumo: o matavirgismo quer um primitivismo autctone e provinciano, bastante sentimental e nacionalista, ligado s razes do nacional. Ao arrepio da insinuao cmica, Mrio no nem nunca foi de fato "matavirgista", como jamais fora desvairista, klaxonista ou o que seja "matavirgismo", como os anteriores, um ismo-piada que assinala sarcasticamente a relatividade dos radicalismos europeus e de seus transplantes braslicos. Claro que a recorrncia da brincadeira no Modernismo brasileiro, onde tomou a forma de vrios pseudo-ismos, demonstra que a referncia do movimento era impreterivelmente a vanguarda, reduzida no entanto, com senso crtico, a uma dimenso apalhaada nas circunstncias daqui 13 . Fingindo xenofobia, Mrio reclama por independncia e opinio prpria em lugar dos costumeiros epigonismo e embasbacamento, to mais necessrias quanto adversas eram as condies brasileiras. O novssimo "ismo" reitera posio sua que se explicitar em plenitude nos anos seguintes: as vanguardas so manifestaes passageiras e, por no serem imanentes vida brasileira, precisariam ser assimiladas criticamente14. No atendem s necessidades construtivas de Lima nacionalidade em formao, e que dona Tarsila se cuide! O raciocnio, se tomarmos como fonte escritos posteriores dele, seria mais ou menos este: as tendncias europias de vanguarda praticam uma linha de experimentao formal divorciada das necessidades brasileiras, expressam valores com os quais no podemos nos identificar por absoluta incorrespondncia de contexto, em suma, so o captulo da decadncia de uma civilizao e de uma classe social. Abstrao, preciosismo, individualismo so por conseguinte coisas a evitar. Ainda que participe da atualidade modernista e da generalizao universal do esprito novo, a cultura brasileira sofre de carncias mais elementares, nela inexistindo os fundamentos lgicos e necessrios da forma moderna e de sua autonomia. Se matavirgismo quer dizer algo, a tendncia que ele arremeda atenderia a desiderato desse tipo, o que alis no est claro. Mrio um provinciano advertido e no bobo, sabe perfeitamente que o Cubismo, mesmo que no sirva de lio para brasileiro, referncia incontornvel para toda pintura que se queira moderna. Tal admisso, ainda que tcita, pressupe o primado da atualizao: as modas europias no devem ser ignoradas, mesmo que desencaminhem o artista brasileiro. Insiste nesse sentido para que seus amigos se municiem de tudo o que toparem de Futurismo, Cubismo e caterva no esquecendo de contar na volta porque ele tambm quer saber o que se faz e se discute em Paris. Opinando que a imitao se cura com a pureza da mata, o que bobagem, Mrio adiciona um dado novo que avana em relao aos termos que usualmente caracterizavam a generalidade do transplante cultural. Na carta, o vezo mimtico e atualista se constitui fenmeno de novo-riquismo, tpico de uma camada social que viaja anualmente Europa e se ilustra como pode com a ltima novidade do varejo parisiense. Enfim, ele teme que seus amigos fossem gente do tipo ricaos que se pavoneiam nos sales franceses! A imitao da vanguarda acusaria pois, mais do que seu carter de classe, o desfrute social do complexo de inferioridade nacional da elite brasileira. Lembremos que a procura de modas de ostentao e polidez, inencontrveis em seu meio social de origem, o mais premente dos problemas culturais da burguesia paulista, enriquecida na poca pelo caf. Fora precisamente esse, como sabemos, o assunto das Memrias sentimentais reescritas nesse ano. Caipiras e futuristas do que seus amigos no passam! Com o insulto Mrio fantasia certa revolta antiburguesa, embora a afetividade de que se revestem os termos do xingatrio ateste principalmente a admirao pelos burgueses viajados e cosmopolitas que so seus amigos. Burgus e antiburgus podem por sua vez se reunir sob a gide de uma mata virgem qualquer definindo, sua maneira, a prpria

(10) Se verdade que o vis catlico e tradicionalista dos artigos sobre "Arte Religiosa no Brasil" contrape a pureza colonial de uma tradio mais autntica e original ao surto de imitaes sem carter da arquitetura contempornea, essa busca do nacional se liga, nesse e noutros momentos da trajetria de Mrio, a uma perspectiva universalista de aprofundamento do particular. Atinai, o poeta de H uma gota de sangue em cada poema estava a interessado em reiterar a continuidade da tradio esquecida para enfrentar o "deperecimento das foras catlicas", ou seja, a partir da recuperao da universalidade sensvel da experincia esttica, revitalizar a religio (Revista do Brasil. So Paulo, vol. XII, n 49, p. 11). (11) justamente a possibilidade que ele ento abraava publicamente com mximo empenho: "H de facto em nosso futurismo quebra de evoluo brasileira. F que, coisa mil vezes dita, durante quasi sculo, com vrios lustros de atraso, fomos uma sombra de Frana. Sombra doirada. Sempre sombra. Ns, os modernistas, quebramos a natural evoluo. Saltamos os lustros de atraso. Apagamos a sombra. Mas somos hoje a voz brasileira do coro '19231, em que entram todas as naes. [...] Ser preciso noutros pases buscar nossa evoluo. Mas nem por isso deixamos de ser a voz brasileira no movimento que hoje se desenha universal" (Andrade, M. "Convalescena". Revista do Brasil. So Paulo, n 92, agosto de 1923, p. 339). Cf. igualmente sob esse aspecto o editorial, redigido por Mrio, de Klaxon (So Paulo, n 1, maio de 1922, pp. 1-3). (12) Descartada a possibilidade de um tradicionalismo de fundamento catlico, Mrio admitir as afinidades entre tradicional e moderno, passado e presente, nacional e cosmopolita, sem especificar no entanto o contedo dessa conciliao: "So Paulo, mais uma vez e em outro terreno, vai glorificar-se reatando uma tradio artstica que o Aleijadinho de Vila Rica, o gnio inculto do portal de So Francisco de Assis, em Ouro Preto, e da escadaria de Congonhas encetou e que nenhum ousara continuar. F. Brecheret, cujas foras artsticas rapidamente se maturam ao calor de impecilhos e rivalidades no s renova o passado em que a Bahia deu Chagas, o Rio, Mestre Valentim (,) e Minas, Joo Francisco Lisboa, como realiza o ideal moderno da escultura, templo onde pontificam Bourdelle, Lembruck, Carl Mills e Mestrovic" ("De So Paulo". Ilustrao Brasileira. Rio de Janeiro, nov. 1920).

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A negra, 1923 Le mcanicien, 1918 Le mcanicien, 1920

Agradecemos Biblioteca do Museu de Arte de So Paulo MASP pela cesso das obras a partir das quais foram feitas as reprodues das duas verses de Le mcanicien.

Reproduo Romulo Fialdini

1. Tarsila do Amaral. A negra, 1923. leo sobre tela, 100 x 81,3 cm. Museu de Arte Contempornea da Universidade de So Paulo, So Paulo.

Reproduo Romulo Fialdini

2. Fernand Lger. Le mcanicien, 1918. leo sobre tela, 65 x 98 cm. Muse d'Art Moderne, Villeneuve d'Ascq.

Reproduo Romulo Fialdini

3. Fernand Lger. Le mcanicien, 1920. leo sobre tela, 115,5 x 88,5 cm. National Gallery of Canada, Ottawa.

VINICIUS DANTAS posio modernista. Se o desfrutvel cosmopolitismo no passa de rastaquerismo, Mrio insinua que, mesmo regressiva, a experincia cultural de seu pas tem historicidade e originalidade prprias. Mais: supe que sua expresso corrigiria a rota modernista e suplantaria o referencial europeu. Matavirgismo comea a significar alguma coisa, ostenta por exemplo a positividade de uma realidade desvantajosa e difcil esta a diferena brasileira. A radicalizao primitivista q u e a fica subentendida se pretende crtica tanto dos hbitos culturais da burguesia paulista quanto do comercialismo deslavado da Arte Negra (o "hermetismo malicioso dos negrides de Paris", na expresso oswaldiana). Para espanto do casal que se "primitivizava" segundo o cnone do modernismo francs, grita o poeta: o matavirgismo nos salvar! Com sua gesticulao patritica, o revanchismo provinciano nos recorda que a referncia de Mrio antes a ideologia de mobilizao nacional do que a vanguarda. Claro que nada disso era endossado, cabe-nos insistir, pela face pblica do escritor, cuja campanha da Semana e intervenes crticas se pautavam pela tentativa de dosar o mais intransigente internacionalismo com um senso de responsabilidade patritica 15 . o que nos leva a pensar que o matavirgismo talvez no seja mais do que uma estratgia para precipitar a tendncia nacional de Tarsila e no mais que isso. Todavia a pretenso de pureza que ele simboliza deforma um pouco o encanto da blague, armando a falsa oposio entre mata virgem e vanguarda, q u e acaba por confinar o Brasil da mata virgem no mundo das nacionalidades que comeam, colocando-o a sim para fora do universo da modernidade. A dvida ainda assim permanece: a especificidade da experincia brasileira ficaria escamoteada caso fossem adotados os meios expressivos da vanguarda? Mrio estava bastante impregnado da tradio romntico-naturalista e, a despeito de seu catolicismo, nada concederia a uma viso incondicionada de criao cultural e da originalidade nacional, porque aceitava que tanto esta quanto aquela eram produtos histricos da vida social e haviam sofrido, ambas, a ao objetiva de fatores fsicos, raciais e culturais. maneira de Oswald, Mrio quer especificar a "matria psicolgica" existente na vida brasileira, se estava formada, se a ao dos fatores persistia, se entravava a modernizao ou a suscitava etc. a fim de se tornar experincia geral e coletiva, isto , tradicionalizada. Se entendida como manifestao nacionalista, a idia de mata virgem bloqueia a comunicao entre a experincia brasileira q u e se constitui, e balbucia, e a crise europia graas qual brotou e da qual agora se imagina alternativa. Em vez da mais perfeita ordem nacionalista h na blague um elemento que escapa lgica determinista ou historicista: a noo de sinceridade. ela que abre em meio implacabilidade dos condicionamentos e dos desenvolvimentos orgnicos a clareira do irracional, maneira da irrupo de "Minha loucura" no oratrio profano "As enfibraturas do Ipiranga". Se Mrio parece se dilacerar com os males da imitao e sofre com a inorganicidade da vida brasileira, assume pelo menos aqui que a sinceridade seu a priori uma espcie de mandamento tico. Na recomendao a Tarsila fica claro seu efeito moral: volte para dentro de si, no deturpe sua sensibilidade e sua psicologia, no se deixe coagir pelas tendncias prestigiosas e decadentes do Velho Mundo! A sinceridade desse ensimesmamento implica a aceitao das prprias deficincias e limitaes, um imperativo de honestidade artstica, mas honestidade principalmente para consigo e com sua criao, sem o custo de mutilaes dolorosas 1 6 . Esse imperativo de autenticidade interior tambm se abre para uma experincia brasileira que certamente j no era a mesma de um Slvio Romero ou de um Euclides da Cunha: o senso de misso do intelectual brasileiro do sculo XIX subvertido pelos aspectos desagregadores e regressivos da personalidade que, assim, fica com sua representatividade nacional estremecida. Tanto a criao cultural quanto a nacionalidade adquiriam uma presena mais esttica, p o d e n d o ser frudas e gozadas livres dos sofrimentos e constrangimentos histricos, a despeito de raa e meio fsico persistirem governando, em segredo, a vida social. Atenuados os determinismos, a psicologia individual tratada no mbito especfico de seus(13) No "Prefcio interessantssimo", logo aps lan-la, Mrio com o aviso d por encerrada a escola desvairista: "Prximo livro fundarei outra" (Andrade, Mrio. Poesias completas. Edio crtica de Dila Zanotto Manfio. Belo Horizonte: Itatiaia/So Paulo: Edusp, 1987, p. 77). (14) Antes de 1923, podem ser encontradas na crtica de Mario manifestaes de que a prtica vanguardista, calcada no modelo europeu, no nos convinha. Num dos artigos sobre "Arte Religiosa no Brasil" queixava-se j de que, com a Independncia poltica, o Brasil escancarou-se influncia estrangeira desqualificada, descuidando-se de valorizar o filtro crtico da tradio colonial, catlica, barroca, popular: "Queramos ser progressistas, reformadores, cubistas, fomos buscar o que no era nosso, imitamos sem altivez, copiamos sem engenho, possvel que ainda aceitemos como templo uma imitao de Karnak, um plgio de Santa Sofia; [...] O erro nosso de construir igrejas nos mais estrangeiros dos estilos propaga-se com rapidez perniciosa por todo o Brasil. Quebrou-se bruscamente a cadeia da arte religiosa nacional: todos os estilos penetraram a praa numa sarabanda de mistificaes" ("Arte Religiosa no Brasil em Minas Gerais", Revista do Brasil So Paulo, Vol. XIV, ano V, n 52, junho de 1920, p. 109). Resenhando um livro de crnicas de Menotti em 1921 comenta: "Menotti, como poeta livre e sincero, compreende muito bem que 'la nuance avant tout!' muito boa para pases cansados e raas estioladas, nunca para estes sis, esta mistura pica de raas, estes progressos vertiginosos" ("A propsito de Po de Moloch". Jornal do Comercio. So Paulo, 19.12.1921). (15) s vsperas da Semana, escrevia numa coluna de divulgao do evento : "O que vai realizar-se bem uma Semana de 'Arte Moderna'. No nos cingimos absolutamente ao futurismo contraditrio, embora s vezes admirvel, de Marinetti. Desejamos apenas ser atuais. Atuais de Frana e Itlia como da Amrica do Norte e de So Paulo; H exageros em nossa Arte? natural. No se constroe um arranha-cu sobre um castelo morabe. Derruba-se primeiro a mole pesadssima dos preconceitos que j foram verdades, para elevar depois outras verdades, que sero preconceitos num futuro qui muito prximo. Se na prpria cincia as 'verdades' ruem presso dos Einsteins, que ser na arte, feita de moda e sensibilidade! Queremos ser atuais, livres de cnones gas-

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ENTRE "A NEGRA" E A MATA VIRGEM tos, incapazes de objetivar com exatido o mpeto feliz da modernidade. Depois do pranto de todo um sculo romntico, coroado nos espinhos duma guerra tremenda, queremos rir e livremente rir! Batem os sinos! sbado de Aleluia! No me pesa ser o Judas desse sbado [...]" (Andrade, M. "Pr - Arte Moderna (I) - Terno Idlio". A Gazeta. So Paulo, 3.2.1922). (16) As propores verdadeiramente calamitosas a que chegou no Brasil a imitao cultural, difceis hoje de serem descritas, eram tratadas criticamente desde seus primrdios, pelo Futurismo paulista. Em artigo do remotssimo ano de 1920, encontramos a seguinte formulao juvenil de Srgio Buarque de Holanda que revela igual disposio de colocar sinal positivo no vezo imitativo, alterando a lgica viciada do debate: "No Brasil, o hbito de macaquear tudo quanto estrangeiro , pode-se dizer, o nico que no tomamos de nenhuma outra nao. , pois, o nico trao caracterstico que j se pode perceber nessa sociedade em formao que se chama: o povo brasileiro." (Razes de Sergio Buarque de Holanda. Org. de Francisco de Assis Barbosa. Rio de Janeiro: Rocco, 1989, p. 43).

mecanismos voluntrios e involuntrios, conscientes e inconscientes, cujo funcionamento tem densidade prpria, no podendo ser dissolvida no anonimato de uma herana: a psicologia fruto dos embates experimentais da vida, a se projetarem no passado, na subjetividade e na biografia individual. A se v o quanto o inequvoco modernismo de Mrio se acha s voltas com questes de cunho tico-psicolgico, pois o inacabamento da formao brasileira o obriga a conciliar o ritmo sem fronteiras da vida interior individual com o paternalismo responsvel. Formado na sua provncia por preocupaes patriticas e investido daquele senso de misso nacional que Antonio Candido chama de tradio empenhada, o autor da Paulicia parece interiormente dividido entre a racionalidade nova da criao moderna, emancipada dos condicionamentos e do evolucionismo, e o contexto brasileiro que inibe essa liberdade interior, puramente esttica. O artista moderno estraalharia sua subjetividade, pondo-se prova, destruindo fronteiras, dando corda ao movimento lrico do Eu profundo reconhecemos aqui o terico de A escrava ampliando tentativamente dimenso coletiva e nacional o que nesse texto no passava de uma experincia privada da poesia. Se tudo est no inconsciente (ou Subconsciente como talvez Mrio preferisse), tudo autntico, cada relao foi filtrada pelos escaninhos mais secretos da personalidade criadora. Portanto, os termos mais convencionais da discusso nacionalista sobre a imitao estrangeira e a importao perderiam a razo de ser. Se mata virgem confinamento nacional a srio, no sabemos do que ele est falando, uma vez que na prpria psicologia mariandradina inexiste tal circunscrio. Contudo se Mrio persiste afirmando que o mimetismo cultural a perdio de uma nacionalidade mal-acabada porque sabe que as carncias nacionais tm objetividade histrica e a misria geral no se resolve em foro ntimo. Conquanto o ch forte de mata virgem possua propriedades teraputicas e regenerativas similares s do nacionalismo, o grito do inconsciente pode-se ouvir se estende pelo espao universalista da criao moderna. Mrio pede que o inconsciente se pronuncie a cu aberto e no inconsciente brasileiro h mata virgem, jamais a natureza gentil dos romnticos ento, como conciliar a pletora ntima ("o mato impenetrvel do meu ser...") com o senso de misso impingido pelo legado romntico e naturalista? Resumindo: a advertncia matavirgista mais dilacerada e vacilante do que parece primeira vista e Mrio decerto a faz a si mesmo tanto quanto amiga, pois a herana do passado, com tudo de admirvel que possua, nada oferece diante do tamanho das carncias que era necessrio remediar. Matavirgismo significa lato sensu experincia brasileira, experincia esta de natureza psicolgica, mas sobre a qual atuam os fatores objetivos da cultura e da sociedade. evidente que Mrio no se contentava com uma mera afirmao literria ou artstica sobre as condies sociais e raciais do meio brasileiro, sobre suas adversidades tcnicas e culturais, uma espcie de vitria simblica e subjetiva; sabemos que logo ele reconhecer que o problema brasileiro, isto , a inorganicidade nacional e os males da imitao, exigia antes soluo material, basicamente poltica e institucional. Tudo isso est no pastiche nacionalista da mata virgem, so dificuldades que ele prprio enfrentava e todos seus companheiros de Futurismo paulista era inclusive a rbita em que girava, como vimos, Oswald. Temos de admitir, antes de terminar o pargrafo, que a chave da passagem est porm no falsete em que a carta est escrita, o que sublinha a dificuldade do imaginrio nacionalista ao mesmo tempo que dissimula o universalismo ingnuo do mesmo Mrio noutros lugares, como na potica de A escrava. preciso que se repita: o que modernista nessa histria s o falsete, no o matavirgismo ou o que valha. ao falsete acrianado, com seu qu de brincadeira, que se deve a transposio dos dilemas intelectuais do criador brasileiro em forma artstica moderna e nacional. Com uma blague, o brio provinciano do correspondente de dona Tarsila do Amaral disfara a ascendncia das correntes estticas da vanguarda internacional a que ele estava submetido sem sair de So Paulo, tanto quanto ela o estava na rua Hgsippe Moreau, dado que modernista nenhum que

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VINICIUS DANTAS se preza escapava atrao deste experimento artstico e literrio. Mas intuindo talvez que a prpria lgica da vanguarda demanda a criao de modas fceis, lana ele mais um movimento estapafrdio, para desassossego de seus amigos sempre afrancesados, com tudo o que havia de menos civilizado e menos modernista no progresso de So Paulo. Tudo indica que a carta foi escrita sem que Mrio tivesse uma notcia mais exata da qualidade do dilogo de Tarsila com o Cubismo 17 . Foi igualmente na temporada de 1923 que ela chegou s primeiras solues realmente originais de sua pintura, com a descoberta de que as tcnicas do Ps-Cubismo podiam ser transpostas para o contexto brasileiro, impulsionando uma formulao local do moderno 1 8 . O bonito da histria a convergncia dos trs companheiros de aventura modernista reunidos, mesmo distncia, numa inquietao parecida a de criarem um tratamento mais especificado para o universalismo abstrato do mito modernista que de imediato possibilitasse um acerto de contas com a vocao patritica do Futurismo paulista. Incluo evidentemente na conversa o noivo da artista, o milionrio Jos Oswald que, por trs do ombro dela, no desgrudava o olho das cartas do rival porque sabia que essa e tantas outras indiretas lhe eram dirigidas. O que causa espcie o fato de Tarsila ter pintado h pouco A negra uma tela matavirgista avant la lettre (sem trocadilho) 19 . Na obra dela, A negra ocupa uma posio central e muito do que, nos anos seguintes, viria a aflorar, principalmente nas fases pau-brasil e antropofgica, a est enigmaticamente prefigurado. As recomendaes do poeta paulistano no apanharam Tarsila desprevenida, ao contrrio at, pois mesmo antes de receber a carta fora sua prpria evoluo que lhe impusera a certeza de que era possvel uma assimilao brasileira do Cubismo, ou glosando Mrio, de que "a volta para dentro de si" passava necessariamente pela tradio construtiva da vanguarda. Mata virgem? Sim, mas geometrizada! responderia a pintora. Pela correspondncia editada sabemos que suas motivaes no eram l to diferentes daquelas alegadas pelo amigo, como se l na carta aos pais, de abril desse ano de 1923: "Sinto-me cada vez mais brasileira: quero ser a pintora da minha terra. Como agradeo por ter passado na fazenda a minha infncia toda. As reminiscncias desse tempo vo se tornando preciosas para mim. Quero, na arte, ser a caipirinha de So Bernardo, brincando com bonecas de mato, como no ltimo quadro q u e estou pintando" 2 0 . Se foi movida em primeiro lugar por necessidade de expresso subjetiva, Tarsila no se subtrair porm experincia recm-vivida, recuperando as sensaes da infncia pelo crivo da contemporaneidade primitivo-parisiense. inegvel que existe nessa afetividade um elemento de clculo e imprevisto comercialismo, assumido noutra passagem da mesma carta quando ela se regozija com o fato de ter chegado a hora brasileira pois "Paris est farta de arte parisiense". Ainda assim, o apelo extico e espetacular de Arte Negra, que certamente subsiste no localismo dela, no se dissocia de uma reimaginao plstica da cena brasileira, na qual a vida popular no s ganha visibilidade como passa a contribuir para a representao nacional. Na afetividade tarsiliana, elitismo e sincero amor pelo povo se fundem, assinalando que a sociabilidade patriarcal chegava pintura... modernista para congraar, conforme o imaginrio de suas elites, as classes dominantes e subalternas, agora transformadas pelo ritmo da indstria e da urbanizao. Tanto quanto motivada por uma busca psicolgica e social da prpria experincia, est ela convencida de que a existncia comum e unificada de uma modernidade o que a obriga a ter uma posio sobre o Brasil e sobre si mesma. Inspirando-se livremente na lio cubista, Tarsila formula um projeto de arte brasileira em que a tnica nacional deixa de estar exclusivamente no assunto, subordinado que fica realizao tcnica do todo a mesma do PsCubismo em toda parte. Transpondo os valores plsticos autnomos, os recursos antimimticos da cor para uma figurao infantilista em que o gosto da composio e o encanto de sua apreenso lrica so elementos igualmente decisivos, Tarsila cria com os dados regionais ou locais uma imagem purificada (em vrias acepes) da(17) At janeiro de 1924, conforme carta a Anita Malfatti, Mrio desconhecia as telas pintadas em Paris (Andrade, Mrio. Cartas a Anita Malfatti. Ed. org. por Marta Rossetti Batista. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1989, p. 66). (18) A ecloso da pintura brasileirista de Tarsila notavelmente estudada por Gilda de Mello e Souza em "Vanguarda e nacionalismo na dcada de vinte" (In: Exerccios de leitura. So Paulo: Duas Cidades, 1988, pp. 266-9); outro relato da evoluo da artista e dos passos de seu aprendizado feito por Carlos Zilio com vivo comparatismo em A querela do Brasil. Rio de Janeiro: Funarte, 1982. (19) A gnese do quadro acompanhada por Amaral, A., op. cit., Vol. I, especialmente nas pp. 96-8. Alexandre Eullio reproduz a tela em fina prosa no seu "...Aquele desenho que vem na capa de Le Formose..." (In: A aventura brasileira de Blaise Cendrars. So Paulo: Quron/Braslia: INL-MEC, 1978, pp. 85-95). H matria valiosa sobre esse momento da pintura tarsiliana em Batista, Marta Rossetti. Os artistas brasileiros na Escola de Paris Anos 20 (Tese de doutoramento. So Paulo: ECAUSP, 1987), especialmente pp. 332-6 do Vol. II; e em Avancini, Jos Augusto. A pintura modernista e o problema da identidade cultural brasileira: Estudo comparativo da obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Rego Monteiro, 1911-1933 (Dissertao de mestrado. So Paulo: FFLCH-USP, 1982, especialmente pp. 67-76). (20) Amaral, A., op. cit., Vol. I, p. 84. "So Bernardo" o nome de uma das fazendas de Seu Jos Estanislau. Gilda de Mello e Souza adverte que no se deve superestimar no caso de A negra as razes afetivas e psicolgicas de sua inspirao em detrimento da significao plstica do quadro, mesmo concedendo que a radicalidade deste, dadas as limitaes da artista, tem um qu de inexplicvel (loc. cit., p. 267).

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vida brasileira. No h nada nessa pintura que correspondesse ao receio de Mrio de que a amiga se desagregasse estilisticamente bem pelo contrrio A negra uma prova de independncia e inventiva em relao ao mito maqunico, ao emocionalismo expressionista e ao rigor neoplasticista. Ao invs de uma decomposio da representao, uma definio mais precisa da imagem da vida local: representao nacional e anti-representao pictural se conciliam de alguma maneira no seu realismo potico. Localismo e sentimentalismo fazem assim uma inusitada apario na pintura ps-cubista, de amplas consequncias como sabemos. Com tirocnio, ela j havia deparado com seu caminho e eleito Fernand Lger como mestre e guia no mato virgem do modernismo. O que a ter atrado nesse cubista heterodoxo que, em pleno "momento cubista", promoveu a decomposio de planos e volumes enfatizando sobretudo o efeito escultural e arquitetnico da figurao e a fisicalidade do movimento, em lugar da anlise intelectual da representao? Posteriormente a 1918, fase que a que nos interessa aqui, Lger prosseguiria na explorao da multiplicao dos planos e da segmentao simultanesta, acentuando por sua vez o valor cnico do conjunto, nele readmitida a figura21. Criou desse modo um espetculo de cores e de formas dissonantes que celebra as oportunidades abertas pela vida moderna da exacerbao perceptiva organizao coletivista do trabalho e do espao. Em Lger se cruzam preocupaes caras s mais diferentes vanguardas, do Futurismo ao Neoplasticismo, do Purismo Bauhaus, conciliadas de modo bastante incomum. Fiel lgica imanente da pintura ps-czanniana, o criador do Ballet mcanique aspira, sem compromisso de imitao realista, a um tratamento depurado, disciplinador dos objetos e da matria primeira da vida imediata. Figurando estados de intensidade organizados, essa pintura agradvel e alegre se funda naquilo que Lger chamou de contrastes de formas, isto , os conflitos plsticos e visuais entre cores, volumes, oposio de assuntos, relaes geomtricas, tratados objetivamente maneira cientfica. Ao contrrio dos demais cubistas, Lger empenhou-se pela realizao prtica da arte na sociedade, isto , sob o prisma da criao geomtrico-abstrata seu lirismo utilitrio reorganiza poeticamente o espao cotidiano e a vida. Por meio de uma esttica utilitria que se prope a explorar as promessas desencadeadas pela grande indstria e pelo desenvolvimento tcnico-cientfico, criando um equivalente visual da experincia humana e da "psicologia de guerra" desses novos tempos. Seu humanismo populista empurraria o Cubismo para o horizonte prtico de um funcionalismo idealizante que se contenta, no obstante, e ingenuamente, com a apologia lrico-maqunica do vnculo produtivo da criao moderna com a sociedade industrial. Na concepo desse mestre, a pintura fator de elevao do esprito e do moral do povo, um lazer que, como o cinema, a publicidade e o espetculo da cidade, participa do imaginrio herico da poca (o lirismo antiburgus e modernista das massas, da tecnologia e do espetculo urbano o mesmo de Blaise Cendrars, verdadeiro pendant potico desse mestre, autor a quem Oswald se ligaria)22. Por sua simplicidade proletria e pouca empostao intelectual, o senso fsico das coisas, dos objetos e dos dinamismos elementares sempre foi caro a Lger que o resguardou na figurao, impondo Lima representao promscua de muita fora23. Entre tantas, certamente esta era uma razo a mais para que Tarsila, com muita personalidade, dele tivesse se aproximado do realismo lgeriano ela assimilaria alguns itens, principalmente o gosto pelos materiais mais heterclitos da modernidade e a ateno matria, o que contribuiu para refrear, a despeito do vigor geometrizante, os descolamentos da abstrao. Tanto isso verdade que, desembarcando em dezembro da temporada inesquecvel, ela insiste, aps assumir que cumpriu mesmo o servio militar do Cubismo, nesse ponto: "Sou profundamente brasileira e vou estudar o gosto e a arte dos nossos caipiras. Espero, no interior, aprender com os que ainda no foram corrompidos pelas academias. Pintar paisagens e caboclos do Brasil no ser artista brasileiro, como no artista moderno aquele que realistamente pinta mquinas e deforma figuras"24. Se havia

(21) Golding, John. Le Cubisme. Paris: Ren Juillard, 1962, p. 134; Cooper, Douglas. Fernand Lger el le nouvel espace. Genebra: Editions des Trois Collines, 1949, pp. 36-51. (22) A potica maqunico-lrica de Lger est exposta nesse singelo brevirio que Fonctions de la peinture (Paris: Denol/Gonthier, s.d.) do qual bastante me vali para o resumo. (23) "A posio de Lger difere no obstante daquela de seus amigos, como difere da dos futuristas, das vanguardas russas e alems. Todas elas preconizam a unidade, a predominncia do moderno, excluindo o passado. Inversamente Lger nunca deixou de apregoar o valor da mistura. O bonde diante do castelo de Versalhes um anacronismo incmodo diz Raymond Duchamp-Villon, uma aliana caracterstica de nosso tempo, diria Lger. Ao longo de cinquenta anos, Lger misturou os motivos e os gneros, o rstico e o tcnico, o natural e o fabricado, o esttico e o banal." (Lassalle, Hlne. "Le triomphe du sujet". In: Fernand Lger. Milo: Mazzotta, 1990, pp. 13-4). (24) "Tarsila do Amaral, a interessante artista brasileira, dnos as suas impresses". Correio da Manh. Rio de Janeiro, 25.12.1923. H transcrio em Amaral, op. cit., Vol. I, p. 443. Alm de rplica frontal s apreenses de Mrio, esse expressivo documento fornece uma avaliao atualizada da pintura francesa e da vanguarda que, a meu ver, dali a dois meses reaparece no Manifesto oswaldiano.

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uma visualidade da vida moderna conforme Lger, havia logicamente uma visualidade da vida brasileira, pensa Tarsila, ainda cata de critrios plsticos e visuais capazes de organiz-la25. Primeiramente pesaram seus laos afetivos, bvio, mas foi a experincia parisiense, inclusive a moda negrista, o que de fato decidiu a iluminao vanguardista das tradies populares, arcaicas e coloniais de sua terra. Tampouco lhe faltou a exata dimenso de provocao esnobe que um primitivismo do tipo teria no meio provinciano e futurista de So Paulo. Na transposio, a linearidade da evoluo ps-impressionista de formas, ao contrrio de atender s inquietaes desencadeadas pela experincia histrico-social da sociedade industrial, defronta-se a com o que foi excludo, recalcado ou simplesmente retardatrio em relao matriz europia. O atrevimento dela no foi pequeno; Tarsila valoriza, bastante ciente dos desajustes entre a circunstncia brasileira e o contexto europeu do esprito novo, a presena potica das coisas, figurinhas e paisagem o que perde em dinamismo simultanesta, adquire em pitoresco, porque sua modernidade menos industrial. Tarsila sublinhar o lastro naturalista das cenas e no alternar procedimentos desafiadoramente antiilusionistas, fragmentando, como fazia Lger, a presena do objeto pela multiplicao de planos grfico-visuais26. Conquanto o gosto de estamparia seja num e noutra o mesmo, tanto a simplificao da paleta quanto a estilizao despojada tendem na brasileira ao infantilismo (o mesmo do falsete da mata virgem?), um pouco como se ela admitisse que a aplicao brasileira do Cubismo tivesse um qu de diminudo e quase escolar. Operando com a mesma liberdade modernista a depurao construtiva e lrica de seu assunto, cuja literalidade no conta, ela acomoda a dinmica acelerada do analitismo realidade de sua prpria experincia, forjando uma espcie de acanhamento apelativo. Veja-se sob esse aspecto a independncia com que ela, particularmente nos quadros da fase pau-brasil, abrandou o valor estrutural das formas em conflito, privilegiando em seu lugar a ingenuidade do conjunto ("regional e puro"), cujo acanhamento contribui para o aspecto naif de seu construtivismo (matavirgista?)27. Voltemos entretanto ao captulo inicial da aventura dessa transposio: o caso A negra. O quadro foi construdo com base no desentrosamento entre a primitividade da figura e o modernismo brilhante do fundo. Tarsila tentou sobrepor o equilbrio rtmico da primeira s faixas coloridas e metonmica e magnfica folha de bananeira do segundo, traindo porm um senso de composio algo ostensivo. O efeito bsico est a na dissonncia entre a fora plstico-simblica da figura e a soluo decorativa do fundo. Tarsila adotou comedidamente o preceito do "Il faut gometriser" e, mais que isso, aliando tratamentos divergentes, congraou mtico e decorativo no mesmo espao. J era de larga difuso na pintura ps-cubista daqueles anos esse tipo de desentrosamento em que figura e fundo se desarranjam ironicamente, meio que sados de diferentes espaos picturais, citando recursos modernistas em "cenrio" convencional ou o inverso assemblage em que o ilusionismo reaparece em meio ao cubosimultanesmo, assinalando, a meu modo de ver, que os anos da arte radical passaram 28 . Ocorreu ao prprio Lger exercitar em algumas telas uma derivao desse assemblage, executando retratos desentrosados que podem nos auxiliar a entender o emprego do recurso por Tarsila em A negra. Lembro em particular o admirvel Le mcanicien (conheo duas verses: uma de 1918, outra de 1920). Trata-se de um retrato de proletrio em atitude de burgus fin-de-sicle, que celebra as transformaes sociais e tcnicas da modernidade a partir de um de seus personagens mais comuns. Ainda que recorra, com certo encanto de pintura popularesca, individualizao da figura mediante detalhes caracterizadores (anis, tatuagem, bigode, charuto etc), o retrato potencializado pelo conflito entre a massa escultrica da figura e o fundo explosivamente abstrato, o que altera seu significado primeiro 29 . Na exacerbao do desacordo visual entre a figura (pretensiosa e ingnua) de almanaque sindical ou comunista e o fundo quase neoplasticista est a beleza de seu efeito; com ironia talvez involuntria, Lger

(25) Outra tela de Tarsila, anterior, a meu modo de ver, a A negra um exerccio falhado de assimilao cubista. A caipirinha comprova que ela vinha tentando reunir o dado local e a forma de expresso cubista sem xito, porque hesitava entre a fidelidade a esta ou quele. O resultado a decepcionante: o analitismo simplesmente espelha formas com critrio decorativo e se contenta com uma espcie de transcrio simplificada da cena; o processo decompositivo de to elementar no rende. Assunto e tcnica no se atritam e a transposio da linguagem cubista para a realidade brasileira ainda no adquiriu dinamismo e significado prprio. A tela uma paisagem "convencional", algo esttica, sob uma malha de formas contrastadas la mode; a estilizao geomtrica figura uma paisagem banal e... pscubista, denotando principalmente a complicao do esforo de composio. Uma avaliao contrria a esta pode ser lida em Avancini, loc. cit., pp. 68-70. (26) Cf. Souza, Gilda de Mello e, loc. cit., p. 268. (27) Lgeriano nela o mtodo de ocupao da superfcie da tela, o que se tornar logo mais visvel em trabalhos como Tarsila introduziu menos dinamismo e maior linearidade nesse mtodo, uma vez que o fracionamento abstratizante da figurao se concentra numa cena nica e espacialmente ingnua. Recupera portanto o encanto da cena vista ou vivida; o espetculo sgnico-maqunico tia modernidade urbana aligeirado, ganhando a cena nitidez, iluminando-se em cada cantinho e elemento (vale comparar com os quadros da srie "Paysages anims", circa 1922-23, dos quais o experimento tarsiliano mais se aproxima). Nas telas citadas, o lirismo dos "fatos estticos" est na modstia provinciana do progresso e da cidade, cada coisa valendo por si com apuro de detalhes (pitorescos) e uma saudade pueril das frias passadas no outro lado do paraso. (28) Kenneth E. Silver oferece muitos elementos para a interpretao do procedimento, to recorrente na pintura modernista do ps-guerra, em "From analysis to synthesis" do seu Esprit de corps. The Parisian avant-garde and lhe First World War, 1914-1925. Princeton: Princeton University Press, 1989, pp. 299-361.E.F.C.B., A gare e So Paulo.

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figurou a prpria contradio de sua esttica, inscrevendo no quadro o descompasso entre maquinismo e humanismo, utopia construtiva e realidade social. A ciso figura/fundo assinala quo precria a fuso arte/vida proposta pela vanguarda, alm de precoce. A, a representao do operrio tpico da sociedade industrial sobreposta, dentro de um mesmo espao imaginrio, inveno de uma organizao visual radicalmente moderna, qual, esta a surpresa, o proletrio annimo, agente expropriado desta sociedade, permanece alheio. Nos seus escritos, Lger se pergunta por que a criao que desenvolveu tcnicas objetivas e antiindividualistas, pelo menos em teoria, correlatas da intensidade modernista do trabalho alienado, no consegue muitas vezes quebrar a indiferena do trabalhador Le mcanicien faz visualmente essa pergunta. Na verso de 1918, a massa muscular e metlica da figura, de peito nu, domina o primeiro plano; na verso seguinte, ela fica por assim dizer rebatida contra o fundo, uma vez que o contraste entre figura e fundo se amortece em funo da cor escura da camiseta. Com senso de depurao e contraste muito parecido, dentro de um conjunto igualmente dspar, Tarsila deslocar um recurso "neoclssico", bastante generalizado na pintura da poca, para promover um dado corriqueiro do cotidiano brasileiro pintura ps-cubista. Destarte, o desentrosamento figura/fundo adquire potncia descritiva, trazendo tona contrastes locais pouco habituais pintura brasileira, os quais recebem uma figurao realista e no menos ps-cubista. nesse contexto que precisamos compreender o processo de simplificao da figura da negra, cujo volume domina integralmente a tela e submete os demais detalhes fsicos (o amendoado dos olhos, o formato ovoidal da cabea e a intumescncia genital dos beios) mesma tnica geomtrica. De igual modo, Tarsila estava incorporando o desmembramento anatmico das figuras que Lger vinha pintando com frequncia de 1918 em diante; ao invs de frisar o significado mecnico e articulvel das partes (formas bojudas e lisas, revestidas de colorao metlica), ela "psicologizou" o jogo compositivo das formas desmembradas, operando uma espcie de simbolizao da objetualidade modernista. um efeito belssimo: se originalmente no mestre francs a deformao traduzia a experincia do trabalho na sociedade industrial, no Brasil, est A negra nos sugerindo, seria preciso lidar com o significado da explorao do trabalho no mundo do paternalismo, referncia mais psicolgica e menos mecnica, inclusive com o sinal de disponibilidade sexual forada. Mas outras referncias do ambiente parisiense ainda se acrescentam ao despojamento belssimo do quadro sempre em relaes embaraosas e inventivas. De imediato, ressalta a surpresa, o assunto no s conta como produz uma significao mtico-potica dado inusitado, em claro contraste, com a indiferena temtica imposta pelo Cubismo e suas variantes. Na tela da brasileira, a tnica posta na representao, o assunto conta mais que sua refrao, constituindo o dinamismo brilhante das formas (pernas, braos, seio, lbios, olhos, cabea) uma figurao unvoca, reforada pela rtmica do todo, com o fito de salientar o hieratismo onrico da preta. O jogo dos membros e das partes do corpo possui a objetualidade da figurao moderna, embora se manifeste como a beleza natural de um minrio polido pelo tempo uma espcie de talism mgico e sexual. Ainda que a composio tenda, pelas propores agigantadas da figura, abstrao, Tarsila acentua, em prejuzo do "fato pictural" em si, a fora mtica e simblica dela que, como no poema baudelairiano, deixa "parcourir loisir ses magnifiques formes". A negra se ala a smbolo porque em sua magnfica nudez s exterioridade, sem denotar sentimentos prprios e traos individualizadores. Sua tristeza associa lassido e languidez da prostrao sexual s sevcias da escravido, imagem impressionante e ousada da disponibilidade sexual feminina segundo uma mulher avanada para seu tempo. Funciona portanto em muitos nveis de representao: A negra uma alegoria (crist?) da maternidade e (afro-brasileira) da terra, um totem pago cuja poesia emana da estranheza em face do Outro primitivo e latente, mas tambm alegoria nacional, cartaz publicitrio, artigo de exportao, cromo patriarcal, me ancestral, "contraste

(29) Apoiei-me no comentrio de Christopher Green em "Lger and L'Esprit Nouveau. 1912-1928". In: Lger and purist Paris. Londres: The Tate Gallery, 1972.

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de formas", fetiche sexual, manifesto modernista. A figura da negra tratada como uma maternidade ou uma divindade da nacionalidade ou do povo, cuja figurao modernista tem a funo de alegoria neoclssica. Ademais, seu primitivismo no se calca no valor emocional da fatura, agredindo, como nos expressionistas, a sensibilidade moderna empobrecida; se o primitivo alude vida brasileira, por outro lado refere-se igualmente existncia contempornea desse primitivo, tangvel tanto pelo modelado meio art dco da figura quanto pela retomada "neoclssica" da maternidade (o seio gravitacional refora a ligao com a terra). Outra surpresa o gosto flagrante pelo modelado da negra, de tal maneira que a iluso de volume prope uma relao ttil com o mundo representado o jogo de lustro e sombra, ressaltado pela iluminao da pele, outro fator da elegncia publicitria da fatura. A figura hiertica e monumental da negra remete vida e s tradies populares, margem da modernizao, as quais, mesmo com sua aura nacionalista e patriarcal, ainda no pertenciam rbita oficial da cultura e eram at ento realidades recalcadas 30 . O contrrio da voga neoclssica que, buscando a continuidade da herana greco-latina ou da iconografia prestigiosa do Antigo Regime no presente, intenciona inscrever a Arte moderna na tradio francesa. A figurao localista da tela prestigia um assunto pouco explorado na pintura acadmica, contemplando um aspecto do que escapa civilizao burguesa europia isto por si s se ope vocao universalista e burguesa de uma tradio nacional que, na Frana, o "retorno ordem" deveria ressuscitar dos escombros da guerra. Chegados aqui, temos de recapitular a novidade do modernismo tarsiliano. Na sua verso, a pintura modernista parece tolhida daquela liberdade propriamente moderna que permitia ao artista, na boa frmula de Matisse, pintar um azul sem que significasse cu e um verde sem que significasse relva31. A negra inaugurava um estilo nacional de modernismo em que o realismo antinaturalista possua ressonncia referencial e afetiva, regional e pura, cujo empenho nacional em certa medida mitigava a autonomia da forma32. Voltando ao repto do amigo: precisamente por no ter refugido influncia da vanguarda, e do PsCubismo em particular, foi que dona Tarsila do Amaral vislumbrou esse tratamento visual da matria brasileira (geralmente embelezada e edulcorada pela pintura acadmica), reconsiderando e iluminando a prpria experincia dela e as tradies locais. Certamente a reaquisio desse localismo limpo e sentimental, bastante patriarcal por sua vez, de largo curso na pintura brasileira, no teria surtido efeito at hoje, seja frisado, se a artista na "volta para dentro de si" tivesse dispensado o aprendizado modernista e, com ele, a disciplina geomtrico-cubista. Tudo isso indica que a destinatria parisiense da inquietao mariandradina j possua quela altura um projeto de pintura brasileira e modernista assim definido: (1) a transposio do Ps-Cubismo para o contexto brasileiro fora o partido antinaturalista da forma moderna a desempenhar uma funo mimtica, abdicando em parte de seu radicalismo intra-esttico, no que, alis, Tarsila se alinha s ltimas tendncias do "retorno ordem" 33 ; (2) a disciplina formal-geomtrica se impregna de referncia subjetiva e sentimental, passando a incorporar sincreticamente referncias das mais diversas fontes estticas e extra-estticas; (3) a matria brasileira sofre uma espcie de decomposio tcnica e, passada nessa prova de resistncia, acaba integrada pintura ps-impressionista, com isso permitindo que uma tradio artstica incipiente e instvel se consolidasse a partir da continuidade crtica com a produo que a antecedera 34 ; (4) a empostao nacionalista ao mesmo tempo que reelabora o imaginrio patriarcal, por estar fundada no primitivismo parisiense, se dilui em moda intemacionalista o "desrecalque localista" se d sob o horizonte mundial da dependncia cultural, desencadeando mecanismos reversveis, eventualmente crticos, de apropriao; (5) a reinveno potica da realidade social e das tradies populares brasileiras, operada por Tarsila, no se investe de qualquer inteno poltica ou social explcita, ou de qualquer compromisso democrtico o exemplar desapego de classe dessa representao elitista anuncia no obstante a

(30) Indiretamente, um comentrio de Mrio de Andrade muito posterior, de 1939, pode nos comunicar a fora de revelao da tela tarsiliana. Por ocasio do fracasso da representao brasileira de uma exposio internacional, Mrio criticaria nos seguintes termos o oficialismo dos critrios de organizao: "Muito mais fecundo castigo sero porventura estes desprezos internacionais, no pelo Brasil, mas por uma orientao completamente ignara, que chega a recusar para exposies no estrangeiro quadros que representem negros. Porque isto rebaixa l fora o Brasil! Palavra de honra que isto chega a ser mot d'ordre diplomtico. A nica exceo quanto a futebol, em que ainda nos enfeitamos com diamantes negros. Mas quadro genialmente artstico contendo preto dentro no parece com a imagem que desejamos se tenha l fora de ns todos. Ruim, mas alvssimo" ("Esta Paulista Famlia". O Estado de S. Paulo. So Paulo, 2.7.1939, reproduzido em Amaral, A., op. cit., Vol. I, p. 468). (31) "Tarsila sendo brasileira, faz pintura brasileira. E um caso raro. No admite a nuance importada, o divisionismo das cores. [...] Guarda uma ingenuidade primitiva nos seus melhores quadros. Ingenuidade 'voulue' de concepo e execuo que realmente nova em nosso Brasil to velho, apesar dos quatro sculos magros de existncia. Essa ingenuidade a poesia isenta de romantismo. Pintora clssica, no sentido novo da palavra. Como tal, foge da grandiloquencia, da literatura, da anedota. Procura realizar com elementos brasileiros: luz direta, cores rudes, linhas duras, volumes pesados, uma pintura verdadeiramente nossa." (Milliet, Srgio. "Tarsila do Amaral". Revista do Brasil. So Paulo, n 100, abril de 1924. H transcrio em Brasil: 1 tempo modernista, op. cit., p. 116). (32) Zilio chama ateno na op. cit. (pp. 78-9) para o estatuto singular da paisagem na pintura moderna feita no Brasil. Homem e paisagem eram temas praticamente esgotados na pintura francesa, cuja sistematizao clssica e romntica estava por assim dizer encerrada. A partir do Impressionismo, sua perda de prestgio progressiva, tanto que a pintura ps-czanniana volta ao ateli e elege a natureza-morta como assunto. Do que se extrai a considervel diferena iconogrfica entre a pintura modernista de uma e outra tradio.

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politizao artstica dos anos 30 e a futura esquerdizao da prpria artista; (6) o ideal abstrato de modernidade se preenchia de uma percepo aguda do conflito atraso/moderno encarnado nas dualidades locais, o que de algum modo introduzia elementos crticos e inesperados ao mito da expanso universal do "esprito novo" 35 . Ao invs do matavirgismo, a conjuno tarsiliana rene primitivismo e modernidade como um fato de sua experincia pessoal, um fato da vida em suma; uma conjuno que prima por ser menos dualista e mais real, registrando os desajustes brasileiros, em que tradio se combina a modernizao, atraso social a progresso tcnico, pintura moderna a mundo colonial, favorecendo, sobre esses desajustes, a inscrio da vida brasileira na contemporaneidade. Tarsila vivera em Paris uma experincia muito mais moderna e complexa do que fora capaz de imaginar o despeitado matavirgismo de Mrio. A soluo desta pintura logo mais pau-brasil desmentiria qualquer acusao de mimetismo servil, deixando vista o estmulo do influxo das vanguardas, inclusive para a investigao de sua realidade imediata e nacional o que estava longe de desaguar no campo do nacionalismo. Tarsila dera o passo decisivo para a incorporao brasileira da vanguarda, sendo capaz de aprofundar sua impregnao local. Atraso e modernidade se combinavam num assemblage inesperado, no qual a diferena brasileira era reconhecida sem que implicasse porm qualquer pecha ao cosmopolitismo daqueles que zanzam por Paris. A negra era a primeira obra do Modernismo brasileiro que, tratando os contrastes da vida local do ponto de vista de um primitivo-construtivismo, dava-lhes feio positiva e celebrativa, de enorme consequncia enfim para a auto-estima do movimento 36 . Aps A negra, a possibilidade de uma pintura moderna no Brasil no era algo quimrico, uma vez que sua preocupao nacional no se materializa s no assunto, mas "abrange mesmo os seus gestos europeus" nas belas e posteriores palavras de Mrio37. Pelo que sabemos do que vivia e fazia naqueles dias luminosos de Paris, no dficil imaginarmos, pois, a felicidade espalhafatosa de nosso Autor com a soluo artstica do quadro, misturada ainda por cima com o fato de a autora do feito ser nada mais nada menos sua namorada! Tanto se lambeu por ele que naturalmente na sua imaginao emptico-pardica logo logo algum equivalente literrio brotaria! Oswald estava maduro para essa germinao, haja vista a nova verso das Memrias sentimentais, h pouco terminada ou ainda nos derradeiros retoques, verso que particulariza o conflito entre o abusado avantgardisme do narrador e sua matria brasileira, o mesmo conflito figurado em chave primitivista por Tarsila. Nesse livro, seu desfecho sobrevinha num clima de melancolia e fracasso burgueses, a despeito da posio bem-posta de Joozinho, no muito distante do pessimismo do romance machadiano. Oprimido pela baixaria da burguesia paulista e sua prpria, o narrador miramarino demarcava o limite de qualquer modernismo em sua terra, expondo objetivamente a roda das sinecuras de que era feito "o quadro vivo de nossa mquina social" (esta uma das razes por que esse livro uma das obra-primas da literatura brasileira). Atravs de lentes devidamente ajustadas, graas ao foco internacional e exterior de seu primitivismo parisiense, A negra realava a dualidade brasileira, aguando por assim dizer seu alcance artstico: perfeitamente integrados ao contexto da modernidade, os desajustes locais podiam ser escancarados. Voltando a Oswald, primitivista outrance, que surto medonho de associaes novas e fascinantes no lhe teria ocorrido em frente do quadro? primeira vista, a impresso que a tela provoca se prende ao contraste entre a feira da negra e a aparncia chique da composio. Tarsila se apoiou nesse conflito porque nele se atualiza a alternncia entre mito, de ressonncia local forte, e affiche, representao apelativa e comercial. O elemento feira to caro ao experimentalismo dos modernos o "belo horrvel" do piadismo de Mrio j no empostado como provocao; a feira est envolta numa aura de enternecida simpatia e gravidade que concorre para a significao paternalista e nacional do conjunto. O acabamento

(33) Zilio com razo coloca a pintura modernista no Brasil sob o signo do "retorno ordem", demonstrando que a definio mais conservadora da imagem nessa fase de refluxo do experimentalismo ia ao encontro da desinformao esttica dos brasileiros, ainda mal sados do Impressionismo (op. cit., especialmente passagem p. 73). (34) Esto retomados em patamar antinaturalista e geomtrico isto quer dizer irreconhecveis alguns temas bastante comuns da tradio romntica, a mais acadmica, qual Tarsila em algum sentido d continuidade, voltando-se para paisagem, tipos humanos e costumes populares. Todavia a pintura tarsiliana tambm remonta involuntariamente ao microcosmo rococ, naif e desafetado de um artista perdido no sculo XVIII o Leandro Joaquim (175?-1796) das telas Vista do aquaduto de Santa Teresa, Procisso martima, Vista de igreja e da praia da Glria, Pesca da baleia na Baa de Guanabara que, nas palavras de Jos Roberto Teixeira Leite, so das "mais belas obras de toda a arte colonial brasileira". Tratam-se de painis ovais que sublinham, com alguma ingenuidade talvez, o contraste entre a disciplina superficialmente hierrquica da composio e o gosto materialista pela observao da matria representada nada enftica, sem efuso romntica mas com muita simpatia popular. Ou como bem diz Amandio Miguel dos Santos: "O esprito barroco-rococ est presente em sua obra, na organizao dos grupos de figuras, nas atitudes e na composio geral, mas Leandro Joaquim transgride este modo de ver, denotando sempre uma dualidade entre a natureza e o artifcio, entre a fico e a documentao, entre o instantneo e o cenogrfico" ("Os painis elpticos de Leandro Joaquim na pintura do Rio de Janeiro setecentista". Gvea. Rio de Janeiro: Vol. 1, n 1, 1994, pp. 1323). A celebrao da matria secular, extremamente rara na pintura brasileira da poca, se concentra nos elementos de uma cena colonial, agradvel de ser vista, atenuada e pitoresca, representativa quem sabe de uma Ilustrao nativa. A o grafismo precioso se funde a uma ordenao rigorosa do espao e da topografia, descobrindo no corao do meio e da natureza uma espcie de positividade idlica que por sua vez se desvencilhou das convenes do Classicismo. Com a preciso de um aquarelista em viagem, Leandro Joaquim imprimiu uma dimenso menos oficial representao comemorativa e, ba-

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de cartaz publicitrio puxa o negrismo para o mundo contemporneo, no qual adquiriu circulao fcil, moda e, por isso, pode incorporar a fatura art dco no efeito de relevo e no sensualismo de retas que se arredondam criando iluso de volume meio que aerodinmico em direo contrria quela da pintura arcaizante e extica, quase banal, de Rgo Monteiro. Se a execuo demandou profunda vibrao subjetiva, cujo teor psicanaltico de desrepresso notrio, conforme o relato da prpria artista, sua "volta para dentro de si" interessa bem mais pelas significaes inesperadas que desencadeia do que pela estrita carga psicolgica dela. Interessa mais, digamos, pela implicao de barateamento, de mercadoria de exportao, contida nessa representao 38 . Oswald notou que, da oscilao entre primitivismo e modernidade, tradio e mercadoria, me preta e contraste de formas, mito e affiche, poderia tirar uma "poesia de exportao" aparentemente liberta dos constrangimentos do nacionalismo anterior. Enquadrado pelo contexto do mercado mundial, o elemento de afirmao nacional ou localista muda automaticamente de sinal. Primitivismo e modernidade se encontram sob o horizonte de uma pintora brasileira que insiste na marca nacional de sua arte, afirmando-a no tratamento requintado de sua composio achado magnfico que emancipava o tradicionalismo brasileiro de qualquer rano acadmico, naturalista ou nacionalista, para compatibiliz-lo com a vanguarda. Na tela tarsiliana, o desentrosamento entre a originalidade da forma e o localismo de sua matria no s possua pertinncia nacional como devassava um mbito de autenticidade geral para que as combinaes mais entranhadas na vida brasileira, de moderno e primitividade, viessem explosivamente tona. Se a cultura dominante no Brasil se vangloriava de uma europeizao forada e postia, ainda que remoesse em autoexames peridicos o teor de esprio que lhe era inerente, o populismo elitista de Tarsila toma as disparidades locais como fato natural e autntico, um exotismo constitutivo e interno, a partir do qual o acesso criao moderna estava logo ali. A esttica do assemblage pictural, muito embora emprestada do "retorno ordem" e de Lger, legitima com a maliciosa chancela parisiense as dissonncias brasileiras; nessa conjuno o modernismo no parece factcio e o localismo, por sua vez, se desprovincianiza, tomando ares cosmopolitas (pregando uma pea, imaginem s, naqueles desprendidos espritos paulistanos que achavam que avanados eram o Futurismo e o progresso de So Paulo). Resta sublinhar o que existia de simptico e luminoso na mescla de realismo e poesia vitria daqueles que estavam na ponta mais parisiense da sociedade brasileira, para os quais o atraso no era estorvo, visto que gozavam numa boa a vida e as dissonncias locais eram tambm matria de deleite. Um primitivismo de superfcie, quase natural, baseado na imediatez dos fatos locais, nada nostlgico e purista, dedicado compreenso do intrincamento das relaes entre o Outro e o Mesmo, s que no caso aquele faz parte do mundo ps-colonial e da casa patriarcal, e este parisiense e ltima moda. Um modernismo complexo, em suma. A negra atendia como vimos a dois requisitos: (a) dialogava com as tendncias atuais da vanguarda europia e definia um ponto de vista brasileiro a partir desse dilogo; (b) aventava uma inverso positivadora ou um desrecalque localista, pelo qual as dissonncias nacionais e as tradies populares passavam a ter chance ou visibilidade, integradas modernidade que no s as promovia como as reconhecia artisticamente. Tarsila transfigurava desse modo o mundinho brasileiro custa de uma aproximao sentimental matria fornecida por ele, no escondendo que as figurinhas nacionais de ufania e de pitoresco eram humorsticos artigos de exportao. Persuadido pelo quadro de sua noiva, Oswald se certificou de que o modernismo no Brasil teria mesmo de se nutrir do conflito entre forma nova e matria tradicional, operando uma exposio (agora ele quem acrescenta) despudorada e caricatural do funcionamento desse desacordo. Se borbulhante Oswald j andaria com o primitivismo da namorada, qual no teria sido o desconcerto com a carta-provocao do amigo e rival. RealmenteJULHO DE 1996 113

nhando-a em luminosidade, apurou a figurao ingnua e afetiva da confuso local, fortemente lrica, entre civilizao e natureza que, a meu modo de ver, reaparecer um sculo e meio mais tarde na pintura pau-brasil. A transfigurao festiva do diminudo da vida brasileira aproxima essas obras da pintura tarsiliana, a qual ainda compartilha a peculiar organicidade (colonial?) desse mundo de brincadeira povoado de figurinhas. (35) To mais purista, to mais universalista seria a pintura moderna no programa de Ozenfant-Jeanneret, devendo para tanto adotar a descaracterizao de assunto e de traos locais: "A pintura e a escultura, at ento mais ou menos imitativas e por conseguinte sugestivas, sempre se apoiaram demais na multiplicidade de associaes de idias provocadas pelo assunto das obras, as quais so menos fixas que as sensaes diretas provocadas pelas cores e pelas formas; o assunto de um quadro tem algo de forosamente individual e nacional a ponto de embaraar e criar exotismo do tipo, o qual, para ter seu encanto, diminui certamente o nvel da obra provocando associaes localistas e circunstanciais etc." (Ozenfant & Jeanneret. La peinture moderne. Paris: Les ditions G. Crs & Cie., s.d. (1925? J, p. 164). (36) Anita Malfatti por volta de 1916-17 sob presso da campanha nacionalista de Lobato (antes do ataque de "Parania ou mistificao?") j pintara quadros de assunto nacionalista como Tropical que certamente Tarsila conhecia (Batista, Marta Rossetti. Anita Malfatti no tempo e no espao. So Paulo: IBM, 1985, pp. 6l-4). At onde pude notar, neles o expressionismo da artista se "acanhava" diante da matria brasileira, incapaz de formular os conflitos locais do ponto de vista modernista, inclusive moderando a dissonncia da cor para ressaltar a suavidade do conjunto, dando lugar assim a uma figurao enftica, s vezes quase anedtica, emprestada do academismo dominante. A temtica nacionalista amortecia a composio mais vigorosa de seus leos executados na Amrica do Norte, deixando mostra certa irresoluo no tratamento livre e moderno dos elementos do quadro, em especial, os da realidade local. Noutras palavras: essas obras tmidas atestam que o nacionalismo convencional recalcava o modernismo da fatura e impedia a sinergia entre modernismo e atraso.

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passava da conta, a essa altura, receber lio de primitivismo de um provinciano dos mais metidos que, alm de nunca ter ousado botar o p em Paris, tinha o topete de vir cutuc-lo em pleno corao da capital de todos os primitivismos. Mandando de volta a Paris um primitivismo que se confundia com o nacionalismo ento vigente, Mrio conseguia levar as hostes parisienses do Futurismo paulista ao pnico. E agora, se Mrio se arvorasse a chefe-de-fila de um primitivismo tosco do tipo? Aps todo o custo da desprovincianizao vivida pelo casal, na temporada de 1923, era muito para a cabea dos dois receber da liderana paulistana do movimento manifestao to ambgua de desconfiana anticosmopolita e ojeriza contra o vanguardismo. Na sua bazfia, Mrio convertia primitivismo em revanche provinciana, desacreditando como vimos a validez da modernidade artstica para aquelas plagas e a? Inquietante tambm era o teor de enigma da mata virgem e ento se Oswald tivesse de aderir, agora como epgono graduado em Paris? Claro que cabia a Oswald a rplica certeira antes que o outro se coroasse de mata virgem. A resposta deveria estar (suponho) na ponta da lngua: a questo obviamente no estava na volta para dentro de si ou na parisianizao substanciosa (opes que ficam sugeridas no puxo-de-orelha de Mrio), mas, ao contrrio, em admitir a imitao vanguardista e a parisianizao epidrmica como momentos de verdade de uma relao brasileira com a contemporaneidade, no s expondo as dualidades constitutivas da vida brasileira como sublinhando o papel avanado de sua elite mais atirada, a qual seria capaz de enxerg-las com destemor 39 . Ou talvez fosse o caso retrucar maneira borgiana muito posterior40: a m assimilao do modernismo internacional tem interesse e muito, pois testemunha a sofreguido das elites, ansiosas de se apropriarem das novidades europias, qualquer uma que lhes casse nas mos, com o propsito de recalcar seu prprio provincianismo e cancelar, se possvel, sua inscrio local (uma fixao brasileira, como o prprio Mrio sabia). Respondendo ainda, Oswald completaria: o fato de a assimilao da influncia estrangeira ser ajuizada e consistente no modificaria a natureza do atraso cultural das elites brasileiras e o carter universal da modernidade, cuja atrao devastadora no ficaria por isso desviada; o que preciso discernir nos mecanismos da imitao e da cpia os interesses em pauta, os investimentos e as projees imaginrias, tratando-os to-somente como matria literria, com humor e generosidade. M assimilao e facilidade no consumo indiscriminado da cultura estrangeira so traos de uma cultura tenuemente nacional que vivia pelo menos h um sculo de gneros, estilos e obras trazidos dos centros culturais do planeta pela cotao que gozam no mercado e na moda. Dada a situao privilegiada de seu posto parisiense de observao, nosso homem no umbigo do mundo aprendeu a discernir na fascinao pelo moderno o elemento de provincianismo e atraso, ao mesmo tempo a considerar desmistificadamente a inevitabilidade da incorporao do moderno, imprescindvel para aumentar o conhecimento efetivo sobre o pas e seu povo. Idem se instruiu no quanto era parisiense o anseio de autenticidade, de buscar a fora do primitivo e do extico, o qual adquiria uma funcionalidade inteiramente outra na realidade brasileira, correspondendo ao amor-prprio nacionalista. Temos de lembrar que Oswald, atrs de si, tinha cem anos de nacionalismo literrio, to mais nacionalista quanto subalterno s correntes europias que, enxertadas na literatura brasileira, encarnavam anseios de autonomia e nativismo. Prevalecia no Brasil daqueles anos o regime artificial em que a hegemonia cultural europia se explicava pela falta de tradio local e a falta de tradio, para ser vencida, solicitava a hegemonia europia, no consentindo que a experincia brasileira se constitusse em problema intelectual e esttico41. Se forma literria e sociabilidade corriam desencontradas e a aparente incompatibilidade estrutural entre elas abortava o estabelecimento das conexes entre uma e outra, nada impedia que o escritor modernista tirasse partido desse desentendimento o que, nas devidas propores, tem correlao com a devassa do gosto e hbitos burgueses promovida pela vanguarda histrica nesse momento. Em lugar de

(37) Andrade, M. "Osvaldo de Andrade". In: Brasil: 1 tempo modernista, op. cit., p. 224. (38) A vulgarizao da Arte Negra, de vento em popa nesses anos, irritava sobremaneira qualquer vanguardista interessado na experimentao de 1909-1914. Veja-se sob esse aspecto o artigo de Vicente Huidobro, "El Arte Negro", publicado originalmente em Vientos contrarios (1926) e transcrito em El oxgeno invisible. Antologia arbitraria de Diego Maquieira (Santiago: Fundacin Vicente Huidobro, 1991, pp. 31-2). (39) No tardar para que, mandando s favas a afetao matavirgista, Mrio se renda a evidncia de que a vanguarda, mais do que contribuir para a atualizao cultural do pas, poderia aprofundar a prpria conscincia nacional, tanto que, no artigo sobre Blaise, em maro de 1924, diz: "Ele [Blaise] me libertou da incompreenso do passado, pelo qual eu no vivia na terra do meu pas e do meu tempo. Eu existia sem viver". ("Blaise Cendrars". Revista do Brasil (So Paulo, n 99, maro de 1924), transcrita em Eullio, A. A aventura brasileira..., op. cit., p. 159.) (40) Passada a onda modernista, Jorge Luis Borges enfrentar o mesmo ponto sem refugir porm apologia do universalismo do arqutipo literrio. Questionando a tacanhez nacionalista argentina em conferncia famosa, "El escritor argentino y Ia tradicin", de 1951, ele afirma com seu gosto pelo paradoxo o quanto o cosmopolitismo pode ser expressivo de uma experincia localista, assim como as manifestaes localistas podem reproduzir configuraes atemporais do mito, do sonho e do desejo. Nessa fase de sua obra, a comdia literria borgiana reduz a criao a uma sucesso de artifcios que no foram condiciona