dano eco logico

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A RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO ECOLÓGICO Reflexões preliminares sobre o novo regime instituído pelo DL 147/2008, de 29 de Julho * 0. Introdução; 1. A difícil autonomização do "dano ecológico" no quadro normativo anterior ao DL 147/2008, de 29 de Julho; 2. O regime de responsabilidade por dano ecológico plasmado no DL 147/2008, de 29 de Julho: descrição sumária; 2.1. Os objectivos da directiva 2004/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril; 2.2. Os reflexos da directiva no DL 147/2008, de 29 de Julho; 2.2.1. O alargamento do âmbito objectivo de aplicação; 2.2.2. O alargamento do âmbito subjectivo de aplicação; 2.2.3. As exclusões; 2.2.4. A noção ampla de responsabilidade e as modalidades de prevenção/reparação do dano ecológico; 2.2.5. A legitimidade alargada para requerer a prevenção/reparação de danos ecológicos; 2.2.6. A exclusão da obrigação de pagamento dos custos de prevenção/reparação; em especial, a responsabilidade objectiva; 2.2.7. A obrigatoriedade de constituição de garantias financeiras; 3. O regime de responsabilidade por dano ecológico plasmado no DL 147/2008, de 29 de Julho: abordagem crítica; 3.1. O equívoco da "responsabilidade administrativa"; 3.2. A deficiente previsão dos casos de actuação directa para prevenção e reparação de danos ecológicos; 3.3. A ausência de presunções de causalidade e de uma norma sobre inversão do ónus da prova; 3.4. A fraude ao Direito Comunitário na norma sobre aplicação no tempo; 4. Balanço preliminar dos impactos do DL 147/2008, de 29 de Julho 0. Na sua obra "Tous les hommes sont mortels", Simone de Beauvoir confronta o leitor com o insustentável peso da vida eterna. O instituto da responsabilidade por dano ecológico evoca dilema semelhante. Ao cabo e ao resto, o que se pretende é ressarcir a geração presente pela degradação do estado de um determinado componente ambiental e proporcionar à geração futura idêntico grau de fruição, repondo, sempre que possível, o estado anterior à ocorrência do facto lesivo. Se o Homem vivesse para sempre, e assumida a obrigação primacial de prevenção, a responsabilidade civil por dano ecológico seria certamente reconhecida e praticada como um instrumento fundamental da salvaguarda das condições de sobrevivência na Terra. Mas a mortalidade condena-o à finitude, reduzindo-lhe a perspectiva * Este artigo serviu de suporte à intervenção da autora nas Jornadas de Direito do Ambiente que tiveram lugar na Faculdade de Direito de Lisboa, no dia 15 de Outubro de 2008, subordinadas ao tema O que há de novo no Direito do Ambiente?, patrocinadas pelo Instituto de Ciências Jurídico-Políticas. Como já vai sendo hábito nos meus escritos dedicados à temática ambiental, devo expressar o meu profundo agradecimento ao Dr. Tiago Antunes pela leitura atenta e (muito) crítica que teceu a uma primeira versão deste texto. Os erros e omissões são da minha inteira responsabilidade.

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Dano Eco Logico

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  • A RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO ECOLGICOReflexes preliminares sobre o novo regime

    institudo pelo DL 147/2008, de 29 de Julho*

    0. Introduo; 1. A difcil autonomizao do "dano ecolgico" no quadro normativo anterior ao DL 147/2008, de 29 de Julho; 2. O regime de responsabilidade por dano ecolgico plasmado no DL 147/2008, de 29 de Julho: descrio sumria; 2.1. Os objectivos da directiva 2004/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril; 2.2. Os reflexos da directiva no DL 147/2008, de 29 de Julho; 2.2.1. O alargamento do mbito objectivo de aplicao; 2.2.2. O alargamento do mbito subjectivo de aplicao; 2.2.3. As excluses; 2.2.4. A noo ampla de responsabilidade e as modalidades de preveno/reparao do dano ecolgico; 2.2.5. A legitimidade alargada para requerer a preveno/reparao de danos ecolgicos; 2.2.6. A excluso da obrigao de pagamento dos custos de preveno/reparao; em especial, a responsabilidade objectiva; 2.2.7. A obrigatoriedade de constituio de garantias financeiras; 3. O regime de responsabilidade por dano ecolgico plasmado no DL 147/2008, de 29 de Julho: abordagem crtica; 3.1. O equvoco da "responsabilidade administrativa"; 3.2. A deficiente previso dos casos de actuao directa para preveno e reparao de danos ecolgicos; 3.3. A ausncia de presunes de causalidade e de uma norma sobre inverso do nus da prova; 3.4. A fraude ao Direito Comunitrio na norma sobre aplicao no tempo; 4. Balano preliminar dos impactos do DL 147/2008, de 29 de Julho

    0. Na sua obra "Tous les hommes sont mortels", Simone de Beauvoir confronta o leitor com o insustentvel peso da vida eterna. O instituto da

    responsabilidade por dano ecolgico evoca dilema semelhante. Ao cabo e ao

    resto, o que se pretende ressarcir a gerao presente pela degradao do

    estado de um determinado componente ambiental e proporcionar gerao

    futura idntico grau de fruio, repondo, sempre que possvel, o estado

    anterior ocorrncia do facto lesivo. Se o Homem vivesse para sempre, e

    assumida a obrigao primacial de preveno, a responsabilidade civil por

    dano ecolgico seria certamente reconhecida e praticada como um

    instrumento fundamental da salvaguarda das condies de sobrevivncia na

    Terra. Mas a mortalidade condena-o finitude, reduzindo-lhe a perspectiva

    * Este artigo serviu de suporte interveno da autora nas Jornadas de Direito do Ambiente que tiveram lugar na Faculdade de Direito de Lisboa, no dia 15 de Outubro de 2008, subordinadas ao tema O que h de novo no Direito do Ambiente?, patrocinadas pelo Instituto de Cincias Jurdico-Polticas.

    Como j vai sendo hbito nos meus escritos dedicados temtica ambiental, devo expressar o meu profundo agradecimento ao Dr. Tiago Antunes pela leitura atenta e (muito) crtica que teceu a uma primeira verso deste texto. Os erros e omisses so da minha inteira responsabilidade.

  • com que encara o dano ambiental, sacrificando a integridade dos recursos

    ecolgicos ao conforto ou ao lucro1.

    A noo de dano ecolgico o dano causado integridade de um bem

    ambiental natural no se imps imediatamente aps a "descoberta" do

    Direito do Ambiente. A vocao primacialmente preventiva deste ramo do

    Direito justifica, de alguma maneira, este alheamento. Mas a razo

    axiolgica principal da resistncia noo de dano ecolgico, prende-se,

    julgamos, com a lgica predominantemente antropocntrica que emergiu da

    Conferncia do Rio, onde se declarou os seres humanos como "centro" das

    preocupaes ambientais (princpio 1). Apesar de, na linha da Declarao de

    Estocolmo (1972) e do direito internacional geral , a Declarao do Rio

    ter consagrado o princpio da responsabilizao (princpio 2), afirmando a

    responsabilizao por danos transfronteirios como contrapeso do

    reconhecimento, a cada Estado, do direito soberano de explorar recursos

    naturais sitos em territrio estadual, o Direito Internacional do Ambiente

    furtou-se a dar soluo aos casos de agresso a bens ambientais em zonas

    alheias jurisdio estadual sem consequncias para a populao ou

    propriedade de qualquer Estado (nomeadamente, atravs do

    reconhecimento de um mecanismo de actio popularis junto dos tribunais

    internacionais, maxime do Tribunal Internacional de Justia com vista

    denncia de tais situaes)2.

    A esta objeco de fundo juntam-se dificuldades prticas de peso, como a

    dilao temporal entre facto e dano ecolgico, o fenmeno da poluio

    difusa, a convergncia de causas, naturais e humanas, para a produo do

    dano ou para o seu agravamento. Bem como a determinao de critrios de

    avaliao do dano e a destinao de eventuais quantias pecunirias

    impostas ao lesante, sempre que o bem no possa ser ressarcido in natura.

    No surpreende, por isso, a deciso proferida no caso Amoco-Cadiz, em

    1988, por um tribunal americano, na qual se desestimou todos os pedidos

    de ressarcimento de danos ecolgicos provocados na costa francesa pela

    1 Segundo Willy De Backer, Director para a Europa da Global Footprint Network, a "pegada ecolgica" dos portugueses , em mdia, de 5,2 hectares, para uma capacidade de regenerao de 1,8 hectares/ano... Fonte: Revista Viso, n 805, de 7 de Agosto de 2008, p. 18.

    2 Sobre esta questo, fulcral no Direito Internacional do Ambiente, maxime nos casos de responsabilidade ambiental, reflectimos mais demoradamente nos nossos Apontamentos sobre a jurisprudncia ambiental internacional, in Elementos de apoio disciplina de Direito Internacional do Ambiente, Lisboa, 2008, pp. 367 segs.

    2

  • mar negra cujos efeitos se prolongaram por um ano3 mas, em

    contrapartida, aplaude-se a deciso da justia francesa no caso Erika

    (2008), que adoptou uma perspectiva clara no tocante ao dano ecolgico,

    atribuindo vultuosas quantias indemnizatrias aos Municpios mais

    afectados4.

    To pouco de estranhar o facto de a Comisso de Direito Internacional

    das Naes Unidas ter trabalhado durante 50 anos num Projecto de

    Conveno sobre a Responsabilidade Internacional dos Estados (j

    apresentado Assembleia Geral em 2001 e presentemente em discusso),

    que no contm normas especficas sobre responsabilidade por danos

    ecolgicos5. Finalmente, a delicadeza da questo impede o consenso

    necessrio ratificao da Conveno de Lugano (1993), sobre

    responsabilidade civil por actividades perigosas para o ambiente, adoptada

    no seio do Conselho da Europa muito provavelmente devido

    consagrao de um regime de responsabilidade civil ilimitada, repudiado

    pelos operadores econmicos.

    O instituto da responsabilidade por danos ecolgicos, em virtude do seu

    objecto, confrontado com desafios estimulantes (e dilacerantes), quer no

    plano internacional, perante problemas como a alocao de "refugiados

    ecolgicos" (por fora do degelo induzido pelo aquecimento global), ou como

    a hiptese de compensao por renncia explorao de uma vasta jazida

    petrolfera em favor da conservao de uma reserva mundial de

    biodiversidade6; quer no plano nacional, enfrentando questes como a prova

    do dano (presunes de causalidade) e os critrios do seu cmputo7. Tendo

    3 O tribunal invocou a complexidade de aferio dos danos, bem como o facto de muitos danos se verificarem em zonas fora da jurisdio estadual, em bens ambientais com o estatuto de res nullius cfr. Alexandre KISS e Jean-Pierre BEURIER, Droit International de l'Environnement, 3 ed., Paris, 2004, p. 433.

    4 Cfr. Agathe VON LANG, Affaire de l'Erika: la conscration du prjudice cologique par le juge judiciaire, in AJDA, 2008/17, pp. 936 segs.

    5 Cfr. Malgosia FITZMAURICE, International responsibility and liability, in Oxford Handbook of International Environmental Law, coord. Daniel Bodansky, Jutta Brunn e Ellen Hey, Chippenham, 2007, pp. 1010 segs, 1016 segs.

    6 Cfr. a notcia "Para salvar o planeta: comprem ar, no petrleo!", no Courrier Internacional n 133, de 19 de Outubro de 2007, p. 22: tratou-se de uma iniciativa do Presidente do Equador, que a 24 de Setembro de 2007 apresentou, na Assembleia Geral da ONU, uma proposta no sentido de abdicar de explorar uma jazida petrolfera que "renderia" cerca de 900 milhes de barris/ano devido sua localizao numa zona (Yasuni) classificada como Reserva da Biosfera pela UNESCO em 1989.

    7 Sobre estes aspectos, veja-se Ana PERESTRELO DE OLIVEIRA, Causalidade e imputao na responsabilidade civil ambiental, Coimbra, 2006, passim.

    3

  • em considerao as dificuldades e reticncias conotadas com o instituto, o

    papel da preveno avulta. Mas, infelizmente, haver sempre lugar para a

    responsabilidade, no que respeita a todos os danos ecolgicos significativos

    que, consciente ou inconscientemente, o Homem irremediavelmente provoca

    no meio natural, porque este constitui o seu suporte vivencial.

    As instituies da Comunidade Europeia, levando a srio a prossecuo

    da poltica ambiental comunitria, tomaram a dianteira do processo de

    elaborao de um quadro normativo de regulao da preveno e reparao

    do dano ecolgico atravs da Directiva 2004/35/CE, do Parlamento

    Europeu e do Conselho, de 21 de Abril. Esta directiva, cujo prazo de

    transposio expirou em Abril de 2007, foi agora transposta atravs do DL

    147/2008, de 29 de Julho8.

    1. A difcil autonomizao do "dano ecolgico" no quadro normativo anterior ao DL 147/2008, de 29 de Julho

    Em bom rigor, deve comear por dizer-se que o nosso ordenamento jurdico

    no autonomizava, at ao recentssimo surgimento do DL 147/2008, de 29

    de Julho, o dano ecolgico do dano ambiental. Esta falha , de resto,

    expressamente assumida pelo legislador, no Prembulo do diploma:

    "Durante muitos anos a problemtica da responsabilidade ambiental foi considerada na perspectiva do dano causado s pessoas e s coisas. O problema central consistia na reparao dos danos subsequentes s perturbaes ambientais ou seja, dos danos sofridos por determinada pessoa nos seus bens jurdicos da personalidade ou nos seus bens patrimoniais como consequncia da contaminao do ambiente.

    Com o tempo, todavia, a progressiva consolidao do Estado de direito ambiental determinou a autonomizao de um novo conceito de danos causados natureza em si, ao patrimnio natural e aos fundamentos naturais da vida. (...) Assim, existe dano ecolgico quando um bem jurdico ecolgico perturbado, ou quando um determinado estado-dever de um componente do ambiente alterado negativamente".

    A lacuna era fruto de um concurso de equvocos. Por um lado, a

    Constituio no distingue claramente as duas realidades no artigo 52/39;

    8 Sobre a transposio da directiva: na Alemanha, Eckard REHBINDER, Implementation of the environmental liability directive in Germany, in Direito e Ambiente, n 1, 2008, pp. 109 segs; em Itlia, Franco GIAMPIETRO, La disciplina sostanziale e processuale del danno ambientale, in Direito e Ambiente, n 1, 2008, pp. 135 segs;

    9 Como demonstrmos no nosso Constituio e Ambiente: errncia e simbolismo, in Textos dispersos de Direito do Ambiente (e matrias relacionadas), II, Lisboa, 2008, pp. 21 segs, 35-36.

    4

  • por outro lado, a Lei de Bases do Ambiente (Lei 11/87, de 7 de Abril =LBA)

    revela uma perspectiva individualista ou grupal do dano ambiental (artigo

    40/4 e 5)10; finalmente, a Lei 83/95, de 31 de Agosto (Lei da participao

    procedimental e da aco popular = LAP) ignora a diferena radical entre

    interesses individuais homogneos e interesses de fruio de bens

    colectivos, reduzindo o regime de indemnizao aos primeiros (cfr. o artigo

    22/2)11. A inaco do legislador no sentido da correco destas

    insuficincias tornou-se especialmente indesculpvel aps o esforo

    doutrinal de CUNHAL SENDIM, que dedicou a sua dissertao de mestrado

    ao problema da reparao do dano ecolgico12.

    A no identificao clara do dano ecolgico redundava em que este s

    poderia ser atalhado caso resultasse de uma aco lesiva de interesses

    individuais, cujo titular movesse uma aco inibitria contra o lesante, a

    qual pusesse fim produo da emisso prejudicial para pessoas e bens naturais. Sublinhe-se, contudo, que o dano a ressarcir seria sempre e

    apenas o individual, no o colectivo. A tutela era meramente reflexa e s

    pontualmente visaria a reconstituio do statu quo ante, ou similar, ou

    mesmo a fixao de medidas compensatrias.

    Claro que, em coerncia com o objectivo constitucional de tutela

    ambiental, podia defender-se que, apesar da equivocidade das normas do

    ordenamento jusambiental, a autores populares (e ao Ministrio Pblico) era

    admissvel a propositura de aces inibitrias, precedidas de providncias

    cautelares, bem como a deduo de pedidos indemnizatrios por danos

    ecolgicos contra os lesantes os quais se traduziriam, preferencialmente,

    na reconstituio da situao anterior ocorrncia do dano (artigo 48/1 da

    LBA)13. No sendo esta possvel, avanar-se-ia ento para a fixao da

    indemnizao pecuniria (artigo 48/3 da LBA); mas com base em que

    10 Revelando idntica preocupao, embora tomando como ponto de partida o artigo 41 da LBA, Pedro SILVA LOPES, Dano ambiental: responsabilidade civil e reparao sem responsvel, in RJUA, n 8, 1997, pp. 31 segs, 50 segs.

    11 Cfr. o nosso O Provedor de Justia e a tutela de interesses difusos, in Textos dispersos de Direito do Ambiente (e matrias relacionadas), II, Lisboa, 2008, pp. 235 segs, 248 segs.

    12 Jos CUNHAL SENDIM, Responsabilidade civil por danos ecolgicos, Coimbra, 1998, esp. pp. 130 segs.

    13 Deciso exemplar em sede de reparao por equivalente continua a ser a proferida no Caso das cegonhas brancas sentena do Tribunal Judicial de Coruche, de 23 de Fevereiro de 1990, proc. 278/89. Por iniciativa do Ministrio Pblico, uma proprietria rural foi condenada a levantar estacas a fim de substituir as rvores que ilicitamente abateu e que serviam de poiso e local de nidificao de cegonhas brancas.

    5

  • critrios (perda de utilidades para o Homem ou reduo de equilbrio do

    ecossistema? cmputo dos interesses das geraes presentes e/ou tambm

    das futuras? considerao de equivalncia quanto a recursos no

    regenerveis ou afirmao da sua infungibilidade?)? E a favor de quem?

    Estas interrogaes ficavam sem resposta.

    Com a entrada em vigor do DL 147/2008, afirma-se a diferena entre

    dano pessoal/patrimonial e dano ecolgico; clarifica-se a legitimidade para

    reclamar a sua reparao; fixa-se os critrios de avaliao do dano; indica-

    se as formas da sua reparao. Vejamos em que termos.

    2. O regime de responsabilidade por dano ecolgico plasmado no DL 147/2008, de 29 de Julho: descrio sumria

    Antes de entrar na descrio do regime incorporado no DL 147/2008, de 29

    de Julho (=RPRDE), convm passar em revista, ainda que de forma sinttica,

    o contedo da directiva que constitui o seu "farol".

    2.1. Os objectivos visados pela directiva 2004/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril

    "Existem hoje na Comunidade muitos stios contaminados que suscitam riscos significativos para a sade, e a perda da biodiversidade acelerou-se acentuadamente durante as ltimas dcadas. A falta de aco poder resultar no acrscimo da contaminao e da perda da biodiversidade no futuro. Prevenir e reparar, tanto quanto possvel, os danos ambientais contribui para concretizar os objectivos e princpios da poltica de ambiente da Comunidade, previstos no Tratado. (...)

    A preveno e a reparao de danos ambientais devem ser efectuadas mediante a aplicao do princpio do poluidor-pagador, previsto no Tratado e em consonncia com o princpio do desenvolvimento sustentvel. O princpio fundamental da presente directiva deve portanto ser o da responsabilizao financeira do operador cuja actividade tenha causado danos ambientais ou a ameaa iminente de tais danos, a fim de induzir os operadores a tomarem medidas e a desenvolverem prticas de forma a reduzir os riscos de danos ambientais".

    desta forma que a directiva 2004/35/CE se apresenta comunidade

    jurdica14. Do seu texto, ressaltamos os seguintes objectivos:

    14 Sobre o regime da directiva, vejam-se: Lucas BERGKAMP, The proposed Environmental liability directive, in EELR, 2002/11, pp. 294 segs; Carole HERMON, La rparation du dommage cologique. Les perspectives ouvertes par la directive du 21 avril 2004, in AJDA, 2004/33, pp. 1792 segs; Eckard REHBINDER, Prevention and restitution of pure environmental damage: the EU directive on environmental liability, in Direito Ambiental visto por ns, Advogados,

    6

  • i) A directiva autonomiza o dano ecolgico e pretende-se como s aplicvel a este15. Por outras palavras, a reparao dos danos infligidos

    pessoa ou propriedade rege-se pelos princpios gerais da responsabilidade

    civil16;

    ii) A directiva responsabiliza directamente os operadores (das actividades listadas no Anexo III, quanto responsabilidade objectiva; todos, quanto

    responsabilidade subjectiva por leso de espcies e habitats protegidos),

    pblicos e privados, no mbito de actividade lucrativa e no lucrativa, pelos

    custos de preveno e reparao de danos ecolgicos comprovadamente

    causados pela sua actividade. Todavia, o Estado pode optar por suportar os

    custos quando no tenha havido culpa do operador ou quando, provada

    embora a culpa, o custo for excessivo;

    coord. de Mrio Werneck, Bruno Campos Silva, Henrique A. Mouro, Marcus Ferreira de Moraes, Walter Soares Oliveira, Belo Horizonte, 2005, pp. 395 segs; Barbara POZZO, La nuova direttiva 2004/35 del Parlamento europeo e del Consiglio sulla responsabilit ambientale in materia di prevenzione e riparazione del danno, in RGA, 2006/1, pp. 1 segs, bem assim como os textos recolhidos em duas publicaes dedicadas ao tema Revista Aranzadi de Derecho Ambiental, n monogrfico - Estudios sobre la Directiva 2004/35/CE de responsabilidad por daos ambientales y su incidencia en el ordenamiento espaol, Navarra, 2005, e La responsabilit ambientale. La nuova direttiva sulla responsabilit ambientale in materia di prevenzione e riparazione del danno ambientale, a cura di Barbara Pozo, Milo, 2005.

    Sobre a proposta de directiva, Branca MARTINS DA CRUZ, Que perspectivas para a responsabilidade civil por dano ecolgico? A proposta de directiva comunitria relativa responsabilidade ambiental, in Lusada, 2001/1-2, pp. 359 sedgs, 363 segs; Lucas BERGKAMP, The proposed environmental liability directive, in EELR, 2002/11, pp. 294 segs; bem assim como as comunicaes proferidas na Conferncia Internacional sobre responsabilidade ambiental promovida, em 2002, pelo British Council e pela Ecosphere, em colaborao com a Fundao Luso-Americana para o Desenvolvimento e com o Gabinete de Relaes Internacionais do Ministrio das Cidades, Ordenamento do Territrio e Ambiente, reunidas no n 10 da Revista de Direito do Ambiente e Ordenamento do Territrio, 2002.

    Para uma viso comparada dos sistemas de responsabilidade "ambiental", Luca GOMIS CATAL, Responsabilidad por daos al medio ambiente, Pamplona, 1998, pp. 29 segs.

    15 No texto da directiva existem, no entanto, referncias a danos para a sade humana, colaterais no artigo 7/3, 2, in fine, e no Anexo I, 2 e directos (no que tange ao solo: artigo 2/1/c) e Anexo II, 2.). Quanto aos primeiros, a sua verificao serve para sobrequalificar como significativos os danos ecolgicos, mas no dispensa a ecloso de uma leso num bem ambiental natural como fundamento de aplicao do regime da directiva. Relativamente aos segundos, foroso concluir no sentido do desequilbrio da soluo encontrada, uma vez que se descartou qualquer leso ecolgica nas qualidades do solo, filiando-se estes danos exclusivamente na afectao da sade humana.

    Para uma crtica da definio de dano ecolgico constante da directiva (alterao adversa mensurvel de um recurso natural ou a deteriorao mensurvel do servio de um recurso natural), Lucas BERGKAMP, The proposed..., cit., pp. 306-307.

    16 Cfr. o considerando 14 do Prembulo, e o artigo 3/3 da directiva.

    7

  • iii) A directiva circunscreve os danos ecolgicos aos danos causados s espcies e habitats protegidos no contexto da Rede Natura 2000, gua e

    ao solo, deixando aos Estados a possibilidade de alargar o mbito do dano

    ecolgico a outros componentes ambientais17;

    iv) A directiva ancora-se no princpio do poluidor-pagador (cfr. o artigo 174/2 do Tratado de Roma), e adere a um conceito amplo de

    responsabilidade, que prescinde da ocorrncia do dano. Com efeito, a

    directiva prev a possibilidade de imposio de medidas de reparao e de preveno, perante a ameaa de dano iminente a um dado bem natural18

    o que, em bom rigor, configura mais um duplo fundamento nos princpios

    da preveno e da responsabilizao, do que uma concretizao do princpio

    do poluidor-pagador (que atende ao mero desgaste dos bens ambientais por

    determinadas actividades e se corporiza, na sua expresso pura, em tributos

    pagos a ttulo de compensao desse desgaste e afectos recuperao e

    promoo do estado de tais bens);

    v) A directiva consagra um conjunto amplo de excluses, obrigatrias e facultativas. Antes de as indicar, convm precisar que o dano (ecolgico) tem

    que ser significativo, concreto, quantificvel19 e imputvel atravs do

    estabelecimento de um nexo de causalidade facto/dano20.

    Quanto s primeiras, e alm da delimitao resultante dos mbitos

    objectivo e subjectivo j mencionados, excluem-se:

    - danos na sequncia de actos de conflito armado;

    - danos provocados por fenmenos naturais de carcter imprevisvel21 e

    irresistvel;

    - danos cuja compensao esteja abrangida por instrumentos de Direito

    Internacional listados no Anexo IV22;

    - danos advenientes de acidentes nucleares;

    17 Cfr. os considerandos 4 e 6 do Prembulo, e o artigo 2/1 da directiva.18 Cfr. os artigos 5 e 6 da directiva.19 Cfr., em geral, o considerando 13 do Prembulo e artigo 2/1/a) da directiva. Em

    especial quanto s espcies e habitats, Anexo I, 3.20 Cfr. o artigo 4/5 da directiva.21 Anote-se esta exigncia, uma vez que, havendo relao entre um dfice de

    ponderao de risco relativamente a um evento natural ou omisso de medidas no sentido da minimizao dos seus efeitos (a devastao provocada pelo furaco Katrina, em 2006, constitui um exemplo paradigmtico: a fragilidade dos diques de Nova Orleans estava de h muito diagnosticada...), esta causa de excluso cede.

    22 Esta categoria de excluses bem mais significativa do que parece, uma vez que, como sublinha Carole HERMON (La rparation..., cit., p. 1798), a grande maioria das convenes no contempla a reparao do dano ecolgico qua tale.

    8

  • - danos causados por actividades de defesa nacional ou internacional,

    ou relacionadas com a proteco civil23;

    - danos provocados por terceiros, apesar das medidas de segurana

    serem suficientes e adequadas;

    - danos advenientes do cumprimento de uma ordem pelo operador,

    emanada das autoridades com competncia em sede de proteco do

    ambiente24;

    - danos ocorridos em data anterior a 30 de Abril de 200725;

    - danos ocorridos posteriormente a 30 de Abril de 2007 que derivem de

    uma actividade especfica j terminada nessa data26-27;

    - quaisquer danos relativamente aos quais, embora ocorridos

    posteriormente a 30 de Abril de 2007 e independentemente de a actividade

    que os provocou se manter, tenham decorrido mais de 30 anos desde o facto

    que concretamente lhes deu origem28.

    Quanto s segundas, permite-se que os Estados-membros excluam a

    responsabilidade do operador, total ou parcialmente o que no o mesmo

    que dizer que a reparao fica comprometida, pois nalguns casos as

    entidades pblicas competentes em sede de proteco do ambiente

    antecipar-se-o, e ainda que possam estabelecer prioridades de reparao

    , quando:

    - no tenha havido culpa do operador e a actividade foi validamente

    autorizada;

    - no tenha havido culpa do operador e os danos se filiam em riscos

    imprevisveis29;

    - o custo da adopo de medidas complementares "tomadas para atingir

    o estado inicial ou um nvel similar for desproporcionado em relao aos

    23 Estes cinco casos encontram-se descritos no artigo 4 da directiva.24 Estas duas hipteses esto contempladas no artigo 8/3/a) e b) da directiva.25 Cfr. o artigo 17, 1 travesso, da directiva.26 Cfr. o artigo 17, 2 travesso, da directiva. 27 Conforme nota Mariachiara ALBERTON (Dalla definizione di danno ambinetale

    alla costruzione di un sistema di responsabilit: riflessioni sui recenti sviluppi del diritto europeo, in RGA, 2006/5, pp. 605 segs, 611), o legislador comunitrio adoptou uma postura de responsabilidade ecolgica no retroactiva, excluindo a sua aplicao aos casos de "contaminaes antigas" (Altlasten) em virtude da magnitude econmica da opo contrria.

    28 Cfr. o artigo 17, 3 travesso, da directiva.29 Cfr. os casos descritos no artigo 8 da directiva.

    9

  • benefcios ambientais a obter" [artigo 7/3, em articulao com o ponto 1.3.3. b) do Anexo II da directiva]30.

    vi) A directiva, porque exclui do seu mbito a reparao de danos pessoais e patrimoniais e porque deseja evitar situaes de

    locupletamento custa da colectividade , veda a entrega de quantias

    pecunirias a particulares31. Esta soluo torna clara, por um lado, a

    absoluta preferncia pela reconstituio natural ou, caso esta no seja

    possvel, a alocao de quantias pecunirias exclusivamente efectivao

    de medidas de reparao, complementares ou compensatrias32. Por outro

    lado, a directiva corta cerce hipteses como a de "dano moral" da

    colectividade por perda de qualidade de bens ambientais naturais33;

    vii) A directiva, reconhecendo a necessidade de cobertura de riscos agravados por parte dos operadores, prope aos Estados-membros a tomada

    de medidas tendentes a instituir mecanismos de garantia financeira

    (seguros; fundos) que permitam a resposta adequada e suficiente s

    obrigaes de preveno e reparao de danos ecolgicos34. Sem impor

    desde j o seguro obrigatrio, a directiva estabelece uma data 30 de Abril 30 A que acresce a condio de "as medidas de reparao j realizadas assegurarem

    a inexistncia de riscos significativos de efeitos adversos para a sade humana, as guas ou as espcies e habitats naturais" Anexo II, ponto 1.3.3. a) da directiva. A situao a que nos reportamos, de reparao complementar, configura uma exonerao parcial do operador, com base numa avaliao pautada pelo princpio da proporcionalidade.

    31 Cfr. o artigo 3/3, e o Anexo II., pontos 1.d) e 1.1.3. da directiva.32 Recenseando os principais problemas colocados pela reparao do dano ecolgico

    e identificando vrios modelos comparados, Luca GOMIS CATAL, Responsabilidad..., cit., pp. 247 segs.

    33 Acepo acolhida pela Lei da aco civil pblica brasileira Lei 7.347, de 1985 (com redaco dada pela Lei 8.884, de 1994) , no artigo 1, que menciona "aces de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: I - ao meio ambiente". Sobre esta noo, vejam-se Jos Rubens MORATO LEITE, Dano ambiental: do individual ao colectivo extrapatrimonial, 2 ed., S. Paulo, 2003, esp. pp. 265 segs; e Joo Carlos de CARVALHO ROCHA, Responsabilidade civil por dano ao meio ambiente, in Poltica Nacional do Meio Ambiente, 25 anos da Lei n 6.938/1981, coord. Joo Carlos de Carvalho Rocha, Tarcsio H. P. Henriques Filho e Ubiratan Cazetta, Belo Horizonte, 2007, pp. 217 segs, 236 segs.

    Cremos que, apesar da equivocidade da frmula do artigo 48/3 da LBA, no essa a inteno do legislador portugus. A "indemnizao especial a definir por legislao" a que se reporta o preceito (na impossibilidade de restaurao natural) articula-se com o disposto no artigo 40 da LBA, o qual, como j se referenciou supra no texto, configura uma viso pessoalista do dano ao ambiente.

    Diverso do dano moral da colectividade afigura-se-nos o dano no patrimonial de entidades com atribuies em matria ambiental como os municpios, ou mesmo ONGAs. No caso Erika, o tribunal correccional de Paris admitiu a concesso de montantes indemnizatrios a vrios municpios afectados pela mar negra causada pelo naufrgio a ttulo de leso da "reputao da colectividade" (por as localidades serem internacionalmente reconhecidas pelas suas belezas naturais) cfr. Agathe VON LANG, Affaire de l'Erika:..., cit., pp. 937 segs.

    10

  • de 2010 para a apresentao eventual ("se adequado"), pela Comisso, de

    "propostas sobre um sistema harmonizado de garantias financeiras

    obrigatrias" (artigo 14/2 da directiva)35.

    2.2. Os reflexos da directiva no DL 147/2008, de 29 de Julho

    Depois desta sntese das solues preconizadas pela directiva 2004/35/CE,

    passemos ento a compulsar a apreenso que o legislador portugus delas

    fez, ao efectuar a sua transposio para o RPRDE. Este diploma constitui

    actualmente o diploma aplicvel em sede de preveno e reparao de dano

    ecolgico e s36 deste37 na definio do artigo 11/1/d) do RPRDE, dano

    ecolgico toda "a alterao adversa mensurvel de um recurso natural ou

    a deteriorao mensurvel do servio de um recurso natural que ocorram

    directa ou indirectamente".

    2.2.1. O alargamento do mbito objectivo de aplicao

    34 Note-se que a componente garantstica da directiva foi exigida pelo Parlamento Europeu, tendo enfrentado forte resistncia dos lbis da indstria, que alegaram a falta de experincia do sector dos seguros relativamente a danos ecolgicos. Da o compromisso a que se chegou, adiando a soluo at 2010 cfr. Eckard REHBINDER, Prevention..., cit., p. 411.

    35 Sobre este ponto, ver Armando FEDELI, Le soluzioni assicurative per un nuovo quadro di responsabilit ambientale, in La responsabilit ambientale..., cit., pp. 119 segs; ngel Ruiz DE APODACA ESPINOSA, Garantias financieras y de reparacin del dao ambiental establecidas en la directiva 2004/35/CE, in Revista Aranzadi de Derecho Ambiental, n monogrfico, cit., pp. 185 segs.

    A Ley 26/2007, de 23 de Outubro, diploma atravs do qual o Estado espanhol transps a directiva, estabelece um quadro extremamente desenvolvido da matria das garantias financeiras (Cap. IV), que divide entre Garantias obrigatrias (Seco I: artigos 24 a 33) e Fundo Estatal de reparao de danos ambientais (Seco II: artigo 34).

    36 Esta afirmao pode causar estranheza em razo da existncia de um Captulo II relativo "responsabilidade civil". Esta incluso desiquilibra o diploma, uma vez que, no s duplica disposies da Cdigo Civil inquestionavelmente aplicveis em sede de danos pessoais e patrimoniais ("ambientais"), como desvirtua a vocao de regulao da reparao de danos ecolgicos, raison d'tre do RPRDE. V. infra, 3.1..

    Nesta perspectiva, o artigo 10 do RPRDE pode causar alguma perplexidade ao falar de "lesados". O que se pretende , como a epgrafe esclarece, excluir casos de dupla reparao, ou seja, hipteses de sobreposio de pedidos de compensao financeira por perda de qualidade de um bem natural que constitui fruto de utilidades econmicas para o seu titular com pedidos de reparao primria, complementar ou compensatria, do seu estado ecolgico, apresentados anteriormente por autores populares.

    37 Convm referenciar aqui que o dano ao componente solo (na sequncia da directiva) s releva enquanto fonte de risco para a sade humana artigo 11/e) iii) e Anexo III, ponto 2. Ou seja, no se trata a de um verdadeiro dano ecolgico.

    11

  • Uma primeira nota para o alargamento do conjunto de bens naturais a

    coberto do regime do RPRDE a que o nosso legislador procedeu. Com efeito,

    danos ecolgicos, para os efeitos do RPRDE (artigo 11), so todos os danos

    causados: gua (ressalvados os efeitos adversos sobre os quais incida o

    regime da Lei 58/2005, de 29 de Dezembro Lei da gua); ao solo38; e s

    espcies e habitats protegidos pelo ordenamento nacional. Foi neste ltimo

    ponto que o legislador acresceu ao regime da directiva, uma vez que esta

    aponta apenas como objecto de proteco as espcies e habitats protegidos

    ao abrigo do regime da Rede Natura 2000, enquanto que o RPRDE remete a

    identificao para a "legislao aplicvel" que , neste momento, o DL

    142/2008, de 24 de Julho (Regime da conservao da natureza e da

    biodiversidade).

    Nestes termos, os exemplares de fauna e flora protegidos so todos os que

    estiverem abrangidos por instrumentos de proteco inseridos no Sistema

    Nacional de reas Classificadas, que compreende a Rede Nacional de reas

    Protegidas, as reas classificadas da Rede Natura 2000 e outras reas

    classificadas ao abrigo de instrumentos internacionais assumidos pelo

    Estado portugus (artigo 9/1 do DL 142/2008). Como se v, a Rede Natura

    2000 apenas um subsistema de reas protegidas, aplicando-se o RPRDE

    ao sistema no seu todo.

    2.2.2. O alargamento do mbito subjectivo de aplicao

    Tambm no mbito subjectivo o legislador portugus aumentou o raio de

    aco da directiva. Na verdade, o RPRDE, no tocante responsabilidade

    subjectiva (artigo 13), segue o alargamento que a directiva preconiza

    desafectando os lesantes da estrita enumerao de actividades do Anexo III.

    Porm, acrescenta-lhe um novo segmento, que respeita aos bens sobre os

    quais os danos podem incidir. Assim, enquanto a directiva impe a

    responsabilizao, assente na culpa, de todos os sujeitos e entidades,

    pblicos e privados, independentemente da actividade, por danos infligidos

    a espcies e habitats protegidos ao abrigo do regime da Rede Natura 2000, o

    RPRDE acrescenta a este universo a responsabilizao daqueles por

    quaisquer danos ecolgicos, desde que compreendidos nas categorias

    enunciadas no artigo 11/1/e) ou seja, tambm ao solo e gua.

    38 Mas cfr. a nota anterior...

    12

  • 2.2.3. As excluses

    As excluses a que procede o RPRDE coincidem, ressalvadas as questes

    abordadas infra, em 3.4., com as indicadas na directiva (cfr. o artigo 2/2) e

    j mencionadas [supra, 2.1.v)]. Existe, todavia, uma questo que tratamos neste ponto mas que, em bom rigor, integra o problema do mbito objectivo

    de aplicao do diploma, e que se prende com o universo de bens naturais

    abrangidos pelo regime de preveno e reparao de danos ecolgicos.

    Reportamo-nos no considerao dos danos ao ar (e ao subsolo?39) como

    danos ecolgicos40.

    Com efeito, a directiva no os menciona, mas o RPRDE, porque emitido

    no s em razo de uma obrigao de transposio da directiva

    2004/35/CE como tambm de desenvolvimento do regime de

    responsabilizao sumariamente gizado na LBA e, naturalmente, no quadro

    da tutela constitucional do ambiente, no pode, arbitrariamente, estabelecer

    distines entre bens ambientais merecedores de tutela preventiva,

    reconstitutiva e compensatria e bens isentos dela. No h (no deve haver)

    bens ambientais de 1 e de 2. Nem deve o legislador revelar um temor

    reverencial pelo Direito Comunitrio (rectius: um receio de ser alvo de

    aces por incumprimento...) e uma indiferena olmpica pelo Direito

    nacional, maxime pela Lei Bsica.

    Note-se que a LBA recenseia como bens ambientais naturais, no artigo

    6: o ar, a luz, a gua, o solo vivo e o subsolo, a flora e a fauna. Acresce que

    o artigo 66/2/a) da Constituio (= CRP) impe, como tarefa do Estado e

    demais entidades pblicas, a "preveno da poluio", no fazendo distino

    entre recursos afectados por esta. Alm de que os danos ecolgicos a

    ressarcir, nos termos do artigo 52/3/a) da CRP (e apesar da equivocidade

    do texto do preceito) so relativos ao "ambiente", sem excluso de qualquer

    componente.

    Da que, das duas uma: ou se conclui que o RPRDE padece de ilegalidade

    reforada (cfr. os artigos 280/2/a) e 281/1/b) da CRP), por afronta da LBA 39 A interrogao deve-se a que poder sempre ler-se a referncia ao solo como

    abrangendo o subsolo apesar de a LBA os distinguir. Ainda assim, a circunscrio do dano ao solo como dano sade humana sempre implicar um duplo problema para o RPRDE: primo, a no considerao do dano ao solo como dano ecolgico; secundo, a excluso do dano ao subsolo.

    40 Lamentando idntica reduo do mbito do dano ecolgico relativamente perspectiva ampla adoptada pelos tribunais italianos, Ugo SALANITRO, Il risarcimento del danno all'ambiente: un confronto tra vecchia e nuova disciplina, in RGd'A, 2008/6, pp. 939 segs, 940.

    13

  • (bem como de inconstitucionalidade indirecta, por reduo do mbito de

    proteco das normas constitucionais de tutela do ambiente), na parte em

    que omite a referncia ao(s) componente(s) ar (e subsolo); ou, em nome de

    uma interpretao til mas forada , se procede a uma leitura do

    RPRDE conforme LBA e CRP, considerando dano ecolgico tambm a

    degradao significativa, concreta, mensurvel e imputvel a um/vrios

    operador(es) das condies ecolgicas do ar41 (e do subsolo), sujeitando

    estas leses ao regime de preveno e reparao institudo por aquele

    diploma.

    2.2.4. A noo ampla de responsabilidade e as modalidades de preveno/reparao do dano ecolgico

    Na linha da directiva, o RPRDE assenta numa compreenso alargada de

    responsabilidade, isto , independente da verificao de um dano. O

    princpio da preveno, que pontifica no Direito do Ambiente, justifica esta

    viso, uma vez que, dada a fragilidade de muitos bens naturais, ofensas

    sua integridade podem revelar-se irreversveis (sobretudo quando no

    regenerveis)42.

    O RPRDE vem confirmar a ideia de que a proteco do ambiente impe

    deveres de defesa e promoo da qualidade dos bens ambientais aos

    operadores de actividades que possam ter sobre estes efeitos significativos.

    Os actos autorizativos estabelecem uma relao para-contratual entre o

    industrial/produtor/comerciante e as entidades com competncia

    autorizativa, na medida em que, para desenvolverem a sua liberdade de

    iniciativa econmica de acordo com os limites impostos pela tutela

    ambiental, os operadores ficam adstritos a um conjunto de vinculaes que

    configuram deveres de facere, de pati e de non facere densificados atravs

    41 Poder-se- objectar incluso do ar em virtude da dificuldade de reparao de danos a este componente ambiental, que tendero a configurar danos difusos, excludos pela directiva e de imputao complexa. Mas ainda assim, melhor seria ficarem compreendidos no mbito de aplicao do RPRDE, partida, mesmo que a maior parte dos casos no fosse imputvel, chegada.

    42 Poderamos mesmo ser tentados a concluir por uma dupla amplitude do conceito de responsabilidade por dano ecolgico, dadas as hipteses de suportao de custos pela entidade pblica autorizante ou com competncia especfica sobre o recurso natural em jogo. Isto , no haveria dualidade entre credor e devedor, pois a colectividade sofre o dano ecolgico e custeia a sua reparao. No entanto, a afectao dos custos ao Fundo de Interveno Ambiental (alimentado por coimas e taxas sobre as garantias financeiras constitudas ao abrigo do RPRDE) faz com que, na realidade, os patrimnios sejam diferentes.

    14

  • de clusulas modais, mais ou menos precisamente definidas nas leis

    sectoriais. Porque o ambiente um bem pblico e frgil, as actividades que

    o possam afectar mais significativamente esto sujeitas a um princpio de

    proibio sob reserva de permisso, que s se ultrapassa atravs da

    concesso das autorizaes necessrias concretizao de tais deveres43.

    Sucede que tais autorizaes, porque incidentes sobre uma realidade

    permanentemente mutvel quer em virtude de alteraes de

    funcionamento do ecossistema, quer por fora dos progressos tcnico-

    cientficos , esto sujeitas a perodos de vida curtos e, sobretudo, a um

    princpio de revisibilidade por alterao de circunstncias44. A relao

    estabelecida atravs do acto autorizativo dinmica e cria, para a

    Administrao, competncias de fiscalizao que se renovam ao ritmo das

    alteraes, fcticas e legislativas, que vo surgindo45. Tais competncias, na

    medida em que constituam restries liberdade de iniciativa econmica do

    operador, ho-de estar previstas, mesmo que apenas de forma genrica, nos

    diplomas aplicveis regulao da actividade46.

    Cumpre, pois, entrelaar os poderes de ingerncia administrativa no

    tocante determinao de medidas preventivas aos operadores, por um

    lado, com as competncias de conformao dinmica da relao

    autorizativa, bem como com a proibio (genrica) de poluir sediada na LBA

    (artigo 26). Por outro lado, despontam identicamente importantes

    obrigaes pblicas de preveno, agora de segundo grau (ou seja, aps a

    deteco da infraco s normas jus-ambientais, o que no o mesmo que

    dizer aps a ecloso do dano47) pela via das competncias conferidas

    43 Sobre o(s) dever(es) de proteco do ambiente, veja-se o nosso Risco e modificao do acto autorizativo concretizador de deveres de proteco do ambiente, Coimbra, 2007, pp. 152 segs.

    44 Vejam-se a ttulo de exemplo os artigos 27/b) do DL 69/2000, de 3 de Maio (com alteraes posteriores e objecto de republicao pelo DL 197/2005, de 8 de Novembro); 67/3/a) da Lei 58/2005, de 29 de Dezembro; e 20/3/a) e b) do DL 173/2008, de 26 de Agosto.

    45 Vejam-se, a este propsito, Jos Joaquim GOMES CANOTILHO, Actos autorizativos jurdico-pblicos e responsabilidade por danos ambientais, in BFDUC, 1993, pp. 1 segs, 38 segs, e o nosso Risco e modificao..., cit., esp. pp. 555 segs.

    46 Como consequncia, do princpio da reserva de lei restritiva de direitos liberdades e garantias (ainda que aqui de natureza anloga): artigos 18/2 e 3, e 165/1/b) da CRP.

    47 Pense-se no desrespeito das normas fixando valores de emisso, passvel de contra-ordenao e mesmo de aplicao de medidas cautelares de suspenso da laborao: o desrespeito, por si s, pode gerar aces de preveno impostas pelas entidades com competncia inspectiva (maxime, a IGAOT), sem que se configure, desde logo, uma ameaa de degradao significativa de um dado componente

    15

  • Administrao no mbito do procedimento sancionatrio (cfr. o artigo 30/2

    do RPRDE, e a Lei 50/2006, de 29 de Agosto), maxime no tocante

    possibilidade de decretamento de medidas cautelares (cfr. os artigos 41 e

    42 da lei 50/2006). Por outras palavras, no no captulo da preveno

    que o RPRDE verdadeiramente inova, pois esta dimenso j se encontrava

    coberta pelos diplomas sectoriais e pelo regime sancionatrio ficando, no

    entanto, reforada. Na reparao/compensao que reside o seu forte.

    Ainda assim, relativamente ao dever de adopo de medidas preventivas

    previsto no artigo 14 do RPRDE, cumpre esclarecer alguns aspectos:

    i) as medidas preventivas so exigveis perante a ameaa iminente de um

    dano ecolgico, ou de novos danos subsequentes a uma leso j ocorrida. A

    noo de iminncia do dano no estritamente temporal, mas tambm

    circunstancial; ou seja, o facto de o dano ser iminente no significa que se

    configure como prestes a acontecer (por horas ou dias), mas antes que

    esteja reunido (ou em vias de estar reunido) um conjunto de pressupostos

    que, no plano da verosimilhana e probabilidade, permita prever, com grau

    de certeza razovel, a ecloso daquele (cfr. os artigos 11/1/b) e 5 do

    RPRDE)48. Como sublinha Branca MARTINS DA CRUZ, a vertente preventiva

    do RPRDE emerge de uma situao de "responsabilidade post-factum,

    porque posterior aco lesiva, mas ante-damnum, porque actuada antes da

    concretizao do dano que, no fora a interveno preventiva, se verificaria

    com toda a probabilidade, segundo dados da experincia e/ou cientficos"49;

    ii) a determinao das medidas preventivas obedece aos critrios

    constantes do Anexo V [ponto 1.3.1., alneas a) a f)], por remisso do artigo 14/3 do RPRDE; ou seja, precedida de uma ponderao alargada de

    factores que a entidade pblica estar especialmente apta a realizar. Da

    que, em bom rigor, se possam admitir duas perspectivas: por um lado, a do

    operador/sujeito que, perante a ameaa iminente de um dano ecolgico,

    toma as medidas que entender aptas para prevenir o dano, de acordo com a

    ambiental.48 A referncia do artigo 5 "possibilidade de prova cientfica" no deve significar,

    cremos, a adopo de uma viso minimalista da preveno apenas relativamente a perigos, eventos determinveis a partir de dados estatsticos firmes ou teorias cientficas consensuais. Note-se que o preceito menciona "risco" e "perigo", o que alarga o espectro de antecipao a eventos cuja causalidade pode no estar absolutamente determinada mas revestir uma probabilidade no descartvel, luz de conhecimentos plausveis.

    49 Branca MARTINS DA CRUZ, Desenvolvimento sustentvel e responsabilidade ambiental, in Direito e Ambiente, n 1, 2008, pp. 11 segs, 41.

    16

  • melhor tecnologia disponvel, atendendo primacialmente ao custo, ao grau

    de xito da medida e aos seus provveis efeitos colaterais noutros

    componentes ambientais; por outro lado, a da entidade pblica, que

    ponderar estes aspectos mais os efeitos das medidas na sade e segurana

    das pessoas, no sistema ecolgico em geral e no contexto socio-econmico

    em particular.

    Esta sensvel diferena de perspectivas pode levar o operador a escudar-

    se no custo excessivo das medidas e/ou na dificuldade de aferio dos seus

    eventuais efeitos colaterais. Por isso, o artigo 14/4 do RPRDE institui um

    dever de informao que pretende investir a autoridade competente a

    autoridade com competncias especficas no domnio da preveno da

    poluio, ou seja, a Agncia Portuguesa do Ambiente (cfr. os artigos 14/5 e

    29 do RPRDE, e 16/1 do DL 173/2008, de 26 de Agosto: regime do

    licenciamento ambiental) no conhecimento dos dados necessrios

    correco das medidas adoptadas, num quadro de ponderao alargada (v.

    tambm o n 5/b) do artigo 14 do RPRDE).

    Entre uma lgica de custo, em que prepondera o interesse privado, e uma

    lgica de eficcia, em que prepondera o interesse pblico, arriscamos prever

    uma tendncia para a determinao das medidas preventivas adequadas e

    suficientes por parte das entidades competentes e para a sua execuo

    subsidiria, a expensas do operador hiptese prevista no artigo 14/5/d)

    do RPRDE , esgotadas as possibilidades de execuo atempada por este.

    Anote-se que, em "situaes extremas para pessoas e bens", a urgncia

    confere autoridade competente a faculdade de prescindir da emisso de

    "actos de execuo" de determinao/correco de medidas preventivas,

    actuando directamente cfr. o artigo 17/2 do RPRDE50;

    50 A recuperao dos custos fica assegurada, na primeira situao de execuo subsidiria pela prestao de garantias por parte do operador, nos termos do artigo 19/2 do RPRDE, e na segunda situao de execuo directa, por fora da urgncia na salvaguarda de bens de valor superior atravs de aco de regresso, prevista no artigo 17/3 do RPRDE, e num prazo de cinco anos (artigo 19/3 do RPRDE). A diferena reside em que, no primeiro caso, a existncia de um ttulo executivo o acto atravs do qual a Administrao notifica o operador da quantia em dvida, que este liquidar, se necessrio por recurso s garantias financeiras dispensa a propositura de uma aco declarativa com vista determinao do dbito (caso o operador no pague voluntariamente). Sobre a execuo coerciva para pagamento de quantia certa, v. o nosso Contributo para o estudo das operaes materiais administrativas e do seu controlo jurisdicional, Coimbra, 1999, pp. 133 segs.

    Em todas as hipteses em que o operador no seja obrigado a suportar os custos e seja a autoridade pblica a arcar com eles (cfr. os artigos 19/4, 20/1/b) e 20/3 do RPRDE), as despesas de preveno e reparao repercutem-se no Fundo de

    17

  • iii) a competncia de preveno de danos ecolgicos irrenuncivel51

    constitui um poder-dever da Agncia Portuguesa do Ambiente (artigo 29 do

    RPRDE). A tutela do ambiente primacialmente pblica, como o afirmam os

    artigos 66/2 da CRP, e 37 da LBA, e preferencialmente preventiva.

    Intervindo oficiosamente, a requerimento de interessados (cfr. o artigo 18

    do RPRDE) ou na sequncia de informao veiculada pelo operador e uma

    vez constatada a insuficincia da actuao deste, a entidade competente

    est vinculada a exercer a competncia de tutela preventiva, desde que o

    dano iminente se afigure significativo (cfr. o Anexo IV, 7 do RPRDE). Se o

    no fizer e o dano efectivamente ocorrer, pode vir a ser responsabilizada

    solidariamente com o operador e condenada reparao da leso, nos

    termos do RPRDE.

    Duas notas: em primeiro lugar, para ressaltar que, em algumas

    situaes, a adopo de medidas preventivas positivas (e no meramente

    negativas ou inibitrias) muito dificilmente poder ser assegurada

    subsidiariamente pela Administrao, que no domina os processos de

    produo. Donde, a vantagem para o operador de, e apesar do custo, as

    adoptar, antes que a Administrao seja "forada" a suspender a laborao

    (o que acarretar um prejuzo superior). Em segundo lugar, para frisar que

    esta competncia "secundria" de preveno de riscos tem a sua primeira

    manifestao na conformao dos deveres do operador levada a cabo no acto

    autorizativo que lhe permite desenvolver a actividade. Donde, a ocorrncia

    de um dano ecolgico em virtude de dfice de ponderao de circunstncias

    de risco com base na melhor informao disponvel gera igualmente

    responsabilidade por facto ilcito, que a Administrao suporta

    solidariamente com o operador52.

    Interveno Ambiental referido no artigo 23 do RPRDE, criado pela Lei 50/2006, de 29 de Agosto, e regulamentado pelo DL 150/2008, de 30 de Julho (cfr. o artigo 10/2 deste ltimo diploma).

    51 Em bom rigor, a alnea d) do n 5 do artigo 14 do RPRDE deveria ser autonomizada, pois a a discricionaridade de aco contemplada na hiptese normativa reduz-se drasticamente.

    52 A obrigao de indemnizar ser, em regra, solidria com a entidade autorizada (embora no necessariamente partilhada em igual proporo) J. C. LAGUNA DE PAZ, Responsabilidad de la Administracin por daos causados por el sujeto autorizado, in RAP, n 1555, 2001, pp. 27 segs, 54 segs , salvo quando o operador tiver agido com manifesta m-f, falseando informaes ou induzindo deliberadamente a Administrao em erro (v.g., juntando pareceres tcnicos comprados) C. GOOSSENS, Le rgime juridique des autorisations requises pour lexploitation des tablissements industriels en Belgique, in RISA, n 1, 1953, pp. 608 segs, 670.

    18

  • Quanto s competncias de determinao e adopo de medidas

    reparatrias (artigos 15 e 16 do RPRDE e Anexo V)53, elas sediam-se desde

    logo no artigo 48 da LBA. Nesta sede, a actuao reparatria sempre

    precedida de informao sobre o incidente, permanentemente actualizada,

    s autoridades competentes (artigo 15/1/a) do RPRDE) pode revestir um

    de dois modelos:

    i) Por iniciativa da entidade competente: esta, em face da inrcia ou

    insuficincia do operador, determina, nos termos do artigo 16/2 do RPRDE,

    as medidas a tomar, aps ouvi-lo, bem assim como os interessados (pblico

    em geral, e sujeitos cujos bens possam ser reflexamente visados, em

    particular), e ainda, se necessrio, autoridades com competncias de tutela

    (ambiental e outras) especialmente aptas no sector em questo, conforme

    dispe o artigo 16/4 do RPRDE. A lei no fixa prazo para concluso deste

    procedimento, que julgamos, em face da necessidade de actuao rpida,

    no dever ultrapassar os 30 dias, podendo prorrogar-se, em situaes de

    especial complexidade, at 3 meses;

    ii) Por iniciativa do operador: este submete uma proposta de medidas de

    reparao do dano, num prazo de 10 dias aps a sua ecloso (artigo 16/1,

    in fine, do RPRDE). A entidade competente deve, do mesmo modo e ainda

    que a lei o no diga expressamente, convidar os interessados a pronunciar-

    se, nos termos supra referidos, e emitir deciso final, fixando as medidas a

    cargo do operador de acordo com os critrios definidos no Anexo V.

    Acresce que, em situaes de extrema urgncia, a entidade competente

    pode prescindir deste procedimento, nos termos do artigo 17/2 do RPRDE.

    A reparao efectiva dos danos ecolgicos obedecer, eventualmente, a

    prioridades ditadas pela entidade competente, "atendendo, nomeadamente,

    natureza, extenso e gravidade de cada dano ambiental, bem como s

    possibilidades de regenerao natural, sendo em qualquer caso, prioritria a

    Falando em possibilidade de repercusso de parte do quantum indemnizatrio, atravs de aco de regresso proposta pelo operador contra a Administrao, Susana GALERA RODRIGO, La responsabilidad de las administraciones publicas en la prevencin de daos ambientales, Madrid, 2001, pp. 167 segs.

    53 O RPRDE, na senda da directiva, enuncia trs gradaes de medidas reparatrias: primrias, complementares e compensatrias. As primeiras visam reconstituir o status quo anterior leso; as segundas pretendem colmatar falhas eventualmente verificadas ao nvel da restaurao natural, actuando como reparao por equivalente. Finalmente, as medidas compensatrias tm por objectivo atenuar o impacto do dano no ecossistema, "corrigindo danos induzidos, ou seja, aqueles que ocorreram entre a verificao da leso e a sua reparao", "a ruptura do ciclo natural normal" Carole HERMON, La rparation..., cit., p. 1795.

    19

  • aplicao das medidas destinadas eliminao de riscos para a sade

    humana" (artigo 16/3 do RPRDE). Sublinhe-se ainda que, no plano da

    reparao de danos causados qualidade da gua e integridade de

    espcies e habitats protegidos, a entidade competente pode optar por no

    reconstituir integralmente o estado ecolgico inicial, verificados os

    pressupostos indicados no ponto 1.3.3. do Anexo V.

    No que respeita execuo das medidas reparatrias, esta deve obedecer

    ao plano previamente fixado e debatido, salvo no que toca a medidas de

    minimizao imediatas que acabam por ter mais natureza preventiva de

    agravamento dos danos do que reparatria, embora o legislador as tenha

    includo no contedo regulatrio do artigo 15 do RPRDE. A execuo deve

    ser levada a cabo pelo operador, segundo instrues da entidade

    competente e de acordo com plano e prazo previamente fixados [artigo 15/3/c), d) e e) do RPRDE]. Perante a inrcia do operador, a Administrao actua em execuo subsidiria artigo 15/3/f) do RPRDE.

    Diga-se, para finalizar, que o incumprimento das obrigaes: de

    preveno, de informao e de reparao, cominado com a aplicao de

    sanes contra-ordenacionais, nos termos do artigo 26, bem como de

    sanes acessrias, de acordo com o disposto no artigo 27, ambos do

    RPRDE (pelas autoridades com competncia de fiscalizao artigo 25).

    Os planos aplicativos do RPRDE e da Lei 50/2006, de 29 de Agosto (Lei-

    quadro das contra-ordenaes ambientais) so diversos, na medida em que

    incidem sobre aspectos diferentes da tutela ambiental: preventiva,

    reparatria (RPRDE) e repressiva (Lei 50/2006) cfr, de resto, o artigo 30/

    2 do RPRDE. No entanto, os poderes de decretamento de medidas cautelares

    conferidos s autoridades administrativas ambientais no contexto de um

    processo contra-ordenacional movido a um operador que desrespeite as

    condies, legais e regulamentares, de laborao, podem como se

    comeou por assinalar ser determinantes no sentido da reduo da

    amplitude e consequncias do dano ecolgico.

    2.2.5. A legitimidade alargada para requerer a preveno/reparao de danos ecolgicos

    20

  • Tanto a directiva como o RPRDE apostam em fazer do cidado um "zelador

    do ambiente" na senda, alis, da CRP, que no artigo 52/3/a) afirma a

    consequncia natural do alargamento de legitimidade procedimental e

    processual a qualquer cidado para defesa de um bem de fruio colectiva.

    De certa forma, ambos os diplomas se aproveitam da eventual

    "paralelizao" entre dano ambiental/pessoal e dano ecolgico para convidar

    o cidado a tomar a ofensa sua esfera jurdica como pretexto de defesa

    tambm dos componentes naturais. Frise-se, todavia, que o objecto do

    RPRDE (mau grado a excrescncia do Captulo II...) o dano ao ambiente;

    da que o objecto directo da denncia e do pedido de interveno seja a

    salvaguarda deste bem jurdico.

    O artigo 18 do RPRDE reconhece legitimidade para a denncia de

    ameaa iminente54 de dano ecolgico ou de verificao deste (devidamente

    documentada) em trs situaes (vide o n 2):

    i) Caracterizao de um dano patrimonial directo, actual ou provvel

    alnea c);

    ii) Caracterizao de um dano pessoal ou patrimonial colateral, actual ou

    provvel alnea a)55;

    iii) Caracterizao de um dano exclusivamente ecolgico, denuncivel por

    qualquer actor popular, nos termos dos artigos 2/1 da Lei 83/95, de 31 de

    Agosto, e 53/2 do CPA, a cujo elenco se deve aditar o Ministrio Pblico

    (cfr. os artigos 26A do CPC, e 9/2 do CPTA), ou seja, cidados, autarquias,

    Ministrio Pblico, fundaes e associaes que tenham a defesa do

    ambiente como objecto estatutrio (cfr. tambm o artigo 3 da Lei 83/95).

    No podemos deixar de fazer uma brevssima referncia tutela

    contenciosa. A natureza pblica do dano ecolgico porque incidente sobre

    um bem que, na sua vertente imaterial (indivisvel e inaproprivel),

    54 Repare-se que a directiva, no artigo 12/5, admite que os Estados-membros excluam o alargamento de legitimidade no caso de "mera" ameaa de dano. O legislador portugus, aqui bem mais ciente do parmetro constitucional e legal, incluiu esta hiptese.

    55 Julgamos que a diferena entre estas duas alneas reside na afectao directa ou indirecta da esfera jurdica de um sujeito, embora sempre pressuponha a verificao de um dano ecolgico stricto sensu. No primeiro caso, ao dano ecolgico cumula-se um dano ao patrimnio do sujeito v.g., contaminao de solos agrcolas que impossibilita o aproveitamento econmico dos mesmos. No segundo caso, o dano ecolgico tem total autonomia em face do dano provocado ao sujeito, mas pode, circunstancialmente, reflectir-se na sua esfera pessoal ou patrimonial v.g., descarga de poluentes numa albufeira de barragem onde o sujeito se banha.

    21

  • pblico: o ambiente determina a propositura, quer de aces

    administrativas comuns de condenao na absteno de comportamentos

    lesivos do ambiente por parte do operador (precedida de eventual pedido

    cautelar), nos termos do artigo 37/2/c) e n 3 do CPTA; quer de aces

    administrativas comuns de efectivao da responsabilidade contra o

    operador (em eventual solidariedade com a Administrao omissiva), nos

    termos do artigo 37/2/f) do CPTA, nos tribunais administrativos,

    independentemente da natureza jurdica do operador56. A alnea l) do artigo

    4/1 do ETAF, embora no configure expressamente uma reserva de

    jurisdio administrativa em sede de aco popular, deve ser entendida

    como tal. O autntico dano ecolgico sempre rfo: a sua preveno e

    reparao s por representantes da colectividade pode ser levada a cabo,

    junto dos tribunais especializados em questes jurdico-pblicas.

    J assim se no passar caso a alegao diga respeito a um dano pessoal

    ou patrimonial do autor da aco, que consumir (pelo menos numa

    primeira linha, respeitante dimenso corprea e individual do recurso

    natural) a dimenso ecolgica do bem uma vez que a legislao descarta a

    possibilidade de atribuio de indemnizao a ttulo de dano moral da

    colectividade , e a ofensa seja perpetrada por entidade privada. Por outras palavras, pretendendo o autor/proprietrio do bem ressarcimento por um

    dano que, para si, primacialmente um dano patrimonial ou tutela

    cautelar contra a sua efectivao , os tribunais competentes para

    conhecerem a aco sero os tribunais cveis sempre que a actuao lesiva

    no revestir natureza pblica. Em contrapartida, insistimos, todas as aces

    populares para defesa da integridade dos recursos ecolgicos qua tale

    devero ser apreciadas pelos tribunais administrativos, ainda que o ofensor

    seja privado, pois a indemnizao materializada em prestaes de facere

    a realizar no quadro do Anexo V do RPRDE reveste sempre natureza

    pblica.

    No caso de sobreposio entre dimenses patrimonialista e ecolgica do

    bem, cumpre lembrar a proibio de dupla reparao que resulta do artigo

    10 do RPRDE, e que se poder levantar perante situaes de necessidade

    de ressarcimento que extravasem as operaes de reconstituio natural (ou

    56 Para maiores desenvolvimentos sobre esta posio, veja-se o nosso A ecologizao da justia administrativa: brevssima nota sobre a a alnea l) do n 1 do artigo 4 do ETAF, in Textos dispersos de Direito do Ambiente, Lisboa, 2005, pp. 249 segs, 266-268.

    22

  • complementar)57. Pense-se, por hiptese, no proprietrio de um montado de

    sobreiros cujas rvores morreram por contaminao de lenis freticos, em

    que o lesante foi condenado a promover o replantio: a reconstituio natural

    (sem embargo do tempo que demorar) no evita o incumprimento de

    contratos de fornecimento de cortia assumidos pelo proprietrio so

    danos patrimoniais que devem ser ressarcidos nos termos gerais de

    Direito58.

    Uma ltima nota: a reparao de danos ecolgicos promovida por autores

    populares no resulta na atribuio de quantias pecunirias aos

    peticionantes. Ultrapassando os equvocos da Lei 83/95, de 31 de Agosto e

    posicionando-se na linha da directiva, o RPRDE nega a concesso de

    "compensaes" a sujeitos/associaes agindo em nome da colectividade,

    afastando-se de uma hiptese de dano moral colectivo. Perante um dano

    ecolgico, ou h possibilidade de reparao primria ou, no sendo esta

    (plenamente) possvel, avana-se para uma indemnizao complementar

    e/ou compensatria, conforme explicitadas no Anexo V, 1., visando a

    reconstituio natural ou por equivalente. Isto no significa que, em aces

    de efectivao da responsabilidade e perante a inrcia do lesante na

    execuo das medidas em que foi condenado, os autores no se vejam

    forados a pedir a execuo por terceiro ou a execuo para pagamento de

    quantia certa59, que reverter para o Fundo de Interveno Ambiental,

    conforme dispe o artigo 6/1/d) do DL 150/2008, de 30 de Julho60.

    57 Sobre estas hipteses, ver Jos Joaquim GOMES CANOTILHO, Actos autorizativos..., cit., p. 15.

    58 A aco de indemnizao, a ser proposta pelo proprietrio, s-lo- nos tribunais comuns se o lesante for um particular e no tiver havido convite s autoridades administrativas para porem fim actividade poluente (se este fosse possvel) artigo 37/3 do CPTA; caso tenha existido denncia e omisso da autoridade competente, ento os tribunais administrativos sero competentes, uma vez que a aco comum ser proposta em litisconsrico passivo necessrio contra o lesante e contra a Administrao. A opo pelos tribunais comuns, na primeira hipetese, justifica-se em razo da natureza das coisas: o proprietrio tender a olhar para os sobreiros perdidos como coisas e no como bens naturais.

    J se a actuao judicial for desencadeada por autores desinteressados da vertente patrimonialista do bem, a avultar a dimenso ecolgica deste e dar-se- primazia ao contencioso jurdico-pblico. Os tribunais administrativos aplicaro somente o RPRDE e, no que remanescer de dano patrimonial, o proprietrio poder, com o limite imposto pelo artigo 10 do RPRDE, propor uma aco contra o lesante para se ressarcir desse prejuzo.

    59 Nos termos do artigo 157/2 do CPTA, que remete para os artigos 933 e segs do CPC.

    60 Do mesmo modo, as quantias obtidas atravs de aces de regresso movidas pelo Estado para recuperao de custos de medidas de preveno e reparao de danos ecolgicos tm o Fundo de Interveno Ambiental por destino.

    23

  • 2.2.6. A excluso da obrigao de pagamento dos custos de preveno/reparao; em especial, a responsabilidade objectiva

    Vimos que a directiva autoriza os Estados-membros a dispensar o operador

    de custear as operaes de reparao de danos ecolgicos advenientes de

    actividade por si desenvolvida em determinados casos, e nomeadamente

    quando inexistir culpa daquele. O legislador portugus aproveitou esta

    ressalva e, no artigo 20 do RPRDE, libertou o operador da obrigao de

    pagamento de medidas de preveno e reparao num conjunto de

    situaes que passaremos a analisar sumariamente, com especial incidncia

    dos casos de responsabilizao objectiva61.

    O artigo 20 aponta para dois grandes grupos de casos:

    I. Responsabilidade por facto de outrem ou instruo administrativa;II. Responsabilidade objectiva.

    I. No primeiro caso, o legislador exige que o operador avance com o montante em que importam as medidas preventivas ou reparatrias,

    reconhecendo-lhe direito de regresso contra o terceiro que provocou a

    ameaa de leso ou o dano (no tendo havido incumprimento dos deveres de

    cuidado e segurana por parte do operador62), bem como contra a entidade

    administrativa que emitiu a ordem ou instruo que concorreu para a

    formao da ameaa ou para a produo do dano (e que se no relacione

    com a correco de um processo causal lesivo iniciado pelo operador)

    artigo 20/1 e 2 do RPRDE. Estas normas sobre transmisso da

    responsabilidade no nos levantam dvidas de maior. Devemos sublinhar

    que elas so aplicveis independentemente de quem, em concreto, tome as

    medidas requeridas o operador ou a Administrao, em execuo

    substitutiva ou directa.

    61 Para uma viso comparada dos modelos de responsabilidade ambiental objectiva, Luca GOMIS CATAL, Responsabilidad..., cit., pp. 93 segs.

    62 Realce-se uma vez mais que este operador no tem forosamente que lidar com as actividades constantes do Anexo III do RPRDE, dado que estamos num plano de responsabilizao subjectiva cfr. os artigos 8 e 13/1.

    24

  • II. No segundo caso, o legislador exime do pagamento de custos de preveno63 e reparao de danos ecolgicos o operador que, actuando sem

    culpa, provoque uma leso ambiental:

    a) quer no mbito de actividades listadas no Anexo III64;

    b) quer no mbito de qualquer outra actividade no tipicamente conotada

    como actividade de risco, com base no estado do conhecimento tcnico-

    cientfico data da ecloso dos factos.

    Cumpre comear por assinalar que o artigo 20/3 do RPRDE deve ser lido

    conjugadamente, quer com os artigos 7 e 12 do RPRDE, quer e sobretudo,

    com o artigo 41 da LBA. Desta primeira aproximao retiram-se duas

    ideias: por um lado, admite-se a responsabilizao objectiva por danos

    significativos causados aos bens ecolgicos advenientes de "aces

    especialmente perigosas"; por outro lado, este modelo de imputao s

    incidir sobre certas actividades, conotadas, luz dos conhecimentos

    tcnico-cientficos disponveis, como tipicamente aptas a produzir danos

    significativos nos componentes ambientais naturais.

    De seguida, deve sublinhar-se que o artigo 20 do RPRDE exclui a

    obrigao de pagamento do custo das medidas de preveno e reparao,

    mas j no a obrigao de o operador, enquanto entidade mais prxima do

    evento lesivo, as adoptar no mais curto prazo. Julgamos que, apesar da

    equivocidade da redaco do preceito, esta obrigao de actuao vale, quer

    para os casos do n 1, quer para os casos do n 3 embora este ltimo no 63 Temos fortes dvidas sobre a aplicao desta norma em sede puramente

    preventiva alis, o legislador fala em preveno no corpo do n 3 mas refere "dano ambiental" na alnea b)... A nossa descrena assenta em que, reportando-se a norma a riscos desconhecidos, se torna muito difcil conceber a obrigao de preveno antes da ecloso do dano. Veja-se, todavia, a posio de Dlton CARVALHO, abrindo a porta do instituto da responsabilidade civil ao dano futuro (dano hipottico, eventualmente decorrente do incumprimento de deveres de antecipao de riscos) A teoria do dano ambiental futuro: a responsabilizao civil por riscos ambientais, in Direito e Ambiente, n 1, 2008, pp. 71 segs.

    Ressalvado o respeito pelo autor e pela criatividade da soluo, concordamos com Branca MARTINS DA CRUZ quando escreve que tal responsabilidade do mbito contra-ordenacional, assistindo-lhe "carcter sancionatrio e no reparatrio, como seria prprio da responsabilidade civil, qual no incumbe gerir a dvida e a incerteza cientficas, sancionando violaes do princpio da precauo, sob pena de se desnaturar completamente" Desenvolvimento sustentvel, cit., p. 44.

    64 Segundo Jesus JORDANO FRAGA (La responsabilidad por daos ambientales en el Derecho de la Unin Europea: anlisis de la directiva 2004/35/CE, de 21 de abril, sobre responsabilidad ambiental, in Revista Aranzadi de Derecho Ambiental, n monogrfico, cit., pp. 13 segs, 25: pronunciando-se a propsito da directiva), a delimitao de actividades tipicamente perigosas deveria ter sido estendida s sujeitas a avaliao de impacto ambiental. Salvo o devido respeito, e dadas as "aberturas" do regime de submisso a AIA (cfr. o artigo 1/4 e 5 do DL 69/2000, de 3 de Maio), este alargamento seria excessivo.

    25

  • esclarea a forma de recuperao das quantias despendidas. O custo ser

    suportado pela Administrao, atravs do Fundo de Interveno Ambiental,

    devendo o reembolso ser solicitado pelo operador. No ignoramos, todavia,

    uma certa ingenuidade desta soluo, na medida em que o diploma afirma

    expressamente, no artigo 17/1/c), que a Administrao tem o dever

    ainda que "em ltimo recurso" de adoptar todas as medidas necessrias,

    quando "o operador no seja obrigado a suportar os custos, nos termos do

    presente decreto-lei"...

    Deve identicamente realar-se, em terceiro lugar, que cabe ao legislador

    uma margem de conformao deste tipo de responsabilidade balizada por

    dois princpios: de uma banda, a obrigao de reparao de danos ao

    ambiente; de outra banda, o no estrangulamento da actividade econmica

    e do progresso cientfico. Na verdade, o instituto da responsabilidade

    objectiva, porque prescinde da culpa, deve estar reservado, no contexto da

    sociedade de risco, a um (periodicamente revisvel) conjunto circunscrito de

    actividades potencialmente perigosas, cujos operadores ficam plenamente

    cientes de que, aos custos de produo, caber juntar custos de suportao

    de danos colectividade.

    Dito isto, torna-se mais fcil compulsar o acerto (ou desacerto...) das

    solues decorrentes do artigo 20/3 do RPRDE. Pese a complexidade da

    tcnica legislativa utilizada, e sempre considerando que se trata de

    responsabilidade sem culpa, pensamos poder retirar-se da norma o

    seguinte:

    i) No caso de actividades inscritas no Anexo III, o operador ficar isento de

    responsabilidade por danos/riscos associados ao funcionamento normal da

    instalao65. Trata-se de uma m soluo, que faz impender sobre o Estado

    toda e qualquer negatividade que possa resultar de uma actividade

    tipicamente perigosa mas autorizada luz dos melhores conhecimentos e

    tcnicas disponveis, obnubilando o benefcio econmico que o operador

    65 este o significado que nos vemos obrigados a dar frmula empregue pelo artigo 20/3/i): "emisso/facto expressamente autorizado" + "respeito pelas condies estabelecidas no acto autorizador" = riscos previsveis + funcionamento normal. Os riscos imprevisveis esto cobertos pela alnea ii).

    Esta soluo corresponde da lei alem de 1990 (artigo 6, 2 da Umwelthaftungsgesetz), a qual, sublinhe-se, no institui um verdadeiro regime de responsabilidade por dano ecolgico mas antes por danos ambientais (pessoais e patrimoniais) Detlev von BREITENSTEIN, La loi allemande relative la responsabilit en matire d'environnement: pierre angulaire du Droit de l'Environnement?, in RJE, 1993/2, pp. 231 segs, 235 e 238.

    26

  • dela retira. Tal risco residual deveria ser suportado pelo operador e no

    pela comunidade66.

    O Estado executa as medidas necessrias e suporta estes custos,

    financiando-se a partir do Fundo de Interveno Ambiental cfr. os artigos

    17/1/b), 19/5 e 23 do RPRDE.

    Em contrapartida, o operador ser responsvel pelos danos/riscos

    decorrentes de funcionamento anormal daquela. Estes riscos consideram-se

    compreendidos na lea da iniciativa econmica assumida pelo operador que,

    detendo os lucros, deve suportar os custos causados por desvios ao

    percurso causal normal da actividade e suas consequncias. O operador

    executa as medidas necessrias e suporta estes custos, apoiado nas

    garantias financeiras que constituiu cfr. os artigos 7, 12, 19/1 e 22

    do RPRDE67.

    Problemtico , aparentemente, que o operador se veja obrigado pela

    totalidade, uma vez que o legislador no fixou tectos indemnizatrios. O

    artigo 41/2 da LBA parece apontar para esta situao, de resto comum no

    plano da responsabilidade objectiva (cfr. o artigo 508 do CC) embora

    possa questionar-se a verdadeira inteno da LBA, conhecendo-se a

    confuso em que se enreda quando dispe sobre o "dano ambiental" no

    artigo 40. Enfim, a dvida que nos fica a seguinte: no est o legislador

    de desenvolvimento vinculado opo da LBA no tocante ao

    estabelecimento de patamares indemnizatrios? Note-se que o facto de o

    RPRDE excluir a atribuio, nos estritos termos da sua aplicao, de

    quantias a particulares, no implica o custo-zero das operaes de

    reparao... A fixao de um limite (proporcional) indemnizatrio uma

    forma de o Estado aliviar o industrial, fazendo recair sobre a sociedade uma

    parte do prejuzo, caso o patrimnio (e as garantias) daquele seja(m)

    insuficiente(s), em razo da magnitude do dano. Poder-se- considerar que 66 Os altos custos de suportao das medidas reparadoras de danos ecolgicos

    provocados por actividades autorizadas sem culpa do operador constituem a razo por que o Estado alemo decidiu no tomar posio, ao nvel federal, sobre esta questo, deixando aos Lnder a opo de fazer recair o custo sobre os operadores ou exclui-los dessa obrigao de pagamento Eckard REHBINDER, Implementation, cit., p. 113.

    67 Perfilhando uma posio idntica quanto interpretao da norma sobre responsabilidade objectiva da lei italiana que procedeu transposio da directiva 2004/35/CE, Ugo SALANITRO, Il risarcimento, cit., p. 949 (distinguindo entre danos provocados pela "actividade fisiolgica" da empresa autorizada s impendendo sobre o operador se a ttulo culposo , e danos provocados por acidentes recaindo sobre o operador em homenagem ao princpio do poluidor-pagador).

    27

  • as isenes fixadas no RPRDE "compensam" a ausncia de tectos

    indemnizatrios, no havendo assim violao da LBA? Hesitamos na

    resposta positiva.

    Acresce uma segunda reflexo, de carcter prtico: tendo em conta a

    obrigatoriedade suspensa at 2010 de constituio de garantias

    financeiras, ser difcil o surgimento, sem a fixao de limites, pelo menos

    de contratos de seguro. A resistncia responsabilidade ilimitada , como

    se observou de incio, o grande bice ratificao da Conveno de Lugano,

    em virtude da aleatoriedade que representa a contratao de um seguro

    contra riscos que facilmente adquirem uma magnitude extrema68. E mesmo

    no plano do financiamento a partir de fundos, o no plafonamento destas

    indemnizaes pode fazer sangrar perigosamente as reservas.

    ii) No caso de actividades no inscritas no Anexo III, nunca h responsabilizao a ttulo objectivo. Falha aqui a caracterizao da

    actividade como "tipicamente perigosa", o que a subtrai a este tipo de

    imputao. Trata-se aqui de operacionalizar o compromisso entre proteco

    do ambiente e no estrangulamento dos operadores econmicos. O Estado

    executa as medidas necessrias e suporta estes custos, financiando-se a

    partir do Fundo de Interveno Ambiental cfr. os artigos 17/1/b), 19/5

    e 23 do RPRDE.

    2.2.7. A obrigatoriedade de constituio de garantias financeiras

    O RPRDE estabelece um princpio de obrigatoriedade de constituio de

    garantias financeiras no artigo 22 o qual s ter valncia plena a partir

    de 1 de Janeiro de 2010 (artigo 34). S os operadores das actividades

    abrangidas pelo Anexo III esto vinculados a esta obrigao.

    As garantias podem assumir vrias modalidades (seguro; garantia

    bancria; participao em fundos ambientais ou outros) artigo 22/2.

    Obedecem ao princpio da exclusividade artigo 22/3. E podem sujeitar-

    se a limites mnimos, a fixar pelo Governo, atravs de portaria artigo 22/

    4. Sobre qualquer garantia financeira, obrigatria ou facultativa, incidir

    uma taxa no montante mximo de 1% do respectivo valor69, que reverter

    68 O plafonamento da responsabilidade chegou a ser sugerido no seio do Parlamento Europeu, mas no passou para a verso final da directiva cfr. Carole HERMON, La rparation..., cit., p. 1796.

    69 Montante concreto a determinar pelo Governo, por portaria (artigo 23/3 do RPRDE).

    28

  • integralmente a favor do Fundo de Interveno Ambiental (artigo 23/2 e 4

    do RPRDE).

    3. O regime de responsabilidade por dano ecolgico plasmado no DL 147/2008, de 29 de Julho: abordagem crtica

    At aqui, procedemos a uma "leitura" do RPRDE predominantemente

    descritiva. A autonomizao do dano ecolgico constitui, para ns, um

    enorme passo no sentido da afirmao do Direito do Ambiente enquanto

    ramo dedicado, no tutela de bens pessoais e patrimoniais, mas antes

    defesa e promoo de bens naturais. A perspectiva ampla de

    responsabilidade adoptada pelo RPRDE outro dos factores que nos agrada

    especialmente, uma vez que concretiza e refora a vertente do "dever de

    proteco do ambiente", consignada no artigo 66/1/2 parte, da CRP, mas

    normalmente ofuscada pela equvoca presena do "direito ao ambiente".

    H, no entanto, alguns pontos na regulao contida no RPRDE que

    merecem, mais que uma leitura, um comentrio menos favorvel.

    Seleccionmos quatro.

    3.1. O equvoco da "responsabilidade administrativa"

    O RPRDE est dividido por cinco Captulos: I. Disposies gerais; II. Responsabilidade civil; III. Responsabilidade administrativa; IV. Fiscalizao e regime contra-ordenacional; V. Disposies complementares, finais e transitrias. O sentido do Captulo III para ns uma incgnita.

    Veja-se que o artigo 2/1 do RPRDE estabelece a aplicao do regime de

    responsabilidade por dano ecolgico a "uma qualquer actividade

    desenvolvida no mbito de uma actividade econmica, independentemente

    do seu carcter pblico ou privado, lucrativo ou no" (itlico nosso). Ora, se

    a considerao da natureza pblica ou privada da actividade no releva,

    como explicar a insero de um captulo dedicado "responsabilidade

    administrativa"? No se pretende, seguramente, dispensar o recurso Lei

    67/2007, de 31 de Dezembro, regime da responsabilidade civil

    extracontratual do Estado e demais entidades pblicas, no domnio dos

    danos ecolgicos ao cabo e ao resto, o RPRDE inova quanto ao objecto e

    quanto execuo da obrigao de indemnizar, mas no dispensa as

    normas e modalidades de imputao especficas das entidades pblicas.

    29

  • Nem se almeja, decerto, excluir entidades privadas do mbito de aplicao

    do Captulo III isso equivaleria, mais do que a esvazi-lo, a

    descaracteriz-lo consideravelmente.

    Salvo melhor opinio e reflexo, julgamos que melhor teria sido o

    legislador no autonomizar o Captulo III, devendo ter referenciado o

    Captulo II pela epgrafe "Responsabilidade pela preveno e reparao de

    danos ecolgicos" (suprimindo-se os artigos 12 e 13)70, e criando uma

    seco I sobre responsabilidade civil, e uma seco II sobre

    responsabilidade contra-ordenacional. A referncia responsabilidade

    administrativa leva a crer que sobre as entidades administrativas que

    recaem todas as obrigaes de preveno e reparao, quando no nada

    disso que sucede. A responsabilidade primria do operador, embora as

    entidades competentes no se possam demitir das suas tarefas de

    preveno e reparao, substituindo-se-lhe, em caso de inaco. Os casos

    de interveno pblica (leia-se: das entidades com competncias de

    fiscalizao) directa so contados: em casos de urgncia; quando o operador

    incumpre as obrigaes de preveno e reparao que sobre si impendem;

    quando impossvel, por recurso aos critrios de causalidade enunciados,

    identificar o responsvel artigo 17/1.

    Num domnio em que de h muito se reclama a unificao do regime de

    responsabilidade71, a "limpeza" de conotaes (ainda que meramente

    formais) da responsabilidade por dano ecolgico com o regime da

    responsabilidade administrativa impor-se-ia. Num diploma dedicado ao

    dano ecolgico, no faz qualquer sentido sobretudo para ns, que no

    acreditamos na consistncia do "direito ao ambiente"72 a insero de um

    Captulo como o II, nem to-pouco a aluso "responsabilidade

    administrativa" na epgrafe do Captulo III. Perdeu-se uma oportunidade de

    destrinar claramente ambas as realidades de uma vez por todas, e

    agudizou-se o problema da eleio da jurisdio competente para se ocupar

    das questes relacionadas com "danos ambientais".70 Pode contraditar-se, certo, com a observao de que a preveno de danos no

    cabe no conceito de "responsabilidade civil" (que exige a verificao de um dano). No entanto, melhor seria assumir, na lgica especfica do dano ecolgico, um conceito amplo de responsabilidade, abarcando as vertentes preventiva e reparadora, do que criar a iluso (e confuso) de que o Captulo III constitui um novo regime de responsabilidade administrativa.

    71 Cfr. Vasco PEREIRA DA SILVA, Responsabilidade administrativa em matria de ambiente, Lisboa, 1997, max. pp. 13-16.

    72 Para a demonstrao cabal das razes desta descrena, veja-se o nosso Risco e modificao..., cit., pp. 25 segs, max. 111 segs.

    30

  • 3.2. A deficiente previso dos casos de actuao directa para preveno e reparao de danos ecolgicos

    Constituindo a preveno e reparao de danos ecolgicos uma tarefa

    ineliminvel das entidades pblicas (artigos 9/e) e 66/2 da CRP), certo

    que esta obrigao se reparte com os operadores econmicos e demais

    sujeitos, uma vez que sobre estes impende identicamente um dever de

    proteco do ambiente (artigo 66/1 da CRP). O RPRDE impe aos

    operadores operadores econmicos e outros, no caso da imputao

    subjectiva a obrigao de executar e custear as medidas preventivas e

    reparatrias motivadas pela necessidade de fazer face a danos e ameaas de

    danos ecolgicos resultantes da sua actividade. isto que resulta da regra

    geral extrada dos artigos 13/1, 14/1 e 15/1/b) e c) do RPRDE. Em

    contrapartida, as hipteses de danos provocados por operadores no

    identificados; as situaes de extrema urgncia de actuao; e sempre que o

    operador no cumprir as obrigaes de reparao necessrias, ficam

    entregues, "em ltimo recurso", iniciativa da entidade pblica competente.

    Estas hipteses de "actuao directa" esto previstas no artigo 17 do

    RPRDE, norma que peca a vrios ttulos:

    i) Em primeiro lugar, contm uma previso de execuo subsidiria na

    alnea a) do n 1. A execuo subsidiria coloca-se, nos termos do artigo

    157/1 e 2 do CPA, nos casos de prestaes fungveis e sempre que o

    devedor/operador no cumprir o prazo estabelecido para o cumprimento no

    acto de execuo73. Contendo os artigos 14/5/d) e 15/3/f) do RPRDE

    normas de habilitao de execuo subsidiria de obrigaes de preveno e

    reparao, respectivamente, a norma contida no artigo 17 , no s

    deslocada, como desconexa e intil;

    ii) Em segundo lugar, o n 2 fala em dispensa