dançando o pesar do mundo

8
Psicologia & Sociedade; 20 (3): 323-330, 2008 323 DANÇANDO O PESAR DO MUNDO Patrícia Spindler e Tania Mara Galli Fonseca Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil RESUMO: Este artigo objetiva pensar as formas mais recentes de viver no mundo, tomando os sujeitos como efeitos de múltiplos desdobramentos produzidos em torno da experiência do viver. Para isso, utiliza a dança contemporânea como mediadora, relacionando-a com certos modos de viver no contemporâneo. É por essa esteira que o leitor é convidado a traçar um caminho por algumas vias que permeiam o plano no qual estamos inseridos, o contemporâneo. No decorrer dessa viagem, encontramos o dançar. Esse movimento se insere na trajetória da dança contemporânea, permitindo-nos deparar com a possibilidade de fazer uso dessa experiência como auxílio para continuar pensando o contemporâneo como ponto-chave da problematização. PALAVRAS-CHAVE: corpo; dança; contemporaneidade. DANCING THE SORROW OF THE WORLD ABSTRACT: This article aims at thinking the most recent ways of living in the world, considering the subjects as effects of multiple fractions produced around the living experience. For that, it uses the contemporary dance as an intermediary, relating it to certain ways of living in the contemporaneity. Through this course, we invite the reader to trace a path through some ways that permeate the plan in which we are inserted, the contemporaneity. As this trip goes on, we find the dance. This move is inserted in the trajectory of contemporary dance, allowing us to face the possibility of using this experience as an aid to keep thinking the contemporaneity as the key point of the problem. KEY WORDS: body, dance, contemporaneity. Para pensar nossas mais recentes formas de viver o mundo, precisamos visibilizar o que nos compõe, o que está ao nosso redor, percebendo-nos uma forma- efeito das dobraduras que compõem nosso feitio. O pen- sador Ítalo Calvino (1990) nos adverte que estamos cor- rendo o perigo de perder a capacidade de pensar por imagens, ou seja, de dar visibilidade aos nossos pensa- mentos, uma vez que estamos sobrecarregados de ima- gens clichês e em nosso pensamento predomina o discursivo intencional, impedindo novas estilísticas e no- vas fabulações. Gostaríamos de iniciar através da problematização do que chamamos de contemporâneo. Este se refere a um tempo que não é somente um aqui e agora, tampouco um determinado período histórico. Diz respeito a um modo de habitar o mundo nas suas mais diversas com- posições espaço-temporais, onde se criam ontologias e epistemes que abrem o leque de experiências possíveis. Pesar do Mundo Música de José Miguel Wisnik e Paulo Neves pesar de tudo pesar de peso pesar do mundo sobre si mesmo pesar de nuvem pesar de chumbo pesar de pluma pesar do mundo desponta estrela no vão imenso por ti suspenso à tua espera tudo se afronta

Upload: vini-escobar

Post on 15-Nov-2015

2 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Este artigo objetiva pensar as formas mais recentes de viver no mundo, tomando os sujeitos como efeitosde múltiplos desdobramentos produzidos em torno da experiência do viver. Para isso, utiliza a dança contemporâneacomo mediadora, relacionando-a com certos modos de viver no contemporâneo.É por essa esteira que o leitor é convidado a traçar um caminho por algumas vias que permeiam o plano no qualestamos inseridos, o contemporâneo. No decorrer dessa viagem, encontramos o dançar. Esse movimento se inserena trajetória da dança contemporânea, permitindo-nos deparar com a possibilidade de fazer uso dessa experiênciacomo auxílio para continuar pensando o contemporâneo como ponto-chave da problematização.

TRANSCRIPT

  • Psicologia & Sociedade; 20 (3): 323-330, 2008

    323

    DANANDO O PESAR DO MUNDO

    Patrcia Spindler e Tania Mara Galli FonsecaUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil

    RESUMO: Este artigo objetiva pensar as formas mais recentes de viver no mundo, tomando os sujeitos como efeitosde mltiplos desdobramentos produzidos em torno da experincia do viver. Para isso, utiliza a dana contemporneacomo mediadora, relacionando-a com certos modos de viver no contemporneo.

    por essa esteira que o leitor convidado a traar um caminho por algumas vias que permeiam o plano no qualestamos inseridos, o contemporneo. No decorrer dessa viagem, encontramos o danar. Esse movimento se inserena trajetria da dana contempornea, permitindo-nos deparar com a possibilidade de fazer uso dessa experinciacomo auxlio para continuar pensando o contemporneo como ponto-chave da problematizao.

    PALAVRAS-CHAVE: corpo; dana; contemporaneidade.

    DANCING THE SORROW OF THE WORLD

    ABSTRACT: This article aims at thinking the most recent ways of living in the world, considering the subjects aseffects of multiple fractions produced around the living experience. For that, it uses the contemporary dance as anintermediary, relating it to certain ways of living in the contemporaneity.

    Through this course, we invite the reader to trace a path through some ways that permeate the plan in which we areinserted, the contemporaneity. As this trip goes on, we find the dance. This move is inserted in the trajectory ofcontemporary dance, allowing us to face the possibility of using this experience as an aid to keep thinking thecontemporaneity as the key point of the problem.

    KEY WORDS: body, dance, contemporaneity.

    Para pensar nossas mais recentes formas de vivero mundo, precisamos visibilizar o que nos compe, oque est ao nosso redor, percebendo-nos uma forma-efeito das dobraduras que compem nosso feitio. O pen-sador talo Calvino (1990) nos adverte que estamos cor-rendo o perigo de perder a capacidade de pensar porimagens, ou seja, de dar visibilidade aos nossos pensa-mentos, uma vez que estamos sobrecarregados de ima-gens clichs e em nosso pensamento predomina odiscursivo intencional, impedindo novas estilsticas e no-vas fabulaes.

    Gostaramos de iniciar atravs da problematizaodo que chamamos de contemporneo. Este se refere aum tempo que no somente um aqui e agora, tampoucoum determinado perodo histrico. Diz respeito a ummodo de habitar o mundo nas suas mais diversas com-posies espao-temporais, onde se criam ontologias eepistemes que abrem o leque de experincias possveis.

    Pesar do Mundo

    Msica de Jos Miguel Wisnik e Paulo Neves

    pesar de tudo

    pesar de peso

    pesar do mundo

    sobre si mesmo

    pesar de nuvem

    pesar de chumbo

    pesar de pluma

    pesar do mundo

    desponta estrela

    no vo imenso

    por ti suspenso

    tua espera

    tudo se afronta

  • 324

    Spindler, P. e Fonseca, T. M. G. Danando o pesar do mundo

    pedra com pedra

    a prpria onda

    quando se quebra

    a melodia

    onde me leva

    onde alivia

    onde me pesa?

    tudo se agita

    durante a queda

    o que sustenta

    a nossa Terra?

    e nesse quando

    somente um ritmo

    peso e balano

    um som legtimo

    cano sem medo

    de voc para mim

    meu segredo

    te rezo assim:

    desde o princpio

    ao ponto cego

    eu arremesso

    um eco sem fim.

    Uma das experincias contemporneas dar con-ta do pesar do mundo sobre si mesmo que os compo-sitores ressaltam na letra da msica transcrita acima. Algoneste tempo pesa e gera, com isto, padecimentos. O quese pode perceber que, para ser leve no contemporneo, preciso tolerar um certo peso. Importncia que no pouca quando se fala em tempos de mltiplas variedadesdos modos de viver, de consumir, de controlar.

    O controle do peso corporal objetivando o leve uma obsesso contempornea sem precedentes. Ao mes-mo tempo em que muitas adolescentes morrem pelo pesoda magreza ordenada pela boa forma exigida estetica-

    mente, o aumento de peso ameaa a aproximao da obe-sidade de maneira cada vez mais certeira.

    A leveza subjetiva do viver, como aponta a msica,est inscrita no paradoxo do peso do chumbo e da plu-ma, da nuvem e do mundo. O etreo e o concreto,contrapontos que denotam a inconsistncia da leveza e adurabilidade do slido. Peso que se encontra em ambasas pontas deste n, ponto cego... um eco sem fim,acelerando o tempo e podendo nos impedir, ou dificultarmuito, a possibilidade de sermos mais light. No toaque as prateleiras dos supermercados esto repletas deprodutos desse tipo para serem ingeridos. Estilo de vidadiet-light, algo que pesa numa proporo muito maior eveloz que a produo da leveza, pois esta se produz deoutras formas, por outros caminhos que balanam numritmo que ora quebra e queda, ora suspende e sustenta.

    Seguindo com Calvino (1990), entre os valorescaros que anuncia para o nosso novo milnio, a leveza um a que ele atribui estimada importncia. Para o literato,ela necessria para suportar o insustentvel peso doviver. H uma necessidade de anular o peso material dacorporeidade para se juntar com a velocidade e prometeracesso a um nvel que modifica a realidade como possi-bilidade de felicidade. Quanto mais leve, mais veloz. Quantomais veloz, mais alternativas do leque podem ser percor-ridas. Ou seja, todas essas perspectivas presentes no socialpesam no corpo, pois este tambm est inserido e, aomesmo tempo, sendo construdo por este conjunto deatravessamentos que compem este momento histrico.

    De outra maneira, o socilogo Zygmunt Bauman(2001) descreve a passagem do capitalismo pesado parao capitalismo leve marcado pelo fordismo, que era, maisdo que tudo, uma engenharia social orientada pela or-dem. O fordismo era a autoconscincia da sociedademoderna em sua fase pesada, volumosa, ou imvele enraizada, slida... O capitalismo pesado era obce-cado por volume e tamanho, e, por isso, tambm porfronteiras, fazendo-as firmes e impenetrveis (p. 69). Afbrica fordista reduziu as atividades humanas a movi-mentos simples, rotineiros, predeterminados, para seremseguidos mecanicamente, sem qualquer espontaneidadee iniciativa. A burocracia, o panptico e o Grande Irmofaziam o controle numa tentativa totalitria de nada dei-xar passar, principalmente na fronteira entre o dentro e ofora da fbrica.

    Conforme Bauman, a modernidade pesada foi a erada conquista territorial; o progresso significava tamanhocrescente e expanso espacial. O tempo mtrico darotinizao precisava ser amansado para que o espaotambm fosse controlado. A solidez da modernidade dohardware encorpou os lugares, tornando-os, simultanea-mente, viveiro, fortaleza e priso.

    No entanto, a mudana na histria moderna do tem-po, da era do hardware para a era do software, traduziu-

  • Psicologia & Sociedade; 20 (3): 323-330, 2008

    325

    se numa nova irrelevncia do espao, disfarada de ani-quilao do tempo. O software substituiu o hardware nacentralidade da cena contempornea. Da mesma manei-ra, a instantaneidade descreve a modernidade leve e lqui-da, como tambm constatou Bauman. A leveza, a agilida-de e a velocidade, portanto, passaram a preponderar notempo como atributos que levavam ao controle e ao co-mando das estratgias no processo de globalizao daeconomia na modernizao do mundo.

    Um mundo que se transformou no Imprio doEfmero em suas mais diferentes experincias, confor-me Gilles Lipovetsky (1989). Pois, a

    forma moda que se manifesta em toda sua radicalidadena cadncia acelerada das mudanas de produtos,na instabilidade e na precariedade das coisas indus-triais. A lgica econmica realmente varreu todo ide-al de permanncia, a regra do efmero que governaa produo e o consumo dos objetos. Doravante, atemporalidade curta da moda fagocitou o universoda mercadoria, metamorfoseado, desde a SegundaGuerra Mundial, por um processo de renovao e deobsolescncia programada propcio a revigorarsempre mais o consumo (p. 160).

    Ou seja, toda essa acelerao criou a sociedade doconsumo, que insere o cotidiano na pragmtica do com-prar, reciclando-o em kits e servios expressos. Um tem-po contrado, em que tudo acontece com uma rapidezque cada vez mais se potencializa, fazendo coexistiremos tempos mltiplos. Percebe-se isso na moda, nos com-portamentos, nos objetos, no design do contemporneo.Ao contrrio de querer homogeneizar essa diversidade,pretende-se mostrar o quanto nossos ltimos anos fo-ram transformadores tomando um carter mltiplo, com-plexo, rpido, e, tambm, ambguo, vago, plstico.

    Calvino (1990) tambm pontua a multiplicidadecomo elemento necessrio para pensar o contempor-neo. Para ele, o mundo um sistema de sistemas, emque cada sistema particular condiciona os demais e condicionado por ele. Portanto, uma complexidade in-trnseca que no permite achar concluses, pois vai fa-zendo seu traado de maneira a esquivar-se, multiplican-do os detalhes ao infinito.

    Afina-se com Calvino Lipovetsky (1989), quandopensa a forma moda como o sistema das pequenas dife-renas multiplicadas, engendrando universos de produ-tos microdiferenciados. Portanto, o processo de renova-es constantes produz a busca pelo novo, transitorieda-des, frivolidades, flexibilidades, efemeridades,instantaneidades que fazem do tempo um click do mouse.Assim tambm instabilidade, precariedade,vulnerabilidade, insegurana fazem parte do rol das expe-rincias contemporneas. Nesse contexto, h um panode fundo chamado liberdade individual, que se tenta al-canar a qualquer preo, pois promete infinitas possibili-

    dades. Com isso, a agonia da escolha parece ser um dosvilos do contemporneo, tambm porque no h tempopara perder na eleio de alternativas, mas, muitas vezes,acaba-se vivendo exatamente a, nesse processo daambivalncia da escolha. A vida paradoxal joga os sujei-tos de um lado ao outro, num disparate de movimentos.

    Fazemos uma tentativa de no confundir essas di-ferenas multiplicadas em renovaes constantes, queos autores que nos auxiliam a enxergar com maior visibi-lidade o contemporneo nos prescrevem, com o queBergson (1964) e Simondon (2003) discorrem sobre adurao do ser e a individuao do vivo. Processos estesque no param de acontecer na ordem da vida. Porm aquesto referida por esses autores no ser trabalhadanesta ocasio. O esforo que se est fazendo aqui paratentar pontuar esses processos como diferentes justa-mente porque tambm se entende que estas questes daevoluo do vivo se confundem com as experinciascontemporneas, potencializando essas vivncias comoum disparate de movimentos efmeros. No entanto, es-ses so sintomas do nosso tempo, onde o capitalismocafetina o desejo, decalcando-o, competindo em paralelocom a evoluo da vida nua, esta sim criadora.

    Vivemos em templos de consumo, com ou semmuros, como shoppings, lojas, nossas prprias casasservindo para comprar pela televiso, telefone, internet,ou circulando por onde passamos num comrcio a cuaberto. Uma cultura de cassino, como disse GeorgeSteiner (conforme citado por Bauman, 2001), em que oxtase d a ordem, para que a auto-satisfao instantneaseja constante e irrefletida. Porm, tanto a chegada dasatisfao quanto sua partida esto fazendo presso natransitoriedade do tempo.

    As pessoas querem o mundo de maneira completaporque buscam a construo da identidade como umaimagem de lgica harmnica e consistente, para no ve-rem a terrvel fluidez logo abaixo do fino envoltrio daforma (Bauman, 2001, p. 97). Isso acaba gerando umaintensa angstia, que leva experincia de desestabilizaoconstante vivida no contemporneo. As infinitas possibi-lidades do suposto mundo completo geram movimen-tos ininterruptos, ora contnuos, ora descontnuos, quefazem da rapidez de incorporar esses processos a chancede inventar um ritmo de sobrevivncia.

    Busca-se a identidade no imediatismo do tempo, natentativa de no sentir os colapsos provocados pela ex-perincia contempornea. Por outro lado, a vida provo-ca, o tempo inteiro, microcolapsos imanentes ao vivo.Francisco Varela (2003) fala de microidentidades queso uma espcie de prontido-para-ao adequada paracada situao especfica vivida. Estas microidentidadespossuem uma situao correspondente que o autor cha-ma de micromundos, ambos construdos historicamen-te. Porm, ele salienta que as maneiras novas de se com-

  • 326

    Spindler, P. e Fonseca, T. M. G. Danando o pesar do mundo

    portar e as transies entre uma ao pronta e outracorrespondem a microcolapsos que sofremos constan-temente, numa rapidez que parece estar em constanteacelerao. Talvez por isto, a vida humana contempor-nea tornou fundamental a experincia das grandes velo-cidades, pois nesse ritmo pode-se tentar fazer com queesses microcolapsos no sejam sentidos e, paradoxal-mente, tambm podem gerar sensaes que provoqueme salientem os colapsos ainda mais.

    Para o pesquisador Christian Pociello (1995),a vertigem, a velocidade, o mergulho, a queda, osdesequilbrios de todas as espcies reforam o ilinx1esportivo, renovando-o. Eles delimitam um universoldico que curiosamente faz das sensaes de insta-bilidade uma fonte de prazer, e das desordens que elasprocuram uma espcie de busca paradoxal (p. 118).

    Este autor ressalta que o paradigma de todas asdificuldades a libertao do peso, mesmo que por uminstante. Essas sensaes so muito ilustradoras do con-temporneo e talvez da passagem ps-modernidade.Fala-se da fluidez que sustenta o tempo em curto prazoda montagem e desmontagem do mundo, assim como seusa a metfora do surfar e do danar para dizer que sevive hoje no capitalismo leve. Essas metforas so bemescolhidas, de acordo com Bauman (2001), pois suge-rem falta de peso, leveza e facilidade de movimentos.Mas o socilogo ainda afirma,

    no h nada de mole na dana ou no surfe dirios.Danarinos e surfistas, e especialmente os que vi-vem na pista do salo de baile lotado ou na costabatida por altas ondas, precisam ser duros, e nomoles. E so duros como poucos de seus prede-cessores, capazes de ficar parados ou mover-se emtrilhas claramente marcadas e bem mantidas, jamaisprecisaram ser. O capitalismo software no menosfirme e duro que seu ancestral hardware. E lquidono quer dizer mole. Basta pensar no dilvio, numainundao ou na ruptura de um dique. (p. 251)

    O contemporneo, portanto, pode ser adjetivadopor caractersticas como multiplicidade, complexidade,rapidez, ambigidade, paradoxal, difuso, incerto, cati-co, plstico. No se quer, aqui, fazer um mapeamentodos valores contemporneos para apreender o bom e omal, mas pensar alguns desses atributos que sovivenciados nas prticas deste tempo, para alm do beme do mal.

    Dar formas ao vivo nestes tempos uma arte deviver no labirinto ou na corda bamba como equilibrista.As formas, portanto, so breves. E no queremos nosopor a estas brevidades; pelo contrrio, nelas que pre-cisamos operar, desacelerando um pouco para que pos-samos pensar, inventar, sem sair do fluxo no qual estamosimersos. Pois neste ponto que nos encontramos, vive-

    mos e, portanto, deste lugar que podemos nos apropri-ar para ocup-lo ou tambm mud-lo.

    As mudanas da danaIntencionamos continuar utilizando o danar para

    prosseguir problematizando o contemporneo. Ser atra-vs de lentes de cristais que devemos olhar a dana con-tempornea: como um prisma que se abre em mltiplascores. Ou seja, no podemos pensar nem ler essa mo-dalidade artstica com um bloco homogneo. Muito pelocontrrio, a dana contempornea foi se fazendo de umamaneira to mltipla, que as suas formas divergem bas-tante, podendo dizer que fazem parte de movimentos bemdiferentes. Seus criadores e bailarinos foram dando mui-tas caras dana que surgiu, de maneira geral, na tenta-tiva de se libertar dos padres rgidos do bal clssico.Para a pesquisadora de dana Ciane Fernandes (2002),o incio do sculo XX apresentou uma revoluo estti-ca que rompeu a barreira entre as artes em movimentoscomo o Dada e a Bauhaus, originando a dana modernacomo uma rebelio contra o tecnicismo do bal clssico(p. 36). Foram muitas formas de danar que surgiram apartir desses rompimentos que foram se fazendo poss-veis em funo de movimentos maiores que se davamnas artes em geral.

    No entanto, a dana moderna, mesmo criada comobjetivos contestatrios, na tentativa de sustentar umaarte mais livre, foi se desenvolvendo com cautela ao lon-go do conservadorismo poltico e artstico da guerra fria,que, nos anos 40 e 50, se travava tambm com o bal.Houve, ento, uma crescente especializao e aprimora-mento tcnicos, na medida em que a dana moderna fa-zia seu processo de criao e institucionalizao.

    Nos anos 60, novamente os artistas buscaram ex-pandir as fronteiras entre as artes, rebelando-se contra omodernismo, gerando uma multiplicao das correntesda dana ps-moderna. Este movimento da contraculturana dcada de 60 foi mundial, ocorrendo em parte signifi-cativa da juventude, que, conforme a psicanalista SuelyRolnik (2001), fez eclodir na subjetividade da geraonascida no ps-guerra um incontornvel movimento dodesejo contra a cultura que se separou da vida, na direode reconquistar o acesso ao corpo vibrtil como bssolade uma permanente reinveno da existncia (p. 319).Com relao dana, isso foi marcante no que diz respei-to evidncia que tomaram as diferenas entre o bal e adana moderna. Para a autora que pesquisa histria dadana, Maribel Portinari (1989),

    houve de tudo em nome da vanguarda, do melhor aopior. Estava em cena a contestao. Danou-se poispara protestar a guerra no Vietn, contra o racismo,contra o sexismo, contra o establishment. E para ce-lebrar a paz, o amor livre, o culto do corpo. Certosespetculos foram autnticos happenings consagran-

  • Psicologia & Sociedade; 20 (3): 323-330, 2008

    327

    do intelectuais, artistas, hippies. Alguns coregra-fos declararam-se a favor do consumo de drogas paraaguar a inspirao e a percepo (p. 161).

    Estes diversos movimentos sociais, polticos e ar-tsticos multiplicavam-se a todo instante, sendo interrom-pidos e novamente inaugurados de diferentes maneiras.Nas artes, isso ocorria medida que os artistas experi-mentavam uma liberdade para criar que foi vivenciadapelas frentes precursoras dos movimentos crticos dasociedade, que geraram no uma nica e grande mudan-a global, mas mltiplas transformaes nas diferentestramas das experimentaes possveis.

    Nos Estados Unidos, vrios espaos como peque-nos teatros de aluguel barato, salas de associao de bair-ro, ptios de escolas e igrejas, museus, praas, estdios,praias, foram palcos de danas de esprito libertrio, quetentavam criar outras formas de se manifestar artistica-mente. Foi no auditrio da igreja protestante JudsonMemorial, no Greenwich Village, em Nova York, quemuitos grupos e coregrafos experimentaram uma sriede trabalhos inusitados para a poca. Alguns que por aliestiveram foram: Merce Cunningham, Twyla Tharp,Trisha Brown, David Gordon, Jennifer Muller, StevePaxton, Douglas Dunn, Meredith Monk, Yvonne Rainer,Elizabeth Keen, Simone Forti, James Waring, Rudy Perez,Lucinda Childs, Karole Armitage. Teve de tudo, inclusiveuma antidana ou no-dana liderada por Deborah Hay,que usava artistas instantneos ou pessoas no-inicia-das, que no necessitavam de uma tcnica para danar.Na dana moderna made in USA, esteve presente adana aleatria, que normalmente no era executada nopalco, mas no mesmo nvel do cho e em meio ao pbli-co, em lugares como galerias de teatro, universidades,etc., numa tentativa de se colocar no mesmo plano dequem passava junto aos bailarinos, sem diferenciar unsdos outros. De acordo com Paul Bourcier (2001), a re-presentante mais caracterstica desta nouvelle dansefoi Twyla Tharp, junto com Merce Cunningham, quebuscava composies formadas por seqncias muitoelaboradas, mas que podem se sobrepor umas s outras,suceder-se em encadeamentos no obrigatrios (p. 286).A post modern, escola americana mais jovem, tambmera guiada pelo acaso, sendo priorizados os elementosbrutos do movimento como girar, no lugar ou no, an-dar, correr, saltar em eixos repetitivos. Era a improvisa-o e a eventualidade que ditavam as regras, se que sepode dizer que havia regras. Conforme Bourcier (2001),

    para estes inovadores, trata-se de provocar nos exe-cutantes estados psicossomticos que podem atin-gir o espectador que os arranque s noes restri-tivas da vida cotidiana. Isto implica naturalmente aparticipao voluntria do pblico a seu condiciona-mento mental. o retorno dana bruta. Esta ten-dncia pode ser encontrada, mais ou menos marcada,

    em todos os danarinos americanos, de qualquer for-mao. Todos procuram, sem saber design-lo, o es-tado dionisaco. Assim, o crculo se fecha e a danavolta a seu papel primitivo de transe sagrado. (p. 287)

    Espetculos multimdia faziam furor. Bailarinos commacaces esportivos danando sem msica, intrpretesliteralmente subindo pelas paredes, como, por exemplo,a pea Walking on the Wall, de Trisha Brown. A misturade bailarinos com esqueletos de animais, cactos, espan-talhos, como quadros vivos inspirados em pintores comoGergia OKeeffe, em outra obra de Trisha Browndanada na Sonnabend Gallery de Nova York. Conte-dos erticos com pinceladas sadomasoquistas misturan-do o clssico com o punk. Simples movimentos comocaminhar, sentar, levantar, deitar, que, executados em con-junto, ressaltavam as diferenas entre cada executante.Espetculos que procuravam focalizar uma viso poticada cincia, salientando estgios do pensamento que flu-em entre contemplao do cosmo e jogos corporais. E,ainda, obras coreogrficas usando culos especiais parao emprego de laser, gerando efeitos visuais como se fos-se um filme de fico cientfica.

    Nessa multiplicidade, por mais de dez anos a van-guarda da dana nos Estados Unidos foi comandada pelomovimento da Judson Memorial, que, de acordo comPortinari (1989), entre

    incontveis propostas e resultados desiguais, algunsse tornaram menos radicais com o correr do tempo esucesso conquistado, outros acharam mais cmodoaderir ao establishment a fim de obter subvenespara seus grupos, havendo igualmente aqueles quedesapareceram sem deixar rastros (p. 161).

    A dana ps-moderna norte-americana foi se tor-nando tcnica e especializada, de acordo com Fernandes(2002), exigindo que se fizesse uma maior reflexo arespeito das relaes, at ento dicotmicas, entre a es-pecializao e a abrangncia artstica, a tcnica e a im-provisao.

    Nesse sentido, a dana contempornea teve umasrie de movimentos que se bifurcavam, ora desapare-cendo, ora reaparecendo, mas, de qualquer maneira,gerando diferentes caminhos que se institucionalizavamem territrios mais fixos e tambm sedesinstitucionalizavam ou se desterritorializavam, trans-formando-se numa heterogeneidade caracterstica desseperodo de efervescncia social. Isto, de alguma manei-ra, no foi somente uma caracterstica no processo dadana, mas das artes em geral. Enquanto alguns grupossurgiam, bailarinos despontavam como coregrafos, vin-culando-se a uma nova formao, que estava disposta atrabalhar com a proposta que de alguma maneira procu-rava se diferenciar, movimentando o cenrio hbrido evariado da dana contempornea.

  • 328

    Spindler, P. e Fonseca, T. M. G. Danando o pesar do mundo

    A dana contempornea foi se fazendo num pro-cesso que provocou o desmantelamento das formas,desterritorializaes, uma capacidade de fazer agitar onovo, de gerar uma movimentao desconhecida. Se-gundo Launay e Ginot (2003),

    se ainda pode-se ver a dana contempornea comoarte ou prtica minoritria, ela tambm tem a sorte deser, hoje, ao contrrio do que seria uma prtica deelite, o lugar de um pensamento consoante com aspolticas de minorias que tentam fazer arte, e poltica,de modo diferente. Pela proliferao de suas prticasartsticas e de seus grupos de reflexo, ela no semanteve alheia emergncia de diversos movimen-tos sociais em todas as reas da vida poltica, queresolveram opinar tanto sobre assuntos que lhes di-zem respeito quanto sobre assuntos alheios (desdeas associaes ligadas luta anti-mundializao, atos ecologistas radicais, ou mesmo a luta contra ostransgnicos, a do ativismo feminista americano, ouainda os grupos de ao contra a AIDS).

    Mas ao que propriamente a dana contemporneavoltava-se contra? Essa dana se construiu, por todos osseus meios, na tentativa de elaborar uma crtica ao per-odo vigente. Sua inteno, com maior ou menor consci-ncia, era ir contra os padres ideais estabelecidos nasociedade para o controle dos modos de viver dos ho-mens e mulheres que queriam buscar suas prprias pos-sibilidades de vida e que, muitas vezes, eram impedidos.A dana contempornea queria ir contra a captura da vida,para resistir aos moldes universais que forosamente eramcriados para ser incorporados e para que a vida, digamosassim, fosse ditada fora da singularidade e do desejo.

    A definio da dana contempornea constitui-seem grande discusso, uma questo central para o dom-nio artstico; por isso nos propusemos a conhec-la umpouco mais. A dana contempornea no deixou de ser,de certa forma, um territrio onde vale tudo, como pas-sos e movimentaes das mais diferentes tcnicas avali-adas por especialistas de toda ordem. Ainda h confusoem torno do que seja esta tal de dana contempornea,conforme Airton Tomazzoni (2005) ressalta como ttulodo seu artigo. Para esse pesquisador e coregrafo, adana contempornea evidencia que escolhas estticasrevelam posturas ticas. Numa poca de tantas barbriesimpostas ao corpo, preciso recuperar esta tica quandose escolhe fazer arte com o corpo seja o seu, seja (prin-cipalmente) o dos outros. Para o autor, quatro fatosauxiliam a identificar a dana contempornea ou, ao me-nos, a diferenci-la do que ela no . O primeiro que adana contempornea um jeito de pensar a dana, emque cada projeto coreogrfico tem que forjar seu suportetcnico e fazer escolhas coerentes. Sendo assim, ela no somente uma escola ou um tipo de aula. O segundofato que no h modelo ou padro de corpo ou de mo-

    vimento e, por isso, na dana contempornea pode-sereconhecer a diversidade e estabelecer o dilogo commltiplos estilos, linguagens e tcnicas de treinamento.No h corpos que so eleitos como os melhores paraessa tcnica. Todo corpo instrumento dessa dana. Jo terceiro fato constitui que a dana contempornea rea-firma a especificidade da arte da dana, ou seja, danano teatro, nem cinema, nem literatura, nem msica,mesmo se enriquecendo muito com a contribuio des-tas artes. Mas dana dana. O corpo em movimentoestabelece sua prpria dramaturgia, sua musicalidade, suashistrias, no precisando de mensagens ou mesmo detrilha sonora. O quarto e ltimo fato compreendem o queproclamou Yvone Rainer quando a dana ps-modernanorte-americana abalava o establishment: the mind is amuscle. Neste sentido, Tomazzoni afirma que o pensa-mento se faz no corpo e o corpo que dana se faz pensa-mento. Da mesma forma que Helena Katz (2005) apontano prefcio do seu livro, quando se entende a danacomo um pensamento do corpo, este o primeiro ganho:consegue-se diferenci-la de todas as outras construesque um corpo faz com o movimento (pp. 2-3).

    A dana contempornea conta com um perodofrtil da sua histria de revolues na poca produtiva demovimentao social das dcadas de 60 e 70, em que seforam criando diversas linhas, que ganharam vrios no-mes, gerando muitas rupturas e tambm aproximaesou reaproximaes dentro do prprio movimento da danacontempornea. Na tentativa de evidenciar a multiplicidadegerada naquele momento fecundo, muitos nomes foramdados s diferentes correntes que ali surgiam ou que seconfiguravam ento, de outras maneiras, tais como: dan-a moderna, nova dana, dana ps-moderna, espao-dana, dana-teatro etc. De qualquer maneira, essas dis-tintas linhas da dana contempornea surgiam como con-testao ao rigor e s convenes do bal. Para as pes-quisadoras de dana Aline Hass e ngela Garcia (2003),a dana moderna surge

    como necessidade de ser uma arte que promovesse eprovocasse a liberdade e a explorao total do corpoa partir de temas abstratos ou concretos; com o des-pertar do homem para sua prpria natureza, diversifi-cando novas tcnicas corporais e linhas coreogrfi-cas que iam ao encontro das necessidades de ex-pressar acontecimentos de sua poca, seus prpriossentimentos e no apenas de personagens fictcios; a dana da libertao do corpo e de seus movimen-tos; a dana que retrata todas as experincias vitaisda sociedade e dos seres humanos, em que, maisuma vez, esses esto engajados e conscientes nomundo em que vivem (p. 101).

    Para fins deste estudo, considera-se que a danacontempornea no somente o nome de todas as formasde danas existentes hoje (a dana no ou do contempor-

  • Psicologia & Sociedade; 20 (3): 323-330, 2008

    329

    neo), mas principalmente, nos objetivos que aqui cabem, uma das suas modalidades que podemos tambm chamarde dana ps-moderna. Estas definies, ou melhor, estesnomes, ainda carecem de maior pesquisa e esclarecimen-tos, pois suas conceituaes no esto suficientementeclaras na bibliografia referente ao assunto. Talvez isto sedeva ao fato do que Lia Robatto (1994) salienta na suaprpria concepo de dana contempornea:

    as danas contemporneas, participantes que so deum processo em constante renovao, no podem seramarradas em conceitos estticos de uma esttica comestilo formal, passos e posies corporais determina-dos. Cada smbolo gestual ou movimento puro quesurge criado para apenas aquela determinada obracoreogrfica e, pelo fato de ser nico e original, ter,fatalmente, uma denominao inventada, de uso res-trito ao trabalho em processo. Um seu eventualreaparecimento em outras circunstncias, conforme oseu novo significado, poder vir a ter at mesmo umadenominao diversa (pp. 25-26).

    Fala-se ento, da dana contempornea no comoum bloco nico e homogneo, mas como movimento quefaz bifurcar diferentes linhas que evidenciam a multiplicidadedos modos de danar durante o ltimo milnio. De manei-ra geral, pretende-se tomar a amplitude dos movimentosda dana contempornea, que marcaram cada vez maisseu espao no social, demandando a possibilidade de ado-tar o gesto como uma ferramenta expressiva do corpo epara o corpo. Discute-se, aqui, uma dana que se prope anovas criaes, que so prprias de cada contexto e so,portanto, singulares e minoritrias, funcionando na lgicada inveno, da experimentao, na criao de elementosestticos e expressivos para dar conta do movimento finito-ilimitado da vida.

    De forma anloga a essas maneiras singulares daexpanso da dana contempornea, o conceito est paraa filosofia nos movimentos do pensamento de GillesDeleuze e Felix Guattari (1992). Para fazer filosofia, deacordo com os autores, necessrio criar conceitos, ouseja, toda criao singular, e o conceito como criaopropriamente filosfica sempre uma singularidade (p.15). Conceitos que remetem a outros conceitos, ele uma heterognese, isto , uma ordenao de seus com-ponentes por zonas de vizinhana... uma intenso pre-sente em todos os traos que o compem (p. 32). Sointensidades em estado de sobrevo, que se assemelhamao procedimento do gesto e da coreografia quando estesse configuram numa possibilidade minoritria de atingir acriao e a expresso singular.

    Nas palavras de Hass e Garcia (2003),a dana contempornea, no aspecto coreogrfico,pode ser traduzida como dana que no se funde emregras, passos determinados, existentes, e tcnicaspr-estabelecidas ou fixas, embora possa ser influ-

    enciada por determinados princpios; uma danaque se cria e se elabora a partir de uma explorao demovimentos, gerada por uma enorme capacidade cri-ativa, cujo objetivo sempre a descoberta do ele-mento novo, esttico e condutor do que deseja ex-primir, expressar (p. 104).

    Podemos entender a dana contempornea de quese fala aqui, no como qualquer dana contempornea,mas a que cria o gesto minoritrio, ou seja, que faz de siuma dana menor. Por minoritrio entende-se a criao ouo devir potencial que desvia do modelo, qualquer que sejaseu nmero, conforme Deleuze e Guattari (1995). umavariao contnua, que busca sempre a fuga, mas no amorte. Ao contrrio do majoritrio que domina e umaconstante do Universal, que se pode dizer que gerenciaNingum, o minoritrio o devir de todo o mundo,que d passagem a componentes novos, sendo estrangei-ro na sua prpria lngua e compreendendo uma capacida-de muito maior de expressar os movimentos da criao.

    Seria como gaguejar na prpria lngua, inventar umalngua menor dentro da lngua maior. Deleuze e Guattari(1995) nos dizem: servir-se da lngua menor para porem fuga a lngua maior (p. 51), no fazendo desta ln-gua menor um dialeto ou novos guetos e regionalismos,pois no assim que nos tornamos revolucionrios,inventivos, mas utilizando muitos elementos de mino-ria, conectando-os, conjugando-os, que inventamos umdevir especfico autnomo, imprevisto (p. 53).

    nessa provisoriedade da dana contempornea quese pode ter uma contribuio para pensar a experinciasubjetiva contempornea, a sua relao com o corpo ecom a vida possvel de ser vivida no presente. Pensar umadana menor exige ressaltar as operaes de um modo desubjetivao que trabalha com a inveno a partir daimanncia e da experimentao, que rompe com o platni-co dualismo de gesto e corpo, emergindo um processo derisco que tenta incessantemente fazer da coreografia umprocedimento, um caminho para conseguir se expressar,fazendo tudo para que o corpo possa se expressar e ex-presse algo do seu impensado e do seu amrfico.

    O corpo desta dana menor no nunca pronto eacabado, mas permite dar passagem ao potencialincorporal que contm e pode possibilitar o aumento dasintensidades do campo sensvel. Criar esse corpo poten-cial suportar viver na liquidez das formas, deslizar nosfluxos, deixar rastros, inventando movimentos na danacomo prtica de fabricao do outramento.

    Esse o movimento de diferenciao da vida, ge-rador da subjetividade interessante de ser produzida. Oleve e o pesado, conforme j salientado no incio desteartigo, so elementos de um mesmo paradoxo quecompreende a experincia contempornea. Os atributoscomo leveza, agilidade, velocidade, geram o peso quepodemos entender como a angstia sentida pelos viven-

  • 330

    Spindler, P. e Fonseca, T. M. G. Danando o pesar do mundo

    tes, e a leveza que conseguimos apreender como a cons-tante desestabilizao da plasticidade do tempo atual. Avida, portanto, compreende esses dois elementos, quegeram o paradoxo e se constituem no movimento de di-ferenciao que a faz acontecer.

    Assim tambm o gesto menor contm o leve e opesado, imanentes na vibrao da dana para que ela pos-sa ocorrer. Retomando a msica: ... pesar do mundo...onde alivia... onde me pesa... durante a queda... e, ain-da, ... somente um ritmo... peso e balano... Em suma,o gesto menor e o movimento de diferenciao que pro-duz subjetividade e inventa vida compreendem o parado-xo contemporneo da leveza e do peso.

    Fala-se aqui de uma perspectiva que se insere naordem de uma dana menor, uma dana que gagueja, quefaz tropear seu movimento, que no faz da queda umerro. Faz da queda, do tropeo uma dana, fugindo deuma forma idealizada e homognea de danar. Constrium modo de danar atravs de uma poltica do tropeo,onde mesmo o cho que se abre num abismo, comonos terremotos subjetivos causados pelos choques coti-dianos da contemporaneidade. Assim se diz dancei!,evidenciando a instabilidade que a dana prope. Essadana que menor dentro da dana maior procura serdiferente da representao do cair. Ela constitui-se emuma ontologia da queda, para que haja dana mesmo apso tropeo, sem medo de continuar, conforme idia deLepecki2 (2005). Talvez no mesmo sentido da reflexodo artista que diz por que no ser feliz na incerteza?Por que no continuar danando aps o tropeo?

    Notas

    1 Pociello coloca que R. Caillois denomina ilinx o conjunto de

    jogos em que nos abandonamos a um estado fsico e psicolgi-co incontrolado.

    2 Lepecki, A. (2005). Tropeando a dana: para uma poltica do

    movimento. In: Conferncia apresentada no I Encontro Inter-nacional de Dana e Filosofia O que pode a dana? Rio deJaneiro, 15 a 18 de setembro de 2005.

    Referncias Bibliogrficas

    Bauman, Z. (2001). Modernidade lquida. Rio de Janeiro: JorgeZahar.

    Bergson, H. (1964). A evoluo criadora. Rio de Janeiro: EditoraDelta.

    Bourcier, P. (2001). Histria da dana no Ocidente. So Paulo:Martins Fontes.

    Calvino, I. (1990). Seis propostas para o prximo milnio: liesamericanas. So Paulo: Companhia das Letras.

    Deleuze, G. & Guattari, F. (1992). O que a filosofia? Rio deJaneiro: Ed. 34.

    Deleuze, G. & Guattari, F. (1995). Mil plats Capitalismo eesquizofrenia (Vol. 2). Rio de Janeiro: Ed. 34.

    Fernandes, C. (2002). O corpo em movimento: o sistema Laban/

    Bartenieff na formao e pesquisa em artes cnicas. So Paulo:Annablume.

    Haas, A. & Garcia, . (2003). Ritmo e dana. Canoas, RS: ULBRA.Katz, H. (2005). Um, dois, trs. A dana o pensamento do corpo.

    Belo Horizonte: FID.Launay, I. & Ginot, I. (2003). Uma fbrica de anti-corpos? (N.

    Alves, Trad.). Acesso em 24 de novembro, 2005, em http://idanca.net/lang/pt-br/2003/01/01/uma-fabrica-de-anti-corpos/

    Lipovetsky, G. (1989). O imprio do efmero: a moda e seu desti-no nas sociedades modernas. So Paulo: Companhia das Le-tras.

    Pociello, C. (1995). Os desafios da leveza: as prticas corporais emmutao. In D. SantAnna (Org.), Polticas do corpo. So Paulo:Estao Liberdade.

    Portinari, M. (1989). Histria da dana. Rio de Janeiro: NovaFronteira.

    Robatto, L. (1994). Dana em processo, a linguagem do indizvel.Salvador: Centro Editorial e Didtico da UFBA.

    Rolnik, S. (2001). Molda-se uma alma contempornea: o vazio-pleno de Lygia Clark. In B. Bezerra & C. Plastino (Orgs.),Corpo, afeto e linguagem: a questo do sentido hoje. Rio deJaneiro: Rios Ambiciosos.

    Simondon, G. (2003). A Gnese do indivduo. In P. Pelbart & R.Costa (Orgs.), O reencantamento do concreto (Cadernos desubjetividade, pp. 99-117). So Paulo: Editora Hucitec.

    Tomazzoni, A. (2005). Esta tal de dana contempornea. RevistaAplauso, 70. Acesso em 23 de novembro, 2006, em http://w w w . a p l a u s o . c o m . b r / s i t e / p o r t a l /anteriores.asp?campo=464&secao_id=47

    Varela, F. (2003). O reencantamento do concreto. In P. Pelbart & R.Costa (Orgs.), O reencantamento do concreto (Cadernos desubjetividade, pp. 71-86). So Paulo: Editora Hucitec.

    Wisnik, J. & Neves, P. (s.d.). Pesar do mundo. Acesso em 10 dejulho, 2006, em http://www.mpbnet.com.br/musicos/ze.miguel.wisnik/letras/pesar_do_mundo.htm

    Patrcia Spindler Psicloga, trabalha com clnicagrupal e individual e mestre do Programa de Ps-Graduao em Psicologia Social e Institucional da

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Endereopara correspondncia: Av. Cel. Frederico Linck, 784/46 -

    Novo Hamburgo/RS.E-mail:[email protected]

    Tania Mara Galli Fonseca Psicloga, Professora dosProgramas de Ps-Graduao em Psicologia Social e

    Institucional e de Informtica Educativa daUniversidade Federal do RGS. Endereo para

    correspondncia: Rua Campos Salles, 262- Bairro Boavista- Porto Alegre/RS- Cep- 90480-030

    E-mail: [email protected]

    Danando o pesar do mundoPatrcia Spindler e Tania Mara Galli FonsecaRecebido: 09/10/2007Reviso: 29/11/2007Aceite: 15/11/2007