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1 Dançando com Ampulhetas As Dobras do Tempo I.G.C

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Dançando com Ampulhetas

As Dobras do Tempo

I.G.C

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Dançando com Ampulhetas

As Dobras do Tempo

1º Edição

Maio de 2014.

I.G.C

Igor Guimarães Camargo

Todos os direitos reservados. O texto desta obra não pode ser reproduzido no todo ou em parte, por qualquer meio, sem prévia e

formal autorização do proprietário dos direitos autorais.

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Índice

1. Capítulo I – Os donos do tempo ............. Pág.8

2. Capítulo II – Brum ................................ Pág.25

3. Capítulo III – Nomes ........................... Pág. 42

4. Capítulo IV – Homens mortos não falam.... Pág. 59

5. Capítulo V – À caminho........................ Pág. 69

6. Capítulo VI – Vergo, o vesgo ............... Pág. 82

7. Capítulo VII – Todos a bordo................ Pág. 94

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Prólogo

Então eles me perguntaram sobre a Origem das Coisas.

O que dizer sobre Arreta? Ele que sempre lá esteve. Muito antes das pessoas e

dos animais. Estava lá enfurecido com fogo, dura com terra, veloz com vento e

carinhosa com a água. Arreta é mãe e pai. Casa de todos os seres, inteligíveis

ou não. Alguns tentam conquista-lo por completo. Donos do planeta e das

pessoas que ele habita. Pouco se sabe realmente qual onde foi o começo da

arrogância dos homens. Os Deuses não os fizeram assim, é verdade.

Entretanto, em algum acidente caótico, em alguma curva esquecida da história,

surgiu o Primeiro que pôde se julgar merecedor. A Origem das Coisas nada

tem a ver com os Criadores, Sacerdotes, Forjadores, Mercadores ou

Selvagens. Para Arreta tudo é passageiro e nada dura. Mas, até mesmo isso,

não é inteiramente verdade. Sabe-se que antes dele, antes mesmo das suas

primeiras formações tímidas que um dia chegariam ao status de planeta, havia

o Tempo. Ele sempre esteve lá, cá e lá e assim segue, grão após grão, até o dia

que nenhum de nós estejamos aqui, ele continuará.

Então eles me perguntaram sobre as Cinco Famílias.

A esse ponto é interessante saber que Arreta, nome dado ao planeta por todos

os seus habitantes, é divido em dois extremos. O Norte sempre fora o lar das

três famílias mais antigas e tradicionais. Os Forjadores são seres bravos e

temidos. Altos e fortes, têm o tamanho de dois homens comuns. São eles os

responsáveis pela produção de navios belíssimos e altamente funcionais. Os

Forjadores, apesar do tamanho, são sujeitos quietos e que não gostam de

confusão. Malmente são vistos quando há muitas pessoas por perto. Vivem em

seus navios, navegando o Salgado com bravura e quando em continente, são

responsáveis pelo Fogo da Forja. A família dos Sacerdotes é, de longe, a mais

misteriosa família daqueles que vivem ao Norte. Responsáveis por quase todos

os tipos de livros, pergaminhos, manuais, feitiços e poções, os Sacerdotes são

criaturas reservadas, quase sempre quietas e que não gostam de companhia.

Alguns deles vivem isolados em montanhas distantes, já outros são membros

ativos do governo e possuem alta influência política em Arreta. A família mais

respeitada, porém desconhecida, em toda Arreta sempre fora a família dos

Criadores. São eles que sempre dominaram as leis de como se deveria viver e

prosseguir em todo o planeta. Os Criadores estiveram no poder desde que o

tempo começou a ser gasto. É a menor das cinco famílias, mas, sem dúvida, a

mais influente de todas elas. As famílias sulistas são as mais populosas. A

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família dos Selvagens vivem mais ao sul, separados da família dos

Mercadores. Os Selvagens levam esse nome por não se organizarem em

cidades. Vivem na estrada e são caçadores exemplares. Pouco realmente se

sabe sobre eles, o mais importante era compreender que quando diante de um

Selvagem a melhor coisa a se fazer era correr. A família dos Mercadores é a

família que mais caracteriza o sul do planeta. Vivem, em sua maioria, na

Cidade Porteira. A Cidade Porteira é a grande entrada da parte sul do planeta.

Também é a maior cidade ao sul e a mais estranha dentre elas. De fato a

Cidade Porteira abriga muitos costumes estranhos e pessoas com manias que

só se achariam lá. Os além-sul, como são chamadas as pessoas vivem ao sul

da Cidade Porteira, possuem um enorme preconceito com aqueles que vivem

na cidade. Dizem eles que a influência do Norte havia mudado as pessoas ali e

que os costumes sulistas haviam se perdido. Todavia, aqueles que moravam

ainda mais ao sul, dependiam das pessoas da cidade, pois era a Cidade

Porteira e o comércio com aqueles que vivem ao Norte que mantinham o sul

do planeta funcionando. No lado sul do planeta pouquíssimo se sabe sobre

aqueles que vivem ao Norte. Os Forjadores, que eram responsáveis pelo

comércio naval, principal função da Cidade Porteira, era a única família

daqueles que vivem ao Norte que ousava pisar na parte sul de Arreta.

Ninguém que ainda fosse vivo havia tido contato com qualquer membro das

outras famílias daqueles que vivem ao Norte. Os filhos da Cidade Porteira

sabem recontar histórias sobre aquelas outras famílias, pois ouviam os mais

antigos falarem sobre isso na Aconchego, onde o excesso de cidra sempre

mudava os detalhes da história.

Então eles me perguntaram sobre o Destino.

Pequena Carol era uma tartaruga que sonhava em ser uma ave. Sua tia, Carol,

lhe lembrava em todas as noites que aquilo era improvável, mas que ela

continuasse sonhando se aquilo lhe fizesse bem. Pequena Carol então insistia

no sonho. Não queria ser tartaruga. Tartaruga são lentas, pesadas e

preguiçosas. Como pode uma tartaruga estar satisfeita em ser só tartaruga?

Aves podem voar. Subir e descer em árvores em poucos segundos. Pequena

Carol queria mergulhar em um abismo e subir acima dele em um piscar de

olhos. Foi então que em um dia qualquer, ensolarado ou não, ela se decidiu:

iria voar como uma ave e ai de sua tartaruguisse se entrasse no caminho.

Carol então correu quando soube por um dos amiguinhos de sua sobrinha

estava prestes a despencar de um penhasco. Carol, Carol, se tartaruga não

fosse, teria chegado a tempo de evitar tamanha tragédia.

6 Lá estava ela, a pequena Carol a encarar o abismo. - Não faça isso. – Aconselhou um de seus amigos tartaruga.

Mas, ela era casca dura e não deu ouvidos. Pulou. Pulou como as aves o

fazem, sem medo qualquer da altura ou do chão. Assim como as aves ela caiu.

Diferentemente delas, ela não voltou a subir. - Meu Deus! – Berrou sua tia Carol.

Foi então que em uma distração qualquer o impossível aconteceu. Lá estava

ela, a pequena Carol, voando de volta para os braços da tia. Na verdade fora

um galho bambo que a empurrara veementemente para os ares. Todo aquele

peso de tartaruga serviu como um gatilho para uma catapulta armada

naturalmente. Fosse alguns centímetros para a esquerda ou poucos mais para a

direita, o fim seria outro. Mas, essa não vai ser a versão da história que as

pessoas contarão. A pequena Carol voou naquele dia e isto basta.

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“...partiu para o destino pensado, em busca de uma aventura.”

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Capítulo I

Os donos do tempo

- Ufa! Esse foi um dia cansativo. – Expressou consigo mesma, Ilsa Troca

Leve, enquanto enxugava gotas de suor de sua testa com seu antebraço direito.

Ilsa era a mais nova dos Troca Leve, uma família de Mercadores que vivia em

uma das ruelas da Cidade Porteira. Ilsa já havia terminado de recolher os

caixotes com as mercadorias trazidas pelos Navios Forjadores que chegaram

mais cedo do que o costume naquele dia. Já tinha tudo devidamente anotado e

catalogado. Era o seu dever como uma das duas mulheres da família dos Troca

Leve. Ela fazia o seu trabalho quase sempre igual todos os dias; conforme fora

orientada por sua mãe, Friz Troca Leve, que outrora fora orientada por seu

marido: o Sr. Troca Leve e patriarca da família. Ilsa Troca Leve possuía

cabelos dourados como os de sua mãe. Era muito bela para uma Mercadora,

embora quase ninguém soubesse disso. Na verdade Ilsa Troca Leve quase

nunca era notada, parecia um moleque qualquer. Estava sempre coberta de

sujeira que advinham dos restos de mercadoria e do trabalho árduo. Mas, Ilsa

Troca Leve de fato era muito bonita por baixo daquilo tudo. Completou vinte

anos a pouco mais de um mês; ela já possuía um corpo de mulher. Não fosse

seu traje de trabalho, um surrado macacão marrom, coberto por uma bata de

couro, ela atrairia muitos olhares no Grande Porto, local onde frequentava três

vezes por dia, religiosamente. A primeira vez que Ilsa visitava o Grande Porto

era sempre pela manhã, a mando do Sr. Troca Leve. Ilsa era responsável por

checar a mercadoria que os Forjadores traziam do Norte. Não eram tantas,

mas o Sr. Troca Leve jamais se esquecia sequer de um garfo encomendado.

Então Ilsa Troca Leve acordava cedo, um pouco depois que o sol nascia na

Cidade Porteira, e ia conferir os produtos encomendados. A segunda vez que

ela visitava o Grande Porto era sempre ao meio dia, quando o sol brilhava no

seu auge. Ilsa tinha que correr até a Vende Tudo, a loja da família Troca Leve,

que ficava a três ruas do Grande Porto, localizada no Comércio, para pegar a

lista com as próximas encomendas que o Sr. Troca Leve fazia, e levar a

mesma para a Casa do Carteiro no Grande Porto. A Casa do Carteiro, que

apenas funcionava na luz do dia, era um edifício de três andares, todo feito de

madeira, como quase tudo no Grande Porto o era. A Casa do Carteiro era

muito visitada pelos habitantes da Cidade Porteira, já que era lá onde eles

podiam realizar encomendas, enviar cartas e telegramas. A terceira vez que

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Ilsa Troca Leve visitava o Grande Porto não era por obrigação. Acontecia

sempre ao entardecer. Era a parte mais gostosa do dia para Ilsa. Ela sempre

terminava seus afazeres antes que o sol fosse completamente embora. Assim

sairia correndo do armazém da família, passaria pela Vende Tudo outra vez,

deixaria seu caderninho e chaves debaixo da porta e correria para o Grande

Porto. Não levava mais que trinta minutos até chegar ao Grande Porto, e tudo

ainda estava claro. Era uma hora mágica do dia. Ilsa Troca Leve adorava

chegar ao Grande Porto ao entardecer; era quando os Navios Forjadores

estavam zarpando de volta ao Norte. Ela, quase sempre, se escondia em uma

montanha de caixas que dormiam no Grande Porto, local que ela considerava

seu esconderijo, e ficava observando, invisível, os navios irem embora.

Adorava como tudo cheirava a vapor e fuligem de carvão. Adorava como os

raios de sol iam mudando de um vermelho para um amarelo claro, tocando um

alaranjado ainda mais claro, até morrerem na escuridão. Era a sua coisa

preferida do dia. Deitava-se no seu esconderijo, observava os Navios

Forjadores indo embora e imaginava como seria a vida daqueles que vivem ao

Norte. Nenhum dos Troca Leve jamais se atreveu deixar a Cidade Porteira.

Tem sido assim por séculos. Desde que os livros se recordam os Troca Leve

sempre viveram do comércio na Cidade Porteira. Sempre zelando pela Vende

Tudo e ganhando fama por isso. A Vende Tudo era uma das lojas mais

tradicionais da Cidade Porteira e mantinha os preços justos em quase todas as

mercadorias. O Sr. Troca Leve e seu filho, seu orgulho, Troca Leve Jr. davam,

alegremente, o sangue do corpo pela Vende Tudo; bem, pelo menos com o Sr.

Troca Leve isso era verdade, o mesmo não acontecia com o filho. Troca Leve

Jr. era um rapagão de trinta anos de idade, gordo e asqueroso. Ilsa Troca Leve

tinha o maior desgosto pelo irmão mais velho. Não era para menos, Troca Leve Jr. não tornava a vida de Ilsa mais fácil em nenhum quesito. “É um puxa

saco terrível” como advertia Ilsa Troca Leve para todos aqueles que

perguntavam. Fora justamente Troca Leve Jr. que iria importunar Ilsa naquele

dia.

- Onde pensa que vai? – Perguntava o primogênito dos Troca Leve, tentando

exercer o seu direito regulador de irmão mais velho. Ilsa malmente tinha

aberto a porta do armazém para correr para o Grande Porto, fugindo para a

parte mais adorada do dia, e a voz Troca Leve Jr. a interrompera.

- Não te interessa, gordo-sujo! – Era como Ilsa costumava se referir a Troca

Leve Jr. De fato Troca Leve Jr. era um gordo e, quase exclusivamente, andava

sujo. Não por necessidade, mas por simples preguiça. O mesmo não demorou

a responder a atitude, que ele considerava ousada, da irmã.

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- Pois é claro que me interessa! Você só vai sair daqui depois que eu conferir todo o estoque e suas anotações. – Ordenara Troca Leve Jr. à Ilsa.

Ela não costumava obedecer às ordens do gordo-sujo. Apesar de sua família

ser tradicionalmente patriarcal e machista, Ilsa não enxergava autoridade na

pessoa do irmão, também pudera; aquele gordo-sujo não amedrontava nem

uma mosca, nem uma mosca covarde. Mas, Ilsa sabia que se não se

submetesse as ladainhas do irmão naquela hora, teria que ouvir o Sr. Troca

Leve, seu pai, durante horas, e ele não brincava quando o assunto eram suas

mercadorias. Mesmo que não fosse verdade, se Troca Leve Jr, ou qualquer

outra pessoa, levantasse a suspeita de que havia algo faltando no seu armazém

ou até mesmo alguma peça defeituosa, ele ficaria louco até achar o bendito

item. Era quase uma neurose. Então Ilsa Troca Leve não desobedeceu ao

irmão, queria muito ir ao Grande Porto e olhar os Navios Forjadores, mas

ficou com o gordo-sujo refazendo as tarefas que acabara de realizar.

Não parava de roer as unhas enquanto observava seu irmão mais velho contar

os benditos caixotes e riscar o seu caderninho com um lápis. Já tinha se

passado quase uma hora e o sol já estava frio lá fora. Ilsa se perguntava se

ainda daria tempo de ir ao Grande Porto. Não queria ter que ir ao Grande

Porto a noite, talvez por que ele fosse oficialmente fechado à noite, mas não

era isso que a atormentava de verdade. Já tinha burlado o bloqueio que

mantinha o Grande Porto fechado à noite algumas vezes, nada que qualquer

adolescente, com coragem suficiente, da Cidade Porteira não já tenha feito. O

que deixava Ilsa ansiosa era que o Grande Porto não era lá o local mais

agradável à noite. Todos os Mercadores que viviam na Cidade Porteira

sabiam que quando o sol se ia o Grande Porto era tomado por um ar pesado e

estranho. Os mais velhos, quando se sentavam em rodas regadas a cidra e

outras bebidas mais fortes, espalhavam histórias que arrepiavam a nuca de

qualquer um que ousasse as ouvir. Era de comum senso que a noite, quando

quase ninguém mais ficava no Grande Porto, as almas dos Forjadores

perdidos no mar vagavam pelas tábuas de madeira que cobriam todo o chão do

lugar. Qualquer Mercador que já tenha passado a noite acordado na

Aconchego, taberna mais tradicional da Cidade Porteira, que ficava a três

blocos do Comércio, donde ficava a Vende Tudo, loja dos Troca Leve, sabia

dessas histórias e não se metia a tira-las a prova.

- Bem... Você precisa melhorar essa caligrafia. – Reclamava o gordo-sujo,

enquanto enxugava a testa com um paninho velho que guardava no bolso

esquerdo do seu paletó cinza surrado.

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- Demorei com as contas por causa dessa sua letra! Que absurdo! – O gordo-

sujo coçava a garganta. Ilsa mordia os lábios, não queria retrucar e fazer o

gordo-sujo recomeçar toda a contagem.

- Mas está tudo certo. – Disse Troca Leve Jr., se encaminhando para a saída do

armazém e atirando o caderninho de anotações de Ilsa Troca Leve em um

canto qualquer.

Ilsa sentiu um alívio quando ouviu o gordo-sujo bater a porta do armazém, que

era feita de madeira e reforçada com tiras de aço. Era o som da sua liberdade.

Ainda teve tempo de olhar pela única janela do armazém para o céu. Já estava

mais escuro do que claro. Ela não deveria mais ir ao Grande Porto, sabia

disso. Mas, algo inexplicável a fazia querer ir ao Grande Porto naquele dia em

específico. Era um querer ir mais do que normalmente queria. Então Ilsa

Troca Leve se apressou para fechar o armazém e se dirigir a Vende Tudo.

Ainda teria que deixar seu caderninho e as chaves do armazém com o Sr.

Troca Leve na Vende Tudo, como de costume. Ela fechou a janela do

armazém, puxando os pinos de cima para cima e os debaixo para baixo.

Correra para a porta e dera duas voltas com a grande chave de metal, como

recomendado pelo Sr. Troca Leve. A ruela que abrigava o armazém dos Troca

Leve era muito estreita. Toda pavimentada com pedras sabão-escuras.

Milagrosamente passaria uma carroça por ali. A ruela era toda tomada por

outros armazéns de outras famílias Mercadoras. Ilsa percebeu que estava

saindo mais tarde do que o de costume para o Grande Porto. Todos os

armazéns já estavam fechados e devidamente trancados. Para qualquer família

de Mercadores os seus produtos eram de sagrada importância.

Ilsa Troca Leve descera a ruela enladeirada do armazém em direção a Vende

Tudo. Ansiava para chegar ao Grande Porto com alguma luz do dia sobrando.

Foram alguns passos apressados que a levaram até a Vende Tudo. Malmente

podia ver o sol se escondendo atrás do mar quando chegou à loja. A lojinha

dos Troca Leve era muito charmosa. A frente era toda feita de tijolos marrons,

que eram cobertos por um musgo verde que há muito crescera ali. Tinha uma

grande porta de madeira, detalhada com quadrados de vidro que deixavam as

pessoas olharem tudo que se passava dentro da loja. A Vende Tudo era a

primeira loja, se tomada de referência a Cidade Porteira ao invés do Grande

Porto, das três ruas comerciais que formavam o Comércio. O Comércio era

aonde as pessoas viriam para negociar todo tipo de coisa. Eram três ruas

próximas ao Grande Porto recheadas de lojas. Durante o dia era um

formigueiro de gente. A Vende Tudo, loja dos Troca Leve, era uma das mais

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tradicionais lojas do Comércio. Foi gerenciada durante gerações de Troca Leve, sempre mantida no mesmo local e com a mesma aparência.

Ilsa, que corria para chegar ao Grande Porto, se deparou com algo fora do

comum. A Vende Tudo já estava fechada. Então ela percebeu que não era

culpa da loja; ela estava atrasada. Como de costume, o Sr. Troca Leve fechava

a Vende Tudo às dezessete horas, nem um minuto a mais nem um minuto a

menos. Toda a Cidade Porteira sabia disso. Ilsa Troca Leve estava

acostumada a entregar seu caderninho e as chaves do armazém ao Sr. Troca

Leve todos os dias depois de seu expediente, sabia que o mesmo ficaria louco

sem as suas anotações na manhã seguinte. Então ela procurou um feixe na

imensa porta de madeira da Vende Tudo e arremessou o caderninho e as

chaves para dentro da loja. Sabia que não era o ideal, mas pelo menos o

caderninho e as chaves estariam lá quando seu pai reabrisse a loja pela manhã.

Sentiu um arrepio na espinha quando pensou em deixar a Vende Tudo para

trás, já era noite e sua consciência lhe dizia para ir para casa ao invés de ir ao

Grande Porto. Mas, Ilsa sentia um estranho desejo de terminar o seu ritual

diário. Queria ir ao Grande Porto e se deitar nos caixotes. Ela ficava invisível

para o mundo ali, era apenas ela e seus pensamentos. Ilsa Troca Leve olhou

para o céu, que já estava negro e coberto por nuvens espeças, e começou a

correr para chegar ao Grande Porto. Passou pelas três ruas do Comércio em

menos de quinze minutos. Logo, avistou o Grande Porto. A vista era algo

estonteante, até mesmo a noite. O Grande Porto era imenso, assim como o

portão que o guardava. Ilsa Troca Leve quase desistiu quando viu que o portão

já estava fechado. Maior que sua casa, reforçado em aço de forjador, o portão

do Grande Porto era um obstáculo de botar medo em qualquer um. Ao alto

podiam-se ver alguns candeeiros queimando querosene e iluminando todo o

portão. O Grande Porto, oficialmente, só possuía aquele acesso por terra, era a

única entrada e saída. Todo o restante da parte terrena do Grande Porto era

fechado por um muro que servia de apoio para várias casas que tinham as

portas viradas para as ruas. Nenhuma janela ou porta era permitida para o lado

do Grande Porto, era lei local. Não por medo da lei, mas nenhum morador

jamais ousara abrir qualquer tipo de vista para o Grande Porto, todos morriam

de medo do que se passava lá pela noite e o medo da noite superava qualquer

alivio que a luz do dia pudesse trazer aos Mercadores.

Ilsa Troca Leve era uma das poucas pessoas que sabia algumas passagens para

dentro e para fora do Grande Porto além do gigantesco portão principal.

Havia alguns tuneis minúsculos e escuros que escoavam as águas doces da

cidade para o Salgado. As autoridades da Cidade Porteira não se

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preocupavam com esses túneis, pois eles só cabiam, no máximo, uma pessoa

magra e pequena, ninguém jamais conseguiria contrabandear mercadoria por

ali. As poucas pessoas que tinham ciência sobre esses túneis não gostavam de

utilizá-los; era tudo muito fedido por ali. Ilsa parou de encarar o portão e fixou

a ideia em sua própria mente de adentrar no Grande Porto. Então ela se

encaminhou para o minúsculo túnel que ficava a cerca de meio quilometro do

portão. Ilsa caminhou com fogo nos pés. Passou por diversas casas que se

escoravam no muro do Grande Porto. Todas eram muito velhas e calejadas. A

maioria seguia o padrão de uma porta embaixo e duas janelas em cima. Eram

casas finas e compridas.

Malmente Ilsa se sentiu cansada, quando achou a sua passagem. Ficava entre a

casa dos Salgueiros, “Ladrões do sal”, como descreveria a família o Sr. Troca

Leve – criticando o preço que eles cobravam sobre o punhado de sal -, e a casa

dos Coureiros. Trata-se de duas famílias tão antigas quanto os Troca Leve.

Ambas as famílias possuíam tradição em vender e comprar, cada uma em sua

determinada área, como era de praxe em qualquer família de Mercadores. Ilsa

Troca Leve, ao chegar à entrada da sua passagem secreta, ainda teve tempo de

notar, através da janelinha embaçada da casa dos Salgueiros, uma vela que

dava forma a várias pessoas agitadas. - Devem estar brigando como sempre. – Falara Ilsa, consigo mesma.

Deixando os Salgueiro para trás, Ilsa puxou o ar para os pulmões e se enfiou

dentro do túnel de água suja. O chão estava encharcado com deus-sabe-lá-o-

que e quase não se dava para enxergar nada à frente. Com apenas alguns

passos ela adentrou o Grande Porto.

O chão era todo feito de tábuas de madeira, diferente do chão do Comércio,

que era feito de pedra-sabão. O chão do Grande Porto fazia um barulho

incomum, rangendo como as costas de um velho, quando alguém andava por

ele. Ilsa podia sentir o cheiro de querosene no ar. Várias tochas queimavam,

iluminando o Grande Porto por inteiro. Ela enxergou de longe, pois estava

distante da entrada principal, alguns navios atracados quase invisíveis na

escuridão. Mal dava para enxergar o mar. Então Ilsa Troca Leve andou mais

alguns metros para dentro do porto. Tomou cuidado para não tropeçar no chão

de madeira, que possuía várias frechas e partes soltas. Ilsa avistou seu lugar

predileto no Grande Porto, a montanha de caixotes velhos, redes usadas e

papelões amontoados onde ela costumava se esconder. Sentiu um alívio

momentâneo, estava feliz por estar ali, ela só tinha lembranças boas em

relação ao Grande Porto. Todavia o alívio foi subitamente substituído por um

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arrepio medonho. Ilsa sentiu um cheiro estranho que o ar trouxera; algo nada

semelhante ao cheiro costumeiro do Grande Porto. Cheirava a algo muito

antigo, antigo até demais. O cheiro fez Ilsa correr para dentro do seu

esconderijo, o forte de encomendas, papelões, redes e caixas amontoadas que

ali se encontravam. Ela se enroscou dentre os pacotes e caixas, ficando deitada

de peito para baixo. Na sua frente havia uma pequena brecha por onde ela

observava o Grande Porto em silêncio, como de costume. Ela se acalmou um

pouco quando conseguiu ficar no seu lugar-seguro. Ilsa Troca Leve ficou lá,

por breves minutos, observando o mar e os navios apagados na escuridão. Até

se esqueceu da sensação ruim que outrora sentira, mas a paz foi momentânea.

Era tudo muito diferente à noite. Pensamentos sombrios sobre as histórias

contadas pelos antigos começaram a assombrar a mente dela. Sentiu que não

deveria estar ali e quis ir embora. Todavia, algo chamou a sua atenção. Um

dos navios estava brilhando, diferenciando-se dos demais. Ao longe, Ilsa

conseguia enxergar que o navio estava iluminado por fogo de querosene, o que

era proibido naquele específico horário. De imediato Ilsa Troca Leve saíra do

seu esconderijo e fora investigar. Correu o mais rápido, e mais

silenciosamente, que pôde até ficar cerca de vinte metros de distância do

navio. Conseguiu abrigo detrás de um amontoado de redes e cordas

entrelaçadas que formavam uma barreira, como um pequeno muro, em relação

ao navio. O navio era uma embarcação modesta, parecia ter centenas de anos.

Todo feito a madeira, possuindo um tamanho mediano e vários remendos com

pregos enferrujados. Não se tratava de um navio Forjador. Esses eram

maiores e feitos de aço. Ilsa percebeu que o navio aparentava estar tripulado.

Havia barulho de pessoas a bordo. Mais do que isso, percebia-se que uma

discussão tomava forma no navio que ela observava. Ilsa ouvira um ruído

agudo, que lembrava garrafas de vidros sendo quebradas. O ruído fora seguido

do som de homens gritando. Estava havendo uma briga naquele navio, sem

dúvidas. Ilsa quase voltara para casa, com medo. Mas algo a fizera continuar

observando o navio e as pessoas a bordo. Ilsa conseguiu enxergar dois homens

com espadas e tochas no convés do navio. Eles estavam agitados e pareciam

procurar alguém. Um dos homens, mais alto e gordo, gritava com o outro

enquanto batia a ponta da espada na madeira larga do navio. Ilsa já olhava a

situação apenas com um olho, se escondendo atrás do muro de caixotes que

estavam amontoados ali. Foi então que ela percebeu uma movimentação ainda

mais estranha no navio. Uma sombra descera o navio pela parte de fora,

escalando-o com uma corda improvisada. - Deve ser um fugitivo! – Pensou Ilsa, em voz alta.

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De fato o era. Ilsa quase morreu de susto quando percebeu que o fugitivo

estava correndo em sua direção; Ele descera do navio, em um piscar de olhos,

e fora correndo em direção a Ilsa Troca Leve, se aproximando cada vez mais.

O fugitivo corria em agonia, respirando pesadamente. Estava tudo muito mal

iluminado, o ambiente era perfeito para uma fuga. Ilsa Troca Leve não sabia o

que fazer; se corresse seria pior. Então se abaixou e rezou para que o fugitivo

não a achasse atrás daquele amontoado de coisas velhas. Por capricho do

destino, não fora o que aconteceu. Ilsa Troca Leve sentiu apenas uma pancada

lhe atingindo. O fugitivo, do jeito que veio correndo, se esbarrou em Ilsa e

caiu, derrubando ela em conjunto.

- Merda! Merda! Mer... – Dizia o fugitivo em agonia, quando percebeu, enquanto se levantava, que se esbarrou em outra pessoa.

- Eu não tenho nada! – Exclamou Ilsa Troca Leve, ainda no chão, na tentativa de fazer o suposto bandido partir.

Ela notou que ele era de fato um fugitivo, mas se bandido fosse, não

aparentava ser. Era um rapaz com o rosto muito fino e sem marcas. A sua pele

era de uma palidez muito frágil. Tinha o cabelo grande, quase na altura do

nariz, negro como a noite. As roupas não eram nada ordinárias. Ele vestia uma

camisa de seda roxa finíssima e calções de algodão grosso rico, igualmente

roxos, apenas com um tom mais claro. Estava descalço. Se não fosse pelas

amarras grossas em suas mãos, parecia que o rapaz havia acabado de sair da

cama. Mas não eram pijamas conhecidos por Ilsa ou por qualquer outro

cidadão da Cidade Porteira. Apesar de estarem sujos, aqueles trajes era coisa

cara e rara de ser ver.

- Não! Não, não, não. – Gesticulava o fugitivo com as duas mãos amarradas na altura dos pulsos por uma grossa corda de Forjadores.

- Não quero nada seu! Não sou ladrão. – Ele se aproximou de Ilsa, que quase o

socava se não notasse o procedido. Ele cedeu ambas as mãos, presas em

conjunto, e levantou Ilsa com apenas um esforço. Logo depois se encostou-se

ao muro, que Ilsa outrora se escondia, e olhou para trás, observando o navio de

onde fugira.

- Escute... Não sei quem você é rapaz, mas preciso que me ajude. – Ilsa Troca

Leve sentiu-se brevemente ofendida. O fugitivo a tomara por homem. Mas,

naquele instante, talvez fosse mais seguro se aquele desconhecido a tomasse

por homem. Naquele momento Ilsa Troca Leve já pensava em chutar o rapaz

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nos sacos e fugir do Grande Porto, era acontecimento demais para qualquer

Mercador processar tão rapidamente. Mas, algo na voz daquele fugitivo a fez

sentir uma calma nunca vista. O rapaz continuou falando olhando diretamente

para os olhos castanhos de Ilsa.

- Prometo que irei te recompensar. Preciso de um lugar para me esconder por

algumas horas e te deixarei em paz. – O desespero na fala do rapaz era

tamanho que Ilsa Troca Leve sentiu-se culpada de pensar que algum mal viria

daquele fugitivo. Porém, toda a circunstância dizia o contrário. Era um preso,

fugindo de dois homens imensos no Grande Porto, em plena noite!

- Por favor! Me ajude! Eles estão vindo. – Suplicou o rapaz quando percebeu

que os homens desciam o navio com tochas e espadas nas mãos. Ilsa

contrariou a sua razão e seguiu seu instinto.

- Venha. Eu conheço um lugar onde ninguém vai te achar. – Ilsa fitou a

expressão de desespero na face do fugitivo e não pode negar o seu pedido de

ajuda. O rapaz sentiu um alivio momentâneo e abriu um sorriso singelo; Pouco

depois, ambos notaram que os homens que estavam no navio, caminhavam

sobre as tábuas do Grande Porto e estavam muito próximos deles. O fugitivo

de pijamas deu um grande suspiro quando notou que uma terceira figura, ainda

em forma de sombra, se juntara aos homens que pareciam gigantes daquele

ponto de vista.

- Merda! Não acredito que ele está aqui! Merda! – Falara ele consigo mesmo

enquanto Ilsa se preparava para deixar o local donde estavam. Antes mesmo

que alguma outra coisa fosse dita, Ilsa Troca Leve puxou o rapaz pela camisa

de seda arrastando-o com voracidade para o outro lado do calçadão de madeira

do Grande Porto. Os dois começaram a correr furtivamente, esquivando-se

entre as sombras, usando caixotes e encomendas empilhadas como abrigo, em

direção à entrada/saída que Ilsa outrora usara. Correram cerca de trezentos

metros, sempre se escondendo nas sombras e pisando levemente, quando

pararam para tomar um fôlego. Ilsa notou, olhando o caminho percorrido com

cautela, que os dois homens imensos, ambos armados com espadas, estavam

mais afastados e continuavam a procurar todos os cantos pelos quais eles

haviam acabado de passar. Ilsa percebeu ainda que outra figura que se juntara

à busca. Este estava muito mais afastado que os outros dois e daquela

distância, malmente podia ser visto. Mas, era possível perceber que ele dava

ordem aos outros.

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- Quem é aquele? – Perguntou Ilsa, apontando para a sombra distante; O rapaz

em apuros ponderou para responder. Estava respirando ofegantemente. Ele

olhou Ilsa nos olhos e respondeu.

- Não queria saber. – O rapaz ponderou com uma voz trêmula. – Precisamos

continuar! Onde estaremos seguros? – Perguntara o mesmo, com um tom

aflito.

Ilsa estava pensando em fugir daqueles que os seguiam pela entrada “secreta”

que ela usara para adentrar ao Grande Porto. Ilsa Troca Leve levou um susto

tremendo quando percebeu que dois guardas estavam vasculhando o túnel que

outrora servira de passagem. Os dois guardas vestiam uniformes da Guarda

Maior, polícia da Cidade Porteira. Os uniformes eram algo muito simples e

econômico: uma túnica vermelha que cobria uma calça de couro marrom, com

um par de botas pretas. Todo soldado da Guarda Maior usava aqueles trajes e

um conjunto de armamento. Na maioria das vezes, e naquele caso, eles

portavam uma lança comprida e um escudo de aço ornamentado. No escudo

estava esculpido o símbolo dos Mercadores. Era um brasão que combinava o

símbolo da Rúfia (moeda sulista) e várias setas em circulo. O que simbolizava

o domínio econômico que os Mercadores possuíam sobre as outras famílias do Sul.

Ilsa Troca Leve percebera que os dois guardas estavam vasculhando o chão

úmido do túnel. Ainda era perceptível que alguém passara por ali. Ilsa sabia

que não teria como sair do Grande Porto naquela noite. Se a sua passagem

estava sendo vigiada, as outras também estariam. O portão principal não era,

nem de longe, uma opção. Ela sentiu-se apavorada; achou que seria pega e não

sabia ao certo o que poderia acontecer consigo mesma, afinal estava

auxiliando um fugitivo em sua fuga. Todavia, depois de tomar um fôlego que

lhe acalmou os ânimos, Ilsa vislumbrou uma solução. - Vamos por aqui. – Sussurrou para o rapaz que a seguia.

Os dois voltaram de cinquenta metros pelas sombras, a fim de se esconderem

no refúgio predileto de Ilsa Troca Leve. A mesma montanha de caixotes e

tralhas velhas que era tão familiar a ela, agora abrigaria os dois. O local era tão

apertado e escondido que ela imaginou que ninguém jamais pensaria em olhar

ali. Ilsa e o fugitivo, até então sem nome, ficariam ali até surgir uma

oportunidade de deixar o Grande Porto.

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Ilsa apontou a entrada para o seu esconderijo para o rapaz fugido. Eles se

abaixaram e passaram por um fecho dentre os caixotes. O fugitivo, apressado,

foi na frente e Ilsa o seguiu. Chegaram a um espaço que malmente cabia uma

pessoa gorda. Os dois se deitaram de lado, ficando de costas um para o outro.

Embora a posição não fosse tão desconfortável, Ilsa não se sentia dessa

maneira. O seu corpo estava colado com o corpo de outra pessoa. Outra pessoa

de sexo oposto, para piorar. Além disso, um fugitivo do qual ela nunca tinha

ouvido falar. Seu nervosismo aumentou por um instante, e seu estômago doeu,

ela não podia enxergar nada ali dentro e não sabia se podia confiar naquele

rapaz. Poderia estar correndo perigo. Antes que os dois percebessem, já

tinham se passado vários minutos e nenhum deles havia pronunciado sequer

uma única palavra. Então Ilsa Troca Leve resolveu quebrar o silêncio.

- Quem é você? – Perguntou ela e antes mesmo que o rapaz tivesse qualquer chance de responder, lançou outra pergunta.

– Por que eles estão atrás de você? – Perguntou, novamente, Ilsa, sem

conseguir enxergar o rosto do rapaz enquanto falava. Ela apenas ouvia a

própria voz e a respiração do rapaz.

- Me desculpe! Não foi por falta de educação, foram essas terríveis circunstâncias... – Falara o rapaz, encabulado.

– Me chamo Ein.. – O rapaz se agitou; Ilsa sentiu que ele se mexera mais do que o comum. Ele coçou a garganta e terminou de falar.

– Sou Enóculo... Enóculo Caixa Mar, muito prazer! – Ilsa sentiu no soar do

fugitivo que aquele nome não era verdadeiro. “Ele malmente conseguiu

pronunciar o bendito nome com firmeza” Pensou ela. Ilsa não quis questiona-

lo de imediato, privou-se a ouvir.

- Não mentirei para você, bom rapaz; Alias qual o nome do meu salvador? – Enóculo perguntou, com um sotaque muito estranho para um sulista.

Ilsa se sentiu ofendida novamente. Não era possível que o fugitivo, agora

Enóculo Caixa Mar, não a tinha distinguido de um rapaz. Então retrucou

vorazmente, levantando a voz.

- Sou Ilsa, Ilsa Troca Leve da família dos Mercadores, e você não respondeu a

minha outra pergunta! – Ouvindo a força nas palavras de Ilsa, Enóculo bateu

com força a testa no teto de caixas que os cobriam. Havia levado um susto.

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- Perdão! Desculpe-me... - Falou ele, embaraçado, enquanto coçava o couro

cabeludo, ato que Ilsa não pode ver, mas que imaginara, pela forma como

Enóculo agora se portava.

– Não sabia que a senhorita era uma mulher! Perdoe-me, deve ter sido a falta

de luz adequada. Como pude não perceber? – Se perguntava o rapaz,

completamente envergonhado.

Se ali não estivesse tão escuro, o rapaz perceberia que Ilsa havia corado. Mas,

o escuro do esconderijo deixava aquela conversa, na medida do possível,

confortável. No final das contas, era algo bom que nenhum dos dois pudesse

ver os rostos um do outro, eles conseguiam conversar com mais honestidade

dessa forma. Ilsa Troca Leve já havia até esquecido o quão estranho soou o

nome do fugitivo. Parecia ser, no mínimo, algo inventado. Porém, ela não

estava mais com esse pensamento em mente. Ficou interessada nos modos e

jeito de falar de Enóculo. Ele era demais educado para pertencer à família dos

Mercadores, quiçá um membro da família dos Selvagens. Nenhum sulista se

desculpava tantas vezes em uma mesma conversa. Ilsa, sabiamente, concluiu

que o rapaz deveria ser um daqueles que vivem ao Norte. Mas, isso seria tão

improvável quanto encontrar um dragão falante.

- Você é um ladrão? – Perguntou Ilsa, poupando gentilezas. Enóculo Caixa

Mar voltou a acertar o teto do esconderijo de Ilsa com a cabeça, novamente

envergonhado. - Não! Não. De maneira alguma. – Retrucou ele.

– Embora não possa provar, não fiz mal algum! Aqueles que estav... – Antes

que Enóculo pudesse terminar a sua fala, Ilsa levou o dedo indicador à própria

boca fez um som suave para que ele se calasse.

Os dois olharam fixamente pelo o único buraco que possibilitava enxergar

parte do Grande Porto. Pelo feche de luz, avistaram uma figura tenebrosa. Era

uma pessoa, mas não uma pessoa comum, era alguém muito mais alto e magro

que uma pessoa normal. Quase da altura de duas pessoas, vestia um robe cinza

que cobria o corpo do pescoço aos pés. O mais estranho de tudo aquilo era que

acima do seu pescoço algumas luzes cintilantes em formato de esferas

pareciam flutuar ao lado daquela pessoa. As luzes eram translucidas, pareciam

brilhar e desaparecer, quase como uma ilusão de ótica. Não era possível

enxergar nenhum tipo de feição naquela criatura. O seu rosto era ao mesmo

tempo desfocado e escuro, coberto por um capuz. Ilsa sentiu um calafrio

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terrível, sentiu que iria desmaiar quando aquela pessoa caminhou em sua

direção. Eles podiam ouvir os passos leves daquele homem tocando o chão de

madeira do Grande Porto. Um vento frio passou pela brecha por onde os dois

observavam e eles se esconderam com medo, desviando o olhar. Ilsa pulou em

cima de Enóculo e o apertou no canto dos caixotes, buscando ficar o mais

invisível possível. Ela podia ouvir o próprio coração bater vorazmente, sentiu

um pavor jamais experimentado. Ilsa notou que Enóculo também estava

extremamente agitado abaixo dela. Os dois seguraram o fôlego quando o ser

de robe cinza parou em frente ao esconderijo. Podiam ouvir as tábuas de

madeira se contorcer, como se algo muito pesado estivesse acima delas. O ar

ficou seco e gélido. Tudo dava a entender que eles seriam descobertos. Era o

fim. Mas, por força do destino, o homem com as luzes estranhas continuou a

andar passo gélidos, distanciando-se deles. Os dois soltaram o ar preso dos

pulmões, respirando em alívio. - É ele. – Enóculo suspirou no ouvido de Ilsa.

Ela queria, mais do que tudo naquele momento, uma explicação para o que

tinha acabado de presenciar. Ilsa se sentiu estranha, com uma tristeza que não

era sua.

- O que foi aquilo? – Ela perguntou enquanto apertava Enóculo com o seu

ombro. Seu corpo parecia não querer se mexer, ela estava paralisada com o

sentimento de aflição.

- Ele é um dos motivos de eu estar aqui. – Enóculo Caixa Mar respondeu, serenamente. Parecia ter uma calma desproporcional na voz.

- Como assim? Você sentiu aquilo? – Ilsa, ainda dividindo o chão com

Enóculo, perguntou. Enóculo segurava Ilsa com os braços, pois sentia que ela

estava em desespero.

- Aquilo é um Sacerdote. Ele é um deles... Um dos Donos do Tempo. Essa

sensação que você sentiu, é a mesma que qualquer um experimenta ao cruzar

o caminho deles. – Enóculo falara, suavemente.

Então tudo fez sentido por um brevíssimo momento para Ilsa Troca Leve. Ela já tinha ouvido histórias sobre aqueles seres, era como eram conhecidos os Sacerdotes, uma das famílias daqueles que viviam ao Norte. De alguma

forma, aquela pessoa se encaixava perfeitamente na descrição das histórias.

Mas, o simples fato de estar na presença de um daqueles que vivem ao Norte

era algo inexplicável para ela.

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Ilsa se tocou que estava abraçada a um estranho. Saiu de cima de Enóculo e

escorregou para o outro canto apertado do esconderijo. Ficou ali paralisada

por alguns instantes. Mas, logo retomou consciência sobre a realidade.

- Ele é do Norte? – Perguntou Ilsa Troca Leve no mais alto tom possível para a situação.

- Sim, ele é. Seu nome é Ghart, ele é um Sacerdote e não um dos bons. – Enóculo explicava com um tom enraivecido. Parecia ressentido.

– Foi esse maldito que me prendeu naquele navio por todo esse tempo. – Completou Enóculo rangendo os dentes.

Ilsa ficou abismada ao notar a verdade na voz do rapaz, seria ele de fato a

vítima naquela situação? Algo dizia a ela que sim. Ilsa não pôde deixar de

notar que era algo muitíssimo interessante que alguém soubesse o nome de um

dos Donos do Tempo. De fato, Enóculo Caixa Mar guardava segredos além da

imaginação. Antes que a conversa continuasse, Ilsa Troca Leve resolveu agir.

- Venha! – Falou ela enquanto puxava Enóculo Caixa Mar para fora do esconderijo.

Os guardas, que protegiam a passagem por onde Ilsa planejava escapar, já

haviam passado duas vezes por eles, sem êxito na busca. O ser estranho e

amedrontador, agora Ghart, já havia sumido há tempos, então Ilsa concluiu

que era seguro tentar escapar do Grande Porto novamente. Os dois saíram do

esconderijo, movendo apenas os músculos essenciais. Pareciam sombras

cruzando calçadão de madeira até a passagem por aonde Ilsa viera. Depois de

muita cautela, e alguns passos a frente, avistaram o mesmo túnel sujo de

outrora. - Merda! – Expressou-se Ilsa Troca Leve em bom e alto tom.

Enóculo segurou o riso. Era uma moça com a boca suja, coisa nunca vista por

ele. Mas, logo sua expressão de alegria foi embora. Ainda havia uma pessoa

vigiando a passagem para a liberdade dos dois. - É um deles! Ele estava no navio com os outros. – Explicou Enóculo.

Ilsa olhou para Enóculo com semblante de desespero. Não sabia como eles

haveriam de passar por aquele homem que impedia as suas fugas. O homem

aparentava medir mais de dois metros de altura, era gordo e largo. Tinha

cabelos grisalhos e uma barba mal penteada. O que piorava a situação era que

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ele portava uma grossa espada de ferro na mão direita. Parecia desafiada,

talvez por ter sido muito utilizada. O homem ficava andando em círculos em

frente à passagem. Riscava o chão com a ponta da espada e às vezes gritava

consigo mesmo: “Pragas! Pragas!”. Toda a cena deixava Ilsa apavorada, havia

se metido em problemas além da sua capacidade de solução.

- Você pode fazer algo em relação a isso? – Perguntava Enóculo, mostrando as mãos amarradas para Ilsa.

Ilsa começou a tentar desamarrar as mãos de Enóculo, velozmente. Ela

demostrou habilidade com as amarras. Dar nó e amarrar encomendas era algo

que qualquer Mercador sabia fazer muito bem. Após vários giros e puxões,

Enóculo estava com as mãos livres. Foi então que Ilsa Troca Leve foi

surpreendida. Enóculo, sem quiçá se pronunciar, saiu em disparate em direção

ao troglodita armado. Parecia um gato de tão veloz. Antes que Ilsa Troca Leve

pudesse dizer qualquer coisa, Enóculo se lançou ao ar, com um tremendo pulo,

passando por cima de vários barris deitados, deu um impulso com uma das

pernas na parede paralela ao túnel, caiu por cima do capanga, o nocauteando

com um chute. Toda aquela movimentação malmente fez barulho algum e

durou poucos segundos. Ilsa não teve tempo de reagir, nem de ficar

impressionada.

- Vamos! Não temos muito tempo. – Enóculo se expressou, agindo de forma ordinária tendo em vista o que acabara de acontecer.

Ilsa e Enóculo caminharam depressa em direção à passagem suja e escura.

Desta vez Enóculo que puxava Ilsa Troca Leve, caminhando a frente dela.

Poucos passos afrente, Ilsa passou a frente de Enóculo, guiando o rapaz para

fora do Grande Porto. Quando se sentiu segura o suficiente Ilsa resolveu

esclarecer o que acabara de acontecer.

- O que foi aquilo? – Perguntou enquanto andava apressada. Enóculo não demorou de replicar.

- Aquilo o que? – Perguntou ele, inocentemente. Ilsa não entendeu o que ele queria insinuar, ou se apenas estava sendo modesto.

- Como você fez aquilo? Aquele homem tinha o dobro do seu tamanho e você

o colocou pra dormir em um piscar de olhos. – Expressou ela, cheia de

entusiasmo.

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Enóculo ficou constrangido e nervoso ao mesmo tempo, teria que pensar

rápido para responder a Ilsa. Pensou em contar a verdade por inteira, mas se

conteve. - Foi só um reflexo. – Disse ele forçando um sorriso.

Ilsa Troca Leve se viu de volta a Cidade Porteira. Havia deixado o Grande

Porto sem ter tempo de pensar direito em tudo aquilo que acontecera. Os dois

estavam, enfim, longe daqueles que os perseguiam. Enóculo apenas seguia

Ilsa, caminhando pelas ruas escuras da Cidade Porteira. Ele caminhava

conforme Ilsa o guiava, na esperança de que ela soubesse o que estava

fazendo. Mal sabia ele que Ilsa malmente conseguia pensar, estava, sem notar,

extremamente excitada por aquilo tudo estar acontecendo, ao ponto de

esquecer todos os seus temores. Fosse com qualquer outro Mercador, os

efeitos de uma aventura repentina seriam totalmente diferentes. É um mal de

tradição. Os Mercadores, e quase todos os além-sul, são pessoas muito

tradicionais e rotineiras, daquele tipo de pessoas que se incomodam com

qualquer mudança e vangloriam o dia-a-dia. Não Ilsa Troca Leve, ela sempre

sonhara no dia que algo viria e que acabaria com todos aqueles

questionamentos tediosos que lhe afligiam.

Ilsa e Enóculo já haviam alcançado uma parte da Cidade Porteira onde

malmente se conseguia enxergar as lamparinas do Grande Porto. Já haviam

passado por quase todo o Comércio, haviam passado às pressas, pela Vende

Tudo, onde Ilsa malmente percebeu ter estado. Correram vários outros metros

até se verem em frente ao armazém dos Troca Leve. Foi onde Ilsa resolveu

parar para recuperar o fôlego. - Qual o plano? – Perguntou Enóculo Caixa Mar.

Ilsa se surpreendera com a pergunta. Ela segurava os joelhos enquanto

recuperava o fôlego. Rapidamente se levantou e respondeu a pergunta com

outra pergunta.

- Qual o plano? Você não tem um plano? – Perguntou Ilsa, segurando Enóculo pelo colarinho da blusa macia que ele vestia.

Enóculo ficou ao mesmo tempo encabulado e amedrontado. Aquilo não era a atitude de uma moça comum. Ela era forte. - Nã... Não. Perdão! – Ele gaguejou.

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Ilsa recuou quando viu a reação de Enóculo. Ele parecia estar mais perdido

que ela. Malmente podia acreditar que aquele sem-jeito fora o mesmo que

derrubara o gigante amedontrador, quinze minutos atrás.

- Pensei que você soubesse para onde estamos indo. – Disse Enóculo, justificando-se.

Ilsa ficou sem saber o que dizer. Apenas sentou, se escorando na porta de

madeira do armazém dos Troca Leve. Respirou fundo e começou a pensar

para onde prosseguir. Pensou em esconder o rapaz ali mesmo no armazém dos

Troca Leve, mas lembrou que havia deixado a chave, em conjunto com o seu

caderninho, na Vende Tudo. Podia invadir a loja dos pais para pegar as chaves,

mas ficou temerosa quanto a ideia de voltar, ainda que fossem alguns passos.

Afinal a Vende Tudo ficava muito próxima ao Grande Porto. Ilsa entrou em

profunda meditação enquanto olhava Enóculo subir e descer a rua, vigiando

caso algum perseguidor aparecesse de surpresa. Passaram-se alguns minutos

até que Ilsa Troca Leve se levantou em um pulo.

- Vamos! Eu sei o lugar perfeito! – Ilsa, guiando Enóculo Caixa Mar, com passos apressados, partiu para o destino pensado, em busca de uma aventura.

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Capítulo II

Brum

Duas décadas já haviam se passado deste a Ruptura. Fato é que toda a Arreta não era mais a mesma desde que tudo aquilo se passou. As pessoas estavam

definitivamente apreensivas e temerosas. Muito mais do que antes. Desde que

os Criadores impuseram o plano de leis essenciais, toda a dinâmica do planeta

foi forçado a mudar. Os além-sul foram os mais prejudicados com aquela nova

situação. Os Forjadores traziam palavra de muita insatisfação e medo

daqueles que abrigavam o Sul. Na Cidade Mundo, capital de todo o Norte e de

toda Arreta, o clima era de agitação. O Ministro, prefeito da Cidade Mundo,

iria fazer um pronunciamento para relembrar o aniversário de duas décadas da Ruptura.

Em cima de um palco imenso feito de aço leve, estavam o próprio Ministro, o

General de Defesa e outros quinze figurões. Mais de trinta mil Nortistas

esperavam na praça central da Cidade Mundo para ouvir as palavras do

Ministro. A expectativa era enorme. O presente e futuro de todos os habitantes

de Arreta dependiam das palavras do Ministro. Poucos eram aqueles que

estavam contentes com a situação do planeta após a Ruptura, o plano de leis

essenciais trazia exigências que cerceavam as liberdades de quase todos os

cidadãos de Arreta. “Tudo em prol do bem da sociedade”. Pregava o Ministro

e a maioria dos Sacerdotes que ajudavam a fiscalizar e aplicar as leis.

Verdade é que aquelas leis criaram um clima de terror e falsa segurança por

todo o planeta. Os além-sul estavam sendo terrivelmente prejudicados com os

novos termos de comércio. As taxas alcançaram a beira do impossível. Muita

fome e desespero se espalharam por todo o lado sul do planeta. Com todo o

caos, vários grupos militantes apareceram e começaram a fazer frente ao poder

das grandes cidades, estavam vivendo de saques e venda de mão de obra

escrava. Poucas vilas conseguiram se manter e a Cidade Porteira, em conjunto

com as outras grandes cidades sulistas, estavam lotadas com os refugiados das

vilas que foram atacadas.

De volta a Cidade Mundo, a maior e mais bela cidade de Arreta, o Ministro se

apossara do grande microfone prateado para efetuar o seu discurso. Trinta mil

pessoas, que estavam na principal praça, que era desenhada em formato

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circular, parecendo um estádio, e o restante do planeta, prenderam o fôlego enquanto ouviam o Ministro se pronunciar.

Longe dali e de toda a euforia, encontrava-se um pequeno vilarejo,

carinhosamente chamado de Erma. Erma era um lugar bastante tranquilo e

isolado. Ficava a quilômetros da Cidade Mundo, na parte plana das

Montanhas Áureas. Eram cerca de trinta casebres que se confundiam com as

árvores e musgos da paisagem. Esses casebres, feitos de terra-fogo e madeira

verde, eram distribuídos em poucas ruelas de barro batido e abrigavam os

Ermitas, membros peculiares da família dos Sacerdotes, que viviam

praticamente isolados do restante do planeta. Os Ermitas eram conhecidos por

serem ótimos com misturas e poções. Suas receitas milenares guardavam a

cura para muitas doenças que afligiam aqueles que viviam ao Norte.

O sol raiava com fraqueza quando os primeiros casebres de Erma se abriram

para a vida. Logo, as ruelas estavam movimentadas com um sobe-desce

desenfreado. Fazia um frio terrível pela manhã, o sol nascente malmente

conseguia penetrar as nuvens espeças que cobriam as Montanhas Áureas pela

manhã. Mas, nenhum Ermita gostava de acordar tarde. Ao menos, assim era

dito.

- Já passou da hora! Já passou da hora! – Batia na porta fina, o Velho. –

Acorda Brum! Que diabos, todo dia é a mesma coisa! – Berrava ele, às cinco

da manhã.

Brum estava todo enrolado e ouvia a voz do Velho, seu avô, o chamando de

longe, quase sem consciência. Foi uma cutucada firme que o fez reviver.

Quando sua visão resolveu voltar a funcionar, Brum avistou seu avô o

encarando e baforando o tradicional cachimbo, que queimava alecrim, em sua

cara. O Velho, portando sua poderosa bengala de carvalho branco, cutucava a

testa de Brum para assegurar que o mesmo acordasse. - Ai! Ai! Para com isso velho maldito! – Despertara Brum.

Ele se levantou a fim de que o Velho parasse de lhe acertar na cabeça. O

Velho deu uma risada fraca, enquanto segurava o cachimbo com o canto da

boca, e saiu do quarto de Brum. Ele amava o neto.

O quarto de Brum era muito parecido com ele mesmo, uma bagunça. Estavam

lá, a cama de madeira com um colchão de pelo de carneiro, cheio de penas de

ganso, uma mesinha com livros desordenados e um guarda-roupa que não

guardava roupas, apenas tralhas. A esse ponto é bom saber que Brum era um

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garoto de doze anos de idade. Ele era baixinho e magricela. Usava sempre a

mesma roupa, um calção de algodão folgado, uma camisa branca

completamente suja, e um robe longo, que mais parecia uma saia, que cobria

todo o restante das vestimentas.

Brum, como todo bom Ermita, andava descalço e cobria o rosto com um

grande chapéu pontiagudo de palha. Ele era um rapaz fácil de caracterizar. “A

preguiça em pessoa”. Diria o Velho. Além de preguiçoso, Brum era o mais

desengonçado cidadão de Erma. As outras crianças costumavam tirar sarro das

besteiras que ele fazia. Ganhou o apelido de Brum Queima Calça, pois em

uma aula de Misturas conseguiu derramar terra-fogo líquida, substância

altamente inflamável, em suas próprias calças, tendo que se arrastar pelo chão

em seguida, feito um cachorro, para apagar as chamas. Essa era o mais

conhecido feito de Brum, mas havia dezenas de outros que confirmavam a

fama de Brum Queima Calça.

Naquela manhã em particular, Brum iria enfrentar, mais uma vez, o começo de

um ano letivo na Casa das Misturas, a academia local. A Casa das Misturas

ficava localizada no centro do vilarejo de Erma. Era um casebre muito maior

que os outros da vila. Tinha dois andares e era muito extenso. Um verdadeiro

milagre da arquitetura Ermita. Não era nada fácil construir casas apenas com

barro, terra-fogo e madeira verde, mas os Ermitas o faziam com maestria.

Finalmente, Brum levantou-se da cama por completo. Sacudiu os braços e

pernas e pisou no piso frio de seu quarto. O chão era feito de pequenas pedras

encaixadas uma por uma, assim como o chão de todas as outras casas de Erma.

Brum seguiu para o único banheiro da casa que ficava a dois passos de seu

quarto. Jogou uma porção de água gélida no rosto e bocejou outra porção.

Seguiu para a sala/cozinha onde o Velho já lhe encarava, mal humorado.

- Você não toma jeito, sujeito. – Reclamava o Velho, enquanto mexia dois

ovos em uma panela de barro. Brum, cabisbaixo, sentou-se em um banquinho

de madeira, ajeitando-se a mesa.

– Isso lá são horas de acordar? O sol já está frio lá fora! – Brigava, sem

esperanças, o Velho. Ele sabia que Brum era diferente dos demais, mas não se

importava. O Velho colocou no prato de Brum metade dos ovos fritos e deu

outra pancada na cabeça dele com a bengala de carvalho branco. - Coma! – Berrou ele enquanto sentava-se do lado oposto ao de Brum.

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Brum ficou coçando a cabeça, com dor, enquanto engolia a comida. Não

demorou muito e Brum já estava pronto, na medida do possível, para

prosseguir para a Casa das Misturas. Apesar de não ter a mínima vontade de

ir, Brum sabia qual seria o discurso de seu avô caso se expressasse. Além

disso, apesar de ser o primeiro dia de aula, aquele seria o seu último ano de

aulas obrigatórias na Casa das Misturas. Todo Ermita era obrigado a saber

pelo menos o básico sobre as receitas e fórmulas tradicionais. Por essa razão,

todos eles frequentavam a Casa das Misturas dos três anos de idade até os

treze anos. Era um curso de uma década onde eles aprenderiam a dar

continuidade à tradição dos Ermitas. No final de cada ano, havia uma festa

para comemorar a formatura dos Medianos, título dado àqueles que

conseguiam concluir o curso básico. Em breve Brum seria um deles e uma

questão muito difícil pairava sobre sua mente jovem. Brum não sabia o que

fazer depois que saísse da Casa das Misturas; eram poucos que conseguiam

continuar estudando as fórmulas, já que o curso para se tornar um Alquimista,

título posterior ao de Mediano, não era de graça nem muito barato. Ele poderia

tentar um emprego na Casa das Misturas, mas sabia que isso era muito

improvável de acontecer. Iria acabar debaixo das asas do Velho, tendo que ser

auxiliar em seus negócios. O Velho era um Mediano muito experiente e fazia

cerca de cem poções por ano que eram encomendadas pela Casa das Misturas.

Fabricava tudo ali mesmo no galpão que tinha em anexo a sua casa. Isso era,

basicamente, o comum em Erma. A maioria da população vivia de fabricar

curas, remédios e poções excêntricas que eram exportadas para o restante do

Norte, principalmente para a Cidade Mundo.

- Vê se não morre Velho maldito! – Brum se despedira do avô, agarrando um

livreto fino e colocando alguns pães duros nos bolsos largos da calça de

algodão para mais tarde.

Ele ainda pôde ouvir, de longe, os resmungos do Velho enquanto batia a porta

da casa. Lá fora, ainda de manhã, estava tudo nublado e gelado. Brum podia

enxergar as três casas que dividiam a rua com a dele e de seu avô. Eram

casinhas como a dele, só que possuíam uma pequena área na frente, um

campinho verde onde algumas verduras e ervas eram cultivadas. Era possível

enxergar o orvalho recente nas folhas recém-abrochadas.

Brum se apressou quando percebeu que o movimento na ruela era mínimo,

todos já deveriam estar na Casa das Misturas. Pelo menos todos da sua idade.

As aulas sempre começavam as cinco e quinze, fizesse chuva, neve ou sol. Ele

saiu apressado, quase tropeçando no chão que era coberto por grama verde e

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macia e algumas pedras soltas. Erma era uma vila muito simpática aos olhos

de qualquer pessoa. O clima serrano em conjunto com uma certa energia

inexplicável, faziam daquele lugar um dos mais belos e quietos cantos de toda Arreta.

Brum corria, segurando o livreto debaixo do braço direito e apertando os pães,

que mais pareciam pedras, nos bolsos da calça. Apenas parava para apertar o

imenso chapéu de palha na cabeça para que não caísse. Correu até o fim de

sua rua. Passou cerca de seis propriedades inteiras até se ver na avenida

principal. Essa rua era carinhosamente apelidada pelos moradores de Erma

como A princesinha. Era assim, pois era lá onde todas as outras ruas da cidade

se encontravam, então todos acabavam tomando aquela rua como referência

para ensinar qualquer caminho, daí passando a amar e cuidar daquela rua

como se fosse o coração da cidade. E de fato o era, no final da Princesinha,

ficava a Casa das Misturas. Aquele casarão se destacava dentre as outras

casas miúdas. Ali na Princesinha ainda havia outros edifícios oficiais e vitais

para o funcionamento de Erma. Ficava lá a Casa do Carteiro, onde todo o

comércio e correspondência com o mundo afora era feito. Também a Câmara,

onde ficava o Ancião, homem responsável por todo o funcionamento e

harmonia de Erma. Outras tantas casebres ali se destacavam. Mas, Brum

malmente pôde enxergar os detalhes de cada estrutura quando passou feito um

raio pela Princesinha. Sabia que não era nada bom chegar atrasado ao seu

primeiro dia de aula. Apressou-se o quanto pôde. Quando ajeitou o seu chapéu

pela última vez, se deu de cara com a imensa porta ornamentada da Casa das

Misturas. Estranhamente não havia ninguém em frente a ela. O costume seria

ter dezenas de estudantes e alguns Mestres que ali ficavam para colocar ordem

na baderna. Todavia, apesar de vazia, a frente da Casa das Misturas estava

aberta.

Brum, sem se demorar nem mais um pouco, adentrou a procura de sua classe.

Logo ao entrar na Casa das Misturas ele deparou-se com o imenso salão que

recepcionava qualquer um que ali entrasse. Apesar de já ter estado ali mais de

mil vezes, era impossível não se impressionar com a beleza do salão. Era tudo

impecavelmente métrico. O mais intrigante de tudo, no teto, algumas flores

pareciam nascer aos avessos. Elas possuíam as raízes no céu e cresciam a

caminho da terra. Era algo muito belo e mágico.

- Mocinho! Que diabos ainda está fazendo ai? – Perguntava, enquanto puxava Brum pela manga da roupa, uma senhora alta e magra.

30 - Droga, a supervisora. – Sussurra Brum, quase que em pensamento.

Na verdade não se tratava de uma supervisora. Era a mestra Matilde

Vermelhão. Ela era uma das mais antigas funcionárias da casa. Sempre

trabalhou lecionando, bem, quase sempre. Reza a lenda que um dia ela dava

aulas como qualquer outro Mestre, mas acabou sendo afastada por se

desentender com um dos alunos de forma severa por demais.

- Já está deste jeito no primeiro dia letivo? Mas vejam só. – Reclamava

Matilde Vermelhão, enquanto arrastava Brum, quieto e indefeso, para a sala

de aula.

Eles percorreram um imenso corredor que separava o salão principal da Casa

das Misturas da ala dos estudantes. Havia várias salas e escadas torcidas por

todo o corredor. Nenhum estudante sabia ao certo para onde aquelas escadas

levavam. Alguns diziam que levavam para salas secretas onde os Mestres

guardavam as mais raras fórmulas. Outros contavam histórias sobre os

estudantes que subiram as escadas e nunca mais voltaram. Mas, no fim, era

tudo especulação e conversa para amedrontar os novatos. Brum não pôde nem

se justificar para a Sra. Vermelhão. Já estava diante do seu Mestre e sua turma,

que lhe olhava minuciosamente.

- Professor, temos um fujão. Espero que não se importe. – Explicava a

situação a Sra. Vermelhão, enquanto Brum procurava uma cadeira para se

sentar.

A sala de aula era muito comum. Talvez se diferenciassem apenas nas

mesinhas dos alunos, que eram muito maiores que as normais. Todas feitas de

madeira e muito pesadas. Brum então percebeu que o seu novo professor era

bastante estranho. Se ele não estivesse enganado, aquela era a aula de História

dos Elementos III. Era uma das últimas matérias que os aspirantes a Mediano

cursavam. O Mestre Girvino, como estava escrito no quadro negro, era um

sujeito realmente deselegante. Vestia a manta branca, desabotoada, da Casa

das Misturas por cima de sua roupa esquisita. De baixo para cima: um sapato

negro, elegantíssimo, polido à língua, e daí pra cima a coisa só piorava, vestia

uma bermuda que deixava sua canela descoberta, a coisa era puxada por dois

elásticos laterais que se prendiam aos ombros, uma camiseta social com as

mangas dobradas era tudo que se dava para ver abaixo da manta. Não ficava

só nisso, o mestre Girvino tinha uma cabeleira descontrolada, totalmente

branca e em pé. Tinha também bastante pelo no rosto. Era de fato um sujeito

31

cômico. Brum pôde sentir os olhos de vários colegas em suas costas, não era nada bom estar atrasado e chamar toda aquela atenção.

- Pois... pois bem cla... classe! – Exclamou, gaguejando, mestre Girvino. –

Vamos dar continuidade ao assunto. – Falava ele enquanto apontava para o

quadro negro e deixava a Sra. Vermelhão partir.

Lá estava escrito, bem no topo e em letras garrafais, algo sobre os Magos. Esse

título era concedido a alguns poucos Sacerdotes, era um estágio pouco visto

onde um Mestre Sacerdote conseguia exceder os conhecimentos dados, se

destacando do restante. Nenhum Ermita vivo possuía aquele título, apenas

sacerdotes de outra parte do Norte o logravam.

- Como eu estava dizendo, alguns livros antigos trazem essa inscrição para

descrever o fenômeno estudado. – Mestre Girvino explanava enquanto coçava

a barba espessa.

Brum ficou impressionado com o esquema que o professor trazia no quadro

negro, sobretudo com uma palavra muito estranha que se destacava.

“Spittisferas” era a palavra escrita na vertical ao lado direito do quadro. Brum

sentiu a ânsia e quis levantar a mão para perguntar ao mestre Girvino do que

se tratava aquilo. Mas, antes que o fizesse, o professor lecionou.

- De acordo com os ensinamentos alguns Magos eram capazes de realizar o

ato em questão. Falo sobre aqueles... – Mestre Girvino passou a falar em um

tom mais calmo e sério, quase assustador. Toda a sala tomou um ar sinistro e

atencioso.

– Aqueles que foram além. Aqueles que foram além do que deveriam ir.

Dizem os ensinamentos antigos que poucos, raros, talvez dois ou três, não se

sabe ao certo... – E ele fazia círculos com as mãos em torno da cabeça. –

Dizem que eles conseguiram demostrar a força das almas. Demonstrar para

que todos pudessem ver! – Mestre Girvino deu um berro que fez metade da

turma pular das cadeiras. Logo depois caíram na gargalhada.

- Claro que isso não passa de histórias bobas. – Completou o professor com um sorriso no rosto. Brum ficou encantado com a história e não se conteve.

- Demonstrar como? – Perguntou ele, sem levantar a mão, na primeira oportunidade de silêncio que teve.

32

A sala inteira prestava atenção em Brum e no seu olhar curioso. Todos sabiam

que aquilo não se passava de histórias mal contadas, quase ninguém da vila

acreditava naquelas loucuras. Mas o pequeno Brum estava de fato curioso com

a história. Mestre Girvino mudou o semblante novamente, para um tom mais

sério. Chegou bem próximo a Brum para respondê-lo.

- Bem... – Falou em voz alta. – Não se sabe ao certo, mas alguns dizem que

aqueles Magos conseguiriam dobrar a força espiritual de terceiros. Eles o

faziam de forma tão completa que esses espíritos viravam esferas negras no

exterior do corpo do agente. Isto é, esferas que rondavam aquela pessoa... Como uma forma de lembrar aquele que lhes usavam. – Mestre Girvino virou-se para o quadro e caminhou afastando-se de Brum. - Lembrar do que? – Perguntou Brum, estonteado.

Mestre Girvino voltou a olhar para Brum com o mesmo olhar sério e sereno e respondeu para toda a classe.

- Lembrar que eles ainda estavam ali, para sempre e a todo momento, do lado

daqueles que ousassem os usar. Aqueles que perturbavam o seu descanso. –

Respondeu Mestre Girvino com uma voz gélida.

Brum ficou impressionado com a história do professor. Será que aquilo tudo

tinha algum fundamento? Perguntava-se a classe que ficou silenciosa por

alguns minutos. O professor mudou mais uma vez o semblante e voltou a falar

dos Magos; Explicou quanto trabalho era necessário para adquirir o titulo mais

alto dentre os Sacerdotes e como era venerável o único Mago da história dos

Ermitas. Era o diretor da Casa das Misturas, homem nunca visto em público

enquanto vivo. Em seu tempo, vivia encarcerado na mais alta parte do edifício

e só falava através de locutores, mesmo assim, muito raramente.

Brum não conhecia ninguém naquela nova classe. Acontecia que a cada ano,

vários aspirantes desistiam do curso para começar logo a fabricar e vender

poções. Aqueles que possuíam condições para tanto, realizavam cursos

intensivos para acelerar os ensinamentos, coisa que era muito cara e apenas os

filhos de ricos conseguiam realizar. Fora o sinal estridente que salvara Brum

do restante daquele dia tedioso. Já havia devorado os pães-pedras e nada mais

entrava na sua cabeça jovem. O sol já estava no seu ápice, queimando

qualquer retina que ousasse lhe olhar, e Brum estava inquieto. Finalmente

estava livre para voltar para casa. Não para casa na verdade, para o galpão do

avô, onde ajudaria o Velho a terminar as poções encomendadas. Brum se

33

encaminhou para a saída da sala, na qual ficara a manhã inteira sentado. Nem

olhou para o mestre Girvino ao deixar a sua carteira de lado. Ficou encarando,

enquanto andava os últimos passos dentro da sala, a palavra escrita na vertical

do quadro. ““Spittisferas”. Talvez jamais esquecesse daquela palavra. Mas,

logo se viu no corredor, outrora vazio, que agora estava cheio de alunos mais

novos. Brum percebeu como era fácil distinguir os novatos do restante dos

aspirantes. Eles estavam sempre com aquela cara de admiração. Brum

lembrou-se ainda do seu primeiro ano na Casa das Misturas. Sentiu um aperto

momentâneo no coração, sabia que naquele ano tudo iria acabar e temeu o

futuro por um instante.

Antes de mais poder filosofar, Brum seria novamente vitima de sua forma de

ser. Tropeçou nos próprios pés, arremessando livro e papeis ao chão. Brum se

percebeu repetindo seu ritual vergonhoso. Puxou o chapéu de palha para

baixo, cobrindo mais ainda o rosto. Começou a assobiar baixinho, querendo

não escutar a risada alheia. Recolheu tudo tão rápido quanto pôde e continuou.

Fosse outro, talvez aquela situação acabasse com seu dia. Não Brum, nunca

ele. Aceitando tudo como rotina, Brum prosseguiu para a saída da Casa das

Misturas. Logo ninguém mais estava rindo e Brum olhava para o céu

novamente. Dessa vez tudo estava mais claro. O céu não possuía nuvens e o

sol atingia a terra com vigor. O movimento era intenso na Princesinha,

homens passavam empurrando vários carrinhos com ingredientes. Caixas e

mais caixas com frascos de vidro e pepitas. Grãos, corantes, ervas, minerais

finos, temperos e ingredientes estranhos, todos por um preço. Brum passou por

entre os comerciantes e carrinhos e foi direto para o galpão que ficava grudada à casa deles. “Não se mistura trabalho com conforto!” dizia o Velho, então,

nada era feito dentro de casa, por isso existia o galpão, ou loja. Poucos passos

antes de adentrar o galpão, Brum avistou o Velho de longe. Ele estava muito

agitado e se movia de um lado para o outro, entrando e saindo do galpão. Hora

carregava algo para fora, hora algo para dentro. Estranhando a situação, Brum

se aproximou.

- O que houve Velho maldito? – Perguntou ele, preocupado. O Velho não notou Brum de imediato e tomou um susto quando o percebeu.

- Rápido! Ande! Não há tempo! – Berrava de forma quieta o Velho. Ele estava

suando e parecia totalmente aflito. Brum franziu a testa sem entender a

situação.

- Não há tempo para quê? – Perguntara ele. O Velho, empurrando Brum com o cajado e arrastando algumas maletas para dentro do galpão, respondeu.

34

- Você não soube? – Ele trancou a porta nas costas de Brum. – Mas é claro

que não! Que tolice a minha. – Continuou falando desenfreadamente. – O

bendito Ministro! Todos estão preocupados! O plano de leis. O bendito plano

de leis! Foi justamente o contrário! – Berrava o Velho, em seguida cobrindo a

boca com a mão, como quem falou o que não devia.

Brum não entendeu uma sequer palavra daquilo tudo, mas antes que

percebesse, já estava com uma mochila nas costas com vários suprimentos,

parecia que iria partir em uma longa viagem, ainda que ele não soubesse disso.

- Espera ai! O que você tá dizendo velho maldito? – Perguntou Brum,

enquanto segurava o Velho pelo braço. O Velho percebeu que Brum estava

assustado, mas não teve tempo de dizer muitas outras coisas.

- Não há tempo! Brum, por favor, me escute. – E ele o fez, pois o Velho falava

com seriedade. – Você tem que partir, vá para Aiwa, e encontre sua tia Frida.

Ela te explicará tudo. – O Velho só parava de falar para colocar mais coisas

dentro da mochila de Brum. – Se tudo ocorrer como eu estou pensando, irei te

encontrar lá.

- Mas o que o senhor está dizendo? Estamos fugindo? – Brum estava tão aflito

quanto o Velho, foram poucas as vezes que ele tinha saído de Erma. Nunca

havia deixado a vila sozinho.

De fato eram poucos que se aventuravam a descer as Montanhas Áureas,

perigos terríveis se passavam por aquelas estradas inclinadas. O caminho para

Aiwa, cidade mais próxima das Montanhas Áureas, era longo e difícil de

prosseguir. Aiwa ficava ao pé das Montanhas, no lado sul da cordilheira. O

Velho fechou a mochila de Brum, prendendo um colchonete na sua abertura.

Fechou a porta da frente do galpão e ficou olhando para a rua, como se

esperasse o inusitado. Voltou-se para Brum e falou baixo, mas claramente.

- Brum, me escute, saía pela porta do fundo, não fale com ninguém, não pare

em lugar nenhum, a não ser que seja extremamente necessário. Desça as

Montanhas, até chegar em Aiwa, e procure por sua tia Frida. – O Velho ficou

encarando Brum até que o mesmo abaixou a cabeça, sinalizando que tinha

entendido.

Seguindo as ordens do Velho, mas contrariado, Brum prosseguiu para a porta

dos fundos. Sentiu um calafrio quando viu que o Velho estava olhando para a

rua, apavorado, não tinha a mínima noção do que estava realmente

acontecendo, mas prosseguiu. Teria um ardo caminho pela frente, iria descer

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as Montanhas Áureas, viagem que levaria no mínimo três dias e duas noites na

melhor das hipóteses. Fechou a portela dos fundos e tomou um tremendo susto

quando ouviu a estalo da porta que se fechou nas suas costas. Estava sozinho.

Sentiu que iria chorar, mas não o fez. Brum tomou um folego quebradiço,

lutando com a própria ansiedade e seguiu as ordens do Velho.

Andou cerca de treze passos até se encontrar saindo do terreno de seu avô,

percebeu que outras famílias estavam na mesma aflição que o Velho, algumas

pregavam madeiras nas portas e janelas na tentativa de fortificá-las, como que

na intenção de protegê-las de um mal futuro. Por um estante Brum quis ficar e

verificar o porquê daquilo tudo, mas lembrou-se do olhar do Velho e deixou

Erma para trás o mais rápido que pôde. De onde ele estava só havia uma

opção viável para deixar Erma. Ele teria que descer as Montanhas Áureas

saindo da vila de Erma pelos fundos. Desceria pelas trilhas pouco usadas até

metade do caminho, de lá retornaria, subindo novamente, cerca de um

quilometro até poder contornar as Montanhas e prosseguir descendo pela

estrada principal. Brum sabia aquilo tudo de cabeça, todavia não tinha a

mínima noção como seria realmente trilhar aquele caminho. Assegurou-se que

sua mochila estava devidamente presa, puxando as alavancas de couro presas

ao ombro, ainda teve tempo de olhar mais uma vez, agora mais de longe, Erma.

O chão estava molhado e as ervas daninhas cheias de gotículas d’água que

cintilavam raios de sol. Brum começou a caminhar firme e forte, sem

conseguir parar de pensar no ocorrido. “Por que o Velho estava naquele

desespero?” pensava consigo mesmo. Ainda teve tempo de pensar na Casa das

Misturas e na aula do Mestre Girvino, tudo parecia tão insignificante agora.

Viu-se deixando a vila cada vez mais para trás, andando cerca de dois

quilômetros até achar a trilha que era coberta por vegetação trepadeira. Brum

temeu prosseguir quando enxergou a trilha para descer as Montanhas. Ela era

coberta por uma floresta vasta e mal se podia enxergar para onde ela levava.

Antes de prosseguir, ele achou uma pedra grande e lisa e sentou-se para

recuperar o fôlego. O sol já estava mais frio e a tarde se aproximava. Brum

ficou encarando os próprios pés por cerca de cinco minutos antes de tomar

uma decisão. Ele quis, do fundo do coração, voltar para Erma e procurar o

Velho, não queria de maneira nenhuma continuar a prosseguir por aquela trilha

tão desconhecida, poderia se perder e nunca mais conseguir voltar para casa.

Pensou ainda no seu último ano e no seu merecido título de Mediano, não

poderia deixar tudo para trás daquela forma. A vontade foi tanta que ele se

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levantou caminhando em direção à Erma. Já tinha voltado vários passos quando tropeçou em algumas raízes que teimavam a ficar na terra.

Caiu de cara no chão, machucando o próprio antebraço em uma tentativa vã de

se proteger. O choro que outrora não veio agora se fez presente. Lá estava um

garoto sentado no meio do caminho, chorando após uma queda. Não era a dor

do antebraço que fazia Brum chorar, ele há muito queria vivenciar uma

situação parecida com aquela; queria provar ser muito mais do que

demonstrava, sabia que podia. Sair de Erma e procurar uma aventura. Porém,

quando Brum se percebeu diante da trilha coberta, notou que estava distante

demais da vila. Entendeu que aquilo que desejamos nem sempre é da maneira

que imaginamos ser. Fosse outra situação, Brum teria voltado a Erma e

desobedecido o comando do Velho, mas ele caiu e teve tempo de mudar a

própria forma de pensar. Minutos depois, passado o soluço do choro, Brum

sentiu uma coragem vinda de algum lugar desconhecido. Lembrou-se mais

uma vez das palavras do Velho e obrigou-se a continuar. Levantou, limpando

as roupas com pancadinhas leves, novamente prendeu a mochila de couro nas

costas. Apertou o passo descalço e voltou para a entrada da trilha coberta.

Ali o cenário se fazia muito diferente. O chão, que outrora era coberto por

musgos e ervas daninha, já era mais pedregoso e frio. As árvores que cresciam

ao lado da trilha já eram maiores e mais amedrontadoras. O próprio sol já não

se fazia tão forte diante da sombra da própria trilha. Tivesse ele parado para

pensar mais uma vez, talvez não tivesse prosseguido, mas não o fez e

continuou caminhando. Brum adentrou a trilha e começou a descer as

Montanhas. Sentiu o joelho reclamar enquanto descia pisando cautelosamente

entre as pedras. Algumas pequenas, outras tão grandes quanto o próprio Brum.

Ele percebeu que caminharia mais rápido se tivesse algo para se apoiar.

Sabiamente improvisou um cajado feito de um tronco fino e grande, caído de

uma das árvores que cresciam na lateral da trilha. Mal pôde perceber o quanto

já havia caminhado, já não tinha um pensamento tão fixado no que se passara

há horas atrás e preocupava-se apenas com o ritmo da caminhada. Brum se

sentiu bastante cansado e faminto após descer vários metros naquela trilha

fechada. Por sorte avistou um pequeno oásis plano dentre as pedras e

ribanceiras da trilha que seguia. O sol já havia sumido completamente do céu

e ele resolveu que aquela seria a hora exata para montar um acampamento

improvisado. Foi o que ele fez no pequeno planalto onde não haviam apenas

rochas lascadas, mas um pouco de terra batida e pequenas plantas que cobriam

o chão. Havia muitas folhas murchas no chão, folhas essas que Brum

amontoou na tentativa de aliviar a dureza do solo. Antes de se deitar, ele

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alcançou a mochila de couro que o Velho havia preparado. Tirou o fino

colchonete das costas e lançou-o em cima das folhas caídas. A cama estava

feita. Brum sentiu um aperto no coração imenso quando percebeu como o

Velho tinha sido cuidadoso ao arrumar aquela mochila. Nela havia de tudo que

ele necessitava. Dentre os itens, estavam um par de pedra-fogo, muitos pães e

grãos, um talher que era meio faca meio colher, uma caneca de barro bem

embrulhada, uma bolsa com bastante água para a viagem e uma adaga

cuidadosamente ornamentada. A adaga parecia ser algo antigo e trazia vários

símbolos esculpidos na sua base. Brum quis, novamente, cair no choro quando

se percebeu longe de Erma e de seu avô. Ele se sentiu terrivelmente sozinho e

amedrontado. Não era para menos, se antes a trilha já era algo assombroso, a

noite não melhorou em nada o cenário. Todas as árvores formavam sombras

difíceis de decifrar e mexiam muito com a imaginação de qualquer um. Brum

se apressou e esfregou as pedras-fogo em cima de uma pilha de folhas e

gravetos que havia recolhido. Três esfregões depois, queimava uma bela

fogueira que lhe acalmava a alma. Teve até a ideia de ferver um pouco da

água com alguns grãos dentro da caneca de barro. Sentiu-se levemente

confortável ao beber aquela sopa fajuta em pleno mato. Brum ficou admirando

o fogo estalar até pegar no sono debaixo do sereno do céu montanhoso.

- Anda logo, vê se tem algo ali, antes que ele acorde! – Exclamava uma voz muito fina e baixa, de certa distância. - Levanta ali! Ali tem algo, é certeza! – Animava-se outra voz inusitada.

Brum não sabia ao certo se estava sonhando ou não, até que resolveu abrir os

olhos para conferir. Tomou um tremendo susto quando percebeu o que estava

acontecendo.

- Quem são vocês? – Exclamou enquanto pulava da cama improvisada. Eram

duas pessoinhas pequenas que estavam fuçando todas as coisas que Brum

havia espalhado no seu acampamento no dia anterior. Um deles já estava

carregando a mochila de Brum nas costas.

- Fugir! Fugir! Ele acordou! Anda! – Exclamaram, como em um canto, as

duas pessoinhas estranhas que tinham cara de adulto, mas eram da estatura de

uma criança qualquer.

Vestiam roupas sujas e amassadas, em pior situação do que as próprias roupas

de Brum. Rápidos como um raio, eles se enfiaram dentro da mata, deixando a

trilha e levando consigo a mochila de couro de Brum. Brum, sem pensar duas

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vezes, saiu disparado atrás dos ladrões. Que diabos era aquilo? Não poderia

ser roubado por meros anões. Os três corriam se batendo entre as árvores,

galhos e folhas. Um dos anões estava bem à frente e mostrava habilidade ao se

esquivar das ramificações das árvores, o outro estava logo atrás e berrava aos

quatro ventos.

- Fugir! Fugir! Ele tá aqui atrás! Anda! – Gritava para o comparsa, o mais

atrasado. Brum, cambaleando entre a mata, conseguia seguir os anões até que

chegou muito próximo deles. Tão próximo que os ladrões decidiram parar. - Ele tá aqui! – Berrou um dos anões.

- Tá aqui sim! – O outro completou a fala, instantaneamente, como se cantasse uma canção.

Os anões demonstravam uma feição terrível. Apesar de pequenos, tinham cara

de homem e faziam gestos amedrontadores. Um deles se moveu rapidamente

para detrás de Brum e o outro o ficou encarando. Brum estava cercado pelos

dois anões em questão de segundos. Ele percebeu que o anão da frente estava

portando uma faca, que retirara da cintura. Antes que pudesse olhar para trás,

e ver que o outro anão também estava armado, percebeu que talvez não tenha

sido a melhor das ideias seguir os ladrões. Mas, não podia saber que a ameaça

era grande, antes eram apenas duas pessoas pequenas e que não botavam medo

em ninguém. Pensou ainda na adaga que o Velho tinha lhe concedido, mas não

havia a retirado da mochila que agora não estava ao seu alcance. - Devolve minhas coisas! – Gritou Brum, tentando mostrar-se valente.

Os anões caíram na gargalhada. Eles eram sim muito velhos e sabidos, pouco

poderia Brum contra aqueles ladrões experientes. Brum percebeu que não

poderia fazer nada contra os dois, abaixou a cabeça por um momento e apenas

quis ir embora. Mas os anões ainda o cercavam, impedindo-o de partir.

- Onde pensa que vai? – Berrou o anão que cercava Brum por trás, quando o mesmo tentou sair correndo caminho à volta.

- Pensa você que vai aonde? – Completou a sentença o segundo anão que

agora agarrava Brum pelo colarinho enquanto o ameaçava com a faca próxima

a sua garganta. Brum prendeu o fôlego e fechou os olhos na espera do corte

que era certo. Iria sangrar ali até a morte e nunca encontraria seu avô

novamente. Amaldiçoou toda aquela viagem e situação, deveria ter

permanecido em Erma como era seu destino. Pensava ele.

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Duas flechas rápidas como o vento e silenciosas como a noite, acertaram o

primeiro anão, deixando-o estirado no chão a sangrar. Brum abriu os olhos

quando ouviu o ladrão gritar em agonia. Enxergou toda aquela cena acontecer

em uma fração de segundos, não pode sequer recuperar o fôlego. Mais duas

flechas, vindas de dentro da mata, acertaram o outro anão, que tentava fugir

dentre mato, bem no meio das costas. Caiu a se contorcer nas pedras. Brum se

arremessou no chão, protegendo a cabeça com as mãos. Ficou ali ouvindo o

primeiro anão a ser atingido choramingar cerca de três minutos antes de

silenciar-se para sempre. Brum estava tão assustado que ficou imóvel naquela

posição, não tinha coragem nem para sequer abrir um dos olhos. Apertava a

cabeça com os braços e mãos e o peito com as coxas. - Você está bem, pequeno? – Perguntou uma voz calma, porém grave.

Brum sentiu o toque gentil no seu ombro esquerdo. A voz penetrante nos seus

tímpanos o fez despertar. Abriu os olhos e se deu de cara com um sujeito

esbelto, com um rosto muito fino, vagarosamente marcado por uma cicatriz

que lhe cortava o olho direito. Entre lágrimas presas ao globo ocular, Brum

percebeu que o sujeito trajava um conjunto de couro e carregava um quiver

com muitas flechas e um arco imenso nas costas. Antes que falasse algo, o

sujeito o puxou pelo braço forçando-o a levantar.

- Você está ferido? – Perguntou o homem. Brum já tinha enxugado as lágrimas que não caíram e coçou a garganta para responder.

- Não. Estou bem. – Falou ele enquanto olhava fixamente para o rosto do arqueiro.

Lembrou-se, naquele momento, das recomendações do avô. Talvez não

devesse, mas Brum sentiu que podia confiar naquela pessoa, sentiu como se o

conhecesse há muito tempo. Era uma sensação difícil de explicar, algo como

uma química inata a duas almas, que apenas elas podem compreender. Brum

olhou para o arqueiro e sentiu-se aliviado.

- Qual seu nome? – Perguntou o arqueiro enquanto dava leves chutes nos

corpos dos anões, parecia checar se eles estavam realmente mortos. Brum

ficou olhando a cena de certa distância, enquanto respirava afobado.

- Brum, eu sou de Erma. – Falara ele enquanto tentava acalmar as próprias pernas.

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- Engraçado, você é a primeira pessoa que se apresenta assim. – O sujeito olhava para Brum enquanto vasculhava as coisas que os anões traziam.

- É de costume dizer seu sobrenome, ou pelo menos de qual família você

descende. – Completou ele. Brum corou. Puxou o enorme chapéu de palha

para baixo e rebateu sem jeito.

- Brum da família dos Sacerdotes. Só isso mesmo. – Falara ele em tom baixo,

quase sussurrando a última parte. O arqueiro, até então salvador, deu uma leve

risada sem que Brum notasse.

- Eles roubaram algo de você? – Perguntou ele, enquanto apontava para os corpos ali jogados. Brum fez que sim, gesticulando com a cabeça.

- Ande, fale! – Bravejou o arqueiro, impaciente. Brum tremeu outra vez e falou quase gaguejando.

- Essa mochila, eles roubaram de mim! – Disse ele enquanto apontava para a

mochila de couro que estava nas costas de um dos anões e continha uma

flecha atravessando-a.

- Esses benditos anões, eles são muito perigosos... – Falara o arqueiro

enquanto arrancava três flechas, ainda boas para futuro uso, dos anões mortos.

Ele puxara a flecha que atravessou o anão e a mochila de Brum, e tirou a

mochila das costas do anão morto.

– Você deve tomar muito cuidado ao se envolver com um deles, onde tem um

tem dezenas, é uma maldita gangue, isso sim! – Falara o arqueiro, lecionando

Brum.

Brum ficara lá parado, apenas se moveu para agarrar a mochila cheia de

sangue que o arqueiro arremessara para ele. Sentiu que iria desmaiar ao

presenciar aquela cena tenebrosa, era sangue demais para qualquer Ermita.

Mas, respirou profundamente e colocou a mochila furada nas costas, com

sangue mesmo, para mostrar que era corajoso. Retirou a adaga ornamentada e

a prendeu na cintura. Não cometeria o mesmo erro duas vezes.

- Porque você me ajudou? – Perguntou Brum, curioso sem razão. O arqueiro

sentou-se em uma das pedras soltas e começou a limpar as flechas recém-

utilizadas.

- Não precisava você dizer que era de Erma. – Explicou ele tomando fôlego entre as sentenças. – Notei esse chapéu a quilômetros de distância. Qualquer

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pessoa de Erma merece uma mão amiga aqui ou ali. – O arqueiro terminou de explicar seus atos e guardou as flechas, agora limpas.

- Obrigado, eles iam me matar. – Expressou-se aliviado, Brum. O arqueiro abriu um largo sorriso, chegou muito próximo dele estendendo-lhe a mão. - Não tem de quê. Aliás, eu me chamo Lance. Lance Brandobravo.

Foi um aperto de mão tão confortável quanto aquele nome soou nos ouvidos

de Brum. Ele olhou para cima, quase deixando seu chapéu cair. Olhou

diretamente nos olhos de Lance, que eram castanhos e profundos, e pôde

sentir-se seguro outra vez.

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Capítulo III

Nomes

Fazia frio e o céu estava coberto por nuvens cinza que teimavam a se unificar. O silêncio tão reconfortante quanto amedrontador. Tudo dormia, exceto por

duas sombras que passavam em marcha acelerada pelo Quarteirão da Noite. O

Quarteirão, como era informalmente conhecido, era o bairro mais afastado da Cidade Porteira em relação ao Grande Porto. O Quarteirão era o último e ao

mesmo tempo primeiro bairro de toda a Cidade Porteira. Era lá onde as

pessoas menos favorecidas procuravam consolo em garrafas sem fundo e

jogatinas desenfreadas. O Quarteirão da Noite tinha esse nome já que durante

o dia nada tinha vida ali. Mas a noite, escondidas pelo véu da escuridão, todos

os tipos de atividades imorais aconteciam por lá. Ilsa Troca Leve e Enóculo

Caixa Mar corriam em sincronia, preocupados e atentos. Não era lá o bairro

mais calmo e pacífico da cidade, muito pelo contrário, muitos evitavam até

mesmo passar por ali. Não era preciso saber muito das coisas da vida para

entender o porquê. Enquanto Ilsa e Enóculo fugiam, era visível que ainda

naquele horário, muito mais dia do que noite, o Quarteirão possuía seus

habitantes. Alguns bêbados estavam ali, jogados no próprio vômito, ratos

rasgavam restos deixados ao chão mais cedo e algumas coisas indistinguíveis

passavam correndo, se encostando aos becos e sumindo na escuridão. Era um

lugar terrível para se estar.

Mas, Ilsa e Enóculo pareciam não ter, naquele momento, alternativa. Há muito

já tinham deixado o Grande Porto, passaram ainda por todo o Comércio e já

percorriam as últimas ruas que ainda pertenciam à Cidade Porteira. Os dois

fugitivos apertaram o passo, respirando o ar gélido da madrugada. Foram cerca

de dois mil metros, dentre becos e ruelas, até acharem uma das saídas da

Cidade Porteira. Aquela não era, nem de longe, a principal saída por terra da

Cidade Porteira. A saída era quase desconhecida e muito pouco usada.

Tratava-se de um beco muito pequeno, cabia apenas uma pessoa por vez.

Estava lá, apertado dentre duas casas altas e estreitas. Nada se podia enxergar

para além do beco. De onde estavam, não só a falta de luz amedrontava, o

cheiro que exalava do beco também era terrível. Soubessem mais, diriam que

ali era o banheiro de muitos habitantes do Quarteirão. - Tem certeza que é por ai? – Perguntou Enóculo, desconfiado.

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Ele estava seguindo Ilsa, passo após passo, com os pés descalços que não lhe

protegiam de nada. Quase não tinham conversado após escaparem de maneira

espetacular do Grande Porto. Apesar de tudo aquilo ter acontecido há poucas

horas, Enóculo e Ilsa malmente tinham sentido o tempo passar. Pouco se

pensa quando muito se tem a fazer. - Tem que ser. – Afirmou Ilsa, como se consolasse a si própria.

Ela não estava absolutamente certa sobre o caminho que iria percorrer, toda a

ideia de deixar a Cidade Porteira pelo Quarteirão apenas existia nos

pensamentos de Ilsa. Fora em uma conversa escutada no ar que Ilsa tomou

conhecimento da existência daquele caminho. Lembrou-se ela, a cada passo

que tomava a caminho do seu destino, da conversa que ouviu o Sr. Troca Leve

ter com um comerciante desengonçado. “Por lá entra coisa... dai coisa mais

barata da pra vender”. Afirmava o homem. Aquela conversa se referia a uma

das atividades que davam fama ao Quarteirão. Muitos Mercadores, na

tentativa chula de lucrar um pouco mais, burlavam a fiscalização da Guarda

Maior e contrabandeavam produtos inferiores para serem vendidos a preço

dos superiores. Ilsa nunca se esqueceu daquela conversa, pois foi a primeira

vez que ela percebeu que o Sr. Troca Leve não era tão diferente de todos os

outros, contradizendo o que acreditava sua inocência.

- Vamos, se conseguirmos sair por aqui, não demora muito e chegaremos lá! –

Afirmou Ilsa, confortando, Enóculo, sem deixa-lo saber onde “lá” realmente

era.

Enóculo continuou a segui-la, sem questionar seus planos. Os dois passaram

pela pequena fenda dentre as paredes bem devagar. Era possível sentir o ar

mudar. O ar que ali se respirava era um ar reusado, velho, gasto. O chão era

todo úmido, com uma textura pegajosa. Os dedos de Enóculo, assim como as

botas de Ilsa, se prendiam a aquele emaranhado de coisas nojentas e

desconhecidas. Ilsa e Enóculo sentiram que se continuassem ali, correriam

perigo de desmaiar ou coisa pior. Não podiam enxergar nada com clareza. Ilsa,

a frente de Enóculo, sentiu que os seus sentidos iriam falhar e que talvez caísse

ali mesmo. Foi quando ela percebeu que Enóculo lhe empurrava para frente,

gentilmente cedendo-lhe força com a mão direita sobre a parte posterior do seu

ombro. Ela tomou um fôlego profundo; sem sentir nenhum ar passando pelos

pulmões, apertou o passo. Enóculo a seguiu e os dois conseguiram sair da

fenda entre os casarões. Estavam agora em uma espécie de sala coberta, onde

um cano imenso, feito de concreto, muito maior que eles próprios, dava

passagem para fora da Cidade Porteira. A sala era apertada e escura, o teto era

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rebaixado e todo o cenário gerava desconforto. Donde eles estavam já era

possível enxergar um principio de floresta logo após uma grade de ferro que

fechava a passagem do pequeno túnel de concreto. - É isso! – Exclamou Ilsa, alegre. Enóculo a acompanhou, sorrindo.

- Conseguimos? – Disse ele enquanto segurava Ilsa com as duas mãos,

apertando-lhe os ombros. Ela percebeu o entusiasmo de Enóculo e sentiu-se

triste ao perceber que iria desapontá-lo.

- Não exatamente, essa é saída. Mas, ainda teremos um longo caminho pela frente. – Explanou Ilsa.

Os dois seguiram, dando alguns passos à frente. Deixaram a pequena sala

apertada, onde o ar ainda era escasso, seguindo em direção ao imenso cano de

concreto, onde o vento procurava saída. Sem muito caminhar dentro do tubo

de concreto, que mais parecia um pequeno túnel, eles se depararam com a

grade de ferro grosso que impedia a passagem. A grade estava totalmente

enferrujada e possuía algumas plantas, que ali cresceram, presas a ela. Era

evidente que há muito ninguém passara por ali. Um pouco menor que a

própria grade, havia um portão igualmente de ferro e igualmente enferrujado.

Enóculo, instintivamente, tomou a frente de Ilsa e forçou o portão, cortando

algumas raízes que o prendiam com as próprias mãos. Por sorte, ou por

simples destino, o portão não estava trancado e Enóculo, após alguns

empurrões, foi capaz de desemperrá-lo, abrindo-o.

Finalmente Ilsa e Enóculo se encontravam do lado de fora da Cidade Porteira.

Estava muito mais claro lá fora. O dia aparentava querer aparecer. O céu já

estava com uma coloração cinzenta, não mais tão negra. Fora do Quarteirão e

da Cidade Porteira eles se depararam com o principio de um bosque. Havia

algumas moitas e arbustos perto do grande muro de pedra que cercava toda a

Cidade. O muro era imenso e as plantas que cresciam se apoiando nele,

malmente podiam chegar a um quarto de sua altura. Afastando-se do muro,

uma floresta fechada, com diferentes tipos de árvores, cores e folhas, se

formava.

- Agora para onde? – Foi inevitável a pergunta de Enóculo, quando o mesmo percebeu que Ilsa estava parada, encarando a floresta. - Não sei. – Disse ela, após ponderar vários minutos.

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Ilsa percebeu a feição de desespero que Caixa Mar havia demonstrado. Sabia que já tinha dado motivos para desconfiança. Tratou de se explicar.

- Olha, todo esse tempo eu estava pensando em nos escondermos na Fábrica

de Feno da Tia Frizda. – Ilsa disse e parou para tomar fôlego, como quem está

preste a contar uma longa história.

Ilsa Troca Leve se referia ao armazém onde a sua Tia Frizda, irmã de sua mãe

Friz, tocava o negocio de sua vida. Era um armazém/fábrica que ficava a cerca

de doze quilômetros da entrada principal Cidade Porteira. A Fábrica de Feno

era, sobretudo, um armazém onde se fornecia materiais de qualidade no que se

tocava a alimentação de caprinos e bovinos. Como atividade secundária, a

Fábrica de Feno também produzia e estocava utensílios de costura. Tia Frizda

estocava vários tipos de linhas, algodões, sedas, pelagem e tudo que servisse

para fabricar vestimentas. Tia Frizda, ao contrário de sua irmã Friz Troca

Leve, era uma pessoa amável e muito querida por Ilsa. Não foi a toa que Ilsa

pensara na Fábrica de Feno, como era carinhosamente denominado o

armazém. Ela possuía as melhores lembranças da sua infância tendo naquele

lugar o plano de fundo. Quase todos os verões a família Troca Leve deixava a

Cidade Porteira percorrendo a Estrada Mercante a caminho da Fábrica.

A Estrada Mercante era na verdade uma extensão da Cidade Porteira. Ela

possuía esse nome, pois era a principal saída por terra da Cidade Porteira. De

fato, por todo o seu caminho a Estrada Mercante não se parecia em nada com

uma estrada. Ela era totalmente pavimentada e urbanizada. Várias lojas e casas

a cercavam por toda a sua extensão. Então, apenas formalmente, a viagem à

casa dos Andejos, como era o nome da família de Friz Troca Leve antes de

casada, era considerada uma viagem. É interessante saber que todo Mercador

mantém a tradição de conservar o nome da família do homem quando casados.

Frizda Andejo nunca fora casada e, portanto, nunca mudou de nome. Isso era

considerado uma ofensa para uma mulher naquela idade. Tia Frizda, como Ilsa

a chamava, nunca teve a chance, ou talvez nunca tivesse vontade, de casar e de

ter filhos. Talvez por isso fosse tão carinhosa com a sobrinha.

- A verdade é que não sei qual direção tomar. – Explicou Ilsa, enquanto Enóculo ouviu calado.

– Nunca saí da Cidade Porteira. Quer dizer, já saí pela Estrada Mercante, mas acho que isso não conta. Tudo é muito diferente da Estrada Mercante por

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aqui. – Falara Ilsa, diminuindo o tom de voz, como se perdesse as esperanças enquanto falava. Enóculo resolveu se pronunciar.

- A Fábrica de Feno, você sabe ao menos em qual sentido ela fica? – Enóculo

falava e apontava com a mão direita para o horizonte. Ele tinha um tom

encorajador, parecia ter alguma solução para a falta de direção de Ilsa. Ela

demorou um pouco de responder, estava pensando profundamente em uma

referência.

- Não sei ao certo. – Disse ela. – Lembro apenas que o sol morria em direção a Cidade quando estávamos no quintal da casa de Tia Frizda. – Completou Ilsa.

Enóculo sabia que aquilo era o suficiente para determinar a direção à seguir. Portanto, alegrou-se e tratou de elaborar uma explicação fácil para Ilsa.

- Eu lembro disso, pois era costume sentarmos, eu e Tia Frizda, e assistirmos o

sol se por. Ele ia descendo lá, atrás dos muros da cidade, até se juntar com o

Salgado. – Ilsa falou com uma voz nostálgica, a saudade apertava-lhe o

coração.

– O sol sempre morria em direção a Cidade, eu lembro que dava para ver as

luzes da Cidade se ligando aos poucos, mesmo de longe, quando ia

escurecendo. - Enóculo sabia que aquela lembrança de Ilsa seria vital para a

continuação da jornada. Foi com um sorriso no rosto que ele deu continuidade

a conversa.

- Isso é ótimo! – Exclamou ele, alegremente. – Se o sol se põe no oeste, isso

quer dizer que a Fábrica de Feno está a leste da Cidade. – Explicava ele para

Ilsa. Ela não entendeu muito bem como ele chegou àquela conclusão, se

orientar não era o forte de nenhum Mercador.

- Então... Para que lado fica a Estrada Mercante que você falara? – Perguntou Enóculo.

- Para lá. – Apontava Ilsa para a direção oposta que eles haviam tomado ao sair do Quarteirão e deixar a Cidade Porteira.

- Então é para lá que devemos seguir, se caminharmos ao norte, seguindo a

muralha, a certo ponto devemos chegar a algum lugar que você conheça. –

Explanou Enóculo.

Ilsa, sem mais se pronunciar, confiou na palavra de Enóculo e resolveu caminhar em direção ao caminho recém-planejado. O sol já estava firme e

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algumas nuvens ameaçavam molhar a terra. Os dois seguiram a muralha que

protegia a Cidade Porteira pelo lado de fora. Caminhavam por uma trilha de

barro que era bastante fina, mas com marcas de uso. Não eram pés de pessoas,

mas sim de animais. Animais de médio porte, pelo tamanho das pegadas.

Andaram bastante até alcançarem um imenso amontoado de rochas que era

intransponível. A trilha então se afastava da muralha, entrando na floresta.

Enóculo, seguido por Ilsa, não parou para se questionar qual a melhor decisão

a ser tomada, continuou seguindo a trilha e afastou-se da muralha, entrando na

mata. O caminho, ao adentrar a floresta, tomava outras feições, já não era

possível enxergar a muralha e o céu estava coberto pelas copas das árvores.

Enóculo parecia saber exatamente para onde estava indo, sempre tomando

como referência a muralha que embora invisível, continuava ao seu lado

esquerdo. Ele sentia dificuldade ao caminhar com os pés descalços. No chão

havia pedras e galhos pontudos que feriam como vidro quebrado. Os dois

caminharam cerca de duas horas, em passos não tão rápidos nem tão lentos.

Eles seguiram a trilha até chegarem a um ponto onde a trilha coberta se dividia

em duas. A dúvida para onde seguir foi imediata.

- Para que lado? – Perguntou Ilsa, que até o momento apenas seguia, calada.

Enóculo virou-se para ela, enxugando algumas gotas de suor do rosto e

respondeu.

- Para lá. – Afirmou ele, calmamente, enquanto apontava para a esquerda.

Pensou ele ser o caminho correto a se seguir, afinal eles estavam afastados

apenas alguns metros da Cidade Porteira, mas andavam em paralelo a ela.

- Devemos parar um pouco. – Falou Enóculo. – O sol está muito forte, andar desse jeito só vai nos cansar ainda mais. – Completou ele.

Realmente o dia estava muito quente e dentro daquela trilha, coberta por copas

espessas que não deixavam o vento circular, o clima era muito úmido e a

sensação de calor era ainda pior. Ilsa e Enóculo estavam suados e cansados,

embora houvessem caminhado pouco, sentiam-se esgotados. Não haviam

dormido na noite anterior. Além disso, as tensões de fugir do Grande Porto e,

posteriormente, da Cidade Porteira ainda fluíam nos seus sangues.

- Certo, mas não podemos parar aqui, não é? – Disse Ilsa enquanto apontava para o chão com as duas mãos abertas.

O lugar que eles estavam malmente permitia que uma pessoa se sentasse. Era uma trilha bastante fina e cheia de pedras pontiagudas. Ninguém conseguiria

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descansar ali. Então, seguido do olhar de reprovação de Ilsa, Enóculo adentrou

a trilha da esquerda, deixando o outro caminho para trás. Andaram mais

alguns passos seguindo a nova trilha até que acharam uma pequena área plana

coberta por graminhas e musgos. Não era possível enxergar o céu, as copas

das árvores cobriam todo o lugar, mas ao menos eles podiam sentar-se e até

mesmo esticar as pernas naquele local. Ilsa foi a primeira a se jogar no chão e

espreguiçar-se. Enóculo sentou-se respirando profundamente. Começou a

mexer nos pés descalços que lhe incomodavam.

- Será muito longe? – Perguntou Enóculo enquanto esticava as pernas. – Caso

for, temos que buscar alguns suprimentos, ao menos água. – Completou ele,

enquanto observava a feição de Ilsa.

Os dois estavam sedentos e não haviam trazido absolutamente nada da

Cidade Porteira. O conjunto de seda de Enóculo, aquele semi-pijama, estava

totalmente suado e sujo. Ilsa sentia uma dificuldade ao caminhar ainda maior.

Estava vestida com aquele avental do trabalho, grosso e mal cheiroso.

- Acho que não. – Respondeu Ilsa. – Pelo menos, quando íamos pela Estrada

Mercante, não levávamos mais do que uma hora para chegar à casa de Tia

Frizda. – Ela explicou, enquanto deitou-se no chão, buscando descanso.

Os dois ficaram ali por cerca de quinze minutos somente respirando e descansando as pernas. Logo, resolveram que era tempo de continuar.

- Vamos, é melhor que procuremos água. – Disse Enóculo. – Acho melhor. – Completou ele.

Ilsa nunca tinha percorrido aquele caminho. Tudo parecia estranho e ela não

tinha a menor ideia de quanto tempo iria demorar até chegar a Fábrica de

Feno. Toda a situação era desconfortável e, às vezes, ela sentia um pequeno

arrependimento de ter se aventurado. Tinha haver com o cansaço que sentia.

Pensava em sua casa e em seu quarto. Talvez fosse melhor estar lá do que

enfrentar aquelas dificuldades. Mas, esse sentimento logo era esquecido por

uma vontade estranha de continuar. Os dois caminhavam trilha adentro. O sol

já havia sumido entre as nuvens pesadas que fechavam o céu. Gotas de água

grossas começaram a cair e deixar toda a floresta molhada. O som da chuva

nas copas das árvores era reconfortante e a alegria foi imediata ao perceber

como o calor fora se desfazendo. Rapidamente Ilsa e Enóculo juntaram as

gotas que escorriam dos troncos com folhas achadas ali mesmo na trilha.

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Saciaram, levemente, a sede. A chuva que caiu foi forte, porém breve. Os dois não pararam de caminhar.

Muito a frente e um pouco mais tarde, quando o sol já estava sumindo no

horizonte, Ilsa e Enóculo se encontraram novamente em uma situação

preocupante. Já tinham andado um dia inteiro e não haviam encontrado a

Estrada Mercante, tão pouco a Fábrica de Feno. Por uma mágica qualquer, ou

destino ébrio se preferir, um pequeno alívio apareceu diante deles. No fim de

uma curva que a trilha fazia, estava uma cabana, que pelas luzes que

atravessavam as janelas, demostrava ser habitada. A dúvida agora residia se

eles deveriam procurar ajuda naquela cabana, em meio ao mato, ou não. A

cabana não media mais de dois metros de altura, e só tinha uma janela de

madeira e vidro e uma portinhola bem usada na parte da frente. A cabana

estava coberta de plantas trepadeiras e juntava muitas folhas mortas que

cobriam o telhado de madeira. Parecia ser uma cabana muito velha e mal

cuidada. Até a pequena planície onde ela se estruturava estava mal arejada.

Sem nenhum tipo de cuidado, ervas daninhas cresciam livremente no local.

Todo o cenário parecia avisar que era uma péssima ideia se quer passar perto

daquela cabana.

- Devemos?- Perguntou Ilsa, enquanto olhava para a cabana. Era de fato a pergunta inevitável a se fazer.

Enóculo teria respondido de maneira contrária, porém, o sol já não estava mais

no céu e a floresta estava, cada vez mais, impossibilitando a caminhada dos

dois.

- Sim, parece ser um bom abrigo. Melhor do que ficarmos aqui fora. - Disse

Enóculo – Mas, é melhor checarmos se tem alguém lá. – Explanou ele,

enquanto observava Ilsa concordar, movimentando levemente a cabeça para

cima e para baixo.

Ilsa se questionou em que ponto ela tinha adquirido tanta confiança em

Enóculo. Perguntar a opinião dele parecia tão natural quanto confiar nas suas

decisões. Para ela, era algo inexplicável como poderia confiar tão cegamente

em um desconhecido. Na verdade, quase todas as decisões que Enóculo

tomara até aquele ponto eram muito parecidas com o que Ilsa pensava em

tomar, talvez por isso não houvesse motivo maior para Ilsa desconfiar mais do

que deveria de Enóculo, em toda aquela situação.

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- Não vejo outro lugar para passarmos a noite. – Falou Ilsa, admitindo que teria que passar a noite em plena floresta.

O reles pensamento a fez tremer de medo. Talvez não fosse só o pensamento,

ela estava faminta e exausta e a incerteza de estar sendo seguida ou não ainda

lhe pairava a mente. Ilsa e Enóculo haviam caminhado toda a madrugada e o

dia seguinte. Estavam a procura da Estrada Mercante desde que o sol nasceu

naquela manhã. A sorte também não lhes favoreceu em nada. Nada havia

naquela floresta que pudesse servir de alimento, ao menos, assim parecia.

- Vamos nos aproximar devagar. – Falara Enóculo enquanto gesticulava com o

braço esquerdo, como quem explicava um plano de ação. – Assim veremos se

tem alguém lá dentro sem sermos notados. – Disse ele, com uma feição

asseguradora.

- Não precisamos chegar perto para saber isso. – O corrigia, Ilsa. – Olha lá, as

luzes estão acesas. – Afirmava ela, enquanto apontava para as lamparinas de

querosene, que estavam penduradas do lado de dentro, queimando um fogo

fraco.

- A questão é se seremos bem vindos ou não. – Terminou de se expressar Ilsa, enquanto engolia uma saliva seca.

Ilsa Troca Leve sabia que não era a situação ideal, mas, dentre as opções

presentes, não queria dormir desabrigada em plena floresta. Após a

gesticulação de Enóculo, que era um sinal de positivo, os dois desceram mais

alguns passos e entraram na planície que mais parecia o jardim da cabana

achada. Logo, se acharam em frente à porta de madeira que não aparentava

estar trancada. Ilsa logo se ofereceu, sem dizer uma palavra, para ir à frente.

Bateu levemente na porta de madeira. Sentiu um calafrio horrível quando

percebeu que a porta se mexera ao leve toque de suas mãos. Um rangido

agudo e tenebroso fez a porta se abrir por completo.

Diferente do pensado, a cabana os surpreendeu com sua aparência interna. Estava

tudo impecavelmente limpo e organizado. Dentro da cabana havia apenas uma

sala grande, onde vários moveis e pequenas divisórias separavam os cômodos,

transformando a grande sala em diferentes quartos. Logo na entrada da cabana

estava um tapete de pelo de carneiro, alvo como a neve. Prendendo o tapete com

os pés, havia um sofá com aparência aconchegante, coberto com um tecido de cor

marfim. Podia se enxergar também uma pequena cozinha atrás da pequena sala.

Na cozinha estavam pendurados vários

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pães, carnes secas, verduras e outros suprimentos. Havia também panelas e

talheres, todos feitos de barro. No canto da cozinha havia um pequeno

fogão com uma brecha para fogo de lenha e uma mesa bastante baixa ficava

ali muito próxima. A cabana era um lugar muito bem cuidado e possuía um

aroma agradável. Era o lar de alguém, isso é certo. - É perfeito! – Exclamou Ilsa.

- Perfeito até demais. – Replicou Enóculo. – Como um lugar assim pode existir em meio à floresta? – Perguntou ele com semblante sério e preocupado.

Ilsa já estava sentada no sofá e esticava as pernas. Parecia não perceber estranheza na situação.

- Alguém deve morar aqui. – Ele continuou a explicar. – Seja lá quem for não deve estar muito longe. – Completou.

Ao se pronunciar, Enóculo percebeu que Ilsa se levantou do sofá e ficou mais

desperta do que antes. Ela já estava confortável e sentindo-se segura; mas, esse

sentimento passou rapidamente. Ilsa notou que alguém poderia estar ali, muito

próximo, alguém não amigável. Após pensar por alguns momentos em aflição,

ela decidiu o que seria mais sensato.

- Se há alguém aqui, deve estar por perto, vamos olhar lá fora por algum sinal, alguma pista. – Explicou ela. Enóculo, rapidamente, replicou.

- Não. – Disse ele. – Eu vou checar e você aproveita esse momento para

descansar e comer algo. – Falou ele enquanto apontava para a cozinha e os

suprimentos que ali estavam.

Ilsa quis retrucar a oferta de Enóculo. Porém, ao contrário de Enóculo, ela

estava extremamente cansada e faminta. Antes que seu orgulho pudesse se

exprimir, ela concordou com o plano.

- Certo, mas não demore muito... - Ilsa se virou para Enóculo e demonstrou seriedade. - A qualquer sinal de perigo estarei pronta para partir. - Completou.

Enóculo Caixa Mar deixou a pequena cabana, fechando a porta de madeira e

deixando Ilsa Troca Leve isolada. Ela não aguardou nem mesmo um minuto

após a saída de seu companheiro de jornada, atacou os suprimentos que

estavam disponíveis na cozinha com voracidade. Em dois passos, ela agarrou

um pedaço de pão que ainda estava quente e macio e o mordeu agilmente.

Estava faminta e cansada, mas não queria que seu companheiro de viagem

52

pensasse pouco dela. Como estava sozinha, aproveitou para tirar as pesadas

botas de trabalho que tanto machucaram seus pés naquela trilha percorrida

mais cedo. Estalou até mesmo o dedo mindinho até sentir o cansaço esvair das

suas pernas. Poucos minutos mais tarde, Ilsa Troca Leve já estava

completamente satisfeita e tudo que lhe faltava para um descanso completo era

algumas horas de sono. Antes que isso fizesse, abriu um sorriso largo quando

percebeu que dentro de uma pequena divisória, ali mesmo na cabana achada,

havia uma banheira com água encanada. Não pensou duas vezes, muito menos

desconfiou de nada. Tratou de preparar um banho e mergulhar na banheira,

lavando toda a sujeira do rosto, costas, torso, ombros e cabelos.

Apenas o som do ranger da porta de madeira que fez Ilsa Troca Leve despertar

para a realidade. Não estava em casa, longe disso. Estava sim muito longe

daquilo que era o seu costume e que lhe era conhecido. Apesar de sentir certa

afinidade com Enóculo, ela sabia que pouco conhecia sobre aquele rapaz.

Então os enjoos de uma viagem não planejada começaram a circundar a mente

de Ilsa.

- Não há ninguém por perto! - Exclamou Enóculo, da pequena sala da cabana,

percebendo que Ilsa estava na parte da cabana que poderia ser caracterizada

como um banheiro. Não sabia ele que ela já estava completamente vestida e

não seria pega de surpresa.

- Mesmo assim... - Disse ela enquanto deixava a pequena divisória que cobria

a banheira dos outros cômodos da cabana. - É muito estranho, tudo indica que

há alguém aqui. Senão, houve alguém aqui há pouco tempo. – Concluía.

Enóculo quis concordar, quis continuar com a conversa e responder as aflições de Ilsa, mas, estava estonteado. O nocaute foi imediato. Breve. Completo. Onde estava aquele “quase rapaz” que lhe ajudara a escapar do Grande Porto? Ilsa estava transformada. Tinha soltado seus longos e lisos cabelos louros. Sua

pele já não estava mais coberta por fuligem e sujeira. Enóculo pôde, pela

primeira vez, perceber completamente que Ilsa era uma mulher. De fato o era.

Além disso, muito bela.

- É verdade. - Concordou Enóculo, após alguns segundos de silêncio constrangedor.

Ele ficara olhando para Ilsa Troca Leve de uma maneira nunca antes vista. Estava aflito e media as palavras.

53

- Não vejo alternativa. O melhor seria passarmos a noite aqui. - Terminou de falar, Enóculo Caixa Mar, o fugitivo.

Ilsa andou alguns passos até ficar encarando a janelinha que ficava ao lado da

porta. Ela olhou para fora e sentiu medo. A floresta era um lugar bastante

silencioso e escuro. Alguns sons que vinham cortavam o silêncio, que reinava,

e eram atormentadores. Todo o cenário não era nada agradável. Ninguém

deveria se arriscar caminhando por aquela floresta à noite. Foi esse sentimento

que fez Ilsa ponderar e aceitar a proposta de Enóculo. Não era a melhor das

opções, mas dentre passar a noite no mesmo teto que um desconhecido e

passar a noite lá fora sozinha, ela escolheu a primeira. Também não seria justo

pedir que ele se privasse daquele porto seguro, apenas para o seu conforto.

- Há comida ali. - Disse ela e apontou para a cozinha, que agora estava desarrumada.

Enóculo malmente respondeu, apenas sorriu em alegria e voltou-se para os

pães e queijos que ali estavam. Já estava quase cheio quando foi tomado por

um inicio de conversa.

- Qual o seu nome de verdade? - Perguntou Ilsa. Enóculo, que segurava um

pão com os lábios e uma taça de barro cheia de água com as duas mãos,

engasgou-se, cuspindo boa parte do que estava dentro da sua boca.

- Como assim? - Exclamou ele, após desengasgar. Ilsa não diminuiu o tom de agressividade e continuou a investigação.

- Não me faça de boba. - Disse ela enquanto se levantava do sofá e se aproximava de Enóculo.

- Sei que você mentiu quando perguntei seu nome. - Ela já olhava fixamente

para ele. - Enóculo Caixa Mar? Que diabo de nome é esse? - Perguntou ela,

sem esperar resposta.

- Vamos! Diga por que mentiu, mereço saber. - O fogo nos olhos de Ilsa fez Enóculo, o fugitivo, pensar três ou quatro vezes antes de se pronunciar.

Ele não queria contar a verdade. Fosse qualquer outra pessoa, ele teria

persistido na mentira. Mas, algo estranho acontecia com ele quando estava

próximo dela. Uma química invisível, algo que antecede a própria razão,

tomava conta de sua mente. Ele decidiu, contrariando o seu mais básico

instinto, que deveria contar a verdade.

54

- Esse não é meu nome, é verdade. - Disse ele, em baixo tom, olhando para o chão de madeira brusca da cabana.

- Não sei por que, mas sinto que lhe devo a verdade. Espero que você

entenda que não posso dizer meu nome aos quatro ventos. - Em nada aquela

fala fazia sentindo para Ilsa, mas ela privou-se a ouvir.

- Não sei explicar, mas do momento que me esbarrei em você... - Disse ele,

parando para respirar. - É algo bobo de se dizer, mas sinto que te conheço

mais do que qualquer outra pessoa. - Enóculo, percebendo a feição de dúvida

de Ilsa, resolveu explanar a situação de maneira mais óbvia possível.

- Einri, Einri Coração-de-Leão, esse é o meu verdadeiro nome. - Enóculo,

agora Einri Coração-de-Leão, olhou fixamente para Ilsa quando pronunciou as

últimas palavras. Sem esperar qualquer reação, mostrou o pulso esquerdo para

ela, onde havia uma marca cinzenta, um sinal de nascença. A marca lembrava

um leão em perfil. Ao menos a cabeça de um. Era uma juba manchada e o que

aparentava uma boca aberta com dentes afiados. Ilsa parecia chocada. Os

olhos dela não paravam de tremer e ela sentiu que poderia esmaecer. Foi um

profundo suspiro que a fez ter força para falar.

- Co... Coração-de-Leão? - Perguntou ela, berrando e gaguejando ao mesmo tempo.

Ilsa estava de fato muito surpresa com aquela revelação. Os Coração-de-Leão

eram a única família que todo o Norte e todo o Sul tinham completo

conhecimento sobre. Isto é, nenhum deles realmente sabia quem eles eram,

mas todos os habitantes de Arreta já haviam ouvido falar sobre aquele

sobrenome. Eles eram a realeza. Responsáveis por todo o funcionamento do

Sul e Norte, de todo o planeta. Os Coração-de-Leão eram a família mais antiga

de todo o Norte. Filhos da família dos Criadores, dominavam Arreta.

- Um sangue-frio. Isso mesmo. - Explicava Einri, enquanto observava Ilsa voltar à tona.

Ela estava estonteada, apenas puxou o braço dele e ficou encarando a marca

enquanto entendia toda aquela situação. A marca do leão era a mais obvia

comprovação de que tudo que Enóculo, agora Einri, falara era a mais pura

verdade. Era sabido que apenas aqueles que ostentavam aquela marca,

poderiam ser um legitimo membro da realeza. Ao menos descendente dos

primeiros Reis.

55 - Sangue-frio? - Respondeu Ilsa, sem saber que outra coisa dizer.

- Ao menos é assim que vocês nos chamam. - Einri fazia referência ao termo que vários cidadãos, tanto do Sul quanto do Norte, usavam para se referir aos Criadores.

Ninguém da Cidade Porteira, nem nenhum forasteiro que Ilsa possa ter

encontrado, jamais havia encontrado um Criador, tão pouco um membro da

realeza. Toda aquela realidade custava a fazer sentido na mente de Ilsa.

- Bom, mas isso não é importante. - Einri continuava a falar e tirava Ilsa do seu estado de contemplação.

- Ao menos você pode entender o porquê de toda a minha situação. - Ele completou a fala e ficou cabisbaixa.

- Então por isso que você estava amarrado daquele jeito? - Perguntou Ilsa, compreendendo aos poucos a situação.

- Isso. - Explicava Einri, com lágrimas presas aos olhos. - Eu fui sequestrado. - Completou ele.

Toda a suspeita e desconfiança que circundavam a mente de Ilsa foram

completamente desfeitas. Ela estava a frente de um Criador, muito além disso,

um membro da família real, e aquela justificativa parecia ser mais interessante

do que qualquer outra história que ela ousasse imaginar.

- Sequestrado? - Perguntou Ilsa enquanto se sentava no sofá, afastando-se de Einri. - Exatamente. Ordem daquele maldito! - Exclamou Einri, rangendo os dentes.

Ele se referia ao Sacerdote que eles avistaram no Grande Porto e que comandava os outros tripulantes que caçavam o então Enóculo. - Ghart! Maldito seja. - Completou a sua fala, raivosamente.

Ilsa estava sentada no sofá da cabana e apoiava a própria cabeça com as duas

mãos no queixo. Ela pensava profundamente sobre a situação e, como pouco

fazia sentido para ela, resolveu apenas perguntar.

- Por que ele te sequestrou? - Indagou ela. Querendo compreender melhor a raiva que Einri expressava.

56 - Isso é o que me atormenta. - Explicava ele, novamente se aproximando dela. - Eu não entendo o que levou ele a fazer isso. - Terminava de falar, enquanto sentava-se ao lado de Ilsa no sofá de três lugares.

Einri tomou um fôlego grande, como alguém que está prestes a contar uma história difícil, e continuou o diálogo.

- Tudo aconteceu em um piscar de olhos em plena a madrugada... - Einri

olhava para baixo e falava calmamente. - Fui arrancado da minha própria

cama. Eles colocaram um saco preto em minha cabeça e uma pancada logo em

seguida, tirou-me os sentidos. - Explanava ele, enquanto gesticulava com as

mãos, demonstrando onde fora atingido.

- De resto não lembro, apenas despertei em um navio em pleno Salgado. - Ele falara e encarou Ilsa, demonstrando aflição.

- Minha nossa - Disse Ilsa, impressionada. - Você não tem nem ideia do por quê? - Continuou a perguntar.

- Desde que me dei conta do acontecido que planejo apenas uma coisa.... - Explicava Einri, que agora estava sério e com semblante determinado.

- Tenho que saber a razão de eu estar aqui. - Dizia ele, com certeza no olhar.

Ilsa ficou embriagada com a paixão que ele demostrava, parecia ter a força de

mil homens.

- Tenho as minhas desconfianças da razão de tudo isso ter acontecido. -

Continuava explicando, Einri. - Mas, só saberei ao certo quando voltar ao

Norte. - Ele terminara de falar, deixando Ilsa perplexa.

De fato Ilsa Troca Leve, Mercadora da Cidade Porteira, jamais imaginara que

realmente viveria sequer uma pequena aventura na sua vida. Isto é, do fundo

do seu coração ela sempre soube que era diferente dos demais. Sempre quis

deixar o ordinário para trás e se arriscar com pensamentos proibidos. Mas, lá,

dentre as mais ínfimas partes da sua consciência, sempre houve aquela

desconfiança posta. Aquela que sempre lhe disse que nada daquilo que ela

sonhara jamais poderia acontecer. Então, por mais que ela fingisse ser

diferente, no seu dia-a-dia como Mercadora, Ilsa nunca precisou que ninguém

lhe afrontasse, destruindo seus sonhos. Houve sempre dentro dela mesma uma

57

pequena parte de si própria que sempre fora o algoz das suas próprias esperanças.

Voltando-se a cabana, Ilsa pôde ter uma percepção nunca sentida ao ouvir

aquelas palavras saírem da boca de Einri Coração-de-Leão. Era extraordinário

como alguém poderia dizer coisas tão incríveis e, sobretudo, verdadeiras. Ela

sentiu, naquele exato momento, ainda que não fosse o que ela imaginara ser,

uma pequena parte de si mesma morrer. Aquele sentimento que lhe negava a

grandeza estava esmaecendo dentro dela. Tornou-se pequeno até finalmente

falecer. Diria que foram as palavras bordadas à magia do membro da realeza

em sua frente. Todavia, nada é tão simples, foi algo muito mais complexo que

as próprias formas que Einri utilizou para falar. O sentimento que ele possuía

ao contar aquela história e seus objetivos adentraram na essência dela,

formando um laço inestimável.

- Era um nome muito estranho, de fato. - Falou Ilsa, bem baixinho, deixando um sorriso escapar pelo canto da boca.

- Enóculo Caixa Mar. - Agora ela olhava para Einri e não disfarçava a sua alegria.

- Isso não é um nome que uma mãe escolheria para um filho. - Concluiu ela.

Einri sentiu-se levemente embaraçado. Havia inventado um nome aquém de

qualquer sentido. Ele ainda estava tenso pelas lembranças recém-partilhadas.

Mas, logo entendeu o porquê Ilsa carregava um sorriso no rosto. - De fato. De fato. - Concordava Einri, enquanto sorria com ela.

- Se tivesse um filho, qual nome você daria? - Perguntou Einri, dando vida ao ar descontraído da conversa.

- Se terei a chance um dia, não sei. Mas, sempre quis homenagear o meu avô

caso tiver um filho. - Ilsa parou de sorrir por um minuto. Desviou o olhar de

Einri e encarou o horizonte. - Seu avô? - Perguntou Einri Coração-de-Leão.

Ilsa encheu os olhos de lágrimas ao falar de alguém que ela nunca conhecera,

mas que aprendeu a admirar desde pequena. Era o seu ídolo. Seu mestre que

nunca lhe ensinara nada.

- Sim, o mais nobre da minha família. - Ela olhava para cima, soluçando para não chorar, mas continuando a conversa.

58 - Lance, Lance Andejo. – Ela pronunciou com carinho e respeito.

- As histórias de suas aventuras são tão belas quanto esse nome soa. - Ilsa

Troca Leve, deixou algumas lágrimas, acompanhadas com um sorriso largo

e sincero, aparecerem no seu rosto.

Einri não entendeu naquele momento o que tinha acontecido. Mas, pôde

notar que aquele nome significava muito para ela, então não fez mais

nenhuma pergunta. Sentou-se em silêncio, ao lado dela.

59

Capítulo IV

Homens mortos não falam

- Isso é absolutamente necessário? - Questionava o único homem em pé, dentre os três que conversavam.

A sala era ampla e estava coberta por livros. Havia prateleiras e mais prateleiras, feitas todas do mesmo material e seguindo o mesmo padrão. Prateleiras encostadas em todas as quatro paredes da sala. Milhares de folhas. Ao mero olhar, seria impossível saber quantos exatos livros, manuais e pergaminhos ali descansavam. Poeira bailava pelo ar que adentrava a imensa

sala pelo teto. O teto da sala era desenhado para parecer circular. Lá em cima, havia uma vidraça redonda e imensa, que deixava o ar e a luz da noite adentrar a sala. As paredes retas, em conjunto com o teto aparentemente circular, tornavam aquele lugar único no que tocava a criatividade arquitetônica. Dois dos três que ali conversavam estavam sentados detrás de uma mesa de madeira grossa e escura. Um deles, estava um pouco acima do outro e mais acima ainda daquele que estava do outro lado da mesa. Ele ficava acima dos outros dois, sentado em uma cadeira rústica de madeira. O que sentava ao lado daquele que estava acima de todos, estava igualmente sentado em uma cadeira de madeira com detalhes esculpidos, mas ficava quieto. O terceiro, que estava do outro lado da mesa, ficava de pé e ouvia com cautela tudo aquilo que aquele sentado na cadeira mais alta dizia.

- Deve ser feito exatamente como o instruído. - Dizia aquele que estava acima dos outros dois.

Era uma figura que transmitia, a qualquer um, uma sensação terrível. O som da sua voz era capaz de causar calafrios nas mais temíveis das criaturas. Soava grave, como se alguém muito cansado tentasse falar. Ele vestia um robe imenso, todo preto, com desenhos estranhos que se sobressaiam em outro tom ainda mais negro. Sua face estava coberta pelo capuz que era costurado ao próprio robe negro. Apenas o ar que ele exalava e que se desfazia no ar, mudava em meio aquela feição desconhecida. Apesar de não enxergar seu rosto, era completamente possível reconhecer a seriedade que ele transmitia ao dizer aquelas palavras. O homem que estava do mesmo lado da mesa daquele que falava, estava quieto e apenas escutava, sentado em sua cadeira. Aquele que estava em frente à mesa, de pé, estava vestido da mesma maneira que os outros dois. Apenas detalhes ínfimos eram dessemelhantes. Em seu robe, que era cinza e não preto, malmente havia aqueles detalhes sobressalentes e o seu

rosto, do contrário dos outros dois, estava exposto.

60

- Não há segundas exigências, nem nenhuma outra ordem. – Enfatizava aquele que outrora instruía.

Falou em tom educador desta vez. Repreendeu aquele que estava de pé, por ter se quer exigido uma reafirmação. O homem que estava de pé, muito alto e magro, não mais falou, fez um gesto com as mãos ao mesmo tempo que bateu o pé direito firmemente no chão. Começou a andar em direção a saída. Já de costas para aqueles dois, ele foi forçado a parar e se virar.

- Ghart! - O próprio ar daquela pequena sala coberta de poeira e livros, ficou mais pesado e gélido. A seriedade era intensa, a sala quis tremer. Ghart virou-se e continuou a ouvir, cuidadosamente.

- Aja de imediato. – Disse aquele que outrora estava sentado na cadeira mais alta. Agora de pé, apontando para Ghart, que estava paralisado.

- Meu senhor? – Ele indagou com um tom firme, mas temeroso. Ghart fixou o olhar naquela sombra terrível. Atentamente, esperava novas instruções.

- Não há espaços para falhas. Você deve agir conforme o instruído. Seja preciso e não pare até ter terminado, mesmo que isso signifique o seu próprio fim. – Agora sentado, sem mexer se quer um membro, aquele que ordenava, falou e se calou por um longo período. A ordem era bastante clara e Ghart, o homem sem sombra, não demorou a segui-la. Deixou aquela sala de uma vez por todas, com muito em sua cabeça. Planos e tramoias passavam por sua mente, agir agora não era uma mera questão de escolha, era necessário.

A vista da terceira torre, a mais alta dentre elas, era estonteante. De lá se enxergava todo o Salgado, se mirassem o sul, e toda a Cidade Anciã se olhassem para o norte. Isso acontecia, pois a Torre Alta, como era conhecida a mais alta das três torres que davam forma ao Castelo Rubro, era edificada próximo a um penhasco, que era intransponível. Do outro lado, o Castelo Rubro era o final da Cidade Anciã e ao mesmo tempo a edificação que dera o seu princípio. O Castelo Rubro era majoritariamente construído com detritos de rubi vermelho e terra-fogo. Alguns diziam que boa parte do Castelo fora feito com sangue-de-dragão e que - por essa razão - a cor avermelhada do edifício nunca se desvaia. Mas, isso era apenas o que afirmavam as lendas. Importa saber que fora lá que os primeiros edificaram a primeira cidade já

retratada pela história. A Cidade Anciã, como era conhecida, era a maior cidade do planeta e, além disso, era também a mãe de todo o Norte e consequentemente, de toda a civilização de Arreta.

Ghart caminhava depressa pelos corredores amplos da Torre Alta. Caminhava em direção as escadarias que o levariam para outra ala da Torre Alta. A ala

61 superior à ala de onde ele estava era a mais restrita de todo o Castelo Rubro; lá habitavam apenas a realeza e altos membros da administração real. Poucas pessoas tinham autorização para adentrar aquela parte do Castelo. Infelizmente, Ghart, o homem sem sombra, era uma delas.

O sol aquecia a pele daqueles que já estavam despertos. A manhã era fria e a floresta já estava agitada. Rãs, grilos, besouros, sapos, esquilos e aves cantavam as suas canções em alto e bom tom. Até mesmo as árvores falavam o seu idioma secreto; cantavam enquanto os ventos passavam dentre suas folhas e galhos. Tudo parecia estar desperto, apenas Ilsa Troca Leve dormia, como uma pedra preguiçosa. Estava lá, enrolada em um cobertor grosso, feito de pelo de carneiro branco, babando pelo canto direito da boca.

- Não queria te acordar. - Explicava Einri Coração-de-Leão, enquanto observava o olhar desconfiado da recém-acordada, Ilsa Troca Leve.

- Sei que ontem foi um dia difícil e fora do ordinário, mas precisamos ir. - Continuava ele. - Essa cabana foi de fato um achado, já preparei um bom café da manhã que deve nos dar energia de sobra para caminharmos até a casa de sua tia. - Ele apontava para a mesa, que já estava posta e tinha tudo que um bom café da manhã deveria ter.

Ilsa se levantou e esfregou os olhos com as mãos. Sentiu-se bastante descansada e até alegre por um breve momento.

- Não me lembro de ter sonhado nada. - Ela explicava para Einri, algo que ele não tinha perguntado. - Acho que foi toda aquela situação de ontem. Mal posso acreditar em tudo que aconteceu. Quando paro para pensar, ainda agora... Ainda agora deveria estar saindo para abrir a Vende Tudo e começar outro dia de trabalho. - Ela observava Einri, que prestava atenção ao que ela dizia, enquanto sentava-se à mesa da cozinha.

- Bem, mas acho que, depois de analisar tudo, tivemos bastante sorte até agora. - Completou Ilsa.

- Essa cabana foi realmente algo inesperado. – Einri agarrava-se a um pão cheio de manteiga caseira, enquanto concordava com Ilsa. - É inacreditável como tudo aqui está perfeitamente de acordo com o que precisamos. Veja! - Dizia ele enquanto apontava para os próprios pés. - Achei até mesmo um par de botas usadas que me serviam. Não posso acreditar que tivemos tamanha sorte depois de passarmos por todo aquele aperto ontem à noite. Parece até algo bom demais para ser verdade. – Einri concluiu sua fala com um tom desencorajador, parecia estar desconfiado de algo. Mas, não quis preocupar Ilsa.

62 - Venha, temos que sair logo, trate de comer e preparar as suas coisas, quanto mais cedo sairmos, mais luz do dia teremos para caminhar em tranquilidade. - Explanou ele.

Ilsa tratou de obedecer. Nem fora lá tão difícil, estava faminta e tudo parecia muito apetitoso. Sentou-se a mesa sem nem mesmo lavar as mãos ou o rosto. O cheiro de ovos mexidos, derretidos na manteiga branca estava impregnado

no ar. Ilsa sentiu a boca encher de água enquanto cortava um pão pela metade com as próprias mãos. Queria agradecer Einri por ser tão prestativo, mas, por vergonha, não o fez. Logo, os dois estavam satisfeitos e trataram de arrumar os últimos detalhes para partirem. Einri Coração-de-Leão catou todos os suprimentos que pudesse carregar; a maioria era comida. Não se preocupou em levar nenhum tipo de cobertor ou algo que pudesse improvisar um abrigo, sabia que não passaria sequer mais uma noite naquela floresta. O que Ilsa tinha explicado como o caminho a ser tomado, deixava claro que eles estavam bem próximos da Fábrica de Feno. Então, Einri não conseguia enxergar razões para carregar nada além de suprimentos básicos. Levar mais do que o necessário apenas atrasaria a viagem. Foi o que ele fez. Enrolou tudo aquilo que achou por ali em uma fronha branca, passando-a por um pedaço de madeira liso e arredondado.

- Assim fica mais fácil de carregar. - Explicava ele a Ilsa, que só observava Einri decidir o que era necessário e o que não o era para a caminhada.

Ela ficou admirada com a sua rápida capacidade de decisão, digno de um daqueles que vivem ao Norte. Ilsa, como todo bom sulista, já tinha ouvido contos sobre aqueles que vivem ao Norte, e todos sulistas tinham a plena consciência que todos que lá viviam eram altamente habilidosos e inteligentes, ao menos assim era dito. Logo, tudo estava pronto e Einri já estava abrindo a porta da cabana para prosseguir. Fora interrompido apenas por uma indagação serena de Ilsa Troca Leve.

- Não te parece estranho?- Disse ela. Einri virou-se, sem abrir a portinhola de madeira da cabana. Ele apoiava a mão direita na maçaneta improvisada.

- Estranho?- Replicou ele, sem compreender exatamente o que Ilsa queria implicar.

- Sim. Até mesmo um par de botas, não qualquer par de botas, uma que coube em seus pés, achamos nesse lugar. - Ela disse, enfatizando a coincidência.

Einri manifestou-se preocupado, franzindo a própria testa. Largou a maçaneta e voltou-se para Ilsa.

63 - De fato é estranho. Por isso que julgo ser importante sairmos daqui o mais cedo possível. Alias, talvez já tenhamos demorado até demais. Vamos! - Afirmou ele, carregando as duas mochilas improvisadas no ombro direito e abrindo a portinhola de madeira da cabana.

Ilsa não quis ficar nem mais um minuto naquela cabana. Apesar de ter lhe

servido como um abrigo agradável, algo não cheirava bem. Seguindo Einri, ela

prosseguiu por dentre a floresta. Os dois se afastaram da cabana e adentraram a

única trilha que prosseguia na direção desejada. A trilha parecia ficar mais larga a

cada passo e a floresta menos espessa. Caminharam, evitando as pedras e galhos

soltos. Dessa vez conseguiam caminhar um pouco mais depressa do que antes.

Einri, antes Enóculo, agora pisava com firmeza, as botas, apesar de batidas,

pareciam ter lhe servido com perfeição. Os dois andaram até o sol alcançar o seu

ponto mais alto no céu. Ilsa Troca Leve estava ofegante e suava bastante. De

pouco em pouco, Einri perguntava a Ilsa Troca Leve se ela se sentia bem e se

podia continuar caminhando. Ela continuou seguindo ele, passo a passo,

firmemente todas àquelas horas. “Não quero parecer frágil” Pensava ela consigo mesma. Gesticulava com a cabeça afirmando para que Einri prosseguisse. Puxando o ar úmido da floresta para os pulmões ela o

seguia, passo a passo. Ilsa ficava observando Einri e achava fantástico como ele conseguia caminhar rapidamente e sequer se sentir ofegante. Além disso,

ele carregava duas trouxas, repletas de suplementos, que - de certo - pesavam o caminhar. Mas, nem sequer suar, como antes fazia, ele suava. Entre

pensamentos e estranhamentos, os dois se encontraram na saída da floresta. A

trilha terminara e uma estradinha cheia de cascalhos e pedras brancas se mostrava a frente deles. A estradinha era ondulada e ia descendo colina

abaixo. De onde eles estavam podia-se enxergar até o seu final, que daria em uma placa dividindo a estrada ao meio. Ilsa não disfarçou a satisfação de sair

daquela floresta, tratou de abrir um largo sorriso, que fez Einri se sentir feliz. Os dois caminharam mais duzentos metros e alguns passos, descendo a

estradinha que não possuía nenhuma árvore nas suas laterais. Bosques se perdiam no horizonte. À frente deles, apenas uma coisa chamava atenção. Eles

se depararam com a placa de madeira que possuía duas setas pregadas,

igualmente de madeira, com nomes talhados nelas. Na parte preta, talhada em destaque e queimada com pedra-fogo, estava escrito:

Estrada Mercante

Via 13

64 A seta que apontava para a estrada mercante orientava que os dois prosseguissem caminhando à esquerda. Ilsa apontou para a seta que tinha “Estrada Mercante” escrito nela e seus olhos se encheram de brilho. Finalmente tinha a certeza de que estavam no caminho certo. Não precisou dizer nada a Einri, apenas tomou a sua frente e continuou seguindo o caminho de cascalhos e pedras brancas, que já era mais estrada do que trilha. Poucos metros à frente, já era possível notar que estavam no caminho esperado. Casinhas de madeira estruturavam-se na beira da estrada, mas pareciam estar vazias. Ilsa Troca Leve caminhava afrente de Einri, que prosseguia com cautela. Talvez até cautela demais para a paciência de Ilsa. - Anda logo! Por que está caminhando tão devagar? - Ela indagava. Não podia entender por que Einri andava tão lentamente, justamente agora que estavam no caminho certo.

- Finalmente se cansou? - Perguntou ela, pensando em voz alta. Ele, não demorou a responder.

- Não é isso. Não sei se esse é o melhor caminho. – Disse ele.

Ilsa, muito confusa, tratou de retrucar.

- Como assim “não é o melhor caminho”? - Ela falara, imitando Einri. - Esse é o caminho, o único que conheço para chegar a Fábrica de Feno. Não já te expliquei?

- Não é isso. Eu entendo que temos que chegar à casa de sua tia. Mas, não sei se devemos fazer isso pela avenida principal. - Explicava ele, enquanto apontava para a rua a frente, que estava cheia de pessoas realizando diversas tarefas. Havia tendas e várias barracas que vendiam produtos de todos os tipos. Muitas pessoas pareciam carregar mercadorias, comprar outras e vender outras tais. A multidão, que estava ali a alguns passos afrente, parecia amedrontar Einri Coração-de-Leão.

- Acho que iremos chamar uma atenção desnecessária. - Ilsa percebeu que Einri referia a ele mesmo.

De fato ele era algo fora do ordinário. Se visto de longe, parecia um sulista comum. Mas, o seu próprio jeito de andar e falar, até mesmo a sua cor de pele, que era alvíssima, demonstrava que ele era diferente dos demais. Ela lembrou ainda de todo o sufoco da noite passada, sentindo um leve arrepio quando lembrou a sensação de estar sendo perseguida.

65 - Tem razão. - Concordava ela. - Mas por onde devemos ir? Não quero me desviar do caminho, agora que estamos tão próximos. - Dizia Ilsa Troca Leve, com um tom amedrontado.

- Não é necessário. Podemos andar na própria avenida, mas vamos pela lateral, por detrás das vendas, com cautela. - Como de costume, Einri já tinha um plano de fuga em mente e sabia exatamente como agir.

Ilsa sentiu um alívio, não queria deixar a Estrada Mercante, especialmente por que sabia que já estavam a poucos metros da estradinha que levaria ao encontro de Tia Frizda. Em poucos minutos, estaria na casa de sua querida tia e tudo estaria bem novamente. Ilsa concordou com Einri, gesticulando com a cabeça. Desta vez, deixou ele seguir a frente. Fora imitando todos os movimentos que ele fazia, até mesmo se agachando, como ele, quando necessário, para evitar que fossem vistos. Einri parecia muito preocupado

enquanto caminhava por dentre as vendas, que eram barulhentas e mal cheirosas; parecia esperar o pior a qualquer momento. Ilsa compreendia toda a situação, afinal, ele era um fugitivo. Levando em conta tudo que ocorrera até aquele momento, cautela não parecia uma má ideia. Muitos passos à frente, os dois se encontraram na esquina donde começava uma estradinha estreita, feita de barro-batido, que Ilsa logo tratou de comentar.

- É aqui! - Exclamou ela com um largo sorriso no rosto. - A Fábrica de Feno fica logo alguns metros à frente, no final dessa estrada. Já posso sentir o cheiro do café de Tia Frizda. - Completava ela, com muita alegria.

Havia completado a sua aventura. Ainda que não estivesse na Fábrica de Feno, já se sentia segura, quase tratando o que acontecera até aquele momento como uma lembrança, algo que contaria alegremente em conversas posteriores. Seriam poucos os seus amigos Mercadores que iriam acreditar na sua façanha. Havia visto e falado com um Criador. Muito além disso, havia ajudado o mesmo a escapar, extraordinariamente, do Grande Porto. Talvez devesse escrever um livro contando suas aventuras.

- Então vamos! - Exclamou Einri, olhando para trás uma última vez e apressando Ilsa.

A estradinha continuava por mais dois quilômetros, toda feita de barro. Daquele ponto da Estrada Mercante, até a Fábrica de Feno, não havia sequer uma cabana naquela estrada, apenas duas cercas, dos lados opostos da estrada, feitas com pedaços de madeira e arames farpados, caminhavam ao longo da estradinha. Não havia árvores, apenas um longo campo verde, que se dobrava em colinas. Se olhassem para trás, notariam alguns edifícios e fumaça que vinham da Estrada Mercante, à frente - para onde caminhavam - apenas a Fábrica de Feno se fazia notável. Ilsa pulou de alegria quando se percebeu

66

abrindo o portãozinho de madeira, preso com parafusos largos e grossos, que dava acesso ao terreno donde ficava a Fábrica de Feno. À frente deles, estavam três edifícios grandes, todos feitos de madeira, com telhados em forma de “v”. A sua esquerda, um celeiro que media mais de cinco metros de altura, selado por uma única porta imensa. À direita, estava um armazém, que possuía várias janelinhas, três portas largas e uma pequena, e três chaminés redondas que ficavam circulando e liberando uma fumaça branca. Bem acima do armazém, estava uma imensa placa toda feita de metal. Na placa tinha escrito, em fonte grande:

“A Fábrica de Feno – 100 anos”. Por último, um pouco mais afastada, estava à casa de Tia Frizda. Era uma mansão muito antiga, enorme e bem cuidada. Pintada de vermelho claro, com detalhes tingidos em branco, a casa de Frizda Andejo continuava da mesma maneira que Ilsa lembrava. Aos fundos, várias árvores que faziam sombra na casa e deixavam muitas folhas espalhadas pelo quintal. A casa possuía uma varanda imensa na frente, o chão era todo feito de madeira, tábua por tábua, alguns pilares sustentavam um telhadinho que cobria a varanda da frente.

- Carol! - Exclamou Ilsa, com as duas mãos na boca, formando uma concha aberta, na tentativa de amplificar seu grito.

Einri não entendera de imediato o que ela estava fazendo, mas logo percebeu que uma mulher abrira as duas portas que se sobrepunham e saíra da casa as pressas. Ela possuía longos cabelos cacheados, negros como a noite. Era alta e bastante magra. Usava um vestido todo marrom, bastante surrado, com um avental de couro preso a cintura.

- Minha pequena Carol! - Exclamou Tia Frizda, enquanto apertava Ilsa com os braços.

Tia Frizda deixou escorrer uma pequena lágrima pelo canto do olho direito, não parecia querer cessar aquele abraço tão cedo. Einri se sentiu desconfortável. Não sabendo como agir ou o que dizer, ficou quieto.

- Vocês estão bem? - Dizia ela, ainda segurando Ilsa. - Achei que vocês nunca chegariam! - Ela olhava para Ilsa, enquanto segurava ela pelos ombros. Einri ficou surpreso, não entendeu o que se passara, mas não teve tempo de se expressar.

67 - Como assim? - Indagou Ilsa, desconfiada. - A senhora sabia que estávamos a caminho? – Ela perguntou.

Tia Frizda soltou os ombros de Ilsa, afastando-a da frente de Einri, que permanecia calado. Logo ela o encarou e continuou a falar.

- Um homem veio aqui ontem à noite. - Ela enxugava o rosto com o punho esquerdo. - Ele me disse que vocês estavam a caminho e que corriam perigo! - Exclamou Tia Frizda, enquanto virava-se para Ilsa. - Mas vocês estão bem, não estão? Graças a Deus! Vamos entrar, explicarei tudo. - Disse ela, enquanto empurrava gentilmente Ilsa Troca Leve pelas costas para dentro da casa.

Fora um golpe meticulosamente calculado. A ponta da faca mal teve contato

com a pele e muito sangue já jorrava pela artéria carótida do defunto, que

ainda estava de pé. A própria faca não produziu som algum enquanto cortava

o ar para atingir o seu alvo. O guarda, que estava de prontidão em frente à

Câmara Real sequer sentiu dor. O único som que se pôde ouvir foi o som do

corpo pesado daquele homem caindo sobre o chão. Todos os litros de sangue

que seu corpo possuía, estavam no chão, formando uma poça vermelha e

quente. Segundos após a queda do defunto, uma sombra se movera, deixando

a escuridão. Dois passos o levaram para dentro da Câmara Real, onde

ninguém, com exceção dos próprios Reis e Rainhas, poderiam adentrar. A sua

frente, estavam várias mobilhas, armários e cadeiras. Os aposentos da realeza.

Era tudo muito belo, feito em sua maioria de madeira nobre e ouro

ornamentado, as paredes eram magnificas, todas pintadas com obras primas

dos maiores artistas da Cidade Rubra. Mas, nada daquilo despertava o seu

interesse. Ghart, o homem sem sombra, tinha um único objetivo em mente e

não demorou em agir conforme o planejado. Dez passos silenciosos como os

de um gato, o levaram a cabeceira da cama onde dormiam o Rei e a Rainha,

lado a lado, na mais tranquila paz. Levando a mão para dentro do seu robe

cinzento, retirou a faca de lâmina branca, mais afiada do que um dente-de-

dragão, com a qual concluiria sua missão. Segurou-a com a mão esquerda

deixando seu dedo anular acima da lâmina. Com um golpe preciso e veloz,

cortou a garganta de Mirian, a piedosa. A faca de lâmina branca cortou toda a

pele, veias, artérias, músculos e ossos da garganta da Rainha como se fossem

papel de seda. O sangue quente ainda jorrava pela sua garganta, enquanto a

Mirian tentava gritar em desespero. Palavras não saíram de sua boca. Suas

cordas vocais estavam dilaceradas. Apenas os engasgos e últimos suspiros de

Mirian foram suficientes para acordar o Rei, que dormia ao seu lado. Em um

lapso de consciência, ele pôde ver o semblante do assassino e compreender,

ainda que por um momento, a situação. Percebeu, em poucos segundos, que

sua mulher, que tanto admirava, estava esmaecendo, brutalmente assassinada,

ao seu lado. Raiva, ele sentira. Mas, nada pôde fazer.

68 - Ghart? Por quê? - Disse ele, enquanto sentia a faca, vestida do próprio sangue da sua amada esposa, adentrar o seu peito, lhe perfurando o coração.

A mão do assassino permaneceu firme até o fim. Logo, os dois corpos que ali deitavam não mais se moviam e tudo era silêncio. O assassino retirara a faca do peito do Rei com um único movimento. Teve o trabalho de limpar a lâmina sangrenta no tecido que cobria a cama onde o Rei e a Rainha dormiam.

Guardou a faca de lâmina branca em seu robe cinza e mirou a porta por onde entrara. Sem fazer nenhum tipo de barulho, ou mostrar qualquer tipo de emoção, olhou pela última vez a cena que proporcionara. A cama estava coberta por sangue real e tudo era vermelho, o próprio ar fedia a ferro. Ghart, o homem sem sombra, adotara o título de regicida quando fechou a porta por onde entrara e saíra sem olhar para trás. Fez uma pequena pausa logo após fechar a porta da Câmara Real de uma vez por todas, como se consolasse a si próprio. Tardou a responder as últimas palavras do Rei, mas o fez. Consigo mesmo, tão baixo que apenas a sua própria consciência pôde escutar, ele respondeu como se o Rei ainda pudesse compreender.

- Homens mortos não falam.

69

Capítulo V

À caminho

O cheiro de café fresco bailava no ar. Biscoitinhos recheados com doce de leite

estavam postos à mesa. Cubos de açúcar também estavam lá, para quem os

quisesse pegar. Um grosso mingau de aveia aguava a boca de quem quer que

ousasse cheirá-lo. Frutas e flavos de mel competiam em doçura. A cozinha era,

sem dúvida, o lugar mais aconchegante de toda a casa. Armários presos à parede,

com vários jarros de vidro acima deles, cheios de biscoitos e torradas. Ao centro,

uma mesa grande de madeira. A mesa estava acompanhada de várias cadeiras

confortáveis, que ficavam ali, espalhadas. Lá no canto, mas não tão longe da mesa

– ao ponto que qualquer um que ali sentasse fosse aquecido - ficava um fogão a

lenha, feito de terra-fogo. Todo esculpido a mão, possuía duas bocas de fogo.

Janelinhas de madeira e vidro deixavam a cozinha não tão clara, mas não tão

escura. Era o lugar mais aconchegante da casa.

Tia Frizda parecia extremamente preocupada. Fez questão que sua sobrinha, a pequena Carol, tomasse ao menos uma xícara de café antes que ela explicasse

qualquer coisa. Tia Frizda chamava Ilsa Troca Leve desta forma, assim como Ilsa chamava Tia Frizda de Carol, porque as duas eram fanáticas por um livreto de histórias infantis que contava a história de duas tartarugas aventureiras: Carol & a pequena Carol, como era intitulado o livro. Quando pequena, esta era a história favorita de Ilsa. Todas as vezes que passava aqueles longos verões na Fábrica de Feno ela caía ao sono ao som da narrativa calorosa de Tia Frizda. Então, desde que se entendia por gente, Ilsa tratava sua tia como tal e o carinho era reciproco. Einri Coração-de-Leão parecia mais preocupado que Ilsa. Os dois estavam sentados à mesa da cozinha, totalmente em silêncio. Tia Frizda encarava ambos, sem falar uma palavra. Antes mesmo que a primeira xícara de café fosse esvaziada, Ilsa quebrou o silêncio.

- Pois então? – Perguntou ela à sua tia.

Queria saber todos os detalhes e o motivo de toda aquela aflição. Tia Frizda não parava de bater os pés no chão e a xícara que tentava segurar, não parava de tremer.

- Vocês estão bem, não estão? – Perguntou Tia Frizda, sem esperar resposta. – Graças a Deus! Mas a questão não é só essa. Não quis falar nada lá fora, pois o homem que apareceu ontem a noite pediu segredo! – Dizia ela, enquanto esbugalhava os olhos. – Ele me disse o que aconteceu. Falou-me sobre tudo

70 que acontecera até mesmo antes de você chegar aqui. – Ela explicava, desta vez direcionando-se a Einri.

- Antes que eu chegasse aqui? – Perguntou Einri, seguindo com outras perguntas. – Quem é esse homem? Como ele sabia que estávamos a caminho? Nem mesmo nós sabíamos disso direito. - Explicava-se ele. Tia Frizda logo rebateu. - São muitas perguntas. Mas, quando paro para pensar, mal posso explicar o que realmente aconteceu. - Disse ela, enquanto deixava a xícara descansar no pires. - Não lembro do rosto do homem, nem sei seu nome. Que estranho! - Tia Frizda parecia estar confusa, segurava a própria testa com a mão canhota.

- Como assim não se lembra? - Perguntou Ilsa, desconfiada.

- Não lembro. Lembro apenas de suas palavras. Ele foi bem claro, disse que vocês tinham deixado o Grande Porto e que passavam a noite em uma cabana em plena floresta! - Tia Frizda saltou da cadeira enquanto elevava a voz. - Que perigo! Mas, fiquei tranquila. Ele disse que tinha ajeitado tudo para vocês, que vocês estavam seguros e que o pior já tinha passado. - Falara ela, enquanto voltava a sentar à mesa.

- Carol que homem é esse? - Ilsa perguntava, seriamente.

Tia Frizda parecia sofrer de algum tipo raro de amnésia. Por mais que quisesse, não conseguia lembrar exatamente o que aconteceu na noite passada, somente uma voz que lhe contara toda aquela história. Einri não ficaria surpreendido caso aquilo que Tia Frizda falasse não tivesse realmente ocorrido, mas não era o que acontecia. Tudo aquilo condizia com o que ele e Ilsa tinham passado há pouco tempo. Tia Frizda continuou a falar, sem responder Ilsa.

- Sei que vocês saíram às pressas da Cidade Porteira, passando às surdinas pelo Quarteirão. Mas que perigo! - Exclamava ela, enquanto segurava as mãos de Ilsa, que estavam descansadas na mesa. Tia Frizda, adotando uma feição mais serena, continuou a se explicar.

- Me desculpe, eu não sei o que realmente aconteceu ontem à noite. Recordo apenas de estar fechando a Fábrica, passei o cadeado e empurrei a porta, como sempre. Lembro-me de caminhar até a casa e ir preparar um chá antes do banho. Sempre faço isso. Mas, não me lembro de ter tomado o chá. Mais estranho ainda, dei conta de mim mesma, horas depois, quando me percebi

71 sentada nessa mesma cadeira. - Ela apontava para a cadeira que Einri estava sentado. - Sentada aí, encarando duas xícaras vazias na mesa.

- Duas xícaras? - Perguntou Einri.

- Exatamente. Sei que uma eu mesma usei, pois sentia o gosto de camomila na minha própria língua, mas a outra... Foi nesse momento que uma voz apareceu na minha cabeça. Soube de tudo que estava acontecendo com vocês e tinha uma missão. - Falara Tia Frizda, tentando explicar o que acontecera.

Einri e Ilsa ficaram calados, prestando muita atenção ao que ela dizia. Ambos estranhavam a conversa, mas reservaram-se a ouvir tudo até o final.

- Missão? Ele te disse algo? - Perguntou Ilsa, sem compreender a fala da tia.

- Isso, essa parte ficou gravada claramente na minha cabeça. Não é exatamente uma missão, ele passou um recado. - Explicou Tia Frizda. - Qual o recado? - Exclamou Ilsa, quando percebeu que a tia demorava a falar.

- Um recado para o filho do Rei. - Ela disse. Sem delongas, continuou. - Falou que você tinha que partir de imediato. Um barco está lhe esperando a Oeste daqui, próximo ao Rio das Tripas. De lá, você deve procurar um homem, Vergo, o vesgo. Ele te levará de volta ao Norte.

Tia Frizda falara como alguém que decorara um texto. Cada palavra estava cuidadosamente colocada. Até mesmo o jeito de falar não parecia ser seu próprio. Quando acabou de passar o recado à Einri, sentiu o próprio corpo ficar mais leve, parecia ter se livrado de um fardo terrível. Einri não soube como reagir de imediato, ficando pensativo. Logo Ilsa resolveu se manifestar.

- Vergo o vesgo? - Ela encarou sua tia Carol. - Não me parece uma atitude segura. Nem sabemos quem é esse homem que falou com a senhora. - Ilsa falava em direção a Tia Frizda, que não entendia ao certo o que aquele recado queria dizer.

- O que você acha? - Ilsa indagou à Einri.

Ele estava pensativo. Ficou calado mesmo com a pergunta de Ilsa lançada ao ar. Antes que olhasse nos olhos de qualquer uma das duas que ali estavam, ele se reservou a comer um dos biscoitinhos que Tia Frizda havia preparado. Ficou mais um bocado sem responder, apenas quieto. Ilsa parecia querer explodir a qualquer momento, todo aquele silêncio estava tirando-a do sério.

72

- Não sei. - Disse Einri, com a mais serena das feições. Ilsa sentiu o sangue ferver e berrou em resposta.

- Pelos deuses, que raios está acontecendo?- Ela indagava para os dois, que também não tinham resposta para aquela pergunta. - Então um homem do qual você nunca ouviu falar e do qual não lembra nada, exceto esse recado, entrou em sua casa e contou sobre tudo pelo que passamos para a senhora? Isso é impossível! Só estávamos eu e ele em todo o caminho, tivemos certeza disso! - Ilsa estava extremamente perturbada, de pé, falava afoitamente à procura de uma razão naquilo tudo.

Tia Frizda, percebendo a agonia da sobrinha, resolveu acalmar a situação. Tomou o último gole de café que descansava, frio, em sua xicara.

- Já é tarde, deveríamos dormir e pensarmos sobre isso. Talvez uma noite calma seja tudo que precisemos para compreender toda a situação. Eu já tinha preparado os quartos para vocês. - Ela explicava enquanto segurava Ilsa pelo braço, acalmando-a.

- Não tome qualquer decisão agora. - Falara ela para Einri. - Amanhã de manhã você poderá pensar com mais clareza. Alias vocês devem estar muito cansados. Venham, há toalhas limpas, água morna e boas camas lá em cima. - Ela concluiu a fala, enquanto puxava Ilsa para a saída da cozinha.

Einri pareceu confortável com aquela ideia; não queria tomar nenhuma decisão precipitada, talvez Tia Frizda estivesse certa e tudo que ele precisasse fosse uma boa noite de sono.

Ilsa percebeu que todos estavam confusos com aquela situação. Entendeu que de nada adiantaria continuar aquela conversa. O tempo, como sempre, seria o melhor remédio para as suas dúvidas. Aceitou o convite de sua tia Carol e tratou de se preparar para um banho, que acompanharia uma boa noite de sono. Talvez fosse essa a sua intenção, mas sabia que demoraria a pegar no sono. Pensamentos tão complexos demorariam a deixar a sua mente. Einri não mais falou com Ilsa naquela noite. Ficou no andar de baixo da casa de Tia Frizda, enquanto Ilsa Troca Leve estava se ajeitando para dormir no andar de cima. A conversa com Tia Frizda pareceu inevitável.

- Obrigado. - Disse ele.

Tia Frizda ficou surpresa com a forma de começar a conversa que Einri adotara. Logo ela notou que estava em uma situação totalmente fora do comum. Ficou um pouco nervosa quando finalmente entendeu que aquele jovem rapaz era um daqueles que vivem ao Norte. Sabia, além disso, que ele

73 era um membro da realeza. Fosse outra pessoa, Tia Frizda iria se curvar e reverenciar o filho do Rei. Mas, assim como Ilsa, Tia Frizda era um pouco diferente das pessoas do Sul. Ela percebeu como Einri era diferente dos Sulistas, mas não viu razão para tratá-lo como tal.

- A senhora não sabe como é bom ter chegado aqui. - Completava Einri, agradecendo Tia Frizda.

- Oh, querido, não há de que. - Respondeu Tia Frizda.

“Apenas um rapaz e com tantas dificuldades pela frente” pensara ela. Mas, logo abriu um sorriso, como se consolando a si mesma. Pensara ela pensamentos confusos sobre os deuses do destino. Afinal, ela, mais do que ninguém, compreendia que há certas coisas na vida que não dependem de nós. Coisas estranhas ao nosso entendimento, além do nosso alcance. Tia Frizda sempre quis um filho, até mesmo tentou adotar alguém. Esforçou-se muito nessa tentativa. Mas, coisas outras da vida sempre entraram no caminho. Depois de muito tempo, ela tinha feito as pazes com o jeito que as coisas eram. Não havia de culpar ou sentir pena de outrem, ou de si mesma, por ser o que era. Tia Frizda notou que Einri estava extremamente pensativo. Resolveu prolongar a conversa.

- Você já sabe o que fazer, não sabe? - Perguntou ela. - Mas que bobagem, não precisa responder. - Disse Tia Frizda.

Ela sabia que aquilo era uma decisão difícil e que não podia ser algo decidido de uma hora para outra, mas sentia algo diferente naquele rapaz. Algo no seu olhar dava entender que ele estava sempre sete passos a frente de qualquer pessoa. Tia Frizda sabia que ele já tinha tudo planejado. Einri, que olhava perdidamente para o horizonte, voltou o olhar para Tia Frizda e respondeu.

- Sim. Digo, desde que escapei daquele navio, sempre tive uma coisa em mente, eu tinha que voltar ao Castelo. Até agora não entendo a razão do que aconteceu comigo. Mas... Mas, agora que essa mensagem me foi passada o objetivo ficou mais claro ainda: tenho que voltar ao Norte. - Einri parecia ter firmeza no que afirmava.

Tia Frizda sentiu-se aliviada com o posicionamento do rapaz. Era impressionante como ele era decisivo e não demorava muito tempo para tomar decisões importantes. Embora a fala de Einri Coração-de-Leão fosse definitiva, Tia Frizda notou que algo ainda o incomodava. Ele estava triste. - Você deve tomar um banho, um longo banho quente, e descansar essa noite, querido. - Disse Tia Frizda, aconselhando Einri. Ele, que voltava a olhar para

74 o nada, sentiu um alívio quando a ideia de Tia Frizda voltou à sua imaginação. Precisava descansar, isso lhe faria extremamente bem.

Einri sentiu um aperto no peito quando percebeu que Ilsa Troca Leve descia as escadas da sala da casa de Tia Frizda. Algo nunca sentido antes. Ela vestia uma espécie de pijama branco, de tecido fino, e seus cabelos louros estavam soltos. Ela era estonteante. Aquele momento deixou bem claro isso... Einri encarou aquela bela moça até não mais conseguir. Suas bochechas e testa ficaram avermelhadas e ele forçou uma tosse, para que pudesse desviar o olhar.

- Vá querido, lá em cima. - Tia Frizda mandou Einri subir, empurrando-lhe pelo ombro, enquanto sorria um riso escondido, por sentir o nervosismo do rapaz.

Ele não respondeu, estava estonteado com a imagem de Ilsa em sua mente. Logo, reagiu e resolveu obedecer Tia Frizda. Einri e Ilsa caminharam lado a lado enquanto passavam pela escada. O perfume de Ilsa ficou preso às narinas dele. Assim que ela passou por ele, deixou seu cheiro impregnado no ar. Ele fechou os olhos por alguns microssegundos, queria ficar ali naquele momento o máximo que pudesse. Tivesse ele o poder de parar o tempo, o faria. Congelar-se-ia naquele momento singular e viveria o resto da vida em paz. Mas, logo seus olhos se abriram e até mesmo o sentimento bom que sentiu naquele instante, esvaziou-se. Einri sabia que muitas coisas estavam por vir. Coisas que fugiriam ao seu controle. Direcionou-se ao banheiro para tirar as marcas de um longo caminho percorrido do corpo. Os risos quietos de Tia Frizda aguçaram a curiosidade de Ilsa. Logo que desceu as longas escadarias de madeira, ela percebeu que algo se passava na mente da tia.

- Que houve?- Perguntara Ilsa, inocentemente.

- Nada. - Disse Tia Frizda, sem conseguir esconder o riso.

- Como assim nada? Por que a senhora está rindo? - Ilsa, agora sorrindo como a tia, continuava a investigação.

Tia Frizda percebeu facilmente o que acontecia ali. Ela sabia que a sobrinha, apesar de muito bonita, nunca fora vaidosa e nunca se importara com os rapazes. Não é que ela não tivesse pretensões, como qualquer outra garota, mas Ilsa nunca fora tão preocupada com esses assuntos como as outras moças de sua idade. Desde adolescente, ela sempre teve outras prioridades. Parecia viver em um mundo singular, onde a opinião de seus semelhantes não carregava qualquer importância. Tia Frizda resolveu não explicar a Ilsa a situação. “Quando for a hora, ela percebe” pensou ela. Contudo, sentiu-se alegre pela sobrinha. Não havia nada de errado em provocar aqueles tipos de

75 sentimentos num rapaz. A alegria de Tia Frizda, confundia-se também com um sentimento orgulhoso. Estava contente com o tipo de mulher que a sua sobrinha se tornara.

- Estou indo para a cama, você devia fazer o mesmo. - Respondeu ela, cortando a conversa.

Ilsa não entendeu o motivo da graça, mas resolveu não perturbar sua tia Carol ainda mais. Deu alguns passos até a cozinha, onde encontrou um filtro de barro, cheio de água. Agarrou uma caneca de cerâmica, enchendo-a de água límpida. Ilsa e sua caneca subiram novamente as escadas da casa de Tia Frizda. Logo ela se trancou no quarto que Tia Frizda havia preparado e tratou de alcançar o mundo dos sonhos.

Gélida era a noite e do frio se salvaguardavam aqueles três que dormiam na

Fábrica de Feno. Cobertores grossos, acolchoados com algodão-seda

tornavam a temperatura das camas agradáveis. A primeira a abraçar a

sonolência foi Ilsa Troca Leve. Logo após se deitar, relevou vários aspectos do

que tinha acontecido naqueles últimos dias. Um sentimento estranho passou

em sua mente quando se lembrou das etapas percorridas até o momento.

Pensou nas providências a serem tomadas. A primeira coisa que faria, ao raiar

o sol do outro dia, seria manufaturar uma carta para tranquilizar o coração dos

seus pais. Pensou ainda o quão aflito o Sr. Troca Leve deveria estar com a

Vende Tudo. Estaria fazendo falta? Ela esperava que sua ausência não

estivesse provocando tantos problemas. Logo, se rendeu e caiu no sono. Após

Ilsa, Tia Frizda foi a segunda a adormecer, profundamente. Quanto mais ela

pensava no que tinha acontecido, mais as lembranças da noite passada

pareciam esmaecer. Era como se aquela informação tivesse um prazo de

validade. Assim que Tia Frizda passou o recado, ele começou a expirar e as

informações foram evaporando no ar. Tia Frizda foi dormir alegre, estava com

sua sobrinha, a pessoa que mais gostava no mundo. Depois das duas, Einri

Coração-de-Leão fora o último a se render. Complexos pensamentos,

lembranças do cárcere e das aflições da viagem, teimavam a lhe escapulir à

mente. Mais do que as lembranças de uma aventura não planejada,

pensamentos mais profundos e sombrios atormentavam a mente de Einri. Já

tinha trocado de posições múltiplas vezes, se debatendo na cama, mas não

conseguia pegar no sono. Interiormente, ele se perguntava o que estava por vir.

Por fim, após muito lutar com a própria mente, o corpo dele acaba por se

render, adentrando o universo distorcido dos sonhos.

Horas depois, os primeiros raios de sol faziam os galos do quintal de Tia Frizda cantarolarem. Logo, as nuvens estavam espessas e o azul do céu tomava a sua tonalidade mais clara. O vento frio, que machucava as estruturas e as rochas à noite, tinha ido embora. Uma brisa morna fazia as folhas das árvores dançarem e o capim verde, que nascia preso ao chão da colina de onde

76

era estruturada a Fábrica de Feno, acompanhava seus movimentos. Ao som

dos galos, Tia Frizda foi a primeira a despertar. Desenrolou-se do seu casulo de cobertas, colocando os chinelos de couro que descansavam ao lado da

cama. Arremessou ambos os braços lá em cima, espreguiçando-se o tanto quanto pôde. Por um momento, ela pensou em toda a sua rotina. Faria tudo de

acordo com o costume. Mas, quando alcançou completa consciência, sorriu

abertamente. Iria fazer um café da manhã especial, afinal não era todo dia que ela tinha visitas em sua casa. Aos pulos de alegria, Tia Frizda desceu as

escadarias da casa, passando rapidamente pela sala de estar, saindo pela porta da frente. Desceu os outros três degraus que separavam a terra batida de sua

varanda de madeira, caminhou em direção ao fundo do celeiro. Lá, feito de grades e madeira fina, estava um pequeno galinheiro. Tia Frizda tratou de

retirar os ovos mais gordos que suas galinhas tinham colocado na noite passada. Dois passos dali havia uma horta bem cuidada. Alfaces, nabos,

cebolas, cenouras, couves, tomates e tantos outros ali cresciam. Em menos de vinte minutos, Tia Frizda já havia recolhido todos os ingredientes para

preparar um verdadeiro café sulista.

Fora o cheiro de bacon sendo frito na manteiga de leite de cabra, que acordara Ilsa. Sua boca se encheu de água antes mesmo que ela recuperasse consciência. Abriu os olhos e se deparou com um cenário há muito conhecido. A janela de madeira semiaberta deixava o calor da manhã tocar a sua cama e um punhado de poeira bailava nos raios de sol. Tudo aquilo trazia muito alegria a Ilsa. Aquela cena tinha um gosto de infância e na infância tudo é alegria. Apenas o café-da-manhã de Tia Frizda possuía força suficiente para tirar Ilsa daquela cama. Logo, ela estava vestida e sua barriga clamava pelo café da manhã de sua tia. A trama encontrada a surpreendera: Tia Frizda estava sentada à mesa da cozinha, acompanhada por Einri. Seria algo comum se notado rapidamente, todavia, aqueles dois pareciam ser amigos íntimos. Estavam conversando e sorrindo. Ilsa, de cima das escadas, ficou espiando a cozinha por uma frecha do corrimão da escadaria. Queria saber sobre o que os

dois conversavam. Logo, se sentiu tola e resolveu se juntar à mesa.

- Bom dia pequena Carol! - Exclamou Tia Frizda, enquanto beijava a testa de Ilsa, deixando-a inconfortável.

- Bom dia. - Disse Ilsa, cumprimentando a tia e o companheiro de viagem.

Assim que Tia Frizda a soltou, Ilsa sentou-se à mesa, se juntando aos outros dois. Estava ali tudo que ela gostava e ela não demorou saciar a fome. Pães, biscoitos salgados, ovos mexidos com cebolinhas verdes e um mingau de aveia, pingado com mel, se sobressaiam. Einri não disse nada. Estava maravilhado com a quantidade e variedade das comidas postas à mesa. Todos pareciam esquecer-se dos problemas em um momento tênue de alegria. Mas logo o silêncio fora abalado.

77

- Devo ir. - Disse Einri. - Digo... Devo seguir a mensagem que me foi dada. - Explicava ele.

Ilsa parou de comer por um instante. Tia Frizda fez uma feição séria. Einri falara inesperadamente, mas todos ali entendiam sobre o que ele se referia.

- Pensei muito ontem a noite e não vejo alternativa. Devo seguir o conselho que me foi dado. Não sei bem se foi um conselho, afinal. Mas, acho que tenho o dever de investigar.

Tia Frizda ponderou antes de demostrar qualquer tipo de opinião. Tomou dois goles de café e esperou a conversa se desenrolar.

- E se for uma armadilha? Digo, pois aqueles que te prenderam ainda devem estar atrás de você. Meu Deus! Podem ter sido eles que te hipnotizaram, tia! - Exclamou Ilsa.

- Pensei nisso. Mas acho difícil que aquele selvagem tenha alguma ideia de onde estejamos. Muito menos seria capaz de descobrir o nosso destino antes mesmo de chegarmos aqui. - Einri argumentava.

- Bem, pode ser que esteja indo para algum perigo. Talvez realmente seja uma armadilha, mas não tenho alternativa. Não posso simplesmente ficar aqui parado. - Completou ele.

- Você deve ir querido. Siga o seu coração. - Tia Frizda falou, serenamente.

Ilsa se surpreendeu com a atitude da tia. Mas, logo se acalmou quando percebeu o tom de voz da mesma. Lembrou-se de todos os conselhos que sua tia Carol havia lhe dado na mocidade, nenhum deles jamais fora falho e todos foram dados com aquela mesma expressão e tom de voz. Ela ficou quieta enquanto ouvia sua tia falar e Einri escutar.

- Vou te ajudar no possível. Tenho alguns suprimentos que lhe farão chegar ao Rio de Tripas o mais seguro possível. Sua viagem não será tão longa, mas também não será breve, nem tampouco fácil. - Disse Tia Frizda. - Eu não tenho como te agradecer por tudo. Serei sempre grato. - Einri se levantou da mesa;

Havia terminado o café e só pensava em prosseguir em sua jornada. Andou alguns passos, passando pelo corredor da sala e subindo novamente para o quarto emprestado. Logo Ilsa e Tia Frizda estavam sozinhas na cozinha.

78

- Você acha isso sensato? - Perguntou Ilsa a sua tia. Tia Frizda ponderou, como se já esperasse a pergunta.

- Querida... - Disse ela. – Há certas coisas que devemos fazer em nossas vidas. Coisas que desafiam o que achamos seguro e o que julgamos correto. Coisas que nos tiram à calma, que nos fazem balançar e tremer com medo. Há certas perguntas na vida que podem nos levar a loucura se não acharmos as respostas. Algumas atitudes, ainda que pareçam insensatas, ou até mesmo erradas, vão ter que ser tomadas; Cabe a nós decidirmos se seremos suficientemente fortes para seguir em frente ou não.

Tia Frizda olhava Ilsa profundamente nos olhos. Aquelas palavras faziam sentido singular para sua sobrinha. Tia Frizda tinha certeza de que tudo que falou induziu Ilsa a uma reflexão. Ilsa Troca Leve não respondeu sua tia. Ficou ali sentada mais alguns minutos, enquanto terminava seu café. Tia Frizda já havia separado vários suprimentos que Einri levaria em sua jornada. Ela tinha tudo planejado, sabia exatamente como explicar ao rapaz como chegar ao destino almejado. Instruiria a ele o melhor caminho a ser tomado. Os passos de Einri Coração-de-Leão descendo as escadarias de madeira, despertaram Ilsa, que se levantou da mesa do café, deixando seu estado pensativo para trás. Einri estava pronto para partir. Para Ilsa tudo pareceu muito repentino, queria ter mais tempo para compreender a situação. Einri recebeu uma mochila de couro que Tia Frizda havia ajeitado.

- Querido, não há como se perder. Se caminhar devagar, em cinco dias, ou até menos, chegará lá. - Ela explicava. Mas logo Einri a interrompera.

- Trata-se de uma cidade? - Perguntava ele. Ele desconhecia qualquer cidade ou vilarejo sulista. Nunca havia ouvido falar de nenhum Rio de Tripas.

- Não exatamente. - Falara Tia Frizda. - É um vilarejo, não tão pequeno, mas não tão grande. É impossível você se perder. É o único vilarejo, após a Via 13, que fica dentre o Salgado e o Rio de Tripas. O Rio de Tripas é inconfundível. Ele possui uma tonalidade avermelhada como nada visto. Então, siga as minhas orientações e logo, logo estará lá. - Ela falou enquanto entregava um último item, um pedaço de papel com vários desenhos e textos feitos a grafite.

Einri se dirigiu as duas portas sobrepostas que ficavam na frente da casa de Tia Frizda. Mais alguns passos e estaria de volta à estrada. Antes que pudesse continuar a sua jornada, um pensamento frio lhe veio à mente. Aquela moça que tanto lhe ajudara não mais poderia lhe acompanhar. Estava saindo da Fábrica de Feno distraído. Malmente tinha notado que deixaria Ilsa para trás. Assim que pensou desta maneira, Einri se lembrou, brevemente, do que tinha ocorrido até o momento. Não haveria conseguido chegar até ali se não fosse

79 por ela. Bem, ao menos ela estaria segura ali. Quando se percebeu girando a maçaneta da porta da frente da casa de Tia Frizda, que lhe levaria a mais uma jornada, Einri tratou de virar-se para agradecer mais uma vez Tia Frizda. Apertou as mãos dela com carinho, sem dizer qualquer palavra. Ela entendeu perfeitamente o quão agradecido ele estava. Foi em um sorriso sincero que ela desejou a ele uma boa viagem. Einri fitou Ilsa, que estava atrás de sua tia. Uma feição nada feliz lhe cortou o coração. Ilsa Troca Leve estava triste. Sabia que talvez nunca mais vivesse tamanhas excitações novamente. Em sua mente ela lembrou como se sentiu na viagem até aquele momento. Houve momentos de aflição, de medo e de nervosismo, mas ela não conseguia pensar mal sobre tudo aquilo que ocorrera. As alegrias de ter participado daquilo tudo, se sobrepunham ao medo de tê-las vivido.

- Espero que te encontre um dia, novamente. - Disse Einri para Ilsa.

Tia Frizda já havia se retirado da sala onde os dois conversavam. Ilsa olhava para baixo enquanto se despedia de Coração-de-Leão. Mas, quando ele pronunciou aquelas palavras, ela tratou de olhar nos olhos dele, respondendo-o.

- Tenha cuidado. - Ela disse.

Ele sorriu brevemente. Sentiu que seria um erro deixá-la ali. Simplesmente deixá-la. Mas, seria um erro maior ainda se ele pedisse que ela lhe seguisse.

Tamanhos perigos que sua jornada lhe reservava, aquele fardo deveria ser dele e exclusivamente dele. Ele queria dizer várias coisas a ela antes de partir.

Sentia outras muitas coisas, mas nada pôde falar, talvez fosse melhor assim. Antes que os dois dissessem mais nada, Einri respirou profundamente e partiu

para cima de Ilsa. Fora um abraço carinhoso e aconchegante. Os dois tremiam

de vergonha, mas abraçavam-se firmemente. Algo estranho acontecia que nenhum dos dois poderia colocar em palavras. Pareciam velhos amigos,

frequentadores dos mesmos lugares há séculos. Mas, de fato só se conheciam há poucos dias. Talvez em algum outro universo isso não fosse verdade. Eles

eram sim conhecidos de muito tempo, velhos amigos. Partiu dele a iniciativa de por um fim àquele abraço. Logo os dois estavam de costas e dois destinos

se partiam. Einri continuaria a sua jornada e Ilsa continuaria a sua própria. Fora uma lágrima singular que feriu o rosto de Ilsa Troca Leve. A lágrima não

pôde deixar de cair quando ela percebeu que Einri, seu companheiro de

viagem, estava partindo e dando continuidade a uma história da qual ela não faria mais parte.

Einri caminhou a estradinha de volta à Estrada Mercante. Já havia deixado a Fábrica de Feno para trás, em conjunto com pensamentos tristes. Estava excitado com a mensagem misteriosa que lhe fora passada. “Vergo, o vesgo”

80

pensava ele. Quais seriam os perigos de seguir aquelas instruções? Ele não

tinha a mínima ideia. Mas, um desejo profundo de voltar ao Norte lhe fazia

prosseguir cegamente. O sol já raiava no seu ápice quando Einri se percebeu

adentrando a Estrada Mercante. Olhares curiosos lhe faziam ter vontade de se

esconder. Os sulistas teimavam a entender a figura de Einri Coração-de-Leão.

Ele era diferente dos demais, sua pele era muito mais alva e sua postura era

estranha. Embora estivesse vestido comumente, como qualquer outro sulista,

Einri chamava atenção. As pessoas sentiam uma atração estranha pela sua

figura. Só de olharem para ele, algo era notado no ar. Então Einri tratou de se

afastar da multidão, caminhando sempre às surdinas. A Estrada parecia estar

mais viva do que antes. Talvez fosse pelo horário, as trocas e negociações

estavam a todo vapor. Até mesmo o barulho de ofertas sendo gritadas aos

ventos incomodavam mais do que antes. Ali se vendia absolutamente tudo.

Havia várias frutas e condimentos com nomes estranhos, do qual ele nunca

tinha ouvido falar. Sentiu vontade de parar em uma daquelas barraquinhas e

provar algumas delas. Mas, sabia que não era sensato. Ele continuou afastado,

caminhando pela beira da Estrada onde quase não havia barracas, muito

menos pessoas. Einri conferiu as anotações dadas por Tia Frizda. Seriam mais

alguns passos, afastando-se mais ainda daquela multidão e logo estaria à

caminho do Rio das Tripas. Antes que atraísse outros olhares curiosos,

curiosos até demais, ele deixou a Estrada Mercante para trás. Voltou pelo

mesmo caminho que tinha feito ao fugir da Cidade Porteira. Após vários

outros passos, se achou em uma área familiar. A estradinha com pedras

brancas era inconfundível. Estava de fato no caminho certo. Mais certeza

ainda teve quando achou a mesma placa de outrora. A única diferença é que

desta vez iria caminhar em sentido oposto. Conferiu a placa que orientava:

Estrada Mercante

Via 13

As anotações de Tia Frizda eram claras. Seguir a estrada Via 13 até o seu final. A Via 13 era uma estrada muito maior que a Estrada Mercante. Ela possuía várias saídas e entradas e por ela se passava em vários vilarejos. Não fosse aquele pedaço de papel, com certeza Einri demoraria mais do que o dobro de tempo para chegar ao destino. Agora que encarava a placa apontando para o início da Via 13, Einri imaginava quanto tempo levaria para percorrer a estrada. Seguindo a Via 13 ele acharia o vilarejo do Rio de Tripas e então desvendaria o mistério por trás daquele bilhete. Seria o começo de uma nova jornada. Se tudo ocorresse conforme ele planejava, estaria voltando ao Norte em pouco tempo. Assim, conseguiria entender o porquê de toda aquela

81 situação. Havia sido sequestrado. Dias e noites se passaram enquanto ele estava amarrado em um porão de um navio. Todo o ocorrido não podia ficar sem explicações.

Einri já havia caminhado a manhã inteira e o sol castigava aqueles que

ousavam continuar a andar. Então Einri montou um pequeno acampamento no terreno donde a placa estava fincada. O chão, coberto por pedrinhas brancas,

parecia ser o local ideal para relaxar as pernas. Sentou-se ali por alguns

minutos, debaixo de uma sombra formada por uma cerejeira-madura e tomou vários goles d’água. Ficaria ali tempo suficiente, até que o sol se cansasse

mais um pouco, diminuindo o desgaste ao andar. Tinha tempo suficiente, e andar naquelas condições, em pleno céu aberto, não adiantaria em nada a sua

viagem. Vasculhando a mochila de couro que Tia Frizda lhe cedera, percebeu que vários alimentos havia ali. Era ótimo saber que alguém que ele malmente

conhecia, podia trata-lo com tamanha generosidade. O povo do sul era de fato diferente daqueles que vivem ao Norte. Ele sorriu por um instante, jamais

imaginara que as pessoas fossem caridosas e bondosas daquela maneira. Einri

Coração-de-Leão comeu um pão, recheado com geleia de framboesa. Na verdade, apenas metade de um pão que Tia Frizda havia preparado. Não

queria gastar todos os suprimentos antes que fosse a hora. Afinal, apenas havia começado a sua nova caminhada. Logo estava com mais vitalidade do que

nunca para prosseguir andando. O sol já estava fraco e a hora era perfeita. Apertou a mochila de couro nas costas e tomou um profundo fôlego para

continuar sua jornada. Todavia, antes que ele pudesse dar o primeiro passo à caminho do seu novo destino, uma voz longínqua e já conhecida o

interrompera:

- Espere! Eu também irei! - Disse Ilsa.

82

Capítulo VI

Vergo, o vesgo

Sua corcunda caracterizava. Estrábico dos dois olhos. Cara espinhosa e redonda. Nutria um físico desengonçado. Barriga grande, tronco forte e pequeno. Possuía as pernas curtas e os braços largos. Não media mais do que um metro e cinquenta e cinco. Era um ser muito estranho. Vergo vulgo o vesgo era apelidado assim por toda a população da Vila das Tripas. De pai Forjador e mãe Mercadora, ele era fruto de uma mistura incomum de traços genéticos. Talvez por ser maltratado desde que se dera por gente, ele possuía o coração duro e suas expressões não eram nada gentis. Não gostava dos outros e os outros não gostavam dele. Talvez não tivesse nada haver com isso. Ele era de fato um sujeito muito mesquinho e traiçoeiro. Estava impregnado na sua natureza. Seu jeito de ser era aquele, ninguém podia dizer o contrário. Aparências à parte, Vergo, o vesgo levava fama por outras façanhas. Era o melhor marceneiro de toda a Vila. As pessoas engoliam sapos e coisa muito pior a fim de trabalhar com ele. Sobre madeira ele conhecia tudo e era autoridade no assunto. Assim, a Vila - que tinha fama em todo o Sul pelas suas atividades navais e pela venda de carne - sabia a quem recorrer quando o assunto era reparos de cascos, consertos de proa, remendos de mastros e qualquer outra coisa que envolvesse o conserto de barcos. Existiam outros marceneiros na região, é óbvio; mas, nenhum trabalhava do mesmo jeito que Vergo, o vesgo. A madeira parecia obedecê-lo. Como se ele falasse em uma língua secreta. Língua que apenas ele e as árvores mortas entendiam. Coisas fantásticas deviam acontecer em sua oficina. Era o que todos da Vila murmuravam. Mas, ninguém nunca teve prova das façanhas de Vergo, o vesgo. Ele trabalhava sozinho. Também, pudera; ninguém seria capaz de conviver com aquele homem mais do que algumas horas.

A Vila das Tripas possuía cerca de três mil habitantes; em sua grande maioria, membros da família dos Mercadores. A Vila era separada entre as duas margens do Rio de Tripas. Em cada lado do rio eram estruturadas casas, oficinas, docas, abatedouros e lojas, construídas lado a lado. Na margem direita do rio ficavam as oficinas de marcenaria e todo o comércio era voltado para a produção de barcos e navios. A margem esquerda dava abrigo à outra atividade comercial, que era a mais tradicional da região. Mercadores especializados em açougue infestavam a Vila. Era de lá que boa parte do suprimento de carne da Cidade Porteira saía. Os mais antigos contavam que as águas do Rio de Tripas nem sempre foram avermelhadas como as são nos dias atuais. Eles falavam que no começo, aquele era um rio comum, com águas marrom-escuras nos dias de chuva e águas claras nos dias de sol. Tudo

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mudou quando os primeiros Mercadores deixaram a Cidade Porteira, há mais

de trezentos anos. Foram eles que fundaram as primeiras fazendas de carne

próximas ao rio. Daí, toda a atividade voltada para a produção de carne fora

feita lado a lado com o rio. Até que a certo ponto, foram tantos açougueiros na

região, que matavam os bois, escoando o sangue e tripas para o rio, que o

próprio rio mudara de coloração, adotando o tom avermelhado de sangue

dissolvido. Então, muito lá atrás, as pessoas passaram a chamar o rio de Rio de

Tripas. Mas isso era o que alguns antigos contavam. A Vila tinha o seu limite

quando o Rio de Tripas encontrava-se com o Salgado. A partir daquele ponto,

tudo era horizonte e a vista se perdia no infinito Salgado. Cerca de dois

quilômetros antes do local onde as águas se encontravam, havia uma ponte que

marcava o final da Vila. A sobe-desce, como era carinhosamente apelidada

pelos moradores da Vila, era uma ponte dobradiça, que permitia a entrada de

embarcações maiores, quando necessário, ao Rio de Tripas. Era por baixo dela

que saiam ao Salgado as embarcações imensas e fortes, que demoravam anos

para ficarem prontas e quase sempre tinham como destino o Norte. Eram

verdadeiros navios, todos feitos de madeira e com velas grossas, bem tecidas,

suficientemente fortes para aguentarem as ondas do Salgado e as viagens ao

Norte. O dito era que os melhores marceneiros do Rio de Tripas recebiam

instruções diretamente dos Forjadores, copiando no possível os lendários

navios forjadores. Os navios forjadores eram diferentes dos produzidos na

Vila, eles não possuíam vela, eram sempre movidos a vapor e eram muito mais

rápidos e resistentes que os navios sulistas. Mas, aqueles que vivem ao Norte

eram bastante claros com as regras para uso dos navios forjadores. A nenhum

sulista era concedido à honra de ser capitão de um navio forjador. A Vila das

Tripas ganhou fama por produzir navios de excelência. Abaixo dos navios

forjadores era o que se tinha de melhor quando o assunto era engenharia

náutica e o grande mestre era ele, Vergo, o vesgo.

- Tem que ser para amanhã. Já era para estar pronto hoje. Amanhã é o prazo final. É amanhã ou amanhã. - Explicava, com um tom de ameaça, um sujeito alto e bastante magro.

Ele tinha uma aparência embriagada e falava de maneira rápida, tropeçando nas palavras. Vestia uma calça preta, que estava mais cinza de tão gasta, e uma camiseta listrada, branca e preta. Para ser um pirata, faltava apenas um tapa-olho e uma perna de pau. A atitude já estava lá, o mau hálito e a grosseria acompanhavam.

- Amanhã estará pronto. Avise a ele. Amanhã com certeza. Não ficou pronto hoje por que não entregaram os benditos pregos de alta pressão a tempo. Maldita Casa do Carteiro. - Reclamava Vergo, o vesgo.

O outro sujeito parecia desconfiado, olhava a entrada da oficina com cuidado, planejando uma entrada de surpresa para verificar se o que ele dizia era

84 verdade. Queria ver se ele já tinha algo pronto. Afinal, confiar na palavra daquele ordinário não era nada inteligente. Mas, ao fitar o olhar de Vergo, percebeu que seria tolice tentar adentrar aquela oficina. “Ele me mata” pensou o sujeito. Foi se distanciando dele e da oficina, caminhando pela rua estreita que ficava do lado oposto do rio, enquanto falara as últimas palavras que mais pareciam uma ameaça.

- É bom mesmo. Você quem sabe... O Capitão nunca esquece! - Ele gritou já de longe, enquanto dobrava uma esquina, deixando a rua que era o endereço da oficina de Vergo, o vesgo.

Vergo, o vesgo, era um sujeito muito ganancioso. Muitas vezes aceitava

trabalhos que sabia que não poderia concluir a tempo. Quase sempre cobrava de imediato seus clientes e sempre atrasava na hora de entregar as

encomendas. Sabia que era bom no que fazia e tirava todas as vantagens possíveis disso. Todavia, naquela encomenda em questão, ele tinha plena

ciência de que não poderia se atrasar, tampouco cometer qualquer falha, ainda

que ínfima. Havia cobrado um preço alto, é verdade, ele não trabalharia de graça para ninguém, nem mesmo para o Capitão. O Capitão era o sujeito mais

misterioso que frequentava as bandas da Vila. Mitos e lendas eram contadas pela sua tripulação e recontadas por aqueles que ouviam. Alguns diziam que

ele já havia explorado todo o Salgado e que sabia de caminhos que nem mesmo os Criadores tinham conhecimento. Outros falavam que ele possuía

tesouros infinitos escondidos. Várias eram as histórias sobre as matanças do Capitão. O rumor era que ele era capaz de despedaçar um homem pelo meio,

sem precisar de qualquer arma, somente com as próprias mãos. O Capitão era

um Forjador que vivia mais tempo no Sul do que no Norte. Rumores diziam que ele era procurado no Norte e que por essa razão, evitava passar muito

tempo por lá. De fato, quase todas as pessoas da Vila temiam o Capitão como temiam a própria morte. Aqueles que ousavam agir de forma contrária eram

considerados loucos ou, a depender do caso, heróis.

Um mastro de carvalho-diamante e três cestos de gávea pequenos endurecidos

em chama branca a fim de que aguentassem e aquecessem os marinheiros-olheiros nas longas viagens ao norte. Era a encomenda do Capitão. O problema não eram os cestos de gávea, coisa que Vergo já havia feito milhares de vezes. A bendita madeira de carvalho-diamante era o que atrasava tudo. Carvalho-diamante era uma espécie diferente de árvore que só crescia no Norte. Era macia por fora, mas possuía um núcleo duro, duríssimo. Tinha uma tonalidade esbranquiçada e demorava anos para crescer. Apenas alguns marceneiros conseguiam trabalhar com esse tipo de madeira, a grande maioria não conseguia pregar, nem mesmo cortar, aquele tipo de árvore. Sempre entortavam os pregos e estragavam tudo. Vergo tinha experiência no assunto. Apesar disso, também não era uma tarefa fácil para ele. Naqueles quinze dias de trabalho seguidos, ele só pôde notar que estava ficando sem pregos de alta

85 pressão, três dias antes do prazo final de entrega. A confusão estava pronta quando ele percebeu que faltavam apenas vinte e quatro horas para realizar a entrega. Maior ainda foi a sua preocupação quando recebeu a visita do sujeito estranho que lhe ameaçou descaradamente. Ele sabia que ficaria a noite inteira acordado, trabalhando para que tudo estivesse nos conformes. Não era típico dele trabalhar tanto de uma só vez. Mas, ele, como todos os moradores da Vila, sabia da fama do Capitão. “O Capitão nunca esquece” diziam aqueles quando acabavam de contar as histórias das terríveis façanhas do Capitão. Fosse outra pessoa, teria inventado qualquer desculpa a fim de recusar trabalhar para o Capitão, mas Vergo era mais ganancioso do que esperto e não podia rejeitar aquela quantidade de Rúfias.

- Pelos deuses! Já é de manhã?- Ele perguntava para si mesmo, enquanto desprendia uma porca presa à bochecha esquerda.

Ficou ali enfiada dentre a carne do rosto depois que Vergo, o vesgo dormiu sentado, com a cara sobre mesa da oficina. Havia trabalhado a noite inteira, e nem percebeu quando o corpo desistiu de lutar.

- Não! Não, não! Estou perdido. Condenado! - Ele entrou em desespero quando fitou o céu pela pequena janela dos fundos da oficina.

O céu já estava bastante claro, com uma tonalidade alaranjada, quase dando espaço ao azul celeste. Já era de manhã e ele teria apenas algumas horas, suficiente apenas para colocar tudo no deck do seu barco e seguir para a entrega. Não tinha mais tempo para ajeitar nada.

- Tanto a fazer! Pelos deuses, estou condenado. Malditos carteiros! - Vergo gritava na oficina, consigo mesmo.

Ficou desesperado quando percebeu que o mastro de carvalho diamante, encomendado pelo Capitão, ainda não estava cem por cento pronto. Algumas amarras ainda estavam soltas e várias farpas saíam da base do mastro. Pensou em fugir quando percebeu que não teria tempo para fazer mais nada. Mas sabia que não conseguiria ir longe, afinal, não haveria nenhum canto em toda a Arreta que o Capitão não o acharia. Além disso, quem seria ele para deixar tantas Rúfias de lado? Havia combinado tudo com o Capitão, cinquenta por cento do pagamento seria pago em adiantamento e os outros cinquenta por cento na entrega. Então decidiu seguir como o planejado, ao menos disfarçar para assim parecer. Tratou de fazer alguns reparos rápidos, com uma lixa de madeira, parecia mais uma maquiagem do que qualquer tipo de reparo. De

certo tudo funcionaria bem, ele tinha certeza que nada ali quebraria em alto mar. Mas, o Capitão era conhecido por ser alguém altamente exigente, Vergo sabia disso. Talvez mandasse decapitá-lo somente por não ter aparado as

86 bordas do mastro encomendado. “Ele vai me esquartejar, só por não ter encerado tudo” pensava ele. Seu coração palpitava.

- Malditos sejam os carteiros e seus atrasos! - Reclamava Vergo, o vesgo, enquanto coçava a sua pança descomunal.

Fosse outra pessoa, teria evitado a confusão. Vergo, ganancioso como só ele, não

deixaria aquela pequena fortuna para trás. Não tinha nenhuma fome por

aventuras, tampouco por descobrir coisas novas, seu interesse era único: Rúfias e

as coisas que elas podiam comprar. Resolveu tentar a sorte. Horas depois de ter

acordado, ele já havia embrulhado tudo dentro do seu barco. Era um barco

respeitável, de tamanho médio, feito para entregar e receber mercadorias. Um

transportador, como era chamado o modelo. O barco tinha um braço mecânico,

posicionado no deck, o que agilizava todo o carregamento e o descarregamento

das encomendas. Nada na Vila era feito pela terra, tudo se movia pelo rio e era

por essa razão que todas as oficinas tinham duas entradas, uma virada para o rio,

com docas de tamanho variado e outra entrada virada para a Vila. Vergo tratou de

embrulhar com duas lonas grossas e empoeiradas a encomenda. “Talvez ele só

verifique depois que eu tenha saído” Vergo se consolava. Vergo, o vesgo deixou sua oficina para trás, dando alguns passos da sua pequena doca e adentrando o barco que carregava a encomenda do Capitão. Logo ele estava segurando o mastro do seu barco, faltando apenas coragem para prosseguir para o destino marcado. Teria que encontrar com o Capitão em sua doca, que ficava três quilômetros acima da oficina, subindo o Rio de Tripas. Ele fixou o olhar por alguns instantes pela janelinha da cabine, que tinha vários botões e manivelas que comandavam todas as funções do barco. Uma pequena cabine que só cabia uma pessoa. Vergo olhou a encomenda e respirou profundamente. Antes que apertasse o botão que liberava a vela principal, teve tempo de olhar para o rio, que estava avermelhado como sempre, mas bastante raso.

- Malditos carteiros! - Reclamou ele enquanto soltava as velas do barco, prosseguindo com o embalo dos ventos.

Vergo e sua encomenda navegaram rapidamente pelo canal principal do Rio de Tripas. Fácil de notar como o Rio de Tripas era o coração do comércio da Vila. Por ali passavam muitos barcos, a grande maioria pequenos e sempre carregados de coisas. Os barcos subiam e desciam o rio desenfreadamente. Nas duas margens do rio, havia vários edifícios de tamanho médio, que exalavam fumaças de todas as cores. Todos eles eram feitos de tijolinhos de terra-fogo. O que deixava a paisagem ainda mais avermelhada. Alguns canos despejavam água suja, e tudo que vem em conjunto com ela, na parte mais urbanizada do rio; deixando exalar um odor nada agradável. Apesar de todo aquele movimento, o Rio de Tripas ainda possuía bastante vida e havia aqueles que se arriscavam a pescar e nadar naquelas águas avermelhadas.

87 Alguns minutos se passaram desde que Vergo havia deixado sua oficina para trás. Já havia percorrido os três quilômetros que lhe separavam do seu pagamento. Logo ele avistou a doca do galpão do Capitão. A doca, bem maior que a sua própria, tinha espaço para um navio inteiro ou três barcos médios. Vergo, o vesgo sentiu um arrepio na espinha quando percebeu não haver ninguém na doca lhe esperando. “Já partiram, me atrasei, minhas Rúfias!”. Pensou ele, quase chorando e apertando os próprios bolsos vazios.

- Maldita seja a Casa dos Carteiros e todos os seus funcionários! - Reclamou ele enquanto desamarrava a encomenda presa ao deck do barco.

Com o braço mecânico, que era movido pela cabine do piloto, – mexendo-se

em três manivelas e alguns botões - ele extraiu a encomenda, colocando-a na

doca do Capitão. Ao pousar o mastro feito de carvalho-diamante e as gáveas na doca de madeira do Capitão, a madeira rangeu, fazendo um barulho um

tanto quanto alto. Vergo se abaixou dentro da cabine do piloto. Já podia enxergar as flechas vindas em direção a sua garganta. Mas, nada disso

ocorreu. Teve imensa vontade de deixar a encomenda ali mesmo e seguir para a sua oficina. Mas, a ganancia de Vergo era algo mais forte do que ele próprio.

Ele não conseguiria viver consigo mesmo sabendo que podia ter faturado a quantia prometida pelo Capitão. Decidiu descer do barco. Manobrou o barco,

posicionando-o um pouco mais a frente, onde podia descer mais facilmente.

Era bastante difícil se movimentar com aquela barriga e aquele corpo desengonçado. Inúmeras foram as vezes que ele tropeçara ao sair daquele

barco e fora parar dentro do rio. Já havia prometido a si mesmo construir uma pequena rampa dobrável, para facilitar a saída e a entrada do barco, mas nunca

cumpria com sua promessa. Logo Vergo, o vesgo pisava as madeiras ensopadas, quase todas mais verdes do que marrons, que em conjunto

formavam a doca do Capitão. Caminhou alguns metros, passando por vários caixotes e amarras grossas, em direção ao galpão donde haveria de ter alguém

lhe esperando. Sentiu o estomago reclamar quando bateu na porta de aço que

fechava o galpão do Capitão. O galpão era enorme. Possuía um formato retangular e um telhado em semicírculo. Todo feito de aço, o galpão tinha

vários pontos de ferrugem e lugares que necessitavam de tinta e reparos.

- Senha? - Perguntou uma voz, através de uma abertura na porta de aço que se abriu estalando um ruído agudo.

“Senha? Não sei de senha alguma, foi me dado alguma senha? Agora irão me matar!” Se desesperava Vergo, o vesgo. A saliva descia seca e árdua em sua garganta, mas ele queria aquela metade do pagamento, era muito dinheiro, dinheiro demais para ser deixado para lá.

- Vi.. vi... Vim entregar a encomenda do Capitão. - Disse Vergo, gaguejando.

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Logo quando ele terminou de falar. Um estrondo fez a porta de aço do galpão se tremer toda. Parecia que o que quer que estivesse atrás daquela porta o fosse engolir ali mesmo. Vergo estremeceu. Mas, logo percebeu que um olho esbugalhado espiava através da abertura da porta. Outro ruído, dessa vez mais baixo e mais fino, fez a porta se abrir.

- É você! - Afirmava o mesmo sujeito que outrora o abordara em sua oficina. - Já não era sem tempo. Achei que o Capitão teria que te esfolar. - O sujeito magro e alto, vestido com as mesmas roupas do dia anterior, soltou uma gargalhada desenfreada. Parecia estar novamente bêbado.

- Onde está o resto do pagamento?- Perguntou Vergo, o vesgo.

Ele não queria prolongar nenhum tipo de conversa com qualquer membro da tripulação do Capitão. A fama daquela tripulação era clara: desordeiros e assassinos desonestos. Vergo deixou claro por que estava ali. O sujeito reagiu da mesma forma que antes. Soltara outra gargalhada, dessa vez tão forte que teve que apoiar os braços nos próprios joelhos.

- O Capitão quer te ver. - Disse o sujeito asqueroso.

Ele cobria a mão enquanto soltava um riso fino e provocante. Parecia querer

contar algo a Vergo, mas não o fez. Vergo coçou a cabeça firmemente. Ajeitou a

barriga para dentro das calças e resolveu ir ao encontro do Capitão. O galpão era

enorme por dentro. Eram poucos que adentravam ali e saiam livremente para

contar como foi a experiência. Um espaço enorme embaixo, separado por várias

caixas amontoadas, algumas prateleiras cheias de coisas, armários trancados e

algumas mesas cheias de garrafas de rum vazias. Não havia nada de interessante

no térreo do galpão. Era um galpão comum, cheio de tralhas. Lá no fundo, de

onde a luz era mais fraca, era possível enxergar uma escada de ferro, retorcida,

que daria em uma pequena sala separada do resto do galpão. De certo era lá que o

Capitão ficava. Vergo, o vesgo caminhou cerca de cinquenta passos até chegar ao

começo da escada retorcida. Tomou um fôlego profundo e começou a subi-las.

Parecia pesar cem quilos a mais do que seu próprio peso. Não sabia o que podia

acontecer consigo mesmo. Se todas as histórias fossem ao menos meio verdades,

ele estaria condenado. A fama do Capitão era terrível. “O dilacerador” o titulava

os moradores da Vila das Tripas. De fato, poucos realmente conheciam o Capitão.

Alguns nunca sequer tinham o visto. Ele não era muito de viver em locais

públicos, tampouco de arrumar confusão por coisa pouca. Vergo parecia querer

desmaiar quando subiu o último degrau daquela escadinha retorcida. Seu coração

palpitava e o ar era raro. Foi o ranger da porta de aço que separava a sala do

Capitão do restante do galpão que fez Vergo saltitar, quase rolando escadas

abaixo. A figura a sua frente era atormentadora. Um ser imenso. O Capitão

deveria ter

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quase três metros de altura. Era largo e forte como um touro. Vestia um casaco preto tão grande quanto o próprio Capitão, aberto na altura do peito. Uma calça marrom e botas de couro tornavam suas pernas grossas e fortes. Ele tinha um cinturão com várias caveiras desenhadas à faca. O cinturão prendia a calça marrom folgada e tinha espaço para armas brancas que de certo não ficavam à mostra. Uma cicatriz cortava seu rosto por inteiro, acima do olho direito até a ponta esquerda do queixo. O Capitão não usava chapéus nem tinha cabelos. Raspava a cabeça quase todos os dias. A barba rala e cinzenta completava a figura.

- Entre. - Ordenou o Capitão.

Vergo engoliu o próprio fôlego. Não disse nada. Adentrou a sala do Capitão que quase não tinha mobílias. Duas estantes cheias de miniaturas de peixes e mapas amassados. Uma mesa no final da sala, do tamanho da parede. Atrás da mesa uma poltrona tão larga quanto o próprio Capitão, com assento avermelhado e aveludado. Era tudo. Vergo ficou observando enquanto o Capitão se sentava. Ficou de pé, pois não havia cadeiras do outro lado da mesa. O Capitão cruzou as mãos, apoiando o próprio queixo com os cotovelos na mesa.

- Minha encomenda? - Perguntou o Capitão, serenamente.

- Está entregue. Tudo como o combinado. - Disse Vergo, enxugando a própria testa com a manga da camisa.

O Capitão exalou firmemente. Demorou um pouco a responder, o que deixou Vergo mais aflito ainda.

- Tudo conforme o combinado... Você sabe por que eu gosto de pescar? - Perguntou o Capitão, enquanto apontava para suas miniaturas de peixes. Vergo não respondeu. O Capitão continuou.

- Peixes são criaturas curiosas. Você lança o anzol com um pedaço de carne qualquer, nada muito fino ou muito caro; o peixe está no conforto de sua casa, vivendo a sua vida normalmente, sem ser perturbado por ninguém. - O Capitão fazia pausas propositais, para encarar Vergo, que suava feito um porco gordo à espera do machado.

- Mas, peixes são criaturas curiosas. Eles têm necessidade de morder o anzol. Podiam continuar vivendo normalmente; mas é só um anzol com um pedaço de carne qualquer aparecer que eles têm que mordê-lo. É fato que muitos acabam com o anzol preso à suas bocas e uma faca rasgando seus estômagos.

- Não! Por favor! - Implorava Vergo, o vesgo.

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Enquanto o Capitão falara, dois dos seus subordinados tinham se aproximado

sorrateiramente de Vergo. Quando o Capitão se levantou, terminando sua fala, Vergo já estava imobilizado. Dois homens o seguravam pelos braços. Um

deles já era um velho conhecido de Vergo: o magricela sorridente. Os dois imobilizaram Vergo rapidamente, pareciam ter algo diabólico em mente. O

Capitão fez um gesto com a mão, como se ordenasse que seus homens

tirassem Vergo de sua frente. Foi o que fizeram. Vergo, seus agressores e o Capitão, desceram a escada de ferro rapidamente. Ele ia à frente, sendo

empurrado e levando vários pontapés dos dois capangas. O Capitão caminhava logo atrás, indicando o caminho. Saíram do galpão pela porta dos fundos, que

era mais larga que a porta da frente. Atrás do galpão havia uma pequena área com redes de pesca, boias e arpões amontoados. O terreno era fechado por

uma cerca de meio metro de altura, que só estava ali para demarcar o território. A área do fundo do galpão dava passagem para uma ruazinha

pavimentada com pedras. Por ali se chegava a Vila sem ser necessário passar pelo rio. Era um caminho pouco usado por pessoas comuns, mas que a

tripulação adorava.

- Nós tínhamos um acordo! - Exclamava Vergo, respirando rapidamente.

Quando acabou de berrar, os capangas do Capitão trataram de começar a sova. Muniram-se de dois canos de ferro e começaram a golpear Vergo, sem demostrar qualquer misericórdia. Com os primeiros golpes dados, arrebentaram-lhe a boca, deixaram o nariz sangrando e alguns dentes quebrados. Vergo sabia que morreria ali, naquele momento. O Capitão assistia tudo, um pouco afastado. Quando Vergo estava deitado ao chão, quase desacordado, o Capitão fez um gesto com a mão direita, ordenando que a sova parasse.

- Peixinho curioso é você. Tudo conforme o combinado. - Afirmava ele, enquanto olhava Vergo deitado no chão, sujo e sangrando.

O Capitão ficou em pé, em frente a Vergo. Retirou um isqueiro prateado do bolso e ascendeu um charuto já gasto. A sua sombra cobria todo o corpo de Vergo, que choramingava palavras indecifráveis. Ele exalou uma nuvem branca de fumaça em direção à Vergo, o vesgo. Foi em um movimento rápido demais para os olhos acompanharem que o Capitão sacou sua arma predileta. Puxou-a de dentro do casaco preto, como se puxasse algo preso a sua cintura pela parte de trás. Uma marreta de forja enorme e pesada que era feito de aço, mas não aparentava ser. A marreta era coberta por uma leve camada de ouro branco, que a coloria em um tom alvo. A arma tinha uma ponta grande e larga e a outra ponta parecia a ponta de uma flecha, apenas mais grossa e pontiaguda. Quando a marreta de forja foi sacada do cinturão do Capitão, um barulho diferente de qualquer coisa já ouvida soou. Parecia um raio cortando o

91 ar. O som fez os capangas do Capitão tamparem os ouvidos com ambas as mãos, coisa que Vergo faria se tivesse qualquer força sobrando. O Capitão iria deferir um golpe certeiro na cabeça dele, que com certeza o desfiguraria por completo. A marreta era tão grande e pesada que apenas alguém tão forte quanto o Capitão teria força o suficiente para manejá-la. Vergo sentiu o coração parar de bater quando observou a altura que o Capitão levantou a marreta no ar. Já estava morto antes mesmo que o Capitão deferisse o golpe. Olhou em direção ao Capitão, que segurava a imensa marreta de forja no ar, e sentiu o cheiro de charuto adentrar as suas narinas. Com certeza seria sua última lembrança. Sentiu uma dor terrível antes mesmo que o Capitão lhe atingisse. Foi uma voz com um sotaque estranho que impediu o Capitão de colocar Vergo em um sono sem fim.

- Espere! - Gritou Einri Coração-de-Leão.

O Capitão segurou a arma, sem deixá-la cair. Não concluiu o intencionado, virando-se em direção a ruela de pedras. Avistou de longe um rapaz que corria em sua direção, sendo seguido por uma moça. Os homens do Capitão já estavam a sua frente, se aproximando da cerca que separava o fundo do galpão da rua de pedras. O Capitão fez um gesto a fim de que os capangas voltassem. Queria saber quem era aquela pessoa que tinha coragem suficiente para interrompê-lo em certa hora.

Einri sacou uma espada bronzeada quando se aproximou da cerca de madeira que o separava do Capitão. Ilsa Troca Leve estava atrás dele, apontando uma balestra arqueada em direção ao Capitão. Antes que mais sangue fosse derramado, Einri resolveu conversar.

- Pare! - Ele berrou em direção ao Capitão. - Não o mate! - Einri segurava a espada bronzeada acima do ombro direito.

A espada bronzeada parecia uma agulha se comparada com a marreta de forja do Capitão. O Capitão soltou uma gargalhada que fez Einri e Ilsa recuarem. Ilsa abaixou a balestra, mirando para baixo. Era um arco composto que ela segurava com apenas uma das mãos. Era pequeno, porém eficáz. Einri relaxou os braços, deixando a espada tocar o chão.

- Por que diabos alguém haveria de intervir por esse desgraçado? - Perguntou o Capitão, enquanto ria da situação que se desenrolara.

Einri Coração-de-Leão, seguido por Ilsa, adentrou o terreno do galpão. Passando pela parte da cerca que era aberta e ficaram a poucos metros do Capitão. Nenhum dos três guardou suas armas enquanto conversavam.

- Eu preciso dele. - Explicou Einri.

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O Capitão mudou de expressão. Parou de gargalhar e parecia curioso. Vergo estava deitado no chão do fundo do galpão. Parecia desacordado. Mesmo assim, os dois capangas vigiavam o corpo.

- Você não é daqui. - Afirmava o Capitão, enquanto guardava a marreta de ouro branco, prendendo-a de volta no cinturão.

Einri ficou surpreso, mas percebeu que aquele gigante também não se parecia como pessoas ordinárias dos sul. Ele guardou a espada na sua bainha. Ilsa fez o mesmo com a besta, prendendo-a as costas.

- Diga, o que vocês poderiam querer com um sujeito como aquele? - Perguntou o Capitão, se aproximando mais de Einri e de Ilsa.

- Isso é entre ele e nós. - Afirmou Ilsa, veementemente.

Novamente o Capitão gargalhava. Ele transpassou Einri, se aproximando mais de Ilsa. Gesto que fez Einri levar a mão à cintura, segurando a espada novamente. Mas não a sacou. O Capitão prosseguiu conversando.

- Mercadora atrevida. - Disse o Capitão, ainda com o sorriso no rosto.

Ilsa não gostou de ser tratada daquela forma. Sentiu raiva, talvez revidasse a agressão se não fosse Einri a continuar a conversa.

- Ele tem algo a me dizer, algo muito importante. É o que posso contar. - Einri falara, acalmando a situação.

O Capitão virou para ele. Einri mal pôde perceber quando o Capitão segurou seu braço esquerdo, puxando a manga de sua camisa. A marca dos reis foi exposta, conforme o intencionado. Estava claro que o Capitão tinha plena ciência de quem ele era. Einri sentiu um aperto forte em seu braço, como se seus ossos fossem feitos de açúcar fino, prestes a quebrar. Antes que pudesse revidar o Capitão o soltou.

- Do que te chamo? - Perguntou ele, afastando-se de Einri.

Einri ponderou alguns segundos. Mas era em vão. Aquele homem com certeza era diferente dos demais, o melhor seria ser honesto.

- Einri Coração-de-Leão, da família dos Criadores. - Ele falou com um único fôlego.

93 - E a mercadora? - Perguntou o Capitão, enquanto encarava Ilsa com um sorriso no rosto.

Ela demorou a responder, parecia achar aquilo uma péssima ideia. Mas, confiou mais uma vez em Einri, seguindo seu exemplo, se apresentou.

- Ilsa... Ilsa Troca Leve. - Ela se apresentou de maneira incomum.

O Capitão se afastou ainda mais dos dois. Limpou o sorriso do rosto e não disse nada por alguns breves minutos. Fez um gesto para seus homens, ordenando que levassem Vergo, desacordado, para dentro do galpão.

- Precisamos chegar ao Norte. - Disse Einri, enquanto andava em direção ao Capitão. - Aquele homem deve nos levar ao Norte. - Completou.

O Capitão ouviu tudo cuidadosamente, sem expressar qualquer feição. Observou enquanto seus homens levavam Vergo para dentro do galpão. Não respondeu nada de imediato a Einri. Ilsa e ele ficaram encarando o Capitão, a espera de qualquer reação. Logo, o Capitão começara a andar em direção ao galpão, ainda sem dizer qualquer coisa. Os dois ficaram para trás. O Capitão chegava cada vez mais próximo à porta que dava entrada ao galpão. Tragou o ultimo pedaço do seu charuto usado, lançando a fumaça para o alto, enquanto inclinava a cabeça para trás. Ele parou antes de adentrar o galpão, jogou o toco do charuto no chão e o amassou com as pontas da bota.

- Vocês vêm? - Perguntou ele, ainda de costas, como se convidasse os dois, que estavam ali parados, para adentrar em um mundo ainda desconhecido.

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Capítulo VII

Todos a bordo

Uma mente inquieta

Eu podia sentir o cheiro molhado do ar. O céu se fez escuro em questão de segundos. Alguns trovões reluziam a distancia. A chuva começou a cair forte e eu podia ouvir o som temeroso que ela produzia ao acertar o teto do galpão. Ilsa me seguiu, adentrando o galpão, com confiança. Mal posso imaginar se teria chegado até aqui sem ela. Acho, alias, tenho quase certeza disso, que a conheço de algum lugar. Esses últimos dias foram decisivos para mostrar isso. Eu já havia conhecido ela em algum outro tempo, algum outro universo, em alguma outra vida. Só pode ser essa a explicação. Passamos por situações diversas e difíceis nesses últimos dias, mas sempre senti a sua confiança em mim. Acho que ela gosta de mim como eu gosto dela. Espero que sim. O barulho da chuva respigando no teto de aço do galpão não cessou. Gosto da chuva. Mais do que isso, gosto do som que ela faz ao tocar o chão e ao molhar as coisas. Gosto do som do vento forte carregando gotas d’água grossas. Fiquei observando enquanto aquele homem imenso caminhava. Ele não parece ter nenhuma preocupação em mente. Além disso, que forma estranha de falar. Foram poucas as pessoas que se dirigiram a mim com tamanha firmeza em sua fala. Senti algo estranho quando conversava com ele. Ilsa não disse nada, mas sei que ficou preocupada. Não podia esperar muito para continuar aquela conversa. O caminho fora longo e duro para esperarmos qualquer outra coisa.

- Você não disse seu nome. - Afirmei, querendo perguntar.

O homem de outrora virou-se para mim. Estava de pé, perto de uma mesa cheia de garrafas de rum vazias. Os outros dois capangas que carregavam Vergo, o vesgo já haviam despejado seu corpo – nocauteado - em outra parte do galpão. Não pude enxergar o que acontecia com aquele homem. Sabia que ele teria algo importante para me dizer, mas só isso. Tudo que fizemos até ali levava a ele. Em todo aquele caminho percorrido da Fábrica de Feno até aquela vila, a única coisa que passou por minha cabeça fora aquele nome e aquele recado.

- Que falta de educação a minha. - Disse o homem. Pude perceber quão sarcástico ele era.

95 - Me chame de Capitão. - Ele falara, enquanto vasculhava a mesa, à procura de uma garrafa que ainda tivesse algum resto de bebida.

Não sei o que esperava. Era algo comum; pelo menos de onde venho, as pessoas se apresentam cordialmente quando se conhecem pela primeira vez. Já havia feito isso infinitas vezes nas reuniões do Castelo. A cerimônia dos sobrenomes parecia algo natural. “Que tipo de pessoa se nomeia Capitão?” pensei comigo mesmo. Era de se esperar. Ele era um homem enorme, grande demais, até mesmo para qualquer forjador. Adentrei mais ainda o galpão e percebi que Ilsa ficou parada atrás da porta por onde entramos. Estava encostada na parede ao lado da porta. Como se guardasse o caminho de saída mais fácil, em caso de urgência. Ela podia ouvir a conversa de onde estava, com certeza. Resolvi continuar a conversa com aquele homem imenso e forte, agora Capitão.

- Você é do Norte? - Perguntei, mas já tinha certeza de sua resposta.

Alguém com aquele porte e timbre de voz com certeza era descendente da família dos Forjadores. Conhecia alguns Forjadores das atividades que realizava na Cidade Anciã. Eles tinham o mesmo jeito que o Capitão. Eram seres altos e largos, com mãos grossas e não eram nada gentis. O Capitão engolia o restante de uma garrafa de rum branco que estava deitada na mesa. Percebi que ele me encarou, entortando as vistas - enquanto terminava a sua bebida - ao perceber o que eu havia perguntado.

- Há muito não me considero do Norte. - Ele ponderou alguns instantes e continuou. - Sou do mundo e das águas e não tenho apego a nenhuma família. - Ele falou, seriamente. - Então diga, o que um Coração-de-Leão faz nessas partes? – Completou.

Poderia ter contado várias histórias para aquele homem, mentir seria o mais sensato. Mas, já havia sido sincero antes quando falei sobre Vergo, o vesgo e as minhas intenções. Não vi razão para não continuar dizendo a verdade.

- Não quis vim para cá. - Falei e desejei que Ilsa não me ouvisse.

Mas sabia que ela tinha ouvido. Não queria que ela entendesse de forma errada, nunca tive planos de sair do Norte, mas isso não quer dizer que não goste de forasteiros e nem quer dizer que não goste das pessoas do sul. Até aquele momento, tudo que o Sul me apresentara foram pessoas gentis e acolhedoras. Bastante diferente do Norte. Percebi que o Capitão se interessou pelo que disse, então continuei antes que ele indagasse qualquer coisa.

- Eu fui sequestrado. - Ele não parecia se surpreender com nada que eu dizia. - Quando me dei conta, já estava dentro de um navio, do qual não sei quase

96 nada sobre. Fiquei enclausurado durante toda a viagem, sem poder enxergar a luz do sol ou do luar. Apenas duas pessoas me visitaram durante todo o tempo de viagem. Ambos usavam capuz e nunca nenhum se endereçou a mim.

Eu falara em direção ao Capitão, o mesmo não parecia se abater com nada daquilo que eu dizia. A mesma coisa não acontecia com Ilsa Troca Leve, ela estava perplexa e parecia compartilhar a minha dor. Pude notar que ela franziu a testa e apertou o olhar. Não queria que ela sentisse pena de mim.

- Você está indo atrás de quem te sequestrou? - Perguntou o Capitão para mim, em um tom alegre.

Ele parecia gostar do sentimento de vingança, ainda que não fosse ele a sentir. Afastei-me um pouco mais de Ilsa, que continuava ancorada na parede de aço, próxima à porta de entrada e saída. Fiquei do lado do Capitão, que se apoiava na mesa oval de madeira.

- Aquele miserável. - Falei, olhando diretamente nos olhos do Capitão. O mesmo ficou sério, parecia compreender a minha raiva. - Ghart é o nome dele. Ele faz parte dos Cinco. – Disse.

O Capitão, subitamente, pareceu mais interessado que antes. Curioso até. Acho que ele sabia sobre o que estava falando. Quase todos daqueles que vivem ao Norte compreendem como a administração real funciona. Era da Cidade Anciã, mais precisamente no Castelo Rubro que decisões vitais para toda a Arreta eram tomadas. Os Cinco, como eram conhecidos informalmente, era o conselho de guerra da minha família. Membros seletos e vitalícios que aconselhavam meu pai, e o pai dele antes dele, em tempos de guerra. O que, convenhamos, era a todo momento.

- Ghart, o homem sem sombra. - Disse o Capitão, para minha surpresa.

Ilsa se afastou da porta, deixando-a desguardada. Aproximou para continuar escutando a conversa. O Capitão havia falado o nome do meu sequestrador com certa proximidade. Parecia o conhecer. Não disse nada e ele continuou.

- Esse eu conheço bem. - Ele acariciava a cicatriz imensa, que lhe cortava o rosto inteiro. Parecia recordar algo incômodo.

- Mas o que aquele verme tem haver com tudo isso? - O Capitão apontou para Vergo, o vesgo quando disse a última parte.

- Recebi um recado que tinha o nome dele. - Afirmei.

- Um recado? - Perguntou o Capitão.

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- Não sei de quem fora o recado, é um mistério que anseio revelar. Mas o recado dizia para procurarmos ele, aqui na Vila das Tripas. – Disse.

- Não compreendi como tudo isso tem algo haver comigo. Como vocês o acharam aqui? - O Capitão perguntava.

Dessa vez o Capitão falava se direcionando a Ilsa. Ela parecia querer dizer algo, mas não quis que ela se intrometesse. Uma das coisas que gostei nela foi o seu jeito voraz de ser. Ela me lembrava bastante alguém querido. Não contava as palavras e agia com o coração. Mas, aquela era uma qualidade que poderia se transmutar facilmente em defeito. Continuei a conversa com o Capitão.

- Chegamos à Vila ainda essa manhã. Caminhamos cinco dias seguidos da Estrada Mercante até aqui. Não sabíamos muito sobre o que iria acontecer aqui, tampouco sobre quem era Vergo, o vesgo. Mas, felizmente ele parece ser alguém conhecido na Vila. Então perguntamos onde ele trabalhava. Uma senhora simpática, na maior estalagem da rua principal nos indicou o caminho. Aquela com nome de Siga Bem. – Expliquei.

O Capitão escutava tudo, com bastante calma. Puxou uma cadeira de madeira, bastante usada e sentou-se. Fiquei de pé enquanto contava a história.

- A parte que me toca? - Ele parecia impaciente, continuei falando.

- Chegamos à oficina dele hoje pela tarde. Mas estava vazia. – Disse. Antes que eu pudesse continuar a história, Ilsa me interrompera, adentrando na conversa.

- Não caminhamos tanto tempo para pararmos ali. Adentramos a oficina. - Ela disse, o Capitão abriu um sorriso silencioso. Parecia aprovar o jeito que Ilsa falava. Ela era, de fato, muito peculiar.

- Em um dos quadros da oficina estava marcado, com giz branco, o seu endereço e o horário que ele estaria fazendo a entrega. Assim, cá estamos. - O Capitão se levantou bruscamente quando Ilsa terminou de falar. Assustei-me, quis sacar a espada de bronze. Mas percebi que as intenções dele não eram as piores.

- Pois bem, sua graça. - Ele falara de forma irônica. Não me ofendi. - Serei sincero. Não posso imaginar um único universo onde aquele verme possa te ajudar a chegar ao Norte. Aquele rato nunca deixou essa Vila, quiçá sonhou

98 em atravessar o Salgado. - O Capitão parecia tentar me convencer de algo. Ele tomou um fôlego profundo e virou-se de costas para mim e Ilsa.

- Tenho que falar com ele. - Afirmei calmamente.

Tentei sugerir com o meu tom de voz e gestos que ele não tinha obrigação de me deixar falar com Vergo, o vesgo. Acho que o Capitão compreendeu. Ele me olhou profundamente, como se encarasse algo além do meu rosto. Senti uma energia forte, minhas pernas balançaram e pude notar que Ilsa quase desmaiou. Mas, logo ela se afastou novamente do Capitão e continuou a observar a cena.

- Eu posso te levar ao Norte. - Disse o Capitão.

Fiquei perplexo. “O Capitão” pensei comigo mesmo. Quem se nomeia dessa forma? Talvez fosse um homem diferente, afinal das contas. A imagem que ocorrera momentos atrás saltou na minha mente. Aquele homem não era alguém comum. Aquela arma também não era uma arma comum. Por um breve momento quis recuar e deixar tudo aquilo para trás. Haveria outras maneiras de se chegar ao Norte, afinal. Mas como um relâmpago que corta a escuridão em uma tempestade, as palavras do Capitão pareceram clarear a minha mente. Talvez estivesse ali não por causa daquele corpo que sangrava desacordado no outro cômodo. Talvez aquela mensagem tenha sido me enviada justamente para que encontrasse aquele homem que parecia resolver os meus anseios com facilidade.

- Você? - Indagou Ilsa. Ela parecia desconfiar daquele sujeito, não era para menos.

- Não me entenda mal, princesa. - Ele dizia com um sorriso no rosto. - Eu já estava de partida, de qualquer forma.

O Capitão se explicava, enquanto voltava a se sentar na mesinha de madeira.

- Será recompensado se assim puder fazer. - Disse ao Capitão. Com certeza ele entendeu ao que me referia. Ele, mais do que qualquer um naquela sala, sabia o que um membro da realeza podia significar. Rúfias e joias incontáveis repousavam nos cofres reais. Um homem como ele jamais desperdiçaria uma oportunidade como aquela. Por essa razão, soube que podia confiar no Capitão.

- Vou te levar ao Norte. - O tom de seriedade voltou ao Capitão. - Mas não faço isso por dinheiro. - Ele coçou novamente a cicatriz em seu rosto. Fechou os punhos, apertando-os na mesa de madeira, a ponto de a fazer ranger.

99 - Enfim, a queridinha Lilly já estava quase pronta para partir. Um príncipe a mais, um príncipe a menos não fará diferença alguma na viagem. – Ele falou.

Pelo jeito que o Capitão falara, pude entender que ele se referia a um barco. Fazia sentido, visto que todo o motivo de estarmos ali era por causa de peças de um barco incompleto. Ele se levantou como se convidasse a mim e a Ilsa a sairmos.

- Posso confiar em você? - Falei seriamente, levando a mão direita ao encontro do Capitão. Ele já estava de pé. Demorou alguns instantes a corresponder meu ato. Fiquei com a mão estendida no ar, o que me fez sentir desconfortável. O Capitão afanou o próprio bolso do casaco e retirou um charuto inteiro. Ascendeu o mesmo com um isqueiro de metal e deu duas baforadas.

- Ao meu ver, você não tem outra escolha. - Ele disse, sorrindo. Parecia debochar da situação, mas o seu aperto de mão demostrava que eu podia confiar nele.

O Capitão seguiu à nossa frente, caminhando alguns passos até a porta por onde adentramos. Logo, Ilsa e eu estávamos novamente na parte de trás da oficina dele. Senti um certo alívio quando vi o céu novamente. Algo estranho acontecera, a chuva que caía fortemente, havia parado. O céu estava nublado, com uma tonalidade triste. Vento nenhum dançava naquela hora. O cheiro de terra molhada dominava o ar.

- Partiremos daqui a dois dias. A queridinha Lilly ainda precisa de alguns reparos. - O Capitão falara comigo, ignorando Ilsa, que estava bem atrás de mim.

- Almirante! - Ele berrou e um daqueles capangas que outrora surravam Vergo, o vesgo, aparecera subitamente.

- Senhor? - Afirmou o “almirante” em alto tom.

- A encomenda? - O Capitão parecia ignorar a minha presença e a de Ilsa. Ela me olhava fixamente, parecia querer questionar várias coisas, mas estava quieta por algum motivo.

- Está nos conformes. Agora é só encaixar tudo e estamos prontos. - O capanga falara e o Capitão acenava com a cabeça. Parecia satisfeito. Não entendi muito bem sobre o que eles falavam, então fiquei ali esperando que o Capitão terminasse a conversa.

- Peixinho talentoso. - Ele falara com o capanga. Os dois deram risada por alguma razão.

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- Com ele faço o que? O lixão? - O capanga perguntava e apontava para dentro do galpão. De certo eles falavam sobre o verme, como o Capitão o chamara.

- Despeje ele no lixão, talvez dessa vez ele aprenda com quem está fazendo negócios. - O Capitão falou, autoritariamente.

O capanga deixou o Capitão para trás, caminhando alegremente, enquanto assoviava. O Capitão voltou o seu olhar para mim e para Ilsa. Fora com um toque de mão no meu ombro que ele continuou a conversa. Pude sentir o peso que a mão dele possuía, mas tinha certeza que ele não forçava meu ombro. Era um gesto amigável.

- Estaremos partindo em dois dias. Você me encontra aqui, do outro lado da oficina, na doca. Esteja aqui ao meio dia, não se atrase. - Ele falara tudo, rapidamente.

Já estávamos do outro lado do cercado de madeira que separava a oficina do Capitão da ruazinha que daria no centro da Vila das Tripas. Antes que me despedisse do Capitão, algo me veio à cabeça. Não sabia ao certo quanto tempo a viagem ao Norte levaria. No cárcere daquele navio imundo onde fui mantido, mal pude notar a passagem do tempo. Já ouvi histórias sobre viagens longas e viagens curtas, de certo o Capitão tinha todas essas informações. Em minha cabeça, pensei em tudo que precisaríamos para realizar aquela viagem. Acho que o melhor seria voltarmos à estalagem que outrora pedimos informações. Qual era o nome mesmo? Bem... Temos dois dias para ajeitar tudo e partir para o Norte. Seja lá o que me espera, tenho que descobrir a verdade por trás de tudo isso, custe o que custar.

- Lembrem-se de pegar tudo que é necessário. Levaremos muitos dias em alto mar. Quem sabe o que pode acontecer? - O Capitão falara, como se pudesse ler a minha mente. - Não precisa se preocupar com suprimentos e essas coisas triviais. Peguem o necessário, o resto é minha responsabilidade. - Ele falara, enquanto nos via sumir pela ruela de pedras, em direção à estalagem.

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Uma notícia inesperada Mal posso acreditar em como as coisas aconteceram tão rapidamente. Parece

que foi ainda hoje que saiamos da fábrica de Tia Carol. Sinto falta dela. Na verdade, sempre senti. Talvez seja por que vivíamos separadas, mas sempre

tive a impressão de que gostava mais dela do que da minha própria mãe.

Nunca admiti isso para minha mãe, é claro. Mas acho que ela tem as suas desconfianças. Einri Coração-de-Leão, pelos deuses! Acho que se contasse

isso a qualquer uma das garotas do Comércio elas debochariam, me chamando de garota boba. É incrível como ele, membro da realeza ou não, possui certeza

no seu jeito de agir. Talvez por ser quem é. É verdade. Isso tem facilitado bastante a nossa aventura. Fora três dias atrás que ele adentrou uma Casa do

Carteiro na Via 13 e retirou tantas Rúfias que mal pude contar. Como ele fez aquilo? Não sei ao certo. Deve ter tido algo haver com a sua assinatura, uma

senha. Desde lá, estamos viajando como reis. Digo, com bastante de tudo, mas

a viagem não fora das mais confortáveis e seguras. Levei um susto quando ele resolveu me entregar esse arco. Até agora não consegui me acostumar com o

gatilho dessa coisa. Mas, é inegável, fora uma boa ideia. Alias, ele parece ter muitas delas, boas ideias.

- Dois quartos de solteiro, com banheiras e água morna, por favor. - Einri solicitava a dona da Estalagem Siga Bem.

Era um nome estranho para uma estalagem. Devia ter esse nome por que a Vila das Tripas não deveria ser destino final de ninguém. Era passagem para outros caminhos, outros mundos. Não disse uma sequer palavra desde que deixamos a oficina daquele homem horrível para trás. Talvez seja melhor pensar bastante antes de questionar aquela decisão.

- Querido, só temos um quarto disponível, mas ele tem duas camas. Porém, uma banheira. - A moça por trás do balcão parecia cansada. Ela tinha um cabelo grosso, meio louro meio castanho. Bochechas gordas me chamavam atenção. Vestia uma saia verde clara, que mais parecia um uniforme. Ela olhava para mim e para Einri de forma curiosa. Parecia querer se lembrar de

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onde tinha visto aqueles rostos. Nem mesmo uma semana se passara desde que passamos por esse exato local e pedimos informação para essa mesma senhora e ela já ter se esquecido. Bem, dois estranhos pedindo informação deve ser algo rotineiro por essas bandas.

- Não tem problema. - Eu disse para a recepcionista. - Ficamos com esse mesmo. Apenas dois dias, afinal. - Falei virando-me para Einri.

Estranhamente ele estava avermelhado. Parecia estar com vergonha de alguma coisa. Não sei dizer. Não vi razões para tanto. Logo ele assumiu a conversa e ficou negociando os detalhes com a recepcionista. A moça cansada havia me dado as chaves do quarto de número sete. Após aquele longo dia, tudo que queria era um banho quente e uma boa refeição.

- Vou à frente. Quero tomar um banho e só temos uma banheira. - Disse para Einri. Ele gesticulou com a cabeça e respondeu em baixo tom. - Pode ir. Quando terminar, nos encontramos aqui em baixo. Aparentemente eles servem sopa como jantar. - Einri apontava para um pequeno quadro negro onde estava escrito com giz branco o horário da janta e o prato a ser servido.

Afirmei com a cabeça e segui para o quarto de número sete. A estalagem era bastante grande. Possuía cerca de três andares, apesar de que não cheguei a

passar do primeiro andar. Era muito antiga e a estrutura necessitava de várias reformas. Porém, tudo funcionava e as camas eram muito confortáveis.

Adentrei ao quarto de número sete e sentei na cama da direita que ficava encostada na parede porosa, pintada de verde. Era um quarto apertado, mas

caloroso, o que de certa forma, era agradável. Foi um alívio tirar aquelas botas sujas e pesadas. Pouco tempo me levou para preparar um banho naquela

banheira de bronze, que estava gélida. A água, todavia, saía quente de uma

torneira dourada, o que fez a banheira fumegar. O banho estava pronto. Adoro tomar banho. Havia poucas sensações tão boas quanto terminar um dia de

trabalho no Grande Porto e tomar um longo banho na minha casa. A memória dos meus pais, principalmente minha mãe, me veio à cabeça. Eles devem estar

bem. A essa altura já devem ter recebido a minha carta e devem estar tranquilos. Tia Frizda deve ter explicado tudo, é claro. Terminei o banho e me

aprontei em minutos. Desci as escadarias da estalagem, que era toda feita de madeira. A escadaria tinha alguns degraus soltos e partes onde o verniz havia

se desgastado, mas não era uma escada cansativa. Logo, estava novamente na recepção. A moça que outrora nos atendera não estava mais lá. Apenas Einri

sentava em um banco onde cabiam três pessoas.

- Vamos, eles já estão servindo. - Ele disse. Não respondi, apenas sorri e senti a minha barriga reclamar. Estava faminta, é verdade.

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Adentramos a sala de jantar. Havia três mesas grandes, todas forradas com um

tecido verde claro. Eram mesas grandes onde cabiam várias pessoas sentadas. A grande maioria dos lugares estavam desocupados. Talvez fosse por que a

temporada estava fraca, ou o momento não era dos melhores para os negócios.

Em uma outra mesa, esta separada das outras três, estavam várias panelas que exalavam um cheiro de dar água na boca. Fiquei a frente de Einri. Agarrei um

prato de cerâmica fundo, todo branco. Enchi o prato com vários tipos de caldos. Um parecia uma canja de galinha, com batatinhas dissolvidas. Outro

era verde e cheirava a manjericão. Quis criar algo diferente. Na verdade queria comer bastante e me sentir saciada. Era uma sensação boa que me lembrava

dos jantares na casa de Tia Frizda. Sentamos à mesa e começamos a devorar nossos caldos, que estavam acompanhados de pães salgados. Einri parecia

alegre. Comia a sopa, assoprando-a de vez em quando. Senti todo o sabor do

caldo que havia preparado e as minhas papilas saltitaram de alegria. Na mesa que estávamos, só havia eu e Einri. Já a segunda mesa estava vazia. Na

terceira mesa, mais afastada de nós e próxima à mesa dos caldos, havia três senhores que pareciam ser da região. Conversavam com um funcionário da

estalagem amigavelmente, coisas que não pude ouvir.

- Está bom, não é? - Perguntou Einri, enquanto sugava uma colher cheia de caldo. Ele sorria e parecia estar distraído.

- É verdade. Você devia tentar misturar alg... Um barulho estranho interrompeu a minha fala. Um homem adentrara a pequena sala de janta da estalagem vorazmente. Ele vestia roupas finas, mas bastante gastas. Seu roupão, que o cobria até os pés, estava bastante sujo. Lama e manchas de musgo sujavam toda a sua figura. Ele segurava um cachorro imenso por uma coleira de couro. O cachorro era bastante gordo, todo preto e babava o chão da estalagem.

- Majestade! - Ele gritou, direcionando-se para Einri.

Tudo aconteceu rapidamente a partir dai. Einri parecia conhecer o homem, ou ao menos seu uniforme. Foi em um piscar de olhos que ele se levantou, aproximando-se do homem e de seu cachorro.

- Como você me achou? - Perguntou Einri ao homem. O homem parecia exaurido. Buscava fôlego para continuar a conversa.

- Majestade! Estamos tentando te encontrar a dias! Não fosse por àquela carta, talvez jamais tivesse conseguido. - O homem buscava o ar, mas parecia

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querer falar antes de respirar. Ele devia estar se referindo a visita que fizemos a Casa do Carteiro, dias atrás.

- Se acalme! - Einri parecia ordenar ao homem.

- Majestade... O senhor não compreende. - O homem, agora buscava bastante fôlego como se quisesse contar algo difícil. Aproximei-me, deixando a mesa e ficando ao lado de Einri, que estava aflito com a situação.

- O que houve? Ande, fale! - Einri tratava aquele homem como seu general. O homem respirava profundamente, enquanto o cachorro deitava estirado no chão da sala de jantar da estalagem.

- Trago péssimas notícias. - Ele disse e a conversa esfriou. Einri ficou quieto.

A sala de jantar daquela estalagem parecia ter ficado mais escura, como se apenas aquela conversa existisse. As outras pessoas que ali estavam pareciam ter sumido e todo o foco estava nas palavras que aquele homem ainda havia de proferir.

- A rainha e o rei foram assassinados. - Ele disse, sem medir as palavras. - Eu sinto muito. - O homem completou.

Einri lançou um breve sorriso. Parecia não entender a situação. Levou alguns segundos para mudar completamente a sua expressão. O que mais me assustou foi a maneira que ele procedeu. Nada foi dito. Ele fitou o chão da estalagem, encarando-o cabisbaixa. Subiu freneticamente as escadas da estalagem, em direção ao seu quarto, deixando o jantar para trás. Eu, aquele homem desconhecido, que trazia notícias terríveis, e o seu cachorro, ficamos na sala de jantar sem trocar palavras. Decidi que seria melhor seguir Einri e tentar confortá-lo de alguma maneira. Se entendi algo daquela situação, seria que ele havia acabado de se tornar órfão.

- Eles se foram? Estão mortos? - Ele me perguntou, em lágrimas, logo que adentrei o quarto de número sete.

Senti a minha garganta doer. Engoli firmemente uma saliva seca. Quis falar,

mas não consegui. Sentei-me do lado de Einri, que estava sentado na cama,

segurando a própria cabeça com as duas mãos, encarando o chão do quarto.

Senti que iria chorar, mas me contive. - Eu sinto muito. - Disse, sem conseguir olhar nos olhos dele.

Einri passou a encarar o colchão, sentado com as pernas dobradas. Suas mãos cobriam o rosto, que estava virado para baixo. Mas, era claro que lágrimas

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escorriam de suas bochechas.

-Por quê? - Ele disse, ainda encarando o vazio. - Assassinados? Meus pais? Por quê? - Perguntou ele, inconsolavelmente.

Einri me fez várias perguntas naquele momento. Eu não tinha resposta para nenhuma delas. Quis saber mais sobre as coisas da vida. Saber como reagir naquela situação. Queria ter as palavras necessárias para tal, mas não tinha. Ofereci o que pude. Abaixei-me atrás dele, abraçando-o suavemente. Era algo que minha tia sempre fizera comigo. Não sei por que, mas todos os problemas do mundo pareciam ter uma solução quando ela me abraçava daquele jeito. Era um abraço capaz de curar as mais profundas tristezas e aflições. Esperei mais algum tempo, sem que nem eu nem ele disséssemos qualquer coisa. Ouvi sua respiração se acalmar, soluço por soluço, até que ele decidiu me encarar.

- Eles eram pessoas boas. Pessoas muito boas. - Ele falara, enxugando as lágrimas. - Não posso compreender! - Einri se levantou da cama bruscamente. - Como é possível? Eles eram pessoas boas! - Ele me encarava com um olhar raivoso e tristonho. Senti medo.

- Como posso entender que coisas tão terríveis possam acontecer com pessoas tão boas? Eles eram pessoas boas! - Einri parecia querer que eu desse algum sentido aquilo tudo. Não sabia o que dizer, então tentei entender a situação.

- Quem é aquele homem? - Disse, na esperança de que tudo aquilo não passasse de uma farsa. Einri mudou o semblante, que até agora era de tristeza disfarçada por raiva.

- Não sei. - Ele disse, enquanto caminhava freneticamente de um lado para o outro do quarto. - Ele é um soldado da Alcatheia. É um soldado de elite, com certeza. Soldados de elite são enviados aos quatro cantos do mundo. Apenas soldados de elite recebem missões especiais. - Ele falara tão rápido que mal pude entender o que dissera. Mas, infelizmente tudo parecia ser verdade. Nada indicava que aquela mensagem fosse uma farsa.

- Ele parecia ter algo mais a dizer. - Falei, suavemente. Einri me encarou, deixando pensamentos sombrios de lado. - Devíamos descer e terminar a conversa com ele. - Completei.

- É verdade. Vamos. - Ele disse, rapidamente mudando o semblante de tristeza para um ar consciente. Descemos as pequenas escadarias da estalagem e aquele mesmo homem estava agora na salinha que dividia a entrada e sala de jantar. Ele estava

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sentado no banco de madeira, que outrora Einri sentava, segurando a coleira de couro que prendia o imenso cachorro. O cachorro estava deitado, babando o chão.

- Majestade! - O homem se levantou e fez um tipo de saudação para Einri. Era constrangedor a maneira como ele tratava Einri. Mas, devia ser daquele jeito que a maioria das pessoas tratava ele.

- O que de fato aconteceu? - Einri perguntou.

- Como disse antes, fui enviado pelo Comandante assim que tivemos a infeliz notícia. - O homem tentou desviar o olhar, mas Einri foi voraz.

- Não me poupe dos detalhes, conte tudo. - Ele ordenou o homem, que ajeitou a postura quando ouviu Einri falar.

- Três guardas foram encontrados mortos, todos membros de elite da Alcatheia. O rei e a rainha foram encontrados dentro da câmara real. Não sabemos quem fez aquilo nem o a razão. Tudo aconteceu há quinze noites e dias. - O homem falava e parecia querer chorar.

De fato era um tipo de lealdade diferente que aquele homem possuía. Até mesmo a maneira como ele encarava Einri Coração-de-Leão era diferente. Parecia admirá-lo, como se tivesse uma fé em sua pessoa. Soubesse mais, diria que ele adorava-o como um fiel adora sua divindade.

- Não fui incluído de mais detalhes, me desculpe majestade. A mim foi dada a missão de informar sua majestade. – O homem disse, encarando o chão com vergonha.

- Isso é tudo? - Einri caminhava de um lado para o outro da pequena sala da recepção. Por sorte a sala estava vazia e a conversa fluía com privacidade.

- Deixei o Norte há dias e cheguei à Cidade Porteira há poucas noites. Venho procurando pela sua graça desde então. Só fui capaz achá-lo depois que fui informado que a majestade havia utilizado os serviços da Casa do Carteiro na Via 15. - O homem parecia querer justificar os problemas que havia passado. Talvez fosse uma forma de se desculpar por ter demorado tanto a entregar a mensagem. Ele coçou a garganta e ficou ereto em frente à Einri. Parecia esperar novas instruções.

- Pois bem. Você deve voltar ao Norte. - Einri falou. Novamente me surpreendi como ele era capaz de raciocinar rapidamente, inclusive em situações tão difíceis e peculiares. Malmente parecia a pessoa assustada com a qual conversei há alguns minutos.

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- Eu devo voltar ao Norte? Majestade, e a sua graça? - O soldado demostrava não compreender a situação. - Farei o mesmo. Mas, não posso utilizar a rota oficial. Não devo voltar a Cidade Porteira tão cedo. Lá não é seguro, não para mim. - Einri afirmava e olhava o homem nos olhos.

- Não posso aceitar tais ordens. Devo ficar ao seu lado, se não é seguro, será menos ainda se sua graça estiver sozinho. - O soldado falou e puxou a coleira do cachorro que estava deitado do lado do banco, cochilando. Os dois ficaram de prontidão, como em uma posição de ataque, demostrando serem capazes de defender o filho do rei, ou pelo menos foi o que ele quis mostrar.

- Ele não está sozinho. - Eu disse. Einri olhou para mim com um olhar suave e confiante. Seu rosto estava sereno de uma maneira que nunca tinha percebido antes. Senti vergonha e fitei o chão.

- Você fará como eu digo. - Einri falara com autoridade. - Vá para o Norte e encontre a minha irmã. Escute, pois isso é de extrema importância. Estarei chegando ao Norte semanas depois de você. Apenas avise a ela que estou a caminho. Parta de imediato.

- Assim farei! - O soldado, que tinha acabado de chegar à estalagem, pisoteou o chão com firmeza e partiu em direção a porta sem parecer se importar com o cansaço.

Antes que mais nenhuma palavra fosse dita, estava novamente sozinha com

Einri Coração-de-Leão. Conversamos sobre coisas triviais naquela noite.

Lembro-me até de termos terminado a nossa janta. A sopa estava fria, mas não me importei. Olhares perdidos sentavam à mesa. Muitos pensamentos e ideias

sem cor deviam estar passando pela cabeça dele. Assim foi o resto daquela noite. Acordamos no outro dia e tudo aconteceu depressa. Deixamos a

estalagem pela manhã e rapidamente chegou a tarde enquanto procurávamos todos os suprimentos necessários para a viagem que ocorreria bem cedo, no

outro dia. Einri parecia saber tudo que precisaríamos, eu não tinha a mínima ideia do que estava acontecendo. Fora um desejo estranho, algo que mal posso

explicar, que fez tudo aquilo parecer o certo. Não me importei com a ideia de

deixar minha casa para trás. Na minha mente apenas o sentimento de navegar me apertava o estômago. Não sabia o que aconteceria dali para frente, mas se

esses próximos dias fossem sequer parecidos com os dias que eu tinha vivido até ali, tudo valeria a pena. A vida era, sem dúvida, mais assustadora e

confusa, mas eu me sentia mais viva do que nunca. A noite chegou e voltamos à estalagem. Lembro-me de ter visto Einri conversar com a recepcionista e

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entregar algumas Rúfias amarradas em um cordão de linho fino. Não conversamos sobre o acontecido naquele dia. Estávamos prontos para viajar. Foi o raiar do sol que me fez despertar. Na verdade, já estava acordada. Estava ansiosa demais para dormir uma noite completa. Acordei minutos antes de quando deveria e fiquei imaginando como seria a viagem. Tive tempo de fitar a cama de Einri, que já estava posta, como se ninguém tivesse dormido ali. Ele deve ter acordado cedo, mais cedo do que eu. Resolvi levantar.

- Tudo pronto? - A pergunta veio seguida de três batidas leves na porta de madeira da estalagem.

- Estou indo. - Respondi.

Deixamos a estalagem para trás e o mundo parecia se abrir a nossa frente. O sol clareava fortemente o dia e o céu estava no seu azul mais celeste. Não havia sequer uma nuvem no pairando acima de nós. Partimos em caminhada para a doca do Capitão. Einri parecia afobado e caminhava depressa na minha frente. Não disse nada e apenas o segui. Mal pude notar o quanto já havia andado, passando por toda a Vila das Tripas e chegando à doca do Capitão. Adentramos os fundos da doca, donde daria o galpão, nos deparando com a porta de ferro que fechava o galpão. Einri deu três socos leves na porta, fazendo bastante barulho. Nada aconteceu.

- Esperamos? - Perguntei, desapontada.

Einri Coração-de-Leão não respondeu, apenas deu mais três batidas na porta e esperou. Alguns segundos se passaram e logo um olho se apresentou pelo buraco escorregadiço da porta. O olho se mexeu, checando de baixo a cima. Logo a porta se abriu, rangendo. O sujeito que abrira a porta não disse nada. Apenas deu um sorriso e acenou mandando a gente prosseguir. Alguns passos à frente e lá estava aquele sujeito mal educado. O Capitão estava de pé e amarrava alguns postes de madeira em conjunto.

- Achei que vocês não viriam. - Disse ele. Quis responder, mas Einri tomou a frente.

- Estamos prontos. - Ele disse, serenamente.

- Aconteceu algo? - O Capitão perguntou, desconfiado. Algo muito estranho irradiava daquele homem. Parecia saber de tudo que havia ocorrido sem nem mesmo presenciar o que se passou.

- Está tudo bem. Quando partimos? - Einri respondeu e deixou transparecer sua ansiedade. Acho que era a única coisa se passava pela cabeça dele: chegar

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ao Norte. Notei que uma feição de preocupado tinha tomado conta de sua face desde o dia que aquele mensageiro trouxe aquelas notícias.

- De imediato. - O Capitão afirmou, enquanto terminava de dar um último nó naquela corda grossa que prendia os pedaços de madeira.

O Capitão deixou as amarras de lado e fez um gesto com a mão afim de que eu e Einri o seguíssemos. Ele estava indo em direção ao final do galpão, onde havia uma porta grande que daria para a parte da frente do galpão. De lá teríamos acesso ao Rio das Tripas. Imaginei se o barco do Capitão já estava lá fora. Aquele barco que nos levaria ao Norte. “A queridinha Lilly”. Isso lá é nome de barco?

- Você está bem? Acho que o momento para desistir é esse. Digo, se você não estiver bem. - Einri me fazia perguntas desengonçadas. Falava estranhamente. Achei que ele não queria que eu fosse.

- Não vim até aqui para desistir agora. Estou ótima. - Respondi e forcei um sorriso.

Na verdade estava com medo. Não sabia o que aconteceria quando aquele homem abrisse aquela porta. Alias, não era o que estava atrás da porta que me amedrontava. Era difícil confiar naquela pessoa enorme como Einri fazia. Antes que mais pudesse pensar, fui surpreendida pela imagem que o ranger da porta da frente do galpão do Capitão revelou. Era um barco pequeno e franzino. Todo de madeira e bastante surrado. Devia caber, no máximo, umas dez pessoas. Um barco a vela comum, como muitos daqueles que subiam e desciam o Rio das Tripas freneticamente. Aquilo não era um Navio Forjador. Disso eu tinha certeza.

- Vamos cruzar o Salgado com aquilo? - Disse. O homem que se denominava Capitão não segurou a gargalhada.

- Não se preocupe princesa, aquele não é a minha queridinha. Quando você avistar ela você vai saber. - O Capitão sorria.

Foram dois gritos do Capitão que botaram as coisas em ordem. Em poucos minutos, dois marujos (mais para bêbados bem vestidos) já tinham carregado todas as tralhas - que Einri escolhera cuidadosamente - para dentro daquele barco. O galpão foi selado com tábuas de madeira que estavam pregadas no aço. Parecia que não seria aberto por um longo período. Subimos abordo do pequeno barco, deixando as tábuas esverdeadas da doca do Capitão para trás. O barco não parecia ter pressa em se mexer.

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- Por que não partimos? - Perguntei a Einri, após esperar alguns minutos dentro do barco de madeira. Malmente ventava e a espera fazia com que o calor parecesse ainda maior.

- Não sei. - Einri respondeu. A vela principal estava amarrada. O capanga que segurava a corda que soltaria a vela batia com os pés no chão, ansioso. Parecia esperar apenas a ordem do Capitão.

Outros tantos minutos se passaram e o Capitão havia sumido da doca. A minha preocupação se fez verdadeira quando vi o semblante do Capitão vindo em direção ao barco. Fora com um berro de guerra que o Capitão ordenou que o barco partisse.

- Cortem a corda! Solte a vela! - Ele berrou e do jeito que veio correndo, pulou dentro do barco.

O chão tremeu e achei que o barco fosse virar. Mas, logo o barco parou de balançar. Um dos capangas que estava mais próximo à corda que segurava o barco, puxou uma machadinha e bateu com força na corda que estava apoiada na madeira do barco. O barco estava solto e o outro marujo/capanga cuidou de soltar a vela principal.

- O que houve? - Einri perguntou ao Capitão. Ele estava ofegante e segurava o leme do barco com mãos nervosas.

- Ele está aqui. - O Capitão falou, olhando para Einri com seriedade. Pude notar que seus olhos malmente tremiam.

Antes que pudesse entender sobre quem os dois falavam, algo inusitado, porém explicativo, ocorria ao lado do rio. Uma criatura sinistra seguida por três outros, igualmente sinistros, cavalgavam em direção ao barco. A imagem era tão forte e destoante que senti os pelos dos meus braços e nuca se arrepiarem. Era aquela pessoa que nos perseguiu no Grande Porto. Mas, ele estava montado em um cavalo negro e alto, assim como as outras três figuras que o seguiam. O homem que estava a frente cavalgava com ódio no chicote. Batia no cavalo como se a sua vida dependesse daquilo. Os três que atrás dele vinham, montados em cavalos igualmente negros e igualmente fortes, portavam arcos-e-flechas e não demoraram a demostrar o porquê de estarem ali.

- Abaixem! - O Capitão gritou com uma voz autoritária.

Obedeci. Abaixei atrás do mastro principal do barco. Meu coração começou a palpitar fortemente. Várias flechas encravaram o chão ao meu lado. Imaginei que se mexesse sequer um músculo seria atingida e morreria ali. Fiquei mais

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calma quando percebi que Einri estava ao meu lado, igualmente abrigado atrás do mastro.

- É ele. - Einri falara, encarando meus olhos. - Ele está aqui por minha causa. Eu tenho que ir até ele. - Ele disse, suavemente. Senti meu estômago embrulhar. Einri estava ao meu lado, mas ao mesmo tempo não estava. Parecia ser outra pessoa dentro daquele mesmo corpo. Seus olhos estavam esbranquiçados e ele estava ofegante.

- O que você está falando? Fique abaixado! – Gritei.

Mas, Einri parecia não me ouvir. Ele se levantou vorazmente. Seguindo em direção à proa do barco. Achei que ele seria atingido naquela mesma hora. Várias flechas pontiagudas ainda continuavam a cair sobre o barco.

- Einri! Einri pare!- Gritei com todo o ar dos meus pulmões. Mas, ele continuou caminhando calmamente em direção à proa. Se nada fosse feito, ele iria pular do barco e se entregar ao inimigo, era certo.

Levantei e percebi que a criatura que outrora nos perseguia na Cidade Porteira estava muito próxima a mim. O cavalo corria na mesma velocidade que o barco navegava e os dois estavam paralelos. A figura era mais clara que naquele dia. Embora não houvesse feição, pois seu rosto estava coberto por um capuz cinzento, que era costurado ao resto da roupa igualmente cinza, pude perceber os detalhes tenebrosos que aquela pessoa transparecia. Ele era o próprio medo. Respirei profundamente, desviando o olhar. Não hesitei em sacar a minha besta e tentar o tiro certeiro. Estiquei a corda de entranhas de tartaruga o mais rápido que pude. Deixei o olho esquerdo fechado e apertei o gatilho. Vi a flecha se movendo como um raio, cortando o vento. Seria um tiro certeiro, exatamente entre os olhos do cavalo.

- Não! - O Capitão berrou, enquanto largou o mastro.

Algo estranho acontecera. Eu tinha certeza que havia acertado. Eu acertei. Algo

inexplicável se passara. A flecha acertou o cavalo, mas ao mesmo tempo não

acertou. Fora como se um reflexo do cavalo se materializasse e se desfizesse em

instantes. A flecha passou por aquela imagem, que era o cavalo, e foi cravada no

chão lamoso da beira do rio. O Capitão chegou onde eu estava com dois passos.

Rapidamente ele me empurrou, tapando minha visão. Eu fiquei novamente no

chão, atrás do mastro, e apenas observava, sem entender, o que o Capitão fazia.

Einri estava à beira do limite do barco, a ponto de pular em direção àquele

homem que eles chamaram de Ghart, o homem sem sombra, se entregando. Então

o extraordinário ocorreu. O Capitão sacou aquela mesma marreta que outrora ele

segurava nos ares. Fez um movimento sútil, porém rápido como a própria luz.

Segurou a marreta com as duas mãos,

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puxando-a para trás e dobrando os dois joelhos. Bateu com a marreta com toda

a sua força, deixando seus músculos ficarem avermelhados e suas veias saltitarem pela sua testa e braços. O Capitão bateu a marreta, mas não em

qualquer lugar. Ele tinha acabado de acertar o próprio ar. Como se uma coluna

de concreto estivesse ali na frente dele e a marreta a tivesse espedaçado. Um som terrível se fez quando ele acertou o ar em sua frente. Como se um sino

gigantesco, um sino do tamanho de uma montanha tivesse acabado de soar. Então o vento que outrora estava calmo, quase inexistente, se enfureceu. Uma

rajada forte e gelada parecia surgir do golpe do Capitão. A vela do barco ficou em seu limite de alongamento, quase rasgando. A frente do barco levantou,

fazendo com que todos que nele estavam, com exceção do Capitão, rolassem para o fundo do barco. Em questão de segundos, atingimos uma velocidade

absurda, como se uma tempestade tivesse surgido instantaneamente. Senti o

barco saltar, rapidamente, o que criou ondas no rio. O casco do pequeno barco de madeira parecia querer rachar. Mas, logo o vento voltou ao normal.

Levantei-me e encarei a margem do rio. Estávamos muito distante de onde partimos. Aqueles homens que cavalgavam não passavam de pontos no

horizonte. Vi que Einri se levantou e foi em direção ao Capitão, resolvi acompanha-lo.

- O que foi aquilo? – Einri perguntou, mas foi em vão. O Capitão se fez de desentendido e continuou calado.

- Eles estavam atrás de mim. Você sabe disso, não? – Einri resolveu continuar a conversa de maneira que o Capitão não o ignorasse.

- Por que você estava indo em direção a ele? – Resolvi perguntar. Não entendia como aquilo tinha se passado, parecia que Einri tinha entrado em um transe.

- Indo em direção a ele? Do que você está falando? Eu fiquei abaixado ao seu lado o tempo inteiro. Senti-me um inútil sem poder ajudar. – Ele falou tristemente. – Vocês têm que compreender que eu sou o motivo de todo esse perigo. – Ele falou se direcionando a mim e ao Capitão. – Não é seguro ficar próximo de mim. – Completou.

O Capitão, que até então estava calado, encarando a bombordo, resolveu se pronunciar.

- Vejam!- Ele disse, enquanto apontava para frente.

Estávamos abaixo da ponte levadiça que marcava o final da Vila das Tripas. A partir dali o rio se tornava mais caudaloso e escuro. O vermelho característico já não era mais notado. A água era marrom e cheirava cada vez mais a sal. O que vi quando segui a instrução do Capitão fora algo magnifico. Aquilo era

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diferente de tudo que já tinha visto em minha vida. Nenhum navio se comparava a aquilo, e eu me considerava uma expert em Navios Forjadores.

- Essa, princesa, é a Queridinha Lilly! – O Capitão exclamou e tratou de soltar uma longa gargalhada.

A Queridinha Lilly, como o Capitão a chamava, era, de longe, o maior navio

que eu já tinha posto olhos sobre. Toda feita de madeira e pintada em tinta

branca, o navio reluzia a luz do sol, dando uma impressão de que possuía brilho próprio. Era imenso. Do barquinho de onde estávamos, parecia que

iriamos adentrar em um prédio de sete andares. Fiquei mais impressionada ainda quando percebi o tamanho da rampa de madeira que os marujos

lançaram no mar. Rapidamente os capangas que estavam no barquinho trouxeram a rampa para fora da água e embarcamos na Queridinha Lilly. O

chão do deque do navio era pintado de amarelo e possuía várias pegadas desenhadas nele. Notei que o Capitão tinha aquele apelido por um motivo: a

tripulação dele era muito maior do que apenas aqueles dois capangas que o

acompanhavam. Não tive tempo de contar, mas vi cerca de dezoito homens atarefados. A Queridinha Lilly era realmente algo impressionante. Nunca tinha

visto um navio tão grande e totalmente feito de madeira. Os maiores navios que visitavam o Grande Porto eram navios de aço, Navios Forjadores. Aquele

navio sobre o qual pisávamos apenas se parecia com um Navio Forjador em tamanho. Todavia, era até mesmo maior que aqueles que navegavam no

Grande Porto. Além disso, era todo feito de madeira e se movia a vento, diferentemente dos Navios Forjadores que eram movidos a vapor.

- Com isso podemos cruzar o Salgado, princesa? - O Capitão afirmava, ainda com um sorriso no rosto.

Não gostei nada daquele apelido. Mas, naquele momento, estava entusiasmada demais para responder. O navio era imenso e parecia ter segredos seculares. Percebi como rapidamente a tripulação do Capitão tratou de retirar a encomenda do pequeno barco. Em questão de minutos eles já haviam descartado o pequeno barco e parecíamos prontos para partir.

- Em quanto tempo chegaremos ao Norte? - Disse, estonteada com a ideia.

- Sessenta dias, isto é, se tudo der certo. - O Capitão respondera.

- Dois meses? - Einri indagou, surpreso.

- Não viajaremos por rotas oficias, majestade. - O Capitão respondera, deixando a ironia tomar conta de suas cordas vocais.

- Você não respondeu nenhuma das minhas perguntas. - Einri disse.

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O Capitão estava caminhando em direção à casa do leme e nós dois o seguíamos. Ele fez uma breve pausa quando Einri comentou a situação, antes de adentrar a sala do leme.

- Temos muito que conversar. - Ele disse, convidando Einri para dentro da sala do leme.

Uma portinhola de madeira mal presa, com um vidro arredondado no seu centro, separava o lado de fora do navio e a sala do leme. Ao adentrar a sala, fiquei surpresa como ela era pequena. Não tinha mais do que dez metros quadrados. Toda vazia, com apenas uma cadeira e uma mesa. Na mesa tinha outras garrafas e alguns papéis que mais pareciam mapas. O leme, como era de se esperar, ficava na parte da frente da sala, donde um vidro imenso dava visão para a proa do navio.

- Mais cedo te perguntei se tinha algo errado. - O Capitão falou, enquanto se apoiava no leme. - Você mentiu para mim. - Ele disse. Einri começou a mostrar sinais de nervosismo.

- Não menti. - Einri se desculpou.

- Ocultar a verdade não é nada diferente de mentir. - O Capitão disse seriamente. Mas, logo depois, mostrou um sorriso de canto de boca, a fim de descontrair um pouco a conversa. Continuei escutando os dois.

- Princesa, você se importa? - O Capitão apontava para a portinhola por onde adentramos. Parecia querer dizer algo que não me cabia.

- Tudo que você tem a me dizer, pode dizer na frente dela. - Einri falou, veementemente.

Senti-me orgulhosa naquele momento. Eu, de todas outras pessoas, era digna de confiança de um Coração-de-Leão. Deveria ter me beliscado naquele momento, mas não o fiz.

- Está bem. - O Capitão coçou a garganta. - O que vou lhe contar agora não será nada fácil de ouvir, mas peço que não me interrompa. Do contrário, nada fará sentido. - O Capitão mudou o semblante, estava sério e desconfiado, falava baixo.

- Continue. - Einri disse, procurando a cadeira que acompanhava a mesa, e colocando-a próxima do leme de onde o Capitão falava.

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- Sei de tudo que se passou dois dias atrás. Sei que aquele cão te visitou, trazendo notícias terríveis. - O Capitão devia estar se referindo ao soldado daquela noite. - Você tem que compreender, sou um velho amigo da família... - Ele parecia procurar as palavras certas. - Digo, não da família, mas de uma pessoa que significa muito para mim. - A face do Capitão ficou avermelhada por um instante e logo ele se corrigiu. - Significava, quero dizer. Ouça garoto, todos devemos muito a sua mãe. Mirian era uma pessoa muito querida para mim, não posso negar. - Einri parecia estonteado.

- Escute! - O Capitão deixava o leme para trás e se aproximava de Einri, que estava quieto. - Eu devo algo a ela. Principalmente depois do que aconteceu. Soube de sua morte há poucos dias. Não penso em nada desde aquele dia. Somente algo assim me faria voltar ao Norte, não é por acaso que você me encontrou, não é por acaso que estamos aqui.

Einri, sem conseguir permanecer calado, resolveu participar do monólogo.

- O que isso tudo quer dizer? - Ele falou, enquanto se levantava da cadeira.

- Foi me dada uma missão, um fardo se preferir. - O Capitão se virou em direção ao leme. - Devo te levar ao Norte. – Ele disse.

Ele falava enquanto puxava um gancho de madeira preso a uma corda fina. Um som alto e fino ecoou fortemente. Era um apito a vapor que indicava que o navio deveria partir. A vela principal foi solta e pude sentir o navio se movimentar vagarosamente, se balançando entre as ondas, até alcançar uma velocidade maior e parar de chacoalhar.

- Enquanto aquele homem... - O Capitão levava a mão ao rosto, coçando a cicatriz. - Tenho velhas contas a serem acertadas com ele. – Completara.

- Tudo isso é muito confuso. - Pronunciei-me.

- Penso o mesmo. - Disse Einri. - Sei que devo ir ao Norte, mas não tenho a mínima ideia de como realmente agir. - Ele falava, desapontado. - Não sei o que farei quando lá chegar, talvez deva procurar minha irmã, não sei. Mas, estou mais determinado do que nunca a voltar ao Castelo. Principalmente depois do ocorrido – Einri falara, mas não parecia estar determinado. Estava triste.

- Esse seria um bom começo, precisaremos dela. - O Capitão virou-se novamente em nossa direção. - Ela se parece muito com Mirian. – Completou.

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- Tenho a impressão que você é muito íntimo da família, mas como posso nunca ter te visto antes? - Einri parecia desconfiado. - Pior ainda, nunca ouvi falar sobre você. – Ele falara, desconfiado.

O Capitão mostrou novamente aquele sorriso irônico. Buscou outro toco de charuto em um dos seus bolsos, reacendendo-o. Novamente fumegava uma fumaça branca enquanto falava.

- Há muitas coisas que você não sabe, pequeno príncipe. - Ele falara, fazendo Einri ficar vermelho de raiva. Com certeza não gostava de ser tratado daquela maneira e não estava acostumado com ninguém que lhe falava daquele jeito.

- Os donos do tempo. - Einri sussurrou. O Capitão limpou o sorriso do rosto e parecia sério. - O que você sabe sobre isso? - Einri Coração-de-Leão perguntara.

- Muita coisa. - Explicava o Capitão, seriamente. - Se tudo der certo, você aprenderá muita coisa nesse tempo de viagem. Muita coisa ainda está para ser definida. Destinos concluídos serão retomados e tudo que você achava ter visto, pode começar a parecer um sonho confuso. - O Capitão fez uma pausa. - Há coisas inexplicáveis nesse mundo, coisas que estamos submetidos e temos que aprender a viver. Há coisas que acontecem que nos fogem o controle. São coisas que nos deixam paralisados em frente ao poder do destino. – O Capitão fez uma pausa proposital. - Mas, e se eu te dissesse que podemos controlar o destino? Se eu te falasse de uma maneira de refazer o ocorrido? Se houvesse uma maneira de começarmos de novo? Se nós tivéssemos o conhecimento para manipular as dobras do tempo? Você iria me acompanhar, pequeno príncipe? – Ele falara, em direção a Einri.

Eu mal podia respirar. Tudo aquilo parecia demais para mim. Senti meu estômago embrulhar. Estava nervosa e quis me sentar. Ancorei-me em uma das paredes da pequena sala do leme e senti o mundo girar. O silêncio se fez presente naquela sala por mais alguns minutos, até que Einri decidiu falar.

- Rescrever o tempo, não é? - Ele falara, parecendo se lembrar de algo.

- Dançar com ampulhetas, pequeno príncipe. Dançar com ampulhetas. - O Capitão falara e segurara fortemente o leme, virando-se em direção ao Salgado.

O Salgado se abria em nossa frente. O cheiro salitro parecia apagar o cheiro do continente. O sol estava a pino e o céu, no seu azul celeste, brilhava. A costa de onde partimos parecia minúscula se olhássemos para trás. Afrente residia um destino incerto, traduzido em um azul infinito de águas salgadas. Tudo parecia difícil e misterioso. Percebi-me pensando coisas estranhas. Coisas

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sobre a Cidade Porteira e a maneira que ela se comportava. O seu cheiro, o seu som e sua aparência. Pensei ainda na Vende Tudo e em coisas rotineiras. Tudo aquilo pareceu distante, coisa de outra vida. Lá estava eu, uma Troca Leve, indo onde nenhum Mercador jamais ousou sonhar chegar. Isso soava bem em meus ouvidos. Soava bem.