dan o brien - introdução à teoria do conhe cimento (1) (1).p df

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  • Isaac Ramos Junior

  • 1. QUE QUER DIZER TUDO ISTO? Thomas Nagel

    2. A ARTE DE ARGUMENTAR Anthony Weston

    3. MENTE, HOMEM E MQUINA Paul T. Sagal

    4. DICIONRIO DE FILOSOFIA Simon Blackburn

    5. ELEMENTOS BSICOS DE FILOSOFIANigel Warburton

    6. LGICA: UM CURSO INTRODUTRIOW. H. Newton-Smith

    7. SER QUE DEUS EXISTE? Richard Swinburne

    8. A LTIMA PALAVRA Thomas Nagel

    9. TICA PRTICA Peter Singer

    10. PENSE: UMA INTRODUO FILOSOFIASimon Blackburn

    11. ENCICLOPDIA DE TERMOS LGICO-FILOSFICOSOrg. de Joo Branquinho e Desirio Murcho

    12. O SIGNIFICADO DAS COISAS A. C. Grayling

    13. ELEMENTOS DE FILOSOFIA MORALJames Racheis

    14. UM S MUNDO: A TICA DA GLOBALIZAO Peter Singer

    15. INTRODUO FILOSOFIA POLTICAJonathan Wolff

    16. UTILITARISMO John Stuart Mill

    17. LINGUAGENS DA ARTE Nelson Goodman

    18. QUE DIRIA SCRATES? Alexander George (org.)

    19. PROBLEMAS DA FILOSOFIA James Rachels

    20. O CARCTER DA MENTE Colin McGinn

    21. A VIDA QUE PODEMOS SALVARPeter Singer

    22. O NOMEAR E A NECESSIDADE Saul A. Kripke

    23. O QUE A ARTE?Lev Tolstoi

    24. INTRODUO TEORIA DO CONHECIMENTO Dan OBrien

  • DAN O'BRIEN

    INTRODUO TEORIA DO

    CONHECIMENTOTRADUO

    PEDRO GASPAR

    REVISO CIENTFICA

    AIRES ALMEIDA

    gradiva

  • Ttulo original An Introduction to the Theory of Knowledge Dan O'Brien, 2006

    Esta edio publicada por acordo com Polity Press Ltd., Cambridge

    Traduo (feita a partir da l .a edio original) Pedro Gaspar Reviso cientfica Aires Almeida

    Reviso de texto Maria de Ftima Carmo Capa Armando Lopes (arranjo grfico)/Michael Stones

    (ilustrao)Fotocomposio Gradiva

    Impresso e acabamento MultitipoArtes Grficas, L.da

    Reservados os direitos para a lngua portuguesa porGradiva Publicaes, S. A.

    Rua Almeida e Sousa, 21 - r/c esq. 1399-041 Lisboa Telefs. 213974067/8 Fax 213953471 [email protected] / www.gradiva.pt

    l.a edio Julho de 2013 Depsito legal 362084/2013

    ISBN 978-989-616-542-0

    Coleco coordenada por AIRES ALMEIDA

    (C e n t r o d e F il o so fia d a U n iv e r sid a d e d e L is b o a )

    gradivaE d ito r G u il h e r m e Va l e n t e

    Visite-nos na internet www.gradiva.pr

  • ndice

    ndice detalhado............................................ 9Prefcio.......................................................... 15

    PARTE I INTRODUO AO CONHECIMENTO 19

    1 A teoria do conhecimento................ 212 O que o conhecimento?................. 33

    PARTE II FONTES DO CONHECIMENTO.......... 57

    3 Conhecimento a priori........................ 594 Percepo............................................. . 795 Testemunho.......................................... 105

    PARTE III JUSTIFICAO........................................... 123

    6 Fundacionalismo................................. 1257 Coerentismo......................................... 1548 Internismo e externismo................... 173

    PARTE IV CEPTICISMO............................................... 195

    9 Cepticismo............................................ 19710 O problema da induo.................... 22411 Epistemologia naturalizada.............. 243

  • PARTE V REAS DO CONHECIMENTO............ 261

    12 Memria................................................ 26313 Outras mentes..................................... 28414 Conhecimento moral.......................... 30515 Deus....................................................... 330

    Glossrio........................................................................ 353Bibliografia.................................................................... 359Filmes............................................................................ 374ndice onomstico......................................................... 377

  • ndice detalhado

    Prefcio...................................................... 15

    PARTE I INTRODUO AO CONHECIMENTO 19

    1 A teoria do conhecimento........................ 21

    1 Epistemologia................................................ 212 A estrutura do livro..................................... 22

    2.1 Parte I: Introduo ao conhecimento... 222.2 Parte II: Fontes do conhecimento............ 252.3 Parte III: Justificao.................. 252.4 Parte IV: Cepticismo.................. 282.5 Parte V: reas do conhecimento............. 30

    3 Leituras e estudos complementares........ 31

    2 O que o conhecimento?............................ 33

    1 Anlise filosfica.......................................... 332 A definio tripartida do conhecimento... 343 Sero a justificao e a crena necessrias

    ao conhecimento?......................................... 364 Os casos de Gettier...................................... 395 Noes mais ricas de justificao............ 42

    5.1 Infalibilidade.......................................... 425.2 No s crenas falsas............................ 44

    7

  • 6 Conhecimento como conceito bsico... 467 Semelhanas de famlia........................... 50

    Perguntas.................................................................. 53Leituras complementares.................................... 53

    PARTE II FONTES DO CONHECIMENTO............. 57

    3 Conhecimento a priori............................. 591 Conhecimento, razo e experincia...... 592 Racionalismo e empirismo..................... 613 O sinttico a priori.................................... 634 Auto-evidnci e certeza........................ 675 Conhecimento inato................................. 71

    Perguntas.................................................................. 76Leituras complementares.................................... 77

    4 Percepo........................................................... 79

    1 Realismo directo....................................... 792 Realismo indirecto................................... 82

    2.1 O argumento da iluso..................... 832.2 Dualismo............................................. 85

    3 Rejeitar o realismo................................... 863.1 Idealismo............................................. 863.2 Fenomenismo..................................... 883.3 Problemas do fenomenismo............. 89

    4 A teoria intencionalista da percepo... 924.1 Adverbialismo.................................... 924.2 Intencionalismo................................... 934.3 Fenomenologia................................... 95

    5 Ver-que, ver-como e olhar bruto.......... 98

    Perguntas.................................................................. 103Leituras complementares.................................... 104

    8

  • 5 Testem unho.................... ............................... 105

    1 A abordagem individualista do conhecimento ...................................................... 105

    2 Testemunho.............................................. 1063 A perspectiva de Hume sobre o teste

    munho ........................................................ 108

    3.1 O problema da circularidade.......... 1093.2 O argumento dos marcianos........... 111

    4 A perspectiva de Reid sobre o testemunho ........................................................ 115

    Perguntas................................................................ 120Leituras complementares................................... 121

    PARTE III JUSTIFICAO ........................................... 123

    6 Fundacionalismo .......................................... 125

    1 O argumento d regresso a favor dofundacionalismo tradicional................. 125

    2 Sellars e o mito do Dado.................... 1283 Contedo conceptual e no-conceptual 1314 O argumento da linguagem privada de

    Wittgenstein.............................................. 1335 Experincia e pensamento.................... 1386 Fundacionalismo moderado................. 146

    Perguntas................................................................ 151Leituras complementares................................... 152

    7 Coerentism o.................................................. 154

    1 Uma concepo holstica da justificao 1542 O conceito de coerncia............ 1573 Problemas do coerentismo........ 160

    3.1 O problema do isolamento.............. 1603.2 Sistemas alternativos de crenas coe

    rentes .................................................. 161

    9

  • 4 Teorias coerenciais da verdade........... 1645 Uma perspectiva coerentista da percep

    o................................................................ 1666 O acesso do sujeito ao seu prprio sis

    tema de crenas....................................... 168

    Perguntas................................................................ 170Leituras complementares................................... 171

    8 Internismo e externismo............................. 173

    1 Internismo................................................. 1742 Externismo................................................ 175

    2.1 A perspectiva fiabilista................... 1752.2 Explicaes causais do conheci

    mento .................................................. 1782.3 Teorias do rastreamento da ver

    dade .................................................... 179

    3 Argumentos a favor do externismo...... 1813.1 Conhecimento no-reflexivo......... 1813.2 Uma panaceia epistemolgica...... 183

    4 Argumentos contra o externismo........ 1854.1 Conhecimento e aco racionalmen

    te motivada....................................... 1864.2 Crenas afortunadas mas fiveis .... 188

    5 Dois tipos de conhecimento.................. 189

    Perguntas................................................................ 191Leituras complementares................................... 193

    PARTE IV C EPTIC ISM O .................................................. 195

    9 Cepticism o........................................................ 1971 Cepticismo cartesiano............................. 197

    1.1 Os sonhos e o gnio maligno....... 1971.2 Descartes vai ao cinema................. 203

    10

  • 2 Aceitar o cepticismo cartesiano............ 2072.1 Suspender a crena.......................... 2082.2 Jantar, gamo e conversa................ 209

    3 Contextualismo......................................... 2104 Externismo cognitivo.............................. 2145 A resposta epistemolgica externista ao

    cepticismo.................................................. 219

    Perguntas................................................................ 221Leituras complementares................................... 222

    10 O problema da induo.............................. 224

    1 Inferncias indutivas................................ 2242 O cepticismo indutivo de Hume............ 2253 Respostas ao cepticismo indutivo........ 228

    3.1 A concepo dedutiva da cincia dePopper................................................ 229

    3.2 Probabilidade.................................... 2313.3 A resposta fiabilista ao problema da

    induo.............................................. 2323.4 A resposta coerentista..................... 233

    4 O novo enigma da induo.................... 2345 Respostas ao novo enigma da induo 237

    5.1 Simplicidade..................................... 2375.2 Verdul no uma cor..................... 239

    Perguntas...... ......................................................... 241Leituras complementares................................... 241

    11 Epistemologia naturalizada....................... 243

    1 Quine e a epistemologia......................... 2431.1 O fracasso da epistemologia tradi

    cional .................................................. 2431.2 Quine e o cepticismo....................... 2451.3 Quine e o a priori.............................. 248

    11

  • 2 A natureza normativa da epistemologia 2543 Formas menos radicais de naturalismo 257

    Perguntas................................................................ 259Leituras complementares................................... 260

    PARTE V REAS DO CONHECIMENTO.............. 261

    12 Memria............................................................ 263

    1 Memria, crena e conhecimento........ 2632 Imagens da memria.............................. 2673 A teoria causal da memria................. 2704 Cepticismo e a realidade do passado.... 2755 A relao entre percepo, testemunho

    e memria................................................. 277

    Perguntas................................................................ 280Leituras complementares................................... 282

    13 Outras m entes................................................ 284

    1 Autoridade da primeira pessoa........... 2842 O problema das outras mentes e o so-

    lipsismo..................................................... 2873 O argumento por analogia.................... 2884 Ver mentes................................................ 2915 O argumento da linguagem privada re-

    visitado...................................................... 2936 Comportamentalismo.............................. 2957 Conhecimento terico da mente.......... 297

    Perguntas................................................................ 301Leituras complementares................................... 302

    14 Conhecimento m oral................................... 3051 Uma abordagem emprica da morali

    dade ............................................................. 3061.1 Utilitarismo....................................... 3061.2 Problemas do utilitarismo.............. 308

    12

  • 2 Uma abordagem a priori da moralidade 3112.1 Kant e o imperativo categrico...... 3122.2 Problemas da teoria moral de Kant 315

    3 Testemunho m oral................................... 3174 Cepticismo moral...................................... 322

    4.1 Relativismo........................................ 3224.2 Emotivismo....................................... 326

    Perguntas................................................................ 327Leituras complementares................................... 328

    15 D eu s.................................................................. 330

    1 Uma demonstrao a priori da existncia de Deus: o argumento ontolgico 330

    2 Justificao emprica da crena religiosa 3342.1 O argumento do desgnio.............. 3342.2 O argumento dos milagres............. 3382.3 Hume sobre os milagres........... ..... 339

    3 Percepcionar Deus.................................... 3414 A aposta de Pascal................................... 3455 Cepticismo, atesmo e agnosticismo.... 347

    Perguntas..............................................................350Leituras complementares................................... 351

    Glossrio......................................... ............................... 353Bibliografia.................... ................................................ 359Film es............................................................................ 374ndice onomstico......................................................... 377

    13

  • S'

    I

    I

    II

  • Prefcio

    Este livro destina-se prioritariamente aos alunos do ensino superior com mdulos de Introduo Episte- mologia ou Teoria do Conhecimento, bem como aos alunos da componente de teoria do conhecimento da disciplina de Filosofia do primeiro ciclo de estudos universitrios. Espero, no entanto, poder chegar a um universo de leitores mais vasto. A epistemologia uma das reas centrais da filosofia e qualquer pessoa que se interesse por filosofia poder, espero eu, encontrar aqui uma leitura gratificante.

    Ao longo do livro usei vrios exemplos retirados da literatura e, em especial, do cinema. As histrias ds filmes e dos livros so frequentemente do conhecimento geral, o que pode dar origem a animadas discusses nas aulas acerca dos aspectos filosficos do enredo ou da caracterizao das personagens de uma obra em particular. Esta interdisciplinaridade deve ser incentivada. A filosofia no deve ser vista como uma disciplina rida e acadmica, divorciada da vida quotidiana. Tempos houve ao longo da sua histria em que tal aconteceu: ocorre-nos de imediato o esteretipo dos filsofos medievais esgrimindo argumentos enigmticos para determinar quantos anjos caberiam numa cabea de alfinete. Ainda hoje, se atentarmos em certas

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  • IN T R O D U O T EO R IA DO C O N H E C I M E N T O

    revistas filosficas, podemos observar que muitos artigos de investigao so igualmente idiossincrticos e inacessveis. Existe o perigo de a filosofia se tornar inacessvel e desinteressante para as pessoas que vivem fora dos departamentos de Filosofia das universidades. Os problemas filosficos que iremos examinar neste livro so aqueles que dizem respeito ao conhecimento uma noo que faz parte do nosso dia-a-dia. Esses problemas vm sendo debatidos h milhares de anos e podem ser iluminados quer pela leitura de grandes filsofos do passado, como Plato, Descartes e Hume, quer pela interpretao das obras de escritores e cineastas que so eles prprios confrontados, ainda que indirectamente, com as mesmssimas questes.

    No final de cada captulo so apresentadas algumas perguntas com o intuito de incentivar o leitor a envolver-se de maneira crtica nestas questes. (Os professores podero us-las como perguntas de testes ou como tpicos de discusso nas aulas). E, medida que for avanando no livro, o leitor pode e deve pensar nos seus prprios exemplos e contra-exemplos, avaliando os argumentos apresentados e considerando at que ponto compreendeu os vrios temas e conceitos expostos. Dever tambm ter presente que foi includo um glossrio no final do livro no qual apresentada a explicao de alguns termos-chave; estes termos so assinalados a negrito quando ocorrem pela primeira vez.

    De um modo geral, procurei ser neutral, no advogando qualquer teoria epistemolgica em particular e apresentando ao leitor as vrias respostas alternativas para os problemas em discusso. A espaos, no entanto, poder transparecer a minha preferncia por um certo tipo de abordagem. Mas isto no mau em si mesmo. Em primeiro lugar, uma tentativa sistemtica de no assumir uma posio especfica pode gerar um

    16

  • PR E F C I O

    texto excessivamente barricade demasiados parece que, pode ser visto como, de acordo com alguns, etc. o que resulta normalmente num estilo pouco fluido e deselegante. Em segundo lugar, nunca devemos perder de vista que estes debates so sempre muito vivos e, de quando em vez, o leitor pode e deve discordar de mim; ao faz-lo, torna-se tambm um filsofo.

    Gostaria de agradecer a alguns amigos que leram e comentaram as verses preliminares deste livro. Bernardette Evans sugeriu vrias alteraes de estilo e de substncia ao texto, revelando um sentido muito agudo para certo tipo de incongruncias (em que, como diria Lou Reed, ele se torna numa ela). O debate com o Dr. Martin Hall moldou boa parte do livro, e o captulo 6 em especial o nosso debate sobre o fundacionalismo dura h j quase uma dcada. Um agradecimento especial a Matthew Gidley, que, no sendo filsofo, declarou no ter entendido uma linha do livro e sentir-se, durante a sua reviso do texto, como um co a quem tivessem acabado de contar uma anedota. (O que um comentrio muito wittgenstei- niano, embora eu no lho possa dizer visto que ele j considera o livro um argumento de peso a favor do alistamento no servio militar.) Vrios leitores da lista de discusso Philos-L sugeriram exemplos pertinentes. Obrigado tambm a Max Kolbel, a Laurence Gold- stein e a Rob Hopkins pelos seus comentrios sobre captulos especficos, e a Dan 0'Bannon por me autorizar a citar os dilogos do seu filme Dark Star. Obrigado ainda a Elizabeth Molinari, Ellen McKinlay, Emma Hutchinson, Andrea Dugan, Ann Bone e John Thompson da editora Polity. Este o meu primeiro livro e no teria sido possvel escrev-lo sem o apoio e o estmulo de Greg McCulloch e Harold Noonan durante os meus estudos de ps-graduao. Os meus

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  • IN T RO D U O T EO R IA DO C O N H E C I M E N T O

    alunos, em especial os que frequentaram a minha disciplina de Teoria do Conhecimento Emprico (2001-4), tiveram grande influncia no meu interesse pela epistemologia e por grande parte dos temas deste livro. Tenho de admitir que Teoria do Conhecimento Emprico poder parecer um tema um pouco rido menos aliciante do que o Existencialismo, talvez, ou

    do que a Filosofia da Mente ou a Esttica mas atre- vo-me a dizer que o interesse manifestado por muitos destes alunos, bem como os seus contributos durante as aulas, tornaram estas aulas divertidas. O presente livro procurar dar continuidade ao esprito dessas aulas.

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  • PARTE I

    INTRODUO AO CONHECIMENTO

  • A teoria do conhecimento1

    1 Epistemologia

    A teoria do conhecimento levanta certas questes muito amplas e profundas acerca dos sujeitos de conhecimento e do conhecimento em si. O que conhecer? Como distinguir o conhecimento da mera crena? E ser o conhecimento possvel? A teoria do conhecimento tambm designada epistemologia, a partir da palavra grega para conhecimento, episteme. A epistemologia tem uma longa histria: medida que avanarmos na leitura deste livro iremos envolver-nos num dilogo que comeou h mais de dois mil anos. No captulo que se segue iniciaremos a nossa anlise do conhecimento recorrendo a Plato (c. 428-347 a. C.), e ao longo da nossa investigao iremos ver o que os grandes pensadores do passado nos disseram: Ren Descartes (1595-1650) e David Hume (1711-1776) assumiro especial relevo. A epistemologia continua a ser uma rea de investigao vibrante, e muitas das posies e teorias que iremos examinar surgiram nas ltimas dcadas. Este interesse persistente na epistemologia um reflexo da enorme importncia que o conhecimento tem nas nossas vidas. Em primeiro lugar, instrumen-

    21

  • IN T R O D U O T EO R IA DO C O N H E C I M E N T O

    talmente til: recorrendo ao conhecimento cientfico, por exemplo, procuramos explicar, controlar e prever o comportamento do mundo natural. Segundo, mesmo quando no tem utilidade prtica, o conhecimento continua a ser encarado como algo que vale a pena obter. bom em si mesmo. Quando, no filme A Fria da Razo (1971), um criminoso obrigado a entregar a sua arma ao Inspector Harry Callahan, procura depois saber se Harry ainda tinha alguma bala na pistola ou se estivera apenas a fazer bluff Tenho de saber. Esta informao no ter qualquer utilidade prtica para o bandido visto encontrar-se j detido, em qualquer dos casos mas um conhecimento que ele persegue, ainda assim.

    A epistemologia e a metafsica so os dois tpicos centrais da filosofia. A primeira prende-se com a natureza e a possibilidade do conhecimento; a segunda diz respeito natureza daquilo que existe. Alguns exemplos de questes metafsicas so: existiro coisas no-fsicas? Podero existir outras mentes alm da nossa? E ser que Deus existe? Veremos como todas estas questes se entrecruzam com as nossas investigaes epistemolgi- cas. A par da epistemologia, iremos, pois, estudar algumas questes metafsicas. A epistemologia est muito intimamente relacionada com outras reas da filosofia, pelo que seremos introduzidos a alguns temas da filosofia da mente, da filosofia da religio e da tica.

    2 A estrutura do livro

    2.1 Parte I: Introduo ao conhecimento

    Para estudar um dado assunto, precisamos de ter uma ideia preliminar do gnero de coisas que vamos investigar. As bilogas tm de saber do que tratam

    22

  • A T E O R IA DO C O N H E C I M E N T O

    quando falam de armadilhos, clulas ou mitocn- drias. O mesmo vale para as epistemlogas: estas, no entanto, ocupam-se de conceitos como conhecimento, justificao e crena, e do modo como estes se relacionam entre si. Aqui e no prximo captulo comearemos a debruar-nos sobre o que realmente significa conhecimento, ao passo que no resto do livro iremos investigar a natureza do conhecimento e os problemas a ele associados. Ocupar-nos-emos, em primeiro lugar, do conhecimento factual. Eu posso saber que Glasgow fica na Esccia, que as Meditaes foram escritas por Descartes e que Berenice usa o cabelo tigela. Este gnero de conhecimento por vezes designado saber-que ou conhecimento proposicional; proposicional porque expresso em termos do conhecimento que eu tenho de certas proposies ou pensamentos verdadeiros: sei que a proposio Glasgow fica na Esccia verdadeira. Para alm dos termos sei que, o conhecimento factual expresso atravs de locues como sei porque, sei onde, sei quando, sei se, sei quem e sei o que. Tais modos de falar indicam que temos conhecimento de certos factos: sabendo onde deixei as minhas chaves, sei que elas esto no caf; sabendo quando comea o programa, sei que ele comea s nove da noite. Este tipo de conhecimento pode igualmente ser expresso sem recurso ao verbo saber. Posso dizer que as minhas chaves esto ali no caf ou que o programa est a comear agora. Estas afirmaes no deixam de ser expresses de conhecimento factual.

    H outros tipos de conhecimento alm do conhecimento factual. Um deles o saber-como: eu sei como andar de bicicleta e como fazer uma tequilha sunrise. Este tipo de conhecimento por vezes designado conhecimento por aptido. Precisamos de ser cuidadosos neste ponto, pois possvel que eu tenha este

    23

  • IN T R O D U O T EO R IA DO C O N H E C I M E N T O

    gnero de conhecimento sem possuir a aptido em causa. Posso ser impedido de exercer uma dada aptido por constrangimentos de ordem prtica, ainda que saiba como faz-lo: posso ser impedido de andar de bicicleta por ter perdido momentaneamente o equilbrio ou de fazer uma tequilha sunrise por j no ter mais groselha. Saber como fazer certas coisas pode implicar a posse do conhecimento factual. Para eu saber jogar snooker, tenho de saber que a bola azul vale cinco pontos e que tenho de embolsar uma bola vermelha antes de poder embolsar uma bola de cor. Outras aptides, porm, no requerem o conhecimento de quaisquer factos. Posso desempenhar aces bsicas como andar, nadar ou falar sem ter de saber que tenho de fazer movimentos especficos com o meu corpo ou boca para esse efeito: possvel saber como sem o conhecimento proposicional relevante.

    Um terceiro tipo de conhecimento o conhecimento por contacto. Conheo fulana porque j estive com ela; conheo aquela melodia porque j a ouvi; e conheo o parque natural do Gers porque j l estive. Posso possuir tal conhecimento sem saber quaisquer factos acerca destas coisas. Posso, por exemplo, conhecer uma melodia sem saber como se chama, ou sem que tenha quaisquer crenas a seu respeito; conheo-a, pura e simplesmente. Outras lnguas empregam termos distintos para designar este tipo de conhecimento. Em francs, aplica-se o verbo savoir para referir o conhecimento factual e connatre para designar o conhecimento por contacto. Em alemo os verbos relevantes so wissen e kennen1. Assim, o conhecimento pode envolver contacto; diferentes aptides prticas, intelectuais ou fsicas; e o conhecimento de certas verda

    1 Tambm em portugus se usam os verbos saber e conhecer, respectivamente. (N. do R.)

    24

  • A T EO R IA DO C O N H E C I M E N T O

    des ou factos. Este livro ocupa-se essencialmente deste terceiro tipo de conhecimento.

    2.2 Parte II: Fontes do conhecimento

    O conhecimento factual pode ser adquirido de diversas maneiras. possvel tomar conhecimento de certas verdades apenas pensando sobre o assunto em questo. Sei que no existem tringulos com tantos lados como um quadrado. No preciso de desenhar uma sucesso de tringulos e quadrados para saber que assim ; basta-me usar o meu poder de raciocnio. Este tipo de conhecimento designado conhecimento a priori (significando isto anterior experincia) e ser o tema do captulo 3. No entanto, este livro centrar-se- no conhecimento que adquirido por meio da experincia, ou aquilo a que se chama conhecimento emprico ou a posteriori (o que significa a partir da experincia). H duas fontes possveis para este tipo de conhecimento: pode ser obtido por meio da nossa prpria percepo do mundo (captulo 4), ou ouvindo o que os outros dizem ou lendo o que escreveram (captulo 5).

    2.3 Parte III: Justificao

    Tradicionalmente, considera-se que o conhecimento requer justificao: para eu ter conhecimento, preciso de ter crenas verdadeiras e boas razes ou justificaes para as sustentar. Na Parte III focaremos a nossa ateno neste conceito-chave de justificao. Mas primeiro precisamos de distinguir cuidadosamente o sentido epistemolgico de justificao de outras acepes do termo. A ideia fundamental que iremos depois desenvolver (e questionar) a de que as minhas crenas so epistemologicamente justificadas

    25

  • IN T R O D U O T EO R IA DO C O N H E C I M E N T O

    se eu tiver boas razes para pensar que so verdadeiras.

    A principal funo da justificao constituir um meio para aceder verdade [...]. Se a justificao epistmica no fosse conducente verdade [...], se a descoberta de crenas epistemicamente justificadas no aumentasse substancialmente a probabilidade de descobrir novas crenas verdadeiras, ento, a justificao epistmica seria irrelevante para o nosso objectivo cognitivo principal e o seu valor seria duvidoso. (Bonjour, 1985, pp. 7-8)

    H, no entanto, formas no-epistmicas de avaliar as crenas. O facto de eu possuir certas crenas pode ajudar-me a ser bem-sucedido de diversas maneiras. H pessoas que acreditam que o pensamento positivo pode ajudar-nos a recuperar de uma doena. Se eu pensar desta maneira, poderei, talvez, enfrentar melhor uma situao desse tipo, no caso de vir a adoecer (mesmo que tais crenas sejam falsas). Num certo sentido, um pensamento deste tipo pode justificar-se atendendo aos benefcios que da resultaro para o meu estado de esprito. Poder-se- chamar a isto uma justificao pragmtica por oposio justificao epistmica. H um argumento filosfico para acreditar na existncia de Deus que assenta neste conceito de justificao (que iremos examinar na seco 4 do captulo 15). A chave deste argumento que devemos acreditar em Deus, no porque haja boas provas da Sua existncia, mas em virtude das compensaes que semelhante crena nos traria caso se revelasse verdadeira; o que significaria, por exemplo, que teramos uma vida eterna no paraso.

    H outros tipos de justificao que importa distinguir da noo epistmica. Podemos ter aquilo a que se pode chamar uma justificao ps-factual. Na pea

    26

  • A T E O R IA DO C O N H E C I M E N T O

    Um Elctrico Chamado Desejo, Stanley Kowalski acha que sobreviveu batalha de Salerno por ter acreditado na sorte.

    Stanley: Sabes o que a sorte? A sorte acreditar que se tem sorte. Por exemplo, quando eu estava em Salerno, acreditava que tinha sorte. Achava que havia uma chance em cinco de me safar mas que eu ia conseguir sobreviver... e consegui. Se queremos sair vencedores desta corrida de ratos temos de acreditar que temos sorte. (T. Williams, 1962, p. 216)

    Stanley sobreviveu mesmo e, nesse sentido, existe uma perspectiva em que esta crena era justificada, justificando-se na medida em que se tornou verdadeira. No tinha, no entanto, justificao epistmica alguma, pois Stanley no tinha qualquer razo fundamentada para acreditar que seria um dos afortunados sobreviventes as suas chances de sobreviver eram poucas (como ele prprio admite) tinha apenas f. Pode haver tambm razes de ordem eminentemente tica para sustentar certas crenas. Podemos dizer que se justifica acreditar naquilo que uma amiga nos diz simplesmente porque nossa amiga. Neste caso, a justificao poder no ser pragmtica nem epistmica: pode no nos trazer benefcio algum, e a pessoa em questo talvez nem devesse merecer a nossa confiana. Ainda assim, no deixa de haver um sentido em que faramos bem em aceitar o que ela nos diz. Temos, pois, de ter o cuidado de nos focarmos num tipo de justificao que seja conducente verdade, e no nestas formas no-epistmicas.

    Iremos deter-nos em dois debates acerca da justificao epistmica. Em primeiro lugar, o debate relativo sua fonte. Os empiristas sustentam que a justificao das nossas crenas se baseia na nossa experincia

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    perceptual do mundo. So fundacionalistas porque, do seu ponto de vista, essa experincia constitui os fundamentos justificatrios de todas as nossas crenas empricas (captulo 6). Os coerentistas negam esta tese. Para eles, uma crena particular justificada se for consistente com o resto das nossas crenas; a experincia no desempenha aqui uma funo justificatria (captulo 7). Em seguida, examinaremos o debate entre o internismo e o externismo. Tradicionalmente, o conhecimento consiste numa crena verdadeira justificada e, para que uma crena seja justificada, o sujeito tem de ser capaz de reflectir sobre as razes que justificariam que a sua crena seja verdadeira. Este um argumento internista: o que distingue o conhecimento de uma crena verdadeira algo que cognitivamente acessvel ao sujeito. Contudo, esta perspectiva foi recentemente contestada pelos externistas, que sustentam que um sujeito no tem de ser capaz de reflectir sobre o que que distingue o seu conhecimento de uma crena verdadeira (captulo 8).

    2.4 Parte IV: Cepticismo

    Nas partes I, II e III do livro partiremos do princpio de que possumos, efectivamente, conhecimento emprico, e investigaremos o tipo de justificao que as nossas crenas devero ter para tal. Na parte IV, porm, esta suposio ser questionada. H certos argumentos de natureza cptica que ameaam todas as nossas pretenses ao conhecimento. O cepticismo pode ser localizado, incidindo numa categoria de factos em particular: h aqueles que defendem, por exemplo, que no podemos ter conhecimento algum sobre Deus. Mas tambm pode ser global, afirmando que no podemos ter conhecimento algum acerca seja do

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    que for. Descartes avana um argumento importante a favor desta concluso; desde ento, a epistemologia tornou-se a disciplina central da filosofia, que passou a ter como tarefa primordial aplacar as preocupaes cpticas suscitadas por este pensador. No captulo 9 debruar-nos-emos sobre o cepticismo cartesiano (cartesiano, a partir do nome de Descartes), e examinaremos algumas das tentativas que foram feitas parao refutar. Como veremos, Descartes no era ele prprio um cptico, e apresentou uma refutao do seu prprio cepticismo. A maior parte dos filsofos, porm, no considera os seus argumentos positivos convincentes. No captulo 10 examinaremos o argumento de Hume sobre a tese de que no temos conhecimento do que no observado. Ao contrrio de Descartes, Hume no considera que o seu cepticismo possa ser refutado. A concluso que ele retira daqui que no nos devemos preocupar com a exigncia de apresentar uma teoria filosfica sobre como o nosso pensamento emprico pode ser justificado pois no pode; em vez disso, devemos ocupar-nos da tarefa cientfica de apresentar uma explicao causal para o facto de termos as crenas que temos. Podemos ver nesta estratgia a inspirao para o moderno projecto da epistemologia naturalizada (captulo 11).

    Para dar conta da importncia histrica e metodolgica do cepticismo cartesiano, grande parte dos manuais e cursos de epistemologia comeam por analisar este tpico. Neste livro, porm, enveredarei por um caminho diferente. O espectro do cepticismo ser suscitado na parte IV do livro, depois de discutidas as fontes do conhecimento e a estrutura e natureza da justificao. A razo que justifica esta abordagem dupla. Primeiro, ningum acredita verdadeiramente nos argumentos cpticos: 'o cptico' acima de tudo uma construo literria, uma personificao de certos

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    argumentos desafiadores, mais do que um opositor na vida real (M. Williams, 2001, p. 10). O tema do cepticismo algo paradoxal: os argumentos de Descartes e Hume so logicamente persuasivos o raciocnio parece ser slido (ver inferncia) no entanto as concluses cpticas a que nos conduz so psicologicamente muito difceis de aceitar. Em segundo lugar, dei-me conta de que comear com o cepticismo pode promover um certo tipo de atitude pouco construtiva. Se nos deixarmos persuadir pelos argumentos cartesianos e no conseguirmos encontrar uma maneira de os rebater , correremos o risco de no levar a teoria do conhecimento a srio: Se no podemos aceder ao conhecimento, ento, qual o interesse em estudar tal noo? Neste livro, no entanto, iremos investigar conceitos como percepo, testemunho e justificao num sentido que nos permita ver como eles fundamentam o conhecimento, um conhecimento que se presume possuirmos. medida que formos progredindo no livro, as preocupaes cpticas comearo a insinuar-se, assumindo plena expresso na parte IV. Por esta altura, no entanto, teremos adquirido uma concepo rica das noes epistemolgicas relevantes, o que nos permitir no s compreender melhor o cepticismo, como descobrir a melhor maneira de o contrariar. -

    2.5 Parte V: reas do conhecimento

    Por fim, consideraremos a funo epistmica da memria (captulo 12), bem como se podemos ou no ter conhecimento acerca das mentes dos outros (captulo 13), da moral (captulo 14), e de Deus (captulo 15). O principal propsito destes captulos finais aclarar as noes epistemolgicas apresentadas nas primeiras quatro partes do livro; voltaremos a debru-

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    ar-nos, pois, sobre o problema das fontes do conhecimento, da justificao e do cepticismo. Estes captulos funcionaro tambm como introdues teis filosofia da mente, tica e filosofia da religio.

    3 Leituras e estudos complementares

    No final de cada captulo irei sugerir algumas leituras complementares, que podero ser de vrios tipos. A maior parte dos estudos de filosofia publicada, no em livros, mas em revistas. Journal ofPhilosophy, Analysis e Philosophical Reviezv, entre muitas outras revistas, publicam regularmente artigos importantes na rea da epistemologia. A maior parte destes ttulos hoje acessvel por via electrnica atravs da internet, pelo que devemos procurar informar-nos na nossa biblioteca sobre todas as possibilidades de acesso aos mesmos por esta via. A internet tem vindo a tornar-se cada vez mais til e h mltiplas revistas, e-books e websites disponveis online consagrados aos temas epistemolgicos. Segue-se uma pequena lista de hiperligaes teis. Outras, mais especficas, sero referidas nas respectivas seces de bibliografia aconselhada.

    Pgina sobre epistemologia de Keith DeRose: http: / / pantheon.yale.edu/~kd4 7 / e-page.htm Links sobre epistemologia: www.epistemlinks.com/The Epistemology Research Guide: www.ucs.louisians.edu/~kak7409/

    EpistemologicalResearch.htm Certain Doubts (blogue sobre epistemologia): www.missouri.ed-kvanvigj/certain doubts/

    Existe, no entanto, um problema de controlo de qualidade com a internet, pelo que faremos bem em

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  • IN T R O D U O T EO R IA DO C O N H E C I M E N T O

    consultar os nossos orientadores ou professores sobre a qualidade dos materiais obtidos por essa via.

    As compilaes ou antologias de artigos fundamentais podero tambm revelar-se muito teis. Nas seces de leituras complementares indicarei aquelas que versam sobre pontos especficos. Segue-se uma pequena lista de algumas antologias em lngua inglesa que cobrem a maior parte dos tpicos das partes I-IV deste livro.

    S. Bernecker e F. Dretske (eds.), Knowledge: Readings in Contemporary Epistemology (2000).

    E. Sosa e J. Kim (eds.), Epistemology: An Anthology (2000). E. Sosa (ed.), Knowledge and Justification (1994).L. Pojman (ed.), The Theory of Knowledge (2003).L. Alcoff (ed.), Epistemology: The Big Questions (1998).

    H bons manais e compndios que fornecem tanto um resumo das questes-chave como interpretaes filosficas originais. Este o objectivo do meu livro, e recomendo os seguintes pela mesma razo.

    R Audi, Epistemology: A Contemporary Introduction to the Theory of Knowledge (1998).

    J. Dancy, Introduction to Contemporary Epistemology (1985). N. Everitt e A. Fisher, M odern Epistemology: A New

    Introduction (1995).A. Morton, A Guide Through the Theory of Knowledge (1977). M. Williams, Problems of Knowledge: A Critical Introduction

    (1995).

    J. Dancy e E. Sosa (eds.), A Companion to Epistemology (1992), ainda uma til enciclopdia que contm entradas breves relativas a todas as questes importantes que iremos analisar.

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  • O que o conhecimento?2

    1 Anlise filosfica

    O dilogo que se segue o comeo de uma conversaque costumo ter com um amigo enquanto jogamos umapartida de snooker.

    Andy: Ento, quem o melhor jogador de sempre?Dan: Isso bvio: O Alex Hurricane Higgins.Andy: Como que pode ser? Ele s ganhou dois cam

    peonatos do Mundo; o Stephen Hendry ganhou sete.Dan: Os melhores jogadores nem sempre ganham mais

    jogos.Andy: Ento como que eu posso saber quem o

    melhor jogador?Dan: Vendo qual o que tem mais olho para o jogo.Andy: Isso s pode ser aquele que ganha mais jogos.Dan: No, o jogador que faz as jogadas em que mais

    ningum seria capaz de pensar.Andy: Isso no pode ser assim. Ningum optaria por

    fazer a minha ltima jogada, e no entanto no souo melhor jogador de snooker de todos os tempos.

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  • IN T R O D U O T EO R IA DO C O N H E C I M E N T O

    O que se est aqui a fazer determinar o que que entendemos por o melhor jogador, para depois, caso estejamos de acordo sobre isto, podermos ver qual o jogador real que encaixa nesta descrio. nisto que consiste a anlise filosfica. Ao prosseguirmos esta anlise, procuramos formular regras que especifiquem ao que que os nossos conceitos se aplicam; ou, dito de outro modo, procuramos determinar as condies necessrias e suficientes para a aplicao dos nossos conceitos. Muitos conceitos so fceis de analisar. Podemos perguntar-nos o que um carburador e analisar o uso que fazemos do termo carburador para obter uma resposta correcta a essa questo. Ao faz-lo, podemos concluir que o termo se refere a um mecanismo de um motor que faz a mistura do ar com a gasolina para que haja uma combusto eficaz. Isto d conta do que um carburador. Outras anlises, no entanto, so mais difceis de realizar. Neste captulo iremos investigar algumas das reviravoltas a que a anlise do conceito de c o n h e c i m e n t o esteve sujeita ao longo do tempo, bem como alguns dos problemas com que se confrontou. (Os nomes dos conceitos iro aparecer em letras maisculas mais pequenas.)

    2 A definio tripartida do conhecimento

    Temos muitas crenas acerca do mundo e partimos do princpio de que boa parte delas verdadeira. importante notar, no entanto, que ter uma crena verdadeira no equivale necessariamente a ter conhecimento. Posso ter crenas verdadeiras acidentalmente. Posso acreditar que o Xavier espanhol por pensar incorrectamente que os espanhis so as nicas pessoas que tm nomes comeados por X. Posso estar

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  • O Q U E O C O N H E C I M E N T O ?

    certo o Xavier espanhol mas tive sorte do ponto de vista epistmico; a minha crena revelou ser verdadeira apesar de o meu raciocnio ser incorrecto. Uma anlise do conhecimento deve excluir acasos deste tipo e mostrar porque que eles no constituem conhecimento. Para isso, considera-se que o conhecimento consiste numa crena verdadeira justificada. Para que eu saiba que o Xavier espanhol preciso que se verifiquem as seguintes condies:

    1 verdade que o Xavier espanhol.2 Tenho de acreditar que ele espanhol.3 A minha crena tem de ser justificada.

    E, mais geralmente: um sujeito S sabe que p, se se verificar que:

    1 p verdade.2 S acredita que p.3 S tem uma justificao para a sua crena de que p.

    Esta a anlise ou definio tripartida do conhecimento. As trs condies so individualmente necessrias para o conhecimento o conhecimento consiste sempre numa crena, verdadeira, justificada e so conjuntamente suficientes para que haja conhecimento, isto , o conhecimento existe sempre que sejam satisfeitas estas trs condies.

    O conhecimento construdo com base na crena para saber que p, temos de acreditar que p e as crenas s podem traduzir conhecimento se forem satisfeitas certas outras condies. Uma dessas condies que as nossas crenas sejam verdadeiras. Argumentmos, no entanto, que isso no suficiente, visto podermos ter crenas acidentalmente. A justificao tambm , portanto, necessria. Em que consiste a

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    justificao uma questo altamente controversa, que iremos explorar neste captulo e ao longo do livro. Comearemos pela sugesto plausvel de que temos crenas justificadas quando temos boas razes para pensar que as nossas crenas so verdadeiras, isto , quando temos provas slidas que as sustentem. As razes desta explicao remontam aos dilogos de Plato, escritos h mais de 2000 anos.

    T e e t e t o : [...] uma vez ouvi dizer que a crena verdadeira acompanhada de uma explicao racional conhecimento, ao passo que a crena verdadeira no acompanhada de uma explicao racional d istinta do conhecimento. (Plato, 1987, 201 c-d)

    Semelhante concepo de justificao e conhecimento um mero ponto de partida, que reclamar, sem dvida, maior elaborao, e que podemos mesmo ser levados a rejeitar. Nas trs seces seguintes iremos testar a anlise tripartida do conhecimento considerando o modo como aplicaramos os conceitos de c o n h e c i m e n t o , j u s t i f i c a o e c r e n a em cenrios reais e hipotticos. Se pudermos imaginar um caso de crena verdadeira sem conhecimento, ou de conhecimento sem crena verdadeira, ento, teremos uma indicao de que a nossa anlise incorrecta.

    3 Sero a justificao e a crena necessrias ao conhecimento?

    Nesta seco iremos questionar a premissa de que a crena e a justificao so necessrias ao conhecimento. Gosto de jogar xadrez e tenho uma certa intuio para este jogo. Na partida que estou a jogar neste momento no meu computador, creio poder forar um

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    xeque-mate em meia dzia de jogadas, mas no consigo descobrir como. No me possvel apresentar- -vos as razes por que penso haver aqui uma sequncia de jogadas vitoriosa; simplesmente, parece-me ser esse o caso. Recorro ento ajuda de um amigo que muito melhor jogador de xadrez do que eu e que, tal como eu pensava, me mostra as jogadas correctas. Numa situao deste tipo, sinto-me tentado a dizer: Eu bem te disse, eu sabia que estava em posio de ganhar. Isto no significa que eu apenas tenha conhecimento quando descubro as jogadas vitoriosas; eu tinha o conhecimento desde o primeiro momento, ainda antes de o meu amigo ter apresentado a justificao para a minha pretenso. A crena verdadeira , portanto, suficiente para o conhecimento; a justificao nem sempre necessria.

    O leitor poder estar agora preocupado a pensar que uma explicao deste tipo permite que um palpite correcto seja tomado por conhecimento. Mas no tem razo para isso. Eu no sabia que a moeda que atirei ao ar iria cair de cara para cima, ainda que tivesse alvitrado correctamente que tal iria acontecer. No obstante, essa possibilidade pode ser aceite por aqueles que consideram que a hiptese anterior indica que uma crena verdadeira condio suficiente para o conhecimento. No caso da moeda, eu no acredito que a moeda ir cair com a cara voltada para cima; trata- -se de um mero palpite. Uma crena requer algum tipo de empenho srio por parte do sujeito tenho mesmo de pensar que ela verdadeira e um palpite no traduz esse gnero de empenho. Eu no sabia que a moeda iria cair com a cara voltada para cima porque nem sequer tinha a crena relevante. No jogo de xadrez, no entanto, no me limito a fazer um palpite: acredito fortemente que h uma sequncia de jogadas vitoriosas minha disposio. H casos, portanto, em

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    que posso ter conhecimento sem ter justificao para as minhas crenas verdadeiras. (No captulo 8 continuaremos a investigar se podemos ter conhecimento sem justificao.)

    Consideremos agora a maneira como normalmente falamos acerca do conhecimento e da crena. Seria bizarro dizer: Sei que hoje quarta-feira e acredito que quarta-feira. Pode argumentar-se que, quando adquirimos conhecimento, perdemos a crena relevante, ou seja: o conhecimento substitui a crena. Ao sentir o cheiro de um po de alho poderei dizer: Eu no acredito que ser saboroso, eu sei que ser. Estes exemplos sugerem que o conhecimento incompatvel com a crena, isto , que podemos ter uma coisa ou outra, mas no ambas simultaneamente. Parecem indicar tambm, embora de modo menos evidente, que por vezes possvel ter conhecimento sem ter crena. O exemplo que se segue, adaptado de Colin Radford (1966), vem apoiar esta linha de reflexo.

    Quando eu era mais novo, a minha av costumava passear comigo pelo seu jardim e ensinava-me os nomes de muitas plantas; essas tardes, no entanto, foram largamente esquecidas por mim e hoje penso no saber grande coisa acerca de plantas. Uma noite, porm, ao assistir a um concurso televisivo chamado University Challenge, deparo com um quadro de escolha mltipla com imagens de flores, e as respostas que lano televiso esto todas correctas (para grande espanto dos meus amigos). Para mim, estas respostas so meros palpites: No sei bem, aquilo uma genciana, e aquilo ali hummmm um nastrcio. Eu no acredito que estas sejam as respostas certas, ainda que elas estejam reiteradamente correctas. Penso que estou apenas com muita sorte. Todavia, neste caso parece ser plausvel afirmar que disponho, efectivamente, de conhecimento: o conhecimento que adquiri com a minha av. Pode

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    haver, portanto, conhecimento sem crena. (Pode mesmo? E pode haver conhecimento sem justificao? Sero estes exemplos realmente convicentes?)

    4 Os casos de Gettier

    O ataque mais influente que foi feito anlise tripartida encontra-se no artigo de Edmund Gettier, A Crena Verdadeira Justificada Conhecimento? (1963). Este autor props certas situaes hipotticas em que as pessoas tm crenas verdadeiras justificadas apesar de no terem conhecimento. Se estes exemplos forem convincentes, ento, isso mostraria que o conhecimento no pode ser identificado com a crena verdadeira justificada. Os casos imaginados por Gettier so contra-exemplos anlise tripartida. Gettier no questiona se a justificao, a verdade e a crena so necessrias ao conhecimento; afirma que elas no so conjuntamente suficientes: estas trs condies podem ser todas satisfeitas sem que o sujeito tenha conhecimento. Eis um exemplo ao estilo de Gettier. A partida de futebol entre Inglaterra e Alemanha est a ser transmitida no caf ao fundo da minha rua. Ao ouvir um coro de aplausos, conveno-me de que a Inglaterra acabou de marcar, e marcaram mesmo: o resultado agora 1-0. A minha crena verdadeira e tambm justificada: o clamor que vem l de dentro d-me boas razes para pensar que a equipa inglesa acabou de marcar um golo. No entanto, os aplausos que ouvi tinham afinal origem no bar em frente, que no tem televiso e onde, em vez disso, est a decorrer um concurso de karaoke. E uma mera coincidncia que o cantor do bar em frente tenha acabado a sua arrebatada verso de I Will Survive ao mesmo tempo que a Inglaterra marcava um golo. A minha crena verdadeira ,

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    portanto, fruto da sorte e por essa razo no equivale a conhecimento. Este exemplo mostra que podemos ter crenas verdadeiras justificadas acidentalmente, e que a definio tripartida no apresenta, por isso, condies suficientes para o conhecimento.

    Outro exemplo deste gnero pode ser encontrado na pea de Oscar Wilde, A Importncia de se Chamar Ernesto. Algernon tem um amigo que pensa chamar-se Ernesto. O seu verdadeiro nome, no entanto, Jack. Na primeira cena, Algernon espreita o interior da cigarreira do amigo e encontra a inscrio: Para o meu querido Tio Jack, com muito amor da sobrinha Ceclia. Jack tem de admitir que esse o seu verdadeiro nome. Algernon no acredita nele e apresenta provas que justificam que o seu nome tem de ser Ernesto.

    Sempre me disseste que te chamavas Ernesto. Apresentei-te a toda a gente como Ernesto. Respondes pelo nome de Ernesto. Tens cara de Ernesto. s a pessoa com o ar mais ernesto que eu j conheci em toda a minha vida. E perfeitamente absurdo dizeres que no te chamas Ernesto. Vem nos teus cartes e tudo. Aqui est um: Sr. Ernesto Worthing, B.4, The Albany. Vou guardar isto como prova de que te chamas Ernesto, para o caso de alguma vez o tentares negar a mim, Gwendolyn ou a quem quer que seja. (Wilde, The Importance o f Being Earnest, 1995, acto i)

    No final da pea, Jack descobre que foi efectivamente baptizado com o nome Ernesto. Algernon tem uma crena verdadeira justificada, a qual foi, no entanto, ditada pela sorte; o facto de Jack ter adoptado o nome Ernesto resulta de uma enorme coincidncia na histria contada por Wilde. Ele no sabe, portanto, que o nome do seu amigo Ernesto. Mais uma vez, temos um contra-exemplo definio tradicional: um caso de crena verdadeira sem conhecimento. (O leitor po-

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    der agora imaginar um exemplo de Gettier inventado por si e t-lo presente medida que avanarmos na matria do deste captulo, a fim de avaliar como as respostas da seco que se segue poderiam aplicar-se a esse exemplo em particular.)

    Iremos ver quatro tipos de resposta a Gettier: i) na prxima seco examinaremos o argumento que sustenta haver algo de errado nas alegadas justificaes apresentadas nos exemplos de Gettier, ou melhor, que o que temos nesses casos no chega a ser uma justificao. Ter conhecimento implica satisfazer uma noo de justificao mais rica, e os sujeitos dos casos de Gettier no tm uma tal justificao. Precisamos, portanto, de dizer quais so as condies necessrias para que as nossas crenas sejam justificadas, condies essas que no so satisfeitas pela minha crena acerca do jogo de futebol nem pela crena de Algernon acerca do nome do seu amigo; ii) na seco 6 deste captulo iremos deter-nos no argumento de que a crena e a justificao devem ser explicadas em termos de conhecimento, e no o inverso, como sucede na explicao tradicional; iii) na seco 7, argumentar-se- que a busca de uma definio de conhecimento poder no ser, afinal, relevante; iv) por fim, no captulo 8, iremos examinar a resposta externista a Gettier. Em traos gerais, a ideia que no precisamos de estar cientes do que que propicia justificao s nossas crenas. Certo tipo de teorias externistas sustentam que, para a minha crena acerca da partida de futebol ser justificada, ela teria de ser causada por esse evento. No exemplo apresentado, no entanto, a minha crena causada pelo concurso de karaoke e no pela partida de futebol; por essa razo, no tenho uma crena justificada e por isso este caso no constitui, deste ponto de vista, um contra-exemplo anlise tradicional.

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    5 Noes mais ricas de justificao

    5.1 Infalibilidade

    Pode argumentar-se que para haver conhecimento temos de ter razes conclusivas a sustentar as nossas crenas, razes que no poderamos possuir se essas crenas fossem falsas; estas razes implicariam, portanto, que as nossas crenas fossem infalveis. No tenho razes desse tipo para sustentar a minha crena acerca do jogo de futebol. Dadas as provas de que dispunha, poderia estar errado (de facto, no estivera presente na partida); no tinha, portanto, uma crena justificada de que a Inglaterra tinha marcado, nem dispunha de conhecimento. Se as razes conclusivas forem uma condio necessria para o conhecimento, ento, este cenrio deixar de constituir um contra- -exemplo anlise tradicional, pois no configura um caso de crena verdadeira justificada sem conhecimento.

    Um dos problemas de uma perspectiva da justificao deste tipo que torna o conhecimento algo muito difcil de alcanar. No claro que alguma das nossas crenas empricas seja infalvel. Agora mesmo, ao telefone, uma amiga acabou de me dizer que so nove e dez. Isto poderia parecer uma boa maneira de ficar a saber que horas so. Mas a minha amiga pode ter-me mentido ou ter-se simplesmente enganado a ver as horas, e assim, as minhas razes para acreditar que so nove e dez no so conclusivas; a minha crena no , portanto, infalvel. Para permitir que uma pretenso ao conhecimento to banal como esta possa estar correcta, a concepo moderna do conhecimento tor- nou-se falibilista. Devemos ser cuidadosos, no entanto, na forma como exprimimos esta posio: o que se afirma no que podemos conhecer coisas que so

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    falsas; a posio falibilista que podemos ter conhecimento sem termos razes conclusivas. Assim, podemos afirmar saber algo ainda que as provas de que dispomos presentemente no excluam a possibilidade de estarmos errados. A cincia constitui um bom exemplo de falibilismo. Sabemos muitas verdades cientficas apesar de a histria e o progresso da cincia nos ensinarem que algumas das nossas teorias podero estar erradas, e de admitirmos a possibilidade de no termos, afinal, tanto conhecimento cientfico como pensamos ter. Se as nossas teorias cientficas forem verdadeiras, ento, traduzem conhecimento mesmo que as razes que temos para as aceitar no sejam conclusivas. Temos, portanto, uma concepo falibilista do conhecimento emprico; h, no entanto, certas reas do conhecimento em que a infalibilidade mais plausvel uma delas o conhecimento a priori. Na seco 4 do captulo 3 iremos debater se este tipo de conhecimento ou no infalvel.

    As razes conclusivas foram apresentadas como uma resposta aos problemas de Gettier: se tais razes forem necessrias justificao, os casos de Gettier no constituem contra-exemplos anlise tradicional, porque os sujeitos em questo no teriam crenas justificadas. No entanto, esta resposta no pode ser sustentada se tivermos uma concepo falibilista do conhecimento. A tese de que o conhecimento emprico falvel importante e devemos t-la bem presente ao longo de todo o livro. Somos facilmente levados a pensar que no sabemos certas coisas porque no as sabemos ao certo, e que o conhecimento tem de implicar infalibilidade. Mas isto no assim, como podemos ver se pensarmos nas nossas pretenses mais prosaicas ao conhecimento. Eu sei que so nove e dez, mas s se pode aceitar esta pretenso se se for falibilista.

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    5.2 No s crenas falsas

    Outra resposta a Gettier centra-se em certas crenas falsas possudas pelas pessoas descritas nesses casos. Quando vou a passar pelo bar, posso pensar qualquer coisa como: Eu oio os adeptos da Inglaterra a festejar; pergunto-me porqu? Os adeptos festejam desta maneira quando a sua equipa marca um golo, por isso a Inglaterra deve ter marcado. A afirmao da primeira orao, no entanto, falsa: no so os adeptos ingleses que esto a festejar, o pblico do concurso de karaoke. Note-se, no entanto, que dissemos que a justificao equivale a termos uma prova adequada ou boas razes para pensar que as nossas crenas so verdadeiras. As crenas falsas no podem fornecer esse tipo de provas ou sustentao racional. No temos justificao para as nossas crenas verdadeiras se o nosso raciocnio envolver crenas que so, elas prprias, falsas. E, neste sentido, o cenrio de Gettier que descrevemos acima no um contra-exemplo anlise tradicional, visto que a minha crena de que a Inglaterra marcou no justificada. Ela formou-se porque eu cheguei a essa concluso com base na crena falsa de que estava a ouvir os adeptos da Inglaterra a festejar.

    Um dos problemas desta resposta a Gettier que parece haver casos de Gettier que no implicam crenas falsas, e outros que no implicam qualquer raciocnio. Olhando distraidamente pela janela, durante uma aula, detenho-me, surpreendido, ao ver uma vaca em frente do edifcio de Fsica. Aquilo que eu estou a ver, no entanto, um carrinho de compras muito bem disfarado que ser usado na corrida anual de carrinhos de compras a ter lugar dentro de momentos (estamos em plena rag week2).

    2 A rag week um evento anual que ocorre na maior parte das universidades britnicas: durante uma semana, os estudantes organizam concursos e espectculos invulgares, de modo a angariar fundos destinados a ajudar os mais carenciados. (N. do T.)

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  • O Q UE O C O N H E C I M E N T O ?

    Por detrs do carrinho, no entanto, est efectivamente uma vaca, que acaba de fugir de uma quinta das imediaes mas que eu no consigo ver. Eu tenho uma crena verdadeira est uma vaca no ptio e uma crena que justificada dado que este tipo de prova observacional normalmente assumido como justificao suficiente para a crena perceptual. Contudo, eu no sei que est ali uma vaca, uma vez que a verdadeira vaca est tapada no meu campo de viso. Estamos, portanto, perante um caso de Gettier. Note-se, no entanto, que no h qualquer raciocnio ou inferncia em jogo neste caso. Ao ver o carrinho, adquiro, pura e simplesmente, a crena de que est uma vaca no ptio. Da mesma maneira, plausvel que, quando eu ia a passar pelo bar barulhento da minha rua, pudesse adquirir a crena de que a Inglaterra havia marcado sem raciocinar da maneira que foi sugerida; no teria chegado a essa concluso por meio de qualquer tipo de inferncia. A proibio de crenas falsas no pode ser usada para rejeitar este tipo de con- tra-exemplos anlise tradicional, visto tratar-se aqui de casos de crena verdadeira justificada sem conhecimento, que no envolvem crenas falsas.

    Vimos duas maneiras de elucidar a anlise tradicional de tal modo que os seus veredictos sejam congruentes com as nossas intuies sobre os casos de Gettier. O conhecimento continua a ser tomado como crena verdadeira justificada, apesar de termos contraposto que devemos ater-nos a um sentido mais estrito de justificao. Os casos de Gettier no so contra-exem- plos anlise tradicional visto que os sujeitos em causa no tm crenas justificadas no sentido mais estrito que foi proposto. Assim, as nossas intuies sobre estes casos esto correctas na medida em que estes no traduzem conhecimento. Vimos, no entanto, que se pode detectar problemas em ambas as respostas a Gettier, embora seja importante notar que nos limitmos a aflorar al-

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  • IN T R O D U O T E O R IA DO C O N H E C I M E N T O

    gumas das principais linhas de argumentao relevantes para este tipo de estratgia. Foram j feitas vrias tentativas para sustentar as respostas que se centram na infalibilidade e nas crenas falsas, e foram sugeridas outras maneiras de elucidar e complementar a anlise tradicional. Alguns destes trabalhos podero ser encontrados na seco de bibliografia aconselhada deste captulo. Passaremos agora a uma resposta mais radical a Gettier. Aqui, a tese j no que a anlise tradicional precisa de ser refinada; defende-se, isso sim, que ela deve ser totalmente abandonada.

    6 Conhecimento como conceito bsico

    Na abordagem tradicional, o conhecimento adquirido quando as nossas crenas so verdadeiras e quando a condio de justificao igualmente satisfeita. O conhecimento constitudo pelas componentes episte- micamente mais bsicas que so a crena, a verdade e a justificao. Timothy Williamson sustenta que esta abordagem motivada por dois pressupostos. Primeiro, pressupe que o conceito de c o n h e c i m e n t o analisvel em conceitos constituintes mais simples. Segundo, assume que quando temos conhecimento estamos num estado hbrido, estado esse que constitudo em parte pelo estado da nossa mente e em parte pelo do mundo. A posse da crena e da justificao pode equivaler posse de certos estados mentais, mas a verdade uma noo que independente da psicologia de quem conhece (algo no mundo l fora). Estes dois pressupostos esto relacionados na medida em que a anlise pretende (primeiro pressuposto) elucidar que tipo de componentes mentais requer para alm da componente no-mental da verdade (segundo pressuposto). A estratgia de Williamson questionar ambos

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  • - * -

    O Q U E O C O N H E C I M E N T O ?

    os pressupostos. Se eles se revelarem infundados, ento poderemos adoptar uma abordagem completamente diferente, que no seja motivada pela necessidade de analisar o conhecimento em termos de crena, verdade e justificao.

    Williamson sustenta que no h uma srie de condies que tenham de ser satisfeitas em todos os casos de conhecimento e que no h, portanto, qualquer anlise do c o n h e c i m e n t o a fazer. Muitos conceitos no podem ser analisados isto , no h condies necessrias e suficientes para a sua aplicao o que no implica, no entanto, que esses conceitos sejam de algum modo desadequados ou inconsequentes. No conseguimos definir a beleza, a elegncia ou a inteligncia e no entanto estes conceitos podem ser usados e tm um significado. Alguns conceitos podem ser analisveis, como o de c a r b u r a d o r , por exemplo, mas a maior parte das palavras exprime conceitos indefinveis (Williamson, 2000, p. 100). No caso de c o n h e c i m e n t o , a histria da epistemologia no deixa antever grandes probabilidades de xito de uma qualquer tentativa de anlise. Os filsofos tm tentado encontrar uma definio de conhecimento desde o tempo de Plato, e, mais recentemente, ao cabo de quarenta anos de investigaes intensas, no foi possvel chegar a um consenso sobre a forma como devemos responder a Gettier. Williamson v nesta falta de sucesso um sintoma do desacerto da abordagem tradicional.

    Fomos levados a pensar que a natureza hbrida do conhecimento isto , o pressuposto de que este em parte mental (crena e justificao) e em parte no- mental (verdade) nos obriga a fazer uma anlise do conhecimento em componentes epistemicamente mais bsicas. Williamson, no entanto, argumenta que o conhecimento no consiste na posse de um tal estado hbrido; por isso, a motivao para a anlise perde-se.

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    O conhecimento , pois, um estado inteiramente mental. Esta abordagem adopta o externismo cognitivo. De acordo com esta teoria, a natureza de certos estados mentais no inteiramente determinada pelo que est dentro da cabea da pessoa; o contedo dos estados mentais em parte determinado pelo que est no mundo exterior. E o conhecimento , justamente, um desses estados mentais: eu no posso saber que o meu caf est quente no posso estar nesse estado mental se o meu caf no estiver realmente quente. O caf essa parte do mundo exterior constitui em parte o meu estado mental de saber. Na perspectiva tradicional, a verdade necessria para o conhecimento, mas vista como uma componente no-mental do estado hbrido do conhecimento; os meus estados mentais so os de acreditar e de possuir justificao. Para Williamson, porm, o conhecimento consiste, ele mesmo, na posse de um estado inteiramente mental, estado esse em que s nos podemos encontrar se os nossos pensamentos representarem correctamente o mundo. (Na seco 4 do captulo 9 iremos aprofundaro estudo do externismo cognitivo.)

    Williamson tentou por isso remover algumas das motivaes que levam os epistemlogos a intentar a anlise do c o n h e c i m e n t o . No devemos partir do pressuposto de que todos os conceitos so analisveis, e o acto de conhecer no deve ser visto como um estado hbrido, susceptvel de ser analisado em componentes mentais e no-mentais. Se estas pretenses forem aceites, ento Williamson tem o caminho livre para propor uma epistemologia radicalmente diferente. Para ele, o conhecimento um estado mental bsico, indefinvel e inanalisvel. Resume a sua explicao com a mxima primeiro o conhecimento: o conhecimento no constitudo por componentes epistemicamente mais bsicas como a crena e a justificao; o conhecimento

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  • rO Q U E fi O C O N H E C I M E N T O ?

    , isso sim, o estado epistmico mais bsico, sendo que uma tal explicao do conhecimento permite elucidar as noes de crena e justificao (em vez de serem essas noes a elucidar o conhecimento, como sucede nas explicaes tradicionais). Acreditar que o caf ainda est quente tratar esta afirmao como algo que se sabe, ou seja, recusaramos que nos oferecessem outra chvena e seramos cuidadosos ao beb-lo. Talvez possa haver ento conhecimento sem crena. Posso saber que aquela flor uma genciana apesar de no tratar esta afirmao como algo do meu conhecimento; No acredito, portanto, que a flor seja uma genciana (ver seco 3). Williamson, porm, tem dvidas sobre a fora intuitiva destes exemplos, e aceita que o conhecimento sempre acompanhado de crena, ainda que no possa ser analisado em termos de crena, verdade e justificao.

    Williamson d tambm uma explicao da justificao. As crenas justificadas so aquelas de que temos provas slidas, e s os elementos de conhecimento podem desempenhar a funo probatria necessria. Uma vez mais podemos ver, portanto, a primazia do conhecimento: a crena justificada explicada em termos do estado mental de conhecer. Aqui, a ordem da explicao uma inverso daquela que apresentada pela perspectiva tradicional, em que o conhecimento definido em termos de crena justificada. Segundo Williamson, o conhecimento no deve ser visto como um estado hbrido que consiste numa componente mental de crena justificada e numa componente no-mental de verdade. O conhecimento consiste ele mesmo na posse de um tipo de estado mental distinto, um estado mental que epistemica- mente bsico. No entanto, o veredicto sobre a abordagem epistemolgica inovadora e distinta de Williamson ainda no chegou, e a maior parte da epistemologia

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  • IN T R O D U O T EO R IA DO C O N H E C I M E N T O

    contempornea continua a repousar na abordagem tradicional.

    7 Semelhanas de famlia

    Nesta ltima seco iremos considerar outro argumento a favor da concluso de que a anlise filosfica do c o n h e c i m e n t o deve ser abandonada. Ludwig Witt- genstein sustenta que no devemos presumir que as vrias instanciaes de um conceito tenham alguma coisa em comum. Quando olhamos para o uso que fazemos de alguns dos nossos conceitos no encontramos tais traos comuns. O seu exemplo o do conceito de j o g o . (Note-se que Wittgenstein no argumentou explicitamente que isto se aplique ao c o n h e c i m e n t o . )

    Considere por exemplo os procedimentos a que chamamos jogos. Quero dizer jogos de tabuleiro, jogos de cartas, jogos de bola, jogos olmpicos, etc. O que que eles tm em comum? No diga: Tem de haver algo em comum entre eles, caso contrrio no se chamariam 'jogos', mas olhe e veja se h algo de comum a todos. (Wittgenstein, 1953, 66).

    E, se virmos bem, no encontraremos traos comuns.

    Veja, por exemplo, os jogos de tabuleiro, com todas as suas mltiplas relaes. Agora passe aos jogos de cartas; aqui encontrar muitas correspondncias com o primeiro grupo, mas muitos traos comuns desaparecero, e surgiro outros. Quando passamos aos jogos de bola, muito do que comum permanece, mas muito tambm se perde. Sero todos divertidos? Compare o xadrez com o jogo do galo. Haver sempre um vencedor e um vencido, ou uma competio entre jogadores? Pense nas pacincias [...]. (1953, 66)

  • O Q U E O C O N H E C I M E N T O ?

    Wittgenstein continua, e ns tambm poderamos faz-lo: olhando para as vrias actividades a que chamamos jogos podemos ver que nada h que se possa considerar como essncia do que ser um jogo. A nica eoisa que encontramos uma rede de similaridades que se sobrepem e entrecruzam: por vezes de mbito geral, outras vezes de pormenor. E: no consigo imaginar melhor expresso para caracterizar estas similaridades do que semelhanas de famlia; pois as vrias semelhanas entre membros de uma famlia constituio, feies, cor dos olhos, modo de andar, temperamento, etc., etc. sobrepem-se e entrecru- zam-se da mesma forma. E direi: os 'jogos' formam vima famlia. (1953, 66-7).

    Se aceitarmos esta linha de raciocnio, ento, poderamos afirmar, na esteira de Wittgenstein, que c o n h e c i m e n t o um conceito de semelhana de famlia. E, nesse caso, no seramos obrigados a procurar uma definio do conhecimento, tal como foi sugerido por Williamson na seco anterior. E se aceitarmos uma tal abordagem ao conceito de c o n h e c i m e n t o , as epistemlogas continuaro a ter um trabalho a fazer: devero procurar mapear padres de traos familiares e descrever como as vrias propriedades epistmicas possudas pelos sujeitos se sobrepem e entrecruzam. Os primeiros indcios de uma explicao do conhecimento em termos de semelhanas de famlia surgiram logo no primeiro captulo, quando observmos que possumos vrios tipos de conhecimento saber-como, conhecimento por contacto e conhecimento factual e que no se nos afigurava necessrio encontrar um trao distintivo comum a todos. Neste captulo, centrmo-nos no terceiro tipo de conhecimento, pelo que devemos olhar e ver se h alguma coisa comum a todos os casos de conhecimento factual. Se no houver, a anlise filosfica do c o n h e c i m e n t o dever ser abandonada.

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  • IN T R O D U O T EO R IA DO C O N H E C I M E N T O

    H certos exemplos paradigmticos de conhecimento, casos que apresentam caractersticas que todos concordarmos serem epistemologicamente importantes. Eu acredito que a entrada mxima num jogo de snooker de 155 pontos. (Isto um enigma para todos os adeptos de snooker que nos estiverem a ler: porque no os 147 pontos habitualmente referidos?) Esta crena verdadeira, e eu posso apresentar razes para a sustentar. Tambm estou certo do meu raciocnio, visto que ele implica apenas a soma de todos os pontos-valores das bolas de cor, clculo este que eu estou certo de conseguir efectuar correctamente. Posso saber, portanto, que esta a entrada mxima. Este tipo de conhecimento tem trs propriedades importantes: implica a crena verdadeira (X), a justificao (Y), e certeza (Z). A tese que foi apresentada nesta seco, porm, que nem todos os casos de conhecimento tm de possuir estas caractersticas, e j vimos alguns exemplos plausveis disto mesmo: 1) acredito que h uma sequncia de jogadas vitoriosas em perspectiva e, ao descobri-la, afirmo que sabia disso desde o primeiro momento (somente X); 2) respondo correctamente s perguntas sobre flores no concurso televisivo (nem X, nem Y, nem Z); 3) acredito que a Terra no redonda (X e Y, mas no Z). Estes exemplos parecem indicar que no h um conjunto de condies que tenham de ser satisfeitas por todos os casos de conhecimento, e ilustram tambm o tipo de exerccio de mapeamento que as epistemlogas devero intentar. Isto, se aceitarmos a proposta de rejeio da anlise, claro est.

    Importa sublinhar que as propostas das seces 6 e7 no so, regra geral, amplamente adoptadas. A anlise tradicional continua a ser prosseguida e no resto do livro irei partir, em grande medida, do pressuposto de que o conhecimento crena verdadeira justificada. Mesmo que isto seja, em ltima instncia, um erro, a justificao no deixa de ser uma noo epistemolgica

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  • O Q U E O C O N H E C I M E N T O ?

    importante em si mesma, e a parte III do livro importante, mesmo para os leitores mais sensveis aos argumentos das seces 6 e 7 deste captulo.

    Perguntas

    1 Explique porque que a justificao, a verdade e a crena so vistas como necessrias ao conhecimento. Sero mesmo?

    2 Qual o problema das seguintes afirmaes (a primeira das quais ouvi recentemente num programa de televiso)? As tribos africanas sabem da existncia dos espritos h j vrios sculos; dantes sabia-se que a Terra era plana, ao passo que hoje sabemos que esfrica.

    3 Podem ser avanadas condies necessrias e suficientes para a posse do conhecimento?

    4 Qual a relevncia dos casos de Gettier para a anlise do conhecimento?

    5 Os rostos de alguns actores secundrios tm o dom de me atormentar: Tenho a certeza que ele entrava naquele outro filme mas no me lembro do nome do filme, embora o tenha mesmo debaixo da lngua. Horas depois, vem-me novamente cabea, e recordo o nome do filme. Ser que eu sabia em que outro filme esse actor entrava antes de me lembrar do seu nome? Poderia eu saber isto mesmo que no me tivesse lembrado depois de que filme se tratava? E como que as suas respostas se articulam com a definio tripartida do conhecimento?

    Leituras complementares

    Podemos procurar exemplos de anlise filosfica na literatura e nos filmes. Dois que me ocorrem neste

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  • IN T R O D U O T E O R IA P O C O N H E C I M E N T O

    momento so algumas passagens do romance Os Despojos o Dia (1989), de Kazuo Ishiguro, em que o mordomo, Stevens, tenta definir o que a dignidade; e o filme O Beijo a Mulher Aranha (1985) em que dois prisioneiros discutem o que ser um homem de verdade. No captulo 1 de Knozvledge, Welbourne (2001) investiga se Plato realmente aceitou a definio tripartida do conhecimento. O papel da sorte na episte- mologia o tema de Epistemic Luck (2005), de Pritchard. A sugesto de que a justificao no necessria ao conhecimento, tal como foi apresentada na seco 3, foi retirada de Sartwell (1991), e a tese de Radford de que a crena no necessria ao conhecimento criticada por Armstrong (1969-70). Knowlege an its Limits (2000), de Williamson proporcionar um estudo penetrante (embora algo difcil), e The Mind and Its World (1995), de McCulloch, uma boa introduo ao exter- nismo cognitivo.

    Gettier (1963) exerceu uma grande influncia. O seu artigo provavelmente o texto de investigao com maior ndice de interesse por palavra (nmero de palavras escritas sobre o artigo por nmero de palavras do original). Apesar de ter apenas trs pginas, o artigo de Gettier deu origem a centenas de rplicas extensas. Shope (1983) d-nos uma boa viso de conjunto sobre estes trabalhos. A resposta que se foca nas crenas falsas debatida por Feldman (1974). O teatro de Shakespeare pode ser um terreno frtil para casos de Gettier. Veja Muito Barulho para Nada (acto II, cena iii; acto III, cena i) em que Benedick e Beatrice se apaixonam com base num embuste (situao que foi recriada no recente filme O Fabuloso Destino de Amlie (2001), e a seco da pea dentro da pea de Hamlet (acto III, cena ii), em que Hamlet tenta descobrir se foi Cludio que matou o seu pai. (Pista: segundo uma certa interpretao da pea, o comportamento de Cludio no

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  • O Q U E O C O N H E C I M E N T O ?

    motivado pela culpa. Hamlet interrompe repetidamente a pea que ele prprio encenou, com comentrios permanentes. este comportamento que insuportvel para Cludio, e no o facto de a pea lhe fazer lembraro seu crime.)

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  • PARTE II

    FONTES DO CONHECIMENTO

  • Conhecimento a priori

    1 Conhecimento, razo e experincia

    Retire um livro rectangular da sua estante e olhe para a capa. Qual a cor predominante, e quantos lados tem? Ao responder a estas questes, o leitor fica a saber duas coisas acerca deste livro, e esses dois factos ilustram uma importante distino entre duas maneiras que temos de adquirir conhecimento. Para ficarmos a saber a cor do livro, temos de observ-lo (ou pedir a algum que o faa por ns). A justificao para a nossa crena acerca da sua cor fornecida pela experincia (nossa ou de outrem). Mas no precisamos de olhar para um livro rectangular para saber quantos lados tem. Sabemos que os rectngulos tm quatro lados pelo simples facto de pensarmos no que ser um rectngulo. Adquirimos este conhecimento usando apenas os nossos poderes de raciocnio; no temos de considerar a informao dada pelos nossos sentidos. O conhecimento que justificado pela experincia denominado conhecimento a posteriori ou conhecimento emprico. O conhecimento em que a experincia no desempenha um papel justificatrio denominado conhecimento a priori.

  • IN T R O D U O T E O R IA DO C O N H E C I M E N T O

    Vrios filsofos defendem que os exemplos que se seguem so casos de conhecimento a priori.

    1 Verdades matemticas simples como 2 + 2 = 4, bem como outras mais complexas como o teorema de Pit- goras: a soma dos quadrados dos catetos de um tringulo rectngulo igual ao quadrado da hipotenusa.

    2 Verdades que so captadas por definies como: Todos os solteiros so homens no-casados.

    3 Afirmaes metafsicas como a de que nada completamente vermelho e completamente verde, a de que tudo tem uma causa, e a de que Deus existe (ver captulo 15).

    4 Verdades ticas como a de que o homicdio errado (ver captulo 14).

    H um sentido em que a experincia est envolvida na aquisio de todas as crenas. Para saber que os solteiros so homens no-casados, tenho de saber o significado de solteiro, de no-casado e de homem, e esta compreenso lingustica adquirida por meio de lies, de instruo e de prticas que envolvem algum tipo de experincia. A experincia desempenha, pois, um certo papel na aquisio do conhecimento a priori, visto estar envolvida no processo que leva compreenso da linguagem em que esse conhecimento expresso. Determinar se a verdade acima expressa conhecida a priori uma questo que tem a ver com perceber se necessitamos de qualquer experincia adicional para justificar a nossa crena de que os conceitos de s o l t e ir o e de h o m e m n o - c a s a d o se aplicam ao mesmo tipo de pessoa, aceitando que foi preciso antes termos tido experincia para aprender estes conceitos. A resposta no. No precisamos de perguntar aos nossos amigos solteiros se so ou no casados; temos justificao para acreditar que no o so pelo simples facto de possuirmos os conceitos rele

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  • CO N H ECIM EN TO A PRI OR]

    vantes. Da mesma maneira, temos justificao para acreditar que a capa rectangular do livro tem quatro lados mesmo sem olhar para ele; a nossa crena justificada pela simples compreenso do conceito de r e c t n g u l o .

    2 Racionalismo e empirismo

    Os racionalistas acentuam a importncia do conhecimento a priori, e aqui ser til introduzir um pensador racionalis ta de vulto e avaliar o papel do conhecimento a priori na sua epistemologia. Descartes porventura o epistemlogo mais influente da filosofia ocidental, e iremos considerar vrios aspectos do seu pensamento ao longo do livro. As suas Meditaes foram escritas num tom autobiogrfico: o filsofo aparece-nos sentado lareira, matutando sobre a natureza do conhecimento. Primeiro, levanta algumas dvidas de natureza cptica no sentido de que poderemos no ter qualquer conhecimento do mundo (captulo 9); no entanto, encontra salvao num elemento seguro do conhecimento: cogito, ergo sum (Penso, logo existo); isto por vezes referido como o cogito. A nossa prpria existncia algo acerca do qual no podemos estar enganados. Depois, usando um raciocnio inteiramente a priori, tenta demonstrar que Deus tambm existe (captulo 15). Deus, bom como uma vez mais, algo que podemos saber a priori no poderia permitir que fssemos criaturas epistemicamente to limitadas, e assim temos certas crenas justificadas acerca do mundo emprico. Certos aspectos cruciais da epistemologia de Descartes so, pois, desenvolvidos por meio do raciocnio a priori. Importa esclarecer, no entanto, que Descartes no renega toda a experincia. Depois de encontrarmos uma demonstrao a priori da existncia de Deus, temos de proceder a observaes

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  • IN T R O D U O T E O R IA DO C O N H E C I M E N T O

    cuidadosas do mundo a fim de adquirir maior conhecimento. No entanto, o conhecimento a priori que permite, em ltima instncia, justificar as crenas empricas que adquirimos dessa forma.

    Os empiristas aceitam que algumas verdades podem ser conhecidas a priori, mas essas verdades so consideradas desinteressantes, no-instrutivas e tautolgicas. Ao tomarmos conhecimento de que os solteiros so homens no-casados, no aprendemos nada de substancial acerca do mundo, mas apenas algo acerca do significado das nossas palavras, ou seja, que, em portugus, solteiro tem o mesmo significado que homem no-casado.

    [A]s verdades da razo pura, as proposies que sabemos serem vlidas independentemente de toda a experincia, so-no em virtude da sua falta de contedo factual. Dizer que uma proposio verdadeira a priori dizer que uma tautologia. E as tautologias, embora possam servir para nos guiar na nossa demanda emprica do conhecimento, no contm em si mesmas qualquer informao sobre qualquer questo de facto. (Ayer, 1990, p. 83)

    Este tipo de conhecimento a priori porque pode ser adquirido em virtude da mera compreenso dos conceitos relevantes; no requer qualquer outro tipo de investigao do mundo. Os empiristas afirmam que todas as verdades a priori so analticas, tal como as descreveu Immanuel Kant. So verdadeiras em virtude dos significados dos termos utilizados para as exprimir, e a sua verdade s pode ser descoberta com recurso anlise filosfica. As verdades analticas contrastam, deste ponto de vista, com as verdades que so sintticas. As verdades sintticas no dependem apenas do que os nossos termos significam, mas tambm daquilo que o mundo revela ser. O facto de os coalas comerem folhas de eucalipto no faz parte do

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  • CO N H ECIM EN TO A PRIORI

    conceito de c o a l a ; no obstante, verdadeiro, e -o porque descobrimos que isto que os coalas fazem. uma verdade sinttica. No devemos, no entanto, equiparar a distino entre o emprico e o a priori distino entre o sinttico e o analtico. A primeira uma distino epistemolgica: tem a ver com a fonte da justificao para as nossas crenas. A segunda uma distino semntica: o que est em causa se certas verdades o so apenas em virtude dos significados dos conceitos relevantes. Apesar de estas distines dizerem respeito justificao e ao significado, respectivamente dois aspectos distintos da linguagem e do pensamento o empirista afirma que elas moldam o nosso conhecimento da mesma maneira: todo o nosso conhecimento a priori, e apenas ele, analtico, e todo o nosso conhecimento emprico, e apenas ele, sinttico. O nico conhecimento independente da nossa experincia que podemos ter , segundo o empirista, o que diz respeito ao significado das nossas palavras e pensamentos; qualquer conhecimento substancial do mundo deve ser adquirido atravs da experincia. E esta posio que iremos questionar na seco seguinte. (No captulo 11 iremos examinar tambm a tese de Willard Quine segundo a qual todo o conhecimento emprico e nada pode ser conhecido a priori, nem mesmo os significados.)

    3 O sinttico a priri

    Eu sei que se uma coisa completamente vermelha, ento no pode ser completamente verde, e para saber isto no preciso de observar vrios objectos s cores, ou experimentar pintar coisas de vermelho e de verde. Posso saber que esta afirmao verdadeira pensando simplesmente nela. Trata-se, portanto, de uma verdade a priori. No parece, no entanto, ser ana-

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  • IN T R O D U O T EO R IA DO C O N H E C I M E N T O

    ltica: no faz parte do significado de uma coisa ser completamente vermelha no ser completamente verde. Se assim fosse, ento, o significado de ser completamente vermelho seria analisvel numa conjuno muito longa como: no ser completamente azul, e no ser completamente roxa, e no ser completamente amarela... Mas isso implausvel. Dir-se-ia que os nossos conceitos de cor no so analisveis desta forma, e que poderamos possuir o conceito de v e r m e l h o sem possuir os de v e r d e , a z u l , r o x o o u a m a r e l o . Assim, a afirmao em causa parece ser uma verdade sinttica a priori, uma afirmao substancial relativa natureza do mundo, mas que conhecida a priori. Em captulos ulteriores iremos debruar-nos sobre alguns exemplos importantes do sinttico a priori, tais como as leis morais de Kant (captulo 14, seco 2) e a concluso do argumento de Descartes a favor da existncia de Deus (captulo 15, seco 1). Aqui, no entanto, vamos considerar a matemtica, uma disciplina que j sugerimos ser um estudo a priori.

    As verdades matemticas no so analticas: no faz parte do significado de 12 ser igual a 7 mais 5. Se fizesse, ento 12 significaria tambm 6 mais 6, e 2,5 mais 9,5, e um nmero infinito de combinaes deste gnero. No plausvel que tenhamos de apreender uma tal sequncia de verdades matemticas a fim de compreender 12. Posso compreender 12 sem compreender (V4V9)2 - 3 (que teria o mesmo significado que 12 se a matemtica fosse analtica). O que a matemtica nos oferece , pois, mais exemplos do sinttico a priori. Contudo, talvez possamos pr em causa a natureza a priori do conhecime