dados de copyright o brasil antes de cabral - reinaldo... · uma explicação e alguns...

153

Upload: leduong

Post on 11-Nov-2018

222 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

DADOSDECOPYRIGHT

Sobreaobra:

ApresenteobraédisponibilizadapelaequipeLeLivroseseusdiversosparceiros,comoobjetivodeoferecerconteúdoparausoparcialempesquisaseestudosacadêmicos,bemcomoosimplestestedaqualidadedaobra,comofimexclusivodecomprafutura.

Éexpressamenteproibidaetotalmenterepudiávelavenda,aluguel,ouquaisquerusocomercialdopresenteconteúdo

Sobrenós:

OLeLivroseseusparceirosdisponibilizamconteúdodedominiopublicoepropriedadeintelectualdeformatotalmentegratuita,poracreditarqueoconhecimentoeaeducaçãodevemseracessíveiselivresatodaequalquerpessoa.Vocêpodeencontrarmaisobrasemnossosite:LeLivros.orgouemqualquerumdossitesparceirosapresentadosnestelink.

"Quandoomundoestiverunidonabuscadoconhecimento,enãomaislutandopordinheiroepoder,entãonossasociedadepoderáenfimevoluiraumnovonível."

Copyright©2017porReinaldoJoséLopes.TodososdireitosdestapublicaçãosãoreservadosporCasadosLivrosEditoraLTDA.

PUBLISHER:OmardeSouzaGERENTEEDITORIAL:RenataSturmASSISTENTEEDITORIAL:MarinaCastroESTAGIÁRIO:BrunoLeiteCAPA:SergioCampanteREVISÃO:MaríliaLamaseOpusEditorialDIAGRAMAÇÃOEPROJETOGRÁFICO:DesenhoEditorial

Os pontos de vista desta obra são de responsabilidade de seus autores, não refletindo necessariamente aposiçãodaHarperCollinsBrasil,daHarperCollinsPublishersoudesuaequipeeditorial.

CIP-BRASIL.CATALOGAÇÃONAPUBLICAÇÃOSINDICATONACIONALDOSEDITORESDELIVROS,RJL855m

Lopes,ReinaldoJosé1499:apré-históriadoBrasil/ReinaldoJoséLopes.–1.ed.–RiodeJaneiro:HarperCollins,2017.il.

ISBN:---

1.Arqueologia-Brasil.2.Homempré-histórico-Brasil.3.Brasil-Antiguidades.I.Título.

17-42332 CDD:981.01CDU:94(81)

HarperCollinsBrasiléumamarcalicenciadaàCasadosLivrosEditoraLTDA.TodososdireitosreservadosàCasadosLivrosEditoraLTDA.RuadaQuitanda,86,sala218—CentroRiodeJaneiro,RJ—CEP20091-005Tel.:(21)3175-1030www.harpercollins.com.br

Sumário

UMAEXPLICAÇÃOEALGUNSAGRADECIMENTOS

INTRODUÇÃO:Opassadonãoémaiscomoeraantigamente

CAPÍTULO1:Quemévocê,Luzia?

CAPÍTULO2:Asconchaseosmortos

CAPÍTULO3:RevoluçãoagrícolamadeinBrazil

CAPÍTULO4:Osfilhosdaserpente

CAPÍTULO5:Noreinodasamazonas

CAPÍTULO6:Tupiornottupi

EPÍLOGO:PorqueoBrasilpré-históricofoiderrotado

BIBLIOGRAFIA

SOBREOAUTOR

Parameuspais,NádiaeReinaldo,meuselosvivoscomopassado.

Paraosqueestavamaquiantesdenósenuncaforamembora.

Fromtheashesafireshallbewoken,Alightfromtheshadowsshallspring

(J.R.R.Tolkien)

Umaexplicaçãoealgunsagradecimentos

Os nomes de grupos indígenas citados neste livro seguem a padronização adotada pelo excelenteguiaon-line“PovosIndígenasnoBrasil”*,doISA(InstitutoSocioambiental),umadasmaisrespeitadasorganizaçõesdopaísporseutrabalhosobreotema.Seiqueéesquisitoler“osTupinambá”emvez“ostupinambás”,mastenhapaciência,nobreleitor.Paracomeçar,lembre-sedequeapalavra“tupinambá”está longe de ser originalmente português e, portanto, colocar nosso singelo “s” no final dela paramontaraformapluralnãofazomenorsentido.Dizemporaíqueopassadoéoutropaís,nãoé?Entãoébomirseacostumandoàestranhezadesdejá.

Eu jamais teria tidoasortedeescrevereste livro inteirosozinhosenãofossepelagenerosidadedeClaudio Monteiro de Almeida Angelo, meu ex-chefe (e eterno), um dos jornalistas de ciência eambientemais brilhantes doBrasil, quiçá daVia Láctea. Eu e oClaudinho devíamos ter “cometido”estevolumejuntos,comoscapítulosirmãmentedivididosmeioameio,maseleseenroloucomoutrolivro(umépicosobreoefeitodasmudançasclimáticasnospolos,queacabouficandocomotítulo“AEspiral daMorte”), cabendo então o banquete àminha pessoa. Espero que você não repita o velhobordão “Eu não acredito em uma só palavra do que está escrito aqui!” quando finalmente ler estaslinhas, chefinho!Por falar emchefes, seriaumaprofunda ingratidão se eunãoprestasse reverência àinfinitapaciênciadaminhaeditora,a infatigávelCarolinaChagas,que inacreditavelmenteresistiuaosimpulsosdememandarumacartatemperadacomantraztodavezqueeupediaparaadiarmeuprazopormaisummês.Obrigadodecoração,Carol.

Agradeçoaindanãoaumapessoa,masaumaentidade—nãoasdogênerosobrenatural,apresso-me a acrescentar,masdeum tipobemconcreto: umabiblioteca.Para sermais exato, a bibliotecadoIFSC-USP (Instituto de Física de São Carlos, da Universidade de São Paulo). Bibliotecas, em certosentido, são templos: refúgiosdo saber,dapazde espírito e,nomeucaso,daprivaçãodeliberadadousodainternet,algoextremamenteútilquandoosujeitoestátentandoescreverumlivro.AbibliotecadoIFSCfoimeusantuárioenquantoescreviaboapartedestaspáginas—e tambémasdosmeusdoislivrosanteriores.Umgrandeobrigadoaessepequenotemplo.

Os cientistas que estão reconstruindo a saga dos primeiros brasileiros pacientemente, pecinha porpecinha, merecem um enorme “muito obrigado” de minha parte. Entre esses aventureiros, precisoreservar um lugar especial para o bioantropólogo Walter Neves, da USP, que tem aturado minhasperguntasbobas, feias e chatasdesde2002 comelegância, sensodehumor epaciência.Foi graças aoWaltereaosseuscolegasealunosdaUSPedeoutrasinstituiçõesBrasilemundoaforaquepudeandarpelasmesmasmatasecavernasqueopovodeLuziapalmilhavahámaisdedezmilanos.Outrosasesdapesquisaque(quase)nuncahesitaramemmedarumamãosãoFábioOliveiraFreitas,LuísBeethovenPiló, Castor Cartelle Guerra, Mario Cozzuol, Maria Cátira Bortolini, Sandro Bonatto, Fabrício

RodriguesdosSantos,EduardoGóes-Neves,RolandoGonzález-José,TábitaHünemeier,SérgioDaniloPena, Renato Kipnis, Dolores Piperno, Wenceslau Teixeira e Niède Guidon, entre outros – euprovavelmente provavelmente estou esquecendo alguém e peço desculpas, desde já, pela perdaprematuradeneurônios.

Porúltimoemordem,aindaquenãoemimportância,vêmosagradecimentosdocoração:àminhafamília, em especial à minha esposa Tania e aos meus filhotes mequetrefes, Miguel e Laura; e aosamigospróximos e distantes (a lista dos segundos cada vez crescemais, infelizmente): Salvador (que,maisumavez,leuolivroantesdeeleserpublicado),DanieleMariaClaudia,PaulaeRafael,MirellaeFernando,Rita eRicardo,Mariana eGabriel,Victor,Elaine,Giuliana, Sabine e tantos, tantosoutros.Obrigadopelacompreensãoepelapaciência.Talvezeuvolteasergenteagora,pessoal.

NestaviladeSãoCarlosdoPinhal,setembrode2016.

*pib.socioambiental.org

Não é tododia quemembrosdeuma tribo indígenadoXingu (oudequalquer outra tribomundoafora, aliás) assinam um artigo na revista americana Science, um dos periódicos científicos maisconhecidoserespeitadosdoplaneta.Pesquisadoresdeorigemeuropeiasãocapazesdecortaralgumasjugulares pelo privilégio de emplacar algo na velha Science, acredite — e são raros os cientistasbrasileirosquepodemsegabardessafaçanha.

Ofeitoxinguanodatade2003(haveriaumrepeteconomesmoperiódicoem2008),eosmembrosdopovoKuikuro—AfukakaKuikuroeUrissapáTabataKuikuro—nãoestavamnalistadeautoresdapesquisasóporumaconcessãoaopoliticamentecorreto,oupor teremdoadosangueparageneticistasinteressadosemestudaroDNAdogrupo,por exemplo.Aparticipaçãodos indígenas foi crucialparaqueantropólogosbrasileiroseamericanosconseguissemrevelaraomundoasobrasmonumentaisdosancestrais dosKuikuro (e de outros povosdo complexomulticultural doXingu): umadensa rededeestradascomatédezenasdemetrosdelargura;diquesefossosdefazerinvejaacastelosmedievais,comváriosmetros de profundidade; sinais de grandes paliçadas defensivas; restos de aldeias que um diaabrigarammilhares de pessoas aomesmo tempo, unidas numa espécie de confederação regional quereuniauns50milhabitantes—tudo issonumterritórioque,paraamaioriadosbrasileirosdoséculoXXI,continuaasersinônimodenaturezaquaseintocada.

Este livro é uma modesta tentativa de tirar da sua cabeça a imagem, a um só tempo clássica eprofundamenteequivocada,doBrasilpré-Cabralcomoumparaísoterrestretropical,noqualamãodohomem(eadamulher, lógico)poucohaviamexido.Nãoéexagerodizerquevocêéumprivilegiadoporvivernestadécadade2010,gentilleitor.Asúltimasdécadasforammarcadasporumaexplosãodepesquisas — em áreas tão diferentes quanto a arqueologia, a genômica e a botânica — que estãoajudando a retratar uma pré-história brasileira infinitamente mais vibrante e complexa do que oestereótipodeimobilidadeperpétuadosnativosquetivemosdeengolirnaescola.OcasodosKuikuroedoXinguéummicrocosmodoquedáparaenxergarcomclarezacadavezmaioremtodasasregiõesdopaís.Vai serpreciso trabalhoduroepaciênciapara elucidarmuitosdosdetalhes,masonovoquadrogeral é inegável: boa parte do Brasil pré-cabralino chegou a contar com populações densas(provavelmentemais densas do que as que o país teria até as últimas décadas do séculoXIX, aliás),sociedades com hierarquias políticas complexas e multiétnicas, monumentos de respeito, redes decomércioque se estendiampormilharesdequilômetros e tradições artísticas espetaculares. Selvagensnus? Talvez seminus,mas dificilmente selvagens no sentido “adâmico” (a referência aqui é ao velhoAdãobíblico,claro),degenteeternamenteparadanotempo.

DeLuziaàscidadelasdoXinguEstaéprovavelmenteumaboahoraparaexporoplanodestaobra,ofereceraogentilleitorumarápidavisitaguiadadasinstalaçõesetorcerparaquevocêfiqueatéofimdaexibição.OretratorenovadodoBrasil pré-cabralino como um mosaico de civilizações complexas e populosas será o clímax e pratoprincipaldenossa jornada,comovocê jádeve ter imaginado,masosacontecimentosque lançaramasbasesdesseflorescimentopopulacionaleculturalsãoigualmenteimportantesemisteriosos,eéporelesquevamoscomeçar.

Aaventuraprincipia,obviamente, comomomentonoqual sereshumanospuserampelaprimeiravez seuspésneste cantodoplaneta.Quando foi isso?Há controvérsias (uma expressãoquenão seráouvida pela última vez nesta introdução, posso lhe assegurar). Os arqueólogos que trabalham nomajestoso complexo pré-histórico da Serra da Capivara, no Piauí, costumam propor, com base nadataçãoindiretadepossíveisartefatosdepedra,quemembrosdanossaespéciepoderiamteraportadoaquihácercade50milanos.Paracomparação,trata-semaisoumenosdamesmaépocadachegadadoHomosapiensàAustrália,e tambémdoperíodo imediatamenteanteriorà invasãodaEuropa–entãodominadapornossosprimosneandertais–peloserhumanoanatomicamentemoderno.SemnenhumaintençãodedesmerecerotrabalhodaequipequeestudaossítiosarqueológicosdoPiauí,noentanto,épreciso ressaltarque a comunidade científica internacional, viade regra,não aceita essasdatasmuitoantigas obtidas no Nordeste, em parte porque tem sido impossível replicá-las (ou seja, identificarartefatos ou restos humanos com idade equivalente) em outros lugares do continente americano, emesmodoBrasil.

Porenquanto,aposiçãodeconsensoentrepesquisadoresdentroeforadopaíséestimarqueanossaespécieteriachegadoàsAméricasentre20mile15milanosatrás(provavelmentemaispertodadatamaisrecente,enãodamaisantiga).Quasetodososindíciosdisponíveishojeapontamfortementeparaumavançoquecomeçounoextremonoroestedocontinenteamericano–saindodaatualSibériaparachegar ao moderno Alasca, com uma expansão subsequente, ao longo de alguns milênios, rumo àAméricadoSul.Nessaépoca,conformeaTerraseaproximavadoperíodofinaldoPleistoceno(fasedahistóriadoplanetamaisconhecidasimplesmentecomoEradoGelo),haviaumaconexãodeterrafirmeentreaÁsiaeaAméricaquedeveterfacilitadoapassagemdepessoasedosanimaiscaçadosporelasentreasduaspontasdooceanoPacífico.

Tudo isso parecia quase indiscutível até o começo dos anos 1990.O resumo da ópera era que osindígenasmodernos não passavamde siberianos transplantados para cá, de parentesco relativamentepróximocomosatuaismoradoresdonordestedaÁsia,que talvez tivessemchegadoaquiemalgumasondas distintas, a julgar pelas diferenças físicas entre, digamos, construtores de templos de pedra daAméricaCentraleInuit(popularmenteconhecidoscomoesquimós)doÁrticocanadense.Nomeiodocaminhodessequadro simplesearrumadinho,noentanto,haviaumapedrade tropeçoapelidadadeLuzia.

Amais antiga brasileira, quemorreu no interior deMinasGerais há 12mil anos, aparentava terfeições—parasermaisexato,detalhesdaanatomiadocrânio—quelembravamasdeafricanosnegros

oudeaboríginesdaAustrália,enãoasdesiberianosouíndiosmodernos.Luzia,porém,nãoéumcasoisolado.Dezenasdeoutros esqueletos encontradosnosarredoresdeLagoaSanta, assimcomoodela,apresentam características cranianas parecidas, e análises adicionais também revelaram tais traços emoutros crânios muito antigos (na faixa dos dez mil anos de idade, pouco mais ou pouco menos)espalhadospelasAméricas.Issosignificariaquepelomenosdoispovosdeorigensmuitodistintasteriamcolonizadonossocontinenteantesdoseuropeus,comopovodeLuziachegandoprimeiroesendo,maistarde,substituídopelos indígenasatuais?Essaéaprincipalperguntaquevamosenfrentarnopróximocapítulo—epossoadiantarqueasrespostassãocadavezmaisinteressantesecomplicadas.

Como teremosoportunidadede ver, Luzia e seus contemporâneos, assimcomoaspopulaçõesdosváriosmilêniosseguintes,eramcaçadores-coletores,dependendoexclusivamentedacapturadeanimaise da coleta de vegetais selvagens para sobreviver. Os protagonistas misteriosos do capítulo seguintetambémparecemteradotadoessaestratégiadesobrevivência,masnumaescalamaisintensadoqueosprimeiroshabitantesdeLagoaSanta.Sãoelesosresponsáveispelapresençadossambaquis—estruturasformadasporumconjuntoheterogêneoderejeitos,comdimensõesquevãodemorrinhosmodestosagrandesplataformas—ao longodo litoral brasileiro, emespecialnas regiões Sudeste e Sul.Umadasvisões tradicionais sobrea formaçãodos sambaquiséadequeeles surgirambasicamentecomo lixõesseculares,oumesmomilenares,queacabaramganhandoproporçõesgigantescasconformetodotipodetralhaiaseacumulando.Entretanto,análisesmaiscuidadosasindicaramqueessasestruturaspodemterfuncionado como marcadores simbólicos intencionais da paisagem do litoral, talvez ressaltando aidentidade dos grupos que as construíram e as rivalidades entre diversas tribos. De quebra, ossambaquistambémeramusadoscomocemitériosecomodepósitosdealgunsdosobjetosdeartemaisfascinantesdapré-histórianacional.

Urbanoides comonós tendemanão se emocionarmuitoquandoo tema é a agricultura,mas issotemmais a ver com os nossos preconceitosmodernos do que com o lado verdadeiramente épico darevoluçãoagrícolaquetomoudeassaltoofuturoterritóriobrasileiroapartirdeunsoitomilanosatrás.A domesticação de certas espécies vegetais, cujas características foram lentamente moldadas paraotimizar o uso que certos grupos humanos faziam delas, é a base de todas as civilizações, graças àpossibilidadedeproduzirmais alimentosnumaáreamenorde solo e, portanto, provero sustentodecada vezmais bocas humanasnummesmo lugar.A consequência disso, como tempo, tende a ser osurgimento de populações numerosas, mais sedentárias (ou seja, que em geral costumam habitar omesmo lugar por gerações a fio) e propícias às diferenças sociais e ao aparecimento de grupos maisespecializados e líderespolíticosque tentamcontrolarde formamais estrita essanova abundânciaderecursos.Emresumo,nãoháreis,soldadosouartistassemplantaçõesparadar-lhesdecomerpormeiodotrabalhodeoutraspessoasnaterra.

Por décadas, muitos arqueólogos e antropólogos acharam que esse processo, quando aconteceuentrepovosnativosdoatualBrasil,deu-sedemaneirameia-boca,sevocêmepermiteocoloquialismo.Amaioriadossolosdopaís,emespecialosdaregiãoamazônica,seriapobredemaisparagarantirumacolheitarobustasemamãopesadadatecnologiamoderna(e,emmuitoscasos,nemmesmocomessacolherdechá),demodoqueoprocessododesenvolvimentodascivilizaçõesapartirdaagriculturateriaficadotruncado.Poucagentepodiaseralimentadadaquelamaneira,oquesignificariamenospotencial

paraaexistênciadesociedadescomplexasediversificadas.Segundoessavisão,nenhumatribobrasileirateriaabandonadocompletamenteavidaseminômadeerelativamenteigualitária.

Aestaalturadocampeonato,vocêdecertojáimaginouoqueeuvoudizeraseguir:ocenário“real”(pelomenos,atéondepodemosconcluir sobreocotidianorealdemilêniosatrás,claro)émuitomaiscomplicadodoqueessacaricatura.Talvez sejamaiscorretodizerqueodesenvolvimentoagrícoladosnativosbrasileirostinhacomocaracterísticaaexuberânciaexcessiva,enãoapobreza,aomenosquandooassuntoéaquantidadedeespéciesdomesticadasemmaioroumenorgrau:cercadeoitentavegetaisdiferentes só para a Amazônia e regiões vizinhas, calcula um estudo recente, incluindo nessa contaplantastãoimportantesecomunsnomundodehojequantoocacau,otabaco,oabacaxi,amandioca(sem piadas sobre a ex-presidenta Dilma Rousseff, por gentileza) e diversos tipos de pimenta. Alémdisso, é preciso ressaltar a importância de lavouras que não são autóctones, ou seja, nativas do solobrasileiro,masquesetornaramparteimportantedopacotetecnológicodediversosgruposindígenasdanossa parte da América do Sul, como o milho, originalmente transformado em planta agrícola nolongínquoMéxico.

Reparequeeuescrevi“domesticadasemmaioroumenorgrau”noparágrafoacima.Comefeito,oquesevêcomclarezacadavezmaiornahistóriapré-cabralinadadomesticaçãodanaturezabrasileiraéaimportânciadaschamadasflorestasculturaisouantropogênicas(ouseja,emalgumamedida,geradaspelaaçãohumana).Naprática, issosignificaque,àsvezesdeformainconsciente,àsvezescomtodaaconsciência e propriedade, os habitantes originais do país não só transformaram certas plantas emlavouras propriamente ditas como também passaram amodificar a composição de espécies dematasque, aos nossos olhos não treinados, parecem simplesmente “naturais”. Ledo engano: boa parte dasflorestas tropicaisbrasileiraspossuiumaproporçãode espéciesdeplantasúteisparao serhumano—árvores frutíferas, em especial — muito superior ao que deveríamos esperar num ecossistema nãoafetadopelaengenhosidadehumana.

E, por falar em engenhosidade, poucas coisas superama chamada terra preta de índio.Diante daescassez de solo fértil, a reação dos habitantes originais daAmazônia parece ter sido simples: fazer opróprio solo fértil, ora. De fato, essa é a melhor definição para a terra preta amazônica— um sologerado pela ação humana, espalhado por uma área relativamente pequena quando se considera atotalidade do território nacional,masmuito significativa quando vista sob o prisma de seu potencialpara produzir alimentos, e que, séculos depois de ter sido engendrado, ainda retém proporçõessurpreendentemente altas dematéria orgânica e nutrientes. Ninguém sabe exatamente como a terrapretafoicriada,eofatoéqueaindasediscuteondeterminaoacasoeondecomeçaaintencionalidadequando o assunto é a gênese desse solo, mas já temos algumas pistas importantes que serãodevidamenteesmiuçadas.

Os capítulos que virão a seguir serão uma tentativa de esboçar vida e obra das mais poderosassociedades pré-históricas que habitaram o Brasil. Quando colocadas nomapamoderno do país, elasformamumaespéciedediagramaemcruz,comumatrave(ou“braço”)queseestendedelesteaoeste,dafozdoAmazonasatéManaus,comprolongamentosquechegamaodistanteAcre,eumahastequeseprolonga rumoao sul, chegandoà regiãocentraldeMatoGrosso.Osprimeiros cronistas europeus(inicialmente espanhóis) que navegaram pelo Amazonas no século XVI já mencionavam que ummundaréude gentehabitava essa área,mas os relatos sobre aldeias imensas e frotasmulticoloridas e

letais de canoas acabaram sendo desacreditados, entre outros motivos, porque os cronistas tambémmencionavamaexistênciadeexércitosdemulheresguerreirassuspeitamentesemelhantesàsamazonasdamitologiagreco-romana(omaiorriodomundonãoganhouseunomeatualporacaso,comovocêtalveztenhareparado).

Donzelas-arqueirasmatadoras dehomens à parte, tudo indica queos cronistas dos primórdiosdaconquista europeia estavam essencialmente certos.Na ilha deMarajó, entre o grande rio e o oceanoAtlântico, líderes tribaisparecemtercoordenadoumgrandeesforçoparaconstruirmorrosartificiaisesistemasdecontroledascheiasdoAmazonas,tudoparaobteromáximopossívelderecursospesqueirose fazer frente a seus rivais, enquanto produziam cerâmica com assombrosa qualidade artística. Osmarajoaras parecem ter sido um caso relativamente raro: uma sociedade complexa que quase nãodependia da agricultura.Mais para o interior, os habitantes de áreas em torno das atuaisManaus eSantarém(PA)usarama terrapretacomocombustívelparaacriaçãodepovoadosdegrandeportee,assim como ocorria emMarajó, para a criação de uma arte cerâmica de fazer inveja aos oleiros daGréciaAntiga e seus vasos decorados com as aventuras dos deuses doOlimpo. E noXingu, como jávimos brevemente, a área de transição entre a Amazônia e o cerrado foi dominada por uma formapeculiar de urbanismo que talvez nos lembrasse vagamente Brasília (sem o concreto armado, claro):largasavenidasepraçasmonumentais,umaintegraçãosutilegradualentreáreashabitadas,“parques”eterrenosflorestados.

Umadasquestõesmaisespinhosas,depoisdeexaminartodosessesvestígios,ésaberatéquepontoasculturas indígenasencontradaspeloseuropeus foraminfluenciadasporessascivilizações“perdidas”oumesmoderivamdelas.Emoutroslugaresdomundo,sabe-sequeodomíniodetécnicasagrícolaseda criaçãode animais conferiu a certos povosumavantagemcompetitiva e demográfica (ou seja, emquantidadebrutadegente)quelevouaexpansõesdeescalacontinental.Éporisso,porexemplo,queaslínguas e culturas da família indo-europeia, derivadas de um tronco linguístico-cultural comum,dominarampraticamente todaaEuropa.Há raríssimasexceçõesa essa regrahoje, comoosbascos,oshúngaros e os finlandeses.Há ecos dessas expansões nos primeiros relatos dos colonizadores sobre oavanço dos povos Tupi rumo ao litoral no século XVI, por exemplo. A ampla distribuição de certasfamílias linguísticas e culturais, como os Aruak (exímios navegadores que aparentemente são osprincipais responsáveis pela complexidade social e cultural do Xingu), dá pistas sobre fenômenosparecidos na pré-história. Tudo indica que misturas complicadas de migrações, guerras, redes decomércio e diplomacia se juntaram para montar o mapa da diversidade cultural do país antes daconquistaeuropeia,numasagaqueaindaestamossócomeçandoaentender.

Noderradeirocapítulo,a ideiaécruzaro limiarentreapré-históriaeahistóriapropriamenteditapara tentar entender por que o Brasil indígena estava fadado ao desaparecimento assim que oseuropeuscomeçaramaaportarporaqui.Afinaldecontas,todaessaconversadesociedadespopulosasecomplexas não vira balela diante do fato de que umpunhadode portugueses e espanhóis conseguiuconquistarestecolossodeterras?Sehavia tantagenteaqui,comoéqueforamincapazesdeorganizaruma resistência decente? A resposta mais provável para esse aparente paradoxo é essencialmentebiológica: alguns acasos da pré-história profunda das Américas, inclusive detalhes do que aconteceuassimqueossereshumanosentraramnestecontinente,deixaramosindígenasmuitovulneráveisdiantedasarmasmaisimportantescarregadaspelosinvasores,quenãoeramoaçodasespadaseuropeiasoua

pólvorade seus canhões,mas osmicrorganismos trazidospelos colonizadores. Esse arsenal arrasador,noentanto,nemsemprefoiinfalível.Emalgunscasos,povosnativosaltamentedeterminados,criativose sortudos conseguiram voltar algumas das armas do Velho Mundo contra os próprios europeus earrancaraomenosumempate.

Antesdeseguiremfrente,creioqueéconvenienteressaltarumpontoque,admito,podeseróbvio— embora provavelmente não o seja paramuita gente.Omapa do Brasil que temos hoje, impávidocolosso de 8,5milhões de quilômetros quadrados, deitado eternamente em berço esplêndido (insiraaqui seu clichê favorito do hino nacional), é uma entidade artificial, forjada a ferro e fogo pelamonarquiaportuguesa,comalgunsretoquesdadospelo ImpérioepelosprimeirosanosdaRepública.Movimentos pré-históricos de povos e culturas não costumavam respeitar fronteiras que só seriamimaginadasmilêniosmaistarde,oquesignificaque,nanossajornadarumoao“Brasil”pré-cabralino,obomsensosugerequetambémnãodeveríamosrespeitá-las.Aofalardoqueacontecianasregiõesmaisao sul do atual território brasileiro, o Uruguai e a Argentina farão, naturalmente, parte da nossahistória;domesmomodo,naoutraextremidadedopaísmoderno,nãovaiserpossívelabordarascoisasinteressantesque aconteciamcomospovosdaAmazôniaOcidental (a extremidadeoesteda floresta)sempensar,aindaquebrevemente,no intercâmbiode ideias,produtosegenteentreeleseosgruposdosAndes,láparaasbandasdoPeru.Émeioconfuso,euconcordo,masémaiscoerente.

MotivosparaseimportarUmsujeitomaiscéticotalvezestejaseperguntandoporquediaboseledeveriaseinteressarpelosgenes,monumentoseobrasdeartetotalmenteobscurosproduzidosporpovosquedeixaramdeexistirséculosatrás,aosquaisnãoconseguimosnematribuirumnomecomalgumgraudecerteza,namaiorpartedoscasos.Comovocêjásedeuaotrabalhodeabrirestelivro,presumoquenãosejaumdessescaras,masaqui vão, de todo modo, alguns argumentos para esfregar no nariz daquele tio chato que gosta dealardearseuespíritoprático.

Paracomeçodeconversa,anãoserqueelepertençaaalgumafamíliadeorigemeuropeiaouasiáticacujosmembrosfundadorespuseramospésnestecontinentehápoucasdécadasejamaissedignaramagerarprolecomalguémque jáestavaaquiantes,aschancesdequeo tiocéticocarregueDNAdessespovos“perdidos”éelevada—emespecialdoladomaternodafamília,mesmoqueeleassinaleaopção“branco”nosquestionáriosdoIBGEsobrecordapele/afiliaçãoracial.

Essa,aliás,éumadasconclusõesmaissólidasdasanálisesgenômicasquesepopularizaramdesdeocomeçodesteséculo.Paraentendermelhor isso,anoteaíasigla,porquevamosusá-lacomopauparatoda obra ao longo destas páginas: mtDNA, ou DNAmitocondrial, a minúscula fitinha dematerialgenéticoqueseaninhanointeriordasmitocôndrias,estruturasemformadenhoque(bem,aomenosdomeu ponto de vista de ávido devorador de nhoque) que são as usinas de energia das células deorganismoscomplexoscomonós.

Emsereshumanos,omtDNAselimitaaapenas16,5milparesde“letras”químicas,asunidadesdomaterialgenéticoconhecidascomoA(adenina),T(timina),C(citosina)eG(guanina).Émuitopouco— mais ou menos a mesma quantidade de letras e espaços presente numa única reportagem detamanhomédiodeuma revistamensal (eu sei porque vivo escrevendo esse tipode coisa, comovocêdeve ter imaginado), enquanto a “edição principal” do genoma humano tem três bilhões de letrasquímicas.Apesardotamanhomodesto,porém,omtDNAtemumapropriedadeincrivelmenteútilparaquem estuda a história populacional da nossa espécie: ele só costuma ser transmitido pelo ladomaterno.Nãoparticipado“embaralhamento”dematerialgenéticoqueacontecetodavezqueóvuloseespermatozoides são formados. Você, moça, e você também, meu bom rapaz: ambos só carregammtDNAdamamãe,enãodopapai—eassimfoidesdeaauroradostempos.

Edaí?Daíque,não importaquantas vezes, porquantas gerações, asdescendentesdaunião entreuma índia e um português no longínquo século XVI tenham se casado com italianos, japoneses oulituanos,elassempre carregarãomtDNAindígena—desdequehajaumatransmissão ininterruptademãeparafilha,paranetaeassimpordiante.Digo“mtDNAindígena”porqueháumatendênciaclaradediferenciaçãogeográficae,emmenorgrau,étnica,entreoschamadoshaplogrupos—grossomodo,nadamais que um jeito chique de dizer “subgrupos”—demtDNA.Os haplogrupos ameríndios, ouseja,denativosdasAméricas, sãobemcaracterísticosdeste continente, emborapossuamuma ligaçãoclaracomosdecertasáreasdaSibéria,oqueéumdosmuitosargumentosfortesemfavordaorigem(emúltimainstância)asiáticadosindígenasmodernos.

Embora,demaneirageral,acontribuiçãodosameríndiosparaoDNA“principal”dosbrasileirossejapequena(inferiora10%,emmédia)pertodaeuropeia(predominante)eafricana(logoatrás),muitosdosqueseconsiderambrancosporaquitêmmtDNAindígena—sinaldeumamatriarcaesquecidanopassadoremotodeinúmerasfamíliasbrasileirasdagema,cujoúnicovestígioconcretoéasopaquímicade letrinhas nas células de seus descendentes. Para sermais exato, entre 20% e 30% dos brasileirosvivos hoje descendem de uma tataravó índia, comomostra omtDNA. Enxergar commais clareza aascensãoequedadepovoseculturasdoBrasilpré-históricoabre,portanto,umajanelacomvistaparaopassadofamiliarremotodequase todosnós.Dequebra,aindadeixaclaroqueessavistamuitasvezesnãoétãolindaquantooPãodeAçúcar:omerofatodeaparteindígenadanossaequaçãopopulacionalsermuitomaisvisívelpeloladomaternoé,porsisó,significativo.

AntropólogosegeneticistascontamcomumequivalenteigualmenteútildomtDNAparaestudaraslinhagens paternas. Trata-se do cromossomo Y, amarca genômica damasculinidade— como todosdeveríamos aprender no ensinomédio, homens herdam um cromossomoX damãe e umY do pai,enquantomulheres se caracterizampela dobradinha de cromossomosX. Sabe quantos brasileiros, dequalquercordepele,carregamhojeumcromossomoYindígena?Quasenenhum—comexceçãodosqueaindaseidentificamcomomembrosdeumatriboameríndia,obviamente.Essetipodeassimetriaétípicodepopulaçõesconquistadasemtodosostemposeemqualquerlugardomundo,infelizmente.OsisraelitasdaBíblia,osmacedôniosdeAlexandre,oGrande,osmongóisdeGenghisKhane,óbvio,osportugueses de Martim Afonso de Souza sempre seguiram basicamente o mesmo figurino: numaoperaçãodeconquista,oshomensdosgruposvencidossãomortosouescravizados,easmulheresviramconcubinas. Nenhum outro modelo é capaz de explicar o tamanho da diferença entre o queenxergamosnasduasrotasparalelas,adomtDNAeadocromossomoY.

Essetalvezsejaojeitomaispessoaldeencararaquestãodo“paraqueserve”entenderapré-históriadestaTerradeVeraCruz.Hápelomenosoutro ângulo,porém,paraoqual eugostariade chamar aatençãodorespeitávelpúblico.EstoumesentindoumanciãocontemporâneodeMatusalémaoescreveristo,mas vamos lá: o fato é que vivemos numa época ridiculamente cínica, e uma das característicasdessecinismohodiernoéamaniadezombardaideiadequeahistóriaéamestradavida—ou,comosediziaantigamente,aideiadequequemnãoconheceaprópriahistóriaestáfadadoarepeti-la.Éclaroqueessavisãotemseusproblemas(omaisóbvioéatendênciaatransformartodosospersonagensdopassadoemexemplosaseremseguidosouvilõesaseremodiados),masasagadoBrasilpré-histórico,especialmente na versão repaginada que estamos descobrindo nos últimos tempos, tem implicaçõesinegavelmenteimportantesparaoqueestamosfazendocomestecolossocontinentalquenoscoube,anossapartedolatifúndioplanetário.

Recordeque,comoconteinãomuitosparágrafosatrás,osindíciosdeumadensaocupaçãohumananaAmazôniaeemoutros lugaresdopaísantesdachegadadosportuguesessãocadavezmaisclaros.NossosamigosKuikuro,juntocomseuscolegasantropólogos,resumiramissodeformamuitoevocativanotítulodeseuartigoparaaScience,aosugerirque,antesde1500,amaiorflorestatropicaldomundo,longe de ser virginalmente intocada, estava mais para cultural parkland — uma expressão inglesachatinha de traduzir, mas que talvez corresponda a algo como “um parque gestado pela culturahumana”.Ocurioso,aomenosdonossopontodevistaatual,éque,apósochoqueinicialdocontatoentreosprimeirosbrasileiroseamegafaunadaEradoGelo,aqualacaboudesaparecendo,oaumento

da população e da complexidade social dos ameríndios, que foi moldando vastas áreas de florestatropical edeoutros espaços à imageme semelhançadospovosnativos,nãoparece ter sido suficienteparaempobrecerdeformasignificativae/ouduradouraosambientesdofuturoBrasil.

Não éminha intenção aqui reeditar omito do bom selvagem, cuja sobrevivência é umdesserviçotantoparadescendentesdeeuropeus,estimulando-osaenxergarosindígenascomcondescendênciaepaternalismo, quantopara os povosnativos, retratando-os como algodiferentedoqueno fundo são:humanos, como todosnós.Omundo está cheiode exemplosdedegradação ambiental praticadaporgruposindígenassemnenhuma“ajuda”deinvasoresocidentais(queodigamosmoas,avesgigantescasimpiedosamentetransformadasemchurrascoatéaextinçãopelosmaorisdaNovaZelândia).Ninguémvive,nem jamais viveuouviverá, “emperfeito equilíbrio comanatureza”.Mesmoassim,oparadoxopermanece.De algumamaneira, os xinguanos e oshabitantesprimevosdeMarajó, deAltamira edeoutroslugaresencontrarammaneirasdetransformaroambientequeocuparam—equeexploraramdeformarelativamenteintensaeplanejada,aliás—sembagunçartudo,diferentementedoqueoEstadoeainiciativaprivadadaRepúblicaFederativadoBrasiltêmfeitodesdeoúltimoséculo.Achodifícilquenãotenhamosnadaaaprendercomeles.Nomínimo,soucapazdeapostarqueopessoaldaEmbrapa(a gloriosa Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, uma das grandes responsáveis pelo nossostatuscomopotênciaagropecuáriatropical)fariadetudoparapegarcaronanumamáquinadotempoeaprender, tintimpor tintim,a“receita”da terrapretaamazônicacomosagrônomos indígenasdoano1000 d.C. Aliás, excetuando-se o pequeno detalhe da máquina do tempo, é exatamente isso quepesquisadoresdaEmbrapaedeoutros lugares têmfeitonasúltimasdécadas:experimentardiferentesformasderecriaraspropriedadesinteressantíssimasdaterrapreta.

Quemaindaachaqueessetipodepreocupaçãonãopassadeobsessãode“ecochato”oumaluquicedeabraçadordeárvoredeveriaabrirosolhoseosouvidos,nemquesejaparaprestaratençãoaalgumasdasmazelasquepreencheramonoticiárionacionaldosúltimosanos—da secaemSãoPauloouemManausaomardelamaemMariana.Asaúdedoseubolsoemesmoasaúdefísicadaspessoasaoseuredor vãodepender, emgrandemedida, de soluçõesmenos burras para os desafios que as primeirascivilizações brasileiras já enfrentavam. Pensando de forma ainda mais ampla, o estudo do passadoremoto,sobretudoquandoenfrentamosescalasdeespaçoe,tempotãovastasquantoasqueserãonossomote nas próximas páginas, força-nos a encarar uma questão difícil de responder, porém essencial:quaissãoasforçasportrásdatrajetóriadeumacivilização?Seráqueexisteumcaminhoúnicorumoao“desenvolvimento”, rumoaomáximobem-estarhumanopossível, ou seja láqualpadrãovocêdecidaadotar como indicativo de uma “boa sociedade”? Desse ponto de vista, dá para a gente tentar seperguntarporqueassociedadesnativasdoBrasilnãoconstruíram,digamos,pirâmidesdepedracomoasqueexistemnoMéxicoenaAméricaCentral—aresposta terádeserbastanteespeculativa,masépossíveldaraomenosumchutebem-informado.Poroutro lado,é tambémrelevantetentarentendercomoessesnativosconseguiramrealizaroutras coisas igualmente importantescomasmatérias-primasquetinhamàmão,eoqueissosignificaparanós,queherdamosaterraqueelespisavam.

Imaginoquevocêjáestejasaciadodepreliminares.Éhoradetentardescobrirquem,afinal,eraessamoçachamadaLuzia.

ÉprecisoumesforçobrutaldeimaginaçãoparatentarentenderosignificadodachegadadosprimeirosHomosapiensaopedaçodeterrafirmeque,dezenasdemilharesdeanosmaistarde,seriaapelidadodecontinenteamericano.Nenhumserhumanovivohoje jamaischegousequerpertodepassarporumaexperiência parecida. Nossos descendentes, tanto os do século XXII quanto os do futuro longínquo,tampoucopoderãosegabardefaçanhasemelhante,anãoserqueachemalgumplanetatãofervilhantede vida quanto o nosso fora do Sistema Solar e consigam cruzar anos-luz de abismos cósmicos parabotar os pés em seu solo. Depois da chegada às Américas, a nossa espécie invadiu ilhas antesdesabitadaseexplorouaAntártida,maspouquíssimacoisasecomparaàaventuradosquepisaramaquipelaprimeiravez.OseuropeuschamariamaAméricade“NovoMundo”e,nofimdaEradoGelo,estecontinente,oúltimoasercolonizadoporsereshumanos,eradefatoummundonovo.

Tiveumvislumbremuitotênuedoquepassoupelacabeçadaspessoasque,hácercade15milanos,encararam essa aventura quando me acocorei no interior abafado da gruta Cuvieri, numa tardeensolaradaesecadomêsdejulhode2002.DuvidoquevocêconsigaacharessepedacinhorochosodoBrasil Central no Google Maps, mas posso garantir que ele está lá: a uns 50 quilômetros de BeloHorizonte,pertodosmunicípiosdeMatozinhos,PedroLeopoldoeLagoaSanta(MG).Seuspequenoscorredores naturais estão repletos democós (roedores típicos desses ambientes rochosos), e seus trêsabismos,quesópodemservisitadoscomaajudadeequipamentodealpinismo,sãocomovalascomunsparaincontáveisbichosqueforammorrendonamatacircundanteaolongodosséculos.

Foi num desses abismos que a equipe coordenada pelo bio-antropólogo Walter Neves, doLaboratóriodeEstudosEvolutivoseEcológicosHumanosdaUSP,desenterrouobichoqueemprestouseunomeàgruta:aCatonyxcuvieri,umapreguiça-gigante,dotamanhodeumbezerrão(quedeveterpesadouns200quilosquandoadulta),comgarrasafiadascomoasdeseusparentesnanicosquevivememárvoresatéhoje,mas,diferentementedeles,dehábitosterrestres.Numambienteapertado,abafadoeumtantinhoperigosocomoaquele,jornalistaquerendoentrevistarpesquisadorsóatrapalha,demodoque, parame sentirmenos inútil, acabeime voluntariando para carregar o fêmur (osso da coxa) dafinada monstra até o lado de fora da caverna. Antes de vir para minhas mãos, aquele pernil foiacondicionado em plástico-bolha e colocado cuidadosamente sobre uma bandeja. De fato, pareciavagamenteumossodeboi adulto, deuma robustez inesperadaparaum fragmentode anatomiaquetinha passado tantos milênios no fundo da gruta, recebendo sobre si todo santo ano, na época daschuvas, as enxurradas do barro vermelho característico da região, além dos cadáveres da faunamaisrecentedeMinasGerais,bichoscomoantaseveados,porexemplo.

Preguiças-gigantesjáseriamsuficientementeesquisitaseimpressionantes—amaiordelasadaroardesuagraçanoterritóriobrasileirodeentão,aEremotheriumlaurillardi,tinhatamanhoequivalenteaode um elefantemoderno—,mas estavam longe de ser as únicas criaturas inusitadas do interior doBrasil quando os seres humanos começaram a aparecer por aqui. Há uns 15 mil anos, as onças jáexistiam,mas precisavamdisputar presas comoSmilodonpopulator, um dente-de-sabre ligeiramentemaiorqueosleõesdehoje.Aliás,porfavor,evitecolocarapalavra“tigre”nafrentedonomedobicho:detigreelenãotinhanada,jáquedescendiadeumgrupocujoparentescocomosfelinosmodernosé

distante.Noquesitosuperpredadores,haviaaindaursos-de-cara-curta,parentesmuitomaisparrudoseferozes do atual urso-de-óculos, um bicho dos Andes com cara de bonachão e meros 150 quilos.Calcula-sequeumaespécieargentinadeurso-de-cara-curtadoPleistocenopesavadezvezesisso.

Ovastocardápiodetaiscarnívorostinhacomoitensmais indigestos(ou,pelomenos,maisdifíceisdefatiar)osgliptodontes,tatusdearmaduraarredondadaerígidacomtamanhoequivalenteaodeumFusca;asmacrauquênias,popularmentecomparadasalhamasdetromba,massemnenhumparentescopróximo com as lhamas de verdade; os toxodontes, que lembravam uma mistura de rinocerontes ehipopótamos; eparentes remotosdoselefantes,osmastodontesougonfotérios,donosde trombas tãosofisticadasquantoasdeseusprimosdehojedaÁfricaedaÁsia.Ébempossível,aliás,quealgumtipodeelefantepropriamentedito,pertencenteaomesmogêneroqueaespécieindiana,tenhaandadopelaAmazônianessaépoca—éoque indicaumúnicodentedobichoachadoemRondôniaalgunsanosatrás.

Tamanhadiversidadedemamíferosdegrandeporte,comdezenasdebichosendêmicos—ouseja,quesóexistemnumaregiãoespecíficadoplaneta,eemnenhumoutrolugar—,eraúnicanomundo,superandoaté adaÁfrica.Umaconjunçãoespecialmente favorávelde fatoresgeológicos e evolutivosexplicaessafestadabiodiversidade.Emprimeirolugar,durantedezenasdemilhõesdeanos,acomeçarpelapartefinaldaEradosDinossauros,aAméricadoSulvirouumagigantescailha,separadadetodosos demais continentes pelo recém-nascido oceano Atlântico (e pelo Pacífico também, claro). Essaseparação aconteceu quando a história dos mamíferos placentários (cujos fetos são protegidos enutridosporumaplacenta,comoosnossos)aindaestavanocomecinho.Vemdaíofatodequemuitaslinhagensúnicassedesenvolveramdoladodecádooceano,comoéocasodaspreguiças,dostatus,dasmacrauquênias e dos toxodontes, bichos legitimamentemade in South America. Ainda não sabemosexatamentebemcomo,maso isolamento foi brevemente rompidoháuns40milhõesde anos, talvezgraçasacadeiasdeilhasdispostasentreonossolitoraleoafricano,quepermitiramachegadadealgunsroedores e macacos primitivos da África Ocidental a estas praias. Sem eles, não teríamos capivaras,porquinhos-da-índia, micos-leões ou bugios. Parece conversa de pescador, mas o fato é que algunsanimaissãocapazesdesobreviveralongastravessiasoceânicas,àsvezesarrastadosportempestadesempedaços de terra flutuante. Isso é mais fácil de acontecer com répteis, criaturas de metabolismonaturalmente lento, que chegama sobrevivermeses sem comida ou água,masnão é impossível commamíferos.Nesses casos,bastaqueumaúnica fêmeagrávida sobrevivaà jornadaparaqueumanovapopulaçãosejafundadadooutroladodooceano,eapartirdaíaevoluçãofazorestodoserviço.

Após a aventura da dobradinha primatas-roedores, amegailha sul-americana passou tanto temposozinha que parecia estar destinada a se deitar eternamente em berço esplêndido, como diz o hino.Doce ilusão: forças vulcânicas lentamente cimentavam uma ponte de terra entre nosso continente“perdido”eaAméricadoNorte.Osdetalhesdesseprocessoaindaprecisamsertotalmenteelucidados(estaéumafraseque,devoadverti-lo,vocêvaicansardevernestelivro),masocertoéqueaformaçãoda superponte já estava concluídauns trêsmilhõesde anos atrás.Do solonorte-americanoveioumatorrente de invasores: felídeos e canídeos (ou cães e gatos, se você quiser simplificar) de todos osformatosetamanhos,ursos,antas,dentes-de-sabre,mastodontes,veadosecavalos—alistaestálongede ser exaustiva. Muitas espécies endêmicas sul-americanas sumiram nesse troca-troca maluco,provavelmente acuadas até a extinção, mais ou menos como lojinhas do interior, desacostumadas à

competição,podemacabarindoàfalênciaquandoumhipermercadobarateiroecomgrandevariedadede produtos chega à cidade. Outras formas de vida típicas do antigo continente-ilha, porém,conseguiramtransformaracriseemoportunidadeeatéinvadiramasterrasaonorte,comoéocasodasprópriaspreguiças-gigantes.

ONovoMundoqueseabriadiantedosolhosdosHomosapienspioneiros,portanto,eraummundomoldadopeloGrandeIntercâmbioFaunístico(ouGIF,sevocêquiserencurtar),comoficouconhecidoentreosespecialistasotroca-trocadeespéciesentreasduasgrandesAméricas—digoissosemnenhumdesrespeitoàAméricaCentral,éclaro,masacontecequeestasurgiujustamentecomoocorredorpeloqual os protagonistas desse processo passavam. Colocar os olhos no NovoMundo pela primeira vezdeve ter sidode tiraro fôlego.Emboraoshumanospioneiros já tivessemencontradograndes felinos,cavaloseursosemoutroscontinentes,nadahaviadesemelhanteasuperpreguiçasougliptodontesforadasAméricas.Éaquiquechegamosaopontocentraldestecapítulo:quem,afinal, terãosidoosdonosdesses olhos assombrados? Como vieram parar aqui e de que jeito viviam? E, aliás, por que a faunamonstruosa e exuberante que encontraram acabou se escafedendo? Para responder decentemente aessasperguntas,tudoindicaqueumdosmelhorescaminhoséprestaratençãoaoquedizemasrochaseosfósseisachadosnocomplexopré-históricoondeficaagrutaCuvieri,aregiãomineiradeLagoaSanta.Ahistóriaécomplicadaeseufinalaindaestálongedeserescrito,maspelomenosjátemprotagonista.Trata-sedeumamoçaazaradade11,5milanosdeidade,semnemumacovarasaparachamardesua,queaposteridadeviriaaapelidardeLuzia.

UmrostoinesquecívelTalvezvocêjátenhavistoporaíacélebrereconstruçãoartísticadafacedeLuzia,umrostoquelembralevementeodeoutracelebridadebemmaisrecente,odolutadordeMMAAndersonSilva.Sim,elasepareciacomoquehojechamaríamosdenegro,típicodagenteoriundadaÁfricaaosuldoSaara.

Luzia ganhou essa aparência em 1999, graças ao trabalho de RichardNeave, um britânico que éantropólogoforense(umsujeitoqueconseguereconstruirascaracterísticasfísicasqueumdefuntotinhaemvidaparaajudarapolíciaasolucionarcrimesouacidentes).Neavetomoucomopontodepartidaoformato do crânio de Luzia em sua tarefa de recriar a aparência damoça para umdocumentário daredeBBCsobreosprimeiroshabitantesdasAméricas,masestáenganadoquempensarqueaideiaderetratá-lacomo“negra”(usandoapalavradeumjeitopropositalmentevagoepopular)surgiucomele.Faziamaisdeumséculoquecertosespecialistas sentiamquehaviaalgodemuitopeculiarnoaspectodosprimeiroshabitantesdeLagoaSanta.

TudocomeçoucomPeterLund,umnaturalistadinamarquêsque,nocomeçodoreinadodoentãoimperador-menino Dom Pedro II, resolveu se mudar para um remoto arraial de Minas Gerais,tornando-se caçador de fósseis em tempo integral. Nas muitas cavernas calcárias da região, Lunddesenterrou uma lista interminável de bichos da Era do Gelo, batizando-os com sonoros nomes emlatim.Juntocomosbichos,vieramfósseisdesereshumanos.Umdosdebatescientíficosmaisquentesda época envolvia justamente adúvida sobre a convivênciadohomemcomessas espécies extintas—lembre-se de que estamos falando da era pré-Darwin, antes que a teoria da evolução tivesse sidoformuladaeaceita,quandoatécientistasderenomeaderiam,emlinhasgerais,aorelatobíblicosobreacriação dos seres vivos e propunham que osmonstros da Era Glacial teriam integrado uma “criaçãoanterior”, destruída por catástrofes similares ao Dilúvio relatado na Bíblia. Além de detectar umaprovávelconvivênciaentrepessoascomonóseamegafaunadopassado,Lundnotara,jáem1842,quea gente de Lagoa Santa se caracterizava por ter crânios estreitos e faces projetadas para a frente (umtraço que os bioantropólogos designam com o termo “prognatismo”). São essas, em linhas gerais, ascaracterísticasdepovoscomoosafricanosquevivemaosuldoSaara.

Nototal,Lundexumou17crâniosemLagoaSanta,massuasideiassobreaaparênciapeculiardessesprimeiroshabitantesdoBrasil foramsendoprogressivamenteesquecidas.Noséculo seguinte,diversasoutras expedições científicas escarafuncharam o solo do interior mineiro, com graus variados decaprichocientíficoesucesso,atéacriaçãodaMissãoArqueológicaFranco-Brasileira,umaparceriaentregoverno brasileiro e governo da França. Capitaneada por Annette Laming-Emperaire, a equipe dearqueólogos trabalhava no abrigo rochoso batizado de Lapa Vermelha IV quando, a 11 metros deprofundidade, deparou-se com uma coleção de cacos de um esqueleto humano, o qual, em vida,pertencera a umamulher jovem.O crânio, em especial, rolaramais para o fundo da gruta. Usandotécnicas indiretas de datação— por meio da análise de fragmentos de carvão associados aos restosmortais,porexemplo—,ospesquisadoresestimaramqueamoçamorrerahá12milanos.NãohásinaisdequeelatenhasidoenterradacomasdevidashonrasfúnebresemLapaVermelhaIV.Épossívelqueseu corpo tenha sido simplesmente jogado lá dentro por um grupo de pessoas que se deslocava pela

região naquele momento. Nesse caso, ela teria morrido, provavelmente de causas naturais, duranteumaviagemdesuatribo,umfatopossivelmentecomumnavidadecaçadores-coletores,gentecujavidatemcomomarcaagrandemobilidade,aomenospeloquesabemosarespeitodegrupossimilaresqueaindaexistemhoje.

ExplicaçãotécnicaUmparêntesebreve:dequalcartolaospesquisadorestiraramonúmeromágicode12milanos?Bem,imaginoque você já tenha ouvido falar do método do carbono-14, uma das ferramentas mais importantes para adatação de restos de interesse arqueológico. Essa metodologia tira partido do fato de que os átomos doelementoquímicocarbonoqueestãopresentesnosossosdoseucorpo,namadeiradasárvoreseemtodasasoutras coisas de origem biológica possuem mais de um “sabor” — ou, para ser mais exato, vários “pesos”diferentes.AformamaiscomumdesseelementoquímiconaTerraé,disparado,ocarbono-12,assimchamadoporque possui seis prótons e seis nêutrons formando seu núcleo. Nada menos do que 98,93% do carbonoterráqueovemnesse“sabor”.Jáocarbono-14éumavariantemaispesadadoelementoquelevaessenome,comoitonêutronsnototal.Nãoéoexcessodepesoqueimportanocarbono-14,masofatodequeotrecoéinstável: surge quando a atmosfera da Terra leva pancadas de raios cósmicos, vindos do espaço sideral, edesaparece com o tempo, transformando-se lentamente em nitrogênio-14 após cuspir um par de partículasradioativas,feitocriançaqueperdeumdentedeleite.

Edaí?Bom,edaíqueissoaconteceaumataxaconhecida.Considerequeseresvivossóabsorvemcarbono-14—pormeiodaalimentação,porexemplo—enquantoaindaestãoefetivamentevivos.Assimquepartemdestapara uma melhor, a quantidade original do elemento instável presente no organismo deles começa a decairlentamente, de modo que, passados 5.730 anos desde o falecimento do homem das cavernas em questão,50%docarbono-14queestavaalijáfoiparaascucuias.Esseintervalo,porrazõesóbvias,recebeoapelidodemeia-vida do carbono-14. O termo também é usado para qualquer outro elemento que sofra decaimentoradioativo.Apósapassagemdemais5.730anos,50%docarbono-14queaindatinhasobradonaossadadequefalávamosseesvai—eassimpordiante.Usandoessarelaçãomatemáticaaltamenteregular,nãoémuitodifícilcalcularaidadedeumaamostradeorigembiológica.

Obviamente,noentanto,ométodotemsuaslimitações.Asdatasadmitemumamargemdeerro,emgeraldeumaspoucascentenasdeanos,eosistemadeixadefuncionardireitoemrestoscomuns50milanosoumais,nosquaisaquantidadedecarbono-14étãopequenaqueficadifícil fazeraanálise.Tambéméprecisolevaremcontaumasériedeprobleminhaschatos,comosutisvariaçõesnaquantidadedecarbono-14naatmosferaaolongodosmilênios,porcausadecoisascomoalteraçõesnocampomagnéticodaTerra,asquais,porsuavez,alteramobombardeioderaioscósmicosquenosatinge.Hátambémapossibilidadedequeasamostrassejam contaminadas por carbono “velho”, de origem puramente mineral, cuja presença dará a impressão deque as ditas amostras são mais idosas do que sua velhice real — nada que não possa ser devidamentecontrolado com métodos estatísticos apurados. Todos esses fatores fazem com que não haja umacorrespondência exata entre “anos de carbono-14” e “anos de calendário”. A maioria das datas ligadas aartefatos arqueológicos que citarei neste livro corresponde a “anos de carbono-14” — quando não for esse ocaso,avisarei.

Por fim, há, é claro, o detalhe de que é preciso ter sobrado, na amostra que se deseja examinar, umaquantidaderazoáveldemoléculasorgânicasdodefuntooriginalcasoa ideiasejadatardiretamenteumossohumano.Normalmente,amoléculanecessáriaparaissoéocolágeno,indispensáveleabundantíssimaproteínaestruturaldosossosemúsculos.Devidoaonossoclimatórridoeúmido,nemsempresobracolágenosuficienteparaumadataçãodireta—daíoporquêdeaidadedeLuziatersidoestimadacombasenocarvãoassociadoao esqueleto, e não com a ajuda de um pedaço da canela da garota. Por essas e outras, o carbono-14 estálonge de ser a única ferramenta de datação empregada pelos arqueólogos. Há diversos outros métodos,algunsdelesbaseadosemprincípiosradioativossemelhantes,outrosemprincípiosdistintos.Nodecorrerdolivro,taismétodosserãoabordadostodavezquefornecessário.

Voltemosagoraànossanarrativaprincipal.Seoenterro—oumelhor,onão enterro—da jovemLuziafoiinglório,adataçãoatribuídaaseuspobresossostinhapotencialparacatapultá-laaoestrelato.Esqueletos humanos muito antigos são uma raridade nas Américas— há só um punhado deles na

AméricadoNorte,por exemplo—, eLuzia seguramente está entreosmaisvelhos, senão foromaisvelho.Arelativa imprecisãodadatação indireta impedequesebataomartelodevez.Apesardisso,ocrâniopassouanoseanosamargandoumarelativaobscuridadenasprateleirasdoMuseuNacionaldaUFRJ(UniversidadeFederaldoRiodeJaneiro),paraondefoidespachado.

Ascoisasestavamnessepéquando,apartirdofimdosanos1980,obioantropólogoWalterNeves,inicialmente em parceria com seu colega argentinoHéctor Puciarelli, pôs-se a reexaminar os crâniosoriginalmente desencavados por Lund em Lagoa Santa, a maioria deles enviada pelo naturalista doséculo XIX a um museu de sua Dinamarca natal. Neves conta que não esperava achar nada debombásticonessaamostra;porissomesmo,ficoudequeixocaídoaoperceberque,defato,ascaveirasdeMinas tinhammorfologiamuitoparecida coma que se encontrahoje emafricanos, aborígines daAustráliaenativosdaMelanésia—todaspopulações“negras”.

Éimportantedeixarclaroqueessasemelhançanãoésóquestãodegolpedevistaou“olhômetro”.Oque bioantropólogos como Puciarelli e Neves fazem é tomar dezenas de medidas milimetricamenteprecisas de detalhes dos crânios que querem estudar e usar métodos estatísticos sofisticados paracompararessesdetalhescomumvastobancodedadosdecrâniosdeoutraspopulaçõesdomundo.Asmedidas são escolhidasde formaa levar emconta comoasdiferentespartesdo crânio se relacionamentresi—aprojeçãodonarizemrelaçãoàsaliênciadasbochechasdosujeito,porexemplo.Issoajudaa enxergar a estrutura cranianadeum jeito integrado e tridimensional—e, o que é crucial aqui, háfortes evidências de que essa estrutura tridimensional tem um padrão diferente, em média,dependendodapopulaçãoàqualo indivíduopertence.Emoutraspalavras,dáparaestimaraorigemetnobiológicadeumapessoacombasenessesdados(emlinhasgerais,considerandodiferençasraciaisnaescaladecontinentes,claro;ouseja,muitoprovavelmentenãovaiserpossívelusaressemétodoparadiferenciarumportuguêsdeumespanhol).

A partir de meados dos anos 1990, Neves e companhia passaram a incluir em suas análises aintrigantemoçadeLapaVermelhaIV,agoraapelidadadeLuzia.OnomeéumareferênciabrincalhonaaLucy,umamulher-macacaafricanadaespécieAustralopithecusafarensis,commaisdetrêsmilhõesdeanosde idade,que ainda éumdos fósseismais famosos entreos estudiososda saga evolutivado serhumano. De novo, os resultados apontaram para a similaridade com africanos, australianos emelanésios.QuandoareconstruçãoartísticadobritânicoNeaveficoupronta,Luziavirouaqueridinhadascapasdejornaiserevistas.AmaisantigamulherdasAméricasera“negra”,diziamasmanchetes.

Aposto que você já atinou para o problemão pré-histórico que isso representa: as pessoas que oseuropeusencontraramaoancorarseusnaviosemPortoSeguro517anosatrás,pormaismorenasquefossem,nãotinhamnadadeafricanas.Suaaparência—emespecialoformatodocrânioeosolhos,quepopularmentedescreveríamoscomo“puxados”—lembravamuitomaisadegentedonordestedaÁsia.Vamos aos termos técnicos, que eu sei que você vai adorar: são crânios largos, caracterizados porrelativo ortognatismo, ou seja, sem projeção da face para a frente. Essas e outras característicascranianas são tradicionalmente resumidas com o termo “morfologia mongoloide”, em referência àMongólia. Como explicar esse paradoxo? O que teria acontecido entre a época de Luzia e oaparecimentodosancestraisdosindígenasmodernos?

Umjeitosimplesderesolveroproblemaseriasimplesmentedescartarnossamoçacomoumcasoàparte,um“indivíduoaberrante”,sevocêquiserusarumanomenclaturachiqueeperfumada.Afinalde

contas,existeumavariabilidadeconsideráveldetamanhoeformaentreosmembrosdanossaespécie,eessavariabilidademuitasvezesétãograndedentrodomesmogrupoetnobiológicoquantoaquepodeserencontradaentregruposraciaisdiferentes.Dessepontodevista,Luziapoderiasersimplesmenteoproverbialpontoforadacurva.

Nesseaspecto,ospesquisadoresbrasileirosfizeramaliçãodecasa:alémdeanalisarminuciosamenteasossadasdescobertasporLund eporoutrospesquisadoresdesdeo séculoXIX,Neves e companhiaforamacampoporváriosanosseguidosaolongodadécadapassadaedesenterraramcercade30novoscrânios no interior mineiro, descobrindo inclusive uma aparente “cidade dos mortos” desse povoprimitivo, o belo abrigo rochoso conhecido como Lapa do Santo, onde estranhos rituais funeráriosparecem ter acontecido com frequência (mais detalhes sobre esse jazigo misterioso ainda nestecapítulo).Taiscrâniospodemserencaixadosnumacronologiaenormementelongaparaospadrõesdanossahistóriamoderna—dos11,5mil anosda “Lucybrasileira”atéunsoitomil anosatrás,períodoquecorrespondeaopicodesepultamentosnaregião—,eacarabásicadoshabitantesdeLagoaSantasemantémconstante.

A ideiade “aberração”,paraosmais céticos,poderia até ser transferidado indivíduoLuziaparaasua população como um todo — quem sabe eles descenderiam todos de um pequeno grupo deancestraisque,poracaso,eraportadordeumamorfologiacranianapeculiar?Fenômenosdessetipo,defato, acontecem volta emeia na natureza. Trata-se do chamado efeito fundador, quando uma novapopulação é fundadaporumnúmero limitadode indivíduosquepossuemsóumapequenapartedototal da diversidade genética da espécie a que pertencem. Nesses casos, seus descendentes acabamficandocomcaracterísticasbiológicasmuitosingulares—oqueincluiaaparênciadossujeitos,éclaro.

Denovo,nãoparece fazermuito sentido,porqueos (poucos)crâniosdosprimeiroshabitantesdasAméricas (ou“paleoíndios”, como tambémsãochamados), achadosemoutros lugaresdocontinente,quase sempre seguempadrãomorfológico semelhante aodopovodeLagoaSanta.Quemexaminassemais apressadamente os dados cranianos poderia concluir que o jeitomais lógico de os explicar seriaproporqueaprimeirafasedecolonizaçãodocontinenteamericanoaconteceuquandogruposafricanoscruzaram o Atlântico rumo ao Brasil, ou quando grupos australianos, da Nova Guiné ou das ilhasSalomãoatravessaramoPacíficoedesembarcaramnoChile.Ambasas jornadas seriamridiculamentedifíceis, considerando que, até onde sabemos, os membros da nossa espécie ainda não tinhamdesenvolvidobarcos capazesde atravessardistânciasoceânicasnessa época,mas ainda assimestariamdentrodos limitesdopossível,emtese.Essa,porém,éexatamenteaconclusãoerrada a se tirardessahistória toda, segundo os bioantropólogos brasileiros que trabalham com o tema. Esqueça a tese damigraçãoépicatransoceânica,implorameles.

Esquisito?Nemtanto,masvamosporpartes.Comomencioneidepassagemalgunsparágrafosatrás,os indígenasmodernos lembram,em linhasgerais,populaçõesdonordesteasiático,emespecialasdaSibéria. Não apenas eles se parecem com siberianos como também possuem afinidades genéticasespecíficascomas tribosnativasdaRússiaasiática,comoteremosocasiãodeexplorardetalhadamenteem breve. Isso não surpreende muito quando a gente considera que, emmédia, o nível global dosoceanosestavaunscemmetrosabaixodoatualduranteasfasesmaisrigorosasdofriodoPleistoceno—basicamente porque umaproporçãomuitomaior da água do planeta estava “guardada” na formade

geleirasduranteesseperíodoe,alémdomais,oPleistocenoeraconsideravelmentemaissecodoqueoHoloceno,afasedahistóriageológicadaTerraqueoseguiuenaqualaindavivemos.

Emtaiscondiçõesmaisfriasesecas,oestreitodeBering,pedacinhodemarquehojeseparaaSibériadoAlasca,era terra firmíssima, tantoqueganhouumapelido“continental”,odeBeríngia.DavaparaatravessardaÁsiaparaaAméricaapéenxuto,passandoporumalínguadeterragélida,nãohádúvida,mas cheia de mamutes, rinocerontes-lanosos e outros mamíferos gorduchos e apetitosos, ainda quenemumpouco fáceisdecaçar.Aorigemdos índios,portanto,nãorepresentariaumgrandemistério:tinham atravessado a Beríngia e colonizado o imenso continente ao sul da ponte de terra. A únicadúvidaera:quando,exatamente?OsmaisantigosinstrumentosdepedraachadosnaAméricadoNortesugeriam uma data de chegada em torno de 12 mil anos atrás, a qual era o consenso entre osarqueólogosatépoucasdécadasantesdeestelivroserimpresso.

Acontece,noentanto,queoExtremoOriente(oupelomenospartedele)parecetersidocolonizadopormembros da nossa espécie bem antes disso. Recorde que oHomo sapiens é essencialmente umaespéciedegrandemacacodostrópicosafricanos,cujascapacidadescognitivasetecnológicaspermitiramqueeleseexpandisseglobalmente.Espéciesmaisprimitivasdanossalinhagem,comooHomo erectus,chegarampertodessesucessoexpansionistanoVelhoMundo,masnuncapuseramospésnasAméricasou naAustrália.Ainda faltamdetalhesmais precisos a respeito da cronologia dessa expansão,mas ofatoéque,maisde40milanosatrás,sereshumanosanatomicamentemodernosjátinhamseespalhadopor locais tãodistantes entre siquantoaEuropaOcidental, aAustrália e aChina, a julgar tantopelapresençadeartefatosquantodeesqueletosdenossaespécienessasregiões.

Engana-se, porém, quem acha que os primeiros europeus, por exemplo, já eram louros de olhosazuis, oumesmomorenos denariz aquilino, ao estilo dos velhos romanos. É altamente provável quenósosclassificássemoscomo“negros”combasenotradicionalolhômetro.Omesmovaleparaosmaisantigoschineses,encontradosnosarredoresdePequim,nacavernamaisaltadocomplexopré-históricodeZhoukoudian.

OsespecialistasqueestudamLuziae seus “primos”deLagoaSantaargumentamqueamorfologiacraniana da garota nada mais é que essa aparência “básica” dos seres humanos anatomicamentemodernos: umamorfologia africana tropical, digamos, que semanteve firme e forte por dezenas demilhares de anos antes que a aparência dos diferentes grupos de nossa espécie fosse lentamente seadaptando às condições prevalentes fora do território da “mammaÁfrica”.Acredita-se, por exemplo,queoaspectomongoloidetenhaligaçãocomavidaemcondiçõesmaisfrias.Essaéumadashipótesesqueexplicariamapresençadachamadadobraepicântica, apregadepele responsávelporcriaroqueconhecemospopularmentecomo“olhospuxados”,característicamaisvisíveldosgruposdemorfologiamongoloide.Supõe-sequeessaproteçãoextraparaosolhossejaútilparaenfrentarnevascaserajadasdeventogélido.

OutroargumentoemfavordaexpansãorápidadamorfologiaafricanaoriginalpelaÁsiaassimqueanossaespécieseaventurouparaforadaÁfricaéofatodeoshabitantesprimitivosdediversasregiõesdaorla do Pacífico ainda serem superficialmente “negros”. Refiro-me não apenas aos habitantes daAustrália e da Nova Guiné como também a tribos isoladas de arquipélagos da Índia, a caçadores-coletoresdasFilipinas edaMalásia e aosmoradoresdaMelanésia.Temosboas razõespara acreditarque essas pessoas descendem, aomenos parcialmente, dos primeiros seres humanos que chegaram a

essas regiões, o que explicaria sua fisionomia conservadora. No caso dos aborígines australianos, porexemplo,nãohádúvidaalgumaquantoaisso,jáqueelesviveramemisolamentoquasecompleto,comexceçãode trocascomerciaisenvolvendoalgumas tribos litorâneas,atéachegadadoseuropeuspor lánaEradasNavegações,apartirde1606.ÉpraticamentecertoqueapopulaçãoatualdasFilipinasedaMalásia, de aparência muito mais “asiática” no sentido corrente do termo, só assumiu suascaracterísticasatuaisdepoisquegruposdemorfologiamongoloideapareceramporláesuplantaramoshabitantesoriginais.

Foiumpreâmbulocomprido,admito,masfinalmentechegamosaopontocentraldoargumentodosbioantropólogos brasileiros: o povo de Luzia seria simplesmente parte dessa grande onda inicial deexpansãodoHomo sapiens a partir daÁfrica.Algunsmembrosdessa raçadepioneiros foramparaosul, rumo às florestas tropicais do SudesteAsiático; outros lentamente foram explorando climas cadavezmais frios, até chegar à estepe gélida,mas rica em animais de grandeporte, queunia a Sibéria àBeríngiaeaoAlasca.NãoprecisaramatravessaroPacíficodebarco,portanto:chegaramaquiandando(lembre-se de que ainda não existiam animais de carga) ou, nomáximo, usando a costa do Pacíficocomo uma espécie de via expressa, a qual podia ser explorada com a ajuda de caiaques ou jangadassimples,oquepermitiriaumavançorelativamenterápidodenorteasuldasAméricas.

Essapossibilidade temoapoio indiretodos achados emMonteVerde,noChile, consideradopelamaioriada comunidade científicao sítio arqueológicomais antigodasAméricas, com idade estimadaem uns 13mil anos.Monte Verde ficamais demil quilômetros ao sul de Santiago, ou seja, a umadistância ainda maior do Alasca que a nossa Lagoa Santa. Infelizmente, não foram achados restoshumanos por lá (com exceção de coprólitos, ou cocô fossilizado — sério!), mas há um riquíssimoregistrodeartefatosfeitoscommatérias-primasdeorigemanimalevegetal—opessoaldaáreapareceterconstruídocabanascobertascompeledemastodonte,porexemplo.Assumindoquenãohouveumamigração inicialdiretapela viamarítima, atravessandooPacífico (e,denovo,nãohá indíciosdequealgoassimtenhaocorrido),énaturalimaginarque,antesdebotarseuspéscalejadosemMonteVerde,os primeiros americanos já teriam chegado aoBrasil, a não ser que adotassemuma rota semdesviospelacostaoestedocontinente—coisaquepareceimprovável,umavezquehaviavastíssimosterritóriosvirgensericosemrecursosparaexplorarnomeiodocaminho.

QuerelasgenômicasTudotranquiloefavorávelparaahipótesedogrupodaUSP,portanto?Nemdelonge,naverdade.Aolongodadécadapassada,umapeçaque teimavaemnãoseencaixarnoquebra-cabeçasesboçadoporeles era a da genômica.Não por acaso, os anos 2000 forammarcados pela explosão de novos dados(ainda pouco compreendidos, por sinal) sobre o DNA humano. Enquanto muita gente se punha atentar “minerar” tais informações brutas embuscadepossíveis armas contradoenças comoo câncer,outrosestavamdeolhonoqueogenomapodiacontararespeitodahistóriaevolutivadanossaespécie.Em tese, todo tipo demistério ligado à saga doHomo sapiens neste planeta poderia ser investigado,quiçá até respondido de forma definitiva, por meio dessa ferramenta. Afinal, os judeus atuaisdescendem mesmo dos que habitavam Jerusalém na época de Jesus Cristo? Quando bárbarosgermânicos invadirameconquistaramoImpérioRomano,elesatuaramde formagenocidaouapenastomaramolugardaelitedeRoma,deixandooscamponesesempaz?DequemorreuTutancâmon?Aimensalistainclui,éclaro,opovoamentodaAmérica.

Durante vários anos, as principais ferramentas usadas pelos geneticistas para fazer esse tipo deanálise eram os chamados marcadores uniparentais. Você já os encontrou rapidamente no nossocapítulo introdutório: sãoomtDNA,ouDNAmitocondrial,do ladomaterno,eocromossomoY,doladopaterno.Aprimeiravantagemóbviadessesmarcadores temaver justamentecomo fatodeque,por serem transmitidos apenas pelo lado do pai ou da mãe, eles não costumam sofrer oembaralhamento (ou, para usar o termo técnico preferido pelos biólogos, a recombinação) quecaracterizaahistóriaevolutivadorestodogenomahumano(eodemuitasoutrasespéciestambém).

ExplicaçãotécnicaGrosso modo, o que acontece com a maior parte do DNA presente no núcleo das nossas células quandoóvulosouespermatozoidessãofabricadoséumamisturadepedaçosdematerialgenéticomaternoepaterno.Depois dessa sacudidela, o resultado são cromossomos — as estruturas enoveladas que abrigam o DNA,presentes em 23 pares na nossa espécie — com uma cara meio monstro de Frankenstein, com fragmentosderivadosdamãeedopaidosujeitoousujeitaladoalado.OcromossomoY,pequeninopertodosdemaiseexclusivamente masculino, não costuma passar por esse processo (digo “não costuma” porque há exceções,mas elas são muito raras e não vêm ao caso aqui) e tende a ser transmitido de pai para filho homem comelevadograudefidelidade,feitoumacorridaolímpicaderevezamentoentreasgerações.

A situação do mtDNA é ligeiramente diferente, porque ele não se encontra no núcleo, mas na microusinacelularconhecidacomomitocôndria.Éaltamenteprovávelqueasmitocôndriastenhamsurgidohábilhõesdeanos,quandoacéluladeumancestralremotodosanimaiseplantasdehojeengolfououtracélulamenor,deorigem bacteriana. Forjou-se assim um casamento indissolúvel entre os dois seres, mas a mitocôndriaconservou uma marca importante dos tempos de solteira, o seu DNA próprio. Via de regra, aliás, células deorganismoscomplexoscomonósabrigammuitomaisdoqueumasómitocôndria.Calcula-seque,emmédia,óvulos humanos carreguem nada menos que 200 mil cópias do mtDNA da moça que os produziu.Espermatozoides,poroutrolado,possuemapenasumascincocópiasdessepequenogenoma.Esseeoutrosfatores fazem com que, ao menos em condições normais, tanto homens quanto mulheres herdem apenas omtDNAdesuasmães,jáqueoembriãovaisedesenvolverusandoasmitocôndriasmuitomaisabundantesdoóvulo para produzir energia (de novo, com raríssimas exceções). Quando chega a hora de essa corrida derevezamentocontinuar,sóasmoçaséquepoderãopassartalmaterialgenéticoadiante.

Como se vê, ambas as formas de marcadores uniparentais escapam do embaralhamento típico do resto dogenoma.Comisso,émaisfáciltraçarpartedahistóriaevolutivadeumalinhagemdeseresvivos,desdequemestá vivo hoje até ancestrais maternos ou paternos remotíssimos. As únicas alterações que ocorrem sãomutações,ouseja,alteraçõesgeralmentealeatóriasnasequênciadasletrasquímicasdoDNA,asfamosasA,T,C e G. Suponhamos, por exemplo, que o mtDNA de sua trisavó tenha sofrido duas trocas de letra emdeterminadoponto.Ébemprovávelquevocê,descendentedela,carreguetaisalterações,bemcomooutrasque são exclusivas da sua pessoa. Ao mapear tais erros de cópia nessa sopa de letrinhas, é possívelacompanharsubdivisõesnagrande famíliadahumanidadeao longodo tempo—osurgimentoda“triboquetrocou o C pelo T”. De quebra, existem maneiras de estimar o ritmo médio da troca de letras, o que tornouprático o uso do chamado relógio molecular. Digamos que a gente descubra que é preciso, em média, 500anos para que duas letras do DNA do cromossomo Y sejam trocadas. Bem, se em dada linhagem masculinaidentificamosquatrotrocas, issopodesignificarquesepassoumaisoumenosummilêniodesdequeaquelalinhagemseseparoudeoutrosgruposquenãocarregamasquatromutações.Isso,claro,simplificandomuitoocenário,jáqueasituaçãorealécomplicadaeexigeanálisesestatísticassofisticadasparaevitarerros.

Além dessas vantagens analíticas, há ainda a vantagem prática: até pouco tempo atrás, sequenciar DNA erainsanamente caro. Concentrar os esforços em estudar pedacinhos genômicos relativamente curtos e muitoinformativos(ouseja,quepodemrevelargranderiquezadeinformação)eraumaapostalógica.Alémdomais,no caso do mtDNA, a simples abundância de cópias facilitava muito a obtenção do material, principalmentequando os pesquisadores estavam tentando estudar esqueletos de gente morta há milhares de anos, nosquais o DNA tende a se esfacelar numa miríade de caquinhos e, pior ainda, sofrer alterações químicas quepodemdeixá-loirreconhecível.

Ocorre que os inúmeros estudos a respeito dos marcadores uniparentais dos indígenas atuaismostraramuma semelhança considerável comosmodernosmoradores da Sibéria. Tanto lá como cá,estão presentes subtipos de mtDNA (conhecidos tecnicamente como haplogrupos) criativamente

apelidadosdeA,B,CeD.Háaindaumrelativoestranhononinho,ohaplogrupoX,maisraro,ligadoa certas tribos norte-americanas, em geral da parte oeste dos EUA e do Canadá, e com presençatambém no Oriente Médio, no norte da África e na Europa. O cenário traçado pelas análises docromossomoYtambémindicouproximidadegenéticacomaspopulaçõessiberianasatuais.Demaneirageral,agenômicapareciamostrarqueapenasumgrupodeimigrantesprimevos—talvezmoradoresdaregiãodolagoBaikal,naSibéria—teriafeitoagrandejornadarumoàsAméricas.EncaixarprimosdosatuaishabitantesdaAustráliaedaMelanésianessanarrativanãofaziasentido,argumentavaamaioriadosgeneticistas.

Diante de tais dados, alguns pesquisadores tentaram acharmaneiras de reconciliar o que oDNAestavamostrando, de um lado, e o que os crânios davam a impressão de dizer, de outro. Foi essa adireçãoseguida,porexemplo,porumainusitadaparceriagaúcho-argentino-mineira.Doladobrasileiro,estavamos geneticistas SandroBonatto, daPUC-RS (PontifíciaUniversidadeCatólica doRioGrandedo Sul),MariaCátiraBortolini, daUFRGS (UniversidadeFederal doRioGrandedo Sul), e FabrícioSantos, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais); já o lado argentino do grupo erarepresentadoporRolandoGonzález-José,doCentroNacionalPatagônico.OpesquisadordaPatagôniajá tinha até colaborado com Walter Neves e se mostrara favorável à tese da morfologiaaustralomelanésia, inclusiverevelandoqueopeculiarformatocranianodeLuziatambémcaracterizaraumapopulaçãodeíndiosdoMéxico,osPericúdeBajaCalifornia,triboquedeixoudeexistirnoséculoXVIII. Isso, aliás, indicariaqueamorfologia cranianaantiganãonecessariamente seriaacompanhadadeumapelenegrado“tipoafricano”.Mas,conformeficavacadavezmaisclaraaaparentecontradiçãoentre os dados genéticos (muitos deles garimpados por Bonatto, Bortolini e Santos) e os anatômicos,González-José e seus colegas brasileiros, que se encontravam frequentemente em reuniões científicassobreotema,resolveramolharaquestãoporoutroângulo.

Dessa colaboração saiu o seguinte modelo: de fato, os primeiros colonizadores das Américasdescenderiamdeumapopulação“basal”,ouseja,comcaracterísticasmorfológicasegenéticasprimitivas(no sentido neutro de “antigas”, não no de “toscas”), próximas das dos primeiros seres humanosanatomicamentemodernos,queeramafricanos,daíaface“negra”deLuzia.Sóque,aomesmotempo,essegrupoincluíaumadiversidadenaturalgrandedetraçosgenéticosemorfologias—um“cardápio”variado,noquedizrespeitoaosindivíduos,enãopropriamenteatribosoupovosdistintos.DepoisdepassaralgumtempoisoladonaBeríngia,provavelmentenaúltimafasedeextensãomáximadasgeleirasnoglobo,esseestoquepopulacionalancestralteriaavançadorumoàsAméricasecomeçadoasesepararemdiferentesramos.Conformetalprocessoacontecia,osváriosgruposassumiammorfologiasprópriase “especializadas” — termo normalmente usado para designar a adaptação de um ser vivo a umambienteespecífico.

Com o passar dosmilênios, amigração de grupos bemmenores de indivíduos da Sibéria para asAméricas teria dado um toque final a esse processo, ao fazer com que os genes ligados ao perfilmongoloide “clássico”, tipicamente siberiano, circulassem lentamente pelo continente americanoconforme os imigrantes se uniam à população local. Em outras palavras, o modelo sugere que aseparação dos crânios das Américas em duas morfologias estanques, uma mongoloide e outraaustralomelanésia, não passaria, em larga medida, de uma ilusão. Todos descenderiam do mesmograndegrupo,comnomáximoalgunsretoquesdeadaptaçãoregionale“fluxogênico”(termoqueserve

paradesignaramiscigenaçãocomgruposdefora),oriundodonordesteasiático.Talmodeloexplicariatantoosdadosgenéticosquantoagrandediversidademorfológicadosprimeiros crâniosdehumanosmodernosnaÁsia, segundoargumentaGonzález-José.Apesarde engenhosa ebem fundamentada, ahipótesenãochegounempertodeconvencerNeves.

Ébempossívelqueaprópriagenômicadesfaçaesseimpasse,porém.Doisestudosgigantescossobreo tema, ambos com participação de pesquisadores brasileiros, ganharam as páginas das revistascientíficas Nature e Science, as duas maiores do mundo, em julho de 2015. As novas análisesenvolveramtantooestudodoDNAdeesqueletosdeantigoshabitantesdasAméricasquantodadosdogenomadepopulações atuaisde indígenas, incluindo aí diversos gruposnativosdoBrasil.Umpontocrucial é que tais pesquisas não ficaram restritas à investigação dos famigerados marcadoresuniparentais,masobservaramamplas regiões (e, emalgunscasos,a totalidade)dogenomadonúcleodascélulas.Trata-sedeumamaneiramuitomaisabrangentedeexaminaraherançagenéticaancestraldessas populações. O trabalho dos autores desses novos trabalhos foi facilitado pelo avanço dastecnologias de sequenciamento de DNA, que ficaram muito mais confiáveis, rápidas e baratas nosúltimosanos.Hoje,jáépossível“ler”ogenomacompletodeumapessoaporcercadeUS$1.000.

Osresultadosmais intrigantesestãonapesquisaquesaiunaNature, assinadapelasgaúchasMariaCátira Bortolini e TábitaHünemeier, hoje professora daUSP. Nesse estudo, o que as pesquisadorasfizeram foi comparar centenas demilhares de pequenas variações genéticas (grossomodo, trocas dealgumas poucas “letras” de DNA) que estão presentes nos nativos das Américas com a variaçãoexistente no genoma de outros povos do mundo. O objetivo era procurar padrões de semelhançaaumentada — em outras palavras, se algum grupo planeta afora tinha mais semelhanças com osameríndiosdoquecomasdemaisraçasdaTerra.

Aestaalturadocapítulo,estousegurodequevocênãoficarásurpresoaosaberqueassemelhançaspredominantessãocomossiberianos.Masagrandebombaéqueambososestudosidentificaramoquetem toda apintade serum leve “tempero” australomelanésionoDNAdepelomenos algunsgruposnativosdosdiasdehoje.Chamaatençãoo fatodequeesse“sinalaustralomelanésio”,comodizemospesquisadores,pareceestarpresentetantoentredoispovosdotroncolinguísticoTupi,osKaritianaeosSuruí (tribosorigináriasdeRondônia),quantonumaetnia totalmentedistinta,osXavante,que falamumidiomadotroncolinguísticoJê.

Essasdistinçõesentre idiomasameríndiostalveznãoestejamfazendocaira fichadosignificadodoestudo para você, então talvez seja hora de fazer uma comparação mais ocidentalizada para que asimplicaçõesdetaisdadosfiquemmaisclaras.Considere,paracomeçodeconversa,ofatodequequasetodas as línguas europeias têm uma origem comum, perfazendo o que chamamos de tronco indo-europeu.Issosignifica,porexemplo,queogregoeolatim(eemconsequênciaoportuguês,“filho”dolatim)provavelmentedescendemdeuma línguapré-históricahojeperdida, faladahá váriosmilharesdeanos.Poroutrolado,tantoohebraicoquantooárabesãolínguassemitas,comtantassemelhançasque é razoável imaginar que descendem de outro idioma antiquíssimo, hoje desaparecido. Agora, opulodogato: taisdados sugeremfortementequeospovosdogrupo indo-europeuedogruposemitadevemterseseparado,ou“divergido”,numaépocaaindamaisantiga,possivelmentenaEradoGelo,paraquesuaslínguastivessemtidotempodesediferenciartanto.Éverdadequepovosàsvezestrocam

de língua por motivos políticos e culturais, mas isso provavelmente acontecia com frequência bemmenornopassadoremoto.

Ora,adistânciaentreindo-europeusesemitasnoVelhoMundoémaisoumenosequivalenteàqueexiste entre Tupi e Jê no Novo Mundo. Isso indica fortemente que o “tempero” genômicoaustralomelanésioéalgomuitoantigo,quepoderiaremontaràsorigensdosprimeirosamericanos,maisoumenos como prevê a hipótese deWalter Neves e seus colegas. Digo “mais oumenos” porque ocenáriopropostopelosautoresdosrecentesestudosgenômicosérelativamentecomplexo.

A participação de grupos com “sangue de Luzia” no povoamento original do continente teriaacontecido,segundoosgeneticistas,quandotribosaparentadasaosatuaisaustralomelanésiosteriamsemiscigenado com “primos” dos siberianosmodernos ainda na Beríngia, ou seja, antes da chegada àsAméricaspropriamenteditas.Esseprimeiro grupomestiço foi apelidadopelospesquisadores comumsimpáticotermotupi,Ypykuéra—algocomo“ancestrais”.Paraencurtar, tal etniahipotética temsidochamada de População Y. “Os nativos brasileiros [de hoje] seriam resultado de uma segundamiscigenação,dessavezentreaPopulaçãoYeosnativosamericanosquedescendiamdiretamentedosprimeiroshabitantesdaBeríngia[estescomcaracterísticasmaistipicamentesiberianas]”,explicaTábitaHünemeier.

“A situação da População Y nesse contexto seria muito parecida com a dos esquimós, que sãoresultadodeumamisturaentreosprimeirosamericanoseumamigraçãomuitoposteriordaÁsia”,dizapesquisadora. “Os esquimós apresentam 50% do perfil genético nativo americano e 50% do perfilsiberiano [atual]. A grande diferença aqui é que os esquimós sobreviveram como grupo distinto,provavelmenteporseremmuitomais recentes, enquantoaPopulaçãoYdesapareceuapósaexpansãoparaosuldocontinenteamericano.”

Ainda é muito difícil saber qual a contribuição genética exata dos Ypykuéra para os indígenasbrasileiros de hoje.Modelosmatemáticos empregados pelos pesquisadores para estimar isso têm umintervalogigantede incerteza,deapenas2%decontribuiçãoaté85%.“Só serápossível chegaraumaestimativamais precisa tendo dados genômicos da PopulaçãoY e comparando-os com as populaçõesatuais.Talvezos indivíduosdeLagoaSantasejambonscandidatospara isso”,dizHünemeier. “Agorasabemos que Luzia poderia muito bem ser uma representante desse grupo.” De fato, as análisesgenômicas hoje são, para citar a indefectível frase da série Jornada nas Estrelas, a fronteira final dosestudosnasterrasdeLuzia.SeequandoforviávelobterpedaçosrelativamentesuculentosdeDNAdosesqueletosdeLagoaSanta—e,comosavançostécnicosnessaárea,graçasàcapacidadecadavezmaiordeanalisarmaterialgenéticocommilharesdeanos,apossibilidadenãodeveserdescartada—,aúltimapeçadoquebra-cabeçastalvezseencaixe,afinal.

OsvivoseosmortosEnquantoissonãoacontece,arqueólogosebioantropólogostêmconseguidopintarumretratocadavezmais detalhado de como era a vida no interior deMinas entre o fim do Pleistoceno e o começo doHoloceno, e as surpresas não cessam de aparecer. Talvez a mais estranha delas tenha a ver com osmamíferos monstruosos da Era do Gelo que estrelaram o começo deste capítulo. Embora elescertamentetenhamconvividocomospaleoíndiosdeLagoaSanta—hádataçõesdeossosdepreguiça-giganteedente-de-sabreindicandoqueelesaindaestavamporaíhá9.500anos,ouseja,doismilêniosdepois da época de Luzia—, há pouquíssimos sinais de que os primeiros brasileiros os caçassem oudevorassem.

Como dizia o saudoso astrônomo e divulgador de ciência Carl Sagan (1934-1996), ausência deevidência não é evidência de ausência. Pode até ser que os restos de um lauto churrasco deEremotheriumlaurillarditenhamsidodescartadosnalagoadeumacavernadaChapadaDiamantina,àespera de algum paleontólogo de faro apurado que identifique marcas de descarnamento nadescomunal coxa do bicho. Por enquanto, porém, os poucos achados que parecem apontar nessadireção são dúbios. Um dos mais recentes e intrigantes é justamente um fragmento de dente depreguiça-gigante, encontrado em Sergipe pelo paleontólogo Mário Dantas, que parece ter sidoretrabalhadopelaaçãohumana,emboraalgunspesquisadoresduvidemdessainterpretação.

Esse relativo silêncio sobre a interação entremegafauna e paleoíndios doBrasil soa especialmenteestranho porque a imagem tradicional dos paleoíndios, forjada em escavações feitas na América doNorte,éadecaçadoresdemegafaunaporexcelência,gentequeabatiamamutes-lanosos(Mammuthusprimigenius)comascélebreslançasClovis,dotadasdeelegantespontasdepedra,assimchamadasporcausa do sítio arqueológico de Clovis, no NovoMéxico, onde foram encontradas pela primeira vez.Todas as evidências obtidas em Lagoa Santa até agora, as quais, aliás, batem com as de outros sítiosBrasilafora,édeumagentecomestratégiasgeneralistasdesobrevivência,coletandomuitosvegetaisedependendodacaçademédioepequenoporte(veados,roedores,lagartos)paracolocarcarnenamesa.Especula-se que algum tipo de tabu alimentar mágico-religioso poderia ter mantido esse pessoal àdistânciadamegafauna,masobviamenteémuitodifícilsubstanciardealgumamaneiraessaideia.Dequalquer modo, embora a maioria dos pesquisadores ainda defenda que o desaparecimento dossupermamíferosdoPleistocenonaAméricadoNorteteveligaçãodiretacomachegadadohomemaocenário,asituaçãononossopedaçodocontinenteparecetersidobemmaiscomplexa.

Osestudosmaisrecentesquetêmtentadoenfrentaroproblemaandampintandoumcenáriomaischeio de nuances do que o antigo modelo do overkill (algo como “supercaça” ou “matançageneralizada”, em inglês), segundo o qual os primeiros americanos abateram logo de cara umaquantidadedesproporcionaldegrandesmamíferos, jáqueessesbichos,pornunca teremvistoumserhumano antes, seriam especialmente vulneráveis diante de caçadores de nossa espécie. A questão éque, com a ajuda de datações commelhor resolução temporal (ou seja, que estimam a idade de umfóssilcommenormargemdeerro)ededadosdeDNAdosbichosextintos,muitospesquisadorestêmapontadoqueasdezenasdeespéciesdamegafaunanãocaírammortas“derepente”(válá,empoucas

centenas de anos) quando os paleoíndios apareceram. O processo foi relativamente gradual,estendendo-seaolongodedezenasdemilharesdeanos,eparecetertidorelaçãocomospicosdecalorquepontuaramo fimdoPleistoceno, culminando como aquecimento rápido e intensoque iniciou anossaatualerageológica.Calorpareceumacoisaboaquandoogloboestátodoenregelado,masgrandeparte das espécies da megafauna eram bichos adaptados aos ambientes abertos e secos que seexpandiramnascondiçõesclimáticasdoPleistoceno.NoBrasil,porexemplo,maiscaloremais chuvateriam levado à expansão de florestas úmidas, nas quais bichos imensos como as preguiças-gigantesprovavelmente não se virariam bem. Teríamos então um processo de contração populacional desupermamíferos, que teria ganhado um empurrãozinho dos caçadores humanos, os quais, nessecenário, teriam apenas desferido o golpe de misericórdia. Esse, em suma, é o cenário que podemostraçarhoje.Éóbvioquemaisemelhoresdadospoderãoalterá-lonofuturo.

Os artefatos recuperadosna regiãodeLagoa Santanão impressionam.Emgeral feitosdequartzo,materialrelativamentechatodetrabalhar,nenhumdelesétãoimponenteoubem-acabadoquantoumaponta de lança ao estilo Clovis. Não se deixe enganar por esse cenário aparentemente poucoimaginativo, no entanto. Se o povo de Luzia não era formado por caçadores formidáveis ou grandesartífices (a respeito desse segundo ponto ainda temos algumas dúvidas, já que os instrumentosmaiscomplexospodemapenasterseperdido,talvezporseremfeitosdematerialperecível),suavidaculturale seus rituais parecem ter sido riquíssimos, e pistas preciosas a esse respeito têm sido achadas nomajestosoabrigodaLapadoSanto.

QualquersemelhançacomumacatedraldoséculoXIIInãoémeracoincidência.Doladodefora,osparedõesderochacalcáriaseerguemdezenasdemetrosacimadochãodamata,eseutopotambémérecobertodeárvores.Conformeovisitanteseaproximadosalãoprincipaldagruta,começamaaparecerestalactites, estalagmites eoutrasprojeçõesbarrocasda interaçãoentre a rochae a águaao longodosmilênios. O solo pulverulento do abrigo, ao ser escavado, revelou tanto artefatos quanto restos deanimais e plantas — e sepulturas. Dei a sorte de estar presente quando identificaram o primeiroesqueletohumano,acomeçarpelosossosdoquadril.Maisde30outroscorposforamencontradosnolugarcomopassardosanos.Opontocentralaquiéque,emmuitoscasos,estamosfalandodoqueosespecialistas costumamchamar de sepultamento secundário—ou seja, o que acontece quando, apósumenterroinicial(ou“primário”),ocadáverédesenterradoerecebeoutrodestino.

Emalgunslugaresdomundo,comoaJudeiadaépocadeJesus,sepultamentossecundáriossãocoisasimples: desenterram-se os ossos do defunto, os quais passam por uma sessão de limpeza, sãoacondicionados numa urna ou ossuário e levados de volta à sepultura da família.Os paleoíndios daLapadoSantoerammuitomaisimaginativosqueosjudeusdoséculoId.C.,contudo.Aoexaminaravariedade de disposições dos restos mortais do abrigo, catalogada pelo arqueólogo brasileiro AndréStrauss,doInstitutoMaxPlanckdeAntropologiaEvolutiva,naAlemanha,édifícilevitara impressãodequeelesestavamfazendoinstalaçõesartísticaspós-modernascomseusmortos.

Dentesdeumindivíduoeramarrancadosecolocadoscuidadosamentenabocadeoutro.Viradodecabeça para baixo, um crânio servia comouma espécie de bacia dentro da qual eramdepositados osossosdediversosoutros indivíduos.Crâniosde adultospassavama ser acompanhadospor esqueletospós-cranianos (ou seja, do pescoço para baixo) de crianças e vice-versa (crânios infantis, corpo deadulto).Coranteocreecarvãoeramempregadosparadarumcoloridoespecialaosconjuntos.Umadas

descobertasrecentesdeStrausseseuscolegaséadamaisantigadecapitaçãodocontinenteamericano,provavelmenterealizadadepoisdamorte,paraalíviododonodacabeça.Ocrâniofoiencontradonumadelicadacomposiçãocomosossosdasmãos:adireitafoicolocadadoladoesquerdodocrânio,comosdedosapontandoparabaixo,eamãoesquerdafoidispostadoladodireito,comosdedosvoltadosparacima.

NãohácomosaberquesignificadososmoradoresdeLagoaSantaatribuíamaessessepultamentosrequintados.Ocerto,conformeapontaStrauss,équealgumasregrasdesimetriasimbólicaparecemterinfluenciadoadisposiçãodosmortos(comoopar infância/velhice,porexemplo).Seriaumaformaderessaltaraprofundaunidadeentreancestraise seusdescendentes,uma“dançadamorte”queuniaatodos?

Colocandoascoisasnessestermos,parecequeopovodeLuziaeraformadoporsisudosfilósofosdaIdadedaPedra.Talvez isso seja verdade, emparte,masoutradescoberta surpreendente, debaixodomesmo solo poeirento que recobria os bizarros sepultamentos secundários, ajudou os arqueólogos aenxergarosfrequentadoresdaLapadoSantoporumângulototalmentediferente.EaculpaétodadoTaradinho.

“Taradinho”éoapelidodadoporWalterNeveseseuscolegasàestranhafiguragravadanarochadoabrigoqueéumdosmaisantigosexemplaresdearterupestredonossocontinente(adataçãoindiretasugereuma idadede10,5milanos).Oque faltaaoTaradinhoemapuroartístico,elecompensacom(como direi?) empolgação: o pênis ereto desenhado na gravura é quase do tamanho das pernas dosujeito.Acabeçaemformade letraC,asmãoscomtrêsdedoseaposturaarreganhadasugeremquenãosetratadenenhumaformaritualizadadearte,dedicadaacelebrarasglóriasdafertilidadehumana(hipótesesacadademodoquaseautomáticoporarqueólogosquandoqualqueralusãoaosexoapareceempinturas,gravurasouesculturasprimitivas).Não,gentil leitor,édifícil tirardacabeçaa impressãode que o Taradinho é fruto de alguma irreverência adolescente, de uma hora crepuscular sem fazernada,dealguémespremidoentreacavernaeamata.

PeçasquenãoseencaixamTalvez você tenha reparado que nossa narrativa se concentrou de forma quase obsessiva num únicocomplexo pré-histórico brasileiro. Em parte, este escriba escolheu esse caminho porque o interiormineiroé,delonge,olugarquetrazmaisinformaçõesdiretassobreosprimeirosbrasileiros(dezenasderestos de seus corpos, para começo de conversa). Também resolvime concentrar nos dados que sãomaisoumenosconsensuais.OprincipaldeleséachegadadosprimeirosamericanosviaBeríngia,poucoantesdofinaldaEradoGelo,comovimos.Nãopossomedespedirdestafasedenossahistóriasemaomenos mencionar algumas peças de formato intrigante que são ainda mais difíceis de encaixar noquebra-cabeçasdoqueamorfologiapeculiardeLuziaecompanhia.

Amais importante dessas peças envolve,muito provavelmente, os dados que têm sido obtidos hádécadaspelaequipedaarqueólogafranco-brasileiraNièdeGuidon,daFumdham(FundaçãoMuseudoHomemAmericano), no ParqueNacional Serra da Capivara, no Piauí. Guidon e seus colaboradoresestudaramtantorestoshumanosquantoartefatosnosabrigosrochososdacaatinga,alémderegistrarecatalogar a arte rupestre fabulosa produzida pelos habitantes pré-históricos da região, com recriaçõesestilizadas da fauna, de danças, cenas de caça, de combate e de sexo.Não restam dúvidas de que aocupação humana na área do parque émuito antiga, possivelmente rivalizando comos demais sítiosarqueológicosmaisantigosdoBrasiledaAméricadoSul.Oproblemaédeterminaratéondevaiessaantiguidade. Com base em datações indiretas de instrumentos de pedra, a equipe da fundação, emcolaboração comcolegas europeus, jápropôsdiversas vezesque a chegadado serhumanoàSerradaCapivararemontariaadezenasdemilharesdeanosatrás—talvez50milanos,oumesmoantes.

A comunidade científica internacional ainda reluta muito em dar seu aval a essas datas muitoremotas.Emparte,osmotivossãotécnicos:os instrumentosdepedramaisantigospossuemaparênciatão rudimentar quenão é fácil distingui-los de seixos alteradospor forçasnaturais (como fenômenoserosivos ou simples quedas de barrancos, por exemplo). Além disso, a associação entre datas decarbono-14 (obtidas de carvão que pode proceder de fogueiras ou de incêndios naturais) e supostasferramentastambémé,paramuitagente,meiodúbia.Alémdessesfatores,háadificuldadedeconciliarumachegadatãoantigadanossaespécieaocontinentecomosfatores jáconhecidosarespeitodesuaexpansão inicial noVelhoMundo.Dariamesmo tempo de chegar aqui há 50mil anos? E quanto àligaçãoclaradoshabitantesatuaisdocontinentecomaBeríngiaeaSibéria?

A equipe deGuidon tem avançadona tentativa de substanciar sua defesa das datasmais antigas.UmtrabalhorecentenarevistacientíficaAntiquityfezumaanálisedetalhadadopadrãodedesgastedeartefatos com idade estimada em20mil anos (bemmenosdoque a dataçãomáximana região,massignificativamentemaisantigosqueosdeMonteVerde,hojeosmaisvelhosdasAméricas),sugerindoque esse desgaste só poderia ter acontecido durante tarefas como cortar carne ou desbastarmadeira.Emoutraspalavras,sóocorreriasetaisartefatosfossemmesmoinstrumentosdepedrausadosporgentecomoeuevocê.OtrabalhorecebeuelogioscautelososdeTomDillehay,oamericanoquecoordenouostrabalhos em Monte Verde — mas ele o considera um primeiro passo, e não uma confirmação

definitiva.Porenquanto,portanto,éprecisoesperarantesdecoroaraSerradaCapivaracomoomarcozerodanossaespécienocontinente.

O último fragmento misterioso de evidências sobre as origens dos primeiros americanos nos fazvoltaràgenética.OresponsávelpelasanáliseséSergioDaniloPena,daUFMG(UniversidadeFederaldeMinasGerais),queconseguiuextrairDNAdecrâniosdebotocudos,designaçãogenéricadegruposindígenasde língua jêdointeriordeMinasGeraisqueforamalgunsdos inimigosmaisrenitentesdosinvasoreseuropeusatéseremsubjugadosporordemdeDomJoãoVInocomeçodoséculoXIX.ApósanalisaroDNAde14doscrânios,PenaidentificouemdoisdelesmarcadorestípicosdaspopulaçõesdaPolinésia.Seriaumreforçoà tesedeNevesouum indício,aindamaismaluco,dequehabitantesdasilhas do Pacífico atravessaram o oceano e chegaram até aqui depois do povoamento inicial docontinente? O próprio grupo do bioantropólogo da USP, ao analisar as características cranianas dosfamigeradosbotocudos,afirmaterencontradoafinidadesentreeleseopovodeLuzia.Poroutrolado,muitagente estranhouos resultadosdas análisesdePena, enão sepodedescartar apossibilidadedeum erro de classificação no museu onde os ossos se encontravam — crânios polinésios etiquetadoscomodebotocudos,porexemplo.Denovo,aindaécedoparatercerteza.

Alguns antropólogos costumam se divertir fazendo listas de “universais humanos” — em outraspalavras,característicasaparentementegenéricasdanaturezadanossaespécie,queestãopresentesemtodas as culturas de que temos notícia no tempo e no espaço. Tais listas são um bocado compridas,obviamente(podeanotaraícoisastãodiversasquantosentirciúme,rir,fofocar,casar-se),masnãomelembro de ter visto nelas uma atividade que claramenteme parece ser um universal humano: catarconchinhas.

Transporte qualquer criança do globo para uma praia,mesmo que essa criança seja daquelas quejamaisvirammarnavida,esoucapazdeapostartodasasminhas(parcas)economiasnaprobabilidadedequeelacomeçaráaacumularcarapaçasdemoluscospelopuroprazerdefazê-lo.E,casoameninaouomeninodeque falamos tenhanascidonumaculturaque aprecia como iguaria amassa esponjosa einvertebradaprotegidapelaconcha,nadaparecerámaisnatural se,apósdevorarummariscoatrásdooutro,opequenoemquestãoforempilhandoaspartesdurasenãocomestíveisnumcantinho.

Já houve quem defendesse ummodelomuito parecido com o que descrevi acima para explicar apresença dos gigantescos “morros de conchas” conhecidos como sambaquis no litoral brasileiro, emespecialnasregiõesSuleSudeste.Paraalguns,aeternadançadasondasnapraiaterialançadocascasemaiscascasdebivalvesna terra firme,amontoandonaturalmenteosrestosmortaisdemoluscos.Paraoutros, a ação do oceano teria sido ampliada pelos hábitos supostamente indolentes dos primeiroshabitantesdacostadoAtlântico,quedevoravamos invertebradosmarinhosedescartavamseusrestossemprenomesmolugar,segundoessahipótese.Análisesmaiscuidadosas,noentanto,apontamqueoacúmulo de conchinhas pormero descaso jamais seria capaz de colocar os sambaquis de pé. Emboramuitos dessesmarcosmisteriosos de nossa costa tenham sido devastados pelamineração (faz séculosque os montes de conchas vêm sendo transformados emmatéria-prima para a construção civil, porexemplo),algunsdossambaquisqueaindarestamsãosuficientesparaindicaramontagemintencionale metódica, ao longo de gerações, de estruturas monumentais que serviam como mausoléus esinalizadoresda identidade socialdos gruposqueviviamàsmargensdooceanohámilharesde anos.Emoutraspalavras, sevocêquerumaboaanalogiaparaentenderagênesedepelomenosalgunsdossambaquismaisportentosos,esqueçaa ideiadeque todoselesnãopassavamde lixões litorâneospré-históricosepenseemStonehenge,omajestosocírculodepedrasetúmulosdaInglaterra(semoaspectoastronômicoquecaracterizaoordenamentodosmegapedregulhosdeStonehenge,osquaisparecemterservidoparamarcareventoscelestescomooiníciodoverãonohemisférioNorte,maseunãodissequeaanalogiaeraperfeita,certo?).

EisquesurgeLuzioAntesdemergulharde veznas águasmisteriosasdasquais brotaramos sambaquisdo litoral, porém,faremosumpequenodesviorumoaointeriordocontinenteedoestadodeSãoPauloparaconhecerosujeitoquepodeserconsideradooeloperdido(oumelhor,achado)entreestecapítuloeoanterior:orapazapelidadodeLuzio.

Sim,apré-históriabrasileira,numacuriosaprefiguraçãodachamada“políticadocafécomleite”quetransformou São Paulo e Minas Gerais em aliados inseparáveis durantes as primeiras décadas daRepública, temumaLuziamineira eumLuziopaulista (ouque,pelomenos, viveramnos respectivosterritórios das futuras unidades da federação). Os dois, porém, nunca conviveram, não apenas peladistânciadecentenasdequilômetrosentresuasmoradas,masprincipalmenteporqueLuzioécercadedoismilêniosmais “jovem” do que sua quase-xarámais famosa, tendo, portanto, cerca de novemilanos, segundo datações pelométodo de carbono-14 feitas com amostras dos ossos do próprio rapaz.Quandoessadataé“calibrada”,ouseja,convertidaparaanosdonossocalendáriocombasenoquesesabesobreasflutuaçõesnaquantidadedecarbono-14naatmosferaaolongodotempo,Luzioficaumpoucomaisidoso,comunsdezmilanos.

Luzioviveuemorreunosuldoatualterritóriopaulista,aunssessentaquilômetrosdedistânciadolitoral,novaledorioRibeiradeIguape.Osítioarqueológicoondeseuesqueletofoiachado,conhecidocomoCapelinha,éumdoscercadetrintasambaquis fluviaisdovaledoRibeiradeIguape—ouseja,sambaquisdebeiraderio,enãodepraia.Emboraocaracterísticoacúmulodeconchasdossambaquis“clássicos” do litoral já esteja presente, a dimensão dos sambaquis fluviais tende a ser muito maismodesta.Háaindaodetalhedamatéria-prima:numaversãopré-históricadovelhoditado“quemnãotemcãocaçacomgato”,os responsáveisporconstruiros sambaquisda regiãode Iguapecostumavamusarconchasdeummoluscoterrestre,enãomarinho—ogastrópode(oucaracol,sevocêpreferirumtermo mais popular) do gêneroMegalobulimus. Apesar disso, tais sítios também possuem restos deanimais de origem litorânea, o que, obviamente, sugere algum tipo de contato de seusconstrutores/habitantescomacosta.

ÉevidentequeoesqueletoencontradonosítiodeCapelinha—umrapazcomidadeestimadaentre25e30anos,esguio(otermotécnicopreferidopelosbioantropólogosé“grácil”),medindoapenas1,60metro, que parece ter sido fisicamentemuito ativo em vida— não ganhou a alcunha de Luzio poracaso.Osarqueólogosqueodesenterraram,capitaneadosporLevyFiguti,doMuseudeArqueologiaeEtnologiadaUSP,uniram-seaonossovelhoconhecidoWalterNevesparaanalisarascaracterísticasdocrânio domoço, e o resultado foi a detecção damorfologia paleoamericana típica de Lagoa Santa, apolêmica cara australomelanésia que tanto pano paramanga nos deu no capítulo anterior. Portanto,Luzioéoutrapeça importantenoquebra-cabeçasdaorigemdosprimeirosbrasileiros,masocontextoem que ele foi enterrado traz pistas, ainda relativamente difíceis de interpretar, não apenas sobre achegadadessesgrupos,mas tambémsobreoqueaconteceuconformeforamseespalhandopelovastoterritóriodiantedeles.

Umdetalheinteressantíssimo,porexemplo,éodaprováveldietadojovemdeCapelinha—inferidanão com base em restos de animais e plantas encontrados perto dele, mas a partir da própriacomposiçãoquímicadeseusossos.Paraexplicarisso,éhorademaisumadaquelasdigressõestécnico-metodológicasqueeuseiquevocêamadepaixão,gentilleitor,maspelomenospodemosnosapoiarnoque já sabemos sobre os diferentes isótopos (variantes) dos elementos químicos e seu papel noorganismodosseresvivos,deformaanãoficarmoscompletamentenoescuro.

ExplicaçãotécnicaComeçamoscomosnossosvelhosconhecidos,osisótoposouvariantesdoelementocarbono.Ocarbono-13está presente em quantidades bastante mequetrefes neste planeta, mas mesmo assim esse isótopo, dequandoemquando,acabasendoincorporadopelasplantasemseuincessanteprocessodefotossíntese.Essetalvezsejaotruquemais importantedanossabiosfera,queconsistebasicamenteemsugarCO2(dióxidodecarbonoougáscarbônico;vejaoCde“carbono”nafórmula)doar,adicionaráguae,comaajudadaenergiada luz do Sol, produzir moléculas de açúcar que serão usadas, por sua vez, para fabricar matéria orgânica —folhas, frutos, flores, raízes. No fundo, somos todos (nós que não somos plantas) parasitas da fotossíntese,direta ou indiretamente, ao comer alimentos de origem vegetal ou ao deglutir a carne de animais que sealimentavamdevegetais,ouadeanimaisquecomeramoutrosanimaisquecomiamvegetais—acoisapodetermaiscamadasdoqueumsanduíchegourmet.

Bem, acontece que algumas plantas fazem todo o possível para minimizar o uso do carbono-13 em seuprocessodefotossíntese(emresumo,dopontodevistadomecanismocelular,dámaistrabalho).Taisplantassão, por exemplo, as árvores frutíferas, e são conhecidas como plantas C3 (porque uma molécula com trêsátomos de carbono é o primeiro produto de seu processo fotossintetizante). Num episódio relativamenterecente da evolução dos vegetais, porém, algumas linhagens de plantas desenvolveram a capacidade detrabalharmelhorcomocarbono-13.Entramnessacategoriaasgramíneastropicais,comoomilhoeacana-de-açúcar.SãoessasasplantasditasC4.Denovo,ofatorqueexplicaessanomenclaturapeculiaréaproduçãodeumamoléculacomquatroátomosdecarbononosprimeirospassosdoprocesso.Eháaindaplantasquesãointermediárias, por assim dizer, entre o padrão C3 e o C4 — nem tão avessas ao carbono-13 quanto asprimeiras,nemtãoávidasporelequantoassegundas.SãoasplantasquefazemafotossíntesedotipoCAM,em geral espinhosas e adaptadas a ambientes mais secos, embora o mais conhecido expoente brasileirodessegruposejaoabacaxi,quenãoéumfrutododeserto,comosabemos.

Chega de carbono por enquanto, uma vez que nenhuma discussão sobre a paleodieta de um moço comoLuzioficacompletasemonitrogênio.Opontocentral,nocasodesseelementoquímico,éadiferençaentreonitrogênio-14,deátomosmaisleves,eonitrogênio-15,maispesadão.Ocorrequeonitrogênio-15tendeasermais retido pelo organismo do que sua contraparte leve, de modo que, conforme a gente vai subindo nacadeiaalimentar,atendênciaéqueosorganismosfiquem“enriquecidos”emnitrogênio-15.Penseemquemconsome muitos peixes marinhos “nobres”, como o atum ou o salmão: na prática, é como se essa pessoaestivesse comendo filé de onça que só devorava jacaré — ou seja, um superpredador do topo da cadeiaalimentar.

Bem, agora você já sabe o suficiente para continuar. Combinando os dados do carbono e donitrogênio, dá para fazer boas inferências a respeito da dieta de umdefunto demilhares de anos deidade.Foi issooqueospesquisadoresbrasileiros fizeram,comaajudadequatroossinhosdospésdeLuzio,deondevieramosrestosdecolágenonecessáriosparamedirasproporçõesdos isótopos.Eeis,enfim,oparadoxo: apesarde ter sido enterradonuma regiãode sambaquis, Luzioparece ter comidoapenascomidadeorigemterrestreaolongodesuavida—coisascomoplantasC3,plantasCAM(talvezeleapreciassealgumparenteselvagemdoabacaxi),carnedeveado,deporco-do-matoedecapivara.Aspossibilidades que acabei de citar dependem basicamente da comparação entre as proporções deisótopos nos restos mortais do bom Luzio e as que vemos em vegetais e bichos vivos hoje. Emboravivesse à beira de uma importante bacia hidrográfica, o sujeito talvez não tenha comido nem umlambarizinhoaolongodesuarelativamentecurtavida.Emoutraspalavras,asproporçõesisotópicasnãoparecemindicaroconsumodepeixe,nemderio,nemdemar.

OutrodetalheinteressantetemavercomoprópriosepultamentodeLuzio.Emboraseucorpotenhasidodepositadoemcimadeumacamadadeconchas,otúmulofoirecobertocomumasimplescamadadeterra,enãocommaisconchas,comoseriaocasonumsambaqui“clássico”.Alémdisso,oconjuntofoi disposto sobre umapequena elevaçãonatural, enquanto os sambaquis, como já sabemos, são elesprópriospequenosmorrosartificiais.Deseu,orapazlevouparaoAlémapenasalgunsartefatosdeossopolidoeumapontadeprojétildepedra.

Cometi a imprudência de chamar nosso homemde “elo perdido” alguns parágrafos acima,mas ofato é que ainda é cedo para esboçar uma interpretação relativamente segura sobre como Luzio seencaixaria entre o povo de Lagoa Santa, de um lado, e os construtores dos sambaquis litorâneos, deoutro.Aprópriaequipequeoestudounãoarriscaumateseúnicasobreotema.Dequalquerjeito,eisduaspossibilidades(e,claro,háoutras).

AprimeiraéquetalvezaartedaconstruçãodosmorrosartificiaislitorâneosjáexistissenatransiçãoentreoPleistocenoeoHoloceno,masumacoisanãomuitoagradávelteriacoincididocomosprimeirossambaquis: a elevação de vários metros do nível do mar que caracterizou o fim da Era do Gelo—simplesmente porque uma parte considerável da água do planeta, antes “trancada” em geleiras,derreteue foipararnooceano.Oresultadodesseprocesso, comocertamentevocê terápercebido, foium monumental “tchibum” em câmera lenta que saiu tragando tudo o que havia na antiga costa,inclusiveosmaisantigos sambaquis, seéqueexistiamnessaépoca.Suponhamos,portanto,queLuziodescendedosquemigraramrumoaointeriordepoisdeperderemseusterritóriosnacosta,epoderemospostularqueatradiçãofuneráriadeCapelinhaseriaumaespéciederecriação,numcontextoambientaltotalmentediferente,departedaspráticasvigentesnaspraiasdestruídaspelacatástrofepós-Pleistoceno.

Atéquefazsentido,masaoutrahipóteseéque,emvezdetersidoumrefugiadopraiano,ojovemLuzio talvez fosse parte de um lento, seguro e gradual avanço do interior do continente rumo àspossibilidades inexploradasdo litoraldocomeçodoHoloceno.Nesse caso,parece interessantepensarnasestruturasdoRibeiradeIguapecomoprefiguraçõesouprotótiposdasobrasmuitomaisgrandiosasqueseriammontadasàbeira-mar,emespecialnospedaçosdelitoralaosuldeSãoPaulo.

Não posso, é claro, ignorar a interpretação pessoal que o próprio Walter Neves dá à misteriosafigura.Ei-la.“Ameuver,oLuzionãoestavaassociadoaosambaqui,massimaumaprimeiraocupaçãoanterioraele,degentequenãocomiamoluscos”,contou-meNevespore-mail.“Amorfologiacranianado Luzio é absolutamente paleoamericana. Já a morfologia craniana dos sambaquieiros fluviais doRibeira, que não passam dos seis mil anos, é tipicamente mongoloide. Portanto, é apenas mais umexemplo da substituição da morfologia paleoamericana pela ameríndia, com uma lógica temporalinquestionável. Coincidentemente, a morfologia dos sambaquieiros litorâneos é a mesma dossambaquieiros fluviais do Ribeira. Para mim, os do Ribeira vieram do litoral, e não o contrário.Infelizmente,comoossítios litorâneosmaisantigosestãotodosdebaixodaágua,nãodáparasaberseospaleoamericanostambémestiveramporlá”,concluiele.

Precisamosdemuitomaisdadosdoqueosdisponíveishojeparasaberqualdashipótesesestámaispróxima da verdade, obviamente. Enquanto isso, está na hora de continuar a marcha litorânea eexplorarumlitoralcatarinenseque jáeraumbocadobadaladoháváriosmilharesdeanos,aindaquenão pelos mesmos motivos que hoje atraem surfistas e modelos a Florianópolis ou argentinos aCamboriú.

OmarestáparapeixeAcostasuldeSantaCatarina,de fato,dáa impressãodeseroepicentrodossambaquis,o localondeessaartealcançouseumaiordesenvolvimento—ou,pelomenos,umdoslugaresondeelafoiestudadademaneiramais sistemáticaedetalhada, emprojetosarqueológicosde longoprazo, tocadosdesdeosanos1990porpesquisadorescomoMariaDulceBarcellosGaspar,daUFRJ,ePauloDeBlasis,daUSP.É verdade que há concentrações de sambaquis ao longo de boa parte do litoral brasileiro, dasvizinhanças da foz do Amazonas, passando pela Bahia, até alcançar o litoral do Rio Grande do Sul,onde vão ficando progressivamentemenores emais raros, dando lugar,mais oumenos na fronteiracom o Uruguai, a outro tipo de formação artificial costeira, os cerritos (algo como “morrinhos”, emespanhol), feitos com terra, e não com conchas.Mas o retrato dos sambaquis que você vai conheceraqui se baseia principalmente nos sítios majestosos e bem estudados do litoral sul catarinense. Paraoutroslocais,comoorestodeSantaCatarinaouaRegiãodosLagosdoestadodoRiodeJaneiro,oquevoudizeragoratalveztambémvalhaemalgumamedida,maséprecisotermuitomaiscuidado.

Paracomeçaraentendercomoeporqueossambaquissurgiram,umprimeiropassoprovavelmenteinteressante é pensar em termos ecológicos. Com isso, não quero dizer “pensar com consciênciaecológica” ou ambiental.Uso o termo “ecologia” no sentido empregado pelos biólogos, ou seja, o dacadeiade relações entreumaespécie (no caso,umcertoHomo sapiens) e seu ambiente, incluindo aítanto outros seres vivos quanto os aspectos não vivos (ar, água, solo) desse ambiente. Em parte,portanto, os sambaquis são umproduto da ecologia humana—para sermais específico, damaneiracomo grupos de caçadores-coletores pré-históricos se organizaram para explorar os recursosabundantíssimosdo litoralbrasileiro.Nãoqueoutros territórios exploradospelohomemtambémnãosejamderivados,emparte,daecologiahumana.

Osquepensamdemodomaisrígido,aliás,achamqueotermo“caçador-coletor”podeservisto,porsi só, como uma categoria ecológica tão fechada quanto “predador do topo da cadeia”. Grupos quedependemexclusivamenteda caça (oupesca) eda coletadevegetaispara sua subsistência costumamser vistos como uma espécie de “humanidade 1.0”. De fato, até uns dez mil anos atrás, todos osancestraisdosqueestamosvivoshoje,semexceção,eramcaçadores-coletores,oquejustificaessafama,em parte. O problema é que, no mundo dos últimos séculos, esse venerável estilo de vida estevefortementeassociadoasociedadesdepequenaescala(comnomáximopoucascentenasdeindivíduos),altamente igualitárias (os chefes só coordenam seu grupo por consenso, não há classes sociais oulinhagens “nobres”), muito móveis, que conseguem extrair o máximo possível de ambientesnotoriamente difíceis, como o Ártico, os desertos africanos ou as florestas tropicais úmidas (embora,comoveremosnestelivro,essasúltimasnãomereçamtantoassimaalcunhadeambientescasca-grossaoupoucomodificadospeloserhumano).

Acontece que a situação atual dos poucos caçadores-coletores que sobraram no planeta não é“natural”— simplesmente porque, de novo, até ummetafórico ontem arqueológico (os tais dezmilanos atrás), todo mundo era caçador-coletor. Isso tem algumas consequências interessantes. Paracomeço de conversa, o fato de que originalmente esse tipo de estratégia de sobrevivência podia

aproveitar não apenas os recursos ambientais de áreas remotas e inóspitas, mas também, eprincipalmente, os das regiões mais produtivas da Terra. Quando digo “produtivas” (veja que osparênteses terminológicos estão se multiplicando feito coelhos, mas garanto a você que vai valer apena), estou, de novo, falando no sentido ecológico. Um ambiente relativamente mais produtivo éaqueleque,porumasériedefatores,possuimaioreficiêncianatransformaçãodenutrienteseenergiaem biomassa—ou seja, em “peso” de seres vivos, empura e simples quantidade de vida pormetroquadrado (ou cúbico, se estivermos falando de um ambiente aquático) de território. Para fazer umacomparação fácilde entender intuitivamente, aMataAtlântica émuitomaisprodutiva, nesse sentidoespecífico,doqueodesertodoSaara.

Bem, algumas coisas curiosas parecem acontecer quando caçadores-coletores habitam regiõesecologicamente muito produtivas. Embora seja sempre sábio evitar cair no chamado determinismoecológico—aideiadequeassociedadeshumanassãoumprodutodiretodoambienteemquevivem—,tambéméburricedescartarofatodequeascondiçõesambientaisinfluenciamaorganizaçãosocialdanossaespéciedemaneirasimportantes,eéoquepareceocorrernessecaso.Oqueacontecequandoos recursos necessários à sobrevivência são muito abundantes e relativamente fáceis de obter? Paracomeçar, a população cresce— seja porque as crianças pequenas deixam demorrer de fome ou pordoençasinfecciosasquesóconseguemmatarquemjáestádesnutrido,sejaporqueaprópriafertilidadedaspossíveismãesdeixadeserlimitadaporperíodosdeescassez.Nãoéporacasoqueasmulheresdehoje que sofrem de anorexia frequentemente deixam de menstruar, e, portanto, de ovular. O ciclomensalquepreparaas fêmeasdanossaespécieparaengravidartemumcustoconsideráveldeenergiaparaoorganismo.

Commaisgentevivaesaudável,aprópriabuscaporrecursospodeserotimizada.Algunssetornampescadoresmaishábeis,outrosseespecializamemcapturaravesmarinhasetc.Mais importanteainda:torna-se factívelquealgunsdosmembrosdessapopulaçãoprósperadeixemde ladoabuscadiuturnapor comida e desempenhem outras funções, ainda que apenas durante parte de seu tempo. Assim,surgem artesãos especializados, sacerdotes ou soldados. Essa gente pode ser sustentada pelos demaismembros do grupo, “pagando” por um cesto de tainhas assadas com um novo e melhorado arpão.Finalmente, sealguma famíliaespecialmentehábil,matreiraouvalorosaderum jeitodemonopolizarumafatiaimportantedosrecursosdaquelasociedade,abre-seaportaparaasorigensdo“governo”edaestratificaçãosocial—adiferençaentrenobreseplebeus,pode-sedizer,aindaqueessestermosacabemtrazendoàmentedeocidentaiscomonós,criadosnabasedamamadeiraedoscontosde fadas,umaimagem de castelos e princesas que não casa muito bem com a pré-história do Novo Mundo.Finalmente, temos alguns indícios de que uma populaçãomaior e mais densa pode trazer impactospositivos não apenas do ponto de vista econômico, mas também no que diz respeito à inovaçãotecnológica e cultural — em parte, simplesmente porque há mais gente para ter ideias novas, mastambémporquehámaior conectividade entre aspessoas, ou seja, as ideias circulammais e, se foremboas,dificilmentevãosumirdecirculação.Osespecialistasfazemessetipodeinferênciaporque,aoquetudo indica, tecnologias parecem sumir em populações pequenas e isoladas (esse seria o caso dosnativos da ilha australiana da Tasmânia, que tinhamumdos conjuntos de ferramentasmais simplesentreospovosdoplaneta),enquantoflorescemesediversificamquandoasituaçãoéoopostodisso.

Note que todas as possibilidades mencionadas no parágrafo anterior em geral são associadas agruposquejádesenvolverampráticascomoaagriculturaeacriaçãodeanimais—portanto,gentequepodeteràsuadisposiçãoumsuprimentoderecursosbásicosmais“firme”doqueosanimaiscaçadoseas plantas coletadas por grupos supostamentemais primitivos.Oproblema é que, como você já deveestarpercebendo,essadicotomiaentrecaçadores-coletoreseagricultores-pastores(essesegundotermofuieuqueacabeide inventaragorinha,nãoprecisadecorar)éesquemáticademaisenãodácontadoque acontece em ambientes altamente produtivos. Sociedades prósperas, populosas e complexas decaçadores-coletores surgiram, por exemplo, no noroeste da costa do Pacífico dos EUA e do Canadá(grossomodo,nafaixaentrePortland,SeattleeVancouver,paraquemconheceaquelepedaçochuvosoe simpático da América do Norte). E tudo indica que o mesmo fenômeno está por trás dos nossossambaquis.

Paracompreendermelhorocasobrasileiro,anoteaíoutrotermotécnicocrucial:ecótono.Gostodapalavra,emparte,porquenasciemoronumecótono—nocaso,umdoscantinhosdoestadodeSãoPaulonosquaisaMataAtlântica(comconsideráveispedaçosdematadearaucárias)seencontracomocerrado.Ouseja,ecótonossãolugaresondedoisambientesdiferentessetocam,àsvezesformandoumagradação suave entre um e outro, às vezes numa transição mais brusca. Não é preciso quebrardemasiadamente a cabeça para entender por que isso é interessante para um caçador-coletor: vivernuma terra de ninguém ecológica desse naipe permite que o sujeito obtenha o melhor dos doismundos.Acabouopalmitodaflorestafechada?Tudobem,vamoscolheropequidocerrado(forçandoum pouco a barra aqui, só para a situação ficar clara). Caçadores-coletores são naturalistas porexcelência — têm de ser, já que sua sobrevivência depende, em grande medida, do conhecimentodetalhado das espécies animais e vegetais que os circundam. Quando dão a sorte de viverem emecótonos, são capazes de montar uma biblioteca mental incrivelmente variada das diferentespossibilidadesqueencontramdiantedesi.

Portudoisso,nãoserásurpresanenhumaseeudisserqueosmonumentossambaquieirosparecemestar preferencialmente localizados nessas zonas de transição ecológica — levando em conta,obviamente,asespecificidadesdaregiãocosteira.Existe,emprimeirolugar,umaassociaçãoclaraentresambaquis e lagunas— emoutras palavras, lagoas costeiras cuja água tem algumgraude salinidade,quepossuemaomenosumaleveconexãocomomar,estandoseparadasdeleporumabarreiratênue(um banco de areia semissubmerso). Sabemos que, em diversos lugares, essas lagunas hoje sãopredominantemente de água entre doce e salobra,mas já tiveram uma ligaçãomais próxima com ooceano no passado. Além da presença das lagunas, sambaquis também costumam aparecer navizinhançaderestingas(faixasdeterrenoarenoso,comvegetaçãopeculiar,pertodomar),manguezais(que são famosos por serem berçários para muitas espécies de mar aberto, além de contar com seupróprioevariadoelencodeespéciesaquáticasquevivempreferencialmentealimesmo),dunasefaixasdemata atlântica. Faz todoo sentido, portanto, queosmonumentos estejam localizadosna interfacedessa grande variedadedemicroambientes.Trata-se do equivalente paleolíticodemorar pertinhodeumexcelentehipermercadooushoppingcenter.

Eu escrevi “morar”? Bem, aqui a coisa complica um pouco. Em alguns locais, a vizinhança dossambaquisparecetersidoocupadapormoradiasnormais,ajulgarpelapresençaderestosdafabricaçãode instrumentosdepedra(oudevestígiosdedebitagem,nasimpática terminologiadequementende

daartedeproduzir taisartefatos).Demaneirageral,noentanto,ossambaquismaisbemestudadosemonumentaisparecemtersidocriadosprincipalmenteparapropósitosrituaisesimbólicos.SeaLapadoSanto era a Cidade dos Mortos dos paleoíndios mineiros, talvez não seja forçar a barra demais sedissermos que os morros artificiais do litoral catarinense e de alguns outros lugares podem serconsiderados uma versão paleolítica dos cemitérios verticais de hoje — uma maneira grandiosa deeternizarosmortosdaculturasambaquieira.

De fato, a sequência impressionante de enterros é a característica mais marcante dos grandessambaquis. Não sabemos exatamente quando a tradição começou (como já vimos, os mais antigosmonumentospodemter sumidocoma subidadoníveldomar, eocasodeLuzionãocorrespondeaumaanalogiaperfeitacomossambaquisclássicos),masasdataçõesdisponíveiscomeçamemtornodeseismilanosantesdopresenteevãoatéunsdoismilanosatrás(acrescentegenerosasmargensdeerronas duas pontas dessas balizas temporais, por gentileza). Alguns desses sambaquis mortuários têmapenasalgunsmetrosdealtura,masmuitossãobemmaiores,alcançandoaté50metros(ouumprédiodemaisde15andares,seassumirmosquecadaandartemuns3metrosdealtura).Recordeaindaqueesses números se referem ao que sobrou dos sambaquis originais. Em geral, quando os arqueólogosfinalmente conseguem fincar delicadamente suas espátulas num deles, a estrutura já passou pordécadas,oumesmoséculos,deexploraçãomineradora,semfalarnosmilêniosduranteosquaisficaramexpostos às intempéries. É concebível, portanto, que originalmente muitos deles fossem ainda maismajestosos.

AssimcomoRomanãosefeznumdia,éclaroqueessesmonumentosnãosãoobradeunspoucosmeses de trabalho. A maioria deles tem estratigrafia (conjunto de camadas, grosso modo) bastantecomplexa,eospoucosquepuderamserdatadosaolongodeváriasdessasfatiasatéhojerefletemumahistória longuíssimadeuso,quevaidealgumascentenasdeanosamaisdeummilêniodeutilizaçãoritual.Nesseponto,atéqueamineraçãonãofoitãocatastróficaassim:aoarrancarfatiasdossambaquis,osquedestruírampartedessepatrimôniopor vezes acabaramexpondo toda aparte lateralde algunssítios,permitindoumaanálisevisualbastantepráticadaestratigrafiadeles,maisoumenosdomesmomodoquerecortarumbarrancoparaabrirumaestradaàsvezespõeàmostracamadasderochacomfósseisvaliosos.

Oexemplomaisemblemáticodaevoluçãotemporaldeumsambaqui talvezsejaodeJaboticabeiraII,umsítioriquíssimo localizadonomunicípiocatarinensede Jaguaruna.AbastecidospelariquezadecaçaepescadavizinhaLagoadoCamacho,ossambaquieirosergueramaliummonumentode8metrosdealtura,cobrindo90milmetrosquadrados,apartirdeuns2.500anosantesdopresente.Aolongodeoitoséculos,calcula-sequeessesambaquitenhasetornadoolocaldederradeirodescansodemaisde40 mil corpos humanos. Essa estimativa sugere uma população constante de vários milhares demoradores na vizinhança imediata domonumento, bemdistante, portanto, da hipótese de quemeiadúziadecaçadores-coletoresaltamentemóveispoderiamterdadoorigemaosmorrosartificiais.

Tanto Jaboticabeira II quanto outros sambaquis foram recebendo seus eternos inquilinos segundoumametodologia relativamente constante.Ocorpodosdefuntos, geralmente emposição fetal,muitoflexionado, era depositado numa depressão ovalada e rasa (meio metro, se tanto) e recoberto nãoapenas com uma camada de conchas (os chamados berbigões estão entre os tipos mais comuns demoluscos),mastambémcomumagrandequantidadedeoutrosrestosdefaunadaregiãovizinha,em

especial peixes. Tal fato, aliás, é outro argumento que contraria a tese de que os sambaquieiros nãopassariamdecoletoresdemariscoseoutrosmoluscos.Essaideiapareciafazersentidoquandoeleseramvistos como grupos que basicamente seguiam a lei domenor esforço, alimentando-se de um recursomarinho fácil de obter—mas, aomesmo tempo, relativamente pouco abundante e nutritivo, o queforçaria os empilhadores de conchas à vida em comunidades nanicas, que pudessem sobreviver demaneira frugal.Hoje, por outro lado, sabemos que eles eram pescadores demão cheia. Capturavamtubarõescomfrequência,porexemplo(etransformavamosdentesdasferasemcolares,àsvezes),oqueexigia um considerável grau de organização e capacidade de navegação costeira, para não falar decoragem. Mas seu cardápio ia além do pescado: nos sambaquis há ainda restos de baleias, avesmarinhas,golfinhos,pinguins(lembre-sedequeatéhojeascorrentesmarítimasarrastamessesbichosamantesdofriorumoaolitoralbrasileiro)eespéciespuramenteterrestres,comotatuseantas.

Talvezpareçaestranhoachartamanhabicharadaemcimadeumacovarasa,maséprecisolembrarquemuito provavelmente estamos falando de festins funerários, ou seja, de banquetes em honra dodefunto. A hipótese é reforçada pelo fato de que os sepulcros parecem ter sido temporariamentecobertosporcertasestruturas,àguisadepequenastendas,cujapresençaficouregistradaporburacosdeestacasdemadeiraqueforamfincadasaliedepoisapodreceram.Alémdefazerumalautarefeiçãoemhonra domorto, seus parentes e amigos também parecem ter deixado oferendas de alimento— emgeralpeixesmesmo—dentrodoprópriotúmulo,assimcomoofertasnãocomestíveisparaaquelequepartiarumoaosmaresdoAlém.

Nemsó“zoo”,nemsó“lito”Estaéumaboahoraparaapresentaronobreleitoraoszoólitos,talvezosindíciosmaisintrigantesquetemosarespeitodaculturasambaquieira.Apalavravemdogregoesignificaalgocomopedra(líthos)com formatode animal (zôon),mas a ironia aqui, comodizem alguns arqueólogos, é que os zoólitosnemsemprerepresentambichose,aliás,nemsempresãofeitosdepedra,emboraessacombinaçãosejacomum,defato.Naverdade, tambémházoólitosfeitosdeossoecomformatosderoda,engrenagemoumesmofalo(pênisestilizado).

De qualquer modo, a denominação tradicional se justifica, em parte, porque muitas das peçasexibem um grau impressionante de delicadeza, atenção ao detalhe e apuro artístico. Isso ficaespecialmente claro no caso das representações de animais aquáticos, sobretudo peixes, às vezes tãobem-feitasque épossível identificar comprecisãoa espécie àqualo animalpertencia.Dápara saber,porexemplo,quecertozoólitoequivaleaumaenchova,enquantooutropareceumpeixe-cofre.Nocasodosbichosterrestres,emboraotemapareçanãoseduzirtantoosconstrutoresdemorrosdeconchas,hácriaturastãodiversasquantojabutis,tamanduásecutias,alémdeumasériedeaves—amaisfácildeidentificaréalbatroz.Asestatuetas,emgeral,possuemumapequenadepressãonoventre,cujafunçãoainda não está totalmente clara (poderiam ser referências a algum tipo de mitologia da fertilidade?Talvez alguma substância especial fosse depositada ali, também como oferenda ao defunto ou aosdeuses, como o incenso de hoje, ou estaríamos falando de drogas alucinógenas?). Os objetos queacompanhavam o sepultamento também podiam ser utilitários. Há diversos exemplos de pontas delançaoudeflecha,arpõesoumesmoanzóis,cujamatéria-primapodiaserapedraouoosso,aexemplodoqueocorriacomoszoólitos.

Outro debate que ainda está longe de ser concluído tem a ver com os possíveis sinais dediferenciação social entreos sambaquieiros,que seriamdetectáveis graças à análisede seus sepulcros.Presume-se que, se alguns sepultamentos foram agraciados com uma quantidade (e qualidade)especialmentechamativadeoferendas,issoésinaldequeumsujeitodestatuselevadofoicolocadoali— um raciocínio que faz muito sentido em alguns dos túmulos mais famosos do mundo, unsamontoadosdepedrasegípciasconhecidoscomopirâmides.Nocasodos sambaquis,nãohánada tãoóbvioassim,emborarituaisbastantecomplexoscertamentetenhamocorrido.Alémdofestimfuneráriodequejáfalamos,muitosdosenterrosparecemtersidosepultamentossecundários,nosquaisocorpoteriapassadopordiversasfasesdepreparação,inclusiveapinturacompigmentosespeciais,antesdeserrecobertocomasconchasecomumacamadadecarvão.Especula-seatéquecadasambaqui,oumesmodiferentes setores dentro de ummesmo sambaqui, teriam sido reservados para diferentes linhagens(famílias“nobres”?)dapopulaçãolitorânea,emboraaideiasejadifícildetestardiretamente.

Seja como for,umpontoque tem sido enfatizadopelaspesquisasmais recentes é comoa rededesambaquis parece ter servido para estabelecer uma espécie de ordenação espacial de larga escala doterritório onde essas estruturas foram construídas. Em alguns locais, quem ficasse no alto de umsambaqui poderia ter uma visão privilegiada dos demais sambaquis vizinhos, o que pode ter servidotantoapropósitospráticos—sinalização,coordenandoexpediçõesdepescaoumesmoadefesacontra

possíveis invasores — quanto simbólicos, como maneira de estabelecer fronteiras ou marcas de ummodode vida ritual compartilhadopor todomundoque vivia naquelemesmopedaçoda costa. Essaideiaéreforçadatantopeloterritóriorelativamenteamploocupadopelosconstrutoresdesambaquisnolitoralquantopelosmuitostraçoscomunsentreosdiferentesmonumentoseaculturamaterialcontidaneles.Écomose,de fato, todaessagenteestivesseconectadapor ideias, rituais emododevidaafins(certamentecomvariaçõesimportantesdelugarparalugar)aolongodeséculosoumilênios.

Não sabemos exatamente por que a era dos sambaquis chegou ao fim. Não foi por esgotamentoambiental, comcertezaquase absoluta.Os ambientesmarinhos (eos ambientes terrestres adjacentes)explorados pelos sambaquieiros continuaram tão produtivos quanto sempre foram depois que osmonumentospararamdeserconstruídosouampliados.Sabe-se,porém,queo fimdapráticamilenarcoincidiu, grossomodo, com a chegadade grupos que praticavam a agricultura aos antigos domíniossambaquieiros. Nossa próxima missão é tentar entender em que circunstâncias a domesticação devegetais surgiuneste pedaçodaAméricado Sul e como essaprática pode ter alteradopara sempreoequilíbriodepoderentreosdiferentesgrupospré-históricos.

Nãoseisevocê játeveasensaçãodecruzarumafronteira invisível,umaespéciedebarreiramágica,comoo protagonista incauto de um conto de fadas que abre umaporta, ou chega a uma clareira dafloresta e se vê diante de ummundo totalmente diferente douniverso corriqueiro e desenxabidonoqualestavaimersoumsegundoatrás.SenãofoibemissooqueaconteceucomigoenquantocaminhavapelailhaDionísio,norioMadeira,apoucosquilômetrosdePortoVelho—infelizmentenãohaviaelfos(nem curupiras) do outro lado da tal fronteira etérea —, a experiência me soou estranhamenteparecida.

Lembre-sedequeestamosfalandodaAmazônia,aflorestatropicalcomamaiorbiodiversidadedoplaneta.O que significa, lógico, que o normal seria encontrar todo tipo de árvore nomeu caminho,numa variedade estonteante de espécies vegetais. Era com esse cenário, efetivamente, que eu estavatopandoatécruzarotalcírculomágico.Aoadentrá-lo,noentanto,aflorestadiversificadaviravaoqueopessoalda regiãochamadeurucurizal—valedizer,umconjunto relativamentedensodeurucuris,palmeiras que dão um fruto que pode ser consumido por seres humanos, sem outras árvores paraatrapalharahomogeneidadedogrupo.Éconcebível,claro,queesseurucurizalespecíficotenhasurgidoporcausasinteiramentenaturais—umaplantafoidandoorigemàoutrapormeiodosmétodosusuaisdedispersãodesementes(ajudadeanimais,daáguaetc.)e/ouaspalmeiras,possíveisdescendentesdeumamesmapalmeira-mãe,podematé terusado algum tipode armaquímicano solopara impedir ainvasãode espécies concorrentes (acredite ounão, vegetais também são capazes desse tipode truquemaquiavélico).

É concebível, repito,mas talveznão seja lámuitoprovável, porquepadrõesparecidos, envolvendodiversasoutrasespéciesdeplantasemtodasasregiõesdaAmazônia,andamaparecendotodavezquearqueólogos, biólogos e antropólogos resolvem unir forças e examinar os locais que um dia foramfrequentados,ouaindaosão,pelospovosnativosda floresta.Conformeesses indíciossãocotejadoserepensados,fortalece-seasuspeitadequepartesconsideráveisdamata—incluindoaquelasquenuncaforam tocadas por uma motosserra do século XXI — são “culturais” ou, se preferirmos,“antropogênicas” (algo como “geradas pelo homem”, caso você não seja fluente em grego). E issoprovavelmente era aindamais verdadeiromais de 500 anos atrás, antes que se iniciasse a conquistaeuropeiadoNovoMundo.

Temosótimasrazõesparaacreditarqueaaçãohumanamoldouboapartedacomposiçãodeespéciesda Amazônia para seus próprios fins ao longo demilênios, tornando amatamuitomais amigável atranseunteshumanosdoqueprovavelmenteeraantesqueoHomosapienschegasseàAméricadoSul.O intervencionismoecológicodosprimeirosbrasileirosnão ficou sónisso,porém.Este capítulo, comoanuncia seu título, é sobre a primeira grande revolução agrícola a ocorrer em território nacional,quando um time respeitável de vegetais nativos da região se tornou “domesticado” (sim, eu sei queparecequeestamosfalandodeumcachorrinho,masotermousadoparaplantastambéméesse,fazeroquê?),adotandoacompanhiahumanacomoestilodevidadefinitivo.Dequebra,entreumaenxadadaeoutra,havemosdeconfrontaroenigmadachamadaterrapretadeíndio—umtipodesoloque,porsi só, parece ser antropogênico, presente em vastas quantidades nos arredores dos assentamentos do

passadoecapazdesuprir,emgrandeparte,asdeficiênciasdenutrientesqueatrapalhamorendimentoagrícolademuitasregiõesdaAmazônia.Atéquepontoaterrapretateriasidoumainvençãoplanejadapara revolucionar a produção de alimentos na floresta pré-histórica? E, aliás, podemos recriá-la emlaboratório(depreferênciaemlargaescala)?Eisquestõesquedeverãonosdarpanoparamanga.

Podeparecermeioestranhoqueeudêdestaquejustamenteàregiãoamazônicaaofalardessetema— afinal, até pouco tempo atrás, os cafezais do Sudeste e a cana do litoral nordestino eram nossossinônimoshistóricosdepujançaagrícola.Bem,tiretaisimagenstradicionaisdasuacabeça,gentilleitor.Canaecafé,nuncaédemaisdizer,apareceramnestasbandascomoprodutosimportados(daÁsiaedaÁfrica,respectivamente).Quandopensamosemcultivosgenuinamentesul-americanos—praticamenteosúnicosaosquaisoshabitantesoriginaisdocontinentetinhamacessoantesdeColomboedeCabral—,aAmazôniaéumdosmaioresceleirosdediversidadeagrícolapré-histórica,comparávelapenasaosAndes (não por acaso, o segundo local é o berço das civilizações mais poderosas deste canto domundo).

Antesdachegadadosnavios ibéricos, a supremaciaagrícoladas lavourasdeorigemamazônicanoterritórioqueviriaasetornaroBrasilsóteveumdesafiantesériovindodeforadaregião:omilho,um“invasor”daAméricaCentralcujachegadaaquiaindaprecisaserentendidacommaiscuidado(outratarefa para este capítulo). Aliás, quando estive em Rondônia em 2010, os arqueólogos liderados porRenatoKipnis,quefaziamumlevantamentoemergencialdossítiosdaregiãoduranteaconstruçãodaUsina Hidrelétrica Santo Antônio, antes que a obra inundasse os resquícios arqueológicos, tinhamacabado de identificar uma camada de terra preta comquase oitomil anos, o que seria o indício deatividade agrícolamais antigo do Brasil. “Se não era agricultura propriamente dita, eles, nomínimo,estavamfazendoummanejointensodosrecursosvegetais”,contou-meKipnisàépoca.Daí,portanto,ojustificadíssimoenfoqueamazônicodestapartedolivro—emboraumadataçãoisoladacomoessanãopossasertomadacomoverdadeabsoluta,obviamente.

UmarápidaolhadaemqualquermapadaAméricadoSulésuficientepararevelarqueaAmazôniaé um troço gigantesco, que não apenas abrange um pedaço imenso do território brasileiro comotambémseestendeporváriosdenossosvizinhos,doPeru,nooeste,àsGuianas,noleste.Issosignifica,em primeiro lugar, diversidade ambiental e biológica: não existe “uma”Amazônia,mas uma imensavariedadedeflorestasditas“deterrafirme”(ouseja,quenãocostumamficarsubmersasnaépocadaschuvasmaisintensas)ealagadas,áreasdesavanasedecamposabertos,matasmaisoumenossujeitasàsecaeatéumaououtraregiãomontanhosa.Cadaumadessassubdivisõestemseuprópriopotencialesuaprópriahistóriacomofontedevariedadesagrícolas,eseráimportanteterissoemmenteconformetentarmos entender a origem dos principais cultivos amazônicos. Outro detalhe que jamais deve seresquecido, e que já mencionei na introdução deste livro, é que não existiam postos de fronteira,alfândegasoumesmomapashámilharesdeanos.Ouseja,nãofaztantosentidoassimconsiderarqueocultivodeumaespéciedevegetalcomeçouunscinquentaquilômetrosdoladodecáoudoladodeládadivisadoBrasil comaBolíviaoucomaColômbia,por exemplo.Seja láqual tenha sidoo “berço”exatodessalavoura,ofatoéqueprovavelmenteseespalhoueinfluenciouapré-históriadaquelaregião.Portanto, quando você ler o termomade in Brazil no título do capítulo, pode colocar um asteriscomentalnele,sequiser—estouusandoaexpressãonumsentidodeliberadamenteamplo.

Éclaroque temosalgumasquestõesgeraisnemumpoucosimplesaenfrentarantesdechegaraospormenoresdanossarevoluçãoagrícolanativa.Comoéqueumindígenapré-históricoacordaumbelodiaediz“Ah,nadaparafazerhoje,quetaldomesticarumaplantinha,hein”?Quaisosmecanismosquepermitem“antropogenizar”umpedaçodefloresta?Equalaligaçãoentreessasduascoisas?

SegredodeTostinesGarantoquenãoestouusandoonomeda famosamarcadebiscoitos (oubolachas, comodizemosospaulistas) para faturar um extra com publicidade. Ocorre que, para começo de conversa, temos umclássicodilemadeTostines(aquelasbolachasque,afinal,vendemmaisporquesãofresquinhasousãofresquinhasporquevendemmais?)nasmãosquandooassunto sãoasorigensdaatividadeagrícola eseuimpactosobreoestilodevidadanossaespécie.Ora,seráqueocultivodevegetaiséoresponsávelporcriarpopulaçõesnumerosasesedentárias(ouseja,quepodemmorarduranteanos,décadasouatéséculosnomesmolugar,explorandoaquelepedaçodeterra)?Ouseráqueocostumedeplantaréumaconsequênciadesseadensamentopopulacionale sedentarismo,nosentidodeque,quando temmuitagente concentrada num só lugar, surgem mais incentivos para que se explore um determinadoambientedemaneiramais constantee eficiente,de formaquealgomuitoparecidocomaagriculturaacabasetornandoumasoluçãológicaparaaequaçãodasobrevivência?

Nãoexistemrespostassimplesparaessedilema,easindicaçõesqueospesquisadoresjáconseguiramobteremdiferentes lugaresdomundoondeaatividadeagrícolaemergiude forma independente sãocomplicadaseconflitantes.Éprecisolevaremcontatantoaparteambientalquantoapartehumanadaequação—ou seja, tantoabiodiversidadeeas condiçõesclimáticasdo lugardequeestamos falandoquantoaorganização social e culturaldosmoradoresdessa região.Comoexisteumavariação imensanesses fatoresmundo afora, emesmo entre áreas relativamente próximas domesmo continente, ficadifícil imaginarummodeloúnico e totalmente coerente.Háapistado timing: tanto aqui quanto emoutros lugares planeta, as técnicas agrícolas parecem surgir nãomuito depois do fim da Era doGelo(grossomodo, apartirdedezmil anos atrás, portanto),umperíodode severasmudanças ambientais(como alterações na estrutura da vegetação por causa do climamais quente emais úmido, além dosumiçodedezenasdeespéciesdegrandesmamíferos)queteriamforçadoosgruposdesereshumanosa reformularem suas estratégias de sobrevivência. Mas, mesmo com esse ponto em comum nosepisódiosdegêneseagrícolaglobal,édifícilelucidaronossodilema.

Umdetalheindiscutíveléque,comoacabamosdevernocasodosconstrutoresdesambaquis,nãoéestritamente necessário que um grupo de seres humanos domine o cultivo de plantas se a ideia égarantir o sustento de uma população relativamente numerosa. Nas condições certas — como acapacidadede explorarumoumais ambientesnaturalmenteprodutivos—, a caça, apesca e a coletapodemdarcontadorecado.Alémdisso,oexemplomaisfamosoeinfluentedegênesedaagricultura,odo antigo Oriente Próximo (a região do chamado Crescente Fértil, num arco que vai de Israel aoIraque, passando pela Turquia e pela Síria), sugere que populações densas e mesmo uma formarudimentar de vida urbana (com algum tipo de especialização profissional, esculturas e templosgrandiosos)teriamsurgidoantesdaagriculturapropriamentedita.Poroutrolado,quandoobservamosos registros disponíveis sobre o fenômeno na América do Sul tropical, a conclusão parece ser ocontrário:mesmocomindíciosdecultivo,ocrescimentosignificativodapopulaçãoeosurgimentodegrandesaldeiassãocoisasquesóaparecembemmaistarde—àsvezesváriosmilêniosmaistarde.

Confuso, hein? Bem, uma aproximação possível entre os dois polos aparentemente opostos dagêneseagrícolaéaideiadeintensificaçãodousodosrecursosnaturaispelosmembrosdanossaespécie.Essaintensificaçãonãoprecisaserrepentinanemradical:podeacontecer,aomenosemsuasprimeirasfases,numritmoquaseimperceptível.Mas,conformeseusefeitosvãosesomandoaolongodosséculosemilênios,oambientequeacabasurgindoestarácobertode“impressõesdigitais”daaçãohumana.Emdiversos casos, certas sociedades vão além e acabam apostando num controlemaior de seus recursosalimentares, finalmente chegando, por vias muitas vezes tortuosas, ao que hoje chamamos deagricultura.

Talvezsejapossívelvislumbraralgomuitoparecidocomasfasesiniciaisdesseprocessoaoestudarocotidiano de algumas tribos amazônicas modernas, como os Nukak, grupo de algumas centenas dealmas que foi acompanhado pelo arqueólogo argentino Gustavo Politis. Vivendo na fronteira daColômbia comoEstadodoAmazonas, emáreas distantes dosprincipais rios da região, osNukakdehoje não são caçadores-coletores “puros”,mas chegam bem perto disso: só 5% de sua dieta vêm devegetaisdomesticados.Alistadetiposdeplantasqueutilizaméampla(113espécies,dasquaisnoventacrescem naturalmente na floresta), e os membros da etnia levam uma vida altamente móvel,construindo abrigos simplificados e levantando acampamento de setenta a oitenta vezes por ano. Sevocêfizerascontas,verificaráqueissoequivaleaficar,emmédia,dequatroacincodiasemcadalugarantesdefazerasmalasepartirparaoutra.

Gente que vive desse jeito não faz nem cócegas na estruturamajestosa da floresta, certo? Errado.PolitismostrouqueasconstantesandançasdosNukakporsuaregiãonatalsãosuficientesparaalterarsignificativamenteacomposiçãodeespéciesdamatanoslugaresondeelesacampam.Umdosmotivospara isso é bastante simples: paramontar suas cabanas rudimentares, eles abrem clareiras, nas quaisgerminam tipos de plantas que não conseguiriam colonizar aquele pedaço de chão de outro jeito,simplesmente porque a mata fechada e “virgem” não é um ambiente propício para vegetais queprecisam de um pouco mais de luminosidade para crescer. Outro detalhe importante é o seguinte:emboracentoetantasespéciesdeplantaspareçammuitacoisaparanós,queextraímosumaquantidadedesproporcionaldascaloriasdequeprecisamosdeunstrêsouquatrocereais(trigo,arrozemilho,porexemplo),essenúmeroaindaassiméquasenadapertodasdezenasdemilharesdeespéciesvegetaisdaAmazônia,amaioriadasquaisnãoproduzalimentoparasereshumanosnemparaoutrosmamíferos.Caçadores-coletores que descartam sem querer alguns exemplares do subgrupo de plantas queconsomem—tirandoacascaduradecertosfrutosdepalmeirasedeixandoasementecairnochão,porexemplo — passam a afetar a composição de espécies dos lugares por onde passam, “plantando”indiretamenteas taispalmeirasporali.Finalmente,gostariade lembrarao insigne leitorqueospovosda floresta também gostam de comer comida quentinha e fazem tanto cocô quanto eu e você.Resultado:composiçãoquímicadosololigeiramentealteradapelapresençadocarvãodefogueiraseporvisitasàpartetraseirademoitas.

HácadavezmaisindíciosdequecoisasdessetipoaconteceramdurantemilharesdeanosemtodaabaciadoAmazonaseadjacências,sejaporobraegraçadeumnúmeroinfindáveldepequenosbandosdecaçadores-coletores,sejapelaaçãodegentemaisnumerosaesedentária.Umfruto(semtrocadilhos)desse processo talvez se encontre na cozinha da sua casa neste exatomomento. É consenso entre osespecialistas que a ampla distribuição da castanha-do-pará (Bertholletia excelsa) pela regiãoNorte do

Brasil epelospaísesvizinhosnãoénatural,masderivadaaçãohumana,mesmoque,namaioriadoscasos, ninguémplante diretamente a árvore, que pode chegar aos quinhentos anos emesmo aosmilanos de vida (o que significa que a distribuição da espécie ainda reflete, ao menos parcialmente, asituação antes da chegada dos portugueses). Em alguns casos, essa ampla distribuição geográfica“artificial”acabagerandoconcentraçõesanormalmentedensasde indivíduosdaespécie,os chamadoscastanhais(muitoparecidoscomourucurizalqueencontreiemRondônia,comodescritonocomeçodocapítulo).

Algomuitosemelhantetambémvaleparaoutrasespéciesdeárvorescujosfrutossãoconsumidosporgente faminta: é comum que elas sejam encontradas longe de seu habitat natural (palmeiras quenormalmente cresceriam em áreas mais elevadas “vão parar” em locais baixos, perto de rios, porexemplo) e, o que émais importante, em associação com camadas de carvãono solo, provavelmenteproduzidaspelaaçãohumana.Nãoéporacasoque,aindahoje,aqueimadeáreasdeflorestasejaumdosmétodosusadospara iniciaroplantioempequenaescalanaAmazônia.Umestudopublicadoem2012 por pesquisadores do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia) mostrou que essesefeitosaparecemmesmonasáreassupostamentemaisisoladasdaregião,asqueficamdistantesdosriosque, tanto na pré-história quanto hoje, são as principais “estradas” amazônicas. Eles estudaram ochamado interflúvio Madeira-Purus (ou seja, a região entre esses dois grandes rios), no estado doAmazonas, fazendo um inventário das espécies de árvores em seis diferentes locais e medindo aquantidadede carvãono solo, bem como apresençadematerial arqueológico.Resultado: embora osvegetaisusadosporsereshumanosdefatofossemmaiscomunsnumraiodeatévintequilômetrosdosprincipais rios (até 40% de espécies arbóreas “úteis” compunham amata nesse espaço), a proporçãoainda era alta emdistânciasdequarentaquilômetrosdesses rios (até23%de árvores exploradaspelohomem).Eo solo ainda era rico emcarvão em locais longedos grandes rios, aindaquepróximosdecursos d’água secundários. Em outras palavras, a julgar por essa amostragem, é muito difícil queexistissemmatasrealmenteintocadas,puramente“naturais”,naAmazôniapré-Cabral.

Florestasantropogênicasprovavelmentenãosãoboasapenasparagente.Aalteraçãonacomposiçãode espécies damata tende a aumentar a produçãonatural de frutos que também são apreciados pormamíferos de maior porte (antas, porcos-do-mato, veados), atraindo tais bichos para a mira doscaçadoresnativos.Emcertosentido,asflorestasculturaisnãoseriamapenasjardinssemicultivados,mastambémreservasdecaça,portanto.

ManejadoversusdomesticadoTodas as situações que acabei de descrever são suficientes para explicar as “impressões digitais”humanasmaissutisnaAmazônia,masaindanãosãosuficientesparaproduzir lavouraspropriamenteditas. É aqui que precisamos nosmunir de algumas distinções conceituais sutis,meio chatinhas,masquehaverãodenosajudaraentendercomogruposdesereshumanosqueinicialmentevivemmaisoumenoscomoosNukakacabampaulatinamentesetornandoagricultoresdeverdade.Paraisso,éprecisolevar em conta que o processo é uma espécie de parceria (em larga medida ou mesmo totalmenteinconsciente,claro)entrepessoaseplantas,commodificaçõescomportamentaiseàsvezesatégenéticasdeambososlados.

Lembre-sedeque “pomares”deárvores frutíferas eoutrasplantasúteispodemaparecerdemodoseminatural nos arredores dos acampamentos de caçadores-coletores que deixam certas sementescaíremnochão.Supondoque,porqualquermotivo, taisacampamentos sejamocupadosporperíodosrelativamentelongos,éfácildeimaginarquealgunsdosmoradorespercebamarelaçãoentreenterrarasemente no solo e ver a planta nascer. Afinal, estamos falando de gente cuja sobrevivência dependemuitoda capacidadedeobservar cuidadosamenteos fenômenosnaturais.Umavezque eles sedeemconta do ritmo médio do ciclo de vida daquela planta — quanto tempo ela demora para produzirfrutos, por exemplo—,podematéplantar as sementes, sair paraum longo circuitode expediçõesdecaçaecoletaevoltarparaolugardeondetinhamsaídoatempoderecolherumpoucodecomidaporali.Poroutrolado,sabemosqueosoloreviradonosarredoresdosacampamentosatrai,porsisó,certasplantas com ímpeto colonizador, que crescem bem nesse tipo de ambiente e às vezes também sãosaborosas.ÉoquepareceteracontecidocomosvegetaisdogrupoDioscorea,correspondentesaocaráeaoinhame,típicosdaAméricadoSule,peloquesabemos,domesticadosnasredondezasdaAmazônia.

Esse primeiro passo que descrevi já pode ser considerado manejo, mas ainda não chega a serdomesticaçãopropriamentedita.Nofundo,adiferençaentreumacoisaeoutratemavercomoquantoa evolução conjunta (ou coevolução, como dizem os biólogos) de humanos e plantas já avançou.Olhandoacoisadanossaperspectiva—atéporque,óbvio,plantasnãotêmsistemanervosoe,portanto,nãocontamcomperspectivaprópria—, é comoseoHomo sapiens assumisseopapel daboa e velhaseleçãonatural,aqueleprocesso inexorávelque levaàmultiplicaçãodosseresvivosquesão talentososnaartedesobrevivere,principalmente,naartedesereproduzirmaisdoqueaconcorrência.Nocaso,os sereshumanosque escolhemplantardeterminada semente, enãooutra, estão selecionando (daí onomedoprocesso)osvegetaisqueterãomaischancesdedeixardescendentesnageraçãoseguinte.Atépoucos anos atrás, tal seleção era feita puramente na base do famoso olhômetro (ou “gostômetro”,quando falamosdeplantasqueservemdealimento):o sujeitoviaquaisplantas tinhamcaracterísticasdesejáveis (sabor agradável, polpa firme, produção abundante e rápida de frutos etc.) e decidiamultiplicar justamente essas— e não as de gosto amargo e que apodreciam rápido, lógico—no seuquintal.

No fundo, esse processo consiste emolhar a variabilidade genética natural das plantas escolhidas,determinar o que interessa à nossa espécie e favorecer a reprodução apenas das que carregam

característicasquepodemnosserúteis.Àsvezesessestraçossãoexageradosdetalmaneiraque,apósoefeitocumulativodeséculosemesmomilêniosdeseleçãoartificial(ouseja,seleçãonaturalconduzidapelo homem), o vegetal em questão perde a capacidade de sobreviver na natureza, ou aomenos decompetirde formabem-sucedida comoutras espécies.Chegandoa esseponto, temos adomesticaçãopropriamentedita.Umexemploclássicovem,denovo,doOrientePróximo,olocaldeorigemdotrigoe da cevada (agradeçam aos sumérios pela cervejinha, pessoal). Quem vê aquelas lindas imagens decampos de trigo com espigas maduras e recheadinhas de grãos, balouçando ao vento (como dizia opessoal do século XIX), em geral não se dá conta de que a cena romântica seria um desastre paraqualquervegetalselvagemquesepreze.Sesuassementesestãomaduras,meufilho,onegócioédeixarqueelascaiamnochãoegerminemomaisrápidopossível—docontrário,adeusinho,próximageraçãodetrigo.Defato,eraissooqueotrigoselvagemfazia,estilhaçandoautomaticamentesuasespigas,mashavia alguns cereais com alterações genéticas cujos grãos continuavam lá em pé, de bobeira. Foramesses exemplares que os primeiros cultivadores do Crescente Fértil passaram a propagarpreferencialmente(depoisdecomeramaiorpartedeles),dandoorigemaotrigodomesticado.

Ocasodocerealqueacabougerandoopãozinhonossodecadadiaseencaixanumespectrovariadodeefeitosligadosàdomesticação,dosquaisnemtodossãotãoextremosassim.Omaiscomuméqueasplantasdomesticadasproduzamfrutosmaioreseconcentremmuitomaiscertos tiposdenutrientes—em especial carboidratos, gordura ou proteína — do que suas parentas selváticas, sem que issosignifique necessariamente uma dependência tão abjeta da ação humana quanto a dos trigais. NaAmazônia, esse é o caso da pupunha (Bactris gasipaes), que hoje faz sucesso gastronômico por seupalmito,apesarde ter sidodomesticadaporcausade suamadeiraede seus frutos.Certasvariedades“humanizadas”depupunhaproduzem frutos20%maioresqueas formas selvagens.Algunsdos tiposda planta possuem frutos mais ricos em óleo, enquanto outros são valorizados pela quantidade deamido, que permite que sejam fermentados. As diferenças relativas ao grau de dependência daspopulações de vegetais — ou seja, quanto elas precisam de nós para sobreviver — levam algunsespecialistasafalaremgrausdedomesticação.Haveriacultivossemidomesticados(cujascaracterísticasgenéticasjácarregamamarcadaseleçãoporpartedehumanos,masqueaindasevirambemsemumamãozinhadeprimataseretosepelados),alémdosplenamentedomesticadosdequefalamosacima.

Um inventário recentedos vegetais amazônicosquepossuempopulações cultivadas, aomenos emalgumgrau(oqueincluiasplantassemidomesticadasdasquaisacabeidefalar),chegouaumnúmeroportentoso:nadamenosque83espéciesnativas.Dáumtrabalhoconsiderávelestimarondeequandotaisespéciescomeçaramseurelacionamentocomoserhumano,porqueocaloreaumidadedabaciaamazônica não são exatamente amigáveis quando o assunto é a preservação de restos vegetais commilhares de anos de idade— ao menos com tamanho e forma reconhecíveis, como folhas e caulesinteiros,porexemplo.

Isso significa que os primeiros registros de plantas domesticadas que são claramente oriundas dafloresta muitas vezes acabam vindo de regiões insuspeitas, como a costa desértica do Peru,simplesmenteporquenaqueleclimasecoosresquíciosvegetaissepreservammelhor(nãoporacaso,foinessesmesmoslocaisperuanosquealgumasmúmiaspré-colombianasespetacularesforamdescobertas).Na prática, portanto, os dados arqueológicos obtidos naquelas paragens “meio nada a ver” sugeremfortementequeadomesticaçãoinicialaconteceubemantes, longedali,deformaquehouvessetempo

para que a variedade cultivada se difundisse de seu local de origem para a nova área. Um jeito decontornaressadordecabeçarelativaàpreservaçãodosrestosvegetaiséestudar“microssobrinhas”deplantas:pólen(quepodevirtantodofundodelagosquantodefezeshumanas),fitólitos(literalmente“pedras de plantas”, grãozinhos de sílica presentes nas folhas e caules, que variam de espécie paraespéciee tambémtendemasermaioresemvegetaisdomesticados, indicandoapresençadeatividadeagrícola)egrãosdeamido,queosarqueólogoscuidadososesortudospodemencontraraténosdentesdegentequemorreuhámilênios.

UsartaismetodologiasajudaatirarumpoucoosholofotesdacostaperuanaedosAndesquandooassunto é o iníciodo cultivo e da agriculturanaAméricado Sul.Tambémhá algumasdatações bemantigas,iguaisousuperioresaoitomilanos,daColômbia,doEquadoredoPanamá,porexemplo.Nãotemos sido tão sortudos no que diz a respeito aos achados no atual território brasileiro: evidênciasdiretasdeatividadeagrícolasãobemmaisrecentesporaqui,aindaqueasindiretas(comoaterrapretade Rondônia ou a presença de cerâmica, inovação considerada típica de populações de plantadores)tenhammaisoumenosamesmaidade.

Umdetalhevemaoresgatedareputaçãodosnossosprimeiros lavradores,porém:oconhecimentominucioso da biodiversidade vegetal. Analisando tanto as características morfológicas (o “jeitão” dasplantas, emsuma)quantooDNAdosvegetais,osbotânicosconseguemteruma ideiabastanteboaarespeito do parentesco entre as diferentes espécies e também, dentro de umamesma espécie, sobrecomoasmuitasvariedadesdeumaplantadomesticadaserelacionamentresi.Dáumtrabalhodocãomontar essa teiade relaçõesnopapel (ounocomputador,hoje emdia),mas tal trabalheiradápistassobrearegiãodeorigemdeuma lavouramoderna.Emgeral,aregraéclara,comodizaqueleárbitrotelevisivo:omaisprováveléqueumaplantahojecultivadatenhasurgidonasredondezasdolocalondeestáamaiorvariedadedeseusparentesselvagensrelativamentepróximos.

Nãoémuitocomplicadoentenderoporquêdisso.Emespecialquandofalamosde lavourasque játinham se espalhado por uma região ridiculamente grande do Novo Mundo na época do primeirocontatocomoseuropeus—éocasodamandiocaedomilho,ambospresentesnas trêsAméricasnofinzinho do século XV —, o mais provável é que as formas mais primitivas da planta tenham sidotiradasdeseucontextoambientaloriginal(ondehaviaumacambadadeparentesselvagensemvolta)elevadas para regiões onde nunca tinham crescido naturalmente (por lá, óbvio, não haveria parentespróximos), o que ajuda a denunciar a origem do cultivo.A comparação pode parecer bizarra,mas acoisafuncionademodomuitoparecidocomidiomashumanos(osquais,comoespéciesvivas,tambémsurgem e se diversificam por um processo de descendência com modificação). Se um linguista ETpousassenaTerraumbelodiaeexaminasseadistribuiçãodaslínguasfaladaspelamaioriadaspessoasdehojenocontinenteamericanoenaEuropa,não teriamuitadificuldadeemconcluirqueo idiomamajoritáriodosEstadosUnidossurgiudooutroladodoAtlântico,enãoqueapareceunaAméricaesódepois invadiu a Europa—mesmo se não soubesse que a língua se chama inglês (“dã, assim é fácil,lógico que veio da Inglaterra, né?”). Enquanto naAmérica doNorte nosso linguista com anteninhasnãodetectarianenhumafalamuitosemelhanteao“americano”(vamoschamá-loassimsóparaadotaraperspectiva alien), bastaria analisar as línguas faladas nos arredores do mar do Norte — holandês,dinamarquês, dialetos do alemão — para sacar o parentesco com o inglês. Guardadas as devidasproporções,acoisafuncionabasicamentedomesmojeitocomespéciesdeplantaseanimais.

SaudaçãoàmandiocaJáfalamosbrevementedapupunha,masagoraéomomentodefazeruminventáriomaiscompletodariquezaagrícolanativadaAmazônia.Épraticamenteobrigatório,portanto,começarcomumasaudaçãoàmandioca(emlatimcientífico,Manihotesculenta),hojeaprincipal fontedecarboidratosparanadamenosqueoitocentasmilhõesdepessoasplanetaafora,ouquatro“brasis”,sevocêpreferir.ANigériaéomaiorprodutormundialhoje.

Conformeeu já tinhadadoaentenderalgunsparágrafosatrás,osregistrosmaisantigosdocultivovêmdelongedaqui,dosvalesdeZanaeÑanchoc,nacostadoPeru,etêmseusoitomilanosdeidade.Noentanto,oPlanaltoCentraldoBrasilabrigamaisdecinquentaespéciesdogêneroManihot(lembre-sedequeaprimeirapalavrinhalatinaéogênero,enquantoasegundadesignaaespéciepropriamentedita, assim como nosso gênero é Homo e nossa espécie é sapiens). De fato, análises de DNA têmmostrado que toda a diversidade genética da mandioca cultivada corresponde apenas a umsubconjuntodadiversidadedeumasubespécieselvagem,aM.esculentaflabellifolia,típicadosudoestedaAmazônia.Éaltamenteprovável,portanto,queosprimeirossujeitosasedeliciaremrotineiramentecomasraízesdaplantatenhamvividoemalgumlugardonortedoMatoGrosso,deRondôniaoudoAcre, embora as regiões vizinhas da Bolívia também estejam no páreo na disputa pelo título deverdadeiroberçodaespécie.OsregistrosarqueológicosmaisantigosnoPerupodemserexplicadospelamaior facilidade de preservação de restos das plantas por lá, graças ao clima seco — a chuvaradaamazônica faz a matéria orgânica apodrecer com facilidade muito maior. Coincidência ou não,“mandioca” é uma palavra tupi, e as etnias que falam idiomas do tronco linguístico tupi muitoprovavelmentesurgiramnessamesmaárea,comoveremosalgunscapítulosadiante.

Comprarmandiocajádescascadanosupermercado,cozinharaditacujaefritá-lanãorequerpráticanemhabilidadenoBrasilurbanodoséculoXXI,masocuriosoéqueavariedadepreferidadaplantanamaioria dos grandes assentamentos amazônicos pré-Cabral (e ainda hoje, entre muitas tribos) eraaltamentevenenosasenãofossepreparadacommuitocuidado.Quandoaraizédanificadadealgumaforma, são liberadasmoléculasque contêmcianeto, asquaispodemafetaro sistemanervoso ematarquem as consome. Relatos sobre exploradores espanhóis do século XVI que, famintos, puseram-se adevorar grandes quantidades desse tipo de mandioca e depois tiveram uma morte horrível são dearrepiaroscabelos.

Paraosespecialistas,adicotomiaentremandioca“doce”(aqueosurbanoidescomem)emandioca“amarga” ou “brava” sugere um processo intrincado de seleção artificial, ao longo do qual uma M.esculenta ancestral com graumédio de toxicidade gerou variedades “mansas” e “bravas” conforme anecessidadedofreguês.“Necessidade?Querdizerquealguémachouumaboaideiaplantarmandiocavenenosa?”,perguntaráoleitor.Poisofatoéquesim.Amandioca-brava,justamenteporcausadeseuveneno, costuma se virarmelhor diante de pragas (o que envenena humanosmuitas vezes tambémafeta outras espécies) e, portanto, é mais saudável e produtiva quando cultivada em grande escala.Plantá-la,pois,pode ter sidoumasábiadecisãodecusto-benefícioentregruposcompopulaçõesmaisdensas. Para poder se alimentar da planta e ainda assim continuar vivinhos da silva, os povos

amazônicosdesenvolveramumpacote tecnológicopróprio, comum sistemadepreparo cuidadosodefarinha, por exemplo, de beiju (a versão indígena do pão sírio, digamos) e de bebidas fermentadaslevemente alcoólicas, com métodos que extraem o veneno dos derivados da planta, muitos delesenvolvendo o uso de grelhas especiais de cerâmica. Com capacidade de crescer de forma vigorosamesmonos solos altamenteácidos epobresda floresta, amandioca, e emespecial amandioca-brava,provavelmente foi um dos elementos-chave para o desenvolvimento de sociedades populosas ecomplexasnaregião.

DuasfrutasdestinadasafazersucessonomundointeirosãoigualmenteprovenientesdaAmazônia,ocacau(Theobromacacao)eoabacaxi(Ananascomosus).Nocasodoabacaxi,quetambémalcançouumadistribuiçãoamplapelasAméricasnosséculosanterioresàconquistaeuropeia, tudo indicaquearegiãoaonortedorioAmazonas,etalvezmaisespecificamenteaáreanoentornodasGuianas,sejaseulocaldeorigem.Jáasituaçãodocacau(e,obviamente,adeseuderivadomaisfamoso,ochocolate)émuitomaiscomplicadaeinteressante.

Asevidênciasmaisfortesdecultivonaerapré-colonialvêmdoMéxicoedaAméricaCentral.Tanto“cacau”quanto“chocolate”sãopalavrasquechegaramàslínguasocidentaisporintermédiodonahuatl,o idioma clássicodos astecas, e onome latinoTheobroma, “alimento dos deuses”, foi cunhado comoreferênciaaopapeldassementesdafrutanamitologiadoimpériopré-colombiano.Deacordocomtaismitos, foramasprópriasdivindadesquedescobriramocacauesuaspossibilidades(inicialmentecomobebida).Fascinante,defato,sóqueasanálisesgenéticasmostramclaramentequeoscacaueirosdehojepossuem parentes selvagens que se concentram na fronteira do Peru com o Brasil e também nafronteiracolombiano-brasileira.Háquemache, inclusive,queomelhorseriaclassificaraplantacomosemidomesticada,pela facilidadecomque sevira sozinhaemregiõesde floresta tropicalquando suasplantaçõessãoabandonadas.Combasenessesdados,existeapossibilidadenadadesprezíveldequeaespécietenhapassadoporumadomesticaçãoincipienteaindadentrodaAmazônia,comoobjetivodeaproveitarsuapolpa,enãoassementes(hojeusadasparaafabricaçãodochocolate).Sómaistarde—nomínimoháunstrêsmilanos,ajulgarpelosdadosobtidossobrepovoscomomaiaseastecas—équeo cacau teria sido levado rumo ao norte. Isso indica, aliás, a existência de conexões comerciais pré-históricas intrigantes, aindaque talvez indiretas, entreaAmazôniaeoMéxico, conformeveremosnocasodeoutraslavouras.

A lista poderia continuar quase indefinidamente: as pimentas do gênero Capsicum (como apimenta-malagueta) têm suamaior diversidade de espécies no Brasil e na Bolívia, e em especial naAmazônia;plantascomoabatata-doceeo tabaco tambémpossuemcentrosdeorigemnoentornodaregiãoamazônica;ehá,éclaro,osvegetaisqueaspessoasnormalmenteassociamdeformamaisdiretaà floresta, hoje cada vez mais populares em todo o Brasil e mesmo mundo afora, como o açaí, ocupuaçu(primodocacau,aliás)eoguaraná.

Vegetaisdomesticadosforadaregiãoamazônica—e,emalgunscasos,muitolongedali—ajudamacompletaroquadrodeumaagriculturaextremamentediversificadanoBrasilpré-cabralino.Nessaparteda lista, é bem provável que a espécie mais importante seja o milho (Zeamays), que passou a sercultivadonoMéxicohácercadenovemilanoselogoseespalhourumoaosul.NaAméricadoSul,asprimeirasapariçõesdaplantadatamdeuns setemilanosatrás, inicialmenteemregiõesmaisaltasdaColômbia e depois no Equador. Até pouco tempo atrás, acreditava-se que essa passagem pela parte

ocidental e andina do continente teria sido um estágio necessário para que tanto omilho quanto ofeijão comum (Phaseolus vulgaris) chegassem ao Brasil, mas análises de DNA conduzidas porpesquisadores comoFábioOliveira Freitas, daEmbrapaRecursosGenéticos eBiotecnologia, sugeremque as variedades de ambas as plantas que existiam aqui antes da chegada europeia estavam maispróximasdasoriundasdoMéxico.FreitaschegouaessaconclusãoexaminandogrãosdemilhoefeijãoachadosemsítiosarqueológicosdonortedeMinasGerais,comidadesentremilanose300anosesemsinaldecontatocomeuropeus.Dáparaimaginarqueasvariedadesdemilhoefeijãoforamaclimatadasgradualmente, numa espécie de “telefone sem fio” agrícola que atravessou a Amazônia e chegou aoutrasregiõestropicaisdaAméricadoSul.Porvoltadetrêsmilanosatrás,omilhojáhaviachegadoaoatualUruguai.

Entre as plantas “forasteiras”, ainda que de origem sul-americana, vale a pena mencionar asabóboras(gêneroCucurbita),oalgodão(Gossypiumbarbadense:umaboafontedefibrasvegetaisparaproduzir tecido é essencial) e o amendoim (Arachis hypogaea). As duas primeiras espéciesprovavelmente vieramda costa oeste do continente, enquanto a últimaque cultivamoshoje deve tersidodomesticadaemalgumlugardosuldaBolíviaoudonortedaArgentina, talveznãomuito longeda fronteira com o Mato Grosso. Análises genômicas publicadas em 2016, conduzidas porpesquisadores da Universidade de Brasília e da Embrapa em parceria com colegas de outros países,revelaram detalhes da protoengenharia genética que foi necessária para produzir o amendoimdomesticado.Acontece que a planta é classificada tecnicamente como um alotetraploide— trocandoemmiúdos,umhíbridodeduasespéciesdiferentes (daíoprefixogregoalo-)quepossuiumgenomaformadoporquatroconjuntosdecromossomos,enãodois,comoosnossos(oqueexplicao tetra- napalavra; sereshumanossãodiploides, enão tetraploides). Issosignificaque,nocasodoamendoim,osdoisgenomascompletosdasespéciesquederamorigemaohíbridosesomaramparaproduzi-loe,oqueé mais intrigante, quase não se misturaram ao longo do tempo. A planta continuou tendo umsubgenomaAeumsubgenomaB(comooscientistasosapelidaram)aolongodemilharesdeanos.Ospesquisadoresbrasileirose seuscolegassoletraramtodasas letrasquímicasdedoispossíveisancestraisdo amendoim atual, oA.duranensis e oA. ipaensis, e verificaram que cada um deles corresponde,respectivamente,aostaissubgenomasAeB.Tudoindicaqueessecasamentosedeupela intervençãodiretadohomem.Normalmente,aspopulaçõesdasespéciesselvagensdeamendoimsãoridiculamenteestáticas, homogêneas e isoladas— a própria planta-mãe se encarrega de enterrar as sementes, quegerminam à sombra dela. Assim, para que uma espécie encontrasse outra e cruzasse com ela,cultivadoresoucoletoreshumanosdevemtertransportadoaomenosumdosmembrosdo“casal”.

ReinventandoosoloVoltemosagoraàAmazôniaparaexaminaroderradeiroemaiorenigmadestecapítulo:a“terrapretade índio” (que às vezes é acompanhada por sua parceira menos famosa e fértil, a chamada “terramulata”).Vamoscomeçarcomosfatosmaissegurosedepoisexaminaros(muitos)pontosobscurosqueaindaprecisamserelucidadosarespeitodessetipoextraordináriodesolo.

Fatonúmeroum:existeterrapretaadarcomopaunaregiãoamazônica.HáconcentraçõesdelaemsítiosarqueológicosemquasetodaacalhaprincipaldorioAmazonas,nailhadeMarajó,emRondônia,noAcre,noAltoXingu (jána zonade transiçãocomocerrado) e, claro, foradoBrasil também,nasGuianas,noPeru,naColômbia.Háterrapretanasmargensdosgrandesriosenasdeseustributários,mas também nos interflúvios, em alguns casos em áreas bastante remotas. As estimativas do totalvariam, em especial porque muitas áreas da Amazônia ainda estão longe de ter sido decentementeexploradas por arqueólogos e geólogos,masmesmo os dadosmais conservadores falam em 0,2% daárea composta por florestas (lembre-se, há outros tipos de ambiente na região) contendo esse solo, oque daria 12,6mil quilômetros quadrados (dez vezes a área domunicípio de São Paulo). Se formosgenerosos,comooutroestudorecente,eestimarmosqueonúmerocorretoécercade3%da floresta,pulamos para 154 mil quilômetros quadrados — um Pernambuco e meio, ou pouco mais que umCeará,outrêsquartosdoParaná.Desculpeserrepetitivo,masémuitacoisa,emambososcenários.

Fatonúmerodois:aterrapretaémuitomaisfértildoquequasetodososdemaissolosdaAmazônia.Arqueólogos,geógrafoseoutrosespecialistasacreditavamque,naerapré-fertilizantesindustriaisepré-engenharia agronômica, o único método de cultivo viável na região era o da coivara: a mata éderrubada, a maior parte das árvores é queimada e as cinzas do incêndio florestal servem comofertilizanteparaalgunsanosdecolheita,atéqueosoloseesgotaporcausadarápidaperdadematériaorgânicacomocaloreachuva,umavezqueficaexposto.Aflorestasóconseguesemanterdepénessaterra pobre e ácida porque recicla perpetuamente seus nutrientes e sua água, conforme a matériaorgânicasedecompõedevagarinho.TodosessesfatoresdeveriamterfadadooshabitantesdaAmazôniaa nunca esquentar lugar por muito tempo e a ter grupos relativamente pouco numerosos, mesmoquandoadotavamomododevidaagrícola.Segundoumadasdefensorasmaisinfluentesdessemodelo,aarqueólogaamericanaBettyMeggers(1921-2012),aflorestaeraumcounterfeitparadise—algocomo“paraísodementirinha/falsificado”.

Aterrapretaclaramentequebraessaescrita.Análisestêmreveladoqueessascamadasmuitoescurasdesolo,àsvezescommaisde1metrodeprofundidade,possuemquantidadesrelativamenteelevadasdematériaorgânica(diferentementedossolospobreseamarelados/avermelhadosque,àsvezes,estãodoladodas“manchas”deterrapreta)eníveisdealgunsnutrientesváriasvezessuperioresaosdossolosnasredondezas.Destaca-seafortepresençadefósforo,cálcio,zincoemagnésio.Issonãosignificaqueaterra preta seja perfeita dopontode vista da fertilidade: as concentrações de potássio, umnutriente-chaveparamuitas lavouras, estão abaixodo ideal.Mais importante ainda, a terrapreta se caracterizapelacapacidadede“segurar”comeficiênciaessesnutrientesporperíodosdeséculoseatémilênios—tantoqueprodutoresruraismodernos(caboclosdaAmazônia)aindaobtêmboascolheitascomaajuda

dela, e há um comércio de pequena escala perto deManaus, por exemplo, no qual a terra preta évendida como fertilizante para jardins domésticos. Em outras palavras, trata-se de um solorelativamente estável, que não é simplesmente “lavado” pelo clima inclemente da Amazônia, comoacontececomorestantedaterraporlá.

Fatonúmerotrês:estamosfalandodeumsoloindiscutivelmenteantropogênico.Amostrasdeterrapreta que foram analisadas detidamente em laboratório mostram que um de seus componentesprincipaiséumagrandequantidadedefragmentospequeninosdecarvão,resultadodaqueimalentaeincompletadematériavegetal—ouseja,dousodofogoemintensidaderelativamentebaixa.Háaindainúmerosmicrofragmentosdeossos—emespecialosdepeixe—edecerâmica.E,claro,nãopoderiafaltarumcomponenteespecialmentenojento:compostosqueparecemserderivadosdococôhumano(ou, nomínimo, de alguma espécie demamífero onívoro, que come todo tipo de coisa; se os índiosfossemcriadoresdeporcos,ossuínosatéseencaixariamnesseperfil,masnãoeraocaso).

É mais ou menos neste ponto que terminam os fatos e começam as hipóteses e especulaçõesfascinantes. A terra preta, se excluirmos aquele antiquíssimo registro em Rondônia e mais algumasdatas bastante antigas, na casa dos seismil anos, parece ser um fenômeno relativamente recente. ApresençadessetipodesolosóseintensificoumesmoalgunsséculosantesdocomeçodaEraCristãefoicrescendonosmilêniosseguintes,deformamaisoumenosconjugadacomosucessivoaparecimentodegrupos de vida sedentária e socialmente complexa na região amazônica. E isso, é claro, traz de voltaumaquestãoquevocêjáviuantesnestecapítulo:oqueéoovoeoqueéagalinha?Aterrapreta(eaterra mulata, mais clara e não tão fértil) são consequência ou causa da ocupação mais intensa dafloresta?

Talvez,nofundo,umacoisanãoexcluaaoutra,eagenteestejafalandodeumfenômenonoestilo“boladeneve”(nosdesenhosanimados,quantomaisumaboladeneverola,maiselaengoleneve,oque a faz descer aindamais rápidopelo penhasco rumo aosnossos heróis, e assimpor diante).Umapista importante é o fato de que, em vários lugares da região, em especial naAmazôniaCentral (noentornodeManaus)enoXingu,parecehaverumaassociaçãoestreitaentreapresençadeterrapretaeantigas aldeias de grande porte. Isso não significa que esse solo se formasse onde os indígenasmoravam,mas simnoqueparecem ter sidoosdepósitosde lixodos assentamentos.A tendência eraqueos resíduosdasmoradias (basicamentedeorigemorgânica, embora incluíssem tambémcerâmicaquebrada) fossem depositados sempre nos mesmos lugares, formando estruturas características, quepoderiamsermorrinhosouemformatodeanel.

Estaríamos falando, portanto, de uma gênese não intencional. Mas, com o passar do tempo, oshabitantespoderiamtersedadocontadaformaçãoprogressivadaterrapreta—atéporqueasdataçõessugeremque teria sidonecessária umaocupaçãode longoprazo, na escala de décadas oumais, paraque o solo atingisse sua configuração atual. “Provavelmente era um sistema demanejo de resíduos.Mais tarde, eles podem ter percebido o potencial desse solo para a lavoura”, disse-me WenceslauTeixeira,pesquisadordaEmbrapaSolos,quetrabalhacomotema.Talvezosedentarismo,baseadoemfatorescomooplantiodemandioca-brava, jáestivessepresenteemalgumgrau,comosurgimentodaterrapretadandonovo impulsoaocultivodeumavariedademaiordeplantas.Sabe-se,porexemplo,que as áreas de descarte de resíduos no Xingu de hoje também podem acabar sendo usadas para o

plantio.E,nocasodaterramulata,apresençadequantidadesrelativamenteelevadasdecarvãopoderiaserumsinaldaexpansãoparanovasáreasagrícolas,apósodesmateeaqueimadepartesdafloresta.

Sejacomofor,gentedomundotodoestádeolhonasliçõesqueonossocélebresoloantropogênicoécapazdeensinar.Regiõestropicaisdeoutroslugaresdoglobotambémsofremcomoempobrecimentorápidodaterradesmatadaeficariamfelizesem“copiarareceita”daterrapreta.Eatéoproblemadasmudanças climáticas poderia ser mitigado: a queima incompleta do carvão faz com que o carbono(principalresponsávelporesquentaroplanetanaformadeCO2)fiqueretidoindefinidamentenosolo,semescaparparaaatmosfera.Algunsexperimentos-pilotosugeremqueessa“tecnologiaarqueológica”poderiaserressuscitadaeajudaraagriculturafamiliarasetornarmaisprodutivaesustentável.

OsausentesHáumaausênciaimportantenestecapítulo,quetalveztenhachamadoasuaatenção.Emoutrasregiõesda Terra em que ocorreu o desenvolvimento da vida agrícola, esse processo frequentemente foiacompanhadodadomesticaçãodeanimais.NoantigoOrientePróximo(exemploclássicoemaisbemestudadodo fenômeno, como já vimos), emergiuum “pacote” demamíferos de grandeporte que setornaramparceirosconstantesdosfazendeirospré-históricos.Bois,cabras,ovelhaseporcossãoosmaisconhecidosecomuns. Jáadomesticaçãodocavalopareceteracontecidomilharesdeanosdepois,emoutrascircunstânciasquenãovêmaocasoaqui.

Nada parecido jamais aconteceu nas Américas. Nos Andes, dois camelídeos (sim, parentes docamelo),aslhamaseasalpacas,eramosúnicosbichosdegrandeporteaviveremladoaladocomsereshumanosantesdachegadadosespanhóis,e tais rebanhosnuncaseespalharamparaapartedecádaAmérica do Sul. Enquanto nosso continente estava isolado, tal fato não parece ter feito grandediferença para a sobrevivência e o sucesso das civilizações sul-americanas, mas tudo indica que adomesticaçãodeanimaisacabousendoumfator-chavepor trásdaderrocadadessespovosdiantedosinvasoreseuropeus,comoveremosnaconclusãodestelivro.

Emcertosentido,oscapítulosanterioresforamumamisturademontagemdopalcoeprólogo.Éhoradeosastrosprincipaisentrarememcena.ApartirdosprimeirosséculosdoquecostumamoschamardeEraCristã,ocorreumaumentoinegáveldadensidadepopulacionaledacomplexidadesocial,políticaeculturaldospovosquehabitavamoqueumdia seriao territóriobrasileiro,umprocesso fascinante eainda pouco compreendido, que só acabaria sendo interrompido pelo desembarque dos europeus noatual suldaBahiaem22deabrilde1500.Daquiemdiante, tentarei traçaromelhorretratopossíveldessas transformações grandiosas no cenário do Brasil pré-histórico. Este capítulo e o próximo vãomanter o foco amazônico que adotamos nas últimas páginas, porque alguns dos grupos maisinteressantes da era anterior a Cabral são justamente os que habitavam a região da grande floresta.FeitooSolquenascetodasasmanhãs(seiqueametáforaébrega,maseugosto,tá?),começaremosnoextremoleste,nafozdoAmazonas,eseguiremosparaooeste(comumdesvioimportanterumoaosulno meio do caminho), mapeando as sociedades – fico tentado a usar o termo “civilizações”,sinceramente–quesurgiramgraçasaousocadavezmaisintensivoeinteligentedosrecursosagrícolasehídricosdisponíveisnessavastaregiãotropical.Vaiserdivertido.

OK,fizabrincadeirinhabestasobreoSol,masaverdadeéque,consideraçõesastronômicasàparte,fazsentidocomeçarpeloextremolestedaAmazôniaporque,atéondesabemoshoje,asociedadequesurgiunailhadeMarajó,dispostaentreogranderioeoAtlântico,eraaquetinhaomododevidamaispeculiar entre as que conheceremos. Também talvez seja a que nos deixou as pistas mais vívidas eintrigantes sobre sua cultura, seus rituais e seu imaginário, as quaisnos permitempensarnos antigosmarajoarascomoosfilhosdaserpente.

QuandoobúfalonãoerareiComo bom caipira, fui criado com base numa sólida dieta de Globo Rural nasmanhãs de domingo(como assim, você não assistia ao programa na TV todo santo domingo? Você não assinava a revistaGloboRural?Essepessoalnãosabeoqueébom...).IssosignificaqueminhaprimeiraimagemdailhadeMarajófoiconstruídacombasenascenasdevastosrebanhosdebúfalos(Bubalusbubalis)pastandopelos campos semialagadosmarajoaras—esse cenárioépicoera figurinha fácilnas sessõesdominicaisde televisão lá emcasa.É claroqueosbichõesde chifre curvo epelagemnegro-azuladapertencemauma espécie de origem asiática, introduzida na ilha deMarajó há pouquíssimo tempo. No entanto,existeumexcelentemotivoportrásdosucessodosbubalinosnessamassainsulardotamanhodaSuíça,enãotemnadaavercomocostumedebotarflorestaabaixosumariamenteejogarboinosescombros,aocontráriodoquesefazcomfrequêncianaAmazôniamoderna,infelizmente.OcorrequeosbúfalossóseadaptaramtãobemaMarajóporqueailhaénaturalmenterepletadecamposabertosalagáveis.

Ebotaalagáveisnisso—aomenosempartedoano.Cobrindocercade40%doterritóriomarajoara(oumaisde23milquilômetrosquadrados),emespecialnoladolestedaregião,essescampospossuempoucasárvoresearbustos,emgeralbaixinhos,eadiversidadedeespéciesdeplantasémuitomenordoque a existente no resto da Amazônia. Os marajoaras reconhecem tradicionalmente apenas duasestaçõesdoano:acheia—dejaneiroajunho,duranteaqualquantidadesridiculamentealtasdechuva(de2.800a3.400milímetrosporano)caemdechofresobreailha—easeca,compouquíssimachuva,óbvio,quevaide agosto adezembro (julho é consideradoummêsde transição).Emgeral, a estaçãochuvosa é alguns grausmais quente que a seca.De certomodo, tal descrição da sazonalidade—ouseja, da variaçãode condições climáticas entre as estaçõesdo ano—prevalente emMarajó valeparagrande parte do resto da Amazônia, embora os extremos de clima marajoaras sejam especialmenteexagerados,àsvezeslembrandomaisoPantanaldoquearegiãoamazônicapropriamentedita.

Ofatorcrucialdessecenáriotodotalvezsejaainteraçãoentreoclimaeascondiçõestopográficasede solo. O chão argiloso e pobre em nutrientes dos campos deMarajó é altamente impermeável, ealguémjácomparouaestruturado interiorda ilhaaumabandejaouaumpiresdebordaselevadas.Ou seja, extensões consideráveis de terra no “miolo” deMarajó estão abaixo do nível do mar. Issosignificaque,na cheia, a águada chuvapraticamentenão temparaondeescorrer, e só as áreasmaisaltas conseguemescaparda inundação.Calcula-seque,durantemetadedoano,70%do territóriodailha ficam cobertos por uma camada de água de 1 a 2metros de profundidade, incluindo aí tanto aregiãodoscamposquantoflorestasinundáveis.

Apesar da abundância de chuvas e da dificuldade de escoamento da água nos meses de cheia,quandovemaseca,muitos rios ficamtemporariamentecomo leitoenxuto (umacenaqueaspessoasestãomaisacostumadasaimaginarnacaatinganordestina),eatéoscursosd’águapermanentesperdemboapartedesuaforça.Osoloressequidomuitasvezesacabarachandodebaixodaluzsolarinclemente,formando estruturas características conhecidas como terroadas. E é preciso considerar ainda ainfluênciadasmarés(jáqueestamosbempertodomar),queafetaocursoinferiordosrios.

Essasomadefatoresfezcomqueaagriculturanãofosseumaestratégiadasmaisatraentesnaregiãodos campos.A situação do lado oeste deMarajó é consideravelmente diferente, porque é ali que ossedimentoseamatériaorgânicatrazidospeloAmazonasemsualongajornadatendemasedepositar,criandoumsolocomboa fertilidade.Antesdachegadadoseuropeus,devemterexistido lavourasdepequenaescalanapartelestedailha,emespecialdeplantascomoaonipresentemandioca,masnãoháindíciosdeatividadeagrícola intensa.Alémdisso,oshabitantesprovavelmente realizavamalgumtipodemanejo das espécies de palmeiras, como o buriti (Mauritia flexuosa) e o açaí (Euterpe oleracea),utilizandoseusfrutosemesmosuaseivacomofontealimentar.Nãopareceolugarmaispromissordoplanetaparaosurgimentodeumasociedadecomplexa,convenhamos—senãofossepelavidaaquáticadaregião.

Comefeito,oritmodecheiasesecasnoscamposdailhacriaoportunidadesinteressantíssimasparaquemsedispõeacomerpeixe(bemcomotartarugaseovosdetartarugas,outragrandefontedefarturagastronômicanaAmazôniadopassadoedopresente).Quandoainundaçãofazosriostransbordaremeencheremointeriordailha,peixesqueestavamnoleitoprincipaldoscursosd’águanadamparabotarseusovosnasregiõesalagadas.Conformeosriosvãovoltandoparaseucursonormal,háospeixesqueconseguemretornaraseusantigos lareseoutrosqueficampresosemlagoasoupoçasd’águaquevãosecando lentamente.Essa fase transicional entre a cheia e a seca é especialmente interessanteparaosseres humanos: pescadores podem aproveitar para recolher grandes quantidades de peixes “ilhados”sem muita dificuldade. Ainda hoje, os moradores de Marajó usam currais e represas artificiais nascabeceirasparaimpedirqueospeixesvoltemparaocursoprincipaldosrios,aumentandoaindamaisafarturanaturaltrazidapelafasefinaldacheia.

Ao que tudo indica, os habitantes originais da ilha usavam esse tipo de estratégia simples paragarantir sua subsistência durante milênios — no mínimo desde 3.500 anos atrás, quando temos asprimeiras datações diretas relativas à ocupação deMarajó, que parecem vir de pequenas aldeias. Pormotivosque aindanão estão claros, a coisamudoude figurapor voltado ano400d.C. (quando,dooutroladodoAtlântico,oImpérioRomanoaindaeraosenhordaEuropaOcidental,incluindoofuturoterritório português, caso você não esteja lembrado). Os antigos marajoaras passaram a realizarintervenções de grande escala em seu ambiente natural, e a cultura material deles foi afetada portransformaçõesigualmenteimpressionantes.

“Moverterraparagerenciarágua”Aexpressãoacima,cunhadapelaantropólogaDenisePahlSchaan,daUFPA(UniversidadeFederaldoPará), é um jeito particularmentememorável de explicar a lógica que guiou a ascensão da sociedadecomplexa dos campos de Marajó. A marca mais visível da passagem desse povo pela ilha são oschamados tesos— tambémdesignados como termo inglêsmound, algo como “morro artificial”. Emsítios arqueológicos europeus, mound é o nome que se dá a elevações do terreno feitas por sereshumanos,emperíodostãodiferentesquantoaIdadedoBronzeouaAltaIdadeMédia,emgeralcomfunção funerária, dedicada a abrigar os cadáveres de membros da elite, com suas armas e joias. Omesmo termo foi incorporado até por romances de fantasia, comoOSenhordosAnéis— os reis doscavaleirosdeRohan,umdospovosdasaga,eramenterradosemmounds.

Basta dar uma rápida olhada num par de fotografias tiradas pela própria Denise em 2005 paraentenderaprovávelimportânciadostesosoumoundsnopassado.UmadelasretrataochamadoTesodos Bichos, um dos exemplos mais conhecidos desse tipo de sítio arqueológico, em janeiro, nocomecinhodaestaçãoúmida.Nessaimagem,osoloaindaestáseco,eotesoparecesóumtipoesquisitodemorrobaixo,relativamenteestreitoecomprido.Aoutra foto, tiradaemmaio,quando jáchoveuamaiorpartedoqueerapara chovernaquele ano,mostraoque,naprática, éuma ilha—oTesodosBichos—cercadaporumenormelagoraso,quepareceseperdernohorizonte.

Esse cenário vale para toda a porção oriental deMarajó: os tesos costumam ficar acima da linhad’águaduranteacheiae,oqueémaisimportanteainda,háfortesindíciosdequeelesnãosãosimplesmorrinhos naturais. Foram construídos (ou pelomenos significativamente aumentados) pelos antigosmarajoarascomoplataformasantienchente.Oshabitantesdaregiãoiamarrancandolamadoleitodaslagoas temporárias após a fase de inundação e amontoando omaterial em posições estratégicas, emgeralseguindoocursodosrios.Deuparaentenderagoraotal“moverterraparagerenciarágua”,certo?

Acontecequeogerenciamentohídricomarajoaranãoestava ligadosóàconstruçãodos tesos,mastambémamétodosparagarantirqueosuprimentodepeixesestivessedisponíveldurante todooano,eliminandoanecessidadedesaircorrendoparaaproveitaraabundânciadepescadoemalgunsmesesde“altatemporada”nofimdascheiasenocomeçodaseca.OtrabalhodaantropólogadaUFPAedeseus colegas no Igarapé dosCamutins, um afluente do rio Inajás, indica que os habitantes da regiãoeram,emcertosentido,piscicultores—construíamlagosartificiaisqueserviamcomo“ralo”conformeas águasda cheia iam recuandode volta ao rio.Com isso, umaquantidade razoável depeixes ficavaretida nessas represas durante a seca, à mercê dos moradores e a uma distância cômoda dosassentamentos.Asescavaçõesparaaconstruçãodessesaçudesalimentavam,porsuavez,oaumentodetamanhodostesos—e,commaisgentebemalimentadapelasconstantespeixadas,haveriamaisbraçosparaambasastarefas.

Análises conduzidas no Teso dos Bichos pela arqueóloga americana Anna Roosevelt, aliás,mostraramuma predominância clara de restos de fauna aquática no cardápio dosmoradores.Quasenãohaviaossosdeavesemamíferos,massobravamosdepeixesdeporterelativamentepequeno,comotraíras (Hoplias malabaricus), piranhas (Serrasalmus sp.) e bagres conhecidos como tamoatás

(Hoplosternumlittorale),alémdepequenas tartarugas,asmuçuãsou jurarás (Kinosternon scorpioides)— as quais, aliás, ainda são usadas na culinária amazônica. Peixes grandalhões, como o famoso esaborosopirarucu (Arapaima gigas), tambémestavampresentes,mas emquantidade bemmenor.Osdados se encaixam com facilidade na hipótese de que ocorriam capturas em massa de peixes detamanhomodestonaságuasrasasdosaçudes.

Aoquetudoindica,essesistemafuncionouumbocadobemnaregiãodeCamutins:aolongodorio,numaextensãodeunsdezquilômetros,osarqueólogosjáidentificaramcercadetrintatesos,algunsdosquais medindo quase 10metros de altura, com diferentes plataformas em sua estrutura. Escavaçõesrealizadas nos mounds desse complexo sugerem, além disso, que havia diferenças de função ehierarquiaentreeles.Umapistadissoébastanteóbvia—otamanhodecadateso,queprovavelmentetinha relação direta com sua importância (quanto maior e mais imponente, maior a relevância dedeterminado teso, claro). Outra tem a ver com a localização das estruturas: as mais grandiosasnormalmentesãoasqueestãodiretamenteligadasagrandeslagoasou“viveirosdepeixes”,oquepodesignificar que os ocupantes de determinado teso de dimensões avantajadas eram os sujeitos quecontrolavam aquele crucial suprimento de proteína animal, de forma que os demais moradores daregiãotinhamdepedirpermissãoaelescasoquisessemfritaralgunspeixinhos.Umdetalhequeparececorroboraressa ideiadecontroleestratégicoéo fatodeque,naáreaestudadaporDeniseSchaan,háum aglomerado de tesos modestos cercados por alguns de grande porte, sugerindo até uma funçãodefensiva para a presença dos últimos. Calcula-se que todo o complexo de Camutins abrigasse umapopulaçãodeaté3milpessoas—nãomuitodiferentedaqueexistirianumacidadeeuropeiamedievaldemédioapequenoporte,aliás.

Odetalhemaiscrucial,porém,temavercomosdiferentesusosaparentementedadosaotopodostesos.NocasodaregiãodeCamutins,quase todoselesparecemterabrigadomoradiaseoutros locaisdenatureza utilitária—onde o pessoal processava peixes capturados e outros alimentos ouproduziautensíliosde cerâmica, por exemplo.No entanto, osmoundsmais imponentesda área—conhecidospelas criativas siglasM-1 eM-17— destacam-se pela presença de sepulturas e de uma considerávelvariedadedebens funerários,ou seja,osobjetosqueacompanhamosdefuntosemsua jornada final.Aomesmotempo,osmegatesosnãoeramapenascemitérios.Nosmesmoslocais,háaindaresquíciosdehabitaçõesnormais.

Eesseéopulodogatodahistória.Oextraordináriocaprichoenvolvidonafabricaçãodemuitosdosobjetosachadosnossepulcrosdosgrandesmoundsindica,paraamaioriadosarqueólogosnaativahoje,quetaisestruturaseramamarcaregistradadaelitenativadeMarajó.Cerimôniasfúnebreselaboradas,cheiasdepompaecircunstância,bemcomooutros tiposderituais teriamfuncionadocomomarcadasuperioridade dessas famílias ou clãs nobres em relação aos demais habitantes da ilha.Aliás, ameraproximidadeentresuascasasea“moradaeterna”deseusancestraistambémnobresseriaoutraformade propagandear seu poder simbólico e político. Guardadas as devidas proporções, é como se essasestruturas, apelidadas, por razões óbvias, de tesos cerimoniais, fossem as pirâmidesmarajoaras. Devolembrar, é claro, que os monumentos-símbolo da glória do antigo Egito eram túmulos literalmentefaraônicos, feitos para abrigar os soberanos egípcios depois que eles deixassem este mundo. Seinfelizmentenãoexistiamequivalentesamazônicosdoshieróglifos,capazesdenoscontarcomprecisãoquemeramosdefuntosdosmoundsenoqueacreditavam,osobjetosencontradosnosmorrosartificiais

atéquechegamrelativamentepertodisso—nomínimo,estão repletosdepistas excelentes.Vamosaelas.

RequinteesofisticaçãoJáuseiotermo“complexidade”neste livroumbocadodevezes;admitoquesetratadealgodifícildedefinir e bastante subjetivo, dependendo da coisa que adjetivamos assim. Indefinições conceituais àparte,ocasodaantigacerâmicamarajoaranãoéumadessasvítimasdasubjetividade.Osutensílioseadornos produzidos pelos habitantes originais da ilha — em especial os achados nos grandes tesoscerimoniais — claramente merecem o rótulo de “complexos” com base no critério objetivo daelaboração técnica. É verdade que osmétodos usados para produzir os objetos variamde época paraépoca(ossítiosarqueológicosdaculturamarajoara“clássica”têmdataçõesqueabrangemcercadeummilênio, indoatémaisoumenos1400d.C.) ede lugarpara lugar.Mas issonãoalterao fatodequequase vinte técnicas diferentes eram usadas para produzir esses artefatos. Para se ter uma ideia, atradição cerâmica tupi-guarani, uma das mais conhecidas da fase final da pré-história brasileira,normalmentepresenteno litoral, valia-sedeapenasquatro técnicas.Ummesmoobjetopodia receberdoistiposdiferentesdeengobo(umaespéciedevernizquerecobreacororiginaldacerâmica),incisões,excisões, apliques, desenhos e polimento.Hádesde padrões geométricos simples (zigue-zagues, raios,cruzes) até representações surreais da anatomia humana e figuras que evocam animais amazônicos,comotartarugas,jacaréseserpentes.

O resultado frequentemente é impressionante, pode acreditar. Entre as peças marajoaras maisfamosas estão as urnas funerárias, algumas de grande porte (com 1 metro de altura ou mais), quepodiamserusadastantoparaabrigarumenterroprimário(ocadáverinteiro)comooconteúdodeumsepultamento secundário. É comum que as urnas tenham uma espécie de rosto e, além disso,representações estilizadas do útero ou do órgão sexual feminino, o que tem levado os arqueólogos aespecular que a linhagemmaterna, e não a paterna, era a principal responsável por definir o statuselitizado dos moradores dos grandes tesos. Tais imagens frequentemente são acompanhadas pordesenhos esquemáticos de escamas de cobras, partes de seu corpo (cabeça, ponta do rabo) ou porrepresentaçõesdobichointeiro—oquefinalmentenoslevaaotítulodestecapítulo.

Estamos,emparte,noterrenodaespeculação,masarecorrênciadessasimbologiapodeserassociadaamitos amazônicos registradospor etnógrafosmodernos,que falamda cobra-grande (aparentementeuma versão sobrenatural das sucuris) comouma figura dopassadoprimordial, em cujo lombo certosgrupos teriam chegado ao mundo e que seria ainda a “mãe dos peixes”. No caso dos marajoaras,totalmentededicadosàexploraçãodosrecursospesqueiros,começaafazersentidoaimportânciadadaàserpenteprimordial,portanto.

A presença de escamas estilizadas também é comum num dos artefatos mais característicos daculturamarajoara, as tangas de cerâmica encontradas emprofusãonos tesos.Aliás, sabemos que sãotangas,equeelaseramusadasporpessoasdosexo feminino, justamenteporcausaderepresentaçõesdelasnasurnas funerárias.Hádois tiposbásicosdessesobjetos:umaltamentedecorado, incluindoastaisescamasdecobra,eoutrosimples,recobertodeengobovermelho.Ocuriosoaquiéqueastangasdecoradasemgeralsãomenoresqueasvermelhas.Comoécomumqueexistamcerimôniascomplexasenvolvendo a puberdade feminina em toda a Amazônia — ritos que celebram a transformação da

meninaemmulher,comachegadadaprimeiramenstruação—,adiferençaentreas tangas temsidoassociada justamente a esse tipo de ritual.Os adornos pubianosmais elaborados corresponderiam àsgarotasnapuberdade,enquantoosmaissimplesseriamosdasmulheresjáplenamenteadultas.Apeledasserpentes, segundoessa interpretação,estariaassociadaaesse“despertar”doprincípio femininoedafertilidadeemcadameninamarajoara.

Dá para seguir essa mesma pista ao examinar as estatuetas de cerâmica que também costumamaparecernos tesos—emgeral, representando figuras femininas,mascomocuriosodetalhedequeacabeça de algumas delas lembra glandes (isso mesmo, a “cabeça” do pênis). Essas pequenas figurasfrequentementesãoocas,comumapedrinhadentro,oqueindicaquetalvezfossemchocalhosusadosem determinados rituais. E é comum ainda que o pescoço delas esteja quebrado, algo que, de fato,aconteceemrituaisamazônicosdecurae/ouexorcismoemtemposmaisrecentes.

Esses elementos continuam sendo fascinantes e enigmáticos, em parte, porque a cultura clássicamarajoara já havia desaparecido quando os europeus chegaram à ilha. Em 1500, já não havia maisconstruçãodenovos tesosnemgrandes rituaisno topodosqueaindaexistiam.Oporquêdissoéummistério—nãoéquetodomundotenhasidodizimadoporumaepidemiaouporumexércitoinimigo,jáqueailhacontinuavaaserhabitadanaépocadocontatocomosinvasores.Umapossibilidadeéquevariações de longo prazo no clima, talvez envolvendo secas mais prolongadas, tenham bagunçado odelicado sistema demanejo dos recursos pesqueiros da elitemarajoara. Além disso, pouco antes dodesembarqueeuropeu,há sinaisarqueológicos (cerâmica,maisumavez)dachegadaà ilhadegruposdefalaAruak,jápresentesnumavastaregiãodaAméricadoSuledoCaribe,cujacompetiçãocomosnativosdeMarajópoderiateralteradooequilíbriodepodernaregião.Porenquanto,omaiscorretoénoscontentarmoscomnossaignorância.

DilemasclassificatóriosAntes de começarmos a subir o Amazonas para entender como viviam os (mais ou menos)contemporâneosdasociedademarajoaranorestodaregião,aúltimatarefadestecapítuloenvolveumaquestãochatinhadenomenclatura,queaindadivideantropólogosearqueólogos.Afinal,comoagentedeve classificar o modo de vida dos habitantes de Marajó e de outras regiões da Amazônia pré-cabralina?Reparequeeudeiumjeitodefugirdaquestãoporenquanto,usandotermosmarotamentegenéricoscomo“grupo”,“sociedade”(acoplandooadjetivo“complexa”quandomepareciaserocaso)ou,quandoestavaafimdeserousado,até“civilização”.Paratentariluminarumpoucoocenárioquetemos diante de nós, é hora de um pouquinho de taxonomia— controversa emeio arbitrária, masdecididamenteinteressante.

ExplicaçãotécnicaAcredita-se que o jeito mais simples de organizar um conjunto (olha aí uma palavra genérica de novo!) deseres humanos é o chamado bando, que provavelmente predominava no planeta todo quando a nossaespécie só tinha caçadores-coletores (ou seja, mais ou menos até o fim da Era do Gelo). Bandos, que aindapodemserencontradosemcertasregiõesdaAmazônia,dePapua-NovaGuinéoudodesertodoKalahari,sãopoucomaisdoquegruposfamiliaresestendidos,somandonomáximováriasdezenasdepessoas—paiseavóscom seus filhos e netos, sobrinhos e primos. São ferozmente igualitários, altamente móveis (mais ou menoscomoosNukakdequefalamosanteriormentenestelivro)emuitointolerantesemrelaçãoaestranhos,excetoem ocasiões raras, como a troca de noivas (já que esse negócio de casar com primas ou sobrinhas o tempotodoéumapéssimaideiadopontodevistagenético).Numbando,todomundoestáengajadonabuscaporalimentos—“busca”porqueessetipodesociedadenãocostumaplantarnemcriaranimais.Seexistemesmoum“estadodenatureza”paraahumanidade,comocostumavampostularosfilósofosdosséculosXVIIeXVIII,éesse.

O nível seguinte de complexidade social é o de tribo (ainda que a gente tenda a usar a palavra, de formaimprecisa, para designar qualquer sociedade com “cara de primitiva”). Mais numerosas, com centenas demembros, as tribos diferem dos bandos em aspectos qualitativos também: o mais comum é que sejamrelativamente sedentárias e adotem métodos de agricultura e criação de animais (o que, aliás, muitas vezesajuda a explicar parcialmente a população maior). Existem chefes tribais, mas eles não são monarcas, nemsequer aristocratas em sentido estrito. Seu prestígio e seu poder político dependem da contínuademonstração de habilidades superiores, como a coragem e o bom senso estratégico em batalha. Suasprerrogativaspodemser revogadaspelacomunidadesemmaiorescerimôniase,emgeral,nãosãopassadasdepaiparafilho(oudemãeparafilha,noscasosemquealinhagemdeumapessoaéestabelecidapeloladomaterno).Assimcomoobviamentetambémacontecenocasodosbandos,associedadestribaisnãoparecempossuirclassessociaisclaramentediferenciadasnemespecialidades“profissionais”.Todomundopodeseraomesmotempoplantadordemandioca,guerreiroefabricantedecestos.

Temosumapequenadificuldadedetraduçãoquandofalamosdonívelseguintedecomplexidade.Eminglês,o termo é chiefdom (assim como kingdom é “reino”, termo derivado de king, chiefdom vem de chief, ou“chefe”).Umatraduçãocomumemportuguêsé“cacicado”,ouseja,odomíniodeumcacique—oqueéumpouco confuso, porque os líderes informais de uma tribo também costumam ser chamados de caciques porestasbandase,alémdisso,porqueapalavra“cacique”foioriginalmenteemprestadadeumdosidiomasdosindígenasdoCaribe,queforamosprimeirosnativosdestehemisférioatercontatocomCristóvãoColomboeseus marinheiros espanhóis em 1492. Esses índios, os Taino, falavam um idioma do grupo Aruak, mas háinúmeros outros grupos linguísticos totalmente diferentes por aqui, e eles certamente não chamavam seuslíderesdenadaparecidocom“cacique”.IssoparanãofalardesociedadesdaPolinésia,daÁfricaOcidentaloumesmodaEscandináviapré-históricaquenão tinhamnadaavercomosameríndiose,mesmoassim, tinhammais ou menos a mesma estrutura social. Por tudo isso, vamos adotar o termo chefatura, e não “cacicado”.Esperoqueogentilleitornãoseincomodedemaiscomaesquisiticedapalavra.

Preâmbulo linguísticoencerrado,oquecaracterizaumachefatura,afinal?Emprimeiro lugar, temosmaisumamudançadeescalademográfica.Chefaturaspodemtermilharesoumesmodezenasdemilharesdehabitantesecontrolarterritóriossubstanciais,comcentenasdequilômetrosquadradosdeárea.Osgovernantesdeumachefaturamuitasvezesconseguem legarseupodera filhosouparentes,e/oucompartilharseudomíniocomtodaumalinhagemprincipesca(ou“chefesca”,sevocêquiser).Háaindaumadistinçãomaisoumenosfixaehereditária entre classes de “nobres” e “plebeus” (palavras que designam coisas parecidas com essesconceitos aparentemente medievais estão presentes em idiomas do Xingu e de outras regiões amazônicas,aliás).Dependendodacomplexidadesocialdecadachefatura,podemexistiratédiversasclassesestanquesformandoumapirâmidesocialcaracterística,incluindogruposcomoartesãosespecializadoseburocratas.

Outro fenômeno social importante típico de chefaturas é o aparecimento de arquitetura pública,principalmenteadetipocerimonial—palácios,templos,muralhasetc.Essademonstraçãofísicaevisualmenteconspícuadocontroledoschefessobreoambienteondemoramseussúditoséumamarcaimportantedeseu

poder,eéóbvioqueospróprioschefesnãocostumamcolocaramãonamassaemtaisocasiões:nomáximosupervisionamotrabalhodurodaplebe.

Há uma correlação bastante estreita entre esse ponto e o papel da religião como instrumento de coesão econtrolesocialnaschefaturas.Doladomaismaquiavélicoe“malvado”,justificativasreligiosas—aexistênciadeumalinhadiretaentreochefeea(s)divindade(s),porexemplo—ajudamamanterosplebeusquietinhosnoseu canto e a evitar revoltas contra o mandachuva. Há, porém, o lado positivo dessa equação: lembre-se deque os bandos e, em grau menor, as tribos, não costumam se dar nada bem com estranhos. Sem laços deparentescooudeamizadedelongadata—afinal,vocênuncaviuaquelesujeitonasuavida—omaisseguroésaircorrendosevocêestiveremdesvantagemouatirarprimeiroeperguntardepois,casosejapossívelfazê-loimpunemente.Sociedadesmaiscomplexasenumerosas,acomeçarpelaschefaturas,tendemausarareligiãocomo método para criar laços de confiança e “parentesco metafórico” mesmo entre desconhecidos — bastapensarnousodapalavra“irmãos”entrecristãos—eacriarumaespéciedemonopóliodaviolênciaqueficanasmãosdoschefes,oqueminimizaosconflitossangrentos,aomenosdentrodaquelegrupo(acompetiçãocomgruposvizinhoséoutrahistória,claro).

Finalmente, no nível seguinte de complexidade social, temos os Estados. Eu e você moramos num Estadonacional,obviamente,e imaginoqueambos tenhamosuma ideiabastanteboadecomoele funciona,masotermo também se aplica a entidades aparentemente tão diferentes quanto o Império Inca ou a Atenas daépoca de Platão (uma cidade-Estado). A verdade é que não existe uma linha clara capaz de separar comfacilidade uma chefatura muito complexa de um Estado embrionário (o que, no fundo, vale para os outrosníveis de que falamos também; a categorização é útil, mas não absoluta). Nem todos os Estados sãoexpansionistas, são geridos por uma burocracia letrada ou favorecem a evolução tecnológica, por exemplo,embora isso tenha caracterizado muitos dos Estados europeus nos últimos cinco séculos. Talvez um trio deconceitos abstratos ajude a resumir a essência da maioria dos Estados: formalização, burocratização ecentralização.Aindaqueas leisnãosejamescritas (afinal,existirammuitosEstadossemescritaporaí), surgeuma rigidez formal mais clara que determina como a sociedade funciona. Essa formalização costuma serconduzida e azeitada, em grande parte, por vários níveis de burocracia, como as patentes do Exército ou osdiferentesfuncionáriosquecuidamdossistemasdecorreios,detransporte,deirrigação,deredistribuiçãodacolheitaetc.E,pormaisquehajaparticipação“democrática”emalgunscasos,opodercentralsefortalecee,quando a gente menos espera, um sujeito está tomando decisões que afetam o destino de milhões depessoas(oubilhões,nocasodaChinaedaÍndiadehoje).

Após essa enxurrada de definições, é inevitável que a gente se pergunte onde as sociedadesamazônicas—e asdoBrasilpré-histórico,demaneirageral—podemse encaixar.Esse éumdebateque ainda está empleno curso, e existem especialistas de respeito que preferem evitar categorizaçõesmuitorígidas,chamandoaatençãoparaasespecificidadesdecadaculturae região.Pessoalmente,noentanto,parece-medifícilnãoclassificarosconstrutoresdostesosdeMarajócomogentequeviviaemchefaturas.Denise Schaanusa a expressão “chefatura simples” emumde seus textos para destacar ofatodequenãopareceterhavidoumaautoridadesuprarregionalnailha,nenhum“chefedoschefes”que conseguisse controlar vários tesos distantes entre si. Temos obras públicas consideravelmentemajestosasesinaisdapresençadeumaelitequelançavamãodeaspectosreligiososecerimoniaiscomconsiderávelhabilidade.NorestodaAmazôniapré-cabralina,háexemplosquetalvezsejamaindamaisintrigantes,porcausadesinaisdeintegraçãoregionalehierarquiaentreassentamentos(comconexõesentrecentros“urbanos”maioreseoutrosmaismodestos)queindicam,senãoembriõesdeEstados,aomenos interaçõespolíticase sociaisdegrandeescala.Vamosconhecermelhoressescasosnopróximocapítulo.

Pense neste capítulo como uma espécie de coletâneamusical— osGrandes Sucessos da AmazôniaPré-cabralina,oualgodotipo.Comefeito,umpontoimportanteaserenfatizadonaspróximaspáginaséadiversidade.Emvezdeumpadrãocivilizatórioúnicoquepoderia terengolfado todaa regiãonosúltimos séculos antesda chegadados europeus (o surgimentodeumgrande império amazônico,nosmoldes do Império Inca nos Andes, por exemplo), o que veremos é o desenvolvimento de diversosnúcleos de crescimento populacional e poderio político, cada um com sua própria dinâmica— daí ainevitável sensação de coletânea. Também não seria razoável esperar que todos os grupos queconheceremosaseguirtivessemsedesenvolvidoaomesmotempo.Portanto,adiversidadedequefalotambémtemumadimensãotemporal.Emboraamaioriadelesdefatotenhatidoseuapogeuemtornodoano1000d.C.ounos séculos seguintes,há alguns exemplosbemmais antigos, enem todas essassociedadesaindaestavamdepéquandoportugueseseespanhóisdesembarcaramporaqui.

Dequalquermodo,osprimeiroscontatosentre indígenaseeuropeussãoumabalizacrucial,enãoapenaspor funcionaremcomomarco(algoarbitrário,claro)parao fimdapré-históriaeocomeçodahistória escrita da Amazônia.Mais importante do que a questão da periodização é o fato de que osrelatosdeixadospelosconquistadoresdosséculosXVIeXVIIserviramcomoasprimeiraspistasdequehavia um abismo demográfico, econômico e político entre os povos amazônicos do presente e seusancestraisdecincoséculosouummilênioatrás.Afinaldecontas,quandoarqueólogoseantropólogosmodernosfinalmentetiveramacessoàregião,entreasúltimasdécadasdoBrasilimperialeasprimeirasdaRepública,ocenárioqueencontraramerapraticamenteindistinguíveldodehoje:pequenasaldeiasde horticultores salpicadas em meio a uma floresta aparentemente interminável, pela qual tambémvagavamalgunsgruposdecaçadores-coletores.Oproblemaéqueessasituaçãonãosepareceemnadacom o que consta de relatos como o do frade dominicanoGaspar de Carvajal,membro da primeiraexpedição europeia a descer praticamente todo o curso do Amazonas e de seus principais afluentesformadores,dos sopésdosAndesatéoAtlântico,entre1541e1542.Vejaoqueo religiosoespanholdizsobreocenáriodabeiradogranderio,notrechoondeelehojeéchamadodeSolimões,emalgumlugardooestedoatualEstadodoAmazonas(atraduçãoéminha,masasintaxemeioenroladaéculpadelemesmo,acredite):

Entrepovoadoepovoadonãohaviamaisqueumtirodebesta[...],ehouvepovoaçõesqueduravamcincoléguas[uns30quilômetros]semhaverespaçoentrecasaecasa,oqueeracoisamaravilhosadesever:comoíamosdepassagemefugindonãotivemosocasiãodesaberoquehaviapelaterraadentro;mas,segundoadisposiçãoeoparecerdela,deveseramaispovoadaquejáseviu.

Frei Gaspar cruzou a bacia amazônica no séquito do militar e explorador espanhol Francisco deOrellana (1511-1546), aliado dos irmãos Francisco e Gonzalo Pizarro, os sujeitos responsáveis porsubjugaroImpérioIncaetransformaroriquíssimoPeruemcolôniadaEspanha.Orellananãotinhaamais vaga ideia do tamanhodescomunal dos rios à sua frente, contava comuma força de apenas 50homensesópareceteravançadorumoaoatualBrasilporque,apósdescerorioembuscadecomida,nãoconseguiamaissubiracorrenteza(outalvezporquesonhasseemrepetirofeitodosirmãosPizarro

em um novo território inexplorado). Às vezes fazendo alianças com os grupos indígenas queencontravam,outrastantaslutandocontraesquadrasdecanoasqueosatacavam,saqueandoaldeiasembuscadecomidaoufugindo,Orellanaeseushomens,ajulgarpelorelatodeCarvajal,passaramquaseumano inteiro atravessando regiõesmovimentadas, densamentepovoadas e ricas (comalguns vaziospopulacionaisentreelas,devezemquando).

Alémdemencionarasenormesaldeias,quepoderiammuitobemserclassificadascomocidades,ofradelouvaaaltaqualidadedacerâmicaamazônica,“louçaqueédamelhorquejáseviunomundo,porqueadeMálaga[naEspanha]nãoseigualaaela,poisétodavidradaeesmaltada,detodasascorese tãovivasqueespantam,ealémdissoosdesenhosepinturasquenela fazemsãotãodetalhados[...]como os da louça romana”. Os índios encontrados pela expedição consomem quantidadespantagruélicas de peixes e tartarugas de água doce, que eles criam em grandes currais e viveiros;plantammilho,mandiocaefrutasemvastasroças;obtêmosmaisvariadostiposdecarnesdecaça,demacacosafelinos.Segundootestemunhododominicano,ataquescoordenadosenvolvendodezenasoumesmo centenas de canoas, cada uma com dezenas de guerreiros a bordo, encurralaramOrellana eseus homens diversas vezes, com uma chuva de flechas venenosas e “esquadrões de magia” —feiticeiros a bordo dos barcos que faziam misteriosos rituais, presumivelmente para amaldiçoar osespanhóisedarforçaaosguerreirosnativos.

A organização militar, que incluía ainda indígenas especializados em tocar tambores, flautas etrombetasparaaterrorizarosinimigoseousodearmamentodefensivo,comoescudosfeitosdecourodepeixe-boi,eraacompanhadaporformassofisticadasdeorganizaçãopolítica,aindasegundoCarvajal.Alémdeguerreirosechefesemcadaaldeia,váriasregiõesteriamchefessupremos,cujaautoridadeseestenderiaporum raiode algumas centenasdequilômetros, emcertos casos—e issonão apenas aolongo da calha dos principais rios,mas também em áreas do interior, que estariam ligadas às aldeiasprincipaisporumaboarededeestradas.

Entreesses “senhorios”oureinos,de longeomaispolêmicoeaparentemente inverossímiléoqueacabou batizando o maior rio do planeta. As amazonas originalmente eram mulheres guerreiras damitologia greco-romana, e seu território estaria em algum lugar das estepes do mar Negro, entre aUcrâniaeonortedaTurquia.Noentanto,essedetalhegeográficonãoimpediuque,aoconversarcomseus informantes indígenas (um tipo de conversa que, é bom lembrar, acontecia com base numamistura altamente imprecisa de um vocabulário recém-aprendido e restrito commímica),Orellana eseushomenstivessemouvidofalardeummisteriosogrupodemulheresqueviviamapartadasdosexomasculinoedominavamumavastaregião,usandoosguerreirosindígenascomosuastropasdechoque.Carvajalchegaarelatarqueviupessoalmenteumalutaentreosinvasoresespanhóiseíndioslideradospelastaisamazonas,emumlugarqueficariaentreosriosNhamundáeTrombetas,noatualPará:

Vieramatédezoudoze,queessasnósmesmosasvimos,queandavampelejandodiantedetodososíndioscomocapitãs,epelejavamelascomtantoânimoqueosíndiosnãoousavamnosdarascostas,eaosquefaziamissomatavam-nosapauladas,eeraessaacausapelaqualosíndiossedefendiamtanto.Essasmulheressãomuitobrancasealtas,etêmmuitocompridoetrançado o cabelo [...] com seus arcos e flechas nasmãos, fazendo tanta guerra quanto dez índios; e na verdade houvemulheresdessasquemeteramumpalmodeflechaemnossosbergantins[osbarcosdeportemédiodaexpedição],atéquenossosbergantinsparecessemumporco-espinho.

Diantedeumapassagemdessas,énaturalqueagentesesintatentadoadizer“tábom,sentalá,vai,freiGaspar”.Podeserque,diantedealgumasituaçãorealmenteesquisitadopontodevistaeuropeu—sei lá, talvezguerreirosdosexomasculinocomcabelosmuito longos,ouentãomulheresqueestavamacompanhandoseusmaridosemcombate,dealgumaforma—,ofradetenhainterpretadoacenacomseus próprios “óculos” culturais de quem tinha lido textos da Antiguidade em excesso e preenchidomentalmente a cena comas amazonas que esperava ver. Pode ser que asmulheres da regiãode fatotivessemumpapelpolíticooumilitarmaisdestacadodoqueumespanholdoséculoXVIesperaria—háquemacreditequeaslendasoriginaisdoVelhoMundotenhamsurgidomaisoumenosdessejeito.NãovouinsinuarqueopobrefreiGaspartalvezestivesseacidentaloudeliberadamentesoboefeitodesubstâncias psicoativas obtidas da biodiversidade amazônica quando escreveu a passagem acima. Sejacomofor,aindaquenenhumaevidênciasólidadaexistênciadoReinodasAmazonasjamaistenhasidoencontrada,amaioriadospesquisadoresdehojedefendeque,demodogeral,ocapelãodaexpediçãode Orellana não estava falando bobagem — até porque textos produzidos por outros cronistas dosprimeirostemposdaconquistaeuropeiacorroboramanarrativadofrade,emlinhasgerais.AAmazôniado começo do século XVI (e dos séculos anteriores) realmente estava cheia de gente. Segundo umaestimativarelativamenteconservadorapublicadaem2015,haveria8milhõesdepessoasnaregiãoem1500. A conta inclui também as áreas localizadas fora do Brasil, em países como Colômbia, Peru eBolívia.

Uma questão crucial que ainda está em aberto é o grau exato de antiguidade desse cenário. Emoutraspalavras,desdequandoaAmazôniaestavarepletadegente?Umdadoirritantementeintriganteque tem surgido repetidas vezes nos levantamentos arqueológicos é a aparente falta de umdesenvolvimento contínuo e linear da população e da complexidade social da região. Para refrescarrapidamenteasuamemória:sabemosquehaviasereshumanosvivendoporlápelomenosdesdeofimdoPleistoceno/começodoHoloceno(ouseja,quandoterminaaEradoGelo).Sabemostambémqueocultivo dos vegetais que ainda são a base da dieta dos nativos amazônicos — como a indefectívelmandioca— inicia-senosprimeirosmilêniosdoHoloceno,unsoitomil anos atrás, oumesmoantes.Numa visão simplista sobre como ocorre o aumento populacional (e a complexidade socialnormalmente ligada a ele), imaginaríamos que o domínio da agricultura traria para os antigosamazônidasumexcedenteconfiáveldealimentos,permitindo-lhesalimentarmaisbocashumanascoma mesma quantidade de hectares de terra. Mais gente = mais oportunidades para especializaçãoeconômicaepolítica=complexidadeemergente.

Sóquenãoébemissoqueasdataçõesarqueológicastêmmostrado,aomenosporenquanto.ApósosprimeirosmilharesdeanosdoHoloceno,parecehaverumhiatodeocupaçãoemmuitasregiõesdaAmazônia—umperíodo imenso,quevai, grossomodo,de5.000a2.500anosatrás,duranteoqualsinais da presença humana por lá ficam muito esparsos. A situação é especialmente marcante naAmazônia Central (ou seja, nos arredores da atual Manaus), onde é muito difícil achar restos deassentamentos apesar de um trabalho intensivo de levantamento arqueológico, envolvendo mais deuma centena de sítios numa área de 900 quilômetros quadrados. Ninguém sabe muito bem o quepoderia explicar esse “hiato do Holoceno Médio”. Talvez estejamos diante de um fenômenorelativamentenatural.Serianecessárioum“tempodematuração”considerávelantesqueasatividadesagrícolastivessemumimpactosignificativosobreomododevidadoshabitantesdafloresta,talvez?De

qualquer jeito, o fato é que, para grande parte da Amazônia, o registro arqueológico só volta a“esquentar”devezemtornodoiníciodaEraCristã.

Conforme prometi no capítulo anterior, na nossa tentativa de mapear as sociedades maisimportantes daAmazônia pré-cabralina, tentaremos seguir uma trilha que segue de leste a oeste, doParáaoAcre.Noentanto,comoaregiãoé imensa,comumadiversidadeigualmenteportentosa,nemsempreconseguireisertotalmentelinear.Aproveiteopasseio.

AntesdeSantarémPara começar, voltemos nossa atenção para a área em torno da qual o rio Tapajós deságua noAmazonas, nas vizinhanças da cidade paraense de Santarém. A região de Santarém é altamenterelevanteparaanossanarrativaporabrigar,porexemplo,algumasdasdataçõesmaisantigasdeindíciosda presença humana na Amazônia (pouco mais de 10 mil anos), obtidas no município de MonteAlegre, onde há ainda pinturas rupestres das mais interessantes. E sérios candidatos a mais velhosobjetosdecerâmicasul-americanos,comidadeentre8mile7milanos,tambémvêmdaquelasbandas,dosítioarqueológicodeTaperinha.

Ambas as descobertas foram coordenadas pela americana Anna Roosevelt, responsável ainda porpesquisas importantes emMarajó. A partir da década de 1980, a pesquisadora da Universidade deIllinois, em Chicago, dedicou-se a explorar as camadas arqueológicas mais recentes da cidade deSantarémpropriamentedita.Pode-sedizer,aliás,queocentrovelhodacidadee suaregiãoportuáriasãodoisgrandessítiosarqueológicosacéuaberto.Foicombaseemseusachadospor lá,eapartirdeanálisesdeartefatosemmuseusedostextosdoscronistascoloniais,queRooseveltpassouadefenderaexistênciadeumapoderosachefiaribeirinhacujacapitaleraSantarém,umpovodeguerreirosqueteriaexigidotributosdepopulaçõesnumraiodecentenasdequilômetros.

EsseprotoestadoseriaodomíniodosTapajó,umgrupomisteriosocujosguerreirostalvezfossemosqueaterrorizaramGaspardeCarvajaleFranciscoOrellanacomsuasflechasenvenenadasdisparadasdebarcos.NãosesabequelínguaosTapajófalavam,masmuitoprovavelmentenãoeranenhumavariantedo tupi, primeiro idioma dominado pelos invasores portugueses. Isso porque, quando religiosostentaramconverterogrupodeSantarémaocatolicismo,noséculoXVII,foiprecisoprimeirotraduzirocatecismodotupiparaalínguadeles.

O responsável por essa tradução, hoje perdida, foi um jesuíta nascido em Luxemburgo (pois é,Luxemburgo, aquele pequeno país — tecnicamente, um grão-ducado — entre as atuais Bélgica,AlemanhaeFrança).JoãoFelipeBettendorf(1625-1698),umincansávelmissionáriodaCompanhiadeJesus, também legouàposteridadealgumas informaçõesesparsase fascinantes sobreosTapajó, comopistasarespeitodaexistênciadeclassessociaisdistintasentreeles,coisarelativamenteincomumentreoutros grupos indígenas (mas aparentemente típica das sociedades complexas do Brasil pré-histórico,comoteremosocasiãodeverrepetidasvezes).Ojesuítaluxemburguêscita,porexemplo,aimportânciada“princeza”(releveesse“z”,éortografiadoséculoXVII)MariaMoaçara,aqual,segundoatradiçãoTapajó, só tinha permissão para casar com um homem “que lhe fosse igual em nobreza”. Por issomesmo,Moaçaraacaboudesposandoumpoderosocacique,o“PrincipalRoque”(esseaí, talcomosuaconsorte,certamentesóganhouonome,queinevitavelmentemefazlembrardoassistentedepalcodovelho Silvio Santos, após o contato com os europeus). Bettendorf destaca ainda a importância dasmulheresdealtaestirpenasociedadeTapajó:

Costumamosíndios,alémdeseusprincipaes[ortografiaantigadenovo],escolherumamulherdemaiornobreza,aqualconsultamemtudocomoumoráculo,seguindo-aemseuparecer.

As fontes coloniais — as quais, com exceção dos textos de Carvajal, são do século XVII —mencionamtambémotalentodosTapajóaoesculpiramadeiraefazertecidosdealgodão,ousobélicoe político de misteriosos venenos (além de empapar as pontas de suas flechas com substânciasvenenosas, osTapajó teriamo costumede “temperar” a comidade pessoas indesejáveis com elas, deforma a eliminá-las nomelhor estilo “Game of Thrones”) e a captura de escravos em expedições deguerra,queprovavelmenteseintensificoucomachegadadoseuropeus,quasesempreinteressadosemadquirir mão de obra cativa. Finalmente, os autores da época colonial fazem referência a rituaisfunerárioselaborados,queincluíam,porexemplo,ochamadoendocanibalismo—um“canibalismodobem”,digamos.Esperava-seque aspartesmolesdo corpodomorto apodrecesseme então seusossoseramcuidadosamentemoídoseconsumidosporseusfamiliareseamigos(daío“endo-”,quesignifica“dentro”, já que a cerimônia antropofágica era conduzida pelos membros do “círculo interno” depessoasqueconheciamodefunto,porassimdizer).

As quantidades portentosas de material arqueológico obtidas por sucessivas gerações depesquisadoresecuriososemSantarémeseusarredorescomplementamosrelatosbastantesucintosdoscronistas, sugerindo que, de fato, havia algo de especial no domínio dos Tapajó. O primeiro fatorimportanteaconsideraréo simples tamanhodoassentamento:hácamadasvastíssimasde terrapretana cidade e seus arredores, o quemuito provavelmente indicamoradias permanentes, geração apósgeração. Como vimos, um componente crucial que contribui para a formação desse solo é omanejoconstantedo lixodoméstico.As tentativasdedataraocupaçãodaárea indicamqueela se intensificapoucoantesdoano1000d.C. e semantém forte atéo séculoXVII.AnnaRoosevelt estimaque essa“proto-Santarém”teriaocupadouns15quilômetrosquadrados,com“complexidadeeescalaurbanas”—umaverdadeiracidade,portanto,deacordocomela.

ÉdifícilnãoseimpressionarcomosartefatosdecerâmicaepedradeixadospelosTapajó.Talvezosexemplos mais famosos, no caso do trabalho dos oleiros tapajônicos, sejam os chamados vasos decariátides.Onomevemdogregoedesignaoriginalmenteumtipodecolunaoupilarquetemaformadeuma estátuademoça (uma “cariátide”, ou “donzela deKaryai”, antigo vilarejodo sul daGrécia),comoseocorpodajovemfosseaprópriacoluna—osexemplaresmaisfamososestãonoErechtheion,um templo construído em Atenas no fim do século V a.C. As cariátides da foz do Tapajós sãopequeninas,porém:emnúmerodetrês,essasfigurasantropomórficasfuncionamcomosuportedeumavasilhadecoradacomapliqueseincisões.Elas,porsuavez,seapoiamnumaespéciedetaça—ouseja,estamosfalandodeumobjetobarrocamentecomplicado,comestruturatripartite.

As pequenas figuras antropomorfas muitas vezes são representadas com detalhes dos olhos, dasmãoseatédosdedosdospés.Outrasimagensdecerâmicadoconjuntorepresentamaves,emespecialourubu-rei (provavelmente não por acaso, uma figura-chave em diversas mitologias indígenasbrasileiras), bem como criaturas antropozoomorfas — em outras palavras, misteriosos seres a meiocaminho entre o humano e o animal. Os artistas responsáveis por produzir os vasos de cariátidesparecem ter brincado de forma hábil com essa ideia ao dispor as figuras aplicadas de tal forma que,dependendodoânguloqueolhamosparaelas,podemseparecermaiscomgenteoumaiscombichos.Umaimagemmarcanteéadasorelhasdeumadessasfiguras,quelembraobicodeumpássarosevocêa examina de determinado lado. Alguns especialistas propõem que a referência a transições entre ohumano e o animal é indício do uso dessas peças em cerimônias de xamanismo, rituais que, entre

praticamente todos os povos da Amazônia, envolvem a crença de que certas pessoas conseguemtransitarmisticamente entre as esferas dos espíritos dosmortos, dos animais e dos seres humanos.Aatuaçãodosxamãsestarialigadaaindaaoqueosantropólogoschamamde“perspectivismoameríndio”— um conceito complexo,mas que talvez possa ser resumido da seguinte forma: da perspectiva dosanimais,eleséquesãogente(possuemaldeias,roupas,arcos,flechasetc.)eossereshumanoséquesãobichos.Umelementomuitocomumnasmitologiasnativasinfluenciadaspeloperspectivismoameríndioéacrençadeque,noiníciodostempos,quandooCosmosfoicriado,praticamentenãohaviadiferençaentre sereshumanoseanimais,quepensavame secomportavammaisoumenosdamesmamaneira.Nadamaisnatural,portanto,queapossibilidadedetransformaçõeseinterpenetraçõesentreumaesferaeaoutradarealidade.

ComonenhumrelatodetalhadosobreamitologiadosTapajóchegouaténós,as ideiasqueacabeideabordarnecessariamenteprecisamficarnoplanodaespeculaçãobeminformada,masofatoéqueorepertóriozoomórficoéimportanteparaoutrasformasrequintadasdaartetapajônica,comovasoscomcabeçadeonçaou jacaré,decoraçõesemformadeserpente,macacoesapo,muitasvezescombinadascom pequenas figuras antropomorfas que lembram as cariátides. Ao mesmo tempo, estatuetas comformahumanatambémeramproduzidascomfrequênciapelosantigoshabitantesdeSantarém,muitasvezescomumolharapuradopararetratardetalhescomoadornosnaspernas,nosbraçosenasorelhas(comburacosalargadosnoslóbulosquenãoestariamforadelugarnumatribourbanamoderna,aliás).Curiosamente,aexemplodoquetambémocorrenailhadeMarajó,agrandemaioriadessaspequenasestátuas retrata claramente o sexo feminino, o que talvez indique que os relatos coloniais sobre opoderiodeMariaMoaçaraeoutrasgrandesdamasTapajódefatocorrespondamàsituaçãoanterioràchegadadoseuropeus.

Um dos tipos de adornos retratados nas estatuetas tapajônicas— para sermais exato, presos emfaixas na cabeça dos personagens— também tem sido encontrado em “tamanho real” na região deSantarémeemoutrasáreasdaAmazônia.Estoufalandodoschamadosmuiraquitãs,pequenosartefatosdepedra(normalmenteverde,comoajadeítaeaamazonita)quecostumamteraformadeumsapooudeumarãestilizados.Osexemplaresmaistrabalhadostêmumabelezaquasealienígenaeparecemterfuncionado como marcadores de prestígio — bens cobiçados e raros — numa vasta região docontinente, sendo integrados em redes de troca que iam até o mar do Caribe. O comércio demuiraquitãs foi associado às míticas amazonas nos relatos do começo do período colonial, masescavações na região de Santarém revelaram exemplares inacabados e fragmentos dessas peças,indicando que o domínio dos Tapajó muito provavelmente era um dos centros da manufatura dosamuletos— inclusive comversõesmais simples, feitas a partir demateriaismenosnobres, que talvezfossemequivalentesàsnossasbijuterias.

Umdetalheprovavelmentemuito importanteéqueváriasdaspeçascaprichadíssimasquedescreviacima foram encontradas juntas, amontoadas e enterradas numa espécie de bolsão de descarte queaparece emdiversos locaisde Santaréme seus arredores.Odestinodadoaos artefatosde cerâmica epedracorroboraaideiadequeeleseramempregadosemcerimôniasreligiosaseadquiriamumaespéciede “poluição” mágico-mística que precisava ser levada para longe do mundo do cotidiano após aconclusão do uso ritual — mal comparando, seria como construir câmaras de contenção para lixoatômico.

Aartetapajônicaéfascinanteporsisó,obviamente,mastambémpodeserutilizadacomoindicadorda complexidade econômica e social dos ocupantes originais de Santarém, por um motivo bastantesimples.Nãoébrincadeiraproduzirumvasodecariátidesouummuiraquitã.Osujeitoprecisadeumbocado de treinamento e habilidade acima damédia para criar objetos tão refinados, e esse grau deespecialização talvez não seja compatível com a necessidade de pegar no cabo da enxada (ou noequivalentetapajônicodesse implemento,vá lá)diaapósdia,desolasol.Poroutro lado,seoartíficeem questão está inserido numa sociedade relativamente hierarquizada, na qual há excedente dealimentos e algum grau de especialização econômica— em outras palavras, enquanto a maioria dapopulação labuta para produzirmandioca-brava emilho, alguns podem se ocupar exclusivamente dafabricaçãodeobjetosrefinadosdecerâmica—,ficamaisfácilexplicaraexistênciadevasosdecoradoseamuletos.Oqueacabeideafirmarnãovaleapenasparaaarte,noentanto: émaisoumenosnaturalesperar que o mesmo processo produza estratificação social e a ascensão de chefes poderosos,interessadosemconquistarregiõesvizinhaseextrairalgumtipodetributodeseussúditos.

Éesseúltimopontoquenãoestátotalmenteclaro,apesardahipótesedeAnnaRooseveltemfavorda presença de uma chefia de feitio conquistador em Santarém. Por um lado, estudos recentes têmrevelado sinais de intensificação econômicanas áreas de terra firme (ou seja,mais distantes da calhadosrios)noentornodeSantarémduranteaépocaáureadosTapajó.Hásinaisdequeelesocuparamessas regiões com lavouras, abriram estradas e construíram represas (hoje conhecidas simplesmentecomo “poços”, embora não se pareçam com a imagem tradicional do poço com um balde e umacordinha),quepodemterservidotantoparafacilitaroabastecimentodeáguaquantoparacriarpeixes,uma fonte-chave de proteína animal quando você praticamente não tem animais domésticos à suadisposição.

O problema é saber se isso necessariamente significa que os Tapajó tinham se transformado numprotoimpério na época da conquista europeia. A presença marcante de predadores ferozes naiconografia tapajônica— onças, jacarés, serpentes, urubus-reis— levou alguns arqueólogos a proporque as imagens refletiam uma ideologia expansionista, agressiva e hierárquica, mas foi justamente aanálisedadistribuiçãodessa cerâmica emdiversos sítios emSantaréme áreasdistintasde terra firmeque levouaantropólogaDeniseSchaanaargumentarquenãohaviaumahierarquiaclaraentreessasdiferentes povoações. Em um estudo recente, a pesquisadora afirma que os diferentes núcleos depovoamentodaregiãoparecemterproduzidocerâmicacomqualidadebastanteparecida,oquepoderiaindicarquenãohaviaumgrandecentrodeprestígioculturalepolíticoexportandoseusartefatospeloscursos do Tapajós e do Amazonas, mas um conjunto de núcleos aliados que compartilhavam umaculturacomumeestavamunidosporlaçoscomerciaiserituais.Outroslevantamentos,conduzidosporDenise Gomes, hoje no Museu Nacional da UFRJ, indicaram que havia uma diversidade culturalinesperada na região que supostamente estaria submetida aos senhores de Santarém. Para ela,enquantoamargemdireitadorioTapajóseacalhadoAmazonasnosarredoresdaatualcidadedefatoseriam áreas dominadas pelos guerreiros tapajônicos, a margem esquerda do Tapajós abrigavaassentamentos mais modestos e igualitários, que tinham suas próprias tradições na produção decerâmica,distintasdaexuberânciaquepodiaserencontradaemSantarém.Ofatoéque,porenquanto,os arqueólogos só exploraram a proverbial ponta do iceberg quando o assunto é realizar trabalho decamponaregião.Paraqueasdúvidasdiminuam,oúnicocaminhoécontinuarescavando.

Círculodepedra,grutasancestraisOs sítios arqueológicos do Amapá talvez não se comparem a Santarém em grandiosidade, mascompensam seu tamanho relativamente modesto com amplas doses de mistério. O Estado abrigaestruturasmegalíticas—ouseja,montadascomgrandesblocosdepedra—quejáforamapelidadasde“Stonehenge amazônico”, bem como um dos conjuntos de urnas funeráriasmais impressionantes daAméricapré-colombiana.

Comecemosporessasurnas,portanto.TaisobjetosvêmdaregiãodorioMaracá,nosuldoEstado,etêm forma de gente. Esse detalhe, por si só, não é tão incomum assim — urnas vagamenteantropomórficas, ou com elementos decorativos que lembram a forma humana, estão presentes emoutros lugares da Amazônia, como a própria ilha de Marajó —, mas as umas do Amapá chamamatençãopelocuidadocomosdetalhese,aomesmotempo,peloaspectoalgofuturista,quasecomoseosindígenas que as produziram tivessemvisto fotografias de robôs humanoides e tentado reproduzir osserescibernéticosusandocerâmica.Claramentenãoéocaso, jáquea idadeestimadaparaosobjetoscorrespondeaofimdoperíodopré-colonial,aexemplodeváriosoutrossítiosqueestamosexaminandonestecapítulo.

AchamadaculturaMaracá temintrigadoosespecialistasdesdeo fimdoséculoXIX,masalgumasdasescavaçõesmaisrecentesnaregiãoforamfeitaspelaarqueólogaVeraGuapindaiaeseuscolegasdoMuseu Paraense Emilio Goeldi, em Belém, no entorno do Igarapé do Lago, um dos afluentes doMaracá.Outrodetalhe peculiar em relação às urnas é que geralmente eram colocadasno interior degrutas, e a equipe do Pará explorou tanto o interior desses abrigos — como a sugestivamentedenominadaGrutadasCaretas—quantosítiosarqueológicosqueserviamdemoradiaparaoscriadoresdosartefatosfunerários.

Asáreashabitadaspossuemacúmulosdeterrapreta(oqueésignificativo,comovocêjádeveestarcarecadesaber)eestãolocalizadasadistânciasrelativamentecurtasdasgrutas(algoentre800metrose3quilômetros).Osabrigos,porsuavez,ficamemáreasmaiselevadas.Emgeral,háumaconcentraçãogrande de urnas logo depois da entrada das cavernas, como se os responsáveis por as depositar alipretendessemmantê-lasnumaposiçãoacessívelavisitantes(oque,nosdiasdehoje,semoshabitantesoriginaisparaprotegerosrestosdeseusancestrais,nãotemsidoumaboa:Guapindaiacontaquecupinsmuitasvezesaproveitamasurnasparafazerseusninhos,oqueacabadestruindoosossoscolocadosládentro).

Acabei de mencionar ossos, o que significa que as urnas eram usadas para sepultamentossecundários—atéporqueseriadifícilqueocorpodeumserhumanoadultocoubessedentrodelas,jáque os artefatosmedem, nomáximo, 85 centímetros de altura, e alguns têm apenas 20 centímetros.Não há sinais de cremação, e os ossos parecem ter sido cuidadosamente dispostos dentro da urna,segundoumaordempreestabelecida—crânionotopo,pelvenofundo,costelaseossosdasmãosepésemcimadapelve,ossoslongos(osdaspernasebraços)apoiados“empé”nalateral.

Háalgumasurnaszoomórficas—umadelaslembraumtatucomfaceestranhamentehumana,aliás—,masasmaiscomunsemarcantessãoasantropomórficas.Acabeçaéformadapelatampadaurnae

apresentaapliquesquecompõemdetalhescomosobrancelhas,narizes,olhoseatédentes.No“tronco”,a parte principal do ossuário, é possível ver representações dos mamilos, dos genitais (de ambos ossexos) e dos ossos da coluna, na parte de trás. A postura dos simulacros de gente também chamaatenção:elescostumamestarsentadosembancos(tambémdecerâmica),comosjoelhosflexionadoseos braços apoiados neles,mas de um jeito pouco natural, com os cotovelos virados para a frente dafigura.Padrõesgeométricospintados,embranco,amareloepreto,aindapodemservistosemváriasdasestátuas,indodorostoedoscabelosatéosbraçoseaspernas,apresentandosemelhançascomapinturacorporalqueaindahojeéutilizadaporindígenasdaAmazônia.

Como interpretar essa constelação intrigante de elementos imagéticos e hábitos funerários? ParaGuapindaia,éimportanteconsiderardoispontos-chave:apresençadosbancoseadisposiçãodasgrutasnapaisagem(edasurnasno interiordasgrutas).Emculturasamazônicasdehoje, comoadospovosTukano (trata-se de outra família linguística importante da região), os bancos funcionam como ummarcador de autoridade política e, principalmente,mística: o sujeito não senta num banquinho paradescansar, mas para participar de rituais xamânicos, concentrando sua mente, entoando cantosreligiosos e tendo visões. Xamãs e caciques são os usuários tradicionais desses objetos, e há até umditadoTukano—algocomo“Fulanonão tembanco”—usadopara se referirapessoas incapazesdedarconselhossobreumassuntosério.

Quanto à localização das urnas, é importante ressaltar novamente o fato de que as grutas que asabrigamestãoaumadistânciacômodadosassentamentospré-históricoseque,alémdisso,osossuáriosficambempertoda entradadas cavernas.Ou seja, osmoradoresda regiãoque se aproximassemdasgrutas ficariam imediatamente diante de uma espécie deConselho dosAncestrais,mortos veneradossentados em seus bancos, prontos a oferecer sua sabedoria a respeito das questões que afligiam seusdescendentes. Talvez a proximidade permitisse inclusive que as pessoas visitassem as grutas comfrequência, trazendooferendasoupedidosdiantede seus antepassados.É impossível afirmarque eraissomesmooqueestavaacontecendo,masumcenáriodessetipoparecefazermuitosentido.

As estruturasmegalíticasdoAmapá, típicasde tiposde colinasda costanortedoEstado, tambémparecemterumaassociaçãoestreitacomsepultamentos.Nosúltimosanos,elastêmsidoestudadasporpesquisadorescomoJoãoDarcydeMouraSaldanhaeMarianaPetryCabral,quefizeramumaanálisedetalhada da mais famosa e imponente dessas estruturas, localizada no município de Calçoene. Oscírculos de pedra com asmaiores dimensões chegam a 30metros de diâmetro, e os pedaços (muitasvezesdegranito)queoscompõemalcançamaté3metrosdealturaacimadosolo.

Éimportanteressaltar“acimadosolo”porqueosconstrutoresdosmonumentosmegalíticostiveramo cuidado de criar fundações para as pedras, cavando buracos e firmando-as com a ajuda de outraspedras.Issoajudaaexplicar,aliás,outromistério:nossítiosmegalíticos,hágrandespedrasnavertical,na horizontal e outras aparentemente “tortas”. Seria concebível que as pedras com aspectodesconjuntadofossem,naverdade,elementosdoscírculosqueforamdeslocadospelasintempéries(oumesmo por inimigos dos construtores dos monumentos, por que não?). No entanto, no caso de aomenosalgunscírculos,asfundaçõesdaspedrasparecemtersidopensadasespecificamenteparamantê-lasnaquelasposiçõespeculiares.

EmCalçoene,hábonsindíciosdequeocírculodepedrastinhaalgumtipodefunçãoastronômica.Um dos postes líticos está alinhado de forma bastante precisa com a posição do Sol no solstício de

dezembro (como o Amapá fica um pouquinho acima do Equador, ou seja, no hemisfério Norte,tecnicamente estamos falando do solstício de inverno, o início oficial da estaçãomais fria, ainda quenessecasonãoaconteçanadamuito invernalparaacompanharosolstício).Parasermaisespecífico,atrajetóriadoastronocéudatardeacompanhadeformamuitoprecisaasilhuetado“dedo”depedra,seguindo-aportrásdotopoatéabase.

Poroutro lado,ospesquisadores identificaramtantournas funeráriascomcinzaseossoshumanosquantoobjetosdecerâmicaprofusamentedecorados(esemsinaisdeuso)depositadosnoscírculosdepedra,oqueapoiaahipótesedequeosmonumentostinhampapelimportanteemcerimôniasreligiosase fúnebres.Há casos em que os antigos habitantes cavaram câmaras especiais dentro do círculo paradepositar a cerâmica ritual. Além disso, havia ainda a prática de simplesmente colocar os objetos dedecoraçãotrabalhadajuntoàspedras,comopossíveisoferendas.Asdataçõesobtidasatéagorasugeremque os círculos megalíticos são um fenômeno da pré-história tardia, ou seja, foram construídos nosúltimosséculosantesdocontatocomoseuropeus.

SimetriasdoXinguComo antropólogos e sertanistas sabem desde pelomenos a segundametade do século XIX, o AltoXingu é uma região fantástica. Ainda que a arqueologia não tivesse nos revelado nada sobre acomplexidade social dos povos nativos do Brasil no passado, a situação peculiar dos indígenasxinguanos nos últimos séculos seria suficiente para sugerir que alguma coisa especial estavaacontecendoporlá.

Hoje,essaáreadonordestedoestadodeMatoGrossofazpartedoParqueIndígenadoXinguesecaracteriza por um sistema no qual uma dezena de etnias diferentes, falando idiomas muitas vezestotalmente distintos entre si e com alguns milhares de membros no total, formaram uma culturacompartilhada, relativamente homogênea, com cerimônias comuns, trocas ritualizadas e casamentosfrequentesentreumgrupoeoutro.Esse fatoéespecialmente surpreendenteporquenadamenosquetrêsdosgrandestroncoslinguísticosdaAméricadoSulestãorepresentadosladoaladonessecomplexodoAltoXingu.Temosgentedefalaaruak,comoosYawalapitieosWaurá;gruposdotroncolinguísticocarib,comoosKalapaloeosKuikuro,que jáencontramosbrevementena introduçãodo livro;eduasetnias tupi,osKamayuráeosAweti. IssosemfalarnosTrumai,grupode línguadita isolada,ouseja,quenãopareceterparentescopróximocomnenhumoutroidiomaconhecido.

É impressionanteque tamanhadiversidade linguística tenhaseamalgamadonumaúnica tramadecompartilhamento cultural, incluindo elementos como o que talvez seja a cerimônia indígena maisfamosa do Brasil moderno, o ritual fúnebre conhecido como Kuarup, na qual troncos de madeirarepresentam os defuntos de status elevado. Para ter alguma ideia do que a situação do Alto Xingusignifica,éinevitávelcolocarascoisasnumcontextocomparativoocidental.Comojávimosemcapítulosanteriores, quase toda a Europa, da Islândia à Rússia, é dominada por um único grande troncolinguístico,o indo-europeu.Nocasoxinguano,écomoseumpaíscommetadedotamanhodaSuíça,ouumpoucomenorqueAlagoas,abrigasseaomesmotempofalantesdoinglêsedoportuguês(línguasindo-europeias), do hebraico e do siríaco (idiomas semitas), do zulu e do suaíli (línguas africanas dafamília nígero-congolesa)— e com um bolsão de falantes de basco, só de lambuja (escolhi o bascoporqueesseidioma,umresquíciodaEspanhapré-histórica,tambéméumalínguaisolada,comoadosTrumai). E, o que é mais incrível, ninguém ali se odeia ou sai matando os coleguinhasindiscriminadamente de vez em quando, ao contrário do que acontece em outros territóriosmultiétnicosmundoafora(incluindoaíaprópriaEuropa,nopassadorecente).

Élógicoquemuitosespecialistasqueremsabercomoessaconstelaçãoculturalrelativamentepacíficasurgiuesemanteveaolongodotempo.ComoemoutroslugaresdaAmazônia,haviaindíciosdequeolugar tinha tido uma população bem mais densa no passado, com relatos sobre intervenções napaisagem — como grandes fossos, por exemplo — que já não eram mais utilizadas pelas tribosmodernas. Outra pista vinha de textos da era colonial. Embora tais narrativas não versassemdiretamente sobre o Alto Xingu, uma passagem muito curiosa, que lembra o deslumbramento deCarvajalno séculoXVI, foi escrita em1723pelobandeirantepaulistaAntonioPiresdeCampos, queexplorouoMatoGrosso e chegou às cabeceiras do rioTapajós—ou seja, uma região ligeiramente a

oestedoatual territórioxinguano.VejaoquePiresdeCamposescrevesobreoquechamade“ReinodosParecis”,naqueleportuguêsdequemparecenãoconseguir tomarfôlego, típicodaépoca(tomeialiberdadedemodernizarligeiramenteaortografia):

Éestagente em tantaquantidade,que senãopodemnumerar as suaspovoaçõesoualdeias,muitas vezes emumdiademarchaselhepassamdezedozealdeias,eemcadaumad’estastemdezatétrintacasas,en’estascasasseachamalgumasde30até40passosdelargo,esãoredondasdefeitiodeumforno,muialtaseemcadaumad’estascasas,entendemosagasalharátodaumafamília;estestodosvivemdesuaslavouras,noquesãoincansáveis,eégentiodeassento,easlavourasemquemaissefundamsãomandiocas,algummilhoefeijão,batatas,muitosananases,esingularesemadmirávelordemplantados,dequecostumamfazerseusvinhos,eusamtambémcercarderioarioocampo[...]muitoasseadoseperfeitosemtudoqueatéassuasestradasfazemmuitodireitaselargas,easconservamtãolimpaseconsertadasqueselhenãoacharánemumafolha.

É importante lembrar que, apesar de duramente afetados por expedições escravistas como asintegradaspelobandeirante-escritor,osParesí (essaéagrafiapreferidapelosantropólogosmodernos)aindaexisteme,aliás,seustraçoslinguísticoseculturaissãomuitosemelhantesaosdospovosdelínguaaruakdoAltoXingu.

Desdeocomeçodosanos1990,umaparceria entrepesquisadoresbrasileiros e americanos, comacontribuiçãocrucialdosíndiosdaregião,temperseguidopistascomoasqueciteiacima,comresultadosimpactantes.Otrabalhoenvolve,doladodoBrasil,especialistascomooantropólogoCarlosFaustoealinguistaBruna Franchetto, ambos doMuseuNacional daUFRJ; do lado dosEUA, os trabalhos sãocapitaneados por Michael Heckenberger, antropólogo da Universidade da Flórida, em Gainesville.AlémdegastarasoladasbotinasXinguafora,mapeandosítiosarqueológicos,ede fazerescavaçõesesondagens,aequipecostumarequisitaraajudadosKuikuroparainterpretarosachadosecompará-losà culturamaterial dos xinguanos de hoje.Outro ponto importante do trabalho dos pesquisadores naregiãoéousobemboladode técnicasdesensoriamentoremoto—ouseja,basicamenteocasamentocuidadosodeimagensdesatélitecomdadosdeGPSparalocalizarcomprecisãoosdiferenteselementosdapaisagemxinguana,tantoosdopresentequantoosdetectadospelotrabalhoarqueológico.Lembre-se de que estamos falando de uma área que, nos dias de hoje, possui uma cobertura florestalrelativamentefechadaeimponente(aindaque,tecnicamentefalando,oAltoXinguestejanaesferadetransição entre a vegetação mais aberta do cerrado e a floresta amazônica propriamente dita). Noentanto,vocêjásabeosuficientesobreoBrasilpré-cabralinoparasuspeitarquehaviabemmaisgentevivendopor láuns500anosatrás,oquesignificaqueaomenospartedacoberturavegetalde2016éum fenômeno recente, ligado à diminuição populacional e ao abandono de áreas que antes tinhamaldeias e plantações. Portanto, é razoável esperar que a composição da mata seja diferente nessestrechosqueantestinhamsido“antropizados”,afetadospelaaçãohumana—equetalvezasimagensdesatéliteajudemacorroboraressahipótese.

Acombinaçãodessasdiferenteslinhasdeevidênciamostrou,paracomeçodeconversa,queentreoséculo XIII e o século XVI d.C. havia ao menos vinte assentamentos no território tradicional dosKuikuro, enquanto hoje só existem três aldeias. A grande questão não é o mero número deassentamentos,porém.Comcercade50hectares,asgrandesvilasxinguanasdessaépocasãodezvezesmaioresqueasaldeiasdehoje,comumapopulaçãonacasadealgunsmilharesdeindígenasemcadalocal (o que, na verdade, é mais ou menos a mesma escala populacional de uma cidade medievaleuropeiadepequenoporte,oudeumacidade-EstadogregadetamanhomodestonaAntiguidade).

Tais centros maiores lembram, em certos aspectos, uma versão ampliada das aldeias xinguanasmodernas.Possuíam,porexemplo,umformatocircularouovalado,comascasasdispostasnumgrandecírculo. Já a grande área de terra batida no centro da povoação, o chamado terreiro (ou plaza, eminglês,emprestandoumtermodoespanhol),eraolocalqueabrigavaumaespéciedecasaritual,ondeprovavelmente eram guardadas máscaras sagradas e instrumentos musicais usados apenas emcerimônias religiosas. Assim como as aldeias atuais, as versões agigantadas construídas há 700 anostambém serviamcomomarco zerode estradas e caminhos, seguindoumpadrão geográfico simples eclaro: o povoado era cortado ao meio por uma estrada principal que segue no sentido leste-oeste esubdividido em quatro “fatias” por outra estrada importante, desta vez no sentido norte-sul. Emângulosde45grausnomeiodessasfatiasdaaldeia,passavamestradassecundárias.Estálembradodasestradas “limpas, direitas e consertadas” mencionadas pelo nosso amigo Pires de Campos? Éprovavelmentedecoisasassimqueeleestava falando,emboraocenárioquedescrevi inevitavelmentemefaçalembrardeumapizzacortadaeprontaparaoconsumo.

Tais características compartilhadas entre as aldeias antigas e as modernas sugerem que há umacontinuidadeculturalimportanteentreoAltoXingudopassadoeodehoje,masasdiferençassãotãoinstrutivasquantoassemelhanças.Osxinguanosdeseteséculosatráscostumavamfortificarsuasmega-aldeiascommuralhas(feitas,éclaro,comtorasdemadeira)etrincheirasquepodiamteraté3metrosde profundidade e 10 metros de largura, coisa que nenhum dos seus descendentes faz mais. Taiscircuitos defensivos mediam entre 500 metros e 2 quilômetros. Além disso, os maiores povoadosparecemtertidoterreirossecundários,enãoapenasoprincipal.

Outroponto-chavesãoossinaisdequehaviaumahierarquiadeassentamentos.Alémdosgrandescentros com um enorme terreiro e paliçadas defensivas, que provavelmente serviam como o coraçãoritualdeumaregiãocomuns250quilômetrosquadradosdeárea,haviacentrosmenores(nafaixados10hectares,aindaassimmaioresqueamaioriadasaldeiasmodernas)quecontavamcomseupróprioterreiro,alémdevilarejospequenoseáreasdeocupação temporárianomeiodamata.Asanálisesdesatélitesugeremquehaviaumrigorosoplanejamentoespacialdoterreno.Apartirdeumgrandecentrocerimonial, uma espécie de capital, havia grandes aldeias-satélites dispostas a intervalos regulares(distâncias entre 3 quilômetros e 8 quilômetros), nos eixos leste-oeste e norte-sul. Dá para imaginarumaestruturaregionalemformatodecruz,comumcentroprincipalequatrocentrossecundários.

Asestradasqueconectavamtodosessesnúcleospodiamserenormesparaospadrõesdequasetodasascivilizaçõespré-modernas,comlarguraentre10metrose50metros,estendendo-seaolongodeunscinco quilômetros e conectando os diferentes tipos de assentamento, inclusive com pontes passandosobre áreas alagadiças.E, por falarnelas, a exemplodoque aconteciana ilhadeMarajó, tambémháváriossinaisdemanejoambientalparagarantirumsuprimentosegurodepeixes,comlagosartificiaisearmadilhasnocursodos rios.Ospesquisadoresdefendemqueahierarquiade tiposdeassentamentoera espelhadaporoutra, ligadaaousoagrícolado território: áreasmaispróximas aosgrandes centrospopulacionaiseramocupadasporlavourassemi-intensivasdemandiocaamargaeporpomaresdepequi(aindahojeumafrutaimportantenaculináriadoCentro-Oeste).Áreasmaisdistanteseramexploradascommenosintensidade,embuscadematérias-primasououtrostiposdefrutos,ehaviaaindaasáreasdematavirgempropriamentedita,raramentevisitadas.

Dá para chamar um sistema de ocupação desse tipo de “cidade”, de “urbano”? Heckenbergerargumenta que sim, desde que se imagine um tipo de urbanismo “espalhado”, em que existe umatransição gradual e suave entre áreas densamente habitadas, áreas rurais e regiões florestadas. Ospesquisadorescalculamque50milpessoasoumaisvivessemnoAltoXingunoaugedessesistema—curiosamente,nocomeçodoséculoXVI,tambémhaviacercade50milalmasemLisboa.Aliás,jáqueme pus mesmo a fazer essa analogia meio temerária, haveria um equivalente de DomManuel I (osoberanoportuguêsnaépocadadachegadadoscolonizadoresaoBrasil,casovocênãoestejalembrado)nasterrasxinguanas?

Provavelmente não — o que não significa que a situação política da região fosse totalmenteigualitária.TudoindicaqueamatrizculturalpredominantenoAltoXingu,queacaboudandoorigemaosingulararranjomultiétnicodosdiasatuais,éadospovosdelínguaaruak.AinfluênciadessagentenotávelsobreospadrõespopulacionaiseculturaisdoBrasilpré-históricoseráumdosprincipaistemasdopróximocapítulo,masporenquantobastafrisarumdadoimportante:taispovos,diferentementedoque se vê entre muitos grupos indígenas, possuem uma espécie de “nobreza de sangue”, com umadistinção relativamente clara entre linhagensde chefes e linhagensdeplebeus.Aindahoje, os chefesmaispoderososdoAltoXingurecebemhonrariasconsideráveisdeseuséquito,comoaconstruçãodeverdadeirospaláciosdesapé—casascommaisdemilmetrosquadrados—eodireitoaarmazenarumsuprimento com algumas toneladas de farinha de mandioca em suas moradas, um mantimentoconfiadoaoschefespelacomunidade.AslinhagensnobrestambémcontrolamrituaiscomooKuarup,oquelhesdáumaespéciedejustificativacerimonialparaasuaproeminência,aqual,nofundo,nãoétãodiferenteassimdaideiadequeosreiseuropeusgovernavamporvontadedopróprioDeus.

Quando somamos esses fatores à existência de diferenças de tamanho e de presença de espaçosrituais entre os assentamentos, faz sentido imaginar que os grandes centros tivessem uma esfera deinfluência na qual os grandes chefes podiam exigir reverência, ajuda na guerra e na paz e talvez atétributos dos moradores. Ao mesmo tempo, vários desses centros parecem ter coexistido, sem sinaisóbviosdeconflitosentreeles(comexceçãodaevidência indiretadapresençademuralhas,éclaro).Éconcebível,portanto,quea integraçãoculturaleritualdediversasculturas—nomínimo,envolvendoos grupos de idioma aruak e carib — já existisse na época imediatamente anterior à chegada doseuropeus. É mais difícil responder qual foi o ritmo exato da construção desse arranjo e dodesenvolvimento dos diferentes núcleos de povoamento hierárquico do Alto Xingu. Heckenberger ecompanhiapropõemqueos ancestraisdosgruposde fala aruak teriamchegadoà regiãoporvoltadoano 500 d.C., o que desencadeou um processo gradual de crescimento demográfico e integraçãoregional que culminou com asmega-aldeias do fim da IdadeMédia (ou, para ser preciso, da nossaIdadeMédia, jáqueesseconceitorelativoàEuropacristãpós-romananãofariaomenorsentidoparaosxinguanos).

Os antropólogos acreditam que outros grupos foram chegando à região em épocas mais tardias,talvezemtornodoséculoXVIII,mastambémacabaramsendoincorporadosaosistemaalto-xinguano.Segundoessepontodevista,oquevemoshojeseriaumaversão“miniaturizada”esimplificadadoqueexistiunopassado.

EncontrodaságuasContinuando nossa jornada rumo a oeste, chegamos à Amazônia Central, território que tem sidoexploradonasúltimasdécadasemprojetosdelongoprazocoordenadospeloarqueólogoEduardoGóesNeves, doMuseu deArqueologia e Etnologia daUSP, com a participação de colegas do Brasil e doexterior.

Para os especialistas que tentam achar evidências concretas da presença de grandes populações ecomplexidade social na bacia amazônica pré-cabralina, a região estudada por Neves e companhiadeveria ser umamão na roda. Afinal, é por ali, nas vizinhanças deManaus, que os rios Solimões eNegro se unempara formaroAmazonaspropriamentedito, como célebre “encontrodas águas”, noqualaságuasbarrentasericasemnutrientesdoSolimõescolidemcomacorrentezacordecaféepobreemnutrientesdorioNegro.Alesteeaoestedessegrandeencontro,deságuamnoSolimões/Amazonasoutros dois grandes afluentes, os rios Purus e Madeira, respectivamente, cada qual com suascaracterísticasecológicaspróprias.Fazsentidoimaginarqueessasimensasencruzilhadasfluviaistenhamsidoestratégicasnapré-história,comoaindaosãohoje.Valelembraraquiaimportânciadosecótonos,ouseja,doencontroentrediferentesambientes,queexploramosaofalardagênesedossambaquis:nasáreas de intersecção entre dois territórios ecologicamente distintos, existe uma profusão deoportunidadesediferentesrecursosalimentaresaseremexploradosporgenteespertaedeterminada—comoasespéciesdepeixestípicasdecadario,porexemplo.Considereaindaofatorlogísticonahoradetransitarporgrandesáreasdabaciaamazônica:gruposbemposicionadosnospontosdeencontroentremega-afluentes e o Amazonas poderiam se aproveitar de rotas de comércio, forjar alianças e travarguerrascommaiseficiência,entreoutrasopções.

Além das vantagens aparentemente lógicas que acabei demencionar, os especialistas debatem hámuito tempo a tese de que haveria um incentivo natural para a intensificação da agricultura naschamadasáreasdevárzeadoSolimões-Amazonas.Podemosapelidaressaideiade“efeitoNilo”,sevocêquiser. No meu tempo de escola (olha o alerta de gente velha falando!), as aulas de história daAntiguidadenoensinofundamentale/oumédioinvariavelmenteincluíamoprofessorcitandoaimortalfrase “O Egito é uma dádiva do Nilo” (do historiador grego Heródoto, ativo no século 5º a.C.) emalgummomento.Amáximafoicunhadaparaexplicarcomoascheiasanuaisdorioegípciofertilizavamsuasmargensdesérticascomsedimentos,permitindoassimodesenvolvimentoagrícolaeseucorolário,oaparecimentodeumagrandecivilização,do tipoqueconstróipirâmides eoutrasobras literalmentefaraônicas.AAmazôniaestálongedeserumdeserto,masseusolonormalmenteémuitopobre,comojá vimos, o que significa que o período das cheias na bacia amazônica, quando vastas áreas sãoinundadas, também teria o potencial de fertilizar a beira dos rios com os nutrientes e mineraisarrastadospelacorrentezadesdeoiníciodesua jornada,nos longínquosAndes.Apartirdaí,surgiuaideiadequeasáreasimediatamenteadjacentesaocursoprincipaldorioteriamsidoasmaiscobiçadaseprodutivas quando os amazônidas originais dominaram a agricultura, e que eles tenderiam, por umaquestãodecomodidadeeestratégia,aocuparosbarrancosmaiselevadosdacalhadorio,queestariamrelativamenteprotegidosdas cheias. Essa ideia parecia ser corroboradapelos relatos de sujeitos como

GaspardeCarvajal,quemencionaramaexistênciadeintermináveispovoadosladeandoasmargensdoAmazonas.

OtrabalhodeGóesNevesecompanhiaconfirmoupartedessashipóteses,mastambémindicaqueocenáriotalvezsejabemmaiscomplicadodoqueseimaginavaoriginalmente.Comecemoscomasdatas.Comomencioneilogonocomeçodocapítulo,aequipemostrouqueapresençahumananaAmazôniaCentral só parece se intensificar para valer nos primeiros séculos após o nascimento de Cristo,alcançando uma espécie de apogeu em torno do fim do primeiromilênio da Era Cristã. Existe umaassociação importante entre os assentamentosde grandeporte (na escala das dezenasdehectares) e,que surpresa, apresençade terrapreta.AssimcomoemMarajó, surgeocostumedecriaraldeiasemplataformasartificiais—tesosoumontículoscircularesousemicirculares,porexemplo.E, talcomosevê no Alto Xingu, aparecem grandes aldeias com estrutura circular ou anelar, com um terreirocerimonial no centro, algo que pode estar associado aos povosAruak, como já vimos, embora coisassemelhantestambémapareçamentregruposdeidiomajê,maiscomunsnoBrasilCentral.Alémdisso,habitações localizadas em cima dos montículos passam a receber sepultamentos — outro possívelparalelocomoterritóriomarajoara.

Juntocomaintensificaçãodaocupação,aequipedaUSPtambémidentificouumagrandevariedadede tradições de produção de cerâmica ao longo dos séculos nos diversos sítios arqueológicos daAmazôniaCentral.Éclaroquenãoexisteumacorrespondênciaexataentreoqueosoleirosproduzemea cultura à qual eles pertencem— estilos de cerâmica são o tipo de coisa que pode ser copiada semgrandes dores de cabeça entre um povo e outro, bastando que haja algum tipo de comércio e/oucontatocultural.Mesmoassim,asucessãodetradiçõesdepotesevasilhamesajudaospesquisadoresater uma ideia, ainda que imprecisa, da sucessão de povos que podem ter passado pelos arredores daatual capital amazonense ao longo dos últimos dois milênios — até porque, num clima como o daregião,objetosdecerâmicaestãoentreospoucosquesepreservamdurantemuitotempo.

DeacordocomGóesNeves,osprimeirossítiosarqueológicosdegrandesdimensõesestãoassociadosà chamada faseManacapuru, que ocorre em contextos datados entre os séculos IV e VIII d.C. e secaracteriza por decorações feitas por meio de incisões duplas, apêndices zoomorfos (mais ou menoscomoosdoTapajós,emboracomumestilopróprio)eengobo—ouseja,verniz—decorvermelha.Asaldeias circulares/anelares grandalhonas, porém, estão associadas principalmente à fase Paredão, queaparecebemmaistarde(doséculoVIIaoséculoXIId.C.)esenotabiliza,entreoutrascoisas,pelaaltaqualidadedotrabalhodosoleiros(osvasospossuemparedesfininhasebemqueimadas,eaescolhadasargilas é mais cuidadosa) e por urnas funerárias que possuem um tipo de aplique antropomorfoestilizadoconhecidocomocabecinhasParedão.Comotalvezvocêtenhanotadoseprestouatençãonasdatas acima, há uma sobreposição temporal entre as tradições Manacapuru e Paredão e, inclusive,registros de uma aparente interação comercial (ou talvez diplomática?), com sítios ligados a umatradição contendo exemplares de cerâmica da outra. Para completar nossa lista de tradições deproduçãodevasos,valeapenacitaraindaachamadafaseAxinim,típicadobaixorioMadeira(ouseja,da porção desse rio próxima à sua foz no Amazonas), cujo estilo se assemelha bastante ao da faseParedãoe,emmenorgrau,àfaseManacapurueàsdecoraçõesrequintadasdomaterialdoTapajós.AfaseAxinimparecetersidolongeva,comdataçõesquevãodoiníciodaEraCristãatéoséculoXIII.Dequebra, está associada a sítios arqueológicos de grandes dimensões, como o de Vila Gomes, com 40

hectares de ocupação, e o de São Félix doAripuanã, commais de 80 hectares (ambos noEstado doAmazonas).

Hásinaisdequeascoisascomeçamaficaraindamaisinteressantesecomplicadasnaregiãoapartirdoano1000d.C.Porvoltadessadataaparentementecabalística(que,obviamente,nãosignificavanadaparaosnativosdaAmazônianaépoca),acerâmicaParedãocomeçaasersubstituídapormateriaisdeoutra tradição, conhecida como fase Guarita (presente na região até a época do contato com oseuropeus).AfaseGuaritaestáassociadaàchamadatradiçãopolicrômicadaAmazônia,umconjuntodeelementos da cultura material que tem uma ampla distribuição na região, chegando até o atualEquador,nosúltimosséculosdapré-históriaamazônica.Comoonomesugere,estamosfalandodeumtipodecerâmicaqueenvolveacombinaçãodeváriascoresnadecoraçãoequeconta,alémdisso,comuma série demotivos geométricos.Tudo indica quenão se trata demera trocada louçado jantar: amudançanas tradiçõesceramistaséacompanhadapor indíciossinistrosdeconflito.EmLagoGrande,um sítio na várzea do rio Solimões que fica numa península, os moradores abriram uma vala parasepararapontadapenínsuladaterrafirmenoséculoXI—aparentementeumamedidaparaimpedirque invasores a pé alcançassem a aldeia. Uma vala medindo 150 metros também foi cavada paraprotegerosítiodeAçutuba.Outrossítiosarqueológicosapresentamindíciosdaconstruçãodepaliçadas;eháocasodeVilaGomes,queencolheu—de40hectarespara20hectares—efoitotalmentecercadoporumagrandetrincheira.Doispontosfinaisqueprovavelmentesãoimportantes:apartirdessaépoca,as tradicionais aldeias circulares são lentamente substituídas por povoados “lineares”, dispostos emlinharetanabeiradorio,maisoumenoscomoosdescritosporCarvajalemmeadosdoséculoXVI;eparece haver um certo declínio populacional— o pico da ocupação naAmazônia Central parece teracontecidolápeloséculoXI,quatrocentosanosantesdoaparecimentodoseuropeusporali.

A combinação de todos esses fatores— alterações significativas na culturamaterial,mudanças nopadrãodepovoamento e surgimentode estruturasdefensivas— tem levadoos arqueólogos aproporqueestavamsurgindoconflitosentrediferentesgruposétnicos.Talvezsejamsinaisdachegadaàregiãodegrupos falantesde idiomas tupi,osquaisnormalmenteestãoassociadosà tradiçãopolicrômica.Dequalquer modo, Góes Neves e seus colegas também têm se notabilizado por defender uma visãoligeiramente iconoclasta a respeitoda complexidade social amazônicanos séculos anteriores aCabral.Segundoeles,osdadosarqueológicosnãodemonstramumprogressounidirecionaleconstanterumoasociedadescadavezmaishierarquizadasepoderosas,massimumprocessocíclico,noqualconflitosealianças regionais produzem ora grandes assentamentos, ora populaçõesmais dispersas e igualitárias.Dequebra,elestambémtêmquestionadoopapelsupostamentecrucialdaagriculturanessesprocessos.Apesar da presença de terra preta por todo lado, eles notamque emmuitos casos esse solo fértil foiusado comomatéria-prima para a construção demounds, em vez de servir como base para grandeslavouras.Tambémtemsidorelativamentedifícildesencavarevidênciasdiretasdeatividadeagrícolanosgrandes sítios da Amazônia Central. Tomemos como exemplo o sítio de Hatahara, no municípioamazonense de Iranduba. É verdade que a equipe identificou fitólitos (ou seja, os grãozinhosmicroscópicosdesílicaproduzidospelasplantas)típicosdemilho, inhameemandiocanolocal,masoque realmente impressionou os arqueólogos foi a imensa variedade de ossos de animais aquáticos esemiaquáticos:dosdezmilrestosdevertebradosemHatahara,90%erampeixes(amaioria),tartarugas,jacarésousucuris.Dospeixes,nadamenosqueumquartoerampirarucus, superpeixesde100quilos

daAmazônia.Ospesquisadorespropõemqueomanejointensivodosrecursospesqueirostalveztenhasidooelemento-chaveparaasgrandessociedadesamazônicas,nolugardatradicionalagricultura.

DesenhosvistosdocéuOmais recentemistériodaAmazôniapré-cabralina está situadono extremoocidentalda floresta emterritóriobrasileiro,englobandoregiõesdoAcre(asmaisimportantes)edoAmazonas.Originalmente,as estruturas geométricas foram detectadas do alto, por imagens aéreas e de satélite, recebendo oapelidodegeoglifos—ouseja,desenhosna terra—,omesmotermousadoparadesignaras famosaslinhas de Nazca, encontradas na parte desértica do sul do Peru e que chegam a formar belasrepresentaçõesestilizadasdemacacos,colibriseoutrosbichos.

NoAcre, a sofisticação dos ditos geoglifos não chega a tanto: temos apenas quadrados, círculos elosangos, às vezes com desenhos menores colados ao que parece ser a forma geométrica principal.Pesquisadores como os brasileiros Alceu Ranzi, da Universidade Federal do Acre, e a onipresenteDeniseSchaan,daUFPA,uniram-seaMarttiPärssineneseuscolegasdaUniversidadedeHelsinque,naFinlândia, para tentar entender a origem e o significadodos traçadosno solo, que são típicos daschamadaszonasdeinterflúvio—longedosrios,portanto.

Tudo indica que os geoglifos só chamaram a atenção dos pesquisadores nas últimas décadas porcausa da intensificação do desmatamento no Acre — antes disso, as estruturas estavammetaforicamente submersas em floresta densa. Isso pode significar duas coisas bem diferentes emutuamente excludentes: ou o território acreano do passado remoto passou por uma fase em que avegetaçãoerabemmaisabertadoqueéhoje—permitindo,portanto,aconstruçãodosgeoglifos—ouhaviaumadensidadepopulacionalindígenamuitomaiorporlánaépocapré-cabralina,oquelevouaodesmate em áreas que acabaram sendo reflorestadas naturalmente por pura falta de gente com adestruição de inúmeros grupos nativos a partir do século XVI. A segunda opção, obviamente, écompatívelcomoquevemosemoutrasregiõesdaAmazônia.

Dequalquermaneira,aúnicacertezasobreasestruturaséqueelasnãoforamfeitasparaservistasdo alto. Embora os pesquisadores tenham identificado quase trezentas delas, só conseguiram fazerescavações propriamente ditas num punhado de sítios. Portanto, quaisquer generalizações ainda sãoprovisórias.Mesmoassim,oquesepodedizeréque,noníveldosolo,osdesenhosforamcriadospelaconstruçãodevalascomprofundidademédiade1,5metro(podendochegaraaté5metros)e larguradepoucomaisde10metros.Écomumaindaqueastrincheirassejamprovidasdeumaáreaelevadadolado externodoburaco, comalturamédia demeiometro.Alémdisso, nas regiões emquehá váriosgeoglifospróximos,tambémhápequenasestradasqueosligam.Aáreainternanormalmentetementre1hectaree3hectares.

Bom,casoencerrado—estruturasdefensivas,certo?Nãotãorápido,afobadoleitor.Aomenosnossítiosescavadosatéagora,comidadesqueficamentre2milanose700anosantesdopresente,quasenão há sinais de ocupação no interior dos desenhos. Se não havia casas lá dentro, as valas estariamprotegendo o quê? Ademais, em geral, a profundidade das trincheiras não é suficiente para evitar apassagemdeumgrupodeinimigos.Osesparsosrestosdecerâmicaencontradosporaliestavamdentrodastrincheirasounosbarrancosartificiaisdoladoexternodosdesenhos.Paraospesquisadores,émais

provávelque estejamos falandode áreas cerimoniais—grandes terreirosquepodem ter servidoparareunirboapartedapopulaçãodoAcrepré-históricoparafestançasreligiosas.

ParaentendermelhoroqueestavaacontecendonoAcrepré-cabralino,ospesquisadoresrealizaramescavaçõesemdoisgeoglifosjábemestudados,queficamacercade10quilômetrosdedistânciaumdooutro.Alémdisso,tambémcavaramosoloadiferentesdistâncias(de500metrosaté7,5quilômetros)deumdosgeoglifos,paratentarinvestigaroimpactodaconstruçãodaestruturanasáreasvizinhas.

A vedete dessas escavações não foram pontas de flecha ou vasos de cerâmica, mas os humildesfitólitos—aquelesminúsculosgrãozinhosmineraisproduzidospelasplantas.Comojávimos,épossívelidentificar uma espécie de vegetal apenas por seus fitólitos, o que significa que eles podem dar umaideiabastanteboadavegetaçãoqueexistiaemdeterminadolugarnopassado.

Aanálisedosfitólitos indicaque,assimcomoocorriaantesdaondamodernadedesmatamento,oAcreda épocada construçãodos geoglifos eradominadoporuma floresta característica, comgrandeabundânciadeespéciesdebambu.Cercadequatromilanosatrás—muitoantes,portanto,dacriaçãodas estruturas —, há sinais de queimadas de grande escala na região. Depois desses eventos, acomposiçãodeespéciesdasmatasmudade formaconsiderável,comoaumentodecercade30%dostiposdepalmeiras.

Isso indicaque jáhaviaporali grupos indígenasmoldandoa composiçãode espéciesda floresta aseu favor, já que as palmeiras, como a pupunha, estão entre as principais árvores manejadas oudomesticadas pelos nativos da Amazônia, como nosso capítulo agrícola já demonstrou. É como se amatafosseparcialmentetransformadaempomar,digamos.

Poroutrolado,quandoosgeoglifoscomeçaramaserconstruídos,nãohouveumamudançaradicalnos fitólitos. Os pesquisadores calculam que, se a área dos monumentos fosse desmatadapermanentemente,aproporçãode fitólitosdegramadeveriaaumentarparacercade50%,masela semanteve o tempo todo abaixo dos 10%. Segundo eles, os geoglifos não chegaram a permanecerdesmatadospormaisdequarentaanosseguidos–docontrário,agramateriatomadocontadolocal,oquenãosedeu.

Alémdisso, ameros quinhentosmetros de distância dos desenhos, não há sinais demudança navegetação,oqueindicaqueoimpactodasestruturaseraaltamentelocalizado–regiõesnoentornonãocostumavam ser desmatadas. Em suma, na época pré-cabralina, as florestas do Acre tinham sidoalteradassignificativamentepelapresençahumana,mas issonãosignificavadesmatespermanentesoudelargaescala.

Denise conta como imagina que a sociedade dos construtores de geoglifos funcionasse. “Seriamgrupos com algo entre cem e duzentas pessoas, reunindo-se esporadicamente para a construção oureforma de alguns desses recintos. Poderíamos pensar que, num dado momento, haveria umapopulaçãototalde6milpessoas,divididasemtrintagrupos.Muitosdelesmorariamporperto,tinhamroças,outrosficariammorandoporaliporumperíododepoisqueafestividadeacabasse;outrosseriamnômades, vivendo nos rios em embarcações grandes, navegando e fazendo trocas comerciais.” Nãoprecisodizer—masdigoassimmesmo—quetaisconclusõessãoinevitavelmenteprovisórias.Éprecisoverseessecenárioserepeteemoutrosgeoglifos.**

ÉsóocomeçoTenhaemmentequeasdiferenteshistóriasquetenteiesboçaraolongodasúltimaspáginassãoapenasuma amostra do que pode ter existido no passado amazônico. Poderíamos investigar ainda, porexemplo,oschamadosKonduri,outropossívelpovodeconquistadoreseguerreiros,comartequasetãoexuberante quanto a dos Tapajó, que ocuparam a região a oeste de Santarém, perto da foz dos riosNhamundá e Trombetas. Como todo mundo sabe, a Amazônia é gigantesca e, o que é ainda maisrelevante,foipouquíssimoexploradaporarqueólogos.Surpresasquasecertamentenosesperam.

**Estelivroestavaprestesairparaagráficaquandofuiobrigadoadaroproverbialgrito“Paremasmáquinas!”einserirumaúltimaatualizaçãorelevantearespeitodosgeoglifos.NumestudopublicadonarevistacientíficaPNAS,DeniseSchaaneseuscolegasrelataramdescobertasintrigantessobreadinâmicadeconstrução—eabandono—dasestruturas.

Os fantasmas inquietos de William Shakespeare (1564-1616) e Oswald de Andrade (1890-1954)provavelmenteestãomeamaldiçoandopor todaaeternidadepelouso indevidodo trocadilhoquedánomeaestecapítulo.Andrade,oescritormodernista, foio sujeito responsávelpela transformaçãodoTo be or not to be (“Ser ou não ser”, é claro) do velho Shakespeare na versão engraçadinha acima.Enquanto Oswald de Andrade queria desencadear uma revolução cultural genuinamente brasileirainspirando-senaantropofagiadosTupinambádoséculoXVI,oobjetivodaspróximaspáginasétentarentendercomo transformaçõesculturaismuitomaisprofundasdoqueasapresentadasnaSemanadeArteModernade1922afetaramoBrasilpré-históricoalgumascentenasdeanosantesdachegadadoseuropeus.OsTupinambáeoutrospovosdefalatupifiguramentreosastrosdessasaga,masestãolongedeserosúnicos,pormaisqueelesaindasejamumdospoucossinônimosdebrasileirospré-cabralinosnaimaginaçãodemuitagente.

Nossopontodepartidaserálinguístico,porqueadiversidadedeidiomasdospovosnativosdopaísaindaéumdosmétodosmaisconfiáveisparatentarentendercomoelesseespalharampeloterritório,travaram guerras, forjaram alianças e redes de comércio. As línguas, no entanto, estãomisturadas aoutros elementosda identidadehumana, como a cultura (material ou imaterial) e a genética, deumjeito cabeludamente complexo e não linear. Tentaremos desemaranhar osmuitos fios dessameada eexplicar—aindaquedeformainevitavelmenteprovisória—porqueomapaétnicodoBrasilem1499tinhaaformacuriosaencontradapelosportugueses.

ExplicaçãotécnicaOstimescampeõesda(pré-)história

O casamento entre diversidade linguística e eventos históricos (e pré-históricos) impactantes não é nenhumbichodesetecabeças,e ficabastanteclaroassimqueagentesepõeapensarnahistóriadanossapróprialíngua.Considereapalavrinhaportuguesahomem,porexemplo.Umfatocuriosoéque,sesaímosdeLisboaeaterrissamos em Madri, Paris ou Roma, notamos que palavras muito parecidas — hombre, homme e uomo,respectivamente — são empregadas por espanhóis, franceses e italianos para designar a mesma criatura, umtipo de primata (quase) sem pelos e bípede que às vezes se dá ao trabalho de escrever livros. O caso dapalavrahomemnãoéumfenômenoisolado:quandoexaminamosorestodovocabulárioluso-hispano-franco-italiano (e,emparte, tambémagramáticadessas línguas),descobrimossemelhançassistemáticasquevalemparaessesidiomascomoumtodo.

Éclaroqueassimilaridadespoderiamser frutodeempréstimos, comodizemosespecialistas.Trocandoemmiúdos, teriam surgido por influência cultural, pelo mesmo motivo que nós dizemos futebol em vez deludopédio, simplesmente adaptando o som do inglês football aos padrões fonéticos do português, já que aideia de botar 22 marmanjos correndo atrás de uma bola nos veio da terra de sua majestade britânica. Aquestão,porém,équeassemelhançasentreoportuguês,oespanhol,o italianoeofrancêssãosistemáticasdemaisparaquepossamosexplicá-lasapenascombasenomecanismodosempréstimos(emboraeletambémcontribuaparaoresultadogeral:choferenhoquesãoclaramenteempréstimosdofrancêsedoitalianoparaoportuguês,quechegaramaténósemtemposrecentes,comoaconteceucomofutebol).Afinal,sefazsentidoemprestarumapalavraestrangeiraparadesignarumconceito igualmenteestrangeiro—o futebol,nocaso—,vocábulos que designam seres humanos, vacas ou árvores não deveriam, em tese, precisar desse tipo deimportação linguística, já que essas três coisas estão por aí, à vista de quase todos os membros da nossaespécie, desde que o mundo é mundo. Faz mais sentido, nesse caso, pensar em descendência commodificação, como dizem os biólogos quando falam da evolução das espécies de seres vivos: uma única“palavra-mãe” dando origem a “palavras-filhas” com o passar do tempo. Tais “palavras-irmãs” são conhecidascomocognatos.

No exemplo de que estamos tratando no momento, a resposta certa é óbvia porque, lógico, temos registroshistóricosrelativamenteprecisosdomomentoemqueasatuais línguasdePortugal,daEspanha,daFrançaeda Itália começaram a evoluir em paralelo. Para começo de conversa, ninguém falava nada minimamenteparecido com o português no futuro território de Portugal lá pelo ano 300 a.C. Os idiomas mais comunsprovavelmenteeramdogrupocéltico,ouseja,vagamenteaparentadosaogalêseaoirlandêsdosdiashoje.NafuturaFrança—aliás,Gália,comosediziaentão—tambémhaviaidiomascélticos;e,naprópriaItália,alémdolatim arcaico de Roma, à época falado apenas na região central da península, tínhamos todo tipo de línguaesquisita,comooetrusco,tãodistintodosoutrosidiomaseuropeusqueatéhojenãofoitotalmentedecifrado.EssadiversidadeconsiderávelfoiesmagadapelorolocompressormilitardeRoma.AoconquistarboapartedaEuropaOcidentalapartirde200a.C.edominá-laatéoséculoVd.C.,osromanostransformaramsuapróprialínguanoúnicoidiomaculturalmenteaceitáveldessavastaregião,deformaquequaseumbilhãodepessoasvivas hoje ainda falam o que é essencialmente uma forma capenga de latim (estou incluindo nessa conta, éclaro,osfalantesdaslínguasfilhasdolatimquevivemforadaEuropatambém).

Temos excelentes razões para acreditar que a situação das chamadas línguas neolatinas ou românicas é umexemploextremo, relativamente recenteebemdocumentadodoqueaconteceudiversasvezesao longodapré-história.Sereshumanoscostumamserbastanteapegadosàssuaslínguasmaternas(eaoutroselementosde sua cultura). Além disso, vivem em sociedades complexas, populosas e altamente conectadas hápouquíssimotempo.Durante99,9%danossaexistênciacomoespécie,osujeitoseenxergavacomomembroapenas de um pequeno bando de caçadores-coletores ou de uma tribo, como já mencionei antes. Aconsequêncianaturaldissoéadivergência linguística:dadoorelativoisolamentoeapassagemdotempo,atendênciaéqueaspessoasnãoconsigammaisentenderoquefalamossujeitosaapenasalgumasdezenasde quilômetros de distância de casa. Pronúncia, vocabulário e gramática tendem a assumir funçõesidiossincráticaseregionais,sofrendo“mutações”aparentementealeatóriasque lembrammuitoasconstantes

trocas de “letras” químicas do DNA que acometem todos os seres vivos conforme os milênios e milhões deanos vão passando (mais um ponto no qual a semelhança entre línguas e espécies de animais chega a serassustadora). Se esse “estado de natureza” do Homo sapiens tivesse persistido indefinidamente, o mapalinguístico do globo deveria ser absurdamente diversificado (quero dizer, bem mais diversificado do que osseis mil idiomas que ainda existem por aí), e nenhuma família linguística conseguiria ter se espalhado porgrandesáreasdoplaneta.

Deveria, repito, mas não é o que acontece na prática. A força centrífuga (ou seja, descentralizadora) dosurgimentoincessantedavariabilidadelinguísticafoicontrabalançadaporimportantesforçascentrípetas,quecriaram centros de (relativa) unidade linguística. Sim, existem bolsões com imensa diversidade de idiomasisolados—aNovaGuinéeaAméricadoSulsãooprincipalexemplo—,mascoisasparecidascomavitalidadedas línguasneolatinas,numaescala temporalmaisprofunda, tambémsãomuitocomuns.Jácitamosmaisdeumavezoexemplodas línguas indo-europeiasneste livro: todassãoaparentadas—valedizer,compartilhamumaquantidadeconsideráveldecognatos.Seuterritóriocontínuooriginal(semcontaramaciçapresençaatualdealgumasdessaslínguasnasAméricas,naÁfricaenaOceania)éimenso,daIrlandaàRússia,incluindoaindao predomínio indo-europeu no Irã e na Índia. O latim e seus descendentes fazem parte desse grupo, assimcomo outros membros antigões, cobertos das glórias do passado (o grego, o sânscrito, o hitita e o persa),novatos que só ganharam poder e fama no último milênio (o inglês, o russo e o alemão) e idiomas deimportânciaapenasregional(lituano,albanês,gaélico).

Denovo,explicaraexpansãodaslínguasneolatinaséfácil:superioridademilitareorganizacionalromanaestãoportrásdaorigemdelas,basicamente.Acoisaficamuitomaiscomplicadanocasodoindo-europeuprimitivooudoancestralcomumdos idiomasbantos,hojeosmais faladosnaÁfrica.Fazsentido,noentanto, imaginarque alguma vantagem competitiva favoreceu os povos que falavam os antepassados desses idiomas“supercampeões”. Note que essa tal vantagem pode ter sido até algo relativamente sutil. Não precisamospostular que os primeiros indo-europeus (digamos) saíram de seu território original e passaram a exterminarcada homem, mulher e criança que não fosse capaz de cantar “Parabéns para você” em protoindo-europeufluente. Eles poderiam ter apenas uma ligeira vantagem militar sobre seus vizinhos, que teria permitido queeles se estabelecessem como uma pequena elite hegemônica e (relativamente) benigna em áreasconquistadas,porexemplo.Comopassardotempo,amelhormaneiradeumatribodominadasebeneficiardessepotencialbélicoseriaaprendera línguaeoscostumesdeseussenhores.Nasgeraçõesseguintes,umnovosurtoexpansionistapoderialevartantoosdescendentesdosconquistadoresoriginaisquantoosnativos“assimilados”paraumaáreavizinha,aumentandoaindamaisaesferadeinfluênciaculturaldaqueleidioma—eassimpordiante,aolongodecentenasoumesmomilharesdeanos,atéqueomapaculturalelinguísticodeumcontinenteinteiroacabariasetransformando.Nessecompassogradual,haveriatemposuficienteparaqueosdialetosindo-europeusfossemdivergindoesemisturandoàsfalasnativasdecadaregião.

Etalveznema ligeiravantagemmilitarsejanecessáriaparaquecoisasdessetipoaconteçam.Os falantesdoidioma com futuro promissor podem simplesmente ter uma pequena superioridade demográfica: sãoagricultoresmaiseficientesqueosvizinhos(talvezosúnicosagricultoresdopedaço,naépocaemquequasetodosossereshumanosaindaeramcaçadores-coletores)oucriamanimaisquelhesgarantemumsuprimentoseguro e constante de proteína, quiçá. Portanto, conseguem alimentar mais gente por metro quadrado deterra,emmédia,têmmaisfilhos,eessesfilhos(ounetos,oubisnetos)sãoforçadosaprocurarumnovopedaçodechãoquandoachácarada famílianãoconseguemaisalimentar todomundo.Conformeo tempopassa,atendênciaéqueoidiomaquefalamseespalheporumaáreamaisampla,porbemoupormal(nessesegundocaso,voltamosaocenárioanterior,eo fatordemográficoéqueconferesuperioridademilitaraosgruposquemigram). Outra possibilidade é que os sujeitos de que estamos falando sejam especialmente inventivosquandooassuntoémobilidadee/oucomércio:conhecemrotas fluviaisoumarítimas,possuemveículoscomrodas ou são cavaleiros hábeis, entre outros fatores. Com isso, conseguem transitar por áreas mais amplas,fundam entrepostos comerciais longe de casa, concentram riqueza e prestígio. Quem quiser fazer bonsnegóciosprecisafalaralínguadessaturma;omerofatodedominá-lapodesetornarumamarcadeprestígiocultural — e casar sua filha com aquele mercador endinheirado e cosmopolita (ou o seu filho com a herdeiradele) de repente parece uma ótima ideia. O resultado é que, como nos outros cenários que citei, a línguafaladaporessegrupotendeaseespalhar.

Esse,emsuma,éocenárioteórico,masnemsempreéfáciltestá-lonomundoreal,estabelecendocombomgrau de segurança os mecanismos e o timing da expansão das grandes famílias linguísticas mundo afora. Ocaso dos idiomas indo-europeus, embora seja o mais estudado do planeta (por motivos óbvios: povos que

falamessesidiomassãoosmaisricosedesenvolvidosdomundofazséculos),aindadivideosespecialistas.Ocaminho para reconstruir essas histórias de expansão envolve, de um lado, a comparação exaustiva entre aslínguasdedeterminada família.Assimcomopodemosdeduzirumritmomédiode trocade“letras”químicasdeDNAquandolinhagensdeseresvivosseseparam,eapartirdaífazerascontaseestimarháquantotempoessas linhagensdivergiram,os linguistaspodemempregarcomo“tique-taque”astransformaçõesdesomnoscognatos.Porexemplo,adiferençaentreogregopatéreo inglês father,palavrasderivadasdomesmotermoindo-europeuoriginalparapai.Notequeatrocadepporfnãoéaleatória:essasconsoantessão“parentes”.Sevocênãoacredita, tentepronunciaropdeixandoescaparumpoucodearpelos lábiosentreabertos,emvezdefazerissodamaneira“seca”típicadessaconsoante,everáqueosomquesaiémuitoparecidocomumf.Coisasdessetiposãoincrivelmentecomunsemlínguasquesãoaparentadasentresi.

Aocomparartais“mutaçõeslinguísticas”numagrandevariedadedeidiomas,épossívelestimarquecaratinhaalínguaoriginalquedeuorigemàsdiferentesformasmodernas(aindaqueessareconstruçãosejasempreumaconjectura) e imaginar como as línguas-filhas foram divergindo de um tronco comum com o passar dosmilênios. Outra ferramenta-chave é a própria proporção de cognatos compartilhados entre dois idiomas:conformeotempodeseparaçãoentreaslínguasvaicrescendo,atendênciaéqueessaproporçãocaia.Eisumdosfatores,aindaquenãooúnico,portrásdofatodequeoportuguêseoespanholsãomaisparecidosentresi do que o português e o francês, por exemplo. Para conseguir empregar essa estratégia direito, é precisoescolhercuidadosamenteumaamostragemdecognatosquepertencemao“núcleoduro”da língua,ouseja,as palavras com menor tendência a serem substituídas por empréstimos ou neologismos. Nas pesquisas daárea,opadrãoéusarlistasdecercadecemvocábulos,conhecidascomolistasdeSwadeshporqueopioneirodessaabordagemfoiolinguistaamericanoMorrisSwadesh(1909-1967).DaúltimalistapropostaporSwadeshapós décadas de trabalho constam palavras como pronomes pessoais (“eu”, “tu”), partes do corpo (“olho”,“nariz”, “boca”),adjetivos (“quente”, “frio”),verbos (“comer”, “ver”)eobjetosdanatureza (“Sol”, “Lua”, “terra”,“pedra”). Finalmente, um elemento engenhoso da metodologia linguística, que vai além dos vocábulos“basicões”daslistasdeSwadesh,éusaraspalavrascompartilhadasentreosdiferentesmembrosdeumgrupode idiomas para tentar inferir qual era o ambiente original, a cultura material, a sociedade e até os mitos dogrupo que falava a “língua-mãe”. Digamos que todas as línguas associadas a determinado grupo possuemcognatos que designam conceitos como “urso-pardo”, “carvalho” e “carroça”. No mínimo, isso nos permiteinferirqueessepessoalviviaoriginalmenteemáreastemperadasdohemisférioNorte(únicolugarondeursos-pardosecarvalhossãoencontradosjuntos),numaépocaemquearodajátinhasidoinventada.Legal,não?

Sócombasenessetipodedadojáépossívelfazerumaestimativaarespeitodotempodedivergênciaentrelínguasoufamíliaslinguísticas,maséóbvioqueaconfiabilidadedatentativaaumentaquandooutrasvariáveissão incluídas na conta. Sempre é interessante, por exemplo, quando é possível associar a cultura material (acerâmicaouosinstrumentosdepedra/metal,digamos)adeterminadogrupoeàlínguaqueelesfalavam—atéporqueessaassociaçãopodetrazerdataçõesdiretasdomaterialarqueológico,queajudamacalibraraidadedas divergências com números mais sólidos. Se, ainda por cima, for viável obter DNA dos donos dessesartefatos e compará-lo com o de pessoas de hoje que falam idiomas do tronco linguístico que se desejaestudar,asconclusõestêmpotencialparasetornaraindamaissólidas.

Nesse ponto, porém, é claro que as coisas ficam mais complicadas. Como diz um velho ditado dosarqueólogos, “potes não são pessoas”. Ou seja, é perfeitamente concebível que um grupo adote a culturamaterial de outro por motivos funcionais (do tipo “gente, essa TV coreana é muito melhor que a nacional”),estéticosoudeprestígio,semque issoafetea línguaeacultura“imaterial”dosdonosdaquela louça,muitomenos seus genes. E, mesmo quando há substituições linguísticas, isso muitas vezes não equivale asubstituições biológicas. Voltemos ao exemplo do Império Romano: o general e político Júlio César (100a.C.-44a.C.)conquistouaGáliacomsuaslegiões,tornando-se,portanto,responsávelpelofatodeoscidadãosda França de hoje falarem francês, mas não foi uma substituição populacional maciça a causa da adoção dolatim como língua preferida do território gálico. A maioria absoluta dos romanos continuou na Itália; osgauleses não foram exterminados (fora o pessoal que morreu nas guerras contra César, claro), massimplesmenteaprenderamlatim.Mesmoquandoháalgumníveldesubstituiçãodepopulações,émuitodifícilqueelasejaabsoluta,atéporque,infelizmente,guerreirosvitoriosossempregostaramdaideiadetransformarasmulheresefilhasdosderrotadosemconcubinas—oque,comopassardotempo,produziráumapopulaçãomestiça.

Nocasodosidiomasindo-europeus,essaconstelaçãodeevidênciastemsidoempregadaparadefenderduashipóteses bem diferentes. A primeira vê o advento da agricultura no antigo Oriente Próximo como a grande

vantagem competitiva dos falantes desse grupo de línguas. Tal ideia recebeu o apoio de reconstruções dotiming de divergência dos vários ramos indo-europeus, feitas com os mesmos métodos estatísticos que osbiólogosusamparaestudarpadrõesdedivergênciaentreespéciesdeanimais,queapontaramumaidadede9milanosparaogrupoindo-europeu—maisoumenoscoincidentecomosurgimentodaagriculturanaregião.Outro ponto intrigante a favor da ideia é o fato de que as línguas indo-europeias aparentemente maisprimitivas,quesesepararamprimeirodasdemais,eramfaladasporpovosdaÁsiaMenor(atualTurquia),áreahabitadaporalgunsdosprimeirosagricultoresdoVelhoMundo.Eháosdadosgenéticos,queapontamque,de fato,aagriculturaparecetersidotrazidaparaaEuropaporgentedoOrientePróximoquesemiscigenoucomoscaçadores-coletoresdocontinenteefoilentamenteavançandorumoaooesteaolongodemilênios.

Estudosgenéticospublicadosem2015,porém,derammaispesoàhipóteseconcorrente,quehátemposéapreferida dos linguistas. Segundo essa corrente de pensamento, os idiomas indo-europeus teriam sidoespalhados pela Eurásia bem mais tarde, a partir de uns seis mil ou cinco mil anos atrás, por tribos decavaleiroscujo laroriginaleramasestepesdamodernaUcrânia.Grifementalmenteaspalavras“cavaleiros”e“estepes”, por gentileza. Segundo essa hipótese, a domesticação relativamente tardia do cavalo (um dosúltimosmamíferosdegrandeportequeviraramparceirosdahumanidade)nasvastasáreasabertasucranianasexplicaosucessodosprimeirosindo-europeus.Afinaldecontas,nomundoantigo,guerreirosapéraramenteerampáreoparainvasoresacavalo,capazesdesimplesmenteatropelá-loscomaforçadacargamontada,semfalar na mobilidade que isso conferia aos donos dos equinos. A tese tinha o apoio das reconstruções dosupostovocabulárioindo-europeuoriginal,quecontémpalavrasquedesignamtantooscavalosdomesticadosquanto veículos que poderiam ter sido puxados por eles. Nos estudos de 2015, geneticistas conseguiramobter DNA de centenas de esqueletos achados em escavações arqueológicas e comparar esse materialgenéticoaodepopulaçõesmodernas.Essacomparaçãomostrouoquepareceserumacontribuiçãogenéticamaciçadegruposucranianosdecincomilanosatrásparaosatuaiseuropeus.CercademetadedoDNAdefranceses,tchecoseinglesesteriasidolegadaaelespelopovodoscavaleiros,calculaocoordenadordeumdessesestudos,oamericanoDavidReich,daUniversidadeHarvard.

Aqui termina o longo e indispensável preâmbulo deste capítulo. Tenha em mente essasmetodologias e possíveis controvérsias nas próximas páginas, quando falarmos das grandes expansõeslinguísticas do passado (pré-)brasileiro. Vários dos temas abordados nas últimas páginas devem serepetir,mas não esqueça jamais que o cenário sul-americano costuma ser bemmais complicado, empartepor serbemmenos estudadoqueo indo-europeu, emparteporquea situaçãopor aquide fatoparecesermaiscomplexa.Ainfluênciadosincontáveisestudossobreosindo-europeusétamanhaquelevoualgunsarqueólogosaproporqueaatividadeagrícolaeacriaçãodeanimaisseriampraticamenteosúnicosmecanismoscapazesde impulsionaroavançodegrupos linguísticoseculturasmundoaforanapré-história,mastudoindicaqueessavisãosimplificademaisocenário.Asorigensdaagriculturaecertas inovações tecnológicas podem ter sido importantes na nossa parte do globo, mas seus efeitosprovavelmenteforammaissutis.

Por que acabei de usar o adjetivo “sutis”? Em parte porque, conforme você talvez tenha visto depassagem alguns parágrafos atrás, na América do Sul não existe nada parecido com a superioridadeesmagadora do grupo indo-europeu. Basta dizer que o nosso pedaço do continente abriga, sozinho,cercadeumquartodototaldefamíliaslinguísticasdoplaneta—108famíliassul-americanas,parasermaisexato,deumasomade420delasmundoafora.Essacontaserefere,ébomressaltar,àdiversidademodernadeidiomas,numtotaldecercade350línguasdiferentes.Estima-seque,naépocadocontatoinicialcomoseuropeus,essenúmeroerabemmaior,chegandoaumas1.500línguas.Maisimportanteainda é notar que, do total de grupos linguísticos sul-americanos, metade corresponde ao quepoderíamos chamar de “bloco do eu sozinho”: são formados por uma única língua isolada, semnenhuma relação claramente discernível de parentesco com qualquer outro idioma. Para que você

tenhaumaideiadoquantoissoparecebizarro,aomenosnocontextodomundomoderno,naEuropainteiraexisteumúnicoexemplodelínguaisolada,obasco,faladoemregiõesdaEspanhaedaFrança.Quando olhamos a situação sob esse prisma, portanto, o primeiro impulso é concluir que expansõeslinguísticasdegrandeescalaporaquiforamraridade.

Trata-se de uma impressão parcial, no entanto. Convivem com as dezenas de línguas isoladasalgumas famílias com sucesso (pré-)histórico fora de série. Em dispersão geográfica, o campeão doscampeõeséogrupodosidiomasaruak.OrigináriasdaAmazônia,aslínguasaruak,quehojesãocercadesessenta,avançaramrumoaomardoCaribe,nonorte,enadireçãodoPantanaledoChaco,nosul;tambémestavampresentesnosextremosleste(Marajó)eoeste(sopésdosAndes)dabaciaamazônicana época da chegada dos europeus. Resultado: um conjunto de idiomas aparentados que pode serencontrado desde a Bolívia e o Paraguai até Belize e Honduras. No caso desses países da AméricaCentral,estamosfalandodosGarifuna,umapopulaçãodeorigemmista—indígenaeafricana—quefalaumidiomaameríndioefoideportadadasilhascaribenhasparaocontinentenoséculoXVIII).

As línguas do grupo tupi levam a medalha de prata nessa disputa: nenhum desses 40 e poucosidiomas chegou a deixar a América do Sul, mas dentro das fronteiras do continente elas ocupavamáreas enormesdoBrasil (em especial no litoral doNordeste, Sudeste e Sul e naAmazônia), alémderegiõesdaArgentina,doParaguai,daBolívia,doPeruedaGuianaFrancesa.Osidiomascarib,porsuavez,sãocercade30(umdeleséalínguamaternadosKuikuro,nossosvelhosconhecidos,comoesperoquevocêserecorde)eestãoespalhadospelapartenortedaAmazônia,apesardealgunsdelestambémterem chegado ao Xingu e a certas ilhas do Caribe (daí o nome da região, aliás). E há o grupo dosidiomasmacro-jê, que somam entre 20 e 30 línguas (dependendo um pouco de como você faz aconta).Seus falantes tendemaocuparprincipalmenteas regiõesdevegetaçãoabertaedeplanaltodointeriordoBrasil,emespecialnapartemeridionaldaAmazônia,noCentro-OesteenasáreasdematadearaucáriadeSãoPauloeda regiãoSul.Umdetalhecuriosodessa lista:dosquatrograndesgruposlinguísticosqueacabeideapresentar,apenasomacro-jênãopareceterorigemamazônica.Osdemais,atéondesabemos,surgiramemalgumpontodamegaflorestatropicalsul-americana.

Apartirdeagora,vamosnosconcentrarnocampeãoenovice-campeãoda lista,poralgumasboasrazões. Os idiomas dos grupos aruak e tupi, além de serem os mais espalhados do ponto de vistageográfico,tambémestãoentreosmaisestudadosatéhoje,easculturasligadasaelesoferecemaindacontrastes interessantes entre duas visões de mundo muito diferentes, dois polos opostos queinfluenciaramdecisivamenteomapadaBrasilpré-histórico.

NavegantesbonsdebicoDo ponto de vista de quem mora em metrópoles como Belém e Manaus, a etnia de língua aruakWakuenai vive no cafundó dos cafundós da Amazônia — uma área do alto rio Negro do ladovenezuelanodafronteira,encaixadamaisoumenosentreonortedoEstadodoAmazonaseRoraima,muito longe de qualquer centro urbano de tamanho apreciável.O curioso, porém, é que amemóriacoletivadosWakuenainãopareceretratarnenhumgrande isolamento.Pelocontrário:nascerimôniasde iniciaçãodosmembrosdogrupodo sexomasculino, são entoados cânticos rituaisque recordamacriação domundo,mas que também funcionam comouma espécie demapamítico de quase todo onorte daAmérica do Sul— ou, para sermais exato, dos rios que cortam aquele pedaço do planeta.Nessascerimônias,osjovensWakuenaiescutamosnomesdelugaresdetodaabaciadorioNegro(quechegaatéasvizinhançasdeManaus),doAmazonaspropriamenteditoaténãomuitolongedeBelémede grande parte da bacia do Orinoco, o outro grande rio associado à floresta equatorial no nossocontinente, que passa pela Colômbia e corta a Venezuela praticamente ao meio. É uma áreamonstruosamentegrande,masatradiçãoWakuenaiparecesabermuitobemcomoseacharnelasemaajudadapalavraescrita(oudesmartphonescomGPS).

Temos excelentes razões para acreditar que tais mapas míticos refletem o conhecimento obtidoduranteasgrandesjornadasempreendidaspelosgruposdelínguaaruaknopassadodistante.Forçandoapenasumpouquinhoabarra,poderíamosconsiderarqueessespovoseramos“feníciosdaAmazônia”—canoeirosacostumadosa jornadasde longadistânciaquecoordenavamumaintensarededetrocaspelosriosdaflorestaedasregiõesadjacentesaela,maisoumenoscomoopovodenavegantesdoatualLíbano, cujos navios conectavam todo oMediterrâneo na Antiguidade. Com efeito, os antropólogosqueestudamasetniasaruakdehojeconsideramqueumadascaracterísticascomunsaquasetodaséocomportamento “hidrocêntrico”, ou seja, que coloca o contato com as águas dos grandes rios e odeslocamentoporelascomoumpontocentraldessasculturas.Taltendêncialevouessespovosatéasairdocontinentesul-americanoeganharoAtlânticotropical:osprimeiroshabitantesdeilhascomoCuba,Hispaniola (onde hoje ficam Haiti e República Dominicana), Jamaica e Porto Rico falavam idiomasaruak, e foram eles que Colombo e seus marinheiros encontraram inicialmente ao desembarcar noNovoMundoem1492.Palavrashoje incorporadasamuitos idiomaseuropeus—“tabaco”, “canoa”e“furacão”,porexemplo—chegaramanósporintermédiodosAruakcaribenhos.

A combinação de análises linguísticas e arqueológicas sugere que o ponto de partida dos gruposaruakantesqueseespalhassempelaAméricadoSulepeloCaribeteriasidoabaciadoOrinocoe,demaneiramais geral, o noroeste daAmazônia, embora essa hipótese não esteja livre de controvérsias.Partedadificuldadededeterminarqualeraa“pátriaaruak”originalderivadofatodequeochamadoisolamento por distância—mecanismo que determina que quantomais línguas aparentadas entre sificamdistantes geograficamente,mais suas características tendem a divergir— é de pouca valia paraexplicar a evolução desse grupo. Trocando em miúdos: você se lembra de quando eu disse que adistânciaeotempodeseparaçãoajudamaexplicarporqueoportuguêseoespanholseparecemmaisentresidoqueoportuguêseofrancês?Poisesseprincípionãovalemuitonocasodosidiomasaruak,

nobre leitor.A complicação, aliás, émais um indício de como esse pessoal zanzava para cima e parabaixodaAmazôniamilêniosatrás,porquesugerequelínguasde lugaresdistantesmantinhamcontatocomalgumaregularidadee,dessemodo,divergiammenosdoqueoesperado.

Quantoàescalatemporaldadivergênciaentreaslínguasaruak,asestimativasatuaisfalamemalgocomounstrêsmilanos(oqueéconsideravelmentemenosdoqueaidademaisrecenteestimadaparaos idiomas indo-europeus, como já vimos). As pistas arqueológicas mais importantes são algunsconjuntosbonitosdeartefatosemcerâmicaassociadosàsorigensdogrupo,quesecaracterizam,entreoutras coisas, pela presença de grelhas e raladores dedicados ao preparodanossa velha conhecida, amandioca-brava ou mandioca amarga, e por decorações com linhas incisas, modelagem, apliques epinturamonocromática(emgeralpretaoubranca).

Jáquemencioneiamandioca,éimportantedestacarquetécnicasrelativamenteintensivasdecultivoenvolvendoessaplantaeoutrasespéciesvegetaistambémcaracterizamosAruak.Háquemacreditequeossistemasdemanejoderesíduosresponsáveisporproduziraterrapretaforam“inventados”poreles,assim como técnicas sofisticadas para produzir comida em terrenos sazonalmente alagados, como naregiãodeLlanosdeMojos,naBolívia,relativamentepertodeRondônia.Porlá,arqueólogosrevelarama existência deuma vasta redede camposde cultivo artificialmente elevados, nos quais, obviamente,davaparaplantarsemmedodequearoçafosseemboranaépocadacheia.Ocenárioeracompletadopor caminhos e canais que conectavamas diferentes áreas da região. E, por falar em canais, sistemasparagerenciarrecursosalimentaresaquáticos—armadilhasparapeixes,lagoasartificiaisetc.—sãoumcomplemento importantedamaneira “hidrocêntrica”depensardosAruak, podendo ser encontradosemprofusãonoAltoXingu(aoquetudoindica,umaregiãocujaestruturasocialepolíticadevemuitoaospovosdessegrupolinguístico,conformejámencionei).

Aculturaxinguanaéumexcelenteexemplodeoutrascaracterísticasquepodemexplicarosucessodos Aruak. Por lá, assim como em outros lugares onde esses povos se estabeleceram, vemos umatendênciaaforjaraliançaseconexõesrelativamentepacíficascomgruposdediferentesorigensétnicaselinguísticas.Nãoháumaideologiadeconquistaoudasvirtudesintrínsecasdaguerra.Taisaliançassãocimentadas por cerimônias conjuntas e por rituais elaborados, envolvendo frequentemente o uso deinstrumentos de sopro (“flautas” e “trombetas”, se quisermos empregar uma nomenclaturaocidentalizada).Etemosapresençadeumaaristocraciahereditária,aclassedosqueosYawalapitidoAltoXinguchamamdeamulawnaw(singular:amulaw),os“capitães”ouchefes.Decertamaneira,osamulawnawsãooquechamaríamosde“cavalheiros”.Oidealéquesedestaquem,porexemplo,pelasmaneiras nobres, pela generosidade e pela sua habilidade ao falar, enquanto seu oposto são osipuñöñöri-malú (“gente ruim”), os sujeitos “que não sabem falar”, considerados agressivos eantissociais,segundooantropólogoEduardoViveirosdeCastro.

Para alguns dos principais especialistas na ativa hoje, essas características — habilidades denavegação,deslocamentosdelongadistância,tecnologiasagrícolasintensivas,estabelecimentoderedesdetrocaserelativopacifismo—indicamqueocertonãoéimaginarumaondadeconquistasmilitaresdos Aruak pelo continente e pelo mar do Caribe, mas sim uma “diáspora”, na qual gruposrelativamente pequenos iam fundando entrepostos pelos rios da Amazônia e fazendo aliançasmatrimoniaiscomoshabitantesdoslugaresquevisitavam.

Comisso,oidiomafaladopelosgrandesviajantespodeterassumidoocaráterdeumalínguafranca,ouseja,deumafalaútilparaatividadescomerciaisediplomáticas(comoofrancêsnoséculoXIX,ouoinglêsnosdiasdehoje).Umdadocuriosoquepodedarmaispesoaessecenárioéofatodeque,emmuitoscasos,aslínguasaruakpossuemcaracterísticasestruturais—coisascomoaordemdosujeito,doverbo e do objeto direto na frase, por exemplo — mais parecidas com as dos idiomas não aruakencontrados ao seu redor.Tal fatopode ser simplesmenteo resultadode séculosde contato entre aslínguas, claro, mas também pode indicar que populações que falavam idiomas não aruak acabaramadotandoa faladosrecém-chegadosmaiscosmopolitas,embora tenhammantidopartedasestruturaslinguísticasoriginaisdesuaculturacomopanodefundodalíngua“emprestada”.

Vingança:umpernilquesecomequenteCunhambebetinhadiantedesiumgrandecestocheiodecarnehumana.Comiadeumaperna,segurou-afrenteàminhabocaeperguntouseeutambémqueriacomer.Respondi:‘Umanimalirracionalnãocomeumoutroigualasi.Umhomemdeveriacomeroutrohomem?’.Elemordeuedisse:‘Jauáraichê.Souumaonça.Estágostoso’.Entãoafastei-me.

Oarrepianterelatoemprimeirapessoaacimavem,obviamente,doperíodocolonial.FoicompostopelomercenárioalemãoHansStaden(1525-1579),sujeitoqueveioparaoNovoMundoembuscadeaventura e se colocou a serviço dos portugueses como artilheiro de um forte em Bertioga, no atuallitoral paulista. Capturado pelos mais aguerridos inimigos de Portugal na região, os Tupinambá(tambémconhecidoscomoTamoionaépoca), Stadenpassouváriosmeses emaldeiasdessegrupodefala tupi, sob constante ameaça de ser devorado nos festins antropofágicos que funcionavam comocelebração ritualdavingançaguerreira entreosmembrosda etnia.Graças à sua lábia e sorte, Stadenconseguiu ser liberado pelos Tupinambá e voltou para a Europa. A narrativa do alemão, publicadaoriginalmente em sua terra natal, corrobora o que dizem outros cronistas do século XVI, sejam elesportugueses, franceses ou espanhóis. Com base nesses textos e em outros dados históricos eetnográficos, fica clara a importância — e talvez a centralidade — do combate e dos ciclosaparentemente intermináveis de vingança para as sociedades Tupi. O papel exato dessa ideologiabelicosaeliteralmentedevoradoranaexpansãodetaisgrupospelaAméricadoSulaindaéumaquestãoemaberto,mas o fato é que, aomenosno casode algunsdos povos que falam idiomas tupi,muitosindíciosapontamparaumacapacidadedeconquistarterritóriosextremamentesignificativaaolongodapré-históriabrasileira.

Amaioria das pesquisasmais recentes concorda ao estimar uma idade de uns 5mil anos para ochamado tronco linguístico tupi como um todo. Quanto ao local de origem desses idiomas, assubdivisões dentro do grupo são uma pista importante. Os estudiosos classificam as línguas tupi emnada menos que dez ramos ou subfamílias diferentes. Cinco dessas subfamílias, faladas por gruposcomoosCinta-LargaeosTupari,possuemumadistribuiçãogeográficabastanterestrita:sópodemserencontradas na atual Rondônia (e numpedacinho adjacente deMatoGrosso).Outros quatro ramostupi, aos quais pertencem as línguas faladas por povos como osMunduruku e os Juruna, estão bemmais espalhados, podendo ser encontrados em regiões tão diferentes quanto o Alto Xingu e osarredoresdeSantarém—massempredentrodaAmazônia.Jáoúltimoemaisamplamentedistribuídoramo do grupo, o dos idiomas tupi-guarani, parece ter passado pelo espetáculo do crescimento emalgummomento (relativamente) recentedopassado.No séculoXVI, podia ser encontrado emquasetodoolitoralbrasileiro,doMaranhãoaoRioGrandedoSul;naArgentina,noUruguai,noParaguai,naBolívia e no Peru, até as vizinhanças dos Andes; e ainda marcava presença em diversas regiões daAmazôniabrasileira.

Recorde agora um exercício que fizemosmuitas linhas atrás, usando o inglês como exemplo. Emgeral,adistribuiçãodadiversidadedeumgrupodeidiomasnomapacostumaajudarbastantenahorade determinar a origemde uma língua.Apresença de cinco subfamílias tupi só emRondônia—ouseja,diversidadeelevadanumespaçoreduzido—sugerequeessesidiomasestãoporláhámaisséculos

doqueemoutroslugaresdaAméricadoSul.Comisso,teriamtidobastantetempoparasediversificareadquirir características únicas. A variabilidade linguística dos grupos de fala tupi (mas que não sãoTupi-Guarani, vale lembrar) da Amazônia ficamenor conforme a gente se afasta de Rondônia,masainda é significativa, o que sugere uma primeira onda de expansão, relativamente antiga e lenta, naregiãoNortedoterritóriobrasileiro.Finalmente,osidiomasdasubfamíliaTupi-Guaranicostumamserbastante parecidos entre si (calcula-se que compartilhem cerca de 70% dos cognatos do vocabuláriobásico,aqueledaslistasdeSwadesh)etêm,delonge,adistribuiçãomaisampla.Comoadiferenciaçãolinguísticacostuma terumarelaçãoestreitacomadistância temporal eespacial—ouseja,háquantotempodoisidiomassesepararam,eaquedistânciaestãoumdooutro—,élógicoinferirqueosgruposTupi-Guaraniforamosqueseexpandiramhámenostempoecommaiorvelocidade.ÉmaisoumenosocasodoinglêsfaladonosEstadosUnidos:relativamentehomogêneonumaáreaextensadesteladodoAtlântico, enquanto, do outro lado domar, na Europa, regiõesmuitomenores abrigam uma grandevariedadede línguas aparentadas a ele,masbemdiferentes (alemão,holandês, idiomas escandinavosetc.).

A questão encrespa um pouco quando se tenta estimar com mais precisão quando e como essaexpansãorelativamentevelozdosTupi-Guaraniaconteceu.SeolaroriginaldessesgruposeramesmoosudoestedaAmazônia(conformeindicamosdadosdeRondônia),elesocupavamumaposiçãobastanteboa para realizar o que alguns estudiosos apelidaram de “movimento de pinça Tupi-Guarani”. Aanalogia aqui, talvez não por acaso, é com a estratégia militar. “Movimento de pinça” é o que umgeneral ousado faz quando divide suas forças em duas partes, cada uma das quais responsável poratacarumdos flancosdo inimigo (e assimesmagá-lo, comoalguémqueagarraumamosca comumapinça).A partir de Rondônia, seria possível para os gruposTupi-Guarani descer o rioMadeira até ocursoprincipaldoAmazonas;então,bastariairatéafozdomaiorriodomundoparaatingiroAtlânticoedesceracostarumoaoNordesteeaoSudeste—esseseriaumdos“braços”dapinça.Poroutrolado,outro grande rio do sudoeste amazônico, o Guaporé, entre Rondônia e a Bolívia, está relativamentepróximodasáreasbanhadaspelorioParaguai,oqual,porsuavez,épartedabaciadoParaná,queligao Pantanal ao interior do Sul e do Sudeste e também conduz à Argentina, ao Uruguai e, claro, aoParaguai, formando o outro braço da pinça. Portanto, teríamos dois grandes movimentos: umdesencadeadopelos gruposquedariamorigemaosTupipropriamenteditos—primeiro amazônico edepois litorâneo— e outro dos povos que acabariam sendo classificados como Guarani nos temposatuais,pelo interiordocontinenteedepoisrumoaoConeSul.ApóscontornarboapartedomapadaAmérica do Sul por caminhos opostos, as duas vertentes dos povos Tupi-Guarani acabariam seencontrando mais ou menos onde hoje é o litoral sul do Estado de São Paulo, nos arredores deCananeia.Naépocadainvasãoportuguesa,eraporaliqueficavaadivisaentreosTupiniquim(comoonomesugere,umaetniaTupi)eoschamadosCarijó,umdosbraçosdosGuarani.Osdoisgrupos,aliás,não iamnemumpouco coma caraumdooutro (euquase escrevi “não sebicavam”,mas iaparecertrocadilhogratuitocomadenominação“Carijó”,certo?).

Essas jornadas épicas podem ter começadopara valerno começodaEraCristã, unsdoismil anosatrás, embora algumasdescobertas arqueológicas recentes indiquemdatas aindamais recuadas.Numtrabalho publicado em 2008 no periódicoAnais da Academia Brasileira de Ciências, uma equipe doMuseuNacionaldaUFRJ,capitaneadaporRitaScheel-Ybert,relatouadataçãodeamostrasdecarvão

defogueiraassociadasaumaurnafuneráriatípicadosTupi-Guarani(oumelhor,datradiçãocerâmicaTupiguarani; sim, eu seique éumaconfusãodosdiabos,masos especialistas costumamusar a grafiacom hífen para falar dos povos e a sem hífen para se referir aos potes) encontrada na região deAraruama, no Rio de Janeiro. As idades? Entre 2.900 e 2.600 anos antes do presente segundo ocarbono-14, oumais de trêsmil anos “de calendário” atrás quando as datações são calibradas pelosmétodosconsagrados.NãoprecisodizerqueoRiodeJaneiroficamuito,muitolongedaAmazônia,equeasdataçõesparecemindicarumaexpansão-relâmpago,emuitoantiga,dosgruposTupipelacostabrasileira.

Talcenáriopodeteracontecido,defato,mastalvezagrandepedranosapatodessaideiavenhadosrelatos coloniais (ainda que não seja possível confiar totalmente neles, já que foram escritos porforasteiros que estavam só começando a entender as dinâmicas étnicas dos “gentios” doBrasil, comodiziamessesautores).Aconteceque,emboraosTupidacostaaparentementeestivessemdivididosemvários agrupamentos com identidadeprópria e,muitas vezes, inimizadesprofundas entre si (comoosTupiniquim “paulistas” versus os Tupinambá/Tamoio “fluminenses”, digamos), a percepção dosportugueses foi a de que existia uma considerável homogeneidade linguística e cultural na orla doAtlântico.Osjesuítas,semprepreocupadosemaprenderoidioma“gentílico”parafacilitarseutrabalhoevangelizador,nãoprecisaramdominarváriaslínguasdiferentesparafalarcomamaioriadospovosdolitoraleadjacências:o tupi faladoemPernambucoerabasicamenteomesmodePiratininga (a futuracapitalpaulista).Nãoparecefazermuitosentidoqueessaunidadelinguísticasemantivesseaolongodemais de três mil anos entre um povo que não tinha organização estatal e nem escrita — doismecanismos quemuitas vezes “seguram” o passo inexorável damutação dos idiomas humanos. Ok,certamente podemos imaginar que existiam contatos de longa distância pela costa (sabemos deexpedições guerreiras Tupinambá que percorreram centenas de quilômetros no século XVI, porexemplo),masmesmoassimémuitotempoderelativa“estase”linguística.Comovocêdeveimaginar,aindaprecisamosdemaispeçasdoquebra-cabeças.

DeflorestaaflorestaTudoindicaqueosTupi-Guaranitrouxeramconsigoum“pacotetecnológico”tipicamenteamazônico,baseado principalmente no plantio da mandioca e na exploração cuidadosa dos demais recursos daflorestatropical,quandopartiramparaoutrasregiõesdaAméricadoSul.Talveznãosejacoincidênciaosucessoquetiveramemreplicaresseestilodevidanolitoraleao longodosgrandesriosdoSudesteedo Sul, regiões originalmente cobertas por outra floresta tropical, a mata atlântica, que guardaconsideráveissemelhançasecológicascomaAmazônia.Nesseponto,oêxitodeles lembraumpoucoodos Aruak, mas as diferenças entre os dois grandes aglomerados étnicos são muito instrutivas, acomeçarpelofatodequetemospoucossinaisdehierarquiasocialeliderançahereditáriaentreosTupi.Omaisprováveléquecadaaldeiativessemúltiplosmorubixabas(esseéotermocorretoparachefeoucacique,aomenosentreastribosdolitoral),cadaumcomautoridadeinformalsobresuaprópriacasaefamíliaestendida(esposas,filhos,genrosenoras,netos).Chefespossuidoresdequalidadesexcepcionaisdebravuraeeloquência(jáqueacapacidadedefalarbemempúblicoeramuitovalorizadaentreeles)podiam estender alguma forma de autoridade ou influência para toda uma aldeia ou, bem maisraramente, sobre uma coalizão de aldeias. Porém, o estilo de liderança era bastante informal: taischefõeseramouvidose respeitados,mas raramenteobedecidosà riscaemtudo.Alémdisso,os filhosnãoherdavamautomaticamenteostatusdomorubixaba-pai.

Apesar da falta de centralização política, os Tupi-Guarani e alguns outros ramos da família tupiabocanharam uma fatia significativa do território sul-americano, o que nos leva de volta à ideologiaguerreiradessespovos.Defato,háumaassociaçãorelativamenteclaraentreasetniasexpansionistaseoque os antropólogos costumam chamar de “cosmologia predatória” dos Tupi. Grupos como osTupinambá, os Chiriguano, os Juruna e os Munduruku eram conhecidos tanto pela ferocidade embatalha quanto pelo hábito de capturar escravos na guerra (embora essa escravidão frequentementefosse algo temporário, e pelo pior dosmotivos, como veremos). Outra característica comum a váriasdessas triboséousodascabeçasdecepadasdos inimigoscomo troféus (práticaadotadapelos Juruna,Mawé eMunduruku) e a preferência por tacapes especiais como arma no combate corpo a corpo etambémparaexecutarprisioneiros.EntreosTupido litoral, essamaçaouclava icônicaeraconhecidacomoybyrapema ou ibirapema (literalmente, “pau anguloso”; o y do tupi é pronunciado como se apessoatentasse falaronossou,mascolocasseos lábiosnaposiçãodequemestáemitindoavogal i—não tente fazer isso em casa, gentil leitor). Curiosamente, muitos cronistas coloniais classificam aibirapema como um tipo de espada de madeira, e escritores franceses chegam a comparar odesempenho dos Tupinambá que usavam a arma à habilidade dos espadachins de seu país, dizendoque os índios eram aindamais habilidosos que os duelistas da França. Os poucos exemplares dessaclavaaterrorizantequechegaramaténós,feitoscommadeiraextremamentedura,possuemumapontacom formatomaisoumenos roliçoeumahaste compridae relativamente fina,medindoum totalde1,20metro.

Afunçãomaisnobreda“espadaTupinambá”nãoerapropriamenteadeabaterinimigosduranteocombate,emboraissotambémacontecessecomfrequência.Eracomaibirapemaqueastriboslitorâneas

sacrificavam“oscontrários” (comodiziamos lusosdoséculoXVI)que tinhamcapturadoembatalha,com um golpe certeiro na região da nuca. O inimigo morto dessa maneira era imediatamenteesquartejado e transformado numa espécie de churrasco, que devia ser consumido por todos osmembrosdogrupo—inclusiveosbebês,cujasmãesfaziamquestãodebesuntarosseiosnosanguedoinimigoantesdedardemamar.

Édifícil evitar a conclusãodeque a antropofagia eraumdos elementos centraisda sociedadedosTupidacosta(etambémdegruposcomoosGuaranieosJuruna).Capturaredevorarosmembrosdetribosrivaiseramatividadesquemarcavamoshomenscorajososealtivos.Ajustificativaparaapráticanãoeraanecessidadedeexterminarosadversáriosoudeconquistarseusterritórios,masaobrigaçãodemantervivoumcicloaparentementeintermináveldevingançaqueenobreciaosqueparticipavamdele.“Não sabes que tu e os teusmatarammuitos parentes nossos emuitos amigos?Vamos tirar a nossadesforra e vingar essasmortes. Nós temataremos, assaremos e comeremos”, dizem os Tupinambá aumavítimaprestesaserdevoradanorelatodefreiClaudeD’Abbeville, franciscanoqueparticipoudatentativa de colonização francesa no Maranhão no começo do século XVII. A resposta do futuroassado? “Pouco me importa. Tu me matarás, porém eu já matei muitos companheiros teus. Se mecomerdes, fareis apenas o que já fiz eumesmo.Quantas vezesme enchi com a carne da tua nação!Ademais,tenhoirmãoeprimosquemevingarão.”

Alémdajustificativasocial—achancedeganharrenomeeglória—,haviaaindaumajustificativaquepodemoschamardereligiosa.SóquemmatasseecomessemuitosinimigosteriaacessoàTerraSemMal,o “paraíso”Tupinambáondehaveria eternaabundânciadecomida (emespecial carnedecaça),bebida (o cauim, feito a partir demandioca oumilho fermentados) e festejos.Os grandes guerreirosganhavam a chance de se unir aos ancestrais igualmente valorosos na Terra SemMal depois de suamorte, mas alguns pajés-profetas, os caraíbas, pregavam que era possível encontrar esse jardim dedelíciasaquimesmonaTerra.Predicandodealdeiaemaldeia,arrebanhavamseguidoresepodemterdesencadeadomigraçõesemmassanaépocapré-colonial,emboraseupapelsópossaserdocumentadocomclarezaapartirdachegadadoseuropeus.Oscaraíbastambémeramconhecidospelaeloquênciaepor reforçar, em suas pregações, a importância da vingança antropofágica como “passaporte” para aTerraSemMal.

É claro que, antes de poder comer o inimigo, é preciso derrotá-lo e capturá-lo. Para atingir esseobjetivo,osTupinambáeoutrosgruposlitorâneosdesenvolveramumasériedetécnicasbélicassimpleseeficazes.Paraincursõesdelongadistância,ocostumeeramontar“esquadras”comdezenasdecanoasescavadas em troncos, cada uma delas carregando entre 20 e 30 guerreiros, que deslizavamrapidamentepelosriosoupelacostaatéchegaraoterritóriodoinimigo.Batalhasnavaisenvolvendoatrocamaciçadeflechasentredoisaglomeradosdebarcospodiamdecidiraparada,ouentãoaprimeiraetapadarefregaaconteciaemterrafirme,comosarcossendousadosparaacertarinimigosadistânciasmaislongaseasibirapemasservindocomooprincipalarmamentonosdueloscorpoacorpo.Chegaraessa faseda luta já eraumaproeza, aliás, considerandoa letalidadedas flechas—medindo cercade1,60metro,compontasquepodiamserdebambu,dedentedetubarãooumesmodeferrõesdearraia,“dando emqualquer pau o abrempelomeio, e acontece passaremumhomemde parte a parte, e irpregarnochão”,escreveumcronista.Quandooobjetivoeraatacaraldeiasfortificadascomtroncosdemadeira, as pontas das flechas eram embebidas em algodão e incendiadas, o que produzia um

bombardeiorudimentardecoquetéisMolotovvoadores,queimandocabanaseforçandoosdefensoressobreviventesadeixarsuascasas.

Os guerreiros que tentavam evitar os golpes das maças dos inimigos ou se proteger das flechasportavamescudosredondosdecourodeanta.Sehaviaachancedeumacampanhamilitarprolongada,os Tupi preparavam mantimentos que podiam durar por muitos meses, como farinha de mandiocatostadae farinhadepeixe (basicamentepeixes tostadosemoídos),ouentãoaproveitavamaépocadapiracemaparaatacar,oquelhesgarantiaacessoaumfartosuprimentodepescadoconformeospeixesse aglomeravam para tentar se reproduzir. A fim de atacar aldeias fortificadas levando o mínimopossíveldeflechadas,montavamaindaumaespéciedecontramuromóvel,umaarmaçãofeitadegalhose folhas que permitia que os guerreiros detrás dela avançassem lentamente rumo ao povoado dosinimigos. E, ao cercar a comunidade que desejavam capturar, podiam fazer uso de uma formarudimentardeguerraquímica:queimavamgrandesquantidadesdepimentademaneiratalqueoventolevariaosgasesdacombustãorumoaosdefensores,fazendocomqueosolhosdelesardessem.

Quando o combate finalmente acontecia, o principal objetivo era capturar inimigos para o ritualantropofágico, embora os gravemente feridos fossem sacrificados e assados no próprio campo debatalha.O sujeito capturado ia para a aldeia do guerreiro que o derrotara e podia ficar em cativeirodurantemeses,recebendocomida,umaredesóparaeleeatéumacompanheira(criançasquenasciamdessa união em geral também eram devoradas).No diamarcado para o sacrifício, todos consumiamgrande quantidade de cauim, e o prisioneiro, amarrado ritualmente com cordas, tinha a chance detentar se vingar antecipadamente atirando pedras em seus captores. Após o ápice do ritual com apancadada ibirapema,omatador (emgeral, o sujeitoque capturarao inimigo) tinhade se absterdacarnedavítima.Emcompensação,ganhavaumnovonome,deformaquealongafieiradeapelidoseraumadasmarcasdoguerreiroTupiquetiveraahonradesacrificardiversosinimigos.

À primeira vista, essa obsessão com as proezas guerreiras e com a vingança parece um excelenteinstrumento de conquista, não é? Talvez,mas há um ponto importante em que as coisas não batemmuito bem. Não havia nada parecido com uma ideologia de solidariedade Tupi-Guarani paracontrabalançaradinâmicadaguerraantropofágica.Ouseja,paraumTupinambá, tanto faziadevorargente de outras culturas ou um Tupiniquim, praticamente indistinguível em língua e estilo de vida.Aliás, as principais rivalidades (ou os principais ódios mortais, para ser exato) ao longo da costa noséculo XVI eram justamente as que opunham um grupo Tupi a outro. Um jeito de escapar desseparadoxo seria imaginar que as lutas internas resultaramda situação posterior à conquista do litoral,quando não havia mais inimigos etnicamente bem distintos a vencer e a busca por proeminênciaguerreira precisou ser redirecionada para combates entre os vencedores. É complicadíssimo chegar aumarespostadefinitiva,porém.

OsirredutíveisDurantemuito tempo,aexpansãodosTupi-Guarani rumoàs regiõesSudesteeSuldoBrasil foivistacomoumaespéciedeondairreprimível.Osgruposexpulsos,exterminadosouassimiladospeloavançodelesnãopassariamdecaçadores-coletorescomorganizaçãosocialextremamentesimplesepopulaçãopequena,incapazesdefazerfrenteaguerreirosdeterminadosquetraziamconsigo,alémdaideologiadaguerraantropofágica,trunfosagrícolasimportantes,comooplantiodamandiocaedomilho.Asituaçãoaconteceria, portanto, mais oumenos como um repeteco dos cenários que já descrevi: produção dealimentos mais eficiente por parte dos invasores = mais gente = vantagem militar e conquista doterritório.

Ocorre,noentanto,queaspesquisasmaisrecentesestãocomplicandoessanarrativaesquemáticaetraçandoumnovoefascinanteretratodosgruposde línguamacro-jê—provavelmenteancestraisdosatuaisKaingangeXokleng—quebateramdefrentecomosTupi-GuaraninointeriordaregiãoSul.Osresponsáveis por essa nova visão integram uma parceria entre arqueólogos brasileiros (de instituiçõescomo a Universidade Federal do Paraná e a USP) e britânicos (da Universidade de Exeter e daUniversidadedeReading).Alémdereavaliartrabalhosmaisantigossobreotemaedeiracamponasáreas relativamente mais frias e elevadas do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, a equipe temprestado especial atenção àmaneira como os grupos Jê do Sul do Brasil— e das áreas vizinhas emMisiones,naArgentina—organizavam-separaocuparoterritórionoperíodopré-cabralino.

A primeira mensagem importante desse esforço é simples: esqueça a conversinha mole sobrecaçadores-coletoresaltamentemóveis.Hábons indíciosdequeaagricultura,emespecialoplantiodomilho,eraimportanteparaosmoradoresdosplanaltossulinosdesdepelomenosoiníciodaEraCristã.Descobertas feitas em Urubici, cidade serrana catarinense mais conhecida por ser um dos poucosmunicípios brasileiros onde costuma nevar pelo menos um pouquinho todo inverno, revelaram apresença de um conjunto bastante diversificado de lavouras no período imediatamente anterior àchegadadosportugueses(asdatações ficaramentreosanos1300e1400d.C.,maisoumenos).Alémdomilho,oschamadosproto-JêdeUrubiciplantavammandioca,feijão,abóboraetalvezinhame.

Oconjunto,quemaisparece listadecomprasde feira livre, éparticularmente interessanteporquefoiencontradonumaregiãomontanhosa.Atérelativamentepoucotempoatrás,muitagenteacreditavaque os ancestrais dos Kaingang e dos Xokleng utilizavam essas áreas elevadas e mais frias duranteapenas parte do ano, coletando ali os célebres pinhões das araucárias (ainda hoje um elementoimportante da culinária da região) e caçando. No resto do ano, teriam partido para o litoral, ondepescavameplantavamempequenaescala.OsdadosobtidosemUrubicieemoutroslugaressugerem,porém,queeraperfeitamentepossívelqueosproto-Jêocupassemoplanaltosulinoduranteoanotodo.Mesmoquandoseconsideraapenasacoletadopinhão,háindíciosdequenãoestamosfalandodeumsimples uso passivo dos recursos das matas de araucária, mas sim de um manejo ativo da floresta,similaraoqueencontramosaoanalisarostrechos“antropogênicos”daAmazônia.Pode-secogitaressahipótese porque, segundo os dados mais atualizados a respeito do clima nos últimos milênios, ascondições climáticas da região Sul deveriam ter levado a uma contração da área favorável ao

crescimentodasaraucárias—e,noentanto,antesdachegadadosportugueses,oterritórioocupadoporesses pinheirais na verdade cresceu. A ideia, portanto, é a de que a ocupação contínua do planaltofavoreceuaexpansãodasaraucárias,pormeiodadispersãoconstante(talveznãointencional,talvezdecasopensado)desuassementesedeoutrosprocessos.

Uma possível adaptação arquitetônica ao ambiente frio das serras do interior são as casassubterrâneasencontradaspelosarqueólogos.Basicamente,o“assoalho”deterrabatidaficavaabaixodonível natural do solo, e só o telhadode fibra vegetal da habitação podia ser visto de fora.As aldeiasmaiores podiam ter centenas dessas casas, cuidadosamente dispostas em torno de um sistema decaminhosemonumentoserigidosemhonradosancestrais,eumapesquisarecentemostrou,inclusive,que tais moradias subterrâneas podiam ser ocupadas continuamente por séculos — outro golpeconsiderável para a ideia de que estamos falando de grupos altamente móveis, que preferiam nãoocuparterritóriospermanentemente.

Note que eu falei em monumentos no último parágrafo — e esse talvez seja o aspecto maisimportantedanovaperspectivasobreosproto-JêdoSul.Osrelatosdeetnólogoseantropólogosdeixamclaro que grupos como os Kaingang ainda construíam monumentos funerários para seus chefes noséculoXIX,criandomoundscirculares(poisé,montículosou“tesos”,vagamenteparecidoscomosdeMarajó)ondedepositavamossoscremados.ComomecontouoarqueólogobrasileiroJonasGregoriodeSouza,queatualmentefazseudoutoradonaUniversidadedeExeter,aconstruçãodessasestruturaseraum acontecimento cerimonial que congregava equipes de trabalhadores com centenas de pessoas naépocapós-contato—etalvezmilharesdeindígenasnopassadomaisremoto.

“Milhares de sujeitos só para erguer morrinhos artificiais?”, perguntará o leitor mais cético. Sim,porque osmonumentos funeráriosmais antigos da região não incluíam apenas osmounds, mas umprocesso de demarcação cuidadosa do espaço sagrado (em contraposição ao espaço “profano”, nãodedicadoaatividadesreligiosas)dossepultamentossecundários.Emgeral,osproto-Jêescolhiamotopodecolinasparaestabeleceresses santuários.Aestruturamaisbásicaeraumanelde terrabatida, comdezenasdemetrosdediâmetroeaté1metrodealtura,que funcionavacomoumaespéciedecírculoritual.Doladodedentrodoanel,aúnicaconstruçãonormalmenteeraomoundcomosepultamento,embora os pesquisadores também tenham encontrado fornos de pedra no interior das estruturas,provavelmente usados para preparar os ingredientes dos festins funerários que acompanhavam aocasiãodosepultamento.Alémdessemodelomaissimples,haviaestruturasretangularesouemformadefechadura,alémdemoundspareados,cujapresençaprovavelmenterefleteadivisãotradicionaldassociedadesJêemduasmetadesditasexogâmicas(emgrego,algocomo“casarcomosde fora”;grossomodo,aspessoaspertencentesaumdesses“clãs”sópodiamsecasarcomasdooutrogrupo).Ouseja,pode ser que a elite de cada metade exogâmica tivesse seu próprio mound. Entre os Kaingangmodernos,divididosnaduplade“clãs”KaméeKainru,osmembrosdoprimeirogrupotendiamaserenterrados em lugares mais altos, porque eram considerados espiritualmente superiores — umadistinçãohierárquica que talvez esteja presente nodetalhe de que, quandohá pares demounds, umdelescostumasernitidamentemaiorqueooutro.

A tradiçãodemonumentos parece ter alcançado seu ápice de complexidadeno sítio arqueológicoconhecidocomoPM01,encontradoemEldorado,naArgentina(sempiadassobreamaniadegrandezadosargentinosremontaràpré-história,porfavor).Porlá,osespecialistasencontraramummoundde20

metros de diâmetro e 3 metros de altura, associado a ummontículo artificial menor (10metros delargura).Osdois, por sua vez, estavamcercadosporumgrande anel de terrabatida (comquase 200metrosdediâmetro).Parachegaràestrutura,osvisitantespassavamporumaespéciedeavenidaritual,comcercade400metrosdecomprimento,ladeadaporbarrancosconstruídosartificialmente.Comosenão bastasse, o anel principal estava conectado a três outros anéismenores (comdiâmetros entre 35metros e 130metros). Os achados do lado brasileiro da fronteira têm tamanho e complexidade umpoucomaismodestos,masnogeraladisposiçãodasestruturasébastanteparecidacomaqueacabeidedescrever.

Além dos fornos de pedra, osmonumentos funerários também abrigam frequentemente pratos etaçasdecerâmica.Omaisprováveléquesejamoferendasdecomidaebebidaparaosdefuntos—nocaso da bebida, estaríamos falando demilho fermentado para produzir álcool, um costume presenteentre muitos povos das Américas pré-coloniais. Há outros indícios de oferendas funerárias, como apresençadeestatuetasdecerâmicaeadornoslabiaisnostúmulos.

Quemcostumavaserenterradonosconjuntosdeanéisemounds?Muitoprovavelmentegruposdeelite, a julgar tanto pelo trabalho despendido na construção das estruturas quanto pelos relatoshistóricos sobre os Kaingang. Souza lembra que, a partir das informações pós-coloniais, é possívelestabelecer que essa etnia estava organizada em chefias com dois níveis hierárquicos — líderes dealdeias que, por sua vez, estavam subordinados a chefes regionais mais poderosos. O territóriogovernadoporessessujeitos,aliás,erasubstancial:estima-sequetodaaáreadeplanaltodoRioGrandedoSulfossedominadaporquatrooucincochefias,oquenãoépoucacoisa,considerandootamanhodoestado.

Essefato,porsisó,émeioesquisito,porqueosgruposJêsãoconhecidosporsuarelativaresistênciaàformaçãodeeliteshereditáriaseorganizaçãopolíticaemníveissuperioresaodasaldeiasindividuais.Ospesquisadores brasileiros e britânicos, num estudo recente publicado na revista científica Journal ofAnthropologicalArchaeology,propõemquetantoosmonumentosmaisfaraônicosdosproto-Jêquantoacentralizaçãopolíticapresente entre seusdescendentespode ser explicada justamentepela ameaçadainvasãoTupi-Guarani:amensagempassadapelosmonumentosseriaalgocomooproverbial“daquinãosaio,daquininguémmetira”.

Os indícios que apoiam essa hipótese estão ligados à distribuição espacial e temporal de sítiosarqueológicosproto-Jê eTupi-Guaraninomapados estados sulinos (e dapontinha sul de SãoPaulotambém,alémdaregiãodeMisiones,dooutroladodafronteira).Emborasejanecessáriorepetiraquiaadvertênciadequepotesnãosãopessoas,edeque,portanto,nãoexisteumacorrespondênciasimplesentreo tipode vasode flores e a etniado sujeito, a situaçãonão é tão confusana regiãoSulporquesabemosqueosproto-Jêestavampor láhámuitomais tempo,enquantoosTupi-Guarani claramentesão intrusos que aparecerammais tarde, além de haver uma distinção bastante óbvia entre as duastradiçõescerâmicas.Ditoisso,épossívelafirmarqueosTupi-Guarani jáandavammetendoobedelhona região por volta do início daEraCristã, basicamente avançandopelas florestas fechadas das áreasmais baixas (mata atlânticamais típica, segundo anossa classificaçãomoderna) ao longodos grandesrios da bacia doParaná, e tambémpelo litoral.Nomapa, a distribuiçãodos sítios arqueológicos comcultura material desse grupo parece musgo crescendo nos “galhos” formados pelos grandes rios (osquais,óbvio,forneciamaindaumcaminhofluvialprontoparaapassagemdosintrusos).Considerando

aimportânciadosatuaisgruposGuaraninoParaguaidehoje,fazsentidoimaginarqueogrossodessemovimentoaconteceudenorteparasuledeoesteparaleste.Emalgunspontosdoscaminhosfluviais,encontramos indícios de interação entre os dois grandes componentes étnicos: sítios nos quais acerâmica típicadosTupi-Guarani é encontrada ladoa lado comadosproto-Jê,oquepode significarassentamentosmultiétnicos(algoque,senãoeraimpossível,provavelmenteeramaisraro)ourelaçõescomerciais.

Acontece um negócio curioso, porém, conforme amarcha Tupi-Guarani, em seu trajeto rumo aoleste,chegaàscabeceirasdorioUruguaieatingeaconfluênciadeseusdoisformadores,osriosCanoasePelotas.EstamosfalandodaáreahojecorrespondenteàfronteiraentreSantaCatarinaeRioGrandedoSul,portanto.Éalestedessaconfluênciaqueseconcentramosmonumentosproto-Jê.Apartirdali,não hámais sítios Tupi-Guarani no planalto, nem resquícios arqueológicos de contato entre os doisgrupos rivais. A mesma falta de sinais de contato vale também para os poucos monumentosencontradosforadessaregião.Outropontoimportanteestáligadoàsdatas:tantoosmoundsquantoossítios da cultura Tupi-Guarani nas cabeceiras do rio Uruguai aparecem por volta do ano 1000 d.C.,emboraaconstruçãodecomplexosfuneráriosemterritórioproto-Jêcontinueapósessemarco.

A coincidência espacial e temporal entre os dois fenômenos é, para os arqueólogos, um elementomuito sugestivo. Estabelecer uma relação causal entre os dois fenômenos não é tarefa simples, claro:podeserqueosTupi-Guaranisimplesmentenãotenhamseinteressadoemcontinuarsuatrajetória,pornão acharem as terras a leste da confluência Canoas-Pelotas particularmente desejáveis para suaslavouras, ou por estarem envolvidos em lutas internas (extremamente comuns entre as tribos dessegrupo,comojávimos).Mesmoassim,fazbastantesentidoqueaestruturapolíticaecerimonialdeumgrupo étnico estabelecido há milênios numa região, como é o caso dos proto-Jê, seja afetada pelapresença de invasores. Se esse grupo autóctonenão temuma tradiçãode liderança centralizada,masestá sob risco de perder sua autonomia (ou mesmo de ser literalmente devorado, como era práticacorrente entre os grupos de fala tupi), indivíduos especialmente habilidosos e sagazes podem tirarpartidodasituaçãoparaoferecerumasaída—amãoforteeseguradequeaspessoastantonecessitam— em troca da superioridade social. Coincidência ou não, o principal papel dos chefes Kaingang naépocapós-contatoeraocomandodosguerreiros,recompensado,éclaro,comashonras fúnebres forade série que tais chefes e seus familiares recebiam. Se os mounds e anéis sagrados do planaltocatarinense-gaúcho de fato foram construídos para celebrar a superioridade de linhagens “nobres”,podemosdizerqueeleseramaexpressãomaterialdadeterminaçãodoschefesproto-Jêde1)resistiraosinvasorese2)consolidarseupoderemumterritóriomaisamploqueodeumaaldeiaisolada.

Esperoqueasúltimaspáginas tenhamsidosuficientesparaconvencero leitordequeoBrasilpré-históriconãotinhanadadeestáticoouatemporal.Começamosusandoolatimdosvelhosromanosparaexemplificarcomolínguaseculturassediversificamaolongodosmilênios.Bem,ésóporcontadeumdetalhe — a inexistência da tecnologia da escrita na América do Sul pré-colombiana — que nãoconseguimosdarnomesaosbois e falardosequivalentesTupiou JêdeCésaroudeVercingetórix (o“Asterixdavidareal”,quequaseimpediuaconquistaromanadaGália).Podetercerteza,noentanto,dequeheróisparecidosexistiramporaqui,aindaquehojesósejapossívelreconstruirasagadepovos,enãodeindivíduos.

Quando a história escrita finalmente chegou a este lado doAtlântico, a transição não poderia tersidomais traumática.Ascausasprofundasdo impactoapocalípticodocontatocomoseuropeussãootemadonossoderradeirocapítulo.

Acho impossívelqueumhabitantedasprimeirasdécadasdo séculoXXI tenha ficado imuneà atualondadenarrativasdeficção(nas livrarias,nocinema,naTV,nainternet)queandamnossoterrandocom imagens “pós-fim do mundo”. São quadrinhos que viram série de televisão, best-sellers paraadolescentes que viram filme e incontáveis outras variações do mesmo tema: Jogos Vorazes, TheWalkingDead,DivergenteeatéaressurreiçãodeMadMax.Sou

capaz de apostar que você consegue ao menos dobrar o número de itens dessa lista sem muitoesforço. De repente, a chamada distopia pós-apocalíptica — ou seja, a ideia de que, para todos osefeitos, omundo comoo conhecíamos acabou, e os sobreviventesda catástrofe vivemnumambienteassustadorebrutalmentetransformado—pareceterganhadoostatusdegêneronarrativodominantedenossotempo.Oquedireiagorapodesoarcomomaluquice,masessetipodecenáriotalvezsejaumexcelente jeito de entender, em termos imaginativos, o significado do “fim da pré-história” (coloquemuitasaspasaí,éclaro)paraospovosnativosdasAméricase,emparticular,doBrasil.

Não se trata apenas de frase de efeito. Como este é o momento de amarrar as pontas da nossahistória,peçoquevocêrecordeumpontoqueabordamosnasdistantesprimeiraspáginasdaintroduçãodestelivro:aideia,aindamuitoinfluente,dequeassociedadesnativasdofuturoBrasileramsimples,pouco populosas, móveis, isoladas e presas num “eterno presente” no qual nunca havia mudançassignificativas.Esseretratopoderiaatéfazercertosentidoseaintençãofossedescreveralgunsdosgruposque travaramcontatocomexploradoresocidentaisnaAmazôniaentreo fimdo séculoXIXeosanos1970doséculoXX.Aindaassim,essaideiaétremendamenteenganosa,porque,nofundo,refere-seasobreviventes de um apocalipse em miniatura. Nesse filme de época, infelizmente, os zumbisdevoradores de gente são os brasileiros de origem europeia, enquanto o papel das tribos amazônicasnãoémuitodiferentedodosmocinhosdeTheWalkingDead;valedizer,odegentetentandomanteralgum simulacro do funcionamento original de sua sociedade quando as estruturas políticas forjadasporseusancestraiseamaiorpartedapopulaçãoàqualpertenciamjátinhamviradofumaça.

OK, talvez euesteja exagerandoaocolocara coisa em termosde filmede terror,masoqueestoutentando enfatizar aqui é uma conclusão lógica do que expus nos capítulos anteriores: não dá paraassumirqueassociedadesameríndiaspoucopopulosasesimplesdopresenterepresentamfielmenteoque havia por aqui antes do fatídico 22 de abril de 1500.Os dados arqueológicos sugeremque umatransformação sociocultural relativamente rápida e traumática, causada direta ou indiretamente pelocontato com os europeus, foi a responsável por dar a muitos grupos indígenas — provavelmente amaioria desses povos, ainda que não todos — a feição que reconhecemos como típica deles hoje.Lembre-sedodiâmetrodasaldeias-metrópolesdoXingu,dosrelatosentusiasmadosdeviajantescomofreiGaspardeCarvajal,doesplendordaartemarajoaraetapajônica,dopoderiomilitarTupinambá.Émuitoimprovávelqueessasrealizaçõestivessemsidopossíveisseportrásdelashouvesseapenasgrupostribaisdealgumascentenasdepessoascadaum.Nemtodasessassociedadesentraramemcolapsoporconta da invasão ibérica, obviamente— as chefias deMarajó, por exemplo, parecem ter sofrido umdeclínio sério alguns séculos antes, como vimos —, mas a maioria delas provavelmente teve seusalicerceschacoalhadosoudestruídosporcompletopelocontatoentrehemisférios.

Faltaexplicar,éclaro,porqueoencontrocominvasoresdoVelhoMundofoitãocataclísmico.Eisaíaprincipalmissãodestecapítulo.ContarosdetalhesdoqueaconteceucomcadaumadasetniasnativasdoBrasilapósocontatocomoseuropeus,mesmoqueagenteseconcentrasseapenasnosséculosXVIeXVII,exigiriaoutrolivro,ouatéumaenciclopédiainteira.Oobjetivoaqui,umtantinhomaismodesto,masaindaassimambicioso,étentarenxergaroquadromaisamploebuscarascausasmaisprofundasda“distopiapós-contato”—causasque,comoveremos,têmboapartedesuasraízesnapré-históriadoshabitantesdeambososladosdoAtlântico.

Vai ser necessário manter um equilíbrio delicado entre a realidade aterradora do cenárioapocalíptico, deum lado, e o fatode queos gruposnativosdoBrasil pré-históriconão foramapenasespectadorespassivos(mildesculpaspeloclichê)dodesastrequeosestavaengolindo,deoutro.Jáquefalei em clichês: estamos acostumados a imaginar cenas do período colonial, oumesmodos contatosmais recentes entre europeus e ameríndios, nas quais é muito fácil conquistar a amizade e até asubserviência dos indígenas com bugigangas ditas “sem valor” — colares, espelhinhos, machados,tesouras,camisasdoCoringão.Éessencialteremmentequeessasupostaingenuidadenativaésóumaparte muito pequena da história. Desde os primeiros momentos da colonização, não faltaramestratégias,porpartedosindígenas,paraqueapresençadosportugueseseespanhóisfosseutilizadaemfavordosobjetivosdasprópriassociedadesnativas.Serelaçõesinterétnicasquepareciam(dopontodevista ameríndio, aomenos) ter nascido como alianças entre iguais rapidamente se transformaramemconexõesdedominaçãoprofundamentedesigual,issotempoucaounenhumaligaçãocomumasupostafaltadehabilidadepolíticaevisãoestratégicado lado indígena—emespecialporqueasengrenagenshistóricas que o contato entre hemisférios colocou em movimento eram muito difíceis de brecar,principalmentenocontextode500anosatrás.Alémdisso,éprecisolevaremconsideração,aindaquebrevemente, as diferentes estratégias empregadas pelos habitantes originais doBrasil—um conjuntoprofundamente heterogêneo de sociedades humanas, como tentei ressaltar nos capítulos anteriores.AssimcomoinglesesdoséculoXVIIIreagiramàRevoluçãoIndustrialdeformastotalmentediferentesdasqueprevaleceramentreosjaponesesdofimdoséculoXIX,cadagrupoindígenaenfrentouoeventoapocalípticodocontatoàsuaprópriamaneira,àsvezesatétirandopartidocomalgumsucessodasnovascondiçõesimpostaspelapresençaeuropeia(emboraessapossibilidadetenhasidoclaramenteaexceção,enãoaregra).

Não temos nenhuma boa razão para acreditar que alguma superioridade biológica inata— umasupostainteligência“naturalmente”maisapuradadoseuropeus,porexemplo—expliqueassucessivasderrotas ameríndias e o efeito devastador da conquista sobre muitas sociedades nativas. Isso nãosignifica,porém,queabiologianãotenhanadaavercomoqueaconteceuporaquiapartirde1500;significa apenas que a interação entre aspectos biológicos e históricos é muito mais complexa einteressante do que imaginavam os teóricos racistas do século retrasado. Um dos elementos-chave,como talvez você já tenha ouvido falar, são as doenças infecciosas trazidas pelos colonizadores, queconseguiramexterminar indígenascomumaeficácia superioraqualquercanhãoouarcabuzeuropeu.Acredita-se que as principais sementes da desigualdade entre as Américas e o VelhoMundo foramplantadasnofimdoPleistocenoecomecinhodoHoloceno.Precisamosfalarsobreanimaisdomésticos.

OxadrezdasextinçõesÉ óbvio que existem inúmerasmaneiras de comparar as civilizações que emergiram de cada lado doAtlântico, mas, quando examinamos os aspectos mais básicos das diferentes culturas eurasiáticas eameríndias, um detalhe que chama a atenção é a variedade relativamente grande de bichosdomesticadosdoladodeládeAtlântico—eacorrespondenteescassezdosditosbichosdoladodecá.

Para que você tenha uma dimensão clara dessa assimetria, basta considerar que o número deespéciesde animaisnativosdaAméricadoSulque foramdomesticadaspelosmoradoresoriginaisdocontinentepodesercontabilizadonosdedosdeumaúnicamão—aliás,vocênemprecisausartodososdedos de umamão. A situação na América do Norte e na América Central é de uma escassez tãoacentuada quanto a que existia por aqui. Se excluirmos o cão (Canis lupus familiaris), bicho queprovavelmente jáacompanhavaosheroicosdesbravadoresdaBeríngiaháuns20milanosedescendedo lobo eurasiático (portanto, uma espécie tão invasora quanto a nossa nesta parte do mundo), osúnicos bichos domésticos genuinamente sul-americanos são o pato-bravo (Cairina moschata,caracterizado pelas protuberâncias carnudas ao redor de sua face e bico, que lhe conferem umaaparênciabemdiferentedobico“limpo”dosmarrecos),oporquinho-da-índia(Caviaporcellus,quedeporquinho e indianonão temnada, sendo um roedor tipicamente andino) e umpar de parentes docamelo,a lhama(Lamaglama)eaalpaca(Vicugnapacos).Doquartetodeespécies,oúnicomembroquepareceterocorridonoBrasilpré-cabralinoéopato-bravo.

É difícil não reparar na relativa pobreza dessa lista, em especial se o assunto são os animaisdomésticos de grandeporte, quando a comparamos comosmuitos bichos eurasiáticos que ainda sãocriados em fazendas e casas de família planeta afora. Eis uma relação concisa deles: vacas (de pelomenos duas espécies diferentes, o gado europeu e o gado zebu da Índia), cabras, ovelhas, porcos,cavalos, galinhas, jumentos, camelos (de novo, temos duas espécies diferentes, com uma ou duascorcovas),búfalos,iaques(obovinodoHimalaia)e,paranãodizerquenãofaleidequeméfofo,cães,gatosecoelhos(desistideusaronomecientíficodessaturmatodaporqueiaparecerpuraenrolação.)Notequealistapoderiasermuitomaior:limitei-meacitarasespéciesdemamíferoseaves,emespecialasdegrandeporte e asmais importantes economicamente,domesticadashámais tempo—agrandemaioria delas durante os primeirosmilênios daRevoluçãoAgrícola, ou seja, aindanapré-história doVelhoMundo.

Não é muito simples explicar tamanha disparidade entre os continentes, mas alguns dadoscomparativosbásicossobrebiodiversidade,geografiaepaleontologia, jáconvenientementecompiladosdesdeadécadade1990pelobiogeógrafoamericanoJaredDiamond,daUniversidadedaCalifórniaemLos Angeles, trazem pistas importantes, ainda que não respostas definitivas. Em primeiro lugar, éverdadeque aEurásia é simplesmentemaiordoque asAméricas (arredondando,uns 55milhõesdequilômetros quadrados versus 45milhões, respectivamente), comumadiversidade igual oumaiordeclimaseecossistemas,oquedeuaoshabitantesdaquelamassacontinentalmaisbiodiversidade“bruta”,ou seja, uma “lista de candidatos” à domesticação consideravelmente maior que a do continenteamericano(e,óbvio,queadaAméricadoSul).

Aquestão vai alémdesses números, porém. Permita-me chamar novamente a sua atenção para opredomínio de mamíferos domésticos de grande porte na Europa e na Ásia (definamos “de grandeporte”como“pesando50quilosoumais”,queéaconvençãonormalmenteutilizadaporquemestudaoassunto). Do lado de cá do oceano, só duas míseras espécies domesticadas, a lhama e a alpaca,encaixam-senessadefinição,oquedeveriasersuficienteparanosdeixarcomapulgaatrásdaorelha.Oproblematalveztenhasidofaltadematéria-primamesmo—eéjustamenteissooqueapaleontologiaindica.

A coisa toda pode ter desandado, do ponto de vista sul-americano, no fim do Pleistoceno. Umcálculorecente,feitoporpaleontólogosargentinos,estimaqueapresençademamíferosmuitograndes(pesandomaisdeumatonelada)nafaunadaAméricadoSulnofinaldaEradoGelochegavaasuperaradaÁfricamoderna(larderinocerontes,elefantes,hipopótamosegirafas,casovocêtenhaesquecido).Seconsiderarmos todososmamíferoscommaisde50quilos,o totaldeespéciessul-americanasdessacategoria chegava a mais de 80. Por qualquer padrão que se use, é muito bicho grande. Acontece,porém,queamaioriadessesanimaissimplesmentesumiudomapacomachegadadoHoloceno,aatualfase da história da Terra. Perdemos espécies nativas de cavalos, lhamas brasileiras (sim, havia umbocadodelasemlocaiscomooatualNordeste),primosdoselefantes—issosemfalarnoscarnívoroseem criaturasmais exóticas, como as preguiças-gigantes e os toxodontes, a resposta sul-americana aosrinocerontes.

Nadamaiordoqueumaanta(Tapirusterrestris,nomáximouns300quilos)ouumaonça(poucomaisde150quilos,chutandoalto)sobrouporaqui,eamaioriadosnossosmamíferosébemmenordoque esses bichos relativamente grandalhões. Com seus bisões, alces e caribus (a rena americana), aAmérica do Norte se sai um pouco melhor, mas não muito, e por lá também sumiu uma enormediversidade de criaturas de grande porte, dos mamutes-lanosos a bisões de enormes chifres, bemdiferentesdosatuais.

QuandoaindaeraumjovemnaturalistaqueestavaapenascomeçandoaesboçartrechosdoclássicoAOrigemdas Espécies, CharlesDarwin fez uma das descriçõesmais eloquentes do contraste entre afauna sul-americana do Pleistoceno e seus remanescentes modernos. “É impossível refletir sobre oestadoalteradodestecontinentesemomaisprofundoassombro”,escreveuDarwinemtextopublicadoem1839.

Anteriormente,deveriaestarrepletodegrandesmonstros,comoaspartesmeridionaisdaÁfrica,masagoraencontramosaquiapenasaanta,oguanaco[parenteselvagemdalhama],otatu,acapivara:merospigmeusquandocomparadosàsraçasqueosantecederam.

Voltando ao tema “eleições da domesticação”, os ameríndios simplesmente não tinham muitoscandidatos bons à sua disposição.Como vimos no começo do livro, ainda não dá para saber se foi aação humana a responsável por criar esse cenário relativamente desolador, ou se a culpa é dasmudanças climáticas radicais do começo doHoloceno.Os dadosmais recentes parecem apontar quehouveumacombinaçãomortaldessesdoisfatores,comahumanidadedandooúltimoempurrãozinhorumo ao abismo em populações já combalidas de grandes mamíferos. Seja como for, a ordem ou onúmerodosfatoresnãoalteraoproduto:umaAméricadoSulcomreduzidaquantidadedemamíferosdegrandeporte.

TolstóiexplicaAtéagora,useiametáforaeleitoral,mastalvezosímilemaisadequadoenvolvaoaltar,enãoasurnas.Ao analisar por que certos animais viram bichos domésticos de primeira linha, enquanto outrosprovavelmente vão continuar levando uma vida selvática pelos séculos dos séculos, Jared Diamondcunhouum conceito interessante: o chamadoPrincípioAnnaKarenina (ou “AnnaKariênina”, comodizotítulodaediçãomodernosadoromancequetenhoaquiemcasa).Onomedoprincípiovemdasprimeiras linhas do livro do russo Liev Tolstói, que dizem o seguinte: “Todas as famílias felizes separecem, cada família infeliz é infeliz à suamaneira”.Ou seja, de acordo comTolstói, paraqueumafamília funcionebem,éprecisoquemaridoemulherestejamdeacordoemdiversosaspectoscruciais—naatraçãofísicaentreosmembrosdocasal,notemperamentodosdois,nosmétodosdecuidardosfilhos etc. Se essas coisas não estiveremmuito bem azeitadas, a chance de a relação desandar e virarumacoleçãoinfindáveldetretaséconsiderável.

Quediabos issotemavercomdomesticaçãodeanimais?Bom,paraDiamond,sãorarososbichosque combinam decentemente com a companhia humana. Se algum dos elementos-chave não estiverpresente,insistirnadomesticaçãoequivaleadarmurroempontadefaca.Nemtodaaboavontadedomundoserásuficienteparapromoverauniãoestávelentreamaioriadasespéciesdoplanetaenós.Issoera ainda mais verdadeiro milhares de anos atrás, quando não tínhamos recursos abundantes parainvestirnacriaçãodosanimaismaiscomplicados.Esse,emsuma,éoPrincípioAnnaKarenina.

Agora, vamos tentar destrinchar um pouco melhor o que esse postulado significa na prática. Aprimeira coisa a ter emmente é que domesticação não é brincadeira. Não se trata simplesmente deamestrarumbichinhoeensiná-loafazertruques.Emúltimainstância,domesticarimplicaemexercerum controle considerável sobre a reprodução de uma espécie, sobre a alimentação e o estilo de vidadela.Émaisoumenosomesmoprocessoquejáanalisamosnocasodasplantas,comadiferençadequeum pé de alface não tenta morder o seu nariz nem dar um coice na sua cara quando você tentacontrolar como ele se reproduz. É verdade que as tentativas de domesticação provavelmentecomeçaram com o hábito de ter bichinhos de estimação— coisa comum ainda hoje em sociedadestribais, que “pegampara criar” filhotes dos bichosmais improváveis, demacacos a tucanos, passandoporcangurus.Omerofatodetrazeressesanimaisparaoconvíviohumanojátrazemsiopotencialdeselecionaros indivíduosmais adequadospara esse contato,mas issonão irámuitoadiante senão forviávelgarantirareproduçãocontínuadessesindivíduoscomcaracterísticasdesejáveis.

IssonoslevaaoprimeiroelementoessencialdoPrincípioAnnaKarenina:adieta.Comefeito,nãoépor acaso que a grande maioria dos animais domesticados de importância mundial é composta porherbívoros, ou no máximo por onívoros que se viram perfeitamente bem comendo matériavegetal/restosdamesahumana(osporcoseoscãesestãonessasegundacategoria,mesmoqueoscãessejamtecnicamentemembrosdogrupodoscarnívoros).Criarcarnívorosdegrandeportesimplesmentenãovaleapenadopontodevistadobolsoedacargadetrabalho—afinaldecontas,vocêteriadecriarprimeiroasvacas(ououtrafonteabundantedecarne)parapoderalimentarosleõesouosursos.Além

disso, é óbvio que grandes comedores de carne também representam um risco para seus criadoreshumanos(nãoqueherbívorossejamperpétuosdocinhosdecoco,comoveremosaseguir).

Tamanho é outro elemento importante, claro.Na criaçãode animais altamente industrializadadehoje, provavelmente é mais fácil e barato produzir proteína em grande escala criando cem galinhaspoedeiras do que dez vacas, mas galinhas não fornecem couro nem puxam arados, sem falar napossibilidade de usarmamíferos grandes (cavalos e camelos, por exemplo) como tanques de guerra.Numaeconomia“primitiva”epoucoespecializada,oqueinteressavaeraopacotecompletodoanimal,enessepontoosgrandalhõeslevavamconsiderávelvantagem.

Mas não basta ser grande. Também é preciso ser capaz de ficar grande num intervalo de temporelativamente rápido. É por isso que nenhuma sociedade do planeta realmente chegou a domesticarelefantes.Ospaquidermescrescemtãodevagarecomemtantoaolongodesseprocessoquecompensamais capturar os bichos e treiná-los—para não falar da paciência de Jó necessária para esperar quetranscorram os quase dois anos de gestação das fêmeas. Ninguém jamais assaria um bebê elefantenascido numa fazenda como as pessoas infelizmente ainda fazem com leitõezinhos— não por bomcoração, mas porque seria um desperdício absurdo de tempo e trabalho. Os elefantes usados comomontariasou tratoresnaÁsia tropicalmodernanão sãodomesticadosdeverdade,mas simplesmenteamansados,oqueébemdiferente.

Próximo ponto crucial: temperamento. Todo mundo já ouviu falar de touros irascíveis, mulasteimosas (quase um pleonasmo) e cavalos que adoram cobrir os incautos de coice, mas o que essasespécies domésticas fazem não é nada perto do que seus primos não domesticados são capazes deaprontar.Umdosmotivospelosquaisosafricanosnãodomesticaramasmuitasespéciesdezebradesuapartedomundo, tendode se contentar como cavalo eurasiáticoquandoeste chegouàÁfrica, équezebra é bicho absurdamente tinhoso. Zebras têm o desagradável hábito de morder o sujeito e nãolargar,porexemplo—coisaquecavalonormalmentenãofaz.Esabequalomamíferoquemaismatagente na África? Errou quem disse “leão”. O maior matador de gente é o hipopótamo, quenormalmentenãocomecarne,mastemumgêniodocapeta.Acoisa,porém,tambémpodedesandarseo temperamentodocandidatoadomesticação forparaooutroextremo.Animais tímidosemedrososdemais—veadoseoutrascriaturasdogrupodoscervídeos,comexceçãodasrenas,sãooexemplomaisóbvio — não suportam o estresse de ser confinados em cercados relativamente pequenos, de serlaçados,montadosoucastrados.Emtaiscondições,essesbichospodemliteralmentemorrerdocoração.

Oúltimopontorelevanteéaestruturasocialdaespécieaserdomesticada.Bichossolitáriosmuitasvezessótoleramapresençaunsdosoutrosnaépocadoacasalamento,eolhelá,oqueéumamánotíciasevocêpretendeterumrebanhodaquelaespécie(oqual,pordefinição,terámuitosindivíduosjuntos,certo?).Não por acaso, todos os principaismamíferos e aves domésticos pertencem a espécies sociaisqueformamgruposrelativamentenumerososepacíficos.Umadasrarasexceçõeséaquelesolitárioporexcelência,ogato,célebreporignorarsolenementeseusdonosdequandoemquando.Alémdisso,háumaquestãohierárquicacrucial:nãobastaviveremsociedade,masconvémvivernumtipoespecíficodesociedade,naqualexisteumahierarquiadedominânciaclara(dotipo“mandaquempode,obedecequem tem juízo”) na qual os humanos podem se imiscuir, tomando o lugar do “alfa”, ou chefe, dogrupo.SevocêjáassistiuàquelesprogramasdeTVsobreadestramentodecãesqueensinamodonoadeixar as regras claras para o totó e mostrar sem ambiguidades quem manda, sabe do que estou

falando. Esse é um dos elementos que permitem aos pastores controlar um rebanho de ovelhas, oufazemcomquecãesdegrandeporteemusculaturapossantesesujeitemmansamenteapuxarotrenódeumInuit.

Todos os pontos mais importantes do Princípio Anna Karenina foram devidamente explicados,portanto. A ideia é que as formas ancestrais das espécies hoje domesticadas já contavam com oselementospromissoresdessepacotecomportamental,oqueexplicaporqueelas,enãoalgunsdeseusparentes,acabaramsetornandocompanheirasdoserhumano.QuandoagentevoltaparaarealidadedoterritóriobrasileiroapósoPleistoceno,ficaclaroporquenossosprimeiroshabitantesdomesticaramapenasopato-bravo(seéqueaespéciefoidomesticadaoriginalmentenonossoatualterritório,oquenãoestácomprovadoainda).Macacosemgeralsãopequenosdemais,eaindatêmohábitonãomuitoprático de querer passar a maior parte do tempo no alto das árvores. Veados são profundamentemedrosos;antas,solitáriasenãoexatamentepacatas(escrevicertavezsobreocasodeumagricultorqueflagrouumaantafazendoafestaemsuaplantaçãodemilhoeresolveuseatracarcomounguladonabaseda facada, sendomortopela invasoraadentadas);osparentesdocãoquase sempre têmhábitosnoturnos e solitários. A lista de fracassos anunciados poderia continuar indefinidamente. Os únicoscandidatos com algum potencial talvez sejam nossos suínos selvagens, o caititu ou porco-do-mato(Pecaritajacu)eaqueixada(Tayassupecari),rarosformadoresdemanadasdasflorestastropicaissul-americanas.Hoje, um ou outro criador interessado em produzir carnes exóticas consegue reproduziressesbichos,masseutemperamentotampoucoédosmelhores.

Não ter conseguidomontar plantéis de animais domésticos por pura falta de matéria-prima tevealguns impactosóbviosna trajetóriadosmoradoresnativosdasAméricas.Eles, é claro,não tiveramachance de beber leite de vaca— uma fonte nutricional tão relevante que, em diferentes lugares daEuropa e da África Oriental, houve a evolução independente de variantes genéticas humanas quepermitemadigestãodoleiteapósaprimeirainfância.Atéentão,sóbebêshumanosingeriamleite,eacapacidadededigerirabebidaera“desligada”noorganismodelesdepoisqueeramdesmamados.Emdiferentes sociedadesdecriadoresdegado,aanálisedeDNAdeesqueletosantigos revelaque,antesdoadventodapecuária,praticamenteninguémentreosadultoscarregavagenesquepermitiamdigerirlactose (o açúcar do leite) na vida adulta. Depois que a criação de vacas surgiu, porém, esses genesforam rapidamente se tornando cada vez mais comuns na população, sinal de que estavam sendofavorecidospelaseleçãonatural(ouseja,os“donos”dosgenesestavamdeixandomaisdescendentesdoque os que não carregavam essas variantes). Sociedades que não criavam animais também tinhamacessomaisdifícilàsproteínasdacarneeamatérias-primascomocouro,nãopodiamsubstituiraforçahumana pela tração animal (de novo, o caso do arado puxado por bois é emblemático) nem usargrandesmamíferosnaguerra.

Ocavalo,umdosúltimosmamíferosdoVelhoMundoavirarparceirodahumanidade,éoexemplomais importante: povos de cavaleiros frequentemente derrotaram de forma avassaladora gentes quelutavam a pé ao longo daAntiguidade e da IdadeMédia na Eurásia. E, noNovoMundo, o uso dacavalariateveefeitosdevastadores,emespecialnosprimeiroscombatesentreeuropeuseindígenas.Dápara argumentarqueuns50%daderrotado Império Incadiantedas forçasdoaventureiro espanholFrancisco Pizarro deriva do ataque de cavalaria aparentementemaluco liderado por ele às forças doimperador Atahualpa em Cajamarca, no atual Peru, em 16 de novembro de 1532. Contando com

poucomaisdesessentacavaleiros(maisumacentenadesoldadosdeinfantaria,12arcabuzesequatrocanhões), Pizarro atacou de surpresa dezenas de milhares de guerreiros incas, alguns dos quaisresponsáveis por carregar Atahualpa numa liteira. Sem entender o que eram aqueles monstros —homens“colados”aocorpodeanimais—episoteadospeloímpetodoscavalos,osincasacabaramnãoconseguindodefenderseulíder,quefoicapturadoeusadocomorefématéqueosespanhóisdecidiramexecutá-lo.

São todasvantagensconsideráveis,quemuitoprovavelmentediminuíramaschancesderesistênciaeficaz dos habitantes do Novo Mundo aos invasores europeus, mas nada se compara ao peso dasdoenças infecciosasdoVelhoMundonoextermíniodaspopulações indígenas.Eéaquiquepodemosenfimamarrar aspontasdenosso raciocínio: essasdoenças, emgeral causadasporvírusoubactérias,frequentementesurgiramcomozoonoses—moléstiasdebicho,emlinguagemmaissimples.

Trata-sedeumfenômenoque,emgrandemedida,continuaocorrendonomundomoderno.Bastarecordaropânicoemtornodachamadagripesuína (ecertos luminarespolíticosalertandoaspessoaspara “não beijar o porquinho”) anos atrás, o avanço assustador do vírus zika hoje (um parasita queprovavelmenteexistehámilhõesdeanosnoorganismodemacacosafricanos)ouadaAidsnadécadade1980 (denovo, estamos falandodeumvírusoriginalmenteencontradonoorganismodeprimatasnãohumanosdocontinenteafricano).

Nomomento,o exemploquemaisnos interessa éodagripe suína,poruma sériedemotivos.Osvírus influenza, causadores da gripe, possuem uma história evolutiva comprida e complexa, o que énaturalnocasodeentidadesquesofremmutaçõesemseumaterialgenéticonumavelocidadequefazociclo de vida dos seres humanos parecer o de uma árvoremilenar. Porém, o certo é que existe umaassociação clara entre a criação intensiva de aves e porcos, de um lado, e a expansãodevastadora decepas (variantes)dovírus,deoutro.Tudo indicaque, inicialmente, tais vírus tinhamde se contentarcom a invasão do organismo de hospedeiros não humanos (os suínos e as aves, tanto as domésticasquanto as selvagens), aos quais tinham se adaptado ao longo de sua evolução. As características datransmissãodagripequeconhecemosbemnocasodosvírusqueafetampessoas—comooataqueemmassapromovidopelosparasitasmicroscópicosquandoumapessoaespirraoutossenasvizinhançasdeoutra — já valiam nessa época, o que significa que, para se espalharem com eficácia, as diferentesformas de influenza precisavam de concentrações populacionais densas das espécies que atacavam:grandes colônias de avesmigratórias, por exemplo, ou varas de porcos. Sem esse fator-chave, o víruspoderia infectar umpequeno grupo familiar isolado,masnão iria adiante pela falta de contato dessegrupinhocomapopulaçãodaespéciecomoumtodo.

Pense agora no que aconteceu quando humanos enxeridos resolveram construir galinheiros ouchiqueiros,superlotandotaisrecintoscomgalináceosesuínos—e,dequebra,passandoelesprópriosamorar em povoados commuita gente concentrada em pouco espaço, o que seria uma consequênciamais ou menos lógica do aumento de recursos proporcionados pela criação de animais, aliás. Taisprocessosnãoapenasgarantemacontinuidadedatransmissãodosvírusentreasespéciesquejásãoashospedeiras tradicionais deles como também colocam os seres humanos na roda, por assim dizer—entre outrosmotivos porque, diferentemente do que termos como “galinheiro” e “chiqueiro” podemdaraentender,umaseparaçãorígidaentremoradoreshumanosebichosdomésticoseraaexceção,enãoaregra,atépouquíssimotempoatrás.CamponesesdaEuropamedievaloudaNovaGuinédosanos

1950nãotinhamomenorproblemaemabrigarseusporquinhosdentrodecasaquandootempoficavaruim ou quando o inverno chegava, por exemplo. Crianças carregavam franguinhos no colo e osbeijavam; mulheres chegavam a amamentar leitões órfãos — bem, você entendeu. A tradicionalexpressão“darmoleparaoazar”malcomeçaadescrevero tamanhodorisco implícitonessecenário,desdequeovírus“aprenda”asaltardoshospedeirosantigosparao terrenovirgemrepresentadopelosuculentoHomosapiens.

Esse tipo de salto, obviamente, não é um processo automático. Há inúmeros detalhes ligados àeficiência “colonialista” dos patógenos (causadores de doenças), um dos quais é literalmente umaquestão de encaixe: para invadir uma célula humana, vilõesmicroscópicos necessitam ser capazes deusar determinadas moléculas como “chaves” nos chamados receptores, as fechaduras das células.Precisam,alémdisso, encontrarmaneirasde semultiplicarcomeficáciano interiordocorpodonovohospedeiroedepassardessepobrecoitadoparaoorganismodeoutropobrecoitadodamesmaespécie,continuando a se reproduzir, de preferência para sempre. Doenças infecciosas emergentes, nas fasesiniciaisdesuaadaptaçãoahospedeiroshumanos,muitasvezesconseguemfazerosaltoinicialdobichoparaapessoa,masaindanãootimizaramatransmissãodepessoaapessoa,oqueastornaassustadoras,masmuitasvezespoucoeficazes,produzindosurtosqueparecemfogoempalha.

Os detalhes do processo de ajustamento ao organismo de um novo hospedeiro inevitavelmentevariam de contexto para contexto. De novo, não adianta muito ser um vírus que atravessa umapopulação feito um foguete, matando gente a torto e a direito e infectando todos os membros dacomunidade,senofimdascontasestátodomundomortoouimune(jáquefrequentementeosistemadedefesadoorganismododoentetambémaprendeesepreparaparaapróximainfecção)enãoexisteoutra grande população vizinha para onde ir. Esse é o principal motivo pelo qual sociedades decaçadores-coletores normalmente não sofrem com grandes epidemias devastadoras desse tipo: nãoexistegente suficienteparaque taispatógenos consigamsemultiplicarde forma sustentável.Entreosgruposqueaindaadotamouadotavamnopassadorecenteomododevidaancestraldahumanidade,doençasinfecciosasmais“marchalenta”,quedemoramanosouatédécadasparamanifestarsintomasecausarproblemassériosparaopaciente,sãoasquesesaemmelhornacompetiçãoimpostapelaseleçãonatural.

DosarampoàpestenegraDiantedesse cenário, a vantagem (e éumavantagem coletiva, ainda que certamente não individual)doseurasiáticosdiantedosnativosdasAméricasinevitavelmentesurgiucomopassardosmilênios,pelosimplesmotivo de que os criadores de animais da Europa e daÁsia tiverammuitomais chances deadquirir parasitas microscópicos de seus animais domésticos, e de desencadear os experimentosevolutivosquetransformaramessesvíruseessasbactériastípicosdeanimaisemcausadoresdedoençashumanas.Comefeito,amaioriadasdoençasinfecciosasquedevastaramapopulaçãoameríndiaapósocontatocomeuropeus—eque,emcertamedida,continuaramacumpriressepapelatéoséculoXX—provavelmente surgiuapartirdepatógenosque infectavamanimaisdomésticos.Éo casodo sarampo(parentepróximodapestebovina,doençadogadohojeextinta),davaríola(quepodeterchegadoaohomemapartirda interaçãoentrevírusdos camelosedosbois) eda já citadagripe.Também foramimportantespatógenosdoVelhoMundoquenãodependempropriamentedebichosdomésticos,masde mamíferos “parasitas”, que se adaptaram à riqueza de alimentos nas vizinhanças das moradiashumanas.Éocasodosratos(incluindoaítantoasespéciesurbanasquantoasdocampo),quecarregamas pulgas em cujo sistema digestivo vive a temidaYersiniapestis, a bactéria da peste bubônica. Taispulgasnormalmentesugamosanguedosroedores,masobviamentenãodesdenhamumamordiscadanosvasossanguíneoshumanosquandotêmessaoportunidade,eaí,éclaro,atragédiaestáarmada.

AcirculaçãoconstantedetaispatógenosnaEurásiatambémfoipéssimaparaoshabitantesdoVelhoMundo no curto prazo, é lógico. Um século e meio antes do Descobrimento, cerca de 30% doseuropeusmorrerampelasmãos(bem,pelascélulasbacterianas,aomenos)daPesteNegra,opiorsurtode peste bubônica de todos os tempos. Mas a frequência de grandes epidemias do lado leste doAtlântico tevedois outros grandes efeitos de longoprazo.Primeiro, as doenças infecciosas tendiamaafetarcommaiorseveridadeascriançaspequenas,serescujosistemaimunológico, imaturocomoelas,aindaestáaprendendoa lidarcominvasores.Resultado:morriaumaenormeproporçãodelas,masascrianças que conseguiam passar por esse gargalo horrendo normalmente viravam adultos imunesàquelasdoençaspelorestodavida.

Em segundo lugar, os patógenos atuaram como poderosas ferramentas da seleção natural,favorecendoasobrevivênciaeosucessoreprodutivodaspessoascomalgumaresistência inataaeleseexterminandoasdemais.Aconsequênciadissoéque,comopassardosséculos,oseuropeusforamsetornando cada vezmais geneticamente resistentes a tais doenças, porque as pessoas que carregavamgenesqueasdeixavamvulneráveisdiantedasepidemiasestavamsumindodomapa.Notebem:nãoéqueoDNA“respondesseaoperigo”gerandomutaçõesqueforneciamresistênciaàsmoléstias.Oriscoaumentadodemorrerdevaríolaousarampoapenasselecionavaasvariantesgenéticasmaisresistentesquejáestavampresentesnapopulaçãodequalquermaneira.Éporissoqueotermoempregadopelosbiólogoséseleçãonatural,obviamente.

Atéondesabemos,esseprocessonãoestavaacontecendodoladodecádooceano—aomenosnãonocasodesse tipodedoença. Jáhouvequempropusesseque, alémdessadesvantagemambiental,osindígenastambémtinhamumadesvantagemgenética.Pordescenderemdaspopulaçõesrelativamente

pequenasquecruzaramaBeríngiano fimdoPleistocenoe ficarampraticamente isoladasdo restodomundo durante mais de 10 mil anos, eles carregariam um subconjunto de genes ligados à ação dosistema imunológico menos variado do que o das populações mais cosmopolitas da Eurásia — e,portanto,commenospotencialinatopararesistiraosataquesdossuperpatógenosdeorigemanimal.

“Queeusaiba,issonãopodeexplicarodeclíniopopulacionalcausadopelacolonizaçãoeuropeiadaAmérica”, argumenta o geneticista Fabrício Santos, da UFMG. Segundo ele, a menor diversidadegenéticarelacionadaaofuncionamentodosistemaimunecaracterizaapenasalgumasdaspopulaçõesdeameríndios,nãotodas.Paraele,opontocrucialteriasidomesmoafaltadecontatodosindígenascomos principais patógenos ainda na infância, que impediu que eles formassem o que Santos compara aumabibliotecadeproteção.“Hoje,poroutro lado, indígenascom100%dogenomanativoamericanonão têm problema algum, pois já têm contato com esses antígenos [asmoléculas dos causadores dedoençasqueosistemaimunológicousaparaaprenderacombatê-los]desdeainfância”,dizele.

De novo, é preciso ressaltar as implicações apocalípticas desse fato. Antes do século XX, criançasmorriam aos montes mundo afora por causa dessas doenças aparentemente bobas, que hoje nemaparecem mais graças à invenção de vacinas baratas e absurdamente eficientes (a vacinação, aliás,permitiu que a varíola fosse 100% erradicada nos anos 1970). Agora, imagine adultos e criançasmorrendoaosmontes,aomesmotempo,semnenhumdosaparatosmirabolanteseeficazesquesalvamvidas com relativa facilidadenoshospitaismodernos—e, aliás, semassistência social, semalimentosbaratos e armazenados em grande quantidade para emergência, sem qualquer conhecimento sobrecomodeteroavançodainfecçãoparacabanasealdeiasvizinhas.Semporcarianenhuma,pararesumir.Não é nada surpreendente que os relatos coloniais inicialmente falem de grandes aldeias, vastasesquadrasdecanoas,genteparatodoladoe,emalgumasdécadas,issotudovirefumaça,enquantoosportugueses da costa brasileira sentem a necessidade de ir procurarmão de obra cada vezmais noscafundós do interior, ou entãode arrancá-la daÁfrica.Alguns cronistas, aliás, apontamuma relaçãoperversa ainda mais direta entre epidemias e escravidão indígena: com tanta gente morta, ossobreviventesnãodavammaiscontadeobtercomida,porpurafaltadebraçosparaplantar,vendendoasipróprioscomocativosparanãomorrerdefome.

Nosprimeirostemposdaconquistaeuropeia,éóbvioqueasituaçãofoiespecialmenteruimparaaspopulaçõesdefalatupidasbordasdoAtlântico,poistaispovosestavamemcontatomaisconstantecomoseuropeuserapidamentesetransformaramemaliados,escravosetropasdechoquedosinvasoresemsuasincursõesrumoaointerior.Tambémfoientreelesqueaconteceramosexperimentospioneirosdaschamadas reduções ou aldeamentos, nas quais missionários da Companhia de Jesus criaram aldeiaseuropeizadas,comestruturasemelhanteàdasvilaseuropeias,quefrequentementeconcentravamgentedediferentesaldeiasetribos.Esseprocessoclaramenteteveumimpactoepidemiológico—eosrelatosdosprópriosjesuítasmostramisso—porqueapopulaçãoindígenadosaldeamentospassouaviveremaglomeraçõesconsideravelmentemaisapertadas(einsalubres)doqueasdasaldeiastradicionais,oquedeveterintensificadoascondiçõesdecontágio.

Maisimportanteainda,acadeiadetransmissãofuncionavadetalmaneiraquenemeranecessárioocontato direto com os europeus para que as epidemias tivessem efeito devastador. Assim comomachadoscomlâminademetalouespelhospodiamirpararnointeriordocontinenteporumaespéciede “telefone sem fio” comercial, ou seja, ao longo de sucessivas trocas entre as tribos litorâneas e

vizinhoscadavezmaisterraadentro,alguémquenuncatinhavistoumbranconavidapoderiamorrerdesarampoaoentraremcontatocomummercadorindígenaquevisitaraumaaldeiaporondejesuítastinham passado uma semana antes, por exemplo. É bastante provável que isso explique, em parte, oabismo entre os relatos amazônicos de Gaspar de Carvajal e as observações dos exploradores quepassaram pela região a partir do século XVIII. Temos um exemplo claro de que coisas desse tipoaconteceram, e inclusive forampoliticamente relevantes, no caso do Império Inca: anos antes que osespanhóis pusessem suas botas nos Andes, uma epidemia de varíola, provavelmente oriunda daspossessõeseuropeiasnaAméricaCentrale trazidapelométododo“telefonesemfio”epidemiológico,matouoimperadorHuaynaCapac(1464-1527)emuitosdeseussúditos.Àsportasdamorte,HuaynaCapac dividiu o império em porções destinadas a seus filhos Huáscar e Atahualpa, que acabarambrigando pelo controle de todo o território inca, uma disputa que provavelmente também facilitou ainvasãoencabeçadaporPizarro.

Alémdasdoençastipicamenteeurasiáticas,moléstiastropicaisafricanas,quechegaramatéaquiporcausadaconexãoentreacostabrasileiraeotráficodeescravosnaÁfrica,tambémdevemtertidoumimpactoconsiderávelsobreademografiaindígena.Seiqueparecedifícilconceberissohoje,mashouveumtempoemquenãohaviaumúnicoexemplardeAedesaegyptinoRiodeJaneiro,jáqueoinimigonúmero um da saúde pública brasileira é uma espécie africana, e os surtos de febre amarela nasAméricas (originalmente a principal doença transmitida pela odiosa criaturinha) só começaram noséculoXVII.Omesmovaleparaamaláriaeseusvetores,osmosquitosdogêneroAnopheles.Emsuma,as enfermidades tropicaisque frequentementeaterrorizavam(eaterrorizam)oseuropeusemvisitaaoBrasil são, com frequência, doenças africanas. Em geral, as moléstias genuinamente sul-americanas,como omal deChagas, atuam de formamuitomais lenta, ainda que também sejam letais no longoprazo (décadas, no caso deChagas).A única grande exceção a essa regra talvez seja a sífilis, doençabacteriana transmitida sexualmente que parece ter sido levada das Américas para a Europa peloshomensdasexpediçõesdeCristóvãoColombo.

SobreespadaseEstadosTalvezvocêestejaestranhandooquepareceserumaênfaseexageradanosaspectosmicrobiológicosdosucesso europeu nas Américas, bem como a falta de uma menção aos aspectos tecnológicos dessavitória, em especial do ponto de vista militar. É óbvio que armas de fogo e navios de guerrainevitavelmentecriaramumcontextodesuperioridadebélicaavassaladoradeportugueseseespanhóis,certo?Bem,maisoumenos.Éprecisoconsiderar,antesdemaisnada,queatecnologiamilitarbaseadanapólvoranãoeraexatamenteumamaravilhaporvoltadoanode1500.Pesadas,complicadas,difíceisdecarregar,asarmasdefogodocomeçodoséculoXVItendiamaterprincipalmenteumefeitomoral,causando pânico nas fileiras indígenas, sem que houvesse um impacto tão consistente assim contragrupos acostumados ao estampido e ao cheiro da pólvora, ou que conseguissemmanter mobilidadesuficienteparaescapardostirosdesferidosapósoprocessorelativamentemorosodecarregaredispararcanhõesearcabuzes.

OmaiscuriosoéquediversoscronistaseuropeusdaEradosDescobrimentosreconhecemarelativafalta de praticidade das armas de fogo e se põem a louvar a habilidade indígena nomanejo de suasarmasdelongadistância—obomevelhoarcoeflecha.EisoqueescreveofrancêsJeandeLéry,porexemplo:

Quanto ao arco, dirão comigo os que o viram em exercício que, embora com os braços nus, envergam-no com tantadesenvolturaeatiramcomtantarapidezquenãodesagradariamaosingleses,consideradosótimosflecheiros;poisumíndio,commolhosdeflechasnamão,lançariaumadúziadesetasmaisdepressaqueuminglêsmeiadúziadelas[...]ediziam[osTupinambá,nocaso],aliáscomrazão,queatiravammaisdepressaseisflechasdoquenósumtirodearcabuz[...]Pormaisquenosresguardemoscomcabeçõesdebúfalos,saiasdemalhaououtrasarmadurasaindamaisresistentes,robustoscomosãoeimpetuososnotiro,osnossosselvagensnostranspassariamocorpocomsuasflechastãobemcomonósofaríamoscomumtirodearcabuz.

Outra passagem assustadora sobre omesmo tema, especialmente pitoresca para os nossos ouvidosportersidooriginalmenteescritaemportuguêspelojesuítaFernãoCardim(1549-1625),dizoseguinte:

Estasflechasparecemcoisadezombaria,poréméarmacruel;passamumascouraçasdealgodão,edandoemqualquerpauoabrempelomeio,eacontecepassaremumhomemdeparteaparte,eirpregarnochão.

É quase uma cena de videogame — OK, claramente exagerada pelo cronista, mas ainda assimbaseadaemfatosreais,comodizemaquelesletreirosdecinema.

Oque talvez tenha feitoumadiferençasignificativadopontodevistadoequipamentobélico foiapresença de armas e armaduras de metal do lado ibérico do conflito. Embora até as armaduraseuropeias pudessem ser atravessadas pelas flechas dos Tupinambá de vez em quando, conforme osrelatos dos cronistas, é difícil imaginar que a maioria dos confrontos não tenha mostrado asuperioridadedoaçodasespadas, lançasecapacetesdoVelhoMundonocombatecorpoacorpo.OsprópriosTupinambádoMaranhão teriamreconhecidoesse fato, segundoo fradecapuchinhoClaudeD’Abbeville, ao contarem a seus aliados franceses uma narrativa da criação das diferentes raçashumanasnaqualasarmasmetálicasdesempenhamumpapel-chave.Segundoeles,nosprimórdiosdo

mundo,profetas teriamapresentadoaoancestraldos índiosumaespadademadeiraeoutrade ferro,pedindoqueeleescolhesseumadelas:

Eleachouqueaespadade ferroerapesadademaisepreferiuadepau.Diantedissoopaidequemsoisdescendentes [oTupinambáemquestãoestásedirigindoaosfrancesesaqui],maisarguto,tomouadeferro.Desdeentão,fomosmiseráveis,poisosprofetas,vendoqueosdenossanaçãonãoqueriamacreditarneles,subiramparaocéu,deixandoasmarcasdosseuspéscravadascomcruzesnorochedopróximodePotiú.

Emúltimainstância,entretanto,asdiferençasdepotencialtecnológicoebélicoentreosameríndiosbrasileiroseosinvasoreseuropeuscomeçamaparecerrelativamentedesimportantesdiantedaprincipaldistinção entre os dois tipos de sociedade: a presença deEstados politicamente centralizados do ladoleste do Atlântico versus a ausência desse tipo de entidade política por aqui. É claro que existiamEstadosnasAméricaspré-colombianas,maselesestavamconcentradosnoMéxico,naAméricaCentralenosAndes.Mais importanteainda,nãohavia,atéondesabemos,nenhumaconexãodiplomáticaoupolítica “em temporeal” entre essas entidadesestatais.Quandoos espanhóis conquistaramo ImpérioAstecaem1521,nenhummensageirodesesperadodeixouaatualCidadedoMéxicorumoaoPeruparadaranotíciaaosincase,quemsabe,buscarumaaliançaquepermitisseexpulsarosinvasoresbrancosebarbudosdasterrasdaTrípliceAliança(onomenativodoEstadoasteca).Aliás,nãosabemosnemseosincas tinhamalguma ideiaclaradaexistênciadosastecas,paracomeçodeconversa,ousea recíprocaeraverdadeira.

No contexto da porção ocidental da Eurásia, seria inconcebível que uma situação desse tipoacontecesse. Dá para imaginar Constantinopla (atual Istambul, na Turquia), capital do ImpérioBizantino,sendoconquistadaporexércitosestrangeiros—comodefatoaconteceuem1453—semqueo rei de Portugal, por exemplo, ficasse sabendo do desastre em detalhes no máximo alguns mesesdepois?Jamais.Domesmomodo,emboraassociedadesindígenasdaAmazôniaestivessemenvolvidasemcomplexas redesde comérciode longadistância comseusvizinhosandinosaoesteda floresta, asinformaçõesqueosmembrosdaschefiasamazônicastinhamarespeitodaexistênciadegrandescidadeseimpériosdooutroladodasmontanhaseramvagasedesencontradas,eficavamaindamaisgenéricasefantasiosasquandofornecidaspelosgruposTupieGuaranidolitoral.

Não émuito simples explicar esses dois fenômenos: a relativa escassez de organização estatal nasAméricas e a ausência de uma conexão direta entre os grandes núcleos populacionais da era pré-colombiana—aomenosemescalacontinental,edeformaconstanteeconfiável.Oselosqueexistiamparecem ter funcionado na base do conta-gotas, e não no ritmo caudaloso de um rio. É difícil, noentanto,evitaraimpressãodeque,emalgumamedida,essesfenômenosestãoligados.

Paracomeçodeconversa,tudoindicaqueEstadosnãoevoluemcomtantafacilidadeassim.Poucasregiõesdomundoabrigaramumflorescimentoantigoevigorosodeorganizaçõesestatais.Asprincipaissãovelhasconhecidasdoslivrosdehistóriadosensinosfundamentalemédio:abaciadoMediterrâneo,aMesopotâmia,aszonasdeinfluênciadaÍndiaedaChina(e,éclaro,aAméricaCentraleosAndes).Temosoutrosnúcleos,masquasetodossãomaistardiose/ouparecemteradquiridoseusEstados,emlargamedida,graçasàpressãodesociedadesestataisqueviraramimperiaisnassuasvizinhanças.AhojedesenvolvidaEuropa,aliás,talvezsejaoexemplomaisclaro:poucoantesdocomeçodaEraCristã,áreasvastíssimasdocontinente,incluindoosatuaisterritóriosdePortugal,daEspanha,daFrança,doReino

Unido, da Alemanha e da Rússia, eram habitadas por sociedades que muito provavelmenteclassificaríamoscomochefias(organizadas,portanto,deumjeitobastanteparecidocomomododevidadeMarajó ou do Xingu antes da conquista europeia). Foi preciso que a Roma imperial fincasse seugládio (a espada curta romana) em vários desses territórios para que seus moradores enfimconhecessemamãopesadadoEstado.Emúltimainstância,osEstadosnacionaismodernosdaEuropasósurgiramporquedecidiramrecuperardevezaherançadoImpérioRomano,apósalgunsséculosderetornoaumasituaçãomuitopróximaàdechefiasnaIdadeMédia.

Em resumo, o que os dados dos demais continentes talvez nos ensinem é que muitas condiçõesprecisamestarpresentesaomesmotempoparaqueEstadossurjam,equea interaçãocomEstados (eimpérios)maisantigosfrequentementeéumadelas—aindaqueoprocesso,éclaro,tenhadecomeçaremalgumlugarantesdesercatalisadoemoutros.Arelativa faltadecontatoentreasgrandesregiõesdocontinenteamericanoprovavelmentenãoajudoumuitoetalveztenhaatédificultadoosurgimentode entidades comcaracterísticas estatais em lugaresquepoderiam ter sidopromissores.Umapossívelmaneiradeexplicarosemi-isolamento,aomenosnoquedizrespeitoaoscontatosmais intensoseem“tempo real”, talvez tenha a ver com as consideráveis diferenças ambientais entre os núcleos dasgrandes civilizações americanas, comoasque existementre as terras tropicaisdaAméricaCentral e aaltitude,ofrioeasecuradosAndes(e,éóbvio,asqueseparamosecossistemasandinosdaschamadasterrasbaixasdaAméricadoSul,designaçãoqueincluitodooterritóriobrasileiro).

Naprática, esse tipo de explicação, tambémdefendidopelo indefectível JaredDiamond (prometoqueestaéaúltimavezquemencionoohomemporaqui),temavercomosaspectosproblemáticosdesimplesmente transferir umpacote tecnológico e civilizacional de uma região para a outra. Indígenasmoradoresdamataatlânticaoudocerrado,porexemplo,dificilmenteconseguiriamcriarrebanhosdelhamasealpacas,aindaquefosseminstruídosnessaartepor“veterinários”andinoscheiosdepaciênciaeboavontade,porqueosanimaisnãoiriamsedarbemnoclimabrasileiro.Poroutro lado,emvastasáreasdoVelhoMundo,a situaçãoeraconsideravelmentediferente,emgrandepartegraçasà relativauniformidadedecondiçõesambientaisemtodaagrandebaciadoMediterrâneoeemáreasadjacentes,comoaMesopotâmia.

Vêm do lado oriental dessa região, afinal de contas, os mais antigos indícios consistentes deagricultura e criação de animais. O crucial é que esse primeiro pacote tecnológico (compostobasicamentepelocultivodecereaiscomootrigoeacevadaeacriaçãodecabras,ovelhasevacas)pôdeser exportado semgrandesdificuldadesparaapenínsula Ibérica,noextremooeste,ouparao Irã,noextremo leste. Apesar de algumas barreiras geográficas significativas e de períodos de colapso dasrelaçõesinternacionaisedocomérciomarítimo(comooqueencerrouaIdadedoBronze,porvoltade1200 a.C.), o contato entreosdiferentespovosdessa grande região tendeua se intensificardemodomaisoumenosconstanteao longodaAntiguidade,emespecialquandoosprimeirosgrandesEstadosmultiétnicosdahistóriadoplaneta (emsucessão relativamente rápida,o ImpérioPersa, as conquistasdeAlexandre,oGrandeeoImpérioRomano)unificarampoliticamenteboapartedaáreaporséculos.Tais períodos de relativa unidade política permitiram a circulação de ideias e tecnologias. Por outrolado,nasfasesemqueafragmentaçãopolíticaimperava,asconexõesculturaisecomerciaisdopassadonunca eram totalmente esquecidas, e os diferentes Estados da região se punham a competir pela

primazianumprocessoque tambémparece ter estimuladoodesenvolvimentodenovas tecnologias einstituições.

EntreasinvençõesdoVelhoMundoquetiverampapelimportantenoavançodeseusEstadosrumoaoNovoMundo, umadasmais cruciais foi a escrita alfabética, que provavelmente evoluiu de formaindependenteumaúnicavez,aoserboladaapartirdehieróglifosegípciosporpovossemitas, falantesde línguas aparentadas ao hebraico, no final da Idade do Bronze. “Cultura cumulativa rápida eeficiente,sócomescrita”,lembraageneticistaMariaCátiraBortolini,daUFRGS.Trocandoemmiúdos:ainvençãodeummétodopráticodeescritapermiteumacúmulomuitomaisconfiáveldeinformaçõessobreopassadoeopresente,abrindocaminhoparaoavançotecnológicoacelerado.Formasdeescritanativas do nosso continente evoluíram apenas na região doMéxico e daAmérica Central, e sempreforam complexas demais para que seu uso se popularizasse.O sistema de escritamaia, por exemplo,dependiadacombinaçãodelogogramas(sinaiscorrespondentesaumapalavrainteira)edeelementosque representavam sílabas. Eram, em outras palavras, adequados para uma casta especializada deescribas,enãoparaapopulaçãodemodogeral.

Aescrita,comseupotencialdetransmissãorelativamenterápidaefidedignadeinformações,éumdos“sintomas”,digamos,dasvantagensdosEstadossobreaschefiasoutribos.Demodogeral,Estadostêm muito mais fôlego organizacional, ou seja, uma capacidade muito maior de perseguir objetivoscomplicados e de longo prazo, de mobilizar recursos em grande escala. Os projetos iniciais deexploração das terras do litoral brasileiro pelos portugueses, por exemplo, foram quase sempredesastrosos (emparteporcausadadecisãodeLisboadedeixaressaexploraçãoacargodeconcessõesparticulares, as chamadas capitanias hereditárias). Com a criação de um governo central na colônia,ainda houve inúmeros reveses, e a aliança entre grupos Tupi avessos aos portugueses e os sempreardilosos franceses, interessados numa fatia do território brasileiro, colocou em risco o domínio dePortugal na costamais de uma vez (para não falar na ocupação holandesa de parte doNordeste noséculo XVII). Mas o governo luso, com sua unidade política e acesso ao comércio marítimo global,sempreconseguiadesembarcara tripulaçãodemaisalgumascaravelasemSãoVicente,noRioouemSalvador, enquantomuitas das sociedades ameríndias do litoral ficavam cada vezmais desarticuladasdiantedasepidemias,daconversãoreligiosaedasexigênciasdemãodeobradoscolonizadores—umadesarticulaçãodemográfica,políticaeculturalqueprovavelmentefoisendotransmitidapoucoapouco,comoasondasdechoquedeixadasporumterremoto,paraosgruposqueviviammaisparaointerior,antesmesmoqueelestravassemcontatodiretocomoslusos.

OsirredutíveisApesar da assimetria de forças, em especial quanto aos aspectos epidemiológicos e organizacionais, épreciso deixar claro que a conquista não foi um passeio. Diversas sociedades indígenas encontrarammaneiras de adiar por séculos a necessidade de chegar a um acordo comos invasores ibéricos, e emcertos casos esse acerto foi muitomais parecido com um tratado de paz entre iguais do que com oreconhecimentodaderrotaporpartedosnativos.

Por um lado, o primeiro século de contato com os europeus deixou bastante claro o que nãofuncionava — no caso, viver em meio aos colonos, em novas aldeias com padrão europeizado,frequentemente de naturezamultiétnica. Seria praticamente impossível que uma sociedade indígenasobrevivesseaesseprocessonolongoprazo,sejapelamortalidadeelevadíssima,sejapelatransformaçãodosmoradores dos aldeamentos emmão de obra que, na prática, tinha condição servil, ainda que alegislaçãodaCoroaportuguesasópermitisseaescravização“verdadeira”emcondiçõesespeciais,comoresultadodaschamadas“guerrasjustas”(quandooscolonossupostamentelutavamemlegítimadefesaeosprisioneirosderrotadoseramdestinadosàservidão,porexemplo).

Umaopçãomaisviáveldesobrevivênciaindependente,aomenosnocurtoprazo,eraseembrenharno interior e evitar o contato o máximo possível, deixando claro, por meio de ataques periódicos eferozesàs frentesdeexpansãoportuguesas,quea invasãodos territórios indígenasnãoseria tolerada.Essa,emlinhasgerais,foiaestratégiaadotadapelosgruposgenericamenteconhecidoscomobotocudos,comoosAimoréeosGoitacá,povosdeidiomamacro-jêpresentesemregiõesdosatuaisEspíritoSanto,Minas Gerais e Bahia que estiveram entre os últimos índios do Sudeste a oferecer resistênciaconsiderável à ocupação colonial. Em pleno século XIX, com a família real portuguesa devidamenteinstalada no Rio de Janeiro, Dom João VI declarou uma “guerra justa”, com retórica não muitodiferentedadoséculoXVI,contraeles.AlgunsdosdescendentesdessesgruposderamorigemàatualetniaKrenak.

Écuriosocomoosrelatosdoscolonizadores sobreosbotocudoseoutrosgrupos (emgeral falantesde línguas não aparentadas ao tupi) que ofereceram resistência especialmente encarniçada ao seuavanço dão grande destaque à ideia de que eles viviam “como animais”, sem aldeias permanentes,lavouras, casas oumesmoousodo fogo, comendo carne crua (e/ou carnehumana).Descontadososexageroseosrelatossobreantropofagia(umacaracterística tipicamenteTupi,comovocê jádeveestarcarecadesaber),aadoçãodeumestilodevidaaltamentemóvel,semelhanteaodecaçadores-coletores,deve ter sido, emmuitos casos, uma reação ao avançodos europeus, e nãoum reflexoda “condiçãoancestral”dosbotocudosedeoutrosgrupos.Afinal,essamobilidadeajudariataisetniasaestarsempreumpassoàfrentedasincursõesdoscolonos,alémdeproporcionarcertaautossuficiêncianumcontextoemqueadensidadedemográficadosgruposindígenasjáestavacaindoconsideravelmente.

Outra resposta possível à ameaça europeia surgiu entre grupos que provavelmente eram mesmocaçadores-coletoresnocomeçodoséculoXVI,oquenoslevaaexaminaroqueacontecianoPantanalenasregiõesvizinhas,comooChaco(áreadevegetaçãosemiáridanosatuaisParaguaieBolívia),nessaépoca. Entre as etnias de diferentes famílias linguísticas da área (incluindo tribosGuarani e Aruak),

havia diversos grupos de fala Guaikurú, pequeno conjunto de idiomas encontrado apenas naquelepedaçodaAméricadoSul.Desdeosprimeiroscontatoscomexpediçõesespanholas,quepassarampelaregião a partir da década de 1530, fundando vilas e buscando um caminho que unisse a costa doAtlântico às fabulosas riquezas dos Andes, os grupos Guaikurú adquiriram uma reputação debelicosidadeeastúcia.Alémdacaçaedacoleta,seumododevidaincluíaaindaataquesdesurpresaagrupos vizinhos de agricultores, para saquear suas roças e obter escravos. Os Payaguá, um dossubgrupospertencentes a essa família linguística, especializaram-sena construçãode canoas simples evelozes,queeramusadasparacruzarosmuitosriosdaregiãoeatacar tantooscolonosquantooutrosindígenas.

AfamatemíveldosGuaikurúnoperíodocolonial,entretanto,foisolidificadagraçasaoutrométododedeslocamentorápido—sobrequatropatas,nocaso.Asprimeirastentativasdeocupaçãoespanholada região foram extremamente complicadas, com disputas políticas e militares entre os próprioseuropeus e ataques de coalizões indígenas aos povoados recém-fundados, e vários deles chegaram aficar desertos.Com isso, cavalos trazidos para o interior do continente ficavam semdonoou fugiam,numavastaáreaque iadeMatoGrossoaBuenosAires.Porali, avegetaçãorelativamenteabertaeoclima com duas estações bem marcadas (a da seca e a das chuvas) não destoavam tanto assim doambientedeestepesondeoscavalos tinhamevoluídooriginalmente,eo resultado foiamultiplicaçãodosequinos,querapidamenteseadaptaramaosaspectosmaisinóspitosdaregiãoeseespalharamporela.

EspecificamentenocasodoPantanal,aseleçãonaturalaprontoudassuasmaisumavez.Pastonãofaltava no território pantaneiro, mas o problema era que boa parte da área ficava debaixo d’águadurantemetade do ano. Amaioria dos cavalos europeus não aguentaria a vida semissubmersa,masalgunsbichoscomcaracterísticaspropíciasànovasituaçãosobreviverameprosperaram,dandoorigemauma raça equina comcasco fechado (noqual a águanão entra), peito largoquepermitianadar commaisfacilidadeeatécomohábitodepastarcomarespiraçãopresaeofocinhodebaixod’água.Nasciaochamadocavalopantaneiro,aindahojearaçamaisadaptadaaotrabalhonoPantanal.

Não se sabeexatamentequandoalgunsdosGuaikurúperderamomedodosestranhosherbívorosdoVelhoMundoe resolveramaprender amontá-los.Alguns relatos coloniais afirmamque isso teriaacontecidonasegundametadedoséculoXVII,masa“redomesticação”doscavalospantaneirospodeterocorridobemantes.Sejacomofor,dalipordianteosGuaikurúdeixaramdesersimplesindígenaseviraram centauros sul-americanos. Como escreveu omissionário espanhol José Sánchez Labrador noséculo XVIII: “Eles conhecem as enfermidades dos cavalos melhor que as suas próprias. Em seusanimais,nãousamselasnemestribos.Montamempeloecomumsaltoestãosobreeles”.Ajulgarpelaiconografia do fim do período colonial, aliás, montavam de um jeito peculiar na hora do combate,apoiando-sedelado,comocorpototalmenteocultadopelotroncodoanimaldependendodoladoqueseolhavaparaocavaleiro.

Armadoscomlanças,osGuaikurúpassaramarealizarataquesvelozesehabilidososemtodaabaciado rioParaguai, aliando-se a seusprimosPayaguápara aterrorizarosbandeirantes e garimpeirosqueestavam tentando se fixar emMato Grosso ou ameaçando as possessões espanholas no Paraguai. OmilitarespanholFélixdeAzara,escrevendonofinaldoséculoXVIII,declarouqueasortedoscolonosmato-grossenseseraqueosGuaikurúsecontentavamemcapturarpoucaspessoasacadaataque.“Do

contrário, não restaria um só português emCuiabá”, afirmaAzara.Consolidou-se entre a etnia umahierarquia social típica de sociedades de cunho aristocrático, na qual havia uma camada de nobres,seguidaporumade“plebeus”livrese,finalmente,porumconjuntodeescravoscapturadosembatalha(que podiam ser tanto outros índios quanto europeus ou negros). Esses cativos realizavam trabalhosbraçais, mas seus filhos normalmente eram incorporados à “plebe” livre quando cresciam. Essesindígenas forjaramaindaumaaliançacomosancestraisdosatuaisTerena, etniadeagricultorescujasmulheresdealta estirpecostumavamsecasarcomosnobresGuaikurú, em trocadepagamentos (emgeralprodutosagrícolas)paraatribodecavaleiros.

UmaespéciedepazformalentreeleseaCoroaportuguesafoi firmadaem1791.Oramodaetniaque se fixou em Mato Grosso do Sul, os Kadiwéu, ainda prestaria serviços militares relevantes aoimpériobrasileiroduranteaGuerradoParaguai(1864-1870),atuandocomocavalariaembatalhaumaúltimavez.OsKadiwéuaindahabitamaregiãodeMatoGrossodoSulreconhecidaoficialmentepeloEstadocomopertencenteaelesdesdeocomeçodoséculoXX.

SeasagadosGuaikurúpareceligeiramentefamiliar,comardefaroeste,éporquetalvezsejamesmo.A introdução do cavalo nasAméricas foi um dos principais instrumentos do avanço avassalador doseuropeus.Contudo,emlugaresondepopulaçõesdeequinosvoltaramaoestadoselvagemporazaroudescuido dos colonizadores, surgiu uma oportunidade que transformou as sociedades indígenas epermitiu que elas resistissem com muito mais eficácia aos invasores — não só no Pantanal comotambémnasGrandesPlaníciesdointeriordosEstadosUnidosedoCanadáenospampasargentinosegaúchos. As tribos de cavaleiros só seriam definitivamente subjugadas no século XIX, quando atecnologiamilitar europeia tinhaavançadomuitoalémdos canhões e arcabuzes ineficazesdaEradasNavegações.

É claro que não escolhi por acaso essas histórias sobre estranhas simbioses entre Velho e NovoMundo como formade encerrar este epílogo.Elas são, emprimeiro lugar, umvislumbrede como ascoisas poderiam ter sido profundamente diferentes se fossem feitos pequenos ajustes nas condiçõesiniciais que regeram os primeiros contatos entre ameríndios e europeus. Pense no que poderia teracontecidoseoscavalosjamaistivessemdesaparecidonesteladodoAtlântico(bom,assumindo,claro,queosequinossul-americanospassariamnotestedoPrincípioAnnaKarenina...),seolitoralbrasileiroou a calha do rio Amazonas fossem majoritariamente cobertos por vegetação aberta e favorável aopastoreio, se as grandes cidades-Estado e impérios dos Andes e do México estivessem em contatodiplomáticoecomercialconstante.ARodadaHistóriapoderiamuitobemtergiradoparaooutrolado,ou em ritmo diferente, com consequências imprevisíveis para todos os que viveriam nos séculosseguintes.

Apré-históriaéachaveparaentenderaimportânciadessascondiçõesiniciaiseparademonstrar—comoesperoterdemonstrado—queopassadoprofundodoBrasilétãoricoecomplexoquantoodoVelhoMundo.Emnomedosquesãoherdeirosdele,convémnãoesquecê-lo.

ParaSaberMais

LIVROS

ADOVASIO,J.M.;PAGE,Jake.Osprimeirosamericanos:embuscadomaiormistériodaarqueologia.RiodeJaneiro:Record,2011.

ANTHONY,DavidW.Thehorse,thewheelandlanguage.Princeton:PrincetonUniversityPress,2010.

BERGREEN,Laurence.Colombo:asquatroviagens.RiodeJaneiro:Objetiva,2014.

BOWN,StephenR.1494.SãoPaulo:GloboLivros,2013.

CAMPBELL,Lyle.Historicallinguistics:anintroduction.Perthshire:MITPress,2004.

CARVAJAL,FrayGasparde.Descubrimientodelríodelasamazonas.Madrid:FundaciónBibliotecaVirtualMigueldeCervantes,2014.

CASTRO,EduardoViveirosde.Ainconstânciadaalmaselvagemeoutrosensaiosdeantropologia.SãoPaulo:Cosac&Naify,2013.

______.Metafísicascanibais.SãoPaulo:Cosac&Naify,2015.

COCHRAN,Gregory;HARPENDING,Henry.The10,000yearexplosion:howcivilizationacceleratedhumanevolution.NewYork:BasicBooks,2009.

CROSBY,Alfred.Imperialismoecológico:aexpansãobiológicadaEuropa900-1900.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2011.

CUNHA,ManuelaCarneiroda.HistóriadosíndiosnoBrasil.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1992.

______.ÍndiosnoBrasil:história,direitosecidadania.SãoPaulo:ClaroEnigma,2013.

DEAN,Warren.Aferroefogo:ahistóriaeadevastaçãodamataatlânticabrasileira.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1996.

DIAMOND,Jared.Guns,germsandsteel:thefatesofhumansocieties.NewYork:W.W.Norton&Company,1999.

______.Theworlduntilyesterday.NewYork:PenguinBooks,2012.

______.Thethirdchimpanzee:theevolutionandfutureofthehumananimal.NewYork:HarperPerennial,1992.

DÓRIA,Pedro.1565:enquantooBrasilnascia.RiodeJaneiro:NovaFronteira,2012.

FAUSTO,Carlos.OsíndiosantesdoBrasil.RiodeJaneiro:Zahar,2000.

FERNANDES,Florestan.Afunçãosocialdaguerranasociedadetupinambá.SãoPaulo:BibliotecaAzul,2012.

GASPAR,Madu.AarterupestrenoBrasil.RiodeJaneiro:JorgeZahar,2003.

______.Sambaqui:arqueologiadolitoralbrasileiro.RiodeJaneiro:JorgeZahar,2000.

GOMES,DeniseMariaCavalcante.CotidianoepodernaAmazôniapré-colonial.SãoPaulo:Edusp/Fapesp,2008.

HEMMING,John.Treeofrivers:thestoryoftheAmazon.NewYork:ThamesandHudson,2012.

HORNBORG,Alf;HILL,JonathanD.EthnicityinancientAmazonia.Boulder:UniversityPressofColorado,2011.

HUE,SheilaMoura(Org.).PrimeirascartasdoBrasil.RiodeJaneiro:Zahar,2006.

JALLES,Cíntia;IMAZIO,Maura.Olhandoocéudapré-história:registrosarqueoastronômicosnoBrasil.RiodeJaneiro:Mast,2004.

KNIVET,Anthony.AsincríveisaventuraseestranhosinfortúniosdeAnthonyKnivet.RiodeJaneiro:Zahar,2007.

LEVY,Buddy.Riverofdarkness:FranciscoOrellana’s legendaryvoyageofdeathanddiscoverydowntheAmazon.NewYork:Bantam,2011.

LIEBERMAN,Daniel.Thestoryofthehumanbody:evolution,healthanddisease.NewYork:Penguin,2013.

MACQUARRIE,Kim.ThelastdaysoftheIncas.NewYork:Simon&Schuster,2007.

MANN,CharlesC.1491:NewrevelationsoftheAmericasbeforeColumbus.NewYork:VintageBooks,2006.

______.1493:UncoveringtheNewWorldColumbuscreated.NewYork:GrantBooks,2011.

MARKUN,Paulo.CabezadeVaca.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2009.

MEIRELLESFILHO,João.OlivrodeourodaAmazônia.RiodeJaneiro:Ediouro,2006.

MITHEN,Steven.Aftertheice:aglobalhumanhistory20,000-5,000B.C.Cambridge:HarvardUniversityPress,2003.

MONTEIRO,JohnManuel.Negrosdaterra:índiosebandeirantesnasorigensdeSãoPaulo.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1994.

MOORE, JerryD.AprehistoryofSouthAmerica: ancient culturaldiversityon the leastknowncontinent.Boulder:UniversityPressofColorado,2014.

MORALES,WalterFagundes;MOI,FlaviaPrado.Cenáriosregionaisemarqueologiabrasileira.SãoPaulo:Annablume,2009.

MUSSA,Alberto.Meudestinoéseronça.RiodeJaneiro:Record,2008.

NAVARRO,EduardodeAlmeida.Dicionáriodetupiantigo:alínguaindígenaclássicadoBrasil.SãoPaulo:Global,2013.

______.Métodomodernodetupiantigo.SãoPaulo:Global,2005.

NEVES,EduardoGóes.ArqueologiadaAmazônia.RiodeJaneiro:Zahar,2006.

NEVES,WalterAlves;PILÓ,LuísBeethoven.OpovodeLuzia:embuscadosprimeirosamericanos.SãoPaulo:Globo,2008.

NEVES,WalterA.Umesqueletoincomodamuitagente...Campinas:EditoradaUnicamp,2013.

NORENZAYAN,Ara.BigGods:howreligionstransformedcooperationandconflict.Princeton:PrincetonUniversityPress,2013.

O’CONNOR, Loretta; MUYSKEN, Pieter (Org). The native languages of South America: origins, development, typology. Cambridge:CambridgeUniversityPress,2014.

PÄÄBO,Svante.Neanderthalman:insearchoflostgenomes.NewYork:BasicBooks,2014.

PATTERSON,BruceD;COSTA,LeonoraP.Bones,clonesandbiomes:thehistoryandgeographyofrecentneotropicalmammals.Chicago:UniversityofChicagoPress,2012.

PEREIRA,Edithe.ArterupestrenaAmazônia–Pará.Belém:MuseuParaenseEmilioGoeldi,2003.

PINKER,Steven.Thebetterangelsofournature:whyviolencehasdeclined.NewYork:Penguin,2011.

PROUS,André.OBrasilantesdosbrasileiros:apré-históriadonossopaís.RiodeJaneiro:JorgeZahar,2006.

QUEIROZ,AlanDe.Themonkey’svoyage:howimprobablejourneysshapedthehistoryoflife.NewYork:BasicBooks,2014.

SANTOS,SandraAparecidaetal.Cavalopantaneiro:rústicopornatureza.Brasília:Embrapa,2016.

SCHWARCZ,LiliaM;STARLING,Heloisa.Brasil:umabiografia.SãoPaulo,CompanhiadasLetras,2015.

SILVERMAN,Helaine;ISBELL,WilliamH.(Org.)HandbookofSouthAmericanarchaeology.NewYork:Springer,2008.

STADEN,Hans.DuasviagensaoBrasil.PortoAlegre:L&PM,2008.

TOLEDO,RobertoPompeude.Acapitaldasolidão.RiodeJaneiro:Objetiva,2012.

WADE,Nicholas.Umaherançaincômoda:genes,raçaehistóriahumana.SãoPaulo:TrêsEstrelas,2016.

WALLACE,Scott.Theunconquered:insearchoftheAmazon’slastuncontactedtribes.Danvers:BroadwayBooks,2011.

ZUK,Marlene.Paleofantasy:whatevolutionreallytellsusaboutsex,dietandhowwelive.NewYork:W.W.Norton&Co.,2013.

ARTIGOSEMPERIÓDICOSCIENTÍFICOS

ADHIKARI,Kaustubh;FONTANIL,Tania;CAL,Santiago;MENDOZA-REVILLA,Javier;FUENTES-GUAJARDO,Macarena;CHACÓN-DUQUE, Juan-Camilo; AL-SAADI, Farah; JOHANSSON, Jeanette A.; QUINTO-SANCHEZ, Mirsha; ACUÑA-ALONZO, Victor;JARAMILLO,Claudia;ARIAS,William;BARQUERALOZANO,Rodrigo;MACÍNPÉREZ,Gastón;GÓMEZ-VALDÉS,Jorge;VILLAMIL-RAMÍREZ,Hugo;HÜNEMEIER,Tábita;RAMALLO,Virginia;CERQUEIRA,CaioC. S. de;HURTADO,Malena;VILLEGAS,Valeria;GRANJA,Vanessa;GALLO,Carla;POLETTI,Giovanni;SCHULER-FACCINI,Lavinia,etal.Agenome-wideassociationscaninadmixedLatinAmericansidentifieslociinfluencingfacialandscalphairfeatures.NatureCommunications,v.7,p.10815,2016.

ALMEIDA,F.O.Aarqueologiadosfermentados:aetílicahistóriadosTupi-Guarani.EstudosAvançados:revistadoInstitutodeEstudosAvançadosdaUniversidadedeSãoPaulo,v.29,n.83,p.87-118,jan./abr.2015.

ALMEIDA,FernandoOzoriode;NEVES,EduardoGóes.EvidênciasarqueológicasparaaorigemdosTupi-GuaraninolestedaAmazônia.Mana:EstudosdeAntropologiaSocial(on-line),RiodeJaneiro,v.21,n.3p.499-525,dez.2015.

ALVES,D.T.;SCHAAN,D.P.Osbancosdecerâmicamarajoara:seuscontextosepossíveissignificadossimbólicos.Amazônica:RevistadeAntropologia(on-line),v.3,n.1,p.108-141,2011.

AMORIM,CarlosEduardoGuerra;BISSO-MACHADO,Rafael;RAMALLO,Virginia;BORTOLINI,MariaCátira;BONATTO, SandroLuis; SALZANO, Francisco Mauro; HÜNEMEIER, Tábita. A bayesian approach to genome/linguistic relationships in native SouthAmericans.PlosOne,v.8,p.64099,2013.

ARAUJO,AstolfoG.M.;NEVES,WalterA.; KIPNIS, Renato. Lagoa Santa revisited: an overview of the chronology, subsistence, andmaterialcultureofpaleoindiansitesineasternCentralBrazil.LatinAmericanAntiquity,v.23,n.4,p.533-550,Dec.2012.

BALÉE, W.; SCHAAN, D. P.; WHITAKER, J. A.; HOLANDA, R. Florestas antrópicas no Acre: inventário florestal do geoglifo TrêsVertentes.Amazônica:RevistadeAntropologia(on-line),v.6,n.1,p.140-169,2014.

BARIA, Rogério; CANO, Nilo F.; SILVA-CARRERA, Betzabel N.; WATANABE, Shigueo; NEVES, Eduardo G.; TATUMI, Sonia H.;MUNITA,CasimiroS.ArchaeometricstudiesofceramicsfromtheSãoPauloIIarchaeologicalsite.JournalofRadioanalyticalandNuclearChemistry,v.306,p.721-727,2015.

BERTIOLI,DavidJ.;SEIJO,Guillermo;FREITAS,F.O.;VALLS,JoséF.M.;LEAL-BERTIOLI,SorayaC.M.;MORETZSOHN,MarcioC.Anoverviewofpeanutanditswildrelatives.PlantGeneticResources,v.9,n.1,p.134-149,Apr.2011.

BESPALEZ, E. Arqueologia e história indígena no Pantanal. Estudos Avançados: revista do Instituto de Estudos Avançados daUniversidadedeSãoPaulo,v.29,n.83,p.45-86,jan.2015.

BIANCHINI, G. F.; DEBLASIS, P.; GASPAR, M. D.; SCHEEL-YBERT, R. Processo de formação do sambaqui Jabuticabeira-II:interpretaçõesatravésdaanáliseestratigráficadevestígiosvegetaiscarbonizados.RevistadoMuseudeArqueologiaeEtnologia,SãoPaulo,v.21,p.51-69,2011.

BORTOLINI,M.C.;GONZALEZ-JOSE,R.;BONATTO,S.L.;SANTOS,F.R.Reconcilingpre-Columbiansettlementhypothesesrequiresintegrative, multidisciplinary, andmodel-bound approaches. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States ofAmerica,v.111,p.E213-E214,2014.

CARDENAS,M.L.;CORTELETTI,R.;ROBINSON,M.;ULGUIM,P.F.;SOUZA,J.G.;IRIARTE,J.;MAYLE,F.;FARIAS,D.S.E.;DEBLASIS,P.IntegratingarchaeologyandpalaeoecologytounderstandJêlandscapesinsouthernBrazil.Antiquity,Cambridge,v.89,p.4,2015.

COPÉ,S.M.AgênesedaspaisagensculturaisdoplanaltoSulbrasileiro.EstudosAvançados:revistadoInstitutodeEstudosAvançadosdaUniversidadedeSãoPaulo,v.29,n.83,p.149-171,2015.

CORTELETTI, R.; DICKAU, R.; DEBLASIS, P.; IRIARTE, J. Análises de grãos de amido e fitólitos nas terras altas do sul do Brasil:repensandoaeconomiaemobilidadedosgruposproto-Jêmeridionais.CadernosdoLepaarq/UFPEL,v.13,n.25,p.163-196,2016.

______.Revisitingtheeconomyandmobilityofsouthernproto-Jê(Taquara-Itararé)groupsinthesouthernBrazilianhighlands:starchgrainandphytolithsanalysesfromtheBoninsite,Urubici,Brazil.JournalofArchaeologicalScience,v.58,p.46-61,2015.

CLEMENT,CharlesR;FREITAS,FabioO.DomesticationanddispersalofnativecropsinAmazonia.Tipití:JournaloftheSocietyfortheAnthropologyofLowlandSouthAmerica,v.11,n.2,p.12-15,2013.

CLEMENT, Charles R.; DENEVAN, William M.; HECKENBERGER, Michael J.; JUNQUEIRA, André Braga; NEVES, Eduardo G.;TEIXEIRA,WenceslauG.;WOODS,WilliamI.ResponsetocommentbyMcMichael,PipernoandBush.ProceedingsoftheRoyalSocietyB:BiologicalSciences,v.282,p.20152459,Dec.2015.

CLEMENT, Charles R.; DENEVAN, William M.; HECKENBERGER, Michael J.; JUNQUEIRA, André Braga; NEVES, Eduardo G.;TEIXEIRA,WenceslauG.;WOODS,WilliamI.ThedomesticationofAmazoniabeforeEuropeanconquest.ProceedingsoftheRoyalSocietyB:BiologicalSciences,v.282,p.20150813,Jul.2015.

DEAZEVEDO,Soledad;BORTOLINI,MariaC.;BONATTO,SandroL.;HÜNEMEIER,Tábita;SANTOS,FabrícioR.;GONZÁLEZ-JOSÉ,Rolando. Ancient remains and the first peopling of the Americas: reassessing the Hoyo Negro skull. American Journal of PhysicalAnthropology,v.1,p.n/a-n/a,Jan.2015.

FREITAS,FabioO.;BUSTAMANT,P.Amazonianmaize:diversity,spatialdistributionandhistoricalculturaldiffusion.Tipití:JournaloftheSocietyfortheAnthropologyofLowlandSouthAmerica,v.11,n.2,p.59-65,2013.

DEBLASIS, P.; GASPAR, M. D. Os sambaquis do sul catarinense: retrospectiva e perspectivas de dez anos de pesquisas. Especiaria:CadernosdeCiênciasHumanas(UESC),v.11,n.21/22,p.83-125,2009.

EGGERS, Sabine, PARKS, Maria, GRUPE, Gisela, REINHARD, Karl J. Paleoamerican diet, migration and morphology in Brazil:archaeologicalcomplexityoftheearliestAmericans.PlosOne,14set.2011.

GASPAR,M.D.;KLOKER,D.;BIANCHINI,G.F.Arqueologiaestratégica:abordagensparaoestudodatotalidadeeconstruçãodesítiosmonticulares.BoletimdoMuseuParaenseEmilioGoeldi.CiênciasHumanas,v.8,p.517-533,2013.

GASPAR,M.D.; KLOKER,D.; SCHEEL-YBERT, R.; BIANCHINI,G. F. Sambaqui deAmourins:mesmo sítio, perspectivas diferentes.ArqueologiadeumSambaqui30anosdepois.RevistadelMuseodeAntropología,v.6,n.1,p.7-20,2013.

GOMES, Denise Maria Cavalcante; LUIZ, José Gouvêa. Contextos domésticos no sítio arqueológico do Porto, Santarém, Brasil,identificadoscomoauxíliodageofísicapormeiodométodoGPR.BoletimdoMuseuParaenseEmílioGoeldi.CiênciasHumanas,v.8,p.639-656,2013.

GOMES,D.M.C.Operspectivismoameríndioeaideiadeumaestéticaamericana.BoletimdoMuseuParaenseEmílioGoeldi.CiênciasHumanas,v.7,p.133-159,2012.

HAZENFRATZ,Roberto;MUNITA,CasimiroS.;GLASCOCK,MichaelD.;NEVES,EduardoG.StudyofexchangenetworksbetweentwoAmazonarchaeologicalsitesbyINAA.JournalofRadioanalyticalandNuclearChemistry,v.1,p.10.1007/s10967-,2016.

HECKENBERGER,Michael.Tropicalgardencities:archaeologyandmemoryinthesouthernAmazon.CadernosdoCEOM,ano26,n.38,jun.2013.

______.LostcitiesoftheAmazon.ScientificAmerican,v.301,Oct.2009.

HECKENBERGER,MichaelJ.etal.Pre-Columbianurbanism,anthropogeniclandscapes,andthefutureoftheAmazon.Science,v.321,29Aug.2008.

HUBBE, Alex; HUBBE, Mark; NEVES, Walter A. The Brazilian megamastofauna of the Pleistocene/Holocene transition and itsrelationshipwiththeearlyhumansettlementofthecontinent.Earth-ScienceReviews,v.118,p.1-10,2013.

HUBBE,Alex;HUBBE,Mark;KARMANN,Ivo;CRUZ,FranciscoW.;NEVES,WalterA.InsightsintoHolocenemegafaunasurvivalandextinctioninsoutheasternBrazilfromnewAMS14Cdates.QuaternaryResearch,v.79,p.152-157,2013.

HUBBE,Alex;HADDAD-MARTIM,PauloM.;HUBBE,Mark;MAYER,E.L.;STRAUSS,André;AULER,AugustoS.;PILÓ,LuísB.;NEVES,WalterA.Identificationandimportanceofcriticaldepositionalgapsinpitfallcaveenvironments:thefossiliferousdepositofCuviericave,easternBrazil.Palaeogeography,Palaeoclimatology,Palaeoecology,v.312,p.66-78,2011.

HUBBE,Alex;HADDAD-MARTIM,PauloM.;HUBBE,Mark;NEVES,WalterA.Commentson:“AnanthropogenicmodificationinanEremotheriumtoothfromnortheasternBrazil”.QuaternaryInternational,v.269,p.94-96,2012.

HUBBE,Mark;OKUMURA,Mercedes;BERNARDO,DaniloV.;NEVES,WalterA.Cranialmorphologicaldiversityofearly,middle,andlateHoloceneBraziliangroups:implicationsforhumandispersioninBrazil.AmericanJournalofPhysicalAnthropology,v.155,p.546-558,2014.

HUBBE, Mark; HARVATI, Katerina; NEVES, Walter. Paleoamerican morphology in the context of European and East Asian latePleistocenevariation:implicationsforhumandispersionintothenewworld.AmericanJournalofPhysicalAnthropology,v.144,p.442-453,2011.

IRIARTE,J.;CORTELETTI,R.;SOUZA,J.G.;DEBLASIS,P.LandscapedynamicsintheLaPlataBasinduringthemidandlateHolocene.CadernosdoLepaarq/UFPEL,v.13,n.25,p.269-302,2016.

MALASPINAS, Anna-Sapfo; LAO, Oscar; SCHROEDER, Hannes; RASMUSSEN, Morten; RAGHAVAN, Maanasa; MOLTKE, Ida;CAMPOS, Paula F.; SAGREDO, Francisca Santana; RASMUSSEN, Simon; GONÇALVES, Vanessa F.; ALBRECHTSEN, Anders;ALLENTOFT,MortenE.;JOHNSON,PhilipL.F.;LI,Mingkun;REIS,Silvia;BERNARDO,DaniloV.;DEGIORGIO,Michael;DUGGAN,AnaT.;BASTOS,Murilo;WANG,Yong;STENDERUP, Jesper;MORENO-MAYAR, J.Victor;BRUNAK,Søren;SICHERITZ-PONTEN,Thomas; HODGES, Emily; HANNON, Gregory J.; ORLANDO, Ludovic; PRICE, T. Douglas; JENSEN, Jeffrey D.; NIELSEN, Rasmus;HEINEMEIER,Jan;OLSEN,Jesper;RODRIGUES-CARVALHO,Claudia;LAHR,MartaMirazón;NEVES,WalterA.;KAYSER,Manfred;HIGHAM,Thomas;STONEKING,Mark;PENA,SergioD.J.;WILLERSLEV,Eske.TwoancienthumangenomesrevealPolynesianancestryamongtheindigenousBotocudosofBrazil.CurrentBiology,v.24,p.R1035-R1037,2014.

MCMICHAEL,CrystalH.; PIPERNO,D.R.;NEVES, E.G.; BUSH,M. B.;ALMEIDA, F.O.;MONGELÓ,G.; EYJOLFSDOTTIR,M. B.PhytolithassemblagesalongagradientofancienthumandisturbanceinwesternAmazonia.FrontiersinEcologyandEvolution,v.3,p.1-15,

2015.

MCMICHAEL,C.H.;PALACE,M.W.;BUSH,M.B.;BRASWELL,B.;HAGEN,S.;NEVES,E.G.;SILMAN,M.R.;TAMANAHA,E.K.;CZARNECKI,C.Predictingpre-ColumbiananthropogenicsoilsinAmazonia.ProceedingsoftheRoyalSocietyB:BiologicalSciences,v.281,p.20132475-20132475,2014.

MORAES, Claide de Paula. O determinismo agrícola na arqueologia amazônica.Estudos Avançados: revista do Instituto de EstudosAvançadosdaUniversidadedeSãoPaulo(on-line),v.29,n.83,p.25-43,2015.

MORAES,C.P.;NEVES,E.G.Oano1000:adensamentopopulacional,interaçãoeconflitonaAmazôniaCentral.Amazônica:RevistadeAntropologia(on-line),v.4,n.1,p.122-148,2012.

NEVES,W.A.;HUBBE,Mark;STRAUSS,AndréMenezes;BERNARDO,D.V.MorfologiacranianadosremanescentesósseoshumanosdaLapadoSanto,LagoaSanta,MinasGerais,Brasil:implicaçõesparaopovoamentodasAméricas.BoletimdoMuseuParaenseEmílioGoeldi.CiênciasHumanas,v.9,p.715-740,2014.

NEVES, Walter Alves; BERNARDO, Danilo Vicensotto; OKUMURA, Mercedes; ALMEIDA, Tatiana Ferreira de; STRAUSS, AndréMenezes.OrigemedispersãodosTupi-Guarani: oquediz amorfologia craniana?BoletimdoMuseuParaenseEmílioGoeldi.CiênciasHumanas,v.6,p.95-122,2011.

OKUMURA,MariaMercedesM. et al.Auditory exostoses as an aquatic activitymarker: a comparisonof coastal and inland skeletalremainsfromtropicalandsubtropicalregionsofBrazil.AmericanJournalofPhysicalAnthropology,v.132,n.4,Apr.2007.

PALMER, S.A.;CLAPHAM,A. J.; ROSE, P.; FREITAS, F.O.;OWEN,B.D.; BERESFORD-JONES,D.;MOORE, J.D.;KITCHEN, J. L.;ALLABY,R.G.Archaeogenomicevidenceofpunctuatedgenomeevolutioningossypium.MolecularBiologyandEvolution,v.29,p.2031-2038,2012.

PARSSINEN,M.; SCHAAN,D. P.; RANZI,A. Pre-Columbian geometric earthworks in the upper Purus: a complex society inwesternAmazonia.Antiquity,Cambridge,v.83,p.1084-1095,2009.

PRESTES-CARNEIRO,Gabriela;BÉAREZ,Philippe;BAILON,Salvador;RAPPPY-DANIEL,Anne;NEVES,EduardoGóes.SubsistencefisheryatHatahara(750-1230CE),apre-ColumbiancentralAmazonianvillage.JournalofArchaeologicalScience:Reports,v.xx,p.1,2015.

RAMALLO,Virginia;BISSO-MACHADO,Rafael;BRAVI,Claudio;COBLE,MichaelD.;SALZANO,FranciscoM.;HÜNEMEIER,Tábita;BORTOLINI,MariaCátira.DemographicexpansionsinSouthAmerica:enlighteningacomplexscenariowithgeneticandlinguisticdata.AmericanJournalofPhysicalAnthropology,v.150,p.453-463,2013.

RIBEIROFILHO,A.A.;ADAMS,C.;MANFREDINI,S.;AGUILAR,R.;NEVES,W.A.Dynamicsof soil chemicalproperties in shiftingcultivationsystemsinthetropics:ameta-analysis.SoilUseandManagement,v.31,p.n/a-n/a,2015.

RUIZ-LINARES,Andrés;ADHIKARI,Kaustubh;ACUÑA-ALONZO,Victor;QUINTO-SANCHEZ,Mirsha;JARAMILLO,Claudia;ARIAS,William;FUENTES,Macarena;PIZARRO,María;EVERARDO,Paola;DEAVILA,Francisco;GÓMEZ-VALDÉS,Jorge;LEÓN-MIMILA,Paola; HÜNEMEIER, Tábita; RAMALLO, Virginia; CERQUEIRA, Caio C. Silva de; BURLEY,Mari-Wyn; KONCA, Ezra; OLIVEIRA,Marcelo Zagonel de; VERONEZ,Mauricio Roberto; RUBIO-CODINA,Marta; ATTANASIO, Orazio; GIBBON, Sahra; RAY, Nicolas;GALLO,Carla;POLETTI,Giovannietal.AdmixtureinLatinAmerica:geographicstructure,phenotypicdiversityandself-perceptionofancestrybasedon7,342individuals.PLOSGenetics(on-line),v.10,p.e1004572,2014.

SCHAAN,D.P.Arqueologiaparaetnólogos:colaboraçõesentrearqueologiaeantropologianaAmazônia.AnuárioAntropológico,v.39,p.13-44,2014.

______.Long-termhumaninducedimpactsonMarajóIslandlandscapes,Amazonestuary.Diversity,v.2,p.182-206,2010.

______.Sobreoscacicadosamazônicos:suavidabreveesuamorteanunciada.JangwaPana,v.9,n.1,p.45-64,2010.

______.AAmazôniaem1491.Especiaria:CadernosdeCiênciasHumanas(UESC),v.11,n.21/22,p.55-82,2009.

SCHAAN,D.P.;SAUNALUOMA,Sanna.MonumentalityinwesternAmazonianformativesocieties:geometricditchedenclosuresintheBrazilianstateofAcre.Antiqua,v.2,p.1-11,2012.

SCHAAN,D.P.;PARSSINEN,M.;SAUNALUOMA,S.;RANZI,A.;BUENO,M.;BARBOSA,AntoniaDamasceno.NewradiometricdatesforPre-Columbian(2000-700B.P.)earthworksinwesternAmazonia,Brazil.JournalofFieldArchaeology,v.37,p.132-142,2012.

SCHAAN,D.P.;BUENO,M.;RANZI,A.;BARBOSA,AntoniaDamasceno;SILVA,Arlan;CASAGRANDE,Edegar;RODRIGUES,AllanaIginaMaia;DANTAS,Alessandra;RAMPANELLI,Ivandra.Construindopaisagenscomoespaçossociais:ocasodosgeoglifosdoAcre.RevistadeArqueologia:SociedadedeArqueologiaBrasileira,v.23,p.30-41,2010.

SCHMIDT,MorganJ.;RAPPPY-DANIEL,Anne;MORAES,ClaidedePaula;VALLE,RaoniB.M.;CAROMANO,CarolineF.;TEXEIRA,WenceslauG.;BARBOSA,CarlosA.;FONSECA,JoãoA.;MAGALHÃES,MarcosP.;SANTOS,DanielSilvadoCarmo;SILVA,RenandaSilvae;GUAPINDAIA,VeraL.;MORAES,Bruno;LIMA,HelenaP.;NEVES,EduardoG.;HECKENBERGER,MichaelJ.DarkearthsandthehumanbuiltlandscapeinAmazonia:awidespreadpatternofanthrosolformation.JournalofArchaeologicalScience,v.42,p.152-165,2014.

SILVA,F.M.;SHOCK,M.P.;NEVES,E.G.;SCHEEL-YBERT,R.VestígiosmacrobotânicoscarbonizadosnaAmazôniaCentral:oqueelesnosdizemsobreasplantasnapré-história?CadernosdoLepaarq/UFPEL,v.13,n.25,p.366-385,2016.

SKOGLUND, P.; MALLICK, S.; BORTOLINI, M. C.; CHENNAGIRI, N.; HÜNEMEIER, T.; PETZL-ERLER, María Luiza; SALZANO,FranciscoMauro;PATTERSON,N.;REICH,David.GeneticevidencefortwofoundingpopulationsoftheAmericas.Nature,v.1,p.1,2015.

SODERSTROM,M.; ERIKSSON, J.; ISENDAHL, C.; SCHAAN,D. P.; STENBORG, P.; REBELLATO, L.; PIIKKI, K. Sensormapping ofAmazoniandarkearthsindeforestedcroplands.Geoderma,Amsterdam,v.281,p.58-68,2016.

SODERSTROM,M.;ERIKSSON,J.;ISENDAHL,C.;ARAUJO,S.R.;REBELLATO,L.;SCHAAN,D.P.;STENBORG,P.UsingproximalsoilsensorsandfuzzyclassificationsformappingAmazoniandarkearths.AgriculturalandFoodScience,v.22,p.380-389-389,2013.

SOUZA,J.G.;CORTELETTI,R.;ROBINSON,M.;IRIARTE,J.Thegenesisofmonuments:resistingoutsidersinthecontestedlandscapesofsouthernBrazil.JournalofAnthropologicalArchaeology,v.41,p.196-212,2016.

SOUZA,J.G.;ROBINSON,M.;CORTELETTI,R.;CARDENAS,M.L.;WOLF,S.;IRIARTE,J.;MAYLE,F.;DEBLASIS,P.UnderstandingthechronologyandoccupationdynamicsofoversizedpithousesinthesouthernBrazilianhighlands.PlosOne,v.11,p.e0158127,2016.

STENBORG,P.;SCHAAN,Denise;LIMA,A.M.A.PrecolumbianlanduseandsettlementpatternintheSantarémregion,lowerAmazon.Amazônica:RevistadeAntropologia,v.4,n.1,p.222-250,2012.

STRAUSS,André;OLIVEIRA,RodrigoElias;BERNARDO,D.V.;SALAZAR-GARCÍA,DomingoC.;TALAMO,Sahra;JAOUEN,Klervia;HUBBE,Mark;BLACK,Sue;WILKINSON,Caroline;RICHARDS,MichaelPhillip;ARAUJO,AstolfoG.M.;KIPNIS,Renato;NEVES,W.A.TheoldestcaseofdecapitationintheNewWorld(LapadoSanto,East-CentralBrazil).PlosOne,v.10,p.e0137456,2015.

STRAUSS,André;HUBBE,Mark;NEVES,W.A.;BERNARDO,D.V.;ATUÍ, JoãoPauloV.The cranialmorphologyof theBotocudoindians,Brazil.AmericanJournalofPhysicalAnthropology,v.10,p.n/a-n/a,2015.

STRAUSS,A.;KOOLE,E;OLIVEIRA,Rodrigo;INGLEZ,M;NUNES,T.;GLORIA,Pedroda;ROBAZZINI,A;COSTA,F;NEVES,W.A.Twodirectlydatedearlyarchaicburialsfrompains,StateofMinasGerais,Brazil.CurrentResearchinthePleistocene,v.28,p.123-124,2012.

WATLING,Jennifer;SAUNALUOMA,Sanna;PÄRSSINEN,Martti;SCHAAN,Denise.Subsistencepracticesamongearthworkbuilders:phytolithevidencefromarchaeologicalsitesinthesouthwestAmazonianinterfluves.JournalofArchaeologicalScience:Reports,v.4,p.541-551,2015.1499–ABrasilantesdeCabral

Sobreoautor

Reinaldo JoséLopes é repórter, colunista eblogueiroda editoriadeCiênciadaFolhadeS.Paulo,queelechefioude2010a2013.Nascidoem1978,emSãoCarlos(SP),formou-seemjornalismopelaUSP,ondetambémfezmestradoedoutoradonaáreadeliteraturainglesa,comtrabalhossobreaobrade J.R.R.Tolkien. Sua especialidade é a coberturadas ciências que investigamopassado remoto, emespecial a arqueologia, apaleontologia e abiologia evolutiva.Ganhouem2017oPrêmio JoséReis, omaisimportantevoltadoàdivulgaçãocientíficanoBrasil.