da utopia da comunicao comunicao sem utopia · ... a constituição e o desenvolvimento do sistema...

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Instituto de Ciências Sociais Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade http://www.cecs.uminho.pt Da utopia da comunicação à comunicação sem utopia. Metamorfose no sistema e nas relações de comunicaçãonos últimos trinta anos em Portugal Moisés de Lemos Martins Professor Catedrático [email protected] Universidade do Minho Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade Campus de Gualtar 4710-057 Braga Portugal 2004 Intervenção na primeira sessão plenária do V.º Congresso Português da Associação Portuguesa de Sociologia, realizado por esta Associação na Universidade do Minho, de 12 a 15 de Maio de 2004, a ser publicada nas Actas. Tema da sessão Plenária: Sociedade Portuguesa: 30 anos de Transformações Sociais. Participaram nesta sessão, além de Moisés de Lemos Martins, Engrácia Leandro, João Ferreira de Almeida, João Freire, Manuel Villaverde Cabral, Maria de Lourdes Lima dos Santos.

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Instituto de Ciências Sociais

Centro de Estudos de Comunicação e Sociedadehttp://www.cecs.uminho.pt

Da utopia da comunicação à comunicação sem utopia.

Metamorfose no sistema e nas relações de comunicaçãonos últimos trinta anos em Portugal∗

Moisés de Lemos Martins Professor Catedrático

[email protected]

Universidade do Minho Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade

Campus de Gualtar 4710-057 Braga

Portugal

2004

∗Intervenção na primeira sessão plenária do V.º Congresso Português da Associação

Portuguesa de Sociologia, realizado por esta Associação na Universidade do Minho, de 12 a 15 de Maio de 2004, a ser publicada nas Actas. Tema da sessão Plenária: Sociedade Portuguesa: 30 anos de Transformações Sociais. Participaram nesta sessão, além de Moisés de Lemos Martins, Engrácia Leandro, João Ferreira de Almeida, João Freire, Manuel Villaverde Cabral, Maria de Lourdes Lima dos Santos.

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Resumo Debatemos, de um modo sintético e esquemático, as mudanças ocorridas em Portugal, ao longo dos últimos trinta anos, na comunicação em geral e no panorama dos media em particular. Defendemos o ponto de vista de que se passou, em Portugal, através de mudanças efectivas no sistema de comunicação social, e também de metamorfoses acentuadas na atmosfera da vida social e política, de uma utopia da comunicação, que é, na realidade, uma utopia de comunidade, a uma comunicação sem utopia, ou seja, manifestamente, a um simulacro de comunidade. Da utopia da comunicação à comunicação sem utopia. Metamorfoses no sistema e

nas relações de comunicação nos últimos trinta anos em Portugal*.

1. Utopia e simulacro

Ao esboçar o quadro de tão abrangente quão complexa realidade, como seja

debater, de um modo sintético e esquemático, as mudanças ocorridas na comunicação

em geral, e no panorama dos media em particular, ao longo dos últimos trinta anos,

defendo o ponto de vista de que passámos em Portugal, através de mudanças efectivas

no sistema de comunicação social, e também de metamorfoses acentuadas na atmosfera

da vida social e política, de uma utopia da comunicação, que é, na realidade, uma

utopia de comunidade, a uma comunicação sem utopia, ou seja, manifestamente, a um

simulacro de comunidade.

2. A nossa modernidade

Esta transformação do sentido da comunicação, em Portugal, acompanha,

evidentemente, a constituição e o desenvolvimento do sistema mediático na época

contemporânea. Se interrogarmos o que significam deste ponto de vista os anos oitenta

e noventa nas sociedades cosmopolitas e industriais, dar-nos-emos conta de que estes

anos conhecem um inusitado e fulgurante desenvolvimento das indústrias culturais.

Não falo apenas dos produtos culturais de massa, designadamente da televisão ou do

cinema. Refiro-me também aos multimédia e à sua crescente integração, através do

computador e dos sistemas sem fios, como acontece hoje, por exemplo, com os

telemóveis. A terceira vaga anunciada por Alvin Tofler caracteriza-se pela

desmassificação da cultura, pela pluralidade de públicos e de mercados, e também pela

* Agradeço os comentários feitos e as sugestões dadas pelos meus colegas Bragança de Miranda, Manuel

Pinto, Helena Sousa e Felisbela Lopes.

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integração de fenómenos como as artes, a publicidade, a moda, a música, a dança, o

turismo e as férias, no espaço da cultura mediática.

Com uma origem modesta na Guerra Fria e nas redes universitárias, a informática

e a electrónica foram mobilizadas, depois do colapso do bloco soviético, em finais dos

anos oitenta, para formarem a sociedade da informação, ou das redes. Na consequência

deste processo, a Internet passou para o centro de uma cultura cada vez mais

cosmopolita e intensificou-se a globalização das economias e dos mercados.

Caracterizando a sociedade moderna na actual fase do seu desenvolvimento,

Gianni Vattimo (1991: 12) fala da nossa sociedade como de uma “sociedade da

comunicação generalizada”. Procurando explicá-la melhor, Manuel Castells (2002)

utiliza, por sua vez, a metáfora da “rede”. E diz o seguinte: vivemos “um período

caracterizado pela transformação da nossa ‘cultura material’ operada por um novo

paradigma organizado em torno das tecnologias da informação” (Castells, 2002: 33).

No conceito de tecnologias da informação, Castells inclui “o conjunto convergente de

tecnologias em micro-electrónica, computação (software e hardware),

telecomunicações/radiodifusão e óptico-electrónica”, e até a engenharia genética e as

suas aplicações (Ibid.: 34).

Sempre na tentativa de uma melhor caracterização da sociedade moderna, Lash e

Urry (1994: 16) falam, por sua vez, de “paradigma do vídeo” e Olivier Donnat (1994:

284) de “cultura do ecrã”. E há quem fale de cultura digital, como, por exemplo,

Howard Rheingold, Peter Weibel e Derrick de Kerckhove, e de cibercultura, de que

lembro Donna Haraway, Mark Dery, Steven Shaviro, Jean Baudrillard, Pierre Lévy e

Paul Virilio.

A viver, é um facto, de pleno direito, desde Abril de 1974, a sua condição de país

democrático no convívio das nações livres e democráticas da Europa e do mundo,

Portugal guindou-se à condição de país moderno em 1986, com a adesão à Comunidade

Económica Europeia, hoje União Europeia, e vive, como todas as sociedades modernas,

uma cada vez mais obsessiva fixação no paradigma comunicacional. O Estado Novo

havia impedido o mais que pudera essa abertura. Mas nas novas condições políticas,

com a proliferação de jornais, a liberalização da Rádio e da Televisão, os modos de

controlo e de censura então existentes tornaram-se obsoletos. Entretanto, em Junho de

1995, cria-se a RTP Internacional, e em Março de 1997, a RTP África. O ensino da

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Comunicação chegara, por sua vez, à Universidade, em 1979, com a primeira

licenciatura a ser criada na Universidade Nova de Lisboa1.

Pode dizer-se, sim senhor, que, também em Portugal, o desenvolvimento das

indústrias culturais, que incluem os media, tornou hegemónica no nosso tempo a

cultura mediática. A culminação deste processo fez confluir, num mesmo sentido, a

comunicação, o consumo e o lazer, fechando deste modo o ciclo da estruturação de

Portugal como sociedade moderna.

Convocando as palavras de Augusto Santos Silva (2002, 146), penso que tem

sentido afirmar que a confluência do consumo, do lazer e da comunicação fecha o ciclo

da nossa modernidade, em todos os seus aspectos: no plano das rotinas da acção; nos

ritmos do espaço e do tempo; nos padrões de conhecimento e de reflexividade; no

contexto da nossa relação com os outros; enfim, nos valores e símbolos que organizam

a nossa vida de todos os dias.

Assim, se aceitarmos a caracterização que Edgar Morin (1994.: 329-335) faz da

cultura de massas para os anos que vão de 1910 a 1970, haverá que falar hoje de uma

passagem acelerada para uma atmosfera pós-moderna na sociedade ocidental, sem que,

todavia, se tenha verdadeiramente desenvolvido em Portugal nesses anos uma cultura

de massas, o que explica que a cultura e a arte pop mal tenham tido importância entre

nós. Todavia, entrando em aceleração pelos anos setenta e oitenta, Portugal

desenvolveu em pouco tempo uma cultura de massas e desembocou neste mundo,

largamente globalizado e centrado na exploração de novos suportes e de novas formas

de comunicação. Refiro-me à generalização dos telemóveis, cujos modelos mais

avançados tecnologicamente permitem o registo fotográfico, o registo fílmico, a ligação

on line wireless e a escrita em word, que se vulgarizou como as velhas máquinas de

escrever. Refiro-me igualmente ao computador, às consolas de jogos electrónicos, às

cassettes áudio, ao DVD, ao multimédia, ao on line e ao ciberespaço.

É indubitável, portanto, também em Portugal, a presença maciça do computador

na cultura. Essas novas possibilidades de interacção electrónica e wireless têm

1 Actualmente existem vinte e sete cursos superiores na área das Ciências da Comunicação, em

vinte e uma instituições do ensino superior universitário e politécnico. As respectivas vagas de ingresso perfaziam o total de 1243 alunos, no ano lectivo de 2003/2004. Em 1998, foi fundada a Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação (Sopcom). Em 1999, realizou-se na Gulbenkian o primeiro Congresso desta Associação. Em Abril de 2004, realizou-se na Covilhã o VI Congresso Lusófono e o II Congresso Ibérico de Ciências da Comunicação. Em Outubro de 2003, são pela primeira vez avaliados pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia oito unidades de investigação de Ciências da Comunicação.

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relançado e intensificado as práticas de convivialidade e de oralidade, que se realizam

no consumo, na apresentação do corpo e na música; que se realizam, também, naquilo

que alguns chamam de novas tribos urbanas e suburbanas; e que se realizam, enfim, na

afirmação de símbolos e de modelos juvenis (Maffesoli, 1988; Pais, 2004; Silva, 2002;

Miranda, 2002).

É um facto, as tecnologias, em geral, e as novas tecnologias da informação, em

particular, subvertem o quadro de conjunto em que se desenrolam as rotinas de acção

da vida contemporânea. E, fazendo-o, subvertem e reconstroem, não apenas todo o

imaginário infantil, como também o nosso imaginário social.

Neste entendimento, o Portugal moderno e cosmopolita é o Portugal que tem no

centro do espaço doméstico a televisão, cada vez mais integrada com vídeo, telefone e

computador (a televisão, que é uma máquina racional de produção e de administração

de afectos, como é hoje, aliás, da natureza de todos os media). O Portugal moderno e

cosmopolita é o Portugal que tem, também, no centro do consumo, a publicidade; no

centro do lazer, a animação urbana; e, no centro da expressão juvenil, a música, a dança

e o concerto. O Portugal moderno e cosmopolita é o Portugal que tem, ainda, a moda no

centro da apresentação de si e o turismo e as férias no centro da evasão simbólica. O

Portugal moderno e cosmopolita é, finalmente, o Portugal que tem no centro da relação

de comunicação a Internet, que realiza o computador como "máquina universal", na

expressão certeira de Alan Turing.

3. Media e Cidadania

Sendo meu intuito referir os aspectos que me parecem mais significativos da

evolução e das transformações ocorridas no panorama dos media em Portugal, de 1974

para cá, vou circunscrever-me, todavia, à imprensa escrita e ao audiovisual, e deixar de

lado várias outras dimensões da indústria cultural, no caso, o livro, o cinema e o vídeo.

Farei, deste modo, um caminho paralelo àquele que foi percorrido há anos por Mário

Mesquita (1994), no texto que escreveu para o livro Portugal – 20 anos de democracia,

organizado por António Reis.

Falando do sistema de comunicação social nascido há trinta anos, devo salientar

que a ideia de uma utopia da comunicação está naturalmente associada ao fim da

censura exercida sobre os media pelo salazarismo-marcelismo e ao funcionamento livre

da comunicação social na sociedade livre e democrática nascida com o 25 de Abril de

1974. Mário Mesquita (1994: 383) refere que este sistema se ergueu sobre seguintes

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elementos estruturais: “a propriedade estatal da televisão; a partilha das principais

estações de rádio entre o Estado (Radiodifusão Portuguesa) e a Igreja Católica (Rádio

Renascença); a coexistência do sector público e sector privado na área da imprensa

escrita, embora em clima de permanente guerrilha”.

Foram questões decisivas em Portugal, nos anos que se seguiram ao 25 de Abril, o

debate da liberdade de imprensa e a polémica sobre controlo dos media. Num clima de

guerrilha interpartidária, que teve como momentos paroxísticos os casos República e

Rádio Renascença, ambos em 1975, eram então frequentes as greves e os movimentos

de protesto contra a interferência governamental em órgãos de informação públicos. E

entre estes órgãos tinha papel de destaque a RTP2.

Estas questões não foram, contudo, de modo nenhum resolvidas com o livre

funcionamento dos media. Não o foram com a publicação da Lei de Imprensa, em

Fevereiro de 1975, nem com a aprovação da Constituição da República, em Março de

1976. Assim como também o não haviam sido com a nacionalização dos media de

referência (os jornais diários, Diário de Notícias, Jornal de Notícias, O Século e A

Capital), que ocorreu com a nacionalização da banca e dos seguros, na sequência do 11

de Março de 1975.

Por largos anos, que praticamente se prolongaram até final da década de oitenta, a

utopia de uma comunicação livre chocou não apenas com as mais variadas tentativas

para a controlar, vindas aliás dos mais desencontrados sectores, como chocou também

com a vontade do poder político em a instrumentalizar.

Poderei dizer, em síntese, que muitas das transformações por que passou o sistema

mediático português, nos últimos trinta anos, exprimem as mudanças que sacudiram a

sociedade portuguesa. Mas, por outro lado, também as aprofundou. Acontece ainda que,

se nuns casos algumas dessas transformações foram de natureza endógena (por

exemplo, a manhã inaugural de 25 de Abril, o fecho do período revolucionário a 25 de

Novembro de 1975, a adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia em

1986), noutros elas exprimiram movimentos sociais e correntes transnacionais, que

ultrapassaram largamente os limites do território nacional (entre outros, os casos da

implosão do bloco soviético e do consequente fim da Guerra Fria, em 1989, assim como

as duas recentes vagas de alargamento da União Europeia, mais ligeira a primeira, em 2 Sobre a televisão em Portugal, ver, para o período salazarista, a tese de doutoramento de Rui Cádima, publicada em livro, em 1996, com o título Salazar, Caetano e a Televisão Portuguesa. Também para o período salazarista, mas sobretudo para os anos que se seguiram ao 25 de Abril de 1974, ver o artigo de Helena Sousa & Luís Santos (2003).

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Janeiro de 1995, com a adesão de três países, mais profunda a segunda, em Maio de

2004, com a adesão de dez países).

4. O poder dos media

Uma coisa é certa, nos anos noventa, já dificilmente os Governos conseguem

controlar os media. O ainda recente caso Marcelo Rebelo de Sousa, que por alegadas

pressões do poder político e económico, se viu forçado, no Outono de 2004, a cancelar

o comentário político que nos últimos quatro anos ininterruptamente fez na TVI, não

deixa antever qualquer mudança neste veredicto. Cada vez mais condicionados pela

agenda televisiva e pela sacramental hora do telejornal das vinte horas, os políticos

parecem ter perdido a guerra do controle dos media.

No primeiro quinquénio dos anos noventa, com os jornais O Independente e

Público, também com a TSF – Rádio Jornal, e ainda com os canais de televisão SIC –

Sociedade Independente de Comunicação e TVI – Televisão Independente, projectos

jornalísticos então acabados de ser lançados (o semanário O Independente em 1988, o

jornal Público em 1990, a TSF em 1988, a SIC em 1992 e a TVI em 1993), os media

invertem a situação e ganham um novo protagonismo na sociedade portuguesa. Deu-se,

entretanto, a total reprivatização da imprensa escrita de referência, do Jornal de

Notícias, ao Diário de Notícias e à Capital. A Rádio Comercial foi também privatizada.

E as rádios locais que, num primeiro momento, haviam enxameado caoticamente o

espaço hertziano, sendo conhecidas como “rádios piratas”, vêem definido em 1989 o

seu quadro legal, pelo que, a partir dessa data, têm as emissões legalizadas, ou em vias

de o serem.

Nestas novas condições, que coincidiram com a coabitação Soares/Cavaco, os

media como que chamam a si a iniciativa política e parecem impor-se aos políticos,

condicionando-lhes a agenda. Vai neste sentido, por exemplo, a tese de Estrela Serrano

(2002)3 sobre as Presidências Abertas de Mário Soares, que tanto desmoralizaram o

Governo de Cavaco Silva. Defende esta autora que essas Presidências Abertas foram

pensadas em função da agenda da SIC.

3 Tenaz arauto deste modo de fazer jornalismo, condicionando a política e impondo-se aos políticos, a SIC ascendeu à liderança das audiências em 1995. Como exemplo emblemático de condicionamento da política pelos media, lembro os seus programas, Praça Pública (com o cidadão comum no centro de cena) e Noite da Má Língua (talk-show de mordaz crítica política). Lembro, também, os debates moderados por Miguel Sousa Tavares e Judite de Sousa, em conjunto, ou então isoladamente. Lembro, ainda, ao nível da imprensa escrita, o papel desempenhado pelo semanário O Independente na queda de alguns ministros.

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5. Imaginário trágico e melancolia

No segundo quinquénio dos anos noventa, todavia, os media deixaram de ser um

actor preponderantemente político e passa a ter um cunho eminentemente social.

Convoca as figuras de cidadão comum e de quotidiano. E dá um estatuto kitsch e

estético à democracia. Sobretudo desde a entrada no novo século, os media consomem-

se em sensação, emoção e sedução.

Na televisão vence o formato Big Brother (data de Setembro de 2000 a primeira

emissão), com a Quinta das Celebridades a ser, em 2004, a sua expressão de ponta4.

Este formato exprime a reorganização da relação do espaço privado com o espaço

público, impondo no espaço público o espaço privado, quero dizer, impondo no espaço

público o espaço da intimidade. Na imprensa escrita ganham importância, entretanto, os

projectos jornalísticos que se voltam para a conquista de compradores, e não

propriamente para a conquista de leitores. Falo dos jornais diários, de expressão

nacional, 24 Horas e Correio da Manhã. O 24 Horas viu as suas vendas subirem 110%

de Setembro de 1998 a Setembro de 2003; e, no mesmo período, o Correio da Manhã

subiu as suas vendas 55%.

Surge, entretanto, um fenómeno novo no jornalismo, a blogosfera, com o primeiro

blog a ser criado em Portugal em 20015. E é interessante verificar que este fenómeno

irrompe fora dos media tradicionais e da política dos seus proprietários, pelo que

também não obedece às rígidas regras do estilo redactorial. O florescimento destas

experiência, e também a democratização do tratamento da imagem e do som pela

utilização do vídeo digital, revelam as extraordinárias potencialidades que a nova

situação propicia.

Chegados, com efeito, aos anos noventa, penso ser possível associar o

funcionamento dos media à ideia de um trágico social. Esta ideia alude à crise da época,

ao seu mal-estar, alguns dirão, à crise da modernidade (Lyotard, 1979, 1993; Miranda,

1997, 2000). Os media exprimem a crise da época, o seu mal-estar, mas aprofundam

também esta crise e este mal-estar (Martins, 2002b)

4 A partir de Setembro de 2000, com o “reality show” Big Brother, a TVI alcança a liderança das audiências em horário nobre. 5 Em Janeiro de 2001, António Granado cria o primeiro blog. Em Fevereiro de 2002, o curso de mestrado de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho cria também o seu blog. É a partir de 2003 que o fenómeno blog se generaliza, quando várias figuras públicas, entre as quais Pacheco Pereira, criam um blog pessoal. O primeiro encontro nacional de blogs realiza-se ainda no Verão de 2003, na Universidade do Minho.

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Esta tendência está associada à perda de influência da imprensa escrita e à

hegemonia crescente do audiovisual, designadamente à hegemonia da televisão6. Os

meios de comunicação social como que nos falam de um fatum que se abate sobre a

comunidade e que ribomba constantemente por cima das nossas cabeças. Os media,

sobretudo a televisão, deixaram praticamente de se ocupar de informação. Ocupam-se

antes das últimas do destino, seja da última fatalidade (quedas de pontes, incêndios nas

florestas, infanticídios sórdidos, calamidades naturais, reformas douradas de políticos,

suspensão de obras em túneis viários, encerramentos de túneis ferroviários), seja da

última bem-aventurança (derramada na terra por um pontapé que tenha levado uma bola

de futebol às redes de uma baliza, ou por um qualquer loto ou jackpot, nacional ou

europeu), uma e outra chegadas de Delfos, a todo o instante, e proclamadas pela voz do

Tirésias de serviço, cujo castigo já não é a cegueira, mas o regresso quotidiano ao

torvelinho desse melancólico lugar.

6. Um corpo em ruína

A ideia de um trágico social anda associada hoje à ruína do corpo na sociedade

contemporânea. E com corpos individuais em ruína e com corpos sociais igualmente em

ruína, a comunidade vive melancolicamente. Por sua vez os media exprimem e

aprofundam esta melancolia.

A comunidade apresenta-nos hoje, de facto, corpos individuais em ruína efectiva.

Desses corpos fazemos um estaleiro para dietas, limpezas, liftings, implantes e próteses.

Mas este corpo, em ruína efectiva, sonha melancolicamente com os modelos das

passerelles da moda, com os modelos fotográficos, com o glamour das estrelas de

6 Diga-se, todavia, que a hegemonia do audiovisual sobre a imprensa escrita não é em Portugal um fenómeno recente. Segundo números divulgados pelo Conselho de Imprensa, e referidos por Mário Mesquita (1994: 384), Portugal tinha no início da década de oitenta a mais baixa capitação de jornais diários da Comunidade Europeia (45 jornais por dia em cada mil habitantes, contra 79 jornais em Espanha e 102 jornais na Grécia). Além disso, já por toda a década de oitenta havia em Portugal uma tendência para a diminuição gradual da venda dos jornais: em 1983, vendiam-se 136 milhões; em 1984, 127 milhões; em 1985, 110 milhões. De acordo com dados relativos ao ano de 1983, divulgados pelo Group European of Audience Researchers (apud Mesquita, 1994: 385), Portugal situava-se no último lugar, entre dezassete países europeus, no que se refere à utilização diária da televisão, rádio e imprensa, sendo também no nosso país que se verificava a maior distância entre a audiência do audiovisual e da imprensa escrita. Em 1983, os valores médios de utilização diária dos media em Portugal foram de 71% para a TV, 37% para a rádio e 19% para a imprensa, quando em Espanha os valores médios de utilização diária dos media foram de 80% para a TV, 61% para a rádio e 34% para a imprensa. Esta situação apresenta um significativo contraste com o que se verificava em países do Norte da Europa. Na RFA, os valores foram os seguintes, no mesmo ano de 1983: 80% para a TV, 76% para a rádio; 84% para a imprensa. E na Grã-Bretanha foram: 72% para a TV, 53% para a rádio, 83% para a imprensa.

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cinema e com o corpo ginasticado dos desportistas. Ou então, sonha melancolicamente

com as viagens tranquilas e sem risco, que as novas tecnologias e os media lhe

prodigam em fartos borbotões ao reino da evasão, do exotismo e do fantástico (Martins,

2003).

Por outro lado, a comunidade apresenta-nos um corpo social também em efectiva

ruína: a persistente abstenção eleitoral traduz e aprofunda a crise do sistema

representativo; o rotativismo dos partidos no poder não traz nenhuma nova política,

nenhuma alternativa; os indicadores de participação e de cidadania estão no seu ponto

mais baixo7. E, no entanto, este corpo social em ruína sonha melancolicamente. Do

ideal democrático sobra-lhe apenas um efeito estético, uma exaltação, uma indignação,

seja em casos de gestão danosa, corrupção e tráfico de influências (os casos Moderna e

Apito Dourado), seja em casos de corrupção de menores e de lenocínio (o caso Casa

Pia), seja em casos de alarme social, provocado pela multiplicação das casas de alterne

em aldeias recônditas (o caso Mães de Bragança), seja em casos de ilegítima pressão

governamental sobre a comunicação social para a condicionar (casos Marcelo Rebelo de

Sousa e Diário de Notícias).

Eu diria, com as palavras de Lyotard, e concluo o meu ponto de vista, que este

corpo, que se consome em melancolia, não exprime nenhuma finalidade. Exprime

apenas o seu sofrimento, “um sofrimento de finalidade” (Lyotard, 1993: 93). No

entanto, é também verdade que o trauma provocado pelo desaparecimento da confiança

na comunidade histórica, assim como a melancolia que acompanha a banalização da

vida, essa vertiginosa sensação de um trágico sem tragédia, além da própria

impossibilidade de anulá-los, reclamam que nos recoloquemos no horizonte de uma

comunidade partilhada, pois é nesse horizonte que se joga a salvaguarda das

possibilidades da (a)ventura humana (Agamben, 1993).

7 Este diagnóstico levou Michel Maffesoli a falar, já em 1992, de “transfiguração do político” e de “tribalização do mundo”.

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