da sutura a rasura
TRANSCRIPT
Da sutura a rasura: A costura de Edith Derdyk
Andrea Menezes Masagão*
Na infância Berlinense Walter Benjamim nos fala do labirinto e mais
precisamente da posição da criança diante do labirinto na qual o desejo de exploração
supera o medo diante da desorientação, como se ela soubesse que só poderá reencontrar-
se se ousar perder-se. Segundo Gagnebin (2007) a figura do labirinto em Benjamim
revela o avesso, o oculto das obras culturais, das cidades e dos livros. Assim, a criança
penetra nos livros como o adulto diante da cidade desconhecida, para perder-se em um
labirinto de histórias e de leituras. A caixa de costura descreve essa dimensão labiríntica e
subterrânea. Trata-se de um jogo de papel oferecido `as crianças como exercício
preliminar a prática da escrita. Benjamim aponta que a criança não borda o papel apenas
para ver os desenhos que vão surgindo em sua superfície, mas o verdadeiro encanto está
no lado do avesso do papel no qual se escreve um labirinto de fios, traços emaranhados
que revelam a dimensão oculta do desejo humano.
Lacan serve-se de uma metáfora para nos fazer compreender como o corpo é
marcado por traços que não podemos ver nem compreender e que nos fazem endereçar a
um outro um pedido de leitura.Trata-se de um costume antigo, segundo o qual o escravo
tinha seu destino, sua condenação à morte, tatuada no couro cabeludo enquanto dormia.
O corpo é então uma apresentação de leitura. Diante da cigana oferecemos as mãos
abertas para que as linhas do destino sejam lidas. Linhas do tempo, traços escavados pelo
trabalho do tempo. Linhas de expressão… Como diz Edith “eu tenho a linha costurada
na minha mão”(1997). Edith escreve como costura: “Costurando, ligando, furando,
recortando, costurando pensamentos e tudo mais.”(Ibid) Escreve para que? “Escrevo
para me fixar, é quase ficção. Escrevo, desenho, costuro, construo para me fixar”(Ibid).
Se Edith quer fixar-se não teme perder-se. Ela não recua diante do labirinto já que a linha
não é apenas aquela que visa o fixar mas é também aquela que revela “o que fica do que
escapa”(Ibid) pois a linha contínua não traça nunca a mesma trilha. Assim como no
labirinto a linha que liga é também a linha descontínua, a linha que separa.
Como ler a costura de Edith? Sua obra parece seguir um ritmo constante. O ritmo
ininterrupto do ir e vir. Sob o papel deposita grafismos até que ele se rasga sob o fluxo
do incessante depositar. Ela vai então em busca de um suporte mais resistente, um
suporte que suporte o seu ritmo. O pano com sua textura, sua trama revela a proximidade
entre a linha desenhada e a linha costurada, mas tal qual o papel que pode rasgar-se
diante do acumulo de depósitos gráficos, o pano pode esgarçar-se. A linha revela-se
então sutura quando Edith resolve costurar o ar criando com a matéria informe do
plástico. A sutura segue o movimento do interior para o exterior e nesse ritmo constante
do ir e vir do corpo de Edith formas orgânicas vão surgindo em conglomerados,
amontoados. Edith batiza-os casulos, vísceras, alvéolo…
Novamente o ritmo incessante de Edith aproxima-se do limite e o acumulo de
material ameaça transbordar. Edith para. A interrupção da constância do ritmo oferece o
descanso necessário para o nascimento de uma pergunta. Edith pergunta quais os
elementos mínimos para o desenho se constituir como uma linguagem. A pergunta
nascida no intervalo do movimento questiona o trabalho do tempo que revela-se
excessivo no incessante depositar.
Depositar, acumular, estocar, armazenar. Palavras que remetem a passagem do
tempo, ao trabalho incessante do tempo que não se deixa fixar. Edith costura-registra o
trabalho do tempo revelando os restos de uma passagem: resíduos, sedimentos, detritos,
enfim, o que fica do que escapa. A linha transforma-se em matéria da ausência. O
incessante movimento do depositar levado ao limite ameaça destruir a própria obra. A
pergunta sobre o mínimo surge imperativa, necessária a própria continuidade da obra.
Edith responde: os elementos mínimos são a linha e o espaço. Com a resposta um
deslocamento se dá - a passagem da sutura que une ou junta partes separadas `a rasura
que risca, raspa, cancela partes de um texto tornando-as ilegíveis.
Em Lituraterra (1971) Lacan, à maneira de Joyce, joga com as assonâncias entre
literatura e litura-rasura. Da janela do avião que sobrevoa a planície siberiana, Lacan
distingue, por entre as nuvens, o escoamento das águas na planície desértica. O
escoamento das águas na planície revela a conjunção do traço com aquilo que o apaga,
mas aí se marcam dois tempos: “O escoamento é o remate do traço e daquilo que o apaga.
Eu o disse: é pela conjunção deles que ele se faz sujeito, mas por aí se marcam dois
tempos. É preciso, pois, que se distinga nisso a rasura”(Ibid, p. 21)
Lacan aborda o primeiro tempo da constituição do sujeito como um tempo mítico
onde se daria a “rasura de traço algum que seja anterior”. Ele aproxima a rasura de traço
algum anterior à arte da caligrafia, que realiza o casamento da letra com a pintura. Seria
então o tempo da rasura - litura pura. A rasura pura visa a existência de um traço
fundador ao qual o sujeito estaria plenamente identificado, tal qual a existência de uma
palavra que designasse exatamente aquilo que se quer dizer. Na rasura uma sucessão de
traços que se recobrem, cada um deles buscando em seu gesto a aproximação da palavra
apropriada para designar aquilo que se quer dizer. No entanto, Lacan também aponta que
a rasura é paradoxal pois ao mesmo tempo em que visa um traço fundador, original, ela é
também o apagamento da origem e assim conjuga a tentativa de encontrar a palavra que
mais se aproxime daquilo que busca se expressar com a ausência de um traço fundador
por meio do qual o sujeito sentir-se-ia plenamente designado.
Podemos supor que no decorrer do trabalho de Edith ocorre uma passagem do
movimento que acumula para o movimento que esvazia/apaga. Não é a toa que a rasura
vai agora ocupar um lugar privilegiado. Nessa passagem Edith conjuga o movimento do
ir e vir das páginas folheadas de um livro e o movimento de ir e vir do corpo que se
desloca no espaço. O desenho é agora o texto, a textura que revela a fluidez do
pensamento, o pensamento enquanto manuscritos sobrepostos. Através de seu trabalho de
rasura-litura Edith instaura o silêncio necessário para que possamos ouvir a fluidez do
pensamento.
A linha que Edith traça é o espaço entre uma coisa e outra, ela não reproduz o
visível mas contornando, bordeando faz aparecer o visível. Assim, ela não é a linha da
aparência que visa representar o real, mas é aquela da aparição que visa traçar o real. O
espaço surge como o volume de um livro. É como leio a serie Rasuras de 1998. Rasuras
de traço algum que seja anterior. Lembro aqui do texto da Odisséia evocado por
Gagnebin (2007) a propósito da memória e que podemos relacionar ao registro
inconsciente. Na Odisséia tudo acontece como se houvesse uma força oculta da narração
que faz esquecer e uma força rememoradora evidente que se conjugam para constituir a
narração. Movimento de vaivém encarnado no gesto de tecer de Penélope. Fazer diurno e
desfazer noturno da tecelagem. Penélope tece ao mesmo tempo o texto e o véu que vela
o texto. Assim, a trama para tecer o véu -texto se compõe dos movimentos ao mesmo
tempo complementares e opostos dos fios da trama e da urdidura. Assim, também se
compõe os tempos da constituição do sujeito onde se mesclam o lembrar e o esquecer, o
conservar e o apagar e na obra de Edith a sutura que acumula e a rasura que esvazia.
Bibliografia consultada
DERDYK.E. Linha de costura, Iluminuras: São Paulo, 1997
GAGNEBIN.J.M. História e narração em Walter Benjamin, São Paulo: Perspectiva,
20007
LACAN. J. (1971) Lituraterra in Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge zahar, 2003
MANDIL M. Os efeitos da letra; Lacan leitor de Joyce. Belo Horizonte: Contra Capa,
2003
* Andrea Menezes Masagão é Psicanalista membro do Espaço Brasileiro de Estudos
psicanalíticos, Pesquisadora Associada do Centro de Pesquisa Outrarte - estudos entre
psicanálise e arte da UNICAMP, Roteirista e Diretora de cinema