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O diagnóstico dos sistemas agrários como instrumento metodológico para o estudo dos agroecossistemas do meio rural fluminense1

César Augusto Da Ros2

1. Introdução

O presente artigo tem como objetivo apresentar algumas noções básicas relacionadas ao processo de construção de diagnósticos dos sistemas agrários, a fim de entendê-los como ferramentas metodológicas aplicáveis na identificação, caracterização e estudo dos agroecossistemas existentes no meio rural fluminense, em particular nos municípios de Piraí e Barra do Piraí. Parte-se do princípio de que o conhecimento integrado de todos os componentes de um agroecossistema e das suas inter-relações, se constitui em condição indispensável para pensar qualquer processo de transição agroecológica que aponte para a construção de estilos de agricultura sustentáveis.

Neste sentido, a definição de estratégias de intervenção técnica e social, a serem colocadas em prática pelas ações de extensão rural, técnica ou científica, tais como aquelas previstas no âmbito do projeto do Núcleo de Agroecologia da UFRRJ3, precisa estar amparada no conhecimento das dimensões ambiental, econômica, institucional e sócio-cultural da realidade com a qual se pretende trabalhar (Sanchez, et Al., 2011).

Para que isso ocorra de fato é necessário que os agentes da intervenção, sejam eles extensionistas ou não, tenham um conhecimento prévio da realidade social na qual pretendem intervir, a fim de que possam identificar com clareza quais são os principais entraves e potencialidades a serem considerados na definição das estratégias de desenvolvimento rural. Nesse processo, é necessário considerar ainda os conhecimentos locais acumulados pelos agricultores ao longo das gerações, reduzindo assim, a distância que separa o conhecimento científico do conhecimento tradicional, concebendo-os não como antagônicos, e sim, como complementares.

Para efeitos didáticos este artigo foi dividido em sete seções, a contar por esta introdução. Na segunda seção busca-se tecer esclarecimentos sobre o conceito de diagnóstico, seu objetivos e principais modalidades. Na terceira, é feita uma recuperação sumária do surgimento da abordagem sistêmica e a suas influências na interpretação dos processos naturais e sociais. Na quarta seção, busca-se apresentar os principias aspectos constituintes da teoria dos sistemas agrários e as suas possíveis aplicações nas ciências agrárias. Na quinta seção, apresentam-se os aspectos determinantes envolvidos na elaboração de um Diagnóstico dos Sistemas Agrários (DSA). Na sexta seção são detalhados os principais passos metodológicos para a

1 Texto preparado para a apresentação do seminário: Diagnóstico dos sistemas agrários e agroecossistemas, ocorrido no dia 07 de junho de 2011, como parte das atividades do Núcleo Interdisciplinar de Agroecologia da UFRRJ. 2 Engenheiro Agrônomo, Doutor em Ciências Sociais com ênfase em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da UFRRJ. 3 Trata-se do projeto: Implantação de núcleo interdisciplinar de pesquisa e extensão científica e tecnológica em agroecologia na UFRRJ voltado ao fortalecimento da agricultura familiar e os assentamentos rurais em dois municípios da Mesorregião Sul Fluminense – RJ – Financiado pelo CNPq.

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elaboração de um DSA. Por fim, na sétima seção, são tecidas algumas considerações críticas acerca dos riscos advindos dos usos simplificadores do enfoque sistêmico.

2. Conceitos e objetivos dos diagnósticos

A análise histórica dos programas e projetos de desenvolvimento agrícola revela que muitas intervenções técnicas além de não produziram os resultados esperados, acabaram gerando um conjunto de “efeitos negativos inesperados”, em razão de não terem considerado a diversidade de condições agroecológicas e socioeconômicas em que os agricultores trabalhavam. Este foi o caso dos projetos veiculados pelo modelo de extensão rural difusionista-inovador, na qual se preconizava a utilização de soluções técnicas uniformizadas, desconsiderando o fato de que estas eram inadequadas à multiplicidade de situações encontradas no meio rural (Dufumier, 2010, p. 57). Segundo este mesmo autor:

O erro mais freqüente consiste em não se procurar conhecer as verdadeiras necessidades e problemas dos agricultores desde a concepção dos projetos. As “soluções” propostas baseiam-se menos numa rigorosa compreensão da realidade do que num conhecimento apriorístico, não demonstrado. O emprego freqüente de juízos de valor anunciados implicitamente como algo absoluto (variedades “melhoradas”, “bons” rendimentos, técnicas “racionais”...) é uma ilustração perfeita da subjetividade que até hoje é manifestada por numerosos agrônomos e economistas: de que racionalidade está se falando? Com base em que critérios uma variedade pode ser considerada “melhor” do que as outras? O que é um “bom” rendimento? Não seria de fato, necessário considerar, caso a caso, os diferentes interesses das numerosas categorias de agentes envolvidos, os recursos que eles dispõem em suas respectivas condições de trabalho? (Dufumier, 2010, p. 57).

A fim de minimizar esses “efeitos negativos inesperados”, diversas instituições de ATER e de desenvolvimento rural passaram a considerar como condição indispensável a elaboração de diagnósticos antes da realização de qualquer tipo de intervenção. Mas afinal, o que são diagnósticos? Quais são as suas modalidades mais comuns?

Em linhas gerais, os diagnósticos podem ser definidos como investigações que tem como objetivo conhecer uma realidade particular, mediante o estudo dos elementos físico-biológicos e econômico-sociais que constituem a realidade, estabelecendo as relações fundamentais que a caracterizam e inferindo sobre o seu funcionamento a fim de compreender a sua dinâmica. Por meio do diagnóstico pode-se identificar e priorizar as situações problema no trabalho da extensão rural, cumprindo um papel motivador no processo de aprendizagem que se dará no seu transcurso. Neste processo, o extensionista – atuando como mediador entre o problema e a sua possível solução – ajudará o produtor a objetivar as situações problema e a encontrar a forma de resolvê-las (Barrientos, 2007).

Para isto, contará não apenas com o acúmulo de conhecimentos que formam o seu saber técnico, mas também, com uma metodologia de trabalho que lhe permita a racionalização das práticas agropecuárias, por uma parte e pedagógicas, por outra, possibilitando buscar e ordenar as informações em função da identificação dos problemas cuja decisão se decida abordar. Tal processo se concretizará mediante o seguimento de uma série ordenada de passos. Na realização de um diagnóstico deve-se recortar e selecionar um espaço da realidade que pode ser geográfico (um lote, uma unidade de produção ou uma região), ou um aspecto de algum processo produtivo

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(sanidade de um lote, a nutrição de um rebanho bovino, etc.), ou um processo social (de comercialização, de gestão do produtor, de inovação tecnológica, etc.) (Barrientos, 2007).

As modalidades de diagnósticos podem assumir formas muito variáveis, a depender do grau de conhecimento prévio disponível e da natureza das informações que se pretende levantar na compreensão dos problemas de uma dada realidade. Por essa razão, os diagnósticos podem ser classificados com base em diferentes critérios: a) por critérios de escala, nos quais a preocupação concentra-se no recorte do objeto de estudo; b) por sua opção metodológica, na qual prevalecem considerações acerca da participação das comunidades implicadas; c) pela prática profissional, na qual é o objetivo que condiciona o recorte que se realiza da realidade.

No que diz respeito aos diagnósticos elaborados a partir de critérios de escala é possível classificá-los em quatro tipos distintos: 1) Diagnósticos realizados no âmbito nacional ou estadual. São aqueles realizados pelos ministérios de agricultura e/ou economia, que incluem amplos estudos sobre os recursos físicos e humanos que podem servir de fonte de informação para estudos mais particularizados. Estas informações geralmente são utilizadas como referência para a formulação de políticas públicas para o setor agropecuário nacional ou estadual; 2) Diagnósticos realizados no âmbito de área ou micro-região. Esta área ou microrregião é, por um lado um território suficientemente vasto que represente uma porção significativa da realidade produtiva, social, econômica e política do país, que permita o cumprimento da função de contexto, mas, por outro lado, deve ser suficientemente pequena para facilitar os contatos pessoais, a participação da população e o acesso direto aos serviços públicos. Neste caso, as informações são obtidas mediante censos, diagnósticos provinciais, mapas, etc., podendo ser complementadas por visitas a campo e entrevistas com informantes selecionados, entre outras fontes; 3) Diagnósticos realizados no âmbito de localidade, aqui definida como um pequeno espaço geográfico que serve de assento a uma comunidade rural. Geralmente é neste espaço que os produtores se conhecem mutuamente, mantém relações de vizinhança, realizam intercâmbios mercantis, etc. Associado à localidade encontramos o sentimento de pertença. Nestes casos, as informações podem ser obtidas através de diferentes técnicas, tais como, a observação sistemática, entrevistas com informantes selecionados, consulta e recopilação documental, leitura de mapas, etc; 4) Diagnósticos no âmbito do sistema de produção. Uma unidade de produção pode ser definida como um sistema constituído por uma série de elementos interdependentes, que interagem uns com os outros. As informações a serem coletadas neste nível, geralmente estão relacionadas aos cultivos, criações, ao volume e quantidade da produção, os tipos de tecnologia empregada na produção, a quantidade de mão-de-obra, etc.

No que se refere à opção metodológica, os diagnósticos também podem ser classificados sob os seguintes tipos: i) o exodiagnóstico no qual a população local só participa como informante que disponibiliza os dados a uma equipe de técnicos externa, porém não participa da análise dos mesmos, nem recebe de volta os resultados do estudo; ii) o autodiagnóstico, no qual o objetivo perseguido é a compreensão por parte do grupo ou comunidade de sua realidade, fomentando a participação dos seus integrantes, mediante o uso de metodologias apropriadas para tal. A participação da comunidade ocorre em todas as fases do processo e o resultado final é compartilhado, servindo de base para a definição coletiva de ações dirigidas a resolver os problemas identificados.

No que se refere à prática profissional, os diagnósticos também podem ser classificados dentro de diversos tipos, tendo em vista que o extensionista ao ingressar

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numa determinada comunidade terá que realizar uma análise da realidade antes de iniciar o seu trabalho. Neste processo, a depender da situação encontrada poderá optar por um tipo, ou combinar elementos de cada um deles.

Por fim, é importante destacar que o diagnóstico não deve ser realizado como um mero exercício acadêmico, voltado apenas para a ampliação dos conhecimentos sobre a realidade agrária investigada, mas deve, sobretudo, auxiliar na busca de alternativas pertinentes às questões colocadas pelos agentes do Estado e pelos diferentes grupos sociais considerados. Neste caso, o diagnóstico deve servir também para a proposição de ações visando à transformação da realidade em direção ao “futuro desejado”, desde que este esteja em conformidade ao interesse geral dos grupos sociais implicados. Porém, esse trabalho deve ser realizado dentro de um prazo de tempo razoável, de tal modo que os custos sejam compatíveis aos projetos idealizados (Dufumier, 2010, p. 59).

3. A abordagem sistêmica como matriz teórica dos sistemas agrários

A aplicação da abordagem sistêmica nas diversas áreas do conhecimento tomou impulso a partir da publicação, em 1945, do livro de autoria de Ludwig von Bertalanffy (Teoria Geral dos Sistemas). O surgimento dessa abordagem se constituiu numa resposta às mudanças ocorridas na sociedade contemporânea e ao paradigma reducionista da ciência convencional. Essas mudanças foram de duas ordens. De um lado, houve um acelerado desenvolvimento tecnológico, o que permitiu à humanidade exercer um amplo domínio sobre a natureza. Por outro, a natureza global da civilização moderna imprimiu uma nova dinâmica nas relações sociais e econômicas. Diante dessas mudanças, o padrão de análise utilizado pela ciência convencional mostrou-se insuficiente para a compreensão de uma realidade cada vez mais complexa e mutável. Segundo Bertalanffy (1975, p. 271 apud, Alves, 2008, p. 127): “a ciência parecia analítica, isto é, a divisão da realidade em unidades cada vez menores e o isolamento de cadeias causais individuais”.

Tal constatação levou este autor a desenvolver uma teoria que mudasse a forma de pesquisar o mundo, adotando uma perspectiva de análise global, na qual a totalidade deixava de ser estudada de forma isolada e compartimentada, para voltar-se ao exame das interações entre os seus diversos componentes. Segundo Bertalanffy (1975, p. 53 apud, Alves, 2008, p. 127):

É necessário estudar não somente partes e processos isoladamente, mas também resolver os decisivos problemas encontrados na organização e na ordem que os unifica, resultante da interação dinâmica das partes, tornando o comportamento das partes diferente quando estudado isoladamente e quando tratado no todo.

Esta perspectiva de análise passou a ser denominada de sistêmica, uma vez que adotou os sistemas como o seu objeto de investigação. A despeito dessa perspectiva ter sido considerada inovadora no campo da ciência moderna, é preciso registrar que a idéia de sistema é um conceito antigo originário da palavra grega “synhistanay” que significa “colocar junto". Atualmente esse conceito ganhou novos contornos a ponto de existirem inúmeras definições, cada qual expressando os distintos pontos de vista dos seus autores. Segundo Porto (2003, p. 100) um sistema pode ser definido como: “um grupo de componentes que interagem e que operam unidos por uma mesma finalidade, que são capazes de reagir como um todo diante de estímulos externos, que não são

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afetados diretamente por seus próprios produtos e que têm uns limites definidos, nos quais têm lugar todas as reutilizações de alguma significância ou importância”.

Na análise dos sistemas é preciso considerar que estes podem conter também subsistemas que precisam ser compreendidos a partir das suas interferências mútuas e das suas ligações. Isto, porque, a ação de um subsistema pode provocar uma reação direta ou indireta em outro subsistema e vice-versa (Alves, 2008, p. 128). Outro aspecto importante a considerar, diz respeito à classificação dos sistemas, os quais podem ser fechados e abertos. No primeiro caso, os elementos componentes mantêm relações entre si, mas não efetuam trocas com o meio exterior, podendo ser representados pelos sistemas estudados pela física e pela química. No segundo caso ocorre o inverso, já que os sistemas em questão envolvem organismos vivos e processos sócio-culturais, nos quais as relações que se passam no interior deles mantêm trocas com o meio exterior, influenciando o comportamento dos elementos componentes dos sistemas, que por seu turno, repercutem no ambiente externo4 (Porto, 2003, p. 99).

Numa direção distinta Machado et Al. (2006, p. 642) advertem que as palavras sistemático e sistêmico (adjetivos que provém de sistema) têm diferentes conotações:

(...) para a visão sistemática, é possível reduzir, simplificar os problemas analisando suas partes, para encontrar as soluções, o todo se pode entender por meio das partes. Pensar de forma sistemática implica seguir um método rigoroso e exaustivo. Uma análise sistemática assume que é possível entender a totalidade de uma situação a partir da enumeração precisamente sistemática de seus componentes. O enfoque de sistemas de produção se vale desta visão. Para a perspectiva sistêmica, captar a totalidade de uma situação sempre é um processo em construção de um todo, em função do propósito do analista. Isto significa que o sistema em construção reflete a maneira pela qual o observador está entendendo, em um momento dado, como esse todo está organizado. É uma opção de o analista apresentar o sistema e o comportamento das partes que o compõem, da forma que o faz.

Nesta segunda perspectiva, os sistemas não apresentam limites precisos, e nos quais não há acordo acerca de quais são os problemas e, conseqüentemente, quais os objetivos a estabelecer. São sistemas abertos, nos quais há permanente interação dinâmica entre a atividade humana (elemento do sistema) e o meio ambiente (Machado et Al, 2006, p. 642).

Em que pesem as diferentes formas pelas quais os sistemas podem ser conceituados, cumpre observar que este tipo de abordagem passou a ser adotada em diversas áreas do conhecimento, dentre as quais podemos destacar a física, biologia, comunicação, psicologia, informática, cibernética, eletrônica e principalmente na agricultura. Neste último caso, constata-se que a abordagem sistêmica ganhou popularidade nas últimas três décadas em resposta as falhas apresentadas pelos projetos reducionistas e disciplinares de desenvolvimento rural5 (Machado et Al., 2006).

4 Segundo Porto (2003, p. 100): “(...) a diferenciação entre ambos está no conceito de equilíbrio. Enquanto o sistema fechado alcança seu ponto de equilíbrio, o sistema aberto, por estar elaborando constantemente as intromissões externas, não reúne ou não tem as condições necessárias para alcançar seu equilíbrio”. 5 Contudo, é preciso tomar cuidado para não incorrermos no erro de defendermos que a abordagem sistêmica deva substituir integralmente a visão disciplinar. Até porque, não há possibilidade do exercício da multidisciplinaridade e da interdisciplinaridade sem a existência prévia da disciplina. Segundo Casanova (2006, p. 12-13): (...) tanto o termo “disciplina”, quanto o termo “faculdade” correspondem a propósitos de rigor ou exatidão que se identificam com a posse de “um saber” ou o “domínio de uma arte ou técnica” e também com divisões do trabalho intelectual em campos, áreas ou aspectos de um

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A visão reducionista se distingue da sistêmica pelo fato de que cada pesquisador ou técnico concentrar o seu olhar num dado objeto, um componente específico de um subsistema (uma planta, um animal, ou lavoura), estudando-o de forma isolada de acordo com a sua área de pesquisa. Neste caso, as ações de pesquisa e extensão raramente ultrapassam os limites da instituição, refletindo-se diretamente na predominância da pesquisa por produtos e prestação de serviços específicos. Nesse processo, os agricultores e suas organizações de representação política não participam da discussão das ações de pesquisa e extensão, exceto sob a condição de receptores de informações que na maior parte dos casos são inadequadas à sua realidade. O processo de implantação da revolução verde se deu a partir de uma base reducionista, pois concentrou os seus esforços no aumento da produção e produtividade, priorizando os produtos de exportação e os estratos de agricultores mais capitalizados (Machado et Al., 2006 p. 55).

No final dos anos 70 e início dos anos 80, as estratégias de desenvolvimento rural baseadas nas premissas da revolução verde passaram a ser alvo de severas críticas e questionamentos, em função dos impactos sociais e ambientais negativos provocados, da aceleração da concentração de renda no campo e da exclusão dos agricultores familiares. Neste contexto, as abordagens sistêmicas passaram a ser cada vez mais valorizadas, começando a ser utilizadas como ferramentas metodológicas para auxiliar na implementação das políticas de desenvolvimento rural.

A abordagem sistêmica se distingue das abordagens reducionistas por apresentar alguns princípios orientadores, entre os quais destacam-se: 1) Visão do todo - a abordagem sistêmica visa o estudo do desempenho total dos sistemas, ao invés de se concentrar isoladamente nas partes; 2) Interação e autonomia – diz respeito ao fato dos sistemas serem sensíveis ao meio ambiente com o qual interagem, apresentando autonomia interna na interação entre os componentes do sistema e deste com o ambiente; 3) organização e objetivos - mesmo considerando que cada parte opere o melhor possível em relação aos seus objetivos específicos, é provável que os objetivos do sistema como um todo dificilmente serão satisfeitos; 4) Complexidade – diz respeito ao fato de que as interações entre os componentes e entre o meio ambiente e o sistema como um todo, são mais complexas do que a soma de suas partes individuais; 5) Níveis de Análise - podem ser entendidos em diversos níveis, como por exemplo, uma célula, uma folha, um animal, uma propriedade, uma região, o planeta, etc. (Machado et Al., 2006, p. 55).

Segundo a interpretação desses mesmos autores, é possível classificar a abordagem sistêmica em duas modalidades distintas: a hard systems (sistemas duros) e a soft systems (sistemas macios). No primeiro caso, o foco das investigações é voltado aos sistemas, ou subsistemas físicos concretamente definidos (como uma lavoura, propriedade, região). Neste caso há uma ênfase no controle das entradas e processos visando à obtenção de resultados pré-determinados, tais como: o aumento da produtividade e a adoção de tecnologias. Este tipo de abordagem utiliza instrumentos de investigação quantitativos, como os modelos matemáticos otimizadores ou de simulação para auxiliar na tomada de decisão. Apesar de preverem mecanismos de feedback, ainda fenômeno. (...) O oposto de “disciplina” não é necessariamente a “interdisciplina”. É mais precisamente a indisciplina. (...) A interdisciplina, como relação entre várias disciplinas em que se divide o saber fazer humano, é uma das soluções que se oferecem a um problema muito mais profundo, como a unidade do ser e do saber, ou a unidade das ciências, das técnicas, das artes e das humanidades com o conjunto cognoscível e construível da vida e do universo.

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prevalece uma visão de controle no qual o desenvolvimento é pensado como uma intervenção planejada de fora para dentro e centrada na adoção de tecnologias. A participação dos agricultores é limitada em termos de divisão do poder e das responsabilidades (Machado et Al., 2006, p. 56).

No segundo caso, o foco das abordagens muda dos objetos físicos (sistemas de produção) para os sujeitos (o ser humano) e, sobretudo, para as relações que caracterizam estes sistemas e as interações destes com o ambiente. O objetivo não é o controle do ambiente visando à obtenção de resultados pré-determinados, mas, sim, entender as relações humanas e interagir (visão construtivista). O técnico faz parte do sistema, interage com os demais atores sociais e todos participam da construção dos resultados, os quais não são pré-determinados. A abordagem dos soft-systems considera a dimensão da sustentabilidade dos sistemas de produção (Machado et Al., 2006, p. 56-57).

Quadro 1: Principais diferenças entre a abordagem hard systems e a soft systems.

Hard Systems Soft Systems

Foco nos sistemas físicos de produção e controle das entradas e saídas

Foco nas interações dos sistemas vivos complexos e na construção social das ações

Crença em uma única e objetiva realidade, da qual a ciência tem acesso privilegiado

Acredita em múltiplas realidades, de acordo com as diferentes percepções dos sujeitos

Ênfase na identificação do problema, na solução técnica e no produto a ser obtido

Ênfase no processo de formulação dos problemas e suas diversas interpretações

Busca uma solução “ótima” para o problema identificado Procura construir várias soluções satisfatórias alternativas

Maximização de um único objetivo (des. Técnico e econômico).

Harmonização de vários objetivos (des. Economico, social e ambiental)

Conflitos em geral são ignorados Consideração e manejo dos conflitos.

Valoriza o conhecimento local, mas prevalece a superioridade do científico

Todas as formas de conhecimento são igualmente válidas

Comunicação como transmissão de conhecimentos e informações

Comunicação como diálogo, conhecimento é construído socialmente.

Paradigma positivista (a realidade é objetiva e independente da subjetividade)

Paradigma construtivista (a realidade é construída a partir da interação da objetividade e da subjetividade)

Foco na Multidisciplinaridade Foco na Interdisciplinaridade.

Fonte: Machado et Al. (2006, p. 57). 4. Construindo uma teoria sobre os sistemas agrários

Viu-se na seção anterior que o surgimento da abordagem sistêmica representou uma reação à forma pela qual a ciência convencional estudava e interpretava a realidade, baseada em uma abordagem reducionista na qual prevalecia o estudo individualizado das partes, em detrimento das interações dinâmicas entre os seus diversos componentes. Com o advento da abordagem sistêmica, o estudo da realidade tornou-se uma tarefa mais complexa, já que esta pressupõe a adoção de uma perspectiva global e holística, sem desconsiderar as relações das partes com a totalidade e vice-versa. Ademais, na abordagem sistêmica passou-se a admitir que a realidade não um simples dado objetivo, passível de apropriação mediante a observação “neutra” e “isenta” do pesquisador. Ao contrário, a realidade passou a ser concebida como produto de uma construção subjetiva dos pesquisadores, influenciada pelos seus distintos pontos de vista, por seus valores e por sua formação disciplinar.

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Na tentativa de incorporar os princípios contidos na abordagem sistêmica em um conceito coerente à analise dos processos ligados à agricultura Mazoyer & Roudart (2010) desenvolveram a teoria dos sistemas agrários. Segundo os autores:

(...) a teoria dos sistemas agrários é um instrumento intelectual que permite apreender a complexidade de cada forma de agricultura e de perceber, em grandes linhas, as transformações históricas e a diferenciação geográfica das agriculturas humanas. Para compreender o que é um sistema agrário é preciso, em princípio, distinguir, de um lado, a agricultura tal qual ela é efetivamente praticada, tal qual pode-se observá-la, formando um objeto real de conhecimento, e, por outro lado, o que o observador pensa desse objeto real, o que diz sobre ele, constituindo um conjunto de conhecimentos abstratos, que podem ser metodicamente elaborados para construir um verdadeiro objeto concebido, ou objeto teórico de conhecimento e de reflexão (Mazoyer & Roudart, 2010, p. 71).

Nesta direção, os autores argumentam que a agricultura em um dado lugar e momento sempre aparece como um objeto ecológico e econômico complexo, composto de um meio cultivado e de um conjunto de estabelecimentos agrícolas vizinhos, que entretêm e exploram a fertilidade desse meio. Destacam ainda que as formas de agricultura variam tanto do ponto de vista espacial (de uma localidade a outra), quanto do ponto de vista temporal (de uma época para outra). Ou seja, a agricultura se apresenta como um conjunto de formas locais, variáveis no espaço e no tempo, tão diversas quanto as próprias observações. A constatação de que as formas de agricultura são objetos complexos, possibilita que estas sejam analisadas em termos de sistema (Mazoyer & Roudart, 2010, 71)

Contudo, para analisar e conceber um objeto complexo em termos de um sistema torna-se necessário o estabelecimento de uma delimitação, ou seja, é preciso traçar uma fronteira virtual entre esse objeto e o resto do mundo, a fim de considerá-lo com um todo, composto por subsistemas hierarquizados e interdependentes. Ademais, é preciso considerar o seu funcionamento em termos de uma combinação de funções interdependentes e complementares, que assegurem a circulação interna e as mudanças com o exterior de matéria, de energia e, tratando-se de um objeto econômico, de valor. Desse modo, analisar a agricultura praticada em um dado momento e lugar consiste em decompô-la em dois subsistemas principais: o ecossistema cultivado e o sistema social produtivo, estudando tanto a organização e o funcionamento de cada um desses subsistemas, como suas inter-relações (Mazoyer & Roudart, 2010, 72).

O ecossistema cultivado é composto por vários subsistemas complementares, tais como as hortas, terras cultiváveis, campos de ceifa, as pastagens e as florestas, sendo organizados, cuidados e explorados de formas muito particulares, contribuindo assim, para a satisfação das necessidades dos homens e dos animais domésticos. Os subsistemas também podem ser decompostos partes ou glebas, cada uma das quais destinadas à exploração de culturas específicas. O mesmo pode ocorrer com o subsistema de criação, tendo em vista que este pode ser composto por diversas espécies de rebanhos (bovinos, ovinos, suínos, etc.). Além disso, os ecossistemas cultivados se caracterizam por desempenharem diversas funções: desmatamento e contenção de vegetação selvagem, renovação da fertilidade, condução dos cultivos e condução dos rebanhos. Todas essas funções asseguram a circulação interna de matéria e energia e se abrem igualmente para as trocas exteriores mais ou menos importantes com ecossistemas próximos ou distantes. Por essa razão, o estudo dos sistemas agrários não pode ser feito isoladamente (Mazoyer & Roudart, 2010, 72-73).

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O sistema social produtivo ou sistema técnico, econômico e social é composto por homens e mulheres (força de trabalho, conhecimento e saber fazer), meios inertes (instrumentos de trabalho) e de matéria viva (plantas cultivadas e animais domésticos) que dispõem uma dada comunidade rural para desenvolver as atividades de renovação e exploração do ecossistema cultivado, a fim de satisfazer diretamente (autoconsumo) ou inderetamente (trocas) as suas necessidades. A forma pela qual cada estabelecimento organiza os meios de produção e as atividades produtivas são caracterizados pelo sistema de produção praticados e pela categoria social à qual eles pertencem6. A observância destes critérios possibilita o reagrupamento e a classificação dos estabelecimentos agrícolas conforme o sistema de produção praticado, bem como aqueles que praticam o mesmo sistema de produção por categoria social. Assim, torna-se possível analisar o sistema social e produtivo de um sistema agrário, a partir da combinação particular de um número limitado de tipos de estabelecimentos, definidos técnica, econômica e socialmente (Mazoyer & Roudart, 2010, p.74).

Esse esforço em construir uma teoria sobre os sistemas agrários é justificado pelos autores pelo fato desta se constituir num instrumento capaz de representar as transformações incessantes da agricultura de uma região do mundo como uma sucessão de sistemas distintos, que constituem etapas de uma série definida. Por meio desta teoria torna-se possível apreender as grandes linhas e explicar a diversidade geográfica da agricultura de uma determinada época. Contudo, os autores advertem para o fato de que essa teoria não tem por função esgotar a riqueza da história e da geografia agrárias, tendo em vista que as particularidades presentes em cada sistema agrário só podem ser concebidas e compreendidas a partir da observação e da análise concreta de cada realidade. Segundo os autores: “(...) a teoria oferece um método e um referencial comprovados, mas não um conhecimento preconcebido da realidade que possa substituir-se a essa observação e a essa análise. A teoria não é um dogma (Mazoyer & Roudart, 2010, p. 77).

5. Aspectos determinantes no processo de elaboração de um DSA

A aplicação dos princípios desenvolvidos pelos autores da teoria dos sistemas agrários materializou-se na construção de uma ferramenta metodológica utilizada pelos extensionistas rurais, conhecida por Diagnóstico dos Sistemas Agrários (DSA). Seu principal objetivo é contribuir para a elaboração de linhas estratégicas do desenvolvimento rural, isto é, para a definição de políticas públicas, de programas de ação e de projetos (de governo, de organizações de produtores, de ONG's, etc.). Neste sentido, o diagnóstico deve trazer respostas a perguntas importantes, tais como: Quais são as práticas técnicas, sociais e econômicas dos agricultores e os seus sistemas de produção? Quais são as razões que explicam a existência dessas práticas? Quais são as suas principais tendências de evolução observadas nos sistemas de produção? Quais são os principais fatores que condicionam essa evolução? Quais são os principais problemas que vêm enfrentando? Como se pode contribuir para superar esses problemas? Quais

6 Segundo (Mazoyer & Roudart, 2010, 73): “(...) O sistema de produção de um estabelecimento agrícola se define pela combinação (a natureza e as proporções) de suas atividades produtivas e de seus meios de produção. A categoria social de um estabelecimento se define pelo estatuto social de sua mão de obra (familiar, assalariada, cooperativa, etc), pelo estatuto do agricultor e pelo modo de acesso a terra (posse, exploração direta, parceria, etc.) e pela dimensão do estabelecimento agrícola”.

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seriam os sistemas de produção e os tipos de produtores mais adequados à sociedade? (FAO/INCRA – Guia Metodológico, sd).

A elaboração de um DSA obedece a um conjunto de requerimentos, nos quais se busca realizar um processo de identificação, classificação e análise dos diferentes sistemas agrários, efetuando um levantamento dos seus principais problemas e potencialidades. Entre os principais requerimentos exigidos na realização de um DSA, destacam-se:

a) realizar um levantamento das situações ecológica e sócio-econômica dos agricultores;

b) identificar e caracterizar os principais tipos de produtores (familiares, patronais, etc.) e os principais agentes envolvidos no desenvolvimento rural (comércio, empresas de integração, bancos, agroindústrias, poder público, etc.);

c) identificar e caracterizar os principais sistemas de produção adotados por esses diferentes produtores, as suas práticas técnicas, sociais e econômicas e os seus principais problemas;

d) caracterizar o desenvolvimento rural em curso, isto é, as tendências de evolução da agricultura na região;

e) identificar, explicar e hierarquizar os principais elementos - ecológicos, sócio-econômicos, técnicos, políticos, etc. - que determinam essa evolução;

f) realizar previsões sobre a evolução da realidade agrária; g) sugerir políticas, programas e projetos de desenvolvimento e ordenar as ações

prioritárias; h) sugerir indicadores de avaliação dos projetos e dos programas.

A elaboração deste tipo de diagnóstico deve ser rápida e operacional, para que

tenha aplicabilidade nas ações e políticas de desenvolvimento rural. Contudo, essa rapidez não deve prescindir do rigor científico do diagnóstico, de tal modo eu este não sirva apenas para descrever a realidade e, sim, explicá-la (FAO/INCRA – Guia Metodológico, sd). Para tanto, a metodologia utilizada no DSA procura abarcar a complexidade e a heterogeneidade das relações presentes nas atividades agrícolas e no meio rural. Nesse processo, o primeiro fator de complexidade advém dos ecossistemas, que representam potenciais ou impõem limites às atividades agrícolas. O modo de utilização do espaço que os grupos sociais rurais adotam representa um esforço de adaptação ao ecossistema, buscando explorar da melhor maneira possível o seu potencial ou de minimizar os obstáculos existentes. Essas formas de uso do espaço evoluem ao longo da história em virtude de fatos que se relacionam entre si, sejam eles ecológicos (mudanças climáticas, desmatamento, depauperação do solo, etc.), técnicos (surgimento de novas tecnologias ou variedades, introdução de novas culturas) ou econômicos (variação de preços, mudanças nas políticas agrícolas, desenvolvimento ou declínio de agroindústrias, surgimento de oportunidades comerciais, etc.). Nesse sentido, os ecossistemas cultivados são fruto da história, da ação - passada e presente - e das sociedades agrárias que os ocuparam (FAO/INCRA – Guia Metodológico, sd).

A complexidade reside também no fato de que essas sociedades são diferenciadas, isto é, são compostas de categorias, de camadas e de classes sociais que mantêm relações entre si (agricultores familiares, fazendeiros, empresas capitalistas, assalariados e diaristas, arrendatários e parceiros, atravessadores, agroindústrias, bancos, fornecedores de insumos, comércio local, poder público, organizações da sociedade civil, etc.). A ação de cada um depende da ação ou da reação dos outros, bem

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como do seu entorno ambiental, social e econômico (FAO/INCRA – Guia Metodológico, sd).

Na agricultura, isso resulta na existência de distintos tipos de produtores, que se diferenciam tanto pelas suas condições sócio-econômicas e por seus critérios de decisão, quanto pelos seus sistemas de produção e pelas suas práticas agrícolas. Essa diversidade existe mesmo quando se considera apenas a agricultura familiar ou um grupo de assentados, pois nem todos apresentam o mesmo nível de capitalização, a mesma forma de acesso à terra, aos recursos naturais, aos financiamentos e aos serviços públicos e, tampouco, o mesmo modo de se organizar e de se relacionar com os outros agentes sociais, etc. (FAO/INCRA – Guia Metodológico, sd).

Ainda que se conside cada cultura ou cada criação isoladamente, constata-se que a atividade agrícola é complexa, pois combina os diferentes recursos disponíveis (terra e outros recursos naturais, insumos, equipamentos e instalações, recursos financeiros e mão-de-obra) com um conjunto de atividades distintas (preparo do solo, plantio, fertilização, controle de pragas, colheita, comercialização, etc.). Nessa combinação, existe um grande número de fatores que determinam as práticas agrícolas: a qualidade dos solos, o clima, as épocas de liberação dos financiamentos, as flutuações de preços, etc. Nesse sentido, até mesmo os estabelecimentos especializados em monocultura constituem um sistema de produção complexo (FAO/INCRA – Guia Metodológico, sd).

Para dar conta dessa complexidade, o DSA baseia-se numa série de princípios. O primeiro deles é a análise progressiva, que parte do geral para o específico, começando pelos fenômenos de nível geral (mundo, país, região, etc.), terminando nos níveis específicos (município, assentamento, unidade de produção) e nos fenômenos particulares (cultivos, criação, etc.).

O segundo diz respeito ao fato do DSA buscar a explicação e não somente a descrição dos fenômenos observados. Para tanto, é necessário sempre: a) manter a perspectiva histórica em todas as etapas do método; b) realizar uma avaliação econômica dos diferentes sistemas de produção, tanto do ponto de vista do produtor quanto do ponto de vista da sociedade.

O terceiro princípio é a estratificação da realidade, mediante o estabelecimento de conjuntos homogêneos e contrastados definidos de acordo com o desenvolvimento rural de um determinado espaço geográfico. Isto pode ser realizado a partir: a) do zoneamento agroecológico; b) da tipologia (estudo dos diferentes tipos) de produtores; c) da tipologia de sistemas de produção.

O quarto princípio está relacionado à necessidade de entender as relações entre as partes e entre os fatos ecológicos, técnicos e sociais que explicam a realidade. O estudo dos solos, por exemplo, só é relevante quando relacionado com as técnicas utilizadas ou com os problemas enfrentados pelos agricultores. Por isso, utiliza-se, em cada nível de análise, o enfoque sistêmico.

Por fim, trabalha-se com amostragens dirigidas, de forma que se possa analisar a diversidade dos fenômenos mais importantes observados. O tamanho da amostra é, pois, determinado, sobretudo pela complexidade e pela diversidade da realidade estudada. Não se trabalha, portanto, com amostragens aleatórias, pois elas não asseguram, justamente por seu caráter intrínseco, a representação e a análise aprofundada de toda esta diversidade. A seleção dos níveis de análise do diagnóstico depende da problemática do caso estudado. Para cada um deles, utilizam-se ferramentas

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diferentes (qualitativas ou quantitativas). A seguir, apresentamos os possíveis níveis de análise e os objetos de síntese ou o sistema que lhes correspondem.

Nível de Análise Objeto de Síntese

Internacional Mercado mundial Nacional Articulação intersetorial (agricultura/outros

setores) Regional e microrregional Sistema agrário

Unidade de produção Sistema de produção Grupo de animais (da mesma

espécie) Sistema de criação

Parcela (analisada de forma homogênea)

Sistema de cultura

Na realização do DSA, torna-se necessário ainda a participação plena e efetiva dos agricultores na discussão dos seus objetivos e de seus instrumentos. Neste sentido, o diagnóstico “não é somente um estudo técnico, mas também de legitimidade”. Ou seja, é preciso que os agricultores estejam cientes acerca dos objetivos do diagnóstico, da natureza dos dados coletados e da finalidade de utilização das informações levantadas.

Por essa razão, o diagnóstico não é, obrigatoriamente, uma ação reservada aos técnicos. Seus objetivos devem ser também: i) fornecer aos agricultores informações sobre a realidade na qual atuam; ii) contribuir para que os agricultores formulem projetos e políticas de desenvolvimento; iii) facilitar o diálogo dos técnicos com os produtores, bem como dos produtores entre eles e com outros agentes do desenvolvimento local, estabelecendo assim, uma base de conhecimento comum.

O diagnóstico pode ser realizado em todas as suas etapas, em conjunto com os próprios agricultores e as suas organizações. Nesse caso, é útil preservar a diferença que existe entre o olhar dos técnicos e o dos agricultores. Se grande parte do diagnóstico pode ser realizado de maneira participativa, é também importante que os técnicos não deixem de analisar a realidade, de maneira científica e rigorosa, de acordo com as suas disciplinas e as suas próprias experiências.

Caso o diagnóstico esteja sendo realizado exclusivamente por uma equipe técnica, é importante que, no final do processo, antes da formulação dos projetos e das políticas de desenvolvimento, haja mecanismos que permitam que os agricultores discutam as conclusões do trabalho e participem da formulação das políticas e dos projetos delas decorrentes. Não se trata apenas de uma formalidade, mas de uma confrontação do olhar dos técnicos com o olhar dos agricultores, de forma a evitar que conclusões erradas levem a soluções inadequadas e ineficazes. Trata-se, também, de associar os principais interessados na formulação dessas políticas.

6. Os passos metodológicos para a realização de um DSA:

A primeira tarefa, antes de iniciar a realização de um diagnóstico é a definição dos objetivos do trabalho. Para tanto será necessário igualmente definir qual é o objeto de estudo em questão, ou seja, o universo social e geográfico com o qual se pretende trabalhar (assentamento, comunidade rural, município, região, etc). A escolha do objeto ou da área de estudo depende também do tempo e dos recursos disponíveis, da experiência da equipe, das dificuldades logísticas de comunicação e de deslocamento,

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etc. Se o diagnóstico tiver de ser realizado com rapidez e a equipe for pequena, recomenda-se limitar a área de estudo. Se houver mais tempo ou se a equipe for maior e mais experiente, pode-se considerar uma região maior.

6.1. Análise Global do espaço geográfico em estudo:

Uma vez definido o objeto, o passo seguinte é a análise global do espaço geográfico em estudo. Neste caso, é preciso ter presente que uma região raramente é homogênea, podendo ser composta de espaços que apresentem características ecológicas distintas ou terem sido ocupadas de forma diferenciada (ocupação espontânea, projetos de colonização, etc).

Por essa razão, é necessário realizar, nas etapas iniciais do trabalho, uma análise geral da região a ser estudada, buscando atingir os seguintes objetivos: a) identificar e localizar no espaço os grandes modos de exploração do meio ambiente, isto é, os distintos cultivos e as diferentes práticas agrícolas - sistemas de agricultura de corte e de queima, pecuária em grandes extensões, agricultura em pequena escala, monoculturas em grande escala, perímetros irrigados, cinturões verdes, etc; b) identificar os elementos ecológicos, técnicos e sociais que determinaram a sua evolução recente e a sua localização atual - potencialidades ou fatores limitantes dos ecossistemas, condições e eventuais acidentes ou mudanças ecológicas (secas, inundações, desgaste dos solos, diminuição das matas, construção de barragens, etc.), evolução da estrutura fundiária e das formas de acesso a terra, evolução das técnicas ou dos instrumentos de produção, criação de infra-estruturas (irrigação, estradas, etc.), expansão ou retração dos mercados, instalação de agroindústrias ou de equipamentos de armazenagem, migrações, crescimento demográfico, mudanças nas legislações, etc;

6.1.1. Coleta e tratamento dos dados já existentes:

Sempre que possível esta primeira etapa do trabalho poderá contar com informações oriundas da compilação e o tratamento dos documentos históricos, estatísticos e cartográficos já existentes. O objetivo desse esforço é fazer rapidamente, com os dados já disponíveis, correlações entre as diferentes variáveis (clima, solos, relevo, cobertura vegetal, estrutura fundiária, dados demográficos e de produção, infra-estrutura, etc.). Isso pode ser feito por meio de: a) superposição de mapas temáticos na mesma escala; b) estudo de documentos antigos relativos à história, ao desenvolvimento rural e às práticas agrícolas; c) cruzamento desses dados entre eles e informações estatísticas, etc.

6.1.2. Análise da paisagem:

As paisagens agrárias oferecem as primeiras informações para elaboração de um do DSA. Ao observá-las é possível obter informações que muitas vezes não se encontram detalhadas em documentos ou estudos já realizados. A análise da paisagem permite o levantamento de dados sobre as diversas formas de exploração e manejo do meio ambiente, sobre as práticas agrícolas e suas condições ecológicas e, também, possibilitando o questionamento sobre as razões históricas dessas diferenças. Os objetivos da análise da paisagem são: 1) verificar se a região é homogênea identificando e caracterizando as heterogeneidades, caso existam; 2) identificar os diferentes tipos de agricultura existentes; 3) identificar os condicionantes ecológicos dessas atividades

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agrícolas; 4) levantar hipóteses que expliquem essas heterogeneidades e a formação dessa paisagem (relações entre o homem e o ecossistema); 5) elaborar, quando for o caso, um zoneamento preliminar da região.

A análise da paisagem é realizada por meio de percursos sistemáticos de campo que permitam atravessar e verificar as diferentes heterogeneidades dos ecossistemas. Neste processo, é importante não só observar a paisagem, mas também interrogar-se sobre ela, interpretando-a. Para tanto, torna-se necessário levantar questionamentos sobre as heterogeneidades observadas, verificando se estas correspondem às variações existentes nas diferentes formas de exploração dos ecossistemas. Caso não haja documentos que esclareçam essas heterogeneidades, cabe aos técnicos descobri-las, observando algumas áreas e indagando aos agricultores ou a outros informantes sobre as diferenças identificadas.

A análise da paisagem possibilita a obtenção dos seguintes resultados: i) a elaboração de um zoneamento agroecológico preliminar, caso a região seja heterogênea; ii) a caracterização inicial das diferentes agriculturas existentes e as primeiras hipóteses sobre seus condicionantes (meio físico, estrutura agrária, evolução das técnicas agrícolas, infra-estrutura, etc.); iii) as primeiras indagações ou as hipóteses preliminares sobre a história regional. Esses resultados podem ser representados por meio de um ou vários mapas, nos quais são detalhadas todas as informações do zoneamento agroecológico realizado. Além dos mapas, os técnicos podem lançar mão de um croquis ou blocos-diagrama tridimensionais das distintas formas de exploração do meio ambiente.

6.1.3. Entrevistas históricas:

Constituem-se em entrevistas informais realizadas individualmente, ou com grupos de agricultores mais antigos da localidade que tenham conhecimento dos principais acontecimentos históricos capazes de explicar os fenômenos que estão sendo analisados pelo DSA. Na realização destas entrevistas é importante verificar: a) as mudanças de longo prazo ou os incidentes relevantes relativos às condições ecológicas (secas, inundações, construção de barragens, diminuição das áreas de mata, etc.); b) as mudanças ocorridas nas técnicas agrícolas (mudanças de culturas e criações, introdução ou abandono de técnicas agrícolas, evolução das formas de tração, etc); c) os fatos sócio-econômicos mais significativos - mudanças nas relações sociais, nas formas de acesso à terra, na estrutura fundiária, nas ações dos diferentes atores sociais (agricultores, fazendeiros, atravessadores, agroindustriais, população urbana, etc.), nas políticas públicas ou nas condições sócio-econômicas mais gerais (inflação, relações de preço, emprego e salários, legislações trabalhistas, ambientais e tributárias, etc.).

O objetivo dessas entrevistas não é só o de estabelecer uma cronologia dos fatos ecológicos, técnicos e sociais relatados, mas, sobretudo, estabelecer relações de causa e efeito entre esses fatos. Por essa razão é de suma importância tentar identificar as trajetórias de acumulação ou de descapitalização que levaram à diferenciação dos agricultores, relacionando-as com os diferentes fatos levantados e com a sua localização.

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6.2. A categorização dos produtores e a tipificação dos sistemas de produção

A maioria dos agricultores trabalha em condições ambientais e sócio-econômicas distintas, mesmo em regiões pequenas. Por essa razão, podem existir diferenças importantes, tanto no que se refere ao acesso a terra, aos demais recursos naturais, à informação, aos serviços públicos, aos mercados e ao crédito, quanto no que diz respeito ao nível de capitalização, aos recursos financeiros disponíveis, aos conhecimentos adquiridos, à disponibilidade de mão-de-obra, etc.

Essas diferenças se traduzem em evoluções distintas e em níveis desiguais de capitalização e também em critérios distintos de decisão e de otimização dos recursos disponíveis. Os estabelecimentos capitalistas procuram, em geral, a otimizar a taxa de lucro do capital investido. Os agricultores familiares, por sua vez, buscam otimizar a renda familiar ou, mais precisamente, a renda por ativo familiar. Se o fator mais limitante da produção for à mão-de-obra disponível, os agricultores provavelmente optarão por sistemas mais extensivos, que utilizam equipamentos e máquinas que reduzem o trabalho por unidade de área. Se for a área disponível, os agricultores buscarão sistemas mais intensivos, em geral mais exigentes em mão-de-obra, que aumentam a produtividade por unidade de área (horticultura, fruticultura, irrigação, criações intensivas, etc.). Em situações muito adversas ou instáveis, os agricultores podem procurar, sobretudo, garantir a segurança alimentar da família ou minimizar os riscos frente a fortes variações de safra ou de preço.

Valendo-se de racionalidades sócio-econômicas distintas, os agricultores fazem escolhas diferentes no que se refere às culturas, às criações, às técnicas, às práticas agrícolas e econômicas, etc. Nem todos adotam, portanto, o mesmo sistema de produção e as mesmas formas de exploração do ecossistema.

Convém, então, aprofundar o diagnóstico e realizar uma análise mais detalhada, relacionando as condições ambientais e sócio-econômicas e a evolução de cada tipo de agricultor com os diferentes sistemas de produção adotados por ele. Pode-se partir do pressuposto de que, apesar da diversidade de condições e de sistemas de produção de uma região, é possível reunir os agricultores em categorias e em grupos distintos, dentro dos quais as condições sócio-econômicas e as estratégias são semelhantes, mas entre os quais há diferenças significativas. Trata-se da tipologia de produtores e da tipologia de sistemas de produção.

6.2.1. Tipologia de produtores

Este procedimento metodológico que tem por objetivo classificar os agricultores com base numa série de critérios, a fim de diferenciá-los entre si. Muitos estudos sobre a agricultura costumam tipificar as unidades de produção agrícola em três tipos básicos: a) as unidades capitalistas, que dispõem de áreas extensas e cujos proprietários não trabalham diretamente na produção, realizada exclusivamente por trabalhadores rurais assalariados; b) as unidades familiares, nas quais o trabalho é quase exclusivamente familiar; c) as unidades patronais, nas quais a produção é realizada pela família e, simultaneamente, por trabalhadores assalariados, sejam eles permanentes ou temporários.

Não há uma tipologia padrão, válida para qualquer situação. Neste caso, é o estudo da realidade que indicará quais são os critérios mais pertinentes para agrupar os agricultores. Tampouco existe uma fronteira rígida entre cada tipo de produtor. Na realidade, os produtores estão sempre em evolução e podem mudar seus sistemas de

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produção ou passar de uma categoria social a outra, caso apresentem uma trajetória de acumulação de capital ou, ao contrário, de descapitalização. É importante que a tipologia revele essa dinâmica.

O conhecimento das diferentes categorias de produtores existentes num determinado espaço rural é fundamental para a definição do público prioritário dos programas e projetos que serão propostos. A identificação dos fatores que determinam à capitalização ou a descapitalização é também essencial para a escolha dos sistemas de produção a serem incentivados pelos projetos de desenvolvimento local.

6.2.2. Tipologia dos sistemas de produção

A utilização das metodologias do DSA permitem também o estabelecimento de uma tipologia dos sistemas de produção, aqui definidos como uma combinação (no tempo e no espaço) dos recursos disponíveis para a obtenção das produções vegetais e animais. Ele pode também ser concebido como uma combinação mais ou menos coerente de diversos subsistemas produtivos, tais como: a) os sistemas de cultivo das parcelas ou grupo de parcelas de terra, tratados de maneira homogênea, com os mesmos itinerários técnicos e com as mesmas sucessões de culturas; b) os sistemas de criação de grupos de animais (plantéis) ou de fragmentos de grupos de animais; c) os sistemas de processamento dos produtos agrícolas no estabelecimento (agroindustrialização). Assim sendo, um mesmo tipo de produtor pode adotar sistemas de produção diferentes, em função dos recursos de que dispõe e dos limites que encontra para produzir.

6.3. Caracterização dos sistemas de produção

Nesta etapa do diagnóstico procede-se uma caracterização dos sistemas de produção investigando as unidades de produção, as famílias, as parcelas e os grupos de animais. Para tanto, deve-se em primeiro lugar, se analisar cada um dos principais sistemas de produção, explicar a sua origem e a sua racionalidade. Isso requer um estudo aprofundado das práticas agrícolas e econômicas de cada grupo de agricultores - isto é, das técnicas, das variedades utilizadas, dos “consorciamentos” e das sucessões de culturas, etc., buscando relacioná-las aos recursos de que dispõem os agricultores e às condições sócio-econômicas e ambientais nas quais trabalham. Deve-se, também, fazer uma avaliação dos resultados econômicos dessas práticas, tanto do ponto de vista dos produtores quanto da perspectiva da sociedade.

Esse esforço permite identificar e hierarquizar os problemas técnicos, ambientais e econômicos que cada grupo de produtor vem enfrentando, possibilitando também o delineamento das tendências de evolução, não só do sistema agrário como um todo, mas de cada grupo em particular. Pode-se, então, propor as políticas ou os projetos mais apropriados para cada tipo de produtor, estabelecer prioridades para a assistência técnica, para o crédito ou para os investimentos em infra-estrutura, sugerir novos sistemas de cultura ou de criação, avaliar as possibilidades de mudança tecnológica, etc.

6.3.1. A preferência por amostragens não aleatórias

Na realização de um DSA, não importa tanto a representatividade estatística da zona estudada, e sim, a abrangência da diversidade de produtores e sistemas de produção existentes. Por isso, é importante que sejam escolhidos estabelecimentos e

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sistemas de produção que revelem a diversidade e as tendências identificadas, mesmo que certos grupos e sistemas “marginais” ou “extremos” sejam pouco representativos do ponto de vista estatístico.

Por essa razão, recomenda-se a elaboração de amostragens dirigidas. As amostras obtidas devem conter alguns produtores mais representativos de cada categoria social e de cada tipo de sistema de produção, previamente identificados. Evidentemente, caso a realidade local exija a elaboração de tipologias diferentes para cada zona, a amostra deve refletir essa conclusão.

Entre os aspectos mais importantes a serem considerados na análise das amostragens dirigidas, destacam-se: a) a gestão e a tomada de decisão na propriedade: verificar quem são as pessoas ou grupos de pessoas responsáveis pela gestão dos recursos e das produções; b) os recursos disponíveis: conhecer a história dos estabelecimento e da família, sua trajetória de acumulação ou de descapitalização, sua evolução recente, etc. Isto dará uma idéia geral das condições que levaram a capitalização ou descapitalização da família, assim como dos recursos disponíveis (mão-de-obra, áreas cultivadas ou exploradas, o capital fixo existente e os créditos ou subsídios que o agricultor acessou ou poderá acessar); c)a combinação das diferentes atividades produtivas: conhecer cada um dos subsistemas de cultura, criação e, eventualmente, de extrativismo ou de processamento de produtos existentes na propriedade. Neste item é necessário ainda verificar: os itinerários técnicos, as rotações ou os “consorciamentos”, o calendário de trabalho, a necessidade de mão-de-obra, os custos de produção, etc.

6.4. A conclusão do diagnóstico:

Com todas as informações coletadas e sistematizadas deve-se proceder a uma discussão dos resultados com os atores envolvidos, caso estes não tenham participado de todo o processo deve-se pelo menos buscar retornar o conteúdo das análises à comunidade investigada.A análise das informações colhidas possibilitará não só a revisão das hipóteses levantadas, como também do zoneamento agreocológico original.

Deve-se proceder a quantificação dos produtores e sistemas de produção tipificados, a fim de permitir a delimitação dos “grupos-alvo” e dimensionar com mais precisão os diferentes programas e projetos de desenvolvimento rural. Nesta direção, o DSA deve fornecer subsídios para a elaboração de propostas que solucionem os problemas identificados ao longo do processo. A execução de tais propostas deverá ser precedida de um planejamento participativo e do acompanhamento das ações pela comunidade.

7. Apontamentos críticos sobre os usos simplificadores do enfoque sistêmico

A disseminação do enfoque sistêmico trouxe contribuições importantes para a análise e interpretação dos processos sociais e produtivos no meio rural, que resultaram na construção de abordagens metodológicas inovadoras em relação aos enfoques reducionistas e disciplinares em vigor durante o período da revolução verde. Como exemplos nesta direção, poderíamos citar o DSA e o Diagnóstico Rural Rápido e Participativo (DRRP). Contudo, o reconhecimento dos “aspectos positivos” ou “virtudes” da abordagem sistêmica não significa, no entanto, que tenhamos que encará-la como “panacéia para todos os males”, como se esta fosse um “método infalível” no

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processo de análise e compreensão da realidade social do campo. Por isso é sempre bom lembrar a advertência feita por Mazoyer & Roudart (2010) de que a teoria dos sistemas agrários não pode se encarada como um dogma.

Neste sentido, é preciso reconhecer que a generalização do uso do enfoque sistêmico ou de ferramentas como o DSA apresentam alguns aspectos críticos. Segundo Almeida (2003, p. 4-5), existe atualmente um “discurso clichê” sobre a abordagem sistêmica nos meios acadêmicos e demais meios, cuja tendência é a reprodução de uma leitura simplista, redutora da sociedade e do real, confundindo seus objetos de análise com a própria realidade, o que leva à aceitação de que a sociedade (o sistema agrário, ou de produção) é realmente um sistema por si e para si. Nesta direção o autor chama a atenção para três riscos inerentes a este discurso: 1) o de naturalizar e substancializar as metáforas, tomando o sistema agrário, que é objeto de uma construção teórico metodológica, como se fosse a própria realidade; b) o de privilegiar a funcionalidade dos sistemas, encarando-os como estruturas dotadas de funcionamento próprio que tendem a se reproduzir em sua coerência; c) o de interpretar a interação entre os projetos de desenvolvimento e a população dentro de uma lógica em que cada um deles constituiria um subsistema.

Ou seja, apesar da abordagem sistêmica prever uma aproximação ou ajustamento progressivo da realidade, constata-se que a aplicação prática destas metodologias não tem levado em consideração a heterogeneidade social, as formas históricas de ocupação da terra e a dinâmica dos processos sociais atuais. Este é o caso, do uso dos enfoques sistêmicos nas ciências agrárias, nos quais a realização dos diagnósticos confere maior valorização aos temas agronômicos e à importância das atividades agrícolas, em detrimento de outras dimensões igualmente importantes à compreensão da dinâmica dos processos sociais no meio rural, tais como a questão socioambiental e cultural. Sob esta ótica, a adoção dos diagnósticos sistêmicos acabam atribuindo às dimensões econômica e técnico-produtivas um potencial que, isoladamente, não teriam. E, quando estes resultados são utilizados para subsidiar a formulação de políticas públicas, tendem a privilegiar intervenções orientadas apenas na obtenção de resultados técnicos e econômicos, desconsiderando-se as outras dimensões aqui mencionadas (Almeida, 2003, p. 6).

Outro aspecto crítico presente nos DSA´s, refere-se ao desencontro existente entre o discurso a favor da construção de um conhecimento interdiscipinar e o que se observa na operacionalização prática dessa metodologia. Em geral os DSA´s, acabam conferindo um peso maior aos temas relativos às ciências naturais e agrárias do que aos temas das ciências humanas e sociais. A persistência desse desequilíbrio entre as áreas do conhecimento pode contribuir para a construção de análises, nas quais a apreensão da realidade social tende a ser feita de forma a-histórica, estática, compartimentada e pouco dinâmica. A conseqüência disso é a construção de diagnósticos e a proposição de projetos de intervenção ancorados em um número reduzido de parâmetros, geralmente agronômicos, desconsiderando os aspectos inerentes às distintas racionalidades que presidem as práticas sociais e econômicas dos agricultores. Na interpretação de Almeida (2003, p. 8), a solução para este impasse deveria passar por um deslocamento da ênfase das análises nos sistemas de produção stricto senso para os grupos sociais implicados, a fim de entender a multiplicidade de aspectos que interferem na construção das suas distintas racionalidades econômicas e sociais.

Essa proposição acaba corroborando com outro aspecto crítico identificado no DSA, qual seja: o fato da coleta de dados realizada nesta metodologia ser obra quase que exclusiva dos especialistas, em detrimento de uma maior participação dos

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agricultores e das comunidades implicadas, o que o identificaria como um exo-diagnóstico. Contudo, esse tipo de crítica precisa ser relativizada, pois a avaliação de uma metodologia geralmente é feita com base nos seus objetivos originários e a intencionalidade dos seus realizadores. Neste caso, se a intenção for a de oportunizar um maior nível de participação dos agricultores na coleta e interpretação dos dados, o ideal seria lançar mão de outra ferramenta: o DRRP, pois este além de prever o envolvimento direto da comunidade se distingue do DSA por oportunizar uma coleta de dados de forma rápida e com menores custos7.

Convém destacar que não é possível estabelecer uma comparação maniqueísta entre um método e outro, já que ambos se assemelham por serem inspirados nos princípios da análise sistêmica, mas se diferem em relação aos objetivos. O DSA se caracteriza por ser uma metodologia que tem por objetivo realizar um estudo de caráter mais científico e acadêmico, a fim de indicar possíveis alternativas para a formulação das políticas públicas. A sua operacionalização geralmente exige a constituição de uma equipe de especialistas, os quais procuram fazer um levantamento detalhado da realidade, o que além de ser mais demorado, implica em um maior dispêndio de recursos financeiros. O DRRP por sua, vez se caracteriza por ser uma ferramenta de baixo custo, na qual a equipe de especialistas é responsável por definir um conjunto de ferramentas para o levantamento de informações feito mediante o estímulo da participação de todos os membros da comunidade, num espaço de tempo relativamente curto e, envolvendo um mínimo de custos financeiros. No DRRP não há uma intencionalidade prévia de coletar informações de forma detalhada e aprofundada, mas sim, identificar problemas e potencialidades que possibilitem uma intervenção no curto e médio prazo. O objetivo principal desta metodologia é gerar uma visão compartilhada dos problemas e potencialidades identificados por todos os seus participantes, sejam eles agricultores ou técnicos. No DSA, o compartilhamento das informações também pode ocorrer, mas este não ocorre de forma simultânea como no DRRP e, sim por meio de relatórios e apresentações feitas pela equipe de especialistas às comunidades envolvidas.

A identificação de aspectos críticos no DSA, não significa que estejamos estabelecendo aqui uma “condenação” ao uso deste método. Ao contrário, parte-se do entendimento de que é necessário conhecer não apenas os aspectos “positivos” de um determinado método, mas também os seus pontos críticos, de tal modo que os resultados produzidos não sejam encarados como “verdades absolutas” e sim, como “indicadores de realidade” sujeito às múltiplas interpretações por parte da equipe que realizou o DSA e das comunidades que participaram sob a condição de informantes.

7 O DRRP pode ser definido como um conjunto de técnicas e ferramentas que permite às comunidades fazerem o seu próprio diagnóstico e a partir daí começarem a autogestionar e seu planejamento e o seu desenvolvimento. Trata-se de um método de análise que parte das condições e das possibilidades dos seus participantes, no qual a intervenção da equipe de mediadores deve ser mínima. O objetivo principal do DRRP é apoiar a autodeterminação das comunidades pela participação, fomentando assim os processos de desenvolvimento sustentáveis (Verdejo, 2006).

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Bibliografia Consultada:

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ALVES, Flamorion Dutra. A metodologia sistêmica na geografia agrária: um estudo sobre a territorialização dos assentamentos rurais. In: Sociedade e Natureza. Uberlândia, n. 20, v. 1, p. 125-137, 2010.

BARRIENTOS, Mário et al. Los diagnósticos en extensión rural. (mimeo, sd).

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CASANOVA, Pablo González. As novas ciências e as humanidades: da academia à política. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006.

DUFUMIER, Marc. Projetos de desenvolvimento agrícola: manual para especialistas. Salvador: EDUFBA, 2010.

MAZOYER, Marcel & ROUDART, Laurence. História das agricultura no mundo: do neolítico à crise contemporânea. São Paulo: Editora UNESP; Brasília, DF: NEAD, 2010.

OZELAME, O. O enfoque sistêmico na extensão: desde os sistemas “hard” aos sistemas “soft”. In: Agrociência, 2002, vol. VI, N. 02, p. 53-60.

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