da psicologia da moda - um estudo sociológico (georg simmel)

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1 DA PSICOLOGIA DA MODA: UM ESTUDO SOCIOLÓGICO Georg Simmel O fundamento fisiológico do nosso ser, que aponta para a mudança de repouso e movimento e de receptividade e atividade, contém, com isso, também o modelo do nosso desenvolvimento espiritual. Quando o nosso conhecimento é levado tanto pela procura da máxima abstração e generalidade quanto pela necessidade de descrever o mais específico e particular; quando em nossa vida sentimental nos satisfazemos na pacífica dedicação a outros seres humanos e coisas ou em enérgica atividade contra eles; quando o nosso ser ético encontra fronteiras de suas oscilações tanto no amálgama do nosso grupo quanto na distinção individual em relação ao mesmo - tudo isso se refere a conformações provinciais das grandes forças contraditórias, cujas lutas e compromissos fazem o nosso destino. Essas fontes e orientações últimas que caracterizam tudo que é humano não podem sequer ser expressas por palavras. Apenas a partir daquelas manifestações singulares, quando essas orientações últimas produzem, por meio da sua direção, os conteúdos particulares da vida, nos quais elas se realizam, pode-se apontar para elas e decantá-las como forças iguais de esferas distintas. Elas podem expressar-se pela oposição entre Eleatas e Heráclito, ou, como no presente, pela oposição entre socialismo e individualismo. As formas de vida típicas da história de nossa espécie demonstram sempre a eficácia desses princípios antagônicos. Todos eles expressam, na sua esfera, e sob uma forma específica, o interesse de unir a permanência e a perseverança da mesma maneira que a mudança e a variação; de fundar um acordo entre o geral e o mesmo com o específico e singular; de proporcionar um compromisso entre a dedicação à totalidade social e a imposição da própria individualidade. Nas configurações sociais dessas contradições temos, freqüentemente, um dos pólos como portador da tendência psicológica para a "imitação". A

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Page 1: Da Psicologia da Moda - um estudo sociológico (Georg Simmel)

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DA PSICOLOGIA DA MODA: UM ESTUDO SOCIOLÓGICO

Georg Simmel

O fundamento fisiológico do nosso ser, que aponta para a mudança de

repouso e movimento e de receptividade e atividade, contém, com isso,

também o modelo do nosso desenvolvimento espiritual. Quando o nosso

conhecimento é levado tanto pela procura da máxima abstração e generalidade

quanto pela necessidade de descrever o mais específico e particular; quando

em nossa vida sentimental nos satisfazemos na pacífica dedicação a outros

seres humanos e coisas ou em enérgica atividade contra eles; quando o nosso

ser ético encontra fronteiras de suas oscilações tanto no amálgama do nosso

grupo quanto na distinção individual em relação ao mesmo - tudo isso se refere

a conformações provinciais das grandes forças contraditórias, cujas lutas e

compromissos fazem o nosso destino.

Essas fontes e orientações últimas que caracterizam tudo que é humano

não podem sequer ser expressas por palavras.

Apenas a partir daquelas manifestações singulares, quando essas

orientações últimas produzem, por meio da sua direção, os conteúdos

particulares da vida, nos quais elas se realizam, pode-se apontar para elas e

decantá-las como forças iguais de esferas distintas. Elas podem expressar-se

pela oposição entre Eleatas e Heráclito, ou, como no presente, pela oposição

entre socialismo e individualismo.

As formas de vida típicas da história de nossa espécie demonstram

sempre a eficácia desses princípios antagônicos. Todos eles expressam, na

sua esfera, e sob uma forma específica, o interesse de unir a permanência e a

perseverança da mesma maneira que a mudança e a variação; de fundar um

acordo entre o geral e o mesmo com o específico e singular; de proporcionar

um compromisso entre a dedicação à totalidade social e a imposição da própria

individualidade.

Nas configurações sociais dessas contradições temos, freqüentemente,

um dos pólos como portador da tendência psicológica para a "imitação". A

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imitação nos proporciona, de pronto, o estímulo de uma efetiva prova de força,

na medida em que não exige nenhum esforço criativo e pessoal relevante, e

nos é conferida de forma leve e direta a partir do caráter dado do seu conteúdo.

Ao mesmo tempo, ela nos dá a tranqüilidade de não estarmos sozinhos na

ação em questão. Ela se sobrepõe à forma como uma atividade é

costumeiramente executada, como um fundamento sólido que desobriga a

execução atual da dificuldade de carregar a si próprio. Na imitação é o grupo

que conduz o indivíduo, na medida em que, simplesmente, transmite a forma

do seu comportamento e liberta o indivíduo da tortura e da responsabilidade da

escolha.

Mas a imitação é apenas "uma" das direções fundamentais do nosso

ser, aquela, precisamente, que satisfaz a unidade, a igualdade e o amálgama

do indivíduo na generalidade, enfatizando o momento da permanência na

transitoriedade. Não acontece o mesmo com aquela direção que, ao contrário,

procura o transitório no permanente, a diferença individual, a auto-suficiência, o

distanciamento da generalidade. Se se analisa estas duas tendências antagô-

nicas como uma imagem das suas formas biológicas fundamentais, pode-se

descrever a imitação como uma herança psicológica, enquanto o esforço de

superá-la em direção a formas de vida próprias e novas corresponderia à

variabilidade.

Para a moda é essencial nesse contexto o seguinte: ela satisfaz, por um

lado, a necessidade de apoio social, na medida em que é imitação; ela conduz

o indivíduo às trilhas que todos seguem. Ela satisfaz, por outro lado, a

necessidade da diferença, a tendência à diferenciação, à mudança, à distinção,

e, na verdade, tanto no sentido da mudança de seu conteúdo, o qual confere

um caráter peculiar à moda de hoje em contraposição à de ontem e à de

amanhã, quanto no sentido de que modas são sempre modas de classe. As

modas dos estratos superiores diferenciam-se daquelas dos estratos inferiores,

e são prontamente abandonadas quando os últimos passam a se apropriar das

mesmas. "A moda é uma forma peculiar dentre aquelas formas de vida, por

meio das quais se procura produzir um compromisso entre a tendência para a

igualdade social e a tendência para marcar a distinção individual". Nessa

essência fundamental da moda, ordenam-se os traços psicológicos que nela

observamos.

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Do ponto de vista sociológico ela é, como mencionado, um produto de

separação de classe, da mesma forma como a honra era originalmente honra

estamental, ou seja, retirava seu caráter e, acima de tudo, seus direitos éticos

do elemento estamental, de forma que o indivíduo na sua honra representava e

protegia seu círculo social e seu estamento. Do mesmo modo, a moda

significa, por um lado, o pertencimento em relação àqueles que estão na

mesma situação, e, por outro, o distanciamento do grupo como um todo em

relação aos que se situam abaixo socialmente.

As formas sociais, a vestimenta, os julgamentos estéticos, o estilo por

inteiro, por meio do qual o homem se expressa, são percebidos na sua

modificação progressiva por meio da moda, e esta, ou seja, a nova moda, diz

respeito, em todas as suas manifestações, apenas aos estamentos superiores.

Estes se apartam, desse modo, dos estamentos inferiores, ressaltando a

igualdade dos seus componentes e, simultaneamente, a distinção em relação

aos que se situam abaixo. Tão logo estes últimos começam a apropriar-se da

moda - precisamente porque- eles olham e se orientam sempre para cima e

conseguem realizar essa aspiração antes de tudo na moda -, reagem os

estamentos superiores com o abandono da mesma e a pronta inclinação para

uma nova moda, por meio da qual a distinção em relação à massa se realiza

novamente. Esse momento da separação que, ao lado do momento da

imitação, constitui a essência da moda mostra-se, na ausência de uma estra-

tificação estamental vertical, até mesmo na estratificação horizontal dos

estamentos. A respeito de alguns povos primitivos comenta-se que, entre

grupos com estreitas relações de vizinhança e que vivem nas mesmas

condições, desenvolvem-se, às vezes, modas absolutamente distintas, por

meio das quais cada grupo pretende marcar o pertencimento intragrupal e a

diferença extragrupal.

A esse momento do pertencimento intragrupal é conferida uma luz

peculiar, pelo fato de que as modas freqüentemente são produzidas de fora

para dentro. Elas são valorizadas com especial predileção dentro de certo

círculo como "moda", quando não são constituídas dentro do mesmo. Pelo fato

de as modas virem de fora, elas produzem uma forma singular de socialização,

a qual aparece na medida em que dá ensejo a uma relação comum referente a

um ponto localizado externamente. Parece que às vezes os elementos sociais

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procuram convergir, como os eixos do olhar, para um ponto não-localizado de

maneira muito próxima, e, desta forma, apresentam, ao lado do elemento

centrípeto e socializador, também, por meio da moda, o componente de

variabilidade e de satisfação dos impulsos para a variação. Assim sendo, a

origem da moda garante, de forma peculiar, pela procedência externa, a sua

"novidade", ou seja, a distinção em relação ao estado de coisas que vigorava

até então. Essa mudança abrupta realiza-se, freqüentemente, por meio de

oposições, porque, apenas quando se está imerso nelas, toma-se, de fato,

consciência de si próprio.

A partir das tendências contraditórias do nosso ser, para as quais cada

um dos lados da moda representa uma unificação singular, verificamos que

uma encontra sua satisfação na forma social da moda, enquanto a outra no seu

conteúdo. Onde falta um desses dois momentos - seja a necessidade e a

possibilidade da distinção, seja a necessidade e o desejo de vincular-se aos

outros -, aí também termina o reinado da moda. Por conta disso, os estamentos

inferiores possuem raramente modas específicas, que foram escolhidas como

tais; e também, pela mesma razão, são as modas dos povos primitivos bem

mais estáveis que as nossas. Também pela razão contrária, em um círculo

onde os indivíduos buscam uma significação de caráter particular e a imitação

é abominada, não temos a formação de uma moda. Supõe-se que, em

Florença, por volta de 1390, não havia nenhuma moda dominante do vestuário

masculino, pelo fato de que cada qual procurava vestir-se de forma particular.

A essência da moda reside no fato de que sempre apenas uma parte do

grupo a pratica; a totalidade, no entanto, fica a meio caminho dela. Ela nunca é,

mas é sempre um vir a ser. Tão logo ela seja dominante, ou seja, tão logo

aquilo que apenas alguns poucos praticavam passe a ser praticado por todos

sem exceção, como elementos do vestuário ou das formas de contato social,

não se pode mais falar em moda. Desse fato - de que a moda como tal não

pode ter alcance geral - é que surge no indivíduo a satisfação que a moda

representa, na medida em que o particulariza como algo especial, enquanto, ao

mesmo tempo, ele é carregado pela multidão que anseia o mesmo - e não

como em outras formas de satisfação social da totalidade de efetivos fazedores

do mesmo. Por conta disso, é que a mentalidade que permeia o modismo

exprime uma mistura bem temperada entre aprovação e inveja.

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A moda toma-se, dessa forma, a arena por excelência dos indivíduos, os

quais não são autônomos no seu íntimo e no seu conteúdo pessoal, que

necessitam da aprovação social, ao mesmo tempo que sua auto-:estima exige

distinção, atenção e o sentimento de ser algo especial. Ela eleva de certo modo

também o insignificante, na medida em que o faz representante de um coletivo,

sentindo-se portador de um espírito geral. Nos fanáticos pela moda e nos

"janotas" (Gigerl), temos esse fenômeno levado ao paroxismo, no qual aparece

de novo a aparência do individual e da especialidade. O “janota" leva a

tendência da moda para além das suas próprias medidas: se é moda sapatos

com bico, ele deixa que os seus terminem em esporões; se é moda colarinho

alto, ele os traz até as orelhas; se é moda ir à igreja aos domingos, ele

permanece nela de manhã até a noite, etc. A individualidade que ele imagina

baseia-se no aumento quantitativo de elementos que são, na realidade, bem

comuns da multidão. Ele caminha na frente dos outros e, ao mesmo tempo, no

caminho dos outros. Ele marcha aparentemente na vanguarda da multidão,

precisamente porque representa a ponta-de-lança do gosto público. Na

realidade, vale para os heróis da macia o que de resto é observado em todas

as relações do indivíduo com o seu grupo social: o guia é, na verdade, o

guiado. O herói da moda representa, dessa forma, uma relação de equilíbrio

verdadeiramente original entre os impulsos socializadores e individualizantes. E

é a partir do estímulo, que advém desse fato, que podemos compreender as

tolices modísticas aparentemente tão abstrusas em algumas pessoas, as

quais, em outras ocasiões, são muito lúcidas e até de grande valor.

Em relações primitivas, e também em estágios elevados, cria-se,

freqüentemente, uma moda a partir da invenção, por parte de alguma

personalidade extraordinária, do modo de vestir, de se comportar, de se

interessar, etc., modos estes que permitem a essa personalidade distinguir-se

dos outros. Esses outros procuram avidamente essa nova oportunidade de

prestígio, imitando, tão rápido quanto possível, por conta de sua significação, o

comportamento daquela personalidade. A satisfação deste último advém da

mistura entre o sentimento de individualidade, de possuir algo especial e

particular, e o sentimento social, pela imitação da multidão que o leva a ser

carregado pelo seu espírito. Apesar de os dois sentimentos oporem-se

logicamente, psicologicamente esses são compatíveis e até estimulam-se

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reciprocamente. Cada imitador participa, naturalmente em um grau menor,

dessa mesma constelação emocional até que a moda alcance total aceitação e

perca o seu elemento individualizador.

Uma mesma combinação dessas tendências é alcançada, da mesma

forma que pela extrema obediência à moda, pela oposição à mesma. Quem se

comporta e se veste de maneira conscientemente anacrônica conquista o

sentimento de individualidade não propriamente por meio de qualificação

própria e pessoal, mas pela mera negação do modelo social: se modernidade

significa imitação do modelo social, temos então no anacronismo intencional

uma imitação de sinal trocado, o qual, entretanto, é testemunha do poder da

tendência social, que, de uma forma ou de outra, seja positiva ou

negativamente, nos faz dependente dela. Pode até acontecer que se tome

moda, em amplos círculos de uma sociedade abrangente, vestir-se não-

modernamente. Essa é uma das mais estranhas complicações sociológicas na

qual, em primeiro lugar, o impulso da distinção individual se satisfaz com a

mera inversão da imitação social e, em segundo lugar, retira a sua força de um

círculo restrito de iguais: sociologicamente, um fenômeno análogo à

associação dos inimigos das associações.

O significado sociológico do modo de expressar, simultaneamente, tanto

o impulso para a igualidade quanto para a individualidade, tanto o estímulo

para a imitação quanto para a distinção, talvez possa explicar por que

especialmente as mulheres apóiam-se, em geral, na moda. Apesar de a

prudência científica dever resguardar-se contra qualquer julgamento sobre as

mulheres no plural, deve permitir-se, ao menos, veicular o pensamento geral de

que a ciência psicológica feminina é distinta da masculina e se baseia numa

carência de diferenciação, numa ênfase na média social, resultando daí a

relação mais estreita no que concerne aos costumes, às formas aceitas

geralmente e ao que "convém". A partir da sólida base dos costumes, da

média, do nível geral, elas se esforçam por alcançar uma relativa

individualização e uma relativa distinção da personalidade individual que

estejam dentro dos limites sociais. A moda oferece a elas precisamente essa

combinação: por um lado, a região da imitação geral, a moda nas correntes

sociais mais amplas; por outro lado, a distinção, a ênfase, o adorno individual

da personalidade.

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E ainda mesmo lá onde a moda se cruza com os mais recônditos

movimentos psíquicos, ela preserva a sua relação de equilíbrio típico entre as

tendências contraditórias: é na realidade importante que ela pretenda submeter

todas as individualidades a uma mesma medida; no entanto, não é verdade

que ela perpasse o ser humano como um todo; a moda permanece em relação

a ele, por conta de sua mutabilidade, a qual, precisamente, tem seu critério de

medida no caráter mais permanente do sentimento do eu, sempre alguma

coisa relativamente externa, contra a qual o ser humano pode perceber, ao

menos em situações-limite, a própria personalidade como pièce de résistance.

E é, na verdade, apenas uma intensificação dessa nuança, quando

homens refinados e originais utilizam a moda como uma máscara, como uma

reserva consciente e desejada do seu sentimento e gosto mais pessoal que

eles alcançam por meio de cega obediência à norma geral em todas as

exterioridades. Isso representa uma vergonha e uma timidez refinadas de trair

a particularidade da natureza mais íntima por uma particularidade da

apresentação exterior, fazendo com que algumas dessas pessoas procurem

refúgio no elemento ocultador do nivelamento da moda.

Aquele dualismo simultaneamente satisfeito da unidade igualizadora e

da distinção individual transmuta-se também para as configurações internas da

alma individual - de acordo com aquele paralelismo característico segundo o

qual, tão freqüentemente, relações intersubjetivas repetem-se na imaginação

individual. Com maior ou menor grau de intencionalidade, o indivíduo constrói

para si próprio uma forma de comportamento, de estilo, a qual, por meio do

ritmo de sua aparição, da forma como se impõe e como se retira, pode ser

caracterizada como uma moda. Principalmente as pessoas jovens demonstram

uma extravagância surpreendente na sua maneira de apresentar-se, um

interesse sem fundamento real de produzir-se que domina todo seu círculo de

consciência e desaparece da mesma forma irracional como apareceu. Isso

pode ser chamado de moda pessoal, que constitui um caso-limite da moda

social. Ela é definida a partir da necessidade individual de diferenciação e

substitui a necessidade gregária da imitação por meio da concentração da

própria consciência. A coloração unitária que o ser atinge por meio disso talvez

signifique uma coesão, uma forma mais profunda pela qual esse indivíduo é

levado pelo conteúdo total do eu, como se a moda fosse uma outra.

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Pelo fato de a moda representar um momento de coincidência notável

entre as diversas dimensões da vida, resulta que o ritmo geral no qual se

movimentam indivíduos e grupos influencia também, de maneira decisiva, a

relação destes com a moda. Percebemos que conservadorismo e variabilidade

distribuem-se de forma bastante irregular nos diferentes estamentos de um

agrupamento político. Por um lado, são as massas mais baixas de movimento

difícil e de desenvolvimento lento. Elas produzem muitas vezes como por

exemplo na Inglaterra, como é bem visível, por ocasião das conquistas dos

dinamarqueses e dos normandos - a continuidade da vida do povo, dado que

se apegam teimosamente às suas primitivas formas de vida, enquanto os

estamentos situados mais acima, como o cume de uma árvore pelo movimento

da atmosfera, são atingidos e modificam-se de maneira mais radical a partir de

novas influências.

Por outro lado, são, reconhecidamente, os estamentos superiores os

mais conservadores, até mesmo, freqüentemente, arcaístas e apenas

desenvolvem-se em ritmo pesadamente lento. O estamento médio é aquele da

variabilidade, e por conta disso é que a história dos movimentos socioculturais

ganha um ritmo absolutamente diferente desde que o tiers état assumiu o

comando. A partir disso é que podemos compreender por que a moda - a forma

da mudança e da contradição da vida, para cujo conteúdo o momento da altura

a1cançada representa, simultaneamente, o momento da queda -, desde a

dominação da burguesia, passou a abranger mais e mais esferas da vida,

ressoar, cada vez mais, rápidos e coloridos ritmos, ganhar cada vez mais

validade.

As classes e os indivíduos mais nervosos que pressionam por mudanças

reencontram na moda o ritmo dos seus próprios movimentos psicológicos: ela

possui uma curva de consciência muito aguda, precisamente por chamar para

si, de forma muito forte, a atenção, por significar uma radicalização

momentânea de consciência social para um certo ponto, é a razão última da

semente de sua morte e de seu destino, para desaparecer. Qualquer outra

coisa simultaneamente nova e repentinamente generalizada, seja na teoria

como na prática, não seria nunca uma moda para alguém que acredita na

verdade e permanência dela. Apenas alguém convencido de sua rápida

aparição e desaparecimento poderia assim defini-Ia.

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Temos, no entanto, em oposição a isso, o fenômeno estranho de que

toda moda singular aparece como se quisesse viver para sempre. Quem

compra hoje um mobiliário, que deve durar um quarto de século, compra-o de

acordo com a última moda sem sequer considerar aquela que vingava dois

anos antes. No entanto, depois de alguns anos, o estímulo dessa moda já teria

passado, ficando para ambas outros critérios de avaliação. Parece realizar-se

aqui um processo dialético-psicológico: sempre existe uma moda, ou seja, a

moda como um conceito geral é imortal e está refletida em todas as suas

conformações particulares, apesar de a essência dessas manifestações

particulares residir precisamente no fato de elas não serem passageiras; de

que a mudança dura dota cada objeto, nu qual ela se realiza, de uma idéia

psicológica de duração.

O que existe de picante na atração estimulante da moda é o contraste

entre sua ampla proliferação, que a tudo abarca, e seu caráter de rápida e

fundamental transitoriedade - a qual, por sua vez, também se contrapõe àquela

ilusória pretensão de validade duradoura. Essa atração reside tanto na forma

decidida pela qual a moda consegue constituir um círculo - no qual o efeito de

pertencimento se manifesta como causa e efeito seus - quanto na de-

tenninação com a qual ela o isola dos outros círculos. Essa atração manifesta-

se, finalmente, tanto pela possibilidade de ser levado por um círculo social, o

qual exige dos seus participantes imitação recíproca, retirando deles, dessa

forma, o peso de toda responsabilidade - seja ética, seja estética -, quanto pela

possibilidade, ainda que dentro desses limites, de propiciar intensificação da in-

dividualidade e nuances originais dos elementos da moda. Dessa forma, a

moda mostra-se como uma configuração singular, extremamente caracterizada

dentro das configurações múltiplas já mencionadas, na qual a conveniência

social objetificou correntes contrárias da vida segundo direitos iguais.

Extraído de: SOUZA, Jessé e ÖELZE, Berthold. Simmel e a modernidade. Brasília:

UnB. 1998. p. 161-170.