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Universidade de Marília Faculdade de Comunicação, Educação e Turismo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Da obra literária à minissérie televisiva: um estudo da transcodificação da decadência moral da personagem Luísa do romance O Primo Basílio de Eça de Queirós Élica Luiza Paiva Marília 2006

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Universidade de Marília

Faculdade de Comunicação, Educação e TurismoPrograma de Pós-Graduação em Comunicação

Da obra literária à minissérie televisiva: um estudo datranscodificação da decadência moral da personagem Luísa do

romance O Primo Basílio de Eça de Queirós

Élica Luiza Paiva

Marília2006

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Élica Luiza Paiva

Da obra literária à minissérie televisiva: um estudo datranscodificação da decadência moral da personagem Luísa do

romance O Primo Basílio de Eça de Queirós

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade deComunicação, Educação e Turismo daUniversidade de Marília, na área deconcentração “Mídia e Cultura”, linha depesquisa “Ficção na Mídia”, como requisitopara obtenção do título de Mestre.

Orientadora: Profª. Dra. Lúcia CorreiaMarques de Miranda Moreira.

Marília2006

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Universidade de MaríliaFaculdade de Comunicação, Educação e Turismo

Reitor:Márcio Mesquita Serva

Programa de Pós-Graduação em ComunicaçãoCoordenadora: Profª. Drª. Suely Fadul Villibor Flory

Área de Concentração: Mídia e Cultura

Linha de pesquisa: Ficção na Mídia

Orientadora:Profª. Drª. Lúcia Correia Marques de Miranda Moreira

Marília2006

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Banca Examinadora

Élica Luiza Paiva

Da obra literária à minissérie televisiva: um estudo datranscodificação da decadência moral da personagem Luísa do

romance O Primo Basílio de Eça de Queirós

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do Grau deMestre, no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Comunicação, Área deConcentração: Mídia e Cultura, Linha de Pesquisa: Ficção na Mídia, daFaculdade de Comunicação, Educação e Turismo da Universidade de Marília,Marília – SP, pela seguinte Banca Examinadora:

Profª. Drª. Lúcia Correia Marques de Miranda MoreiraOrientadora

Prof. Dr. Altamir BottosoExaminador

Profª. Drª. Rosângela MarçollaExaminadora

Marília2006

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Agradecimentos

... da mesma forma como a noite nos mostra uma infinidade de pontos-luz a brilhar nocéu assim deveria ser esta página, com uma infinidade de nomes, de pessoas a quem possochamar de anjos! Entretanto, como não consigo contar todas as estrelas do céu, também nãoconseguiria agradecer a cada um que participou... ensinou... riu... sofreu comigo asdificuldades e sentiu o sabor desta fase.

Embora as estrelas não possam ser contadas por mim, elas continuam a fazer parte domeu universo e a ter um brilho especial como os meus anjos. Anjos que Deus enviou para nãome deixarem cair, nem desistir, nem chorar, nem ficar sem abrigo, nem sem carinho, nem semalimento, nem sem trabalho, muito menos sem um sorriso! Costumo dizer que a minha fé éinfinita como o amor do poeta, e é a Ele que agradeço. Ao que considero o maior dos poetas,Deus. E aos seus anjos...

O professor que disse que eu deveria fazer a minha parte, pois Deus providenciariatodo o resto! Devo a ele o desejo e a certeza de que seria possível ser uma Mestra: Ms.Roberto Reis de Oliveira.

Àquela que regou a semente do desejo e da certeza e se dispôs a me ajudar a trabalharno projeto de dissertação, sem ao menos imaginar que depois viria a ser a minha orientadora,o meu anjo do conhecimento, da sensibilidade e da razão. Hoje, minha amiga: Profª. Drª.Lúcia Miranda.

À família Rocha dos Santos que me adotou como filha e me carregou no colo desdeentão. Mas não foi só esta família que Deus me deu no decorrer destes anos! Por outros larespassei... dos Gonçalves de Oliveira, dos Nunes Rufini, os Del Faveri Cório e dos Dezotti. Emtodos eles me senti filha, irmã, amiga, amada e rica da graça de Deus. Impossível descrever agratidão que tenho por estes seres humanos, realmente HUMANOS e ao mesmo tempodivinos, pela bondade infinita permanente em seus corações.Meus amigos: Savanna da Rosa Ramos, Lidiane Rocha dos Santos, Maria de Fátima NunesRufini, Michel William Dezotti, Fábio Gonçalves de Oliveira, Mariana Dalan, Clara BeatrizDezotti, Silvana Romano da Silva, Mário Rufini, Maria de Lourdes Del Faveri Cório,Cipriano Sanches, Carolina Dalan, Janaina Ravanelli, Maria Eugênia Nunes Rufini, ÉlioJanoni, Lariane Febraio, José Antonio Dezotti, Agostinho Del Faveri Cório, Jacqueline S.Périssé, Juliana Rodrigues Miyamae, Mário Victor Nunes Rufini, Marcos Rogério Campos eGeórgia Alessandra Gomes. Por aquelas conversas e as trocas de informações nasmadrugadas... as risadas... as orações... os desesperos... as lágrimas... a ousadia... aperseverança... a fé... a paciência... um abraço... uma palavra de conforto. Foram o meucombustível para que eu conseguisse me manter perseverante.

Isso explica as reticências usadas no início, uma gratidão infinita, que tem a sua raizplantada na minha primeira família, a que me deu a vida e me ensinou a fórmula da riquezaespiritual: a alegria de viver! Meus pais Antonio Batista Paiva e Maria Luiza Romano dePaiva, meus irmãos José Luís Paiva e esposa e Edna Aparecida Paiva Pereira e esposo.

Amigos? Irmãos? Pais? Mães? Não importa! Todos ANJOS de Deus... meus anjos! Atodos... a minha eterna gratidão.

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Dedicatória

Dedico este trabalho às pessoas que mais amo nesta vida...Meus pais Antonio Batista Paiva e Maria Luiza Romano de PaivaMeus irmãos de sangue e de coração...Edna A. Paiva e José Luís PaivaLidiane Rocha dos Santos e Fábio Gonçalves de OliveiraMichel Willian Dezotti e Savanna da Rosa RamosElizete da Silva e Geórgia A. GomesMario Victor Nunes Rufini e Maria Eugênia Nunes RufiniE finalmente à pessoa mais surpreendente, mais otimista, mais guerreira, mais amável, quepelo imenso amor que cultiva em seu coração é meu maior exemplo de vida! Minha mãe decoração: Maria de Fátima Nunes Rufini.

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Traduzir-se

Uma parte de mimÉ todo mundo;

outra parte é ninguém:fundo sem fundo.

Uma parte de mimÉ multidão;

outra parte estranhezae solidão.

Uma parte de mimPesa, pondera:

outra partese espanta.

Uma parte de mimé permanente;

outra partese sabe de repente.

Uma parte de mimé só vertigem;

outra parte,linguagem.

Traduzir uma partena outra parte

- que é uma questãode vida ou morte –

será arte?

Ferreira Gullar

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ResumoEsta pesquisa analisa o processo da decadência moral da personagem Luísa do romance doescritor português, Eça de Queirós, intitulado O Primo Basílio e a sua transcodificação para amídia televisiva, a minissérie homônima produzida e veiculada pela Rede Globo de Televisão,em 1988. Para tanto, faz-se um estudo tanto da narrativa literária, com suas metodologias eteorias quanto da narrativa televisiva, sempre abordando como ambas as narrativas contam ahistória da derrocada moral da personagem escolhida como objeto-recorte para análise.Aborda-se ainda a questão do espaço e do tempo, bem como o processo de construção dospersonagens, o qual foi evidenciado por meio de embasamento teórico apoiado em diversosautores da teoria narrativa e de roteiros fílmicos e televisivos.

Palavras-chave: narrativa literária, narrativa televisual, comunicação, transcodificação eminissérie televisiva.

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AbstractThis research analyzes the process of the character's moral decadence Luísa of the Portuguesewriter, Eça de Queirós, entitled O Primo Basílio and its transcodification for the televisemedia, the produced homonymous series and transmitted by Globo Television Net, in 1988.For this, it is made makes a study as of the literary narrative, with its methodologies andtheories as of the narrative of television, approaching how both narratives always tells thehistory of the character's morals overthrown chosen as object-target for analysis. It is stillstudied the subject of the space and time, as well as the process of the characters' construction,which was evidenced by means of theoretical basis supported in several authors of thenarrative theory and of film and television directions.

Key Words: literary narrative, televise narrative, comunication, transcodification andtelevision series.

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SUMÁRIO

Resumo ......................................................................................................................................8

Abstract .....................................................................................................................................9

Introdução ...............................................................................................................................11

Capítulo I.................................................................................................................................13

1.1 Contextualização histórica do romance O Primo Basílio..............................................13

1.2 Linguagem Literária: elementos estruturais da narrativa ..............................................17

1.2.1 O tempo e o espaço na narrativa de O Primo Basílio.............................................23

1.3 A construção dos personagens.......................................................................................28

1.3.1 A derrocada moral da personagem Luísa no espaço doméstico.............................30

1.3.2 A derrocada de Luísa no espaço do adultério (Paraíso) ........................................34

Capítulo II ...............................................................................................................................48

2.1 A chegada da TV no Brasil............................................................................................48

2.2 A linguagem televisiva ..................................................................................................49

2.3 Formatos ficcionais televisivos: filme, telenovela e minissérie ....................................55

Capítulo III..............................................................................................................................64

3.1 A transcodificação: do livro à TV .................................................................................64

3.1.1 A minissérie O Primo Basílio.................................................................................66

3.2 Quando a câmera narra a história ..................................................................................71

3.2.1 A decadência moral da personagem Luísa na minissérie .......................................73

Considerações Finais ..............................................................................................................82

Referências ..............................................................................................................................86

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Introdução

Quando se questiona a relação entre literatura e a sua transcodificação para outros

códigos, como os do cinema e da televisão, abrem-se muitas possibilidades de estudo e

interpretação. É a partir destas possibilidades e considerando a importância para a pesquisa

em Comunicação que surgiu o tema estudado nesta dissertação, uma junção e ao mesmo

tempo uma decodificação de dois códigos que contam, a partir de formatos diferentes, a

história de Luísa Mendonça de Brito Carvalho e o seu relacionamento amoroso com o primo

Basílio de Brito, personagens do romance O Primo Basílio, do escritor português Eça de

Queirós.

Eça é considerado como um dos mais brilhantes escritores de todos os tempos por

inúmeros fatores, mas principalmente pela atemporalidade dos assuntos que expõe em suas

obras. Na sua fase realista, dentre outras obras relevantes, escreveu O Primo Basílio escolhida

pela Rede Globo de Televisão para ser adaptada para o formato de minissérie.

A proposta deste trabalho é estudar tanto a obra literária quanto a transcodificação para

a mídia televisiva, na linha de pesquisa “Ficção na Mídia”. Contudo, tanto na primeira quanto

na segunda, o recorte a ser analisado é o processo de decadência moral, bem como física, da

personagem Luísa no espaço doméstico e no espaço do adultério, que se configuram no

desenrolar da trama romanesca criada pelo autor português com o intuito de compor um

cenário, também desenvolvido em outros romances seus, da vida portuguesa do século XIX,

denunciando mazelas sociais comportamentais, sobretudo referentes à burguesia.

O primeiro capítulo pretende fazer uma apresentação do romance com relação à

contextualização dos acontecimentos apresentados no enredo, bem como delinear os

elementos fundamentais à compreensão da sua estrutura narrativa. Depois deter-se-á em

questionamentos acerca da construção dos personagens enfocando sempre a personagem

Luísa e o processo da sua decadência moral nos espaços doméstico e do adultério, conforme

mencionado.

A partir destas observações, no próximo capítulo - como a televisão é o suporte

técnico da minissérie a ser estudada - pressupõe-se que seja proeminente fazer algumas

considerações sobre a sua chegada no Brasil e ainda, abordar aspectos relevantes da sua

linguagem e os formatos que utiliza para propagar a ficção.

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Já o terceiro e último capítulo desta dissertação tem o propósito de considerar de uma

forma menos complexa, como se dá o processo de transcodificação de uma obra literária para

a minissérie televisiva, tendo como ponto de partida a adaptação do referido romance para a

minissérie.

Compõem o suporte técnico do presente trabalho as obras de: Aguiar e Silva, Arbex Jr,

Agel, Abdala Jr, Pierre Bordieu, Beth Braith, Syd Field, Marcondes Filho, Martin Barbero &

Rey, Renato Ortiz, Pellegrini, dentre outros. E dando prosseguimento ao trabalho, passa-se,

no próximo capítulo, a tecer considerações sobre o romance queirosiano que é um dos objetos

da presente pesquisa.

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Capítulo I

1.1 - Contextualização histórica do romance O Primo Basílio

A presente pesquisa tem como objeto de estudo a obra literária O Primo Basílio de

José Maria Eça de Queirós, publicada em 1878 e a sua adaptação para o formato televisivo, a

minissérie homônima produzida e veiculada pela Rede Globo de Televisão no ano de 1988.

Para tecer esta dissertação pretende-se fazer um resgate do processo de decadência

moral da personagem Luísa nos espaços doméstico e do adultério, primeiro na obra literária e

posteriormente na adaptação para a mídia televisiva. Vale ressaltar que este recorte vai servir

de objeto de análise para explicitar o processo de transcodificação da narrativa literária para a

televisual.

Este capítulo reter-se-á na apresentação do romance e na contextualização da sua

estrutura narrativa (foco narrativo, narrador, espaço social e físico, tempo histórico e

psicológico e personagem). Entretanto, não serão analisadas todas as suas vertentes e sim as

que se destacam no objeto-recorte desta pesquisa.

O Primo Basílio é uma obra fundamental do Realismo-Naturalismo (1865-1900)

português. O movimento Realista-Naturalista é posterior ao Romantismo (1825-1865), o qual

teve suas primeiras manifestações literárias nos países europeus mais desenvolvidos,

principalmente na Alemanha e na Inglaterra. Entretanto, foi na França que este movimento

ganhou proporções revolucionárias.

Da mesma forma como ocorreu nos países europeus, em Portugal, o movimento

romântico também remonta à evolução econômico-social e política da burguesia. A nobreza

perde o poder político e econômico e a burguesia passa então a ditar seus valores. Este novo

público-leitor de origem burguesa teve formação literária pela leitura de jornais vendidos a

preços acessíveis.

Além disso, a elevação do poder aquisitivo da classe média e um sistema de

impressão em escala comercial propiciaram o alargamento do mercado

consumidor. Se no classicismo tínhamos um público aristocrático, palaciano,

agora este é mais amplo e precisava ser motivado para adquirir a obra de

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arte. Há, nesse setor, como no conjunto da sociedade, uma democratização

da cultura.1

Portanto, é na ascensão da burguesia e no intuito de propagar os ideais do liberalismo

burguês que o Romantismo é concebido. As principais características deste movimento

literário é a propagação de emoções individuais. É um novo modo de ilustrar o mundo por

meio de uma ideologia que vê nas riquezas materiais e intelectuais a transitoriedade e a

relatividade tanto no homem quanto na história. O estilo romântico evidencia as emoções e a

subjetividade na forma de ver, sentir e pensar a vida pressupondo um novo modo de produção

artística que dá ênfase ao ‘eu’, o homem torna-se o centro dos acontecimentos e é a partir dele

que se estrutura a imagem do novo homem, o idealizado, que “[...] procura na morte a

libertação de tudo que o oprime [...] vê a realidade sensível como uma armadilha que ameaça

destruí-lo e anular sua essência. O desconforto existencial impele o sujeito a buscar o resgate

de seus males em outra dimensão [...]”2. Algumas destas particularidades mencionadas

sustentam a visão do mundo da arte romântica.

O encerramento desta fase está relacionado com o contexto social da Segunda

Revolução Industrial. A sociedade européia estava em crise, a qual também afetou Portugal e

outros países que faziam parte deste processo de industrialização. O descontentamento por

parte da população atingiu quase todos os setores sociais, em especial os camponeses que sem

apoio governamental têm como única alternativa a emigração, conforme se pode depreender

pelas considerações de Benjamin Abdala Júnior e Maria Aparecida Paschoalin.

A política econômica desenvolvimentista seguida pelo regime liberal trouxe

grande aumento da produção agrícola, beneficiando os proprietários da terra,

que passaram a residir nas cidades. Em conseqüência, temos o crescimento

de uma classe média citadina, de raízes agrárias, que veio somar-se à

comercial, grupo social bastante beneficiado pelo desenvolvimento dos

novos meios de comunicação3.

É neste contexto, com o surgimento de uma nova classe social, a denominada pequena

burguesia citadina, que se inicia um novo movimento literário: o Realismo, o qual evoluiu

1 ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria Aparecida. História Social da Literatura Portuguesa. 3.ed. São Paulo: Ática, 1985, p. 78.2 MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa em Perspectiva. Vol III. São Paulo: Atlas, 1994, p. 21-22.

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gradativamente para o Naturalismo. A ascensão deste estilo de literatura, em Portugal, foi

propiciada nessa época em que a alta burguesia já não mais assumia o controle do país.

Esta classe emergente favoreceu o crescimento da produção literária, passando a

consumir cada vez mais jornais, revistas, romances, transformando-se num público

significativo, que queria ver seus problemas retratados na literatura por meio da representação

da realidade em que vivia, tanto a situação social, econômica e política quanto a crítica à

subjetividade romântica propagada pelo Romantismo. Ao contrário da alta burguesia, que se

interessava somente pelo jogo do sentimentalismo idealizado.

A representação da realidade através da arte literária voltada para a solução dos

problemas sociais pode ser designada como uma das principais características do Realismo.

Foi mencionado anteriormente que “o Realismo evoluiu gradativamente para o Naturalismo”,

o que pode ser explicado pelo fato do Naturalismo4 ser compreendido como:

[...] uma forma histórica do Realismo, de caráter mecanicista e positivista. O

Realismo existe como tendência, dominante ou não, em todas as épocas

históricas: é mais uma atitude do artista diante da representação da

realidade5.

Desta forma o Realismo-Naturalismo caminham juntos descrevendo a realidade

concreta por meio de textos artísticos. Eça de Queirós é um dos principais autores que

aderiram a este movimento literário. O escritor não é apenas um analista, como propunha o

realismo nem somente um artista, mas também um moralista. O estilo6 de Eça de Queirós é

evidenciado também na finalidade ética e social a que se propõe atingir por meio de seus

personagens destituídos de força moral, sugerindo uma reforma social para a sociedade

burguesa do século XIX. De acordo com Ernesto Guerra da Cal, um importante estudioso das

obras de Eça:

3 ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria Aparecida. Op. cit., p. 99.4 Cf. o que afirma MOISES, Massaud. Dicionário de termos literários. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 1985, p. 103.“À semelhança do Realismo, o Naturalismo constitui um movimento literário dos fins do século XIX: o ‘natural’como atitude existe desde sempre, na medida em que a Natureza oferece os modelos de compreensão einterpretação dos fenômenos do conhecimento, mas tornou-se moda no último quartel da centúria passada”.5 Ibid., p. 103.6 “Longe de qualquer definição, todos temos a consciência e a sensação do que é “estilo”: aquilo queindividualiza o autor, o que o diferencia dos outros, o que é caracteristicamente seu – o que conhecemos comoseu, por estar harmonicamente integrado no conjunto da sua originalidade e impregnado dela [...]”. CAL, ErnestoGuerra da. Linguagem e Estilo de Eça de Queiroz. Lisboa: Editorial Aster, 1953, p. 25-26.

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O estilo literário vai muito mais além do meramente verbal. Ter estilo não é

possuir uma técnica de linguagem, mas ter uma visão própria do mundo e ter

conseguido uma forma adequada para a expressão dessa paisagem interior.

As palavras são, pois, mais alguma coisa do que o veículo de comunicação,

por meio do qual o artista nos faz chegar a sua mensagem. Por detrás delas,

implícita, misteriosamente presente, está uma apreensão total da realidade;

uma atitude vital, uma concepção subjetiva do mundo, uma particular

maneira de o simplificar, de o transformar, adaptando-o à personalidade, à

própria maneira de o sentir, de “o pensar” por assim dizer7.

Este estilo singular de Eça de Queirós levou suas obras a outros continentes, sendo

traduzidas, questionadas e profundamente estudadas tanto por pesquisadores, quanto pelos

alunos do Ensino Médio, pois é leitura obrigatória para aqueles que querem prestar vestibular.

O Primo Basílio ingressa seus leitores no âmbito da cultura erudita, nas questões sociais ainda

pertinentes para a nossa época, eis aí as questões que tornam a obra atemporal, pois o leitor

faz analogias entre as situações vividas pelos personagens e a realidade vivenciada hoje, no

Brasil. Os romances de Eça ainda continuam despertando novas significações, daí se assegura

as diversas leituras e interpretações possibilitadas pela forma de pensar e de contar as

histórias, próprias do escritor.

N’O Primo Basílio o autor critica, por meio de seus personagens despidos de virtudes,

bem como lances amorosos motivados pela mediocridade, a educação frívola e a vida ociosa

da mulher burguesa e de um modo geral, a sociedade lisboeta do século XIX. O autor

questiona, principalmente, uma das instituições sociais tidas como uma das mais sólidas: o

casamento. Embora o adultério fosse tema já trabalhado pelo Romantismo, Eça também inova

ao incluir diálogos sobre homossexualismo quando narra o passado da personagem

Leopoldina8.

Representa, também, um dos primeiros momentos de reflexão sobre o atraso da

sociedade portuguesa em um mundo profundamente transformado pela Revolução Industrial e

pelo desenvolvimento tecnológico.

7 CAL, Ernesto Guerra da. Linguagem e Estilo de Eça de Queiroz. Lisboa: Editorial Aster, 1953, p. 27.8 Leopoldina é uma das personagens, do romance O Primo Basílio, que possui características e personalidadeinapropriadas para as mulheres, segundo a moral vigente no século XIX. Infiel ao seu marido, Leopoldina buscaa felicidade nos seus amantes, pois considera o seu esposo ‘um porco’. Contudo, ao contrário das mulheres debem, as quais possuem uma educação frágil e totalmente voltada para o espaço doméstico, Leopoldina é dona deuma educação calcada na realidade o que a torna uma ameaça para as esposas fiéis. Cf. QUEIRÓS, Eça. O PrimoBasílio. 18. ed. São Paulo: Ática, 1997, p. 29-30

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Em linhas gerais, apresentaram-se aqui algumas das características mais importantes

do Realismo/Naturalismo. Na seqüência, destacam-se os componentes estruturais da narrativa

com o propósito de auxiliar as análises posteriores do romance O Primo Basílio.

1.2 – Linguagem Literária: elementos estruturais da narrativa

O Primo Basílio caracteriza-se como um romance dramático, pois não há uma divisão

notória entre enredo e personagens. Edwin Muir constata que, neste gênero “[...] ambos são

entrelaçados entre si. As qualidades conhecidas dos personagens determinam a ação e a ação,

por sua vez, modifica de maneira progressiva os personagens e assim tudo é impelido para

diante em direção a um fim [...]”9. Tem-se a personagem Luísa como exemplo. As suas

características físicas e psicológicas refletem claramente na sua maneira de agir, as quais

também podem ser observadas na transcodificação da obra literária para a televisual, que vai

ser abordada no terceiro capítulo. As particularidades deste gênero pressupõem-se pertinentes

à adaptação para o formato televisivo considerando o ritmo de ambas as narrativas. Na

literatura, o narrador descreve a ação enquanto que na adaptação as cenas são narradas pelos

movimentos de câmera que apresentam - ao espectador – os personagens, o espaço e o tempo

em que vivem. Estes movimentos mostram também a seqüência da atuação dramática dos

personagens, atuação que se configura como a ação em si. Observe-se o narrador textual

contando sobre as características que determinam as ações de Luisa:

Mas a Luísa, a Luisinha, saiu muito boa dona de casa; tinha cuidados muito

simpáticos nos seus arranjos; era asseada, alegre como um passarinho, como

um passarinho amiga do ninho e das carícias do macho; e aquele serzinho

louro e meigo veio dar à sua casa um encanto sério10.

Apesar de pequeno, este trecho do início do romance remete, por meio das

observações do narrador, à descrição da personagem Luísa, características que são

confirmadas nas suas ações no decorrer da narrativa, tal como afirma Muir no trecho citado

anteriormente. O narrador mostra que as ações da personagem, no ambiente doméstico, são

conseqüências do seu espírito e formação pequenos, os quais são reportados para o leitor com

diminutivos dando indícios dos seus interesses reduzidos e do seu horizonte sem expectativas,

delineado por romances. Acredita-se que estas descrições também irão caracterizar a

9 MUIR, Edwin. A Estrutura do Romance. 1. ed. Rio de Janeiro: Globo, s/d, p. 21-22.10 QUEIRÓS, Eça. O Primo Basílio. 18. ed. São Paulo: Ática, 1997, p. 17.

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construção da personagem Luísa interpretada pela atriz Giulia Gam, na minissérie, a qual se

apropriou dos cabelos loiros, da delicadeza e futilidade da personagem de papel de Eça de

Queirós.

Observa-se então, que é através da construção dos personagens que se dá o processo

de desencadeamento do enredo, pois são as causas decorrentes das ações destes personagens,

descritas pela narração, que caracterizam o enredo. Muir esclarece esta questão citando E. M.

Forster, “definiríamos a estória como uma narrativa de acontecimentos dispostos em uma

seqüência no tempo. Um enredo é também uma narrativa, cuja ênfase recai sobre a

causalidade”11. Eça de Queirós utiliza-se de vários recursos da Estrutura da Narrativa para

escrever O Primo Basílio, seu enredo é composto por uma seqüência de fatos fictícios que

contam através de um narrador a história de um grupo de personagens pertencentes a um

determinado patamar social. Dispõe também de um cenário que está focalizado em um espaço

e num tempo também determinados. Esta limitação a um círculo, a um complexo de vida,

produzindo naturalmente uma intensificação da ação é outra característica do romance

dramático, como esclarece Muir. Para ilustrar, menciona-se um trecho do capítulo II do livro:

Aos domingos à noite havia em casa de Jorge uma pequena reunião, uma

cavaqueira, na sala, em redor do velho candeeiro de porcelana cor-de-rosa.

Vinham apenas os íntimos. “O Engenheiro”, como se dizia na rua, vivia

muito ao seu canto, sem visitas. Tomava-se chá, palrava-se. Era um pouco a

estudante. Luísa fazia crochê, Jorge cachimbava. O primeiro a chegar era

Julião Zuzarte, um parente muito afastado de Jorge e seu antigo condiscípulo

nos primeiros anos da politécnica. Era um homem seco e nervoso, [...] Às

nove horas, ordinariamente, entrava D. Felicidade de Noronha. [...] Falava-

se nessa noite do Alentejo, de Évora e das suas riquezas, da capela dos

ossos, quando o Conselheiro entrou com o paletó no braço. [...] Houve um

silêncio comovido, e à porta uma voz fina disse: - Dão licença? – Oh,

Ernestinho!... – exclamou Jorge. [...] – Ora muito boas-noites – disse, à

porta, uma voz grossa. Voltaram-se. Ó Sebastião! Ó Sr. Sebastião! Ó

Sebastiarrão! Ele era, Sebastião, o grande Sebastião, o Sebastiarrão,

Sebastião tronco de árvore – o íntimo, o camarada, o inseparável de Jorge

desde o latim, na aula de frei Libório, aos paulistas12.

11 FORSTER, E. M. apud MUIR, s/d, p. XI.12 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 32-48.

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19

Ao ler este capítulo é possível observar que o narrador, ao mesmo tempo em que

apresenta os personagens - que compõem o núcleo principal, já os descreve. Expõe

minuciosamente as suas características físicas, psicológicas, o status de cada um, a profissão e

como a desempenham, suas virtudes e inquietações, seus objetivos e sonhos, seus tiques, suas

doenças e seus pensamentos mais íntimos como indícios das suas ações no decorrer da

narrativa.

Gérard Genette relata que ao “permanecer no domínio da expressão literária, definir-

se-á sem dificuldade a narrativa como a representação de um acontecimento ou de uma série

de acontecimentos, reais ou fictícios, por meio da linguagem, [...]”13. A narrativa (récit) seria

então o significante, o enunciado e a história (ou diegese) o significado do conteúdo narrativo.

Já a narração, o teórico descreve como “o ato narrativo produtor e, por extensão, o conjunto

da situação real ou fictícia na qual se situa”14. Presume-se, portanto, que narração e descrição

caminham juntas nesta obra de Eça, embora ambas tenham diferenças de conteúdo. Enquanto

a narração prende-se a ações e acontecimentos num processo que se desenvolve tanto no

aspecto temporal como no dramático da narrativa, a descrição – ao contrário – uma vez que se

demora sobre objetos, ambientes, lembranças, personagens em sua simultaneidade, e encara

os processos como espetáculos, parece suspender o curso do tempo contribuindo para espalhar

a narrativa no espaço textual. Esta representação dos acontecimentos da história é feita por um

narrador, no caso da obra estudada, um narrador onisciente e que não pode ser confundida

com o relato do autor.

Aguiar e Silva explica que “o narrador constitui a instância produtora do discurso

narrativo, não devendo ser confundido, na sua natureza e na sua função, com o autor, pois o

narrador é uma criatura fictícia como qualquer outra personagem”15. Como se sabe, todo

discurso para ser designado eficiente necessita de um emissor/locutor e de um

receptor/auditor. No romance não é diferente, o narrador faz o papel do emissor/locutor,

aquele que atua como contador da história e o narratário “o receptor do texto narrativo, aquela

criatura ficcional a quem se dirige o emissor/narrador”16. Entretanto, cabe aqui salientar que

este não é o único receptor do texto narrativo – pondera Vitor Manoel de Aguiar e Silva:

13 GENETTE, Gerard apud DEFINA, Gilberto. Teoria e Prática de Análise Literária: síntese de princípios deanálise literária aplicados ao romance Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. São Paulo, Pioneira,1975, p. 38.14 AGUIAR e SILVA, Vitor Manuel de. A Estrutura do Romance. 3. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1974, p.42.15 Ibid., p. 26.16 Id., p. 28.

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Em muitos textos narrativos, existe um destinatário intratextual do discurso

narrativo e, portanto, da história narrada. É a esta instância à qual o narrador

conta a história, ou parte da história, que daremos o nome de narratário. O

narratário não deve ser identificado, ou confundido, com o leitor implícito,

com o leitor visado e com o leitor ideal – e muito menos com o leitor

empírico -, embora a sua função no texto narrativo tenha sempre correlações

importantes com o leitor implícito e com o leitor empírico – o narratário

representa uma das articulações mediadoras da transmissão da narrativa – e

possa apresentar também correlações diversas com o leitor visado e com o

leitor ideal17.

Ressalta-se também que o narrador não se identifica com o autor empírico, nem

mesmo com o autor textual. O narrador representa, “enquanto instância autonomizada que

produz intratextualmente o discurso narrativo, uma construção, uma criatura fictícia do autor

textual, constituindo este último, por sua vez, uma construção do autor empírico”18,

argumenta Aguiar e Silva.

O modo como o narrador conta a história possui algumas denominações: instância

narrativa, foco narrativo, focalização e ainda ‘ponto de vista’. Neste trabalho, não há uma

delimitação quanto à utilização de quaisquer dos termos notificados, já que há vários teóricos

que evidenciaram estudos acerca da Estrutura da Narrativa e apesar de chegarem a conclusões

similares, não estabeleceram as mesmas denominações para o mesmo problema. No entanto, o

que se pretende aqui é observar com mais ênfase as determinações do teórico Aguiar e Silva.

O foco narrativo “compreende as relações que o narrador mantém com o universo

diegético e também com o leitor (implícito, ideal e empírico), o que equivale a dizer que

representa um fator de relevância primordial na constituição do texto narrativo”19. Pode-se a

princípio, ser descrito e reduzido a uma forma tríade de se contar uma história: na primeira

pessoa, quando o narrador é uma personagem e faz parte da história (focalização interna); na

terceira pessoa, quando o narrador só conta a história, não faz parte do elenco (focalização

externa) e o narrador onisciente que é o caso do narrador de O Primo Basílio. Vale lembrar

que esta apresentação das instâncias narrativas, feita aqui, é superficial e posta ao leitor de

17 AGUIAR e SILVA, Vitor Manuel de. Teoria e Metodologia Literárias. 1. ed. Lisboa: Universidade Aberta,2002, p. 257, grifos do autor.18 Id., p. 253.19 AGUIAR e SILVA, Vitor Manuel de. Teoria e Metodologia Literárias. 1. ed. Lisboa: Universidade Aberta,2002, p. 293-294.

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uma forma simples. Entretanto, ao narrador onisciente será dado um destaque maior, pois ele

predomina no romance estudado.

Esclarece a este respeito E. Anderson Imbert em Formas en la novela contemporánea

(XVIII): “o narrador assume o papel de um deus que tudo sabe, capaz de analisar as ações e

os pensamentos de suas criaturas, sucessiva e simultâneamente por fora e por dentro. É um

narrador onisciente, visível e onipresente”20. Observe-se o exemplo seguinte:

Era a sua íntima amiga. Tinham sido vizinhas, em solteira, na Rua da

Madalena, e estudado no mesmo colégio, à Patriarcal, na Rita Pessoa, a

coxa. Leopoldina era filha única do Visconde de Quebrais, o devasso, o

caquético, que fora pajem de D. Miguel. Tinha feito um casamento infeliz

com um João Noronha, empregado da alfândega. Chamavam-lhe a

“Quebrais”; chamavam-lhe também a “Pão-e-queijo”. Sabia-se que tinha

amantes, dizia-se que tinha vícios. Jorge odiava-a. E dissera muitas vezes a

Luísa: Tudo, menos a Leopoldina!21

Pode-se observar que o narrador faz uso de uma capacidade de conhecimento

praticamente ilimitada, podendo por isso, facultar as informações que entende ser pertinentes

para o conhecimento minucioso da história. Ele conhece Luísa desde a sua mocidade, sabe

com clareza o que ela apresenta em seu interior e conta ao leitor sem mesmo perguntar a

ninguém, sem fazer com que outro personagem que tenha conhecido a personagem intervenha

no relato, que Leopoldina “era a sua íntima amiga”. Bem como conhece toda a trajetória da

vida desta, a qual o narrador julga ter “um casamento infeliz” e uma acusação que vai ser

fundamentada somente no decorrer do romance, que ela “tinha amantes, dizia-se que tinha

vícios”, como pode ser observado na citação acima. A visita de Leopoldina à casa do

engenheiro, e toda a descrição da personagem, a qual se opõe à moral da época é um dos

primeiros indícios da derrocada moral de Luísa. Mais uma ilustração:

Às vezes na sua consciência achava Leopoldina “indecente”; mas tinha um

fraco por ela: sempre admirava muito a beleza do seu corpo, que quase lhe

inspirava atração física. Depois desculpava-a: era tão infeliz com o marido!

Ia atrás da paixão, coitada! E aquela grande palavra, faiscante e misteriosa,

de onde a felicidade escorre como a água de uma taça muito cheia, satisfazia

20 IMBERT, E. Anderson Apud DEFINA, Gilberto. Op. cit., p. 32.21 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 24.

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Luísa como uma justificação suficiente: quase lhe parecia uma heroína;

olhava-a com espanto como se consideram os que chegam de uma viagem

maravilhosa e difícil, de episódios excitantes. Só não gostava de certo cheiro

de tabaco misturado de feno, que trazia sempre nos vestidos. Leopoldina

fumava22.

Aqui o narrador coloca-se numa posição de transcendência em relação ao universo

diegético. Controla e manipula soberanamente os eventos relatados, os personagens que os

interpretam, o tempo em que se movem e o cenário em que se situa o drama. Caracteriza

ainda, o posicionamento moral de Luísa perante uma amiga que quebra as normas morais

impostas às mulheres do seu tempo. Ela “desculpa” as atitudes de Leopoldina e ainda a vê

como “heroína”, pois, esta “ia atrás da paixão, coitada!” era infeliz com o marido e a paixão,

no seu ponto de vista, é “onde a felicidade escorre como a água de uma taça muito cheia”.

Vale-se dizer que Eça, neste trecho, mostra a sociedade lisboeta vivendo de aparência,

trazendo bases falsas e recalcadas numa educação rígida, na qual a mulher é a mais reprimida,

sendo ela impossibilitada de buscar seus próprios desejos, busca vazão em leituras as quais a

levam à “imoralidade imaginativa”, já que a moral visada e real é uma prisão, o preço da

liberdade é o adultério. Estas justificativas eram suficientes para Luísa, de acordo com o

narrador, já que é ele quem tece considerações sobre estes pensamentos secretos da

personagem.

[...] o narrador tem autonomia de resumir ou distender o tempo diegético,

suprimir lapsos cronológicos mais ou menos longos, operar retrospectivas,

etc. por outro lado, as possibilidades seletivas da focalização onisciente

implicam uma vertente subjetiva; selecionando o que deve relatar, o narrador

explícita ou implicitamente interpreta, do mesmo modo que formula juízos

valorativos [...]. Essa manifestação corresponde muitas vezes à ocorrência da

intrusão do narrador em discurso abstrato, a manipulações e reduções do

tempo da história, nos domínios da freqüência, da ordem temporal e da

velocidade, a descrições de dimensão panorâmica, etc23.

22 Id. Ibid., p. 26.23 REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de Teoria da Narrativa. São Paulo: Ática, 1988, p. 256-257.

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Como já foi mencionado anteriormente, o tempo e o espaço são elementos

considerados cruciais na composição de uma narrativa. Tem-se, portanto, no caso d’O Primo

Basílio, o narrador onisciente como o agente que expõe ao leitor/receptor o tempo e o espaço

em que vivem os personagens. Além de contar a história como alguém que tudo sabe, este

narrador utiliza-se do tempo do discurso, que compreende três áreas de codificação: a ordem,

a velocidade e a freqüência; nelas inserem-se signos (analepse, prolepse, cena dialogada,

pausa descritiva, etc.) cuja articulação incute no relato a peculiaridade temporal que o

caracteriza, além do espaço físico e social em que vivem os personagens.

1.2.1 - O tempo e o espaço na narrativa de O Primo Basílio

Embora o intuito deste capítulo seja demonstrar a decadência moral da personagem

Luísa, por meio do foco narrativo utilizado no romance de Eça e como se deu a construção

dos personagens, crê-se que há a necessidade de pelo menos mencionar superficialmente o

tempo e o espaço da narrativa, elementos que se pressupõem estruturais da obra literária, pois

de que adiantaria haver um narrador que tudo sabe, no caso do romance estudado, e

personagens construídos tais como seres humanos, sem um contexto histórico para inseri-los e

um tempo apropriado para estes vivenciarem a sua história? Para embasar estes

questionamentos, Aguiar e Silva lembra as afirmações de Maurice-Jean Lefebve.

O romance, como toda narrativa, evoca ‘um mundo concebido como real,

material e espiritual, situado num espaço determinado, num tempo

determinado, refletido na maioria das vezes num espírito determinado que,

diferentemente da poesia, tanto pode ser o de uma ou de várias personagens

como o do narrador’. Nesse tempo e nesse espaço, em estreita conexão com

o modo de ser das personagens, com as relações que estas mantêm entre si e

com o meio, são figurados acontecimentos dispostos numa certa ordem

seqüencial e apresentados segundo narrativas muito variáveis 24.

Esta abordagem será de grande valia quando esta pesquisa for tratar da transmutação

para a minissérie televisiva, na qual se poderá verificar com precisão o modo com que a

câmera como narrador, vai mostrar o tempo e o espaço por meio do cenário, objetos,

vestimenta dos personagens, diálogos e monólogos interiores, ou seja, através da atuação dos

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atores. Entretanto, já é plausível considerar que, de acordo com Aguiar e Silva, a diegese de

um determinado romance nunca será exatamente igual à diegese de um filme extraído desse

romance, “por grande que seja a fidelidade do realizador ao texto do romance, tal como a

diegese de um romance haveria de se alterar se fosse possível reescrevê-lo segundo uma

técnica narrativa diferente [...]”25.

Edwin Muir explica que o mundo imaginativo do romance dramático está no tempo,

enquanto que o espaço é descrito de uma forma intensa, pois é este que caracteriza o modo de

ser e as ações dos seres de papel. Em parte, o cenário, através das descrições do narrador,

torna-se colorido e tingido pelas paixões das figuras principais. A título de ilustração, o

espaço predominante no romance de Eça: “- Ah! Lisboa sempre é Lisboa – suspirou D.

Felicidade.; - Cidade de mármore e granito, na frase sublime do nosso grande historiador! –

disse solenemente o Conselheiro”26. O espaço é Lisboa, a casa de Luísa e de Jorge, o Paraíso

e o Alentejo, os quais podem ser considerados como os mais mencionados na obra. Lisboa é o

cenário da crítica de Eça de Queirós; é o espaço da sociedade lisboeta por onde transitam os

personagens e onde eles expõem suas condições sócio-econômicas e históricas. Alentejo é o

espaço que rouba Jorge de Luísa, deixando-a num marasmo sem fim. Paris é o cenário que

devolve Basílio a Luísa, trazendo alegria e a novidade de uma vida de prazeres e aventuras. A

casa é o espaço privilegiado do romance, onde se passam as cenas entre Luísa e Juliana –

considere-se que o Paraíso serve de contraponto da vida doméstica e do mundo das alcovas.

Contudo, crê-se que há, tanto no romance quanto na minissérie, dois espaços principais nos

quais se desenrolam a ação: a casa de Jorge e o Paraíso.

A sala esteirada, alegrava, com seu teto de madeira pintado a branco, o seu

papel claro de ramagens verdes. Era em Julho, um domingo; fazia um

grande calor; as duas janelas estavam cerradas, mas sentia-se fora o sol

faiscar nas vidraças, escaldar a pedra da varanda; [...] nas duas gaiolas, entre

as bambinelas de cretone azulado, os canários dormiam; um zumbido

monótono de moscas arrastava-se por cima da mesa, pousava no fundo das

chávenas sobre o açúcar mal derretido, enchia toda a sala de um rumor

dormente27.

24 LEFEBVE, Maurice-Jean apud AGUIAR e SILVA, Vitor Manuel de. A Estrutura do Romance. 3. ed.Coimbra: Livraria Almedina, 1974, p. 41.25 AGUIAR e SILVA, 1974. Op. cit., p. 44.26 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 36.27 Id. Ibid., p. 15.

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A sala é o local da casa do engenheiro em que se passa boa parte do romance, a

reunião com os amigos, os primeiros encontros com Basílio, o início da decadência moral de

Luísa e os afrontamentos com Juliana. Já o local que Basílio aluga para encontrar-se com

Luísa - longe dos comentários dos vizinhos e dos olhares atentos de Juliana – ele o denomina

Paraíso, o que provoca em Luísa uma ansiedade que a leva a sonhar que está vivendo as

situações daqueles romances que lê, no qual o amante providencia um lugar luxuoso e

romântico para os encontros com a amada. Contudo, ao chegar ao endereço descrito por

Basílio, Luísa depara-se com um lugar simples, sujo e sem nenhum luxo, índice de que a sua

realidade está distante daquele sonho romântico vivido pelos personagens dos romances. O

narrador descreve o espaço referido da seguinte forma:

[...] uma casa amarelada, com uma portinha pequena. Logo à entrada um

cheiro mole e salobro enojou-a. A escada, de degraus gastos, subia

ingremente, apertada entre paredes onde a cal caía, e a umidade fizera

nódoas. No patamar da sobreloja, uma janela com um gradeadozinho de

arame, parda do pó acumulado, coberta de teias de aranha, coava a luz suja

do saguão. E por trás de uma portinha, ao lado, sentia-se o ranger de um

berço, o chorar doloroso de uma criança. [...] Luísa viu logo, ao fundo, uma

cama de ferro com uma colcha amarelada, feita de remendos juntos de chitas

diferentes; e os lençóis grossos, de um branco encardido e mal lavado,

estavam impudicamente entreabertos...28

Por meio das descrições, é possível notar tanto o espaço físico quanto o espaço social

em que os personagens vivem. A casa de Jorge não é um palacete, mas as mobílias, as

porcelanas, as pratarias descritas no decorrer dos acontecimentos, bem como as refeições

servidas, as serviçais, o cargo profissional que Jorge ocupa na sociedade e a classe social dos

amigos que freqüentam a sua casa denotam que naquele ambiente vive um casal burguês.

Quanto ao tempo, embora já se tenha comentado, este pode ser dissimilar em

diferentes romances dramáticos; a capacidade de levá-lo ao fim para o qual ele se movimenta

também pode ser definida e indefinida; o ritmo da ação pode ser mais lento ou mais rápido, o

que sugere que a sensação de tempo esgotando-se dá a verdadeira margem à emoção

dramática. “No romance dramático, pois, como em toda a literatura dramática, o tempo se

28 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 146.

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move e, portanto, vai mover-se para seu fim e destruir-se”29. Considera-se aqui o tempo do

discurso, que pode ser entendido como conseqüência da representação narrativa do tempo da

história e o tempo do discurso ou diegese, propriamente dito.

O problema da apresentação do tempo na narrativa impõe-se por causa de

uma dissemelhança entre a temporalidade da história [ou diegese – grifo

nosso] e a do discurso. O tempo do discurso é, em um certo sentido, um

tempo linear, enquanto o tempo da história é pluridimensional. Na história,

muitos acontecimentos podem-se desenrolar ao mesmo tempo; mas o

discurso deve obrigatoriamente colocá-los um em seguida do outro; uma

figura complexa encontra-se projetada sobre uma linha reta30.

Considerando a diegese como uma sucessão de eventos inconcebíveis fora do fluxo do

tempo, pode ser limitada e caracterizada por indicadores cronológicos, como por exemplo, as

horas, os dias, as noites, os meses e as suas estações e os anos do calendário civil. Enquanto

que o tempo do discurso narrativo julga-se de difícil medição, pois ainda há interferências dos

tempos da escritura que seriam o tempo da enunciação e o tempo da leitura, ou seja, o tempo

da percepção.

A coincidência perfeita entre o desenvolvimento cronológico da diegese e a

sucessão, no discurso, dos acontecimentos diegéticos, não se encontra

possivelmente em nenhum romance. Aos desencontros entre a ordem dos

acontecimentos no plano da diegese e a ordem por que aparecem narrados

no discurso, daremos a designação de anacronia31.

A possibilidade de utilizar o tempo para compor uma obra literária, faz com que a

ficção passe a adquirir verossimilhança com a realidade, possibilitando ao leitor uma

identificação com a história narrada, com o espaço/ambiente em que vivem os personagens.

Possibilita ainda a identificação com o drama vivido por estes seres de papel, o que pode

determinar o sucesso ou não de uma determinada obra.

Abaixo temos um exemplo do tempo cronológico do romance queirosiano. Pode-se

observar que o narrador conta os dias em que Jorge está ausente, para justificar as atitudes de

29 AGUIAR e SILVA, 1974. Op. cit., p. 46.30 DEFINA, Gilberto. Op. cit., p. 62.31 AGUIAR E SILVA, 2002. Op. cit., p. 286.

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Luísa. O monólogo interior da personagem atua como sua consciência ao lembrá-la que a sua

visita à amiga iria contrariar as ordens do marido.

Havia doze dias que Jorge tinha partido e, apesar do calor e da poeira, Luísa

vestia-se para ir a casa de Leopoldina. Se Jorge soubesse não havia de

gostar, não! Mas estava tão farta de estar só! Aborrecia-se tanto! De manhã

ainda tinha os arranjos, a costura, a toilette, algum romance...Mas de tarde!32

Salienta-se que é relevante finalizar as abordagens sobre o tempo e o espaço na obra

literária mencionando que o tempo do discurso é equilibrado pela narração e pela descrição.

Se narrar é desdobrar ações temporalmente, descrever é situar objetos, seres e circunstâncias

no espaço. Dentro da narrativa, a descrição é o repouso da ação.

Objetivamente, a ação continuará acontecendo dentro dos episódios e

incidentes da narração, e a ação será, deverá ser, sempre dinâmica. Mas da

ação enquanto surge e perpassa pelo ambiente em que é vivida e que lhe

oferece cenário, pano de fundo. A descrição é uma parada, estância para

reconhecimento de lugar, do clima, do ambiente e é estática em relação à

narração. Realizada com arte, umas vezes, a descrição serve como descanso

ao leitor e momentos de lirismo dentro do conflituoso. Outras vezes

pressiona mais o drama, indo até o trágico33.

No romance, Eça usa de muita descrição, na sua totalidade é plausível dizer que a obra

é permeada por descrições. Acredita-se que a minuciosidade com que são descritos os

espaços, os objetos, os personagens e suas idealizações, pensamentos e caráter pessoal deve-

se ao estilo realista-naturalista de O Primo Basílio, por meio do qual o autor tem a

incumbência de situar o leitor quanto à sociedade da época. O que não implica o caráter

dramático do romance, que se caracteriza pelo espaço limitado e liberdade no tempo.

Esta abordagem sobre o espaço e o tempo em que se situa a narrativa romanesca de

Eça de Queirós é necessária para o estudo do processo de construção dos personagens, pois

crê-se que há, tanto no tempo quanto no espaço, elementos que caracterizam o

comportamento, o estado de espírito, a formação e o modo de ver o mundo possível dos seres

de papel.

32 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 48.33 GENETTE, Gerard. Apud DEFINA, Gilberto. Op. cit., p. 52.

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1.3 – A construção dos personagens

O processo de decodificação da construção dos personagens é possível quando estes

são apresentados ao leitor por meio da descrição, o que, na narrativa, provoca as

conseqüências das ações de cada um, influenciando nos acontecimentos da diegese,

intensificando as dificuldades vividas por estas criaturas (ação), o que mais adiante, em

circunstâncias diferentes, acabam se dissolvendo na seqüência da narrativa, de acordo com os

pressupostos teóricos apontados por Aguiar e Silva. Segundo as teorias expostas em A

estrutura do romance,

A personagem constitui um elemento estrutural indispensável da narrativa

romanesca. Sem personagem, não existe verdadeiramente narrativa, pois a

função e o significado das ações ocorrentes numa sintagmática narrativa

dependem primordialmente da atribuição ou referência dessas ações a uma

personagem ou agente34.

Supõe-se que a criação dos personagens denuncia e acentua o compromisso de O

Primo Basílio com o seu tempo: a obra deve funcionar como arma de combate social o que

realça seu caráter Realista-Naturalista. A burguesia - principal consumidora dos romances

nessa época - deveria ver-se no romance e nele encontrar seus defeitos analisados

objetivamente, para, assim, poder alterar seu comportamento.

Temos no núcleo principal as personagens: Juliana Couceiro Tavira - personagem

mais completa e acabada da obra, tem sido vista como o símbolo da amargura e do tédio em

relação à profissão. Feia, virgem, solteirona, bastarda, está inconformada com sua situação e

por isso odeia a tudo e a todos, não se detendo diante de qualquer sentimento de fundo moral;

Luísa Mendonça de Brito Carvalho - representa a jovem romântica, inconseqüente em suas

atitudes, a adúltera ingênua e, no final, arrependida; Basílio de Brito - o dândi, conquistador e

irresponsável, "bon vivant" pedante e cínico e Jorge Carvalho – marido de Luísa, um

engenheiro bem sucedido e funcionário do ministério.

Já as personagens secundárias, dividem-se em: confidentes: Leopoldina Quebrais de

Noronha - encarna o avesso da moral da época; adúltera, fumante, escandaliza a toda a

sociedade; age conscientemente, possui vários amantes, Sebastião Vitória Soares e Visconde

34 AGUIAR e SILVA, Vitor Manuel. A Estrutura do Romance. Coimbra: Livraria Almedina, 1974, p. 24.

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Reinaldo. As visitas: Conselheiro Acácio - tipifica o formalismo próprio da época, o falso

moralismo, o apego às aparências; amigo do pai de Jorge e padrinho do casamento, gosta de

frases feitas e citações morais, mas, na vida privada, lê poemas obscenos de Bocage e mantém

como amante a empregada, Adelaide, a qual, por sua vez, o trai com um caixeiro; é um dos

tipos mais famosos da galeria queirosiana, e responsável pelos adjetivos "acaciano" e

"conselheiral", usados quando se deseja aludir ao falso padrão moral de alguém. D. Felicidade

de Noronha – uma solteirona tolhida pela sociedade que, tardiamente, procura um marido e

escolhe o Conselheiro Acácio; Julião Zusarte – um primo de Jorge. Médico e mal-sucedido

financeiramente vive desejando se dar bem e agourando todas as conquistas de Jorge, porém é

inofensivo. Ernesto Ledesma (Ernestinho) - primo de Jorge, é um escritor vazio, preocupado

com dramalhões românticos, que escreve para o teatro. As cozinheiras e os vizinhos: Joana,

Pedro, Paula dos móveis, Helena, Cunha Rosado, Gertrudes, Carvoeira, Virgínia Lemos,

Mendonça, Justina, Tia Joana (na minissérie chama-se Henriqueta), Josefa (na minissérie

chama-se Raimunda), Arnaldo, Filomena (na minissérie chama-se Rita); e as denominadas

Participações Especiais, que desempenham poucas ações tanto na narrativa quanto na

minissérie – Fernando, Artur, Gouveia, Cocheiro, Castro, Ana Silveira, Alves Coutinho,

Vicente Azuzara e Mariana. De um modo geral, crê-se que os personagens de O Primo

Basílio podem ser considerados o protótipo da futilidade, da ociosidade daquela sociedade.

Parece prudente citar, aqui, todos os personagens com o intuito de situar o leitor na

esfera da contextualização da história, pois, “[...] a personagem é um habitante da realidade

ficcional, de que a matéria de que é feita e o espaço que habita são diferentes da matéria e do

espaço dos seres humanos”35. Considerando este espaço ficcional onde vivem, no romance,

nota-se que eles, assim como os seres humanos, possuem:

[...] um reservatório/motor. Reservatório, agrega imagens, sentimentos,

lembranças, experiências, visões do real que realizam o imaginado, leituras

da vida e, através de um mecanismo individual/grupal, sedimenta um modo

de ver, de ser, de agir, de sentir e de aspirar ao estar no mundo. [...] o

imaginário emana do real, estrutura-se como ideal e retorna ao real como

elemento propulsor36.

São denominadas criaturas de papel, agem umas sobre as outras e se revelam umas

pelas outras e assim propagam direta ou indiretamente suas ideologias, através de suas

35 BRAIT, Beth. A Personagem. São Paulo: Ática, 1985, p. 11.

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próprias personalidades. Como reproduções do ser humano, possuem uma forma já idealizada

pela maioria dos leitores/receptores, as quais fazem parte do processo de identificação destes

com os personagens, criando assim um elo de identificação entre ambos, o que pode ou não

caracterizar o sucesso da obra, de um modo geral.

1.3.1 – A derrocada moral da personagem Luísa no espaço doméstico

Para exemplificar os questionamentos anteriores, faz-se necessário relatar o início da

decadência moral de Luísa, a qual pôde ser revelada pela aproximação de Basílio:

Ele então não hesitou, prendeu-a nos braços.

Luísa ficou inerte, os beiços brancos, os olhos cerrados – e Basílio,

pousando-lhe a mão sobre a testa, inclinou-lhe a cabeça para trás, beijou-lhe

as pálpebras devagar, a face, os lábios depois muito profundamente; os

beiços dela entreabriram-se; os seus joelhos dobraram-se.

Mas de repente todo o seu corpo se endireitou, com um pudor indignado,

afastou o rosto, exclamou aflita: - Deixa-me, deixa-me!37

É necessário ressaltar que Eça utiliza dos sentimentos próprios dos humanos para

compor a essência dos seus personagens para que haja o desenvolvimento da narrativa e a

identificação desta com o leitor. Embora existam inúmeros tipos de personalidade humana,

acredita-se que em cada uma delas há uma busca pelo novo, por algo ainda não realizado ou

não sentido, como no caso de Luísa. Possibilidades novas, oportunidades de viver um

romance com seu ex-namorado, como nos romances que lia sugerindo uma outra existência,

mais poética, mais própria para os grandes sentimentos.

Outra característica própria dos seres humanos é o sentimento do arrependimento,

também presente na personagem, que deixa de sonhar por um instante, no momento em que

recebe uma carta de Jorge, ocasião em que o leitor experimenta as emoções próprias da

situação da personagem e sensibiliza-se. Note:

Não a esperava, e aquela folha de papel cheia de uma letra miudinha, que lhe

fazia reaparecer vivamente Jorge, a sua figura, o seu olhar, a sua ternura,

deu-lhe uma sensação quase dolorosa. Toda a vergonha dos seus

36 SILVA, Juremir Machado. As Tecnologias do imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2003, p. 11-12.37 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 87.

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desfalecimentos cobardes, sob os beijos de Basílio, veio abrasar-lhe as faces.

Que horror deixar-se abraçar, apertar! No sofá o que lhe dissera; com que

olhos a devorara!... Recordava tudo, - a sua atitude, o calor das suas mãos, a

tremura de sua voz... E maquinalmente, pouco e pouco ia-se esquecendo

naquelas recordações, abandonando-se-lhes, até ficar perdida na deliciosa

lassidão que elas lhe davam, com o olhar lânguido, os braços frouxos. Mas a

idéia de Jorge vinha então outra vez fustigá-la como uma chicotada. Erguia-

se bruscamente, passeava pelo quarto toda nervosa, com uma vaga vontade

de chorar...38

Luísa fica a remoer e a lutar contra os seus desejos que se confrontam com a moral da

época. Jorge viaja contra a sua vontade, e isto dá à personagem uma sensação de liberdade de

expressão, de sentimento, de ação própria diferente das ações predestinadas na sua

responsabilidade doméstica e de esposa. “Ação é personagem; uma pessoa é o que faz, não o

que diz. [...] O que compõe um bom personagem? Quatro elementos: necessidade dramática,

ponto de vista, mudança e atitude”39. Pressupõe-se que na construção tanto de uma

personagem literária quanto de uma personagem de uma minissérie televisiva buscam-se

elementos, os quais a caracterizem como uma possibilidade de existência humana. Estes

elementos podem ser notados na seguinte passagem do romance:

Mas enfim, vamos, de que lhe servia estar livre, só? – E de repente tudo o

que poderia fazer, sentir, possuir, lhe aparecia numa perspectiva longa que

fulgurava; aquilo era como uma porta, subitamente aberta e fechada, que

deixa entrever, num relance, alguma coisa de indefinido, de maravilhoso,

que palpita e faísca. – Oh! Estava doida decerto!40

Ao escrever sobre a criação de um personagem, Syd Field cita Aristóteles, já que os

filósofos dizem que a vida de um homem é medida pela soma total das ações que pratica

durante o tempo da sua existência, “a vida consiste de ação”41. No caso do romance não é

diferente, Aguiar e Silva42 comenta que é por meio do retrato descritivo, feito pelo narrador,

acerca do personagem, que o caracteriza como um ser fictício com seu estado físico e

38 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., 93.39 FIELD, Syd. Os Exercícios do Roteirista. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 45.40 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 94.41 FIELD, Syd. Op. cit., p. 45.42 Cf. em AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria e Metodologias Literária. 1. ed. Lisboa: UniversidadeAberta, 2002, p. 261.

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psicológico-moral, o qual geralmente é completado quando o narrador apresenta ao leitor a

sua história genealógica, que ele “ganha” vida e pode vivenciar as ações narradas.

É possível notar neste trecho que Luísa se encontra diante de um drama sentimental,

que representa o conflito necessário para o desencadeamento do enredo. Então é oportuno

dizer que uma vez que se estabeleça a necessidade dramática do seu personagem, o autor, cria

obstáculo a essa necessidade, o que gera a busca do personagem para ultrapassar ou não todos

os empecilhos para satisfazer a sua carência. Esta afirmação pode ser justificada na obra,

quando Basílio visita pela quinta vez a prima e a presenteia com um romance de Belot,

intitulado A mulher de fogo. Nesta ocasião, Basílio, pressentindo que a prima estava resistindo

aos seus desejos, faz um discurso persuasivo sobre as burguesas da alta sociedade,

caracterizando-as como mulheres muito distintas, porém todas tinham amantes. Pode-se notar

que todos os seus gestos e palavras têm como objetivo manipular Luísa, que cada vez mais se

convence de que o adultério parecia assim um dever aristocrático, é quando ela aceita ir ao

campo com Basílio para passear.

Iam entrando no Lumiar, e por prudência desceram os estores. Ela afastou

um, e, espreitando, via fora passar rapidamente, ao lado do trem, árvores

empoeiradas; um muro de quinta de um cor-de-rosa sujo; fachadas das casas

mesquinhas; um ônibus desatrelado; mulheres sentadas ao portal, à sombra,

catando os filhos; e um sujeito vestido de branco, de chapéu de palha, que

estacou, arregalou os olhos para as cortinas fechadas do coupé. E ia

desejando habitar ali numa quinta, longe da estrada; teria uma casinha fresca

com trepadeiras em roda das janelas, parreiras sobre pilares de pedra, pés de

roseiras, ruazinhas amáveis sob árvores entrelaçadas, um tanque debaixo de

uma tília, onde de manhã as criadas ensaboariam, bateriam a roupa,

palrando. E ao escurecer, ela e ele, um pouco quebrados das felicidades da

sexta, iriam pelos campos, ouvindo calados, sob o céu que se estrela, o

coaxar triste das rãs43.

Outro elemento, o ponto de vista, é caracterizado por Field, na narrativa televisual e/ou

fílmica como a maneira como o personagem vê o mundo, o que na literatura é apresentado ao

leitor por meio do narrador. Luísa é sonhadora, um pouco distante da realidade e do senso

crítico, inconseqüente. A sua idéia de felicidade se restringe a futilidades, as quais só podem

fazer parte do universo das pessoas sonhadoras. Por outro lado, apesar de não ser um

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estereótipo desejado pela maioria dos leitores, supõe-se que a personagem desperta uma certa

dose de empatia, necessária para o desenvolvimento tanto do enredo quanto da identificação

do leitor com a obra, o que não é diferente na minissérie. Pode-se dizer que o leitor enxerga o

desejo de Luísa por uma vida diferente da que vive com Jorge. Imagina-se que ela sofre por

não se sentir segura distante do marido e quando encontra no primo o suprimento para as suas

carências, passa a desejar viver com ele, mas ao mesmo tempo não deixa de lembrar da

ausência de Jorge. Tal fato pode ser notado no seguinte fragmento:

Mas um sentimento de solidão, de abandono, veio impacientá-la. Que seca,

estar ali tão sozinha! Aquela noite cálida, bela e doce, atraía-a, chamava-a

para fora, para passeios sentimentais, ou para contemplações do céu, num

banco de jardim, com as mãos entrelaçadas. Que vida estúpida, a dela! Oh!

Jorge! Que idéia ir para o Alentejo! As conversas de Leopoldina e a

lembrança das suas felicidades voltavam-lhe a cada momento; uma pontinha

de champagne agitava-se-lhe no sangue. O relógio do quarto começou

lentamente a dar nove horas – e de repente a campainha retiniu44.

O retinir da campainha é um índice da consumação total do adultério. A visita noturna

de Basílio, com o pretexto de se despedir, gera em Luísa o sentimento de perda, para tentar

evitar o conflito interior, ela cede. O narrador descreve ainda, as sensações da personagem

Luísa ao se sentir sozinha, distante de Jorge. Conta ao leitor como se estivesse sentindo os

anseios de Luísa, partilhando das suas fantasias, lembranças e desejos. Demonstra que a

personagem tem características próprias das mulheres burguesas, considerando o contexto

social da época que o autor se propôs a retratar. Os pensamentos e a educação familiar frágeis

podem ser notados na personagem, bem como o romantismo com que encara as situações

reais, pois não é capaz de suportar a fria realidade em que vive e se encontra diante da partida

de Jorge para o Alentejo. Esta frivolidade pode ser notada desde o início do romance, já na

transcodificação para a minissérie televisiva, o espectador percebe, através da atuação da atriz

Giulia Gam, do modo como interpreta Luísa, suas ações, desejos e todo o seu modo de vida.

Constata-se que a maneira como a personagem vê o mundo é uma das razões principais que a

levam a continuar se encontrando com o primo, sem pensar nas conseqüências, não dando

ouvidos a sua consciência, nem aos comentários da vizinhança e muito menos dos olhos

atentos de Juliana, o que caracteriza o outro elemento que compõe a personagem, a mudança,

43 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 112-113.

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segundo Field e posteriormente, a atitude, também citada pelo autor, a qual poderá ser notada

quando Luísa decide aceitar o convite para se encontrar com Basílio no Paraíso.

1.3.2 – A derrocada de Luísa no espaço do adultério (Paraíso)

Segundo Antonio Candido, “Geralmente, da leitura de um romance fica a impressão

duma série de fatos, organizados em enredo, e de personagens que vivem estes fatos”45. O

autor ainda comenta que é praticamente impossível pensar o enredo separadamente dos

personagens e vice-versa, pois quando se leva em conta a vida que levam, os problemas que

se desenrolam no decorrer da narrativa, também se considera a linha do seu destino, traçadas

num espaço e em um tempo determinados dentro do romance. “O enredo existe através das

personagens; as personagens vivem no enredo. Enredo e personagem exprimem, ligados, os

intuitos do romance, a visão da vida que decorre dela, os significados e valores que o

animam”46. Note-se a trajetória de Luísa no espaço do adultério, um quartinho alugado num

bairro simples e afastado, denominado Paraíso por Basílio:

Ia encontrar Basílio no Paraíso pela primeira vez. E estava muito nervosa;

não pudera dominar, desde pela manhã, um medo indefinido que lhe fizera

pôr um véu muito espesso, e bater o coração ao encontrar Sebastião. Mas ao

mesmo tempo uma curiosidade intensa, múltipla, impelia-a, com um

estremecimentozinho de prazer. – Ia, enfim, ter ela própria aquela aventura

que lera tantas vezes nos romances amorosos! Era uma forma nova do amor

que ia experimentar, sensações excepcionais! Havia tudo - a casinha

misteriosa, o segredo ilegítimo, todas as palpitações do perigo! Porque o

aparato impressionava-a mais que o sentimento; e a casa em si interessava-a,

atraía-a mais que Basílio! Como seria? Era para os lados de Arroios [...]47.

Pode-se perceber através da narração, que a personagem está ansiosa pelo encontro,

mas que não é o amante que lhe interessa, muito menos o sentimento que tem por ele, mas a

frivolidade em saber se o Paraíso é um lugar tão sofisticado quanto os que costuma imaginar

44 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 130.45 CANDIDO, Antônio (Org.). A Personagem de Ficção. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 53.46 Id. Ibid., p. 53-54.47 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 145.

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ao ler sobre os encontros amorosos dos romances, curiosidades que são partilhadas com

Leopoldina. “A personagem vive o enredo e as idéias, e os torna vivos”48. O trecho demonstra

ainda a superficialidade com que Luísa pensa, sonha, deseja e encara a realidade. Nota-se

também que há juízo de valores, quando o narrador afirma que “a casa em si interessava-a,

atraía-a mais que Basílio!”. É por meio do narrador que o autor traça o roteiro da criação de

um personagem através de uma situação para construir a história. Diferentemente de um

roteiro televisivo, que conta uma história por meio de imagens, com detalhes externos usando

a atuação dos personagens, o romance, segundo Syd Field, geralmente lida com a vida

interior, mais profunda de alguém, “e os pensamentos, sentimentos, emoções e memórias do

personagem acontecem no universo mental da ação dramática. Um romance geralmente

acontece dentro da cabeça do personagem”49.

Então o ponto de vista do personagem é o que causa os conflitos no decorrer da

diegese. Conflitos estes, estritamente necessários para que haja a ação e conseqüentemente o

desenrolar da narrativa. Este elemento que compõe o personagem das obras literárias também

está presente nos personagens fílmicos e televisivos, pois assim como no romance o

“personagem dramatiza um ponto de vista forte, bem definido [...] e vai agir a partir de seu

ponto de vista, e não simplesmente reagir”50.

Até então Luísa se envolve nas ternuras de uma vida modificada com a partida de

Jorge e a chegada de Basílio. Contudo, em uma das vezes que seu primo não apareceu

conforme combinado, Luísa escreve um bilhete com a intenção de enviá-lo ao amante, como

se pode constatar no fragmento transcrito:

E o seu grande amor, de repente, como um fumo que uma rajada dissipa,

desapareceu! Sentiu um alívio, um grande desejo de tranqüilidade. Era

absurdo, realmente, com um marido como Jorge, pensar noutro homem, um

leviano, um estróina!...

Deram quatro horas. Veio-lhe uma desesperação, correu ao escritório de

Jorge, agarrou uma folha de papel, escreveu à pressa:

Querido Basílio. Por que não vens? Estás doente? Se soubesses os

tormentos por que me fazes passar...51

48 CANDIDO, Antonio (Org.). Op. cit., p. 5449 FIELD, Syd. Os Exercícios do Roteirista. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 15.50 Id. Ibid., p. 48.51 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 118.

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É o momento em que a campainha toca. Luísa amassa rapidamente o bilhete e o

guarda no bolso do vestido. Era Sebastião que chegara com passos de homem alertando-a

sobre os comentários dos vizinhos a respeito das visitas do primo à sua casa e os seus passeios

diários. No entanto, Luísa não dá ouvidos ao amigo. É então que entra em cena a personagem

Juliana, a qual é considerada por este estudo, como a personagem mais completa da obra de

Eça. Enquanto Luísa é avaliada como uma personagem plana, ou seja, uma personagem

facilmente reconhecida e lembrada, caracterizada no universo diegético como seres de papel

que “[...] em sua forma mais pura são construídas ao redor de uma única idéia ou qualidade

[...]52, e estas características não se alteram no decorrer da obra. Todavia é possível tecer

questionamentos sobre esta classificação dada à personagem Luísa, porque apesar da

fragilidade ser o seu traço característico, a narrativa mostra, num primeiro momento, que ela

tem desejo de vivenciar um romance, de morar em outra casa, de ter um filho, de fugir com

Basílio, sente remorsos quando é abandonada pelo amante. Estas características que também

povoam o comportamento de Luísa fazem pensar na hipótese desta ser classificada como uma

personagem redonda, que segundo Forster é aquela capaz de surpreender de modo

convincente por meio de suas atitudes no desenrolar da narrativa.

Vale ressaltar que a personagem Luísa, apesar de todas as circunstâncias pelas quais

passou em razão do seu adultério, o que leva a crer que ela pode ser classificada como

personagem redonda, porque a princípio conseguiu surpreender o leitor com as suas atitudes

inusitadas, como por exemplo, sujeitar-se a encontrar o amante em um lugar degradado pelo

aspecto físico (Paraíso), ela morre pela mesma característica que a fez cair no adultério, a

fragilidade. Outra razão importante que poderia torná-la uma personagem redonda, o

sentimento de remorso por trair o marido, o que poderia demonstrar que ela modificou o seu

modo de encarar a realidade, entretanto, não passa de medo. O medo de ficar sem um marido,

independente se este fosse Jorge ou Basílio, outra característica de uma pessoa frágil.

Machado de Assis, em uma crítica à obra O Primo Basílio de Eça de Queirós, afirma:

[...] a Luísa – força é dizê-lo – a Luísa é um caráter negativo, e no meio da

ação ideada pelo autor, é antes um títere do que uma pessoa moral.

52 FORSTER, Edward M. Aspectos do Romance. 2. ed. São Paulo: Globo, 1998, p. 66.

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Repito, é um títere; não quero dizer que não tenha nervos e músculos; não

tem mesmo outra coisa; não lhe peçam paixões nem remorsos; menos ainda

consciência53.

As afirmações de Machado de Assis podem ser apreendidas através de uma leitura

crítica do romance. E para complementar, Foster argumenta que, para o leitor, os personagens

planos “[...] permanecem inalteráveis em sua mente pelo fato de não terem sido transformadas

pelas circunstâncias, movendo-se através delas. Isso é que lhes dá, num retrospecto, uma

qualidade confortante, e as preserva [...]”54, como crê-se que é o caso da personagem Luísa.

Já Juliana é o oposto, possui personalidade própria e tem objetivos a cumprir, levando

em conta o mundo possível em que vive no romance. Ela encontra o bilhete no bolso de

Luísa, lê e o devolve esperando encontrar uma prova mais concreta do adultério prova da qual

pretende tirar proveito por meio de chantagens que podem vir a lhe dar lucros, vestidos novos,

botinhas e uma vida melhor. À Juliana compete a caracterização de personagem redonda, para

a qual se atribui uma multiplicidade de traços que a permite agir com atitudes inusitadas,

próprias do caráter que lhe foi atribuído, na sua construção. Forster assevera que “o teste para

uma personagem redonda está nela ser capaz de surpreender de modo convincente [...]”55 o

leitor.

Passado alguns dias, Luísa volta a escrever para Basílio e quando está quase

finalizando a carta eis que chega de forma inesperada, D. Felicidade e a única maneira de se

livrar do escrito é atirando-o no sarcófago56. Tem-se aqui um exemplo de plurissignificação

da linguagem de O Primo Basílio, que segundo Aniceta Mendonça, “é desta caixa de papéis

que Juliana irá furtar o rascunho da carta de Luísa para Basílio. Uma caixa que deveria ser o

caixão de um segredo e é afinal o lugar onde jaz a morte da tranqüilidade do amor adúltero”57.

Juliana, que já está ansiosa por uma deixa da patroa, encontra a carta e guarda-a. Luísa fica

extremamente nervosa e procura o papel desesperadamente, sem ao menos imaginar que

pudesse estar com Juliana, despreocupa-se ao pensar que o lixeiro poderia tê-lo levado. E

53 ASSIS, Machado de. Eça de Queirós: O Primo Basílio. In: ____________. Crítica & Variedades. São Paulo:Globo, 1997, p. 132-147.54 FORSTER, Edward M. Op. cit., p. 67.55 FORSTER, Edward M. Op. cit., p. 75.56 “O próprio ‘sarcófago’, bem como os objetos distribuídos naquele escritório – as espadas, a caixa das pistolas– fazem parte da semiologia da narrativa. O ‘sarcófago’ é o virtuema da morte de Luísa – é nele que jogaapressadamente a carta que escrevia a Basílio, e é essa carta que Juliana depois utiliza na chantagem”. Cf.MENDONÇA, Aniceta de. Da descrição aos objetos: personagens nos romances de Eça de Queirós. Revista deLetras. Assis-SP, 19: 9-38, 1997, p. 28.57 MENDONÇA, Aniceta de. O Primo Basílio, romance exemplar do realismo queirosiano. Revista de Letras.Assis-SP, 14, 72-85, 1972, p. 83-84.

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continua se encontrando com Basílio no Paraíso e trocando de vez em quando uma ou outra

correspondência. Esta capacidade de Juliana surpreender o leitor com suas atitudes perante a

decadência moral da sua patroa é uma das prerrogativas que a caracterizam como personagem

redonda. As suas ações não param por aí. Juliana rouba as cartas da patroa e deixa-as com

uma tia, guardando consigo uma cópia delas. De acordo com Howard & Mabley:

[...] o personagem precisa tentar fazer alguma coisa: tentar não fazer alguma

ou tentar impedir que algo aconteça também significa fazer algo. [...] mas é

preciso haver obstáculos que impeçam tal personagem de atingir facilmente

o que quer. Se for fácil salvar a pessoa, ganhar a corrida ou pintar o quadro,

o público dirá: E daí? O desinteresse do público é resultado da falta de

dificuldade na circunstância58.

A ação de Juliana ao pegar a carta do sarcófago e roubar as que Luísa tinha guardadas

no baú de cartas vem demonstrar que “o romance se baseia, antes de mais nada, num certo

tipo de relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem, que é a

concretização deste”59, pois a atitude de Juliana é plausível com a de um ser humano que

possui objetivos a alcançar e está disposto a correr qualquer risco para conseguir.

Antes mesmo de Juliana declarar a Luísa sobre a posse das suas cartas e iniciar a

chantagem, a protagonista já se sentia impura e usada pelo amante, que já não mais a tratava

como antes. Observe:

Ultimamente mesmo, quando ela entrava no Paraíso, já não tinha a

delicadeza amorosa de se levantar alvoroçado; sentava-se apenas na cama, e

tirando preguiçosamente o charuto da boca: - Ora viva a minha flor! – dizia.

E um ar de superioridade quando lhe falava! Um modo de encolher os

ombros, de exclamar: - Tu não percebes nada disso! Chegava a ter palavras

cruas, gestos brutais. E Luísa começou a desconfiar que Basílio não a

estimava, apenas a desejava! Ao princípio chorou [...]60.

A verossimilhança das atitudes dos personagens com as atitudes dos seres reais vem a

calhar quando Juliana, já sabendo do adultério e em posse das cartas, faz-se de interessada no

58 HOWARD, David. MABLEY, Edward. Teoria e prática do roteiro. São Paulo: Globo, 1996, p. 50.59 CANDIDO, Antonio. (org.). A personagem de ficção. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 55.60 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 159.

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bem-estar da sua patroa. Repare como o narrador descreve a tranqüilidade em que se

encontrava a casa de Jorge por estes tempos:

A casa com efeito tinha um aspecto jovial de felicidade tranqüila: Luísa saía

todos os dias e achava tudo bom; nunca se impacientava; a sua antipatia por

Juliana parecia dissipada; considerava-a uma pobre de Cristo! Juliana

tomava seus caldinhos, dava seus passeios, ruminava. Joana, muito livre,

muito só em casa, regalava-se com o carpinteiro. Não vinham visitas. D.

Felicidade, na Encarnação, inundava-se de arnica. Sebastião fora para

Almada vigiar as obras. O Conselheiro partira para Sintra, “dar umas férias

ao espírito, tinha ele dito a Luísa, a deliciar-se nas maravilhas daquele

Éden”. O Sr. Julião, “o doutor”, como dizia Joana, trabalhava a sua tese. As

horas eram muito regulares; havia sempre o silêncio pacato. Juliana, um dia,

impressionada por aquele recolhimento satisfeito de toda a casa, exclamou

para Joana:

-Não se pode estar melhor! A barca vai num mar de rosas!

E acrescentou, com uma risadinha:

-E eu ao leme!61

Juliana silenciosamente já controlava a casa de Jorge, oferecendo indícios ao leitor de

que adiante ela usaria das cartas para conseguir dinheiro da patroa. A convivência dos

personagens vem confirmar que a “verossimilhança propriamente dita, - depende em princípio

da possibilidade de comparar o mundo do romance com o mundo real (ficção igual a vida)”.62

Ferreira cita Forster, o qual complementa as considerações precedentes, mencionando que o

personagem deve lembrar um ser vivo, encarando a verossimilhança mais em termos de

coerência, pois “as personagens são reais, não por serem como nós (embora possam sê-lo),

mas, porque são convincentes. Elas nos devem dar a sensação de que, embora não tenham

sido explicadas, são explicáveis; aí reside a sua sensação do real”.63

Com o passar dos dias Juliana passa a se acomodar nos seus afazeres domésticos. Ao

chegar de um de seus passeios, Luísa encontra a casa e o seu quarto por arrumar e chama a

atenção de Juliana que responde em tom alterado:

61 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 161-162.62 CANDIDO, Antonio. Op. cit., p. 75.63 FORSTER, E. M. Apud FERREIRA, Edda Arzúa. Integração de Perspectivas: contribuição para uma análisede personagens de ficção. Rio de Janeiro: Cátedra, 1975, p. 22.

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- A senhora não me faça sair de mim! A senhora não me faça perder a

cabeça! – E com voz estrangulada através dos dentes cerrados: - Olhe que

nem todos os papéis foram para o lixo!

Luísa recuou, gritou:

- Que diz você?

- Que as cartas que a senhora escreve aos seus amantes, tenho-as eu aqui! –

E bateu na algibeira, ferozmente.

Luísa fitou-a um momento com os olhos desvairados e caiu no chão, junto a

causeuse, desmaiada.64

A ira de Juliana desencadeou o clímax do romance. A possibilidade de vir à tona o

adultério abalou as estruturas frágeis da personalidade de Luísa, que sem maturidade alguma

acredita que Basílio é capaz de tomá-la nos braços e levá-la para Paris. É então que faz as

malas e procura por Basílio, que encara a situação de uma forma inusitada aos olhos de Luísa,

quando ele se recusa a fugir com ela. Note-se que Luísa cai em si e se dá conta da realidade

em que se encontra, o que torna ainda mais evidente a sua fragilidade, as suas ações

impensadas e a falta que fez a razão ao se entregar a um amante. Veja-se como Luísa se sentiu

com a recusa de Basílio, na descrição do narrador:

Aquelas palavras caíam sobre os planos de Luísa, como machadadas que

derrubam árvores. Às vezes a verdade que elas continham atravessava-a

irresistivelmente, viva como um relâmpago, desagradável como um gume

frio. Mas via naquela recusa uma ingratidão, um abandono. Depois de se ter

instalado, pela imaginação, numa segurança feliz, longe, em Paris – parecia-

lhe intolerável ter de voltar para casa, de cabeça baixa, sofrer por Juliana,

esperar a morte; e os contentamentos que entrevira naquele outro destino,

agora que lhe fugiam de entre as mãos, pareciam-lhe maravilhosos, quase

indispensáveis! E depois de que servia resgatar a carta a dinheiro? A criatura

saberia seu segredo! E a vida seria amarga, tendo sempre em volta de si

aquele perigo a rondar!65

64 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 178-179.65 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 190.

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É possível observar os pensamentos de Luísa perante a situação de desamparo em

relação ao amante. Seus medos, a sua fragilidade ao se deparar com as conseqüências dos seus

atos, através do monólogo interior. As fantasias vividas com Basílio, assim como nos

romances que lia, também a colocam numa situação de enfrentamento com a realidade, com a

qual ela não consegue lidar. O narrador expõe todas as conseqüências que seu ato adúltero

veio causar juntamente com a imaturidade e visão irreal de mundo vivido pela personagem.

Constata-se que este seja o momento de maior relevância no romance de Eça. Observa-se que

as suas características realistas vêm a tona com as atitudes de Basílio perante a amante. A sua

mesquinhez, seu espírito individualista e estritamente voltado para os bens materiais

juntamente com a sua praticidade se chocam com o romantismo e a vida fútil de Luísa, cheia

de sonhos “cor-de-rosa” cultuados pelos romances que lê. Abaixo está o diálogo que

demonstra as afirmações anteriores, em que Luísa conversa com Basílio sobre a sua decisão

de abandonar o marido e fugir para Paris:

- Saí de casa para sempre, aí está o que eu fiz!

- Mas vais voltar para casa! – exclamou ele, quase com cólera. – Por que

havias de tu fugir? Por amor? Então devíamos ter partido há um mês; não há

razão para nós irmos. Para que, então? Para evitar um escândalo? Como um

escândalo maior, não é verdade? Um escândalo irreparável, medonho!

Estou-te a falar como um amigo, Luísa!! – Tomou-lhe as mãos, com muita

ternura: - Tu imaginas que eu não seria feliz em ir viver contigo para Paris?

Mas vejo os resultados, tenho outra experiência. O escândalo todo evita-se

com umas poucas de libras. Tu imaginas que a mulher vai-se pôr a falar? O

seu interesse é safar-se, desaparecer; sabe perfeitamente o que fez; que te

roubou; que usou de chaves falsas. A questão é pagar-lhe66.

A praticidade e a objetividade de Basílio deixam Luísa extremamente nervosa e sem o

controle da situação. Ela não sabe como agir perante as afirmações do amante, não consegue

se impor diante de uma palavra masculina devido a sua educação frágil, pois foi educada para

receber ordens do marido, e neste caso, do amante. Embora não soubesse o que fazer, Luísa

sentia a necessidade de agir de outra forma, fugir das regras impostas pela sociedade. Mesmo

considerando seu estado adúltero, tinha agora, com a recusa de Basílio, que cuidar para que

Jorge ao chegar do Alentejo, não descobrisse seu romance com o primo. Este enfrentamento

da realidade mostrada no romance através do drama dos personagens deve ser considerado

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como uma das razões de Eça em escrever sobre um tema tão comum e ao mesmo tempo tão

pouco mostrado na sociedade lisboeta do século XIX. Em O Primo Basílio tem-se

“Personagens construídas a partir de um modelo real, conhecido pelo escritor, que serve de

eixo, ou ponto de partida”67 para o desencadeamento do romance. Confira a analogia que o

autor faz entre um amante real e um amante fictício, no caso, Basílio ao se deparar com uma

situação de chantagem, na qual há a necessidade de dispor de dinheiro para solucionar o

problema:

Enfim oferece-lhe trezentos mil-réis, se quiseres. Mas pelo amor de Deus,

não faças outra; não estou para pagar as tuas distrações a trezentos mil-réis

cada uma!

Luísa fez-se lívida, como se ele lhe tivesse cuspido no rosto.

- Se é uma questão de dinheiro, eu o pagarei, Basílio!

Não sabia como. Que lhe importava? Pediria, trabalharia, empenharia...Não

aceitaria o dele!

Basílio encolheu os ombros:

- Estás-te a dar ares; onde o tens tu?

- Que te importa? – exclamou.68

É possível notar que tanto Basílio como Luísa perante uma situação embaraçosa de

decisão, agem como dois seres humanos. Por um lado, Basílio que só pensa nos seus bens

materiais e nos seus próprios prazeres e por outro, Luísa, que diante de uma situação nova e

traumática não consegue considerar a realidade que está vivendo e em vez de também usar da

praticidade para resolver o problema, age como uma donzela desamparada, característica

própria de uma educação voltada somente para os afazeres domésticos.

Ao leitor cabe uma explicação do porquê de tantas citações do romance. A ênfase nos

diálogos e descrições pode ser justificada pelo fato de que se acredita que estes conflitos

vividos pela personagem Luísa são indícios que a levam a um fim pré-destinado por aqueles

que não procedem de acordo com as regras morais da sociedade retratada no romance.

Para que seja possível a criação de uma narrativa dramática, seja ela televisual,

cinematográfica ou mesmo a literária é necessário que haja conflitos. Estes conflitos são

gerados por um problema escolhido pelo autor, o qual também escolhe como se dará este

66 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 190-191.67 CANDIDO, Antonio. Op.cit., p. 72.68 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 191.

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desenvolvimento e posteriormente, traça a sua solução, pelo desfecho. Eça escolheu o modo

de vida e as influências morais, sociais, políticas, econômicas e culturais da sociedade

burguesa do século XIX como problema. Já o caminho para demonstrar o problema deu-se

através da ficção e da escolha dos núcleos de personagens e suas histórias de vida,

considerando como conflito principal a ação do adultério entre Luísa e o primo Basílio, que

está sendo demonstrado neste momento por meio das citações e respectivos comentários.

Enquanto a solução do problema e o desenlace final devem ser relatados posteriormente.

Basílio não quer participar do problema, causado pelo roubo das cartas – pela criada

Juliana - que se dirigiu a Luísa. Este modo de agir do amante deixa Luísa desnorteada e

desamparada perante uma situação nova a seus olhos, o que não ocorre com Basílio que já

teve experiências parecidas. Observe que Luísa sente medo:

Ela interrompeu-o, agarrou-lhe violentamente o braço;

- Pois sim, mas fala tu a essa mulher, fala-lhe tu, arranja tudo. Eu não a

quero tornar a ver. Se a vejo, morro, acredita. Fala-lhe tu!

Basílio recuou vivamente, e batendo com o pé:

- Estás doida mulher! Se eu falo, então pede tudo, então pede-me a pele! Isso

é contigo. Eu dou-te o dinheiro, tu arranja-te!69

Eça descreve com muita sutileza como a sociedade machista vê a mulher. Primeiro

pela forma com que Basílio trata Luísa depois de ter conseguido o que queria, ou seja, os

encontros no Paraíso e depois a revolta deste quando se depara com a obrigação de ser

responsável pelo ato de sedução e conquista de sua prima, o que a levou a ceder e a julgar que

os sentimentos dele eram profundos e de cumplicidade e compromisso. O caráter pouco

acentuado de Basílio pode ser notado quando este compartilha com o amigo, Visconde

Reinaldo, os problemas que está tendo com a amante. É então que Visconde Reinaldo

comenta:

- Oh quê? – E coberto de flocos de espuma, com as mãos apoiadas ao

rebordo da mármore da tina: - Pois tu achas isso decente, uma mulher que

toma a cozinheira por confidente, que lhe está na mão, que perde a carta nos

papéis sujos, que chora, que pede duzentos mil-réis, que quer safar – isso é

69 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 191.

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lá amante, isso é lá nada! Uma mulher que, como tu mesmo disseste, usa

meias de tear!

- Meu rico, é uma mulher deliciosa!

O outro encolheu os ombros descrente.

Basílio deu logo provas; descreveu belezas do corpo de Luísa; citou

episódios lascivos70.

Os comentários de Basílio são característicos dos homens de uma sociedade machista

que tem na mulher, um objeto para ser usado e descartado ou como progenitora que

possibilitará a continuação do nome da família. Estas afirmações podem ser justificadas logo

no início do romance quando o narrador conta que o personagem Jorge depois que a sua mãe

morreu, sentia falta ouvir um fru-fru de vestidos andando pela casa, desejo que seria realizado

com o casamento com Luísa.

Com a atitude própria de um amante totalmente descompromissado, Basílio parte para

Paris e deixa Luísa sozinha como esposa adúltera que é chantageada. Com o sentimento de

arrependimento, próprio dos humanos, Luísa novamente se depara com a realidade e se

lembra que é casada com um homem bom e íntegro, como pode ser verificado na passagem

seguinte:

O trem rolou. Era o nº 10... Nunca mais o veria! Tinham palpitado no

mesmo amor, tinham cometido a mesma culpa. – Ele partia alegre, levando

as recordações romanescas da aventura; ela ficava, nas amarguras do erro. E

assim era o mundo!

Veio-lhe um sentimento de solidão e abandono. Estava só, e a vida aparecia-

lhe como uma vasta planície desconhecida, coberta da densa noite, eriçada

de perigos!

Entrou no quarto devagar, foi-se deixar cair no sofá; viu ao pé o saco de

marroquim, que preparara na véspera para fugir: abriu-o; pôs-se a tirar

lentamente os lenços, uma camisinha bordada, - encontrou a fotografia de

Jorge! Ficou com ela na mão, contemplando o seu olhar leal, o seu sorriso

bom. – Não, não estava no mundo só! Tinha-o a ele! Amava-a aquele; nunca

a trairia, nunca a abandonaria! – E colando os beiços ao retrato,

umedecendo-o de beijos convulsivos, atirou-se de bruços, lavada em

70 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p.194.

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lágrimas, dizendo: - Perdoa-me, Jorge, meu Jorge, meu querido Jorge, Jorge

da minha alma! 71

É o ápice do desespero da amante. Sozinha, adúltera, a consciência matando-a aos

poucos pelo sentimento de culpa e ainda tendo que enfrentar Juliana, uma criada de dentro de

casa com personalidade própria, com objetivos traçados, inerte ao seu sofrimento. É então que

começa a degradação moral de Luísa no espaço doméstico. Perante os vizinhos já existem os

mexericos provenientes das suas saídas ao Paraíso, das visitas do primo. Os amigos Sebastião

e Julião Zuzarte também comentam entre si, a possibilidade do adultério, mas até então, o

ambiente doméstico, apesar das críticas das empregadas, ainda estava intacto. A paz no lar

acaba:

Eram quase nove horas quando a campainha retiniu com pressa. Julgou que

seria Joana de volta; foi abrir com um castiçal, - e recuou vendo Juliana,

amarela, muito alterada.

- A senhora faz favor de me dar uma palavra?

Entrou no quarto atrás de Luísa, e imediatamente rompeu, gritando, furiosa:

- Então a senhora imagina que isto há de ficar assim? A senhora imagina que

por o seu amante se safar, isto há de ficar assim?

- Que é,mulher? – fez Luísa, petrificada.

- Se a senhora pensa, que por o seu amante se safar, isto há de ficar em

nada? – berrou.

- Oh mulher, pelo amor de Deus!...

A sua voz tinha tanta angústia que Juliana calou-se.

Mas depois de um momento, mais baixo:

- A senhora bem sabe que se eu guardei as cartas, para alguma coisa era!

Queria pedir ao primo da senhora que me ajudasse! Estou cansada de

trabalhar, e quero o meu descanso. Não ia fazer escândalo; o que desejava é

que ele me ajudasse... Mandei ao hotel esta tarde... o primo da senhora tinha

desarvorado! Tinha ido para o lado dos Olivais, para o inferno! E o criado ia

à noite com as malas. Mas a senhora pensa que me logram? – E retomada

pela sua cólera, batendo com o punho furiosamente na mesa: - Raios me

71 QUEIRÒS, Eça. Op. cit., p. 198.

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partam se não houver uma desgraça nesta casa, que há de ser falada em

Portugal!72

Depois desta conversa com Juliana, Luísa passou a ceder as suas chantagens. Passou a

cozinhar, a fazer os despejos, a engomar enquanto Juliana visita as amigas, a tia, em trajes de

dama, provenientes do guarda-roupa da patroa.

Basílio viajando, sem dar notícias e Jorge para chegar. O desespero e a loucura tomam

conta de Luísa, que com a ajuda de Leopoldina até encontrou-se com o personagem Castro, o

banqueiro, que era louco por ela. Ele até ofereceu os seiscentos mil-réis para Luísa deitar-se

com ele, mas ela não teve coragem apesar de ser a solução dos seus problemas com Juliana.

Jorge chega finalmente. Encontra tudo igual, aparentemente. Mas nota que Luísa tem

um ar de doente, de cansada. Como a chantagem continua cada vez mais severa, Luísa cria

coragem e pede ajuda a Sebastião, o bom Sebastião, o Sebastiarrão. Como o autor já deu

indícios no começo do romance, o amigo Sebastião é quem consegue resolver o problema de

Luísa, levando a ordem até a casa de Jorge, por meio de dois guardas, os quais por algumas

moedas, intimidam Juliana, fazendo com que ela devolva as cartas de Luísa para Sebastião.

Mais uma vez Eça consegue mostrar que a ordem pública pode ser facilmente manipulada

pela amizade e pelo dinheiro. Entretanto, Juliana não resiste à pressão dos guardas e tem um

infarto, apressado pelo medo, pois já era cardíaca. Segundo Muir,

O final de qualquer romance dramático será uma solução do problema que

põe os eventos em movimento; a ação específica terá se completado,

produzindo um equilíbrio ou resultando em alguma catástrofe que não pode

ter prosseguimento por mais tempo. Equilíbrio ou morte, estes são os dois

finais em direção aos quais se move o romance dramático. O primeiro por

várias razões, em geral toma a forma de um casamento conveniente73.

Para concretizar as afirmações de Muir, Luísa, apesar de muito aliviada e feliz por ter

recuperado e queimado as cartas, cai doente. A pressão que sofrera com as chantagens e o

medo do seu caso com Basílio chegar aos ouvidos de Jorge, provocou uma intensa dor de

cabeça e febre. Jorge sempre presente e cuidadoso com Luísa, queria e pedia muito a ela que

se recuperasse logo. Eis que chega uma carta de Basílio destinada a Luísa. Como ela estava

acamada, Jorge leu:

72 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 199.73 MUIR, Edwin. Op. cit., p. 31-32.

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Minha querida Luísa

Seria longo explicar-te, como só anteontem em Nice – de onde cheguei esta

madrugada a Paris – recebi a tua carta que pelos carimbos vejo que

percorreu toda a Europa atrás de mim. Como já lá vão dois meses e meio

que a escreveste, imagino que te arranjaste com a mulher, e que não

precisas do dinheiro. De resto se por acaso o queres, manda um telegrama e

tem-lo aí em dois dias. [...] A minha partida não devia ter tirado, como tu

dizes, todas as ilusões sobre o amor, porque foi realmente quando saí de

Lisboa que percebi quanto te amava, e não há dias, acredita, em que me não

lembre do Paraíso. Que manhãs! Passaste por lá por acaso alguma outra

vez? Lembras-te do nosso lanche? Não tenho tempo para mais. Talvez em

breve volte a Lisboa. Espero ver-te, porque sem ti Lisboa é para mim um

deserto.

Um longo beijo do

Teu do C.

Basílio74

Mesmo sabendo da traição da mulher, Jorge continuou cuidando e velando por ela até

ela melhorar, mas não conteve a sua ânsia em confirmar a verdade e mostrou a carta a Luísa,

que caiu novamente doente. As dores na cabeça, a febre e os delírios a consumiram em dias.

Luísa morreu.

Esta pesquisa facultou o entendimento sobre a construção dos personagens. A partir

desta premissa é possível constatar que os personagens vão sendo construídos no decorrer do

romance, através dos seus pensamentos, do seu modo de vestir, dos seus sonhos, do seu modo

de agir, da maneira como enfrentam os problemas relativos à vida diária, da mesma forma

com que é diagnosticada a personalidade humana, por suas ações. Todavia são realidades

absolutamente diferentes, a ficção é uma realidade inventada. Comparato cita Tzvetan

Todorov, o qual afirma que “a literatura não é uma linguagem que possa ou deva ser falsa [...]

é uma linguagem que não se deixa submeter à prova da verdade [...] isto é o que lhe define o

próprio estatuto de ficção”75. Sendo assim, não se deve deixar de comentar que a linguagem

cinematográfica e/ou a televisiva também:

[...] introduziu uma nova concepção de tempo e espaço em sua reprodução

do mundo. O espaço perdeu sua qualidade estática e passou a ser

74 QUEIRÓS. Eça. Op. cit., p. 300-301.

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movimentado, incorporando as características do tempo histórico. O espaço-

tempo pode parar, como nos ‘close-ups’, pode voltar ao passado, como nos

‘flash-backs’, pode dar um salto e nos levar ao futuro [...] parece evidente a

fronteira que separa a realidade concreta e ficção [...]76.

A partir destas ponderações, no próximo capítulo tecer-se-ão algumas observações

acerca da televisão como canal de propagação da ficção. E posteriormente, no último capítulo,

falar-se-á da transmutação da obra de Eça de Queirós O Primo Basílio para a minissérie

televisiva homônima, produzida e veiculada pela Rede Globo de Televisão.

Capítulo II

2.1 – A chegada da TV no Brasil

Este capítulo pretende abordar questões relevantes sobre a linguagem da televisão,

uma mídia de concessão pública, porém utilizada por organizações formais, fato que abre a

possibilidade de pensá-la como instrumento da Indústria Cultural, característica da sociedade

de massa. Considerando-a como um dos suportes técnicos do objeto de pesquisa desta

dissertação, crê-se necessário fazer uma breve contextualização histórica desta mídia que é

considerada uma das mais difundidas em nosso país, perdendo apenas para o rádio.

Em 1917 chega ao Rio de Janeiro o pernambucano Assis Chateaubriand. Advogado e

Jornalista, começou sua carreira n’O Correio da Manhã, neste mesmo ano. Já em 1924,

compra no Rio de Janeiro, O Jornal. Este foi o início de um império da Comunicação

brasileira que, em 1950, incorporava diários e emissoras, como: Diário da Noite; Diário de

São Paulo; revistas (O Cruzeiro) e emissoras de rádio (Tupi). Foi neste ano que

Chateaubriand trouxe para o Brasil as primeiras câmeras de vídeo, juntamente com os

técnicos norte-americanos da RCA para implantar a televisão no Brasil. “[...] uma data marca

75 COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1996, p. 75.76 Id. Ibid., p. 76.

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a inauguração oficial da primeira emissora de TV no país: 18 de setembro de 1950. Nesse dia,

entrava no ar a PRF-3 TV Difusora, depois TV Tupi de São Paulo. Primeiramente Canal 3,

mais tarde Canal 4 - a pioneira da América Latina”77, afirma Paternostro.

O primeiro programa foi improvisado porque mesmo depois de tudo pronto, ensaiado,

uma das câmeras quebrou, desestruturando o apresentador, participantes e técnicos. De acordo

com Paternostro, Cassiano Gabus Mendes comandou artistas como Mazzaropi, Walter

Forster, Lia de Aguiar, Hebe Camargo, Wilma Bentivegna e Lolita Rodrigues. Usando de

muito improviso e com duas horas de atraso, o programa foi ao ar.

A TV brasileira foi adaptando, dos estúdios de rádio, programas jornalísticos como o

Repórter Esso, humorísticos como o PRK-30 e Balança mas não cai para a linguagem

televisiva.

Até o final da década de 50, funcionavam as TVs Tupi, Record (1953) e

Paulista (1952) em São Paulo; Tupi, Rio (1955) e Excelsior (1959) no Rio

de Janeiro; Itacolomi (1956) em Belo Horizonte. Nesses primeiros dez anos

da TV brasileira, o aparelho televisor ainda era um artigo de luxo. Em 1954,

existiam 12 mil aparelhos no Rio e em São Paulo; em 1958, eram 78 mil em

todo o país78.

A briga pela audiência começa nos anos 60. Na disputa pelas verbas publicitárias a TV

assume seu caráter comercial. É nessa guerra pela conquista e sedução de telespectadores que

esta mídia está empenhada até hoje. Este objetivo recai amplamente sobre a linguagem

utilizada no dia-a-dia da TV, a qual vem se transformando, readaptando e procurando

autonomia dentre os meios de comunicação. A TV procura saciar o apetite do telespectador

realimentando a sua eterna avidez pelo caminho mais curto, pela temporalidade de resposta

rápida, fazendo sua síntese com o hibridismo de formatos, as citações, as adaptações, as

releituras, as intertextualidades de meios, gêneros e linguagens.

2.2 – A linguagem televisiva

Num primeiro momento, a incessante busca em seduzir o telespectador se dá pelo fato

de a televisão ter uma característica dispersiva, ou seja, geralmente o telespectador não fica

77 PATERNOSTRO, Vera Íris. O texto na TV - Manual de Telejornalismo. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 13.

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concentrado somente na programação que está assistindo, devido aos ruídos. Maciel afirma

ainda que “o espetáculo televisão torna o veículo superficial, exige dele um ritmo constante

para fixar a atenção do telespectador”79. O autor argumenta que uma das regras para que se

tire um aproveitamento maior desse enorme potencial de comunicação, a televisão, é “buscar

o equilíbrio entre a informação e a emoção, procurando sempre conquistar o envolvimento

dos telespectadores pela sedução”80. Este processo pode ser notado na minissérie, nas

passagens de uma cena para outra, na composição das informações dos núcleos de

personagens e principalmente na intensificação da ação em meio à narrativa imagética.

É pertinente lembrar que esta poderosa fórmula de persuasão e manipulação ideológica

– a TV – teve sua estrutura fincada no contexto histórico-social. Assim como a instalação do

capitalismo e as mudanças nos modos de produção afetaram bruscamente a economia, a

política e a cultura mundial, com a TV não foi diferente. A partir deste encadeamento a TV

passou a solidificar-se em uma estrutura voltada para a mercantilização simbólica dos bens de

consumo, o que originou a cultura de massa. A possibilidade de adquirir facilmente um

aparelho de televisão e o desenvolvimento tecnológico favoreceram o acesso da massa a uma

grande quantidade de informação e de bens simbólicos81.

Barbero atribui outros fatores que colaboram para o sucesso permanente da televisão.

De acordo com o autor, não foram apenas mudanças de caráter econômico e industrial, mas

um “[...] refinamento dos dispositivos ideológicos [...]”82. A conseqüência desta junção é o

surgimento de uma TV que cria e difunde uma ideologia própria.

Esta ideologia mencionada por Barbero passa então a ser o ponto central na produção

simbólica desse meio. O teórico acrescenta ainda que os índices de audiência tão disputados

pelas emissoras vêm confirmar o caráter destes produtos que se solidificam por meio de “ [...]

um discurso que, para falar ao máximo de pessoas, deve reduzir as diferenças ao mínimo,

exigindo o mínimo de esforço decodificador e chocando minimamente os preconceitos sócio-

78 Id., p. 26.79 MACIEL, Pedro. Jornalismo de Televisão: normas práticas. Porto Alegre: Sagra-D.C. Luzzatto, 1995, p. 22.80 Id., Ibid.81 “O campo de produção de bens simbólicos apresenta duas vertentes – mais ou menos marcada conforme asesferas da vida intelectual e artística – sendo elas: o campo de produção erudita e o campo da indústria cultural.A diferença básica entre os dois modos de produção se refere a quem se destinam os bens culturais produzidos.Assim, o campo de produção erudita destina a produção de seus bens a um público de produtores de bensculturais, enquanto o campo da indústria cultural os destina aos não – produtos de bens culturais, ou seja, apopulação em geral”. BONFIM, Gustavo Amarante. O Mercado de Bens Simbólicos de Pierre Bordieu. Rio deJaneiro: Depto de Artes e Design da PUC, 2003. Disponível emhttp://72.14.209.104/search?q=cache:meWTj4m096oJ:www.fmemoria.com.br/teoriaecritica/img/mercado_dos_bens_simb.pdf+bens. Acesso em: 24 de agosto de 2006.82 BARBERO, Jésus Martin. Dos Meios às Mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro:UFRJ, 1997, p. 35.

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culturais das maiorias”83. Em outras palavras, pode-se afirmar que a TV passou também a se

desenvolver de uma forma padronizada, com uma linguagem extremamente acessível, não

exigindo muito conhecimento específico acerca do que está sendo veiculado ou senso crítico

por parte do espectador.

O processo de evolução da televisão manifesta-se como uma importante fórmula para

a compreensão do sistema de veiculação de mensagens utilizado por este meio. Do ponto de

vista técnico, este que é considerado o mais difundido meio de comunicação de massa, é

avaliado como um meio frio devido à sua baixa definição de imagem e som, ao contrário do

cinema que é um meio quente de alta definição. Esta característica técnica propicia à TV a

condição de ser superficial. O cruzamento de pontos de luz e sombra forma a imagem da

televisão o que provoca a sua baixa definição, o que não ocorre com o cinema que é um meio

quente e mesmo quando a qualidade é ruim, os parâmetros de definição da imagem são

superiores em virtude da sua tecnologia ser diferente. Ao contrário de meios como os livros

que oferecem um aprofundamento no assunto, a televisão transmite de forma rápida, simples e

com uma linguagem acessível somente a essência da informação. Deve-se considerar que

tecnicamente cada minuto, neste meio de comunicação, tem um alto custo de produção e

ainda, a TV tende a produzir uma programação mais dinâmica já que usa tanto a imagem

quanto o áudio, o que permite uma captação rápida da mensagem, pelo espectador.

Por veicular a essência da informação, sem demorar nos detalhes, a TV é questionada,

estudada e criticada, não só por isso, mas por ser considerada o meio de comunicação de

massa que tem mais facilidade de propagar ideologias, de manipular e formar opinião.

Contudo, não cabe aqui adentrar nestes questionamentos. Ressalta-se que independente dos

pontos negativos, esta chamada superficialidade da TV desperta no espectador o interesse pela

leitura, não de um modo geral, mas principalmente quando esta se propõe a adaptar uma obra

literária (cultura erudita) para um de seus formatos (cultura de massa). Tem-se como exemplo

a grande quantidade de livros vendidos das obras literárias adaptadas para o formato de

minissérie, feitas pela Rede Globo.

Mcluhan afirma que “o meio frio da TV incentiva a criação de estruturas em

profundidade no mundo da arte e do entretenimento criando ao mesmo tempo um profundo

envolvimento da audiência”84. O que confere a este meio a importância do envolvimento com

o público no seu processo comunicativo, além da cumplicidade proporcionada por seu caráter

83 Id. Ibid., p. 42.84 MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensão do homem. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 1999,p. 53.

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superficial. A intensidade da relação entre a TV e o seu público torna-se muito significante, já

que ela chega a provocar um efeito tátil no receptor. O autor contextualiza ressaltando que

“[...] a TV, acima de tudo, é uma extensão do sentido do tato que envolve a máxima inter-

relação de todos os sentidos”85. Vale ressaltar que não se deve confundir envolvimento com

profundidade, apesar de haver intimidade entre espectador e meio, a superficialidade ainda

permanece nas abordagens dos temas.

Bordieu86 levanta a questão da troca de valores referente ao uso dos meios em especial

a televisão, que não proporciona aos usuários, na maioria das vezes, aquilo que realmente

contribui para uma televisão democrática. A TV torna-se o mundo dos sonhos do

telespectador, onde as situações de medo e angústia são passageiras e inofensivas, as épocas

se misturam, investindo muito mais esta lógica irracional, extrapolando o mundo das

vivências reais, evocando a fantasia, o imaginário, as aventuras do desejo – muitas vezes

possíveis no mundo real – dos sonhos e da ilusão, como é o caso da minissérie O Primo

Basílio.

A partir deste pressuposto, Bordieu afirma que “[...] a tela da televisão se tornou hoje

uma espécie de espelho de Narciso, um lugar de exibição narcísica”87. No jornalismo, por

exemplo, esta situação se dá no momento em que os jornais constroem notícias sobre fatos

extra-jornalísticos ou não-jornalísticos. Marcondes Filho88 cita o exemplo das entrevistas com

candidatos a cargos públicos sobre temas “embaraçosos” – mas sensacionalistas – como a

homossexualidade, misticismo, religião ou quando fazem matérias sobre si mesmos, olhando-

se como espelhos narcisistas em relação a assuntos que geralmente só têm a ver consigo

mesmos. O autor declara ainda que a conseqüência disso é que a prática jornalística torna-se

progressivamente minimalista, ou seja, totalmente voltada para os interesses das empresas de

comunicação:

O enfoque dos grandes temas recai sobre o ângulo subjetivo e pessoal; a

economia não é tratada do ponto de vista de sua relação com o Estado, o

grande empresariado, a massa assalariada, mas apenas com vistas a dar

informações particularizadas aos leitores de onde melhor investir, como

85 Id. Ibid., p. 67.86 Cf. BORDIEU, Pierre. Sobre a Televisão: a influência do jornalismo e os jogos olímpicos. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor, 1997.87 Id. Ibid., p. 95.88 Cf. MARCONDES FILHO, Ciro. A Saga dos Cães Perdidos. São Paulo: Hacker Editores, 2000.

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manter seu capital, ou seja, como manual de prática de sobrevivência em

meio à imprevisibilidade econômica89.

A televisão passa então a se preocupar, principalmente, em mostrar acontecimentos

que não chocam, nem convidam o interlocutor a uma análise crítica, mas fatos que chamam a

atenção do público pelo curioso ou pelo banal. A realidade passa à ficção em fração de

segundos. As pessoas envolvidas no fato passam a ser personagens numa trama, muitas vezes,

dramática e chocante, deixando o fato de ser apenas notícia para se tornar espetáculo90, isso se

dá por meio do tratamento que o fato recebe antes de ser transformado em notícia.

Na ficção não é diferente, pois a linguagem televisiva permite a fácil transposição

entre ficção e realidade. Contudo, neste caso, “o drama da personagem é fantasioso, mas a

lágrima que o telespectador derrama ou a palpitação de seu coração é real”91, declara Arbex

Jr. O autor cita ainda Umberto Eco, o qual atribui grande parte do poder sedutor da televisão à

“ilusão de cordialidade” que o veículo propicia, já que basta ligar o aparelho e a sala da casa,

antes imersa na mais profunda solidão, seja invadida por imagens, vozes e sons do mundo,

criando a sensação de participação de uma comunidade ilusória. Eco explica que o

telespectador mantém uma relação “onanística” com estas imagens, tanto no sentido de

projetar suas fantasias em ídolos (artistas, cantores e galãs de novelas) quanto no gozo da

participação nos eventos, sem contudo se expor ao acaso ou correr qualquer risco real.

Arbex Jr. também se refere ao teórico Jean Baudrillard para explicar o

desaparecimento das fronteiras entre ficção e realidade, atribuindo à mídia não apenas a

capacidade de criar fatos, como também a de criar a opinião pública sobre os fatos que ela

mesma, de certa forma, gerou. Para Baudrillard, a capacidade de “colonização do

imaginário”92 pela mídia transformou a própria opinião em mero simulacro93.

A fabricação da opinião pública, comentada por Baudrillard, simula a democracia.

Segundo Arbex Jr. aparentemente, a opinião divulgada pela TV interfere nos acontecimentos,

dando a ilusão de que o público foi levado em consideração. Na realidade, os indivíduos

permanecem isolados, espalhados pelas mais distintas cidades, regiões, estados e países,

sendo virtualmente unificados pela mídia, mas sem terem exercido qualquer interlocução. “É

89 Id.Ibid., p. 43.90 Cf. em ARBEX JR, José. Showrnalismo: a notícia como espetáculo. São Paulo: Casa Amarela, 2002.91 ARBEX JR, José. Op. cit., p. 134.92 A idéia de colonização do imaginário pode ser descrita como a imposição da cultura colonizadora sobre acolonizada, o que possibilita uma reflexão acerca da relação que se estabelece entre mídia e receptor, no casodeste estudo, entre minissérie e espectador.93 Cf. ARBEX JR, José. Op. cit., p. 54.

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a ‘ágora eletrônica’ que simula a antiga polis, onde tudo se debatia. As megacorporações

simulam a ‘ágora’ que legitimará suas próprias estratégias de dominação e controle”94.

Essa domesticação do imaginário coletivo transforma o povo, que seria um grupo de

seres humanos unidos por fator em comum em público95, ou seja, em platéia destinada a

acentuar o caráter abstrato e desencarnado da relação com as audiências. A televisão é a mídia

que mais radicalmente irá desordenar a idéia e os limites do campo da cultura: suas “cortantes

separações entre realidade e ficção, entre vanguarda e kitsch, entre espaço de ócio e

trabalho”96.

É possível observar que essas relações de mal-estar cultural com a hegemonia

audiovisual respondem a movimentos e motivações de ordem geral. Na cultura, a desordem

introduzida pela experiência audiovisual atenta contra o tipo de representação e de saber, no

qual estava baseada a autoridade. Esta desordem pode ser explicada pela constante mutação

dos valores culturais, políticos e econômicos, propagados pela TV, o que sugere ao espectador

a contínua necessidade de adaptação a novos conceitos, a novas ordens. Quanto ao espaço, a

TV provocou o levantamento, a desterritorialização97 dos modos de presença e relação, das

formas de perceber o próximo e o longínquo, que tornam mais perto o vivido à distância do

que aquilo que cruza nosso espaço físico cotidiano. Um exemplo típico dessa conseqüência é

o individualismo em que está mergulhada a sociedade. “A percepção do tempo, no qual se

instaura o sensorium audiovisual, está marcada pelas experiências da simultaneidade, do

instantâneo e do fluxo [...] no culto ao presente alimentado pelos meios de comunicação em

seu conjunto e, em especial, pela televisão”98.

O enfraquecimento do tempo presente é provocado pela perda da capacidade de

interlocução de que fala Habermas, conclui Arbex Jr. Os vínculos pessoais, familiares e

afetivos são enfraquecidos, em benefício de outros vínculos que possam, eventualmente,

trazer lucros e fortalecimento de posições na economia de mercado, como é o caso do

estabelecimento do estereótipo que reafirmam os modelos a serem seguidos, cultuados e

imitados, os quais são geralmente propagados através das telenovelas e minisséries, entre

94 Id. Ibid., p. 56.95 Dicionário da Língua Portuguesa on line. Disponível em www.priberan.pt. Acesso em: 12 de setembro de2006.96 MARTIN BARBERO, Jesus; REY, Gérman. Os exercícios do ver: hegemonia audiovisual e ficção televisiva.Tradução de Jacob Gorender. São Paulo: Senac, 2001, p. 32.97 A desterritorialização, segundo Arbex Jr, é a capacidade que a TV tem de manipular o espectador por meio deuma linguagem interessante, o qual em fração de segundos consegue se transportar, por exemplo, para a trama deuma telenovela e a vivenciar o drama de um personagem, que conhece desde a sua primeira aparição na tela.Enquanto na realidade é dominado pela mobilidade, pelos fluxos e pelo desenraizamento familiar. Cf. ARBEXJR. José. Op. cit., p. 120.98 Id. Ibid., p. 34-35.

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outros. As bases da identidade pessoal não são mais sedimentadas na tradição dos hábitos e

saberes, mas em arranjos provisórios organizados segundo interesses imediatos, da indústria

da moda, por exemplo, que utiliza geralmente da ficção para distender seus interesses.

A televisão configura-se como um dos mais importantes meios de comunicação de

massa. Tudo o que ela produz incita o consumo, principalmente através das telenovelas e

minisséries, pelas quais se veicula o reflexo e sustentação de uma sociedade que vive para o

consumo. O que surge na tela torna-se, de alguma forma, um anúncio publicitário, o que para

Roland Barthes99 só enfatiza a evidente origem comercial do imaginário coletivo da

sociedade. A televisão incita o consumo, mas, além disso, sustenta-se como consumo.

Graças às verbas geradas pela publicidade, a televisão passa a produzir programas

cada vez mais sedutores, com a finalidade de seduzir os telespectadores até no momento da

publicidade. Desta forma, compreende-se que o verdadeiro cliente da televisão não é o

telespectador, e sim o anunciante, porque é ele que torna possível a sua existência.

Nota-se, portanto, que a evolução técnica e administrativa da TV, desde o seu

surgimento, implica também a transformação da linguagem utilizada por este meio bem como

os constantes desenvolvimentos e aprimoramentos dos formatos televisivos. Embora sejam

muito amplas as abordagens que podem ser estudadas sobre este meio de comunicação de

massa, nesta pesquisa faz-se necessário, do ponto de vista técnico, uma síntese do formato

escolhido para ser analisado – a minissérie - e dos que contribuem ou possuem interligações

com este.

2.3 – Formatos ficcionais televisivos: filme, telenovela e minissérie

Ciro Marcondes Filho100questiona que a princípio o papel da televisão seria mostrar ao

espectador, na forma de notícia, a realidade crua e fria dos acontecimentos e por outro lado

oferecer um espaço de entretenimento por meio das obras de caráter ficcional.

No primeiro caso, havia a repetição, por via dos sistemas televisivos, dos

acontecimentos, dos fatos que se passavam no mundo, quase como uma

duplicação de sua existência. As coisas aconteciam duas vezes: uma, na vida

real e outra, na transmissão jornalística televisiva para centenas, milhares,

milhões de lares do país. Ao lado disso, funcionava um campo das fantasias,

99 Cf. BARTHES, Roland. Retórica de La Imagem. Buenos Aires: Ed. T. Contemporâneo, 1970.100 Cf. MARCONDES FILHO, Ciro. Televisão. São Paulo: Scipione, 1994.

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especulações imaginárias, em que a televisão inicialmente transmitia

teleteatros ou diretamente filmes de cinema, em que mais tarde foi

desenvolvida uma grande indústria, a da telenovela, cuja função seria a de

criar estórias próprias para serem veiculadas na televisão e com sua

linguagem própria101.

E as modificações não param por aí, considerando o contexto histórico em que se

encontrava este estágio do desenvolvimento da linguagem televisiva. Depois da telenovela

desenvolveu-se também a indústria de cinema para televisão, iniciada nos Estados Unidos,

onde o gênero cresceu consideravelmente através das séries. É possível notar que nesta fase

ainda há uma clara divisão de territórios. Marcondes Filho afirma que na maior parte de sua

programação, a televisão dividia-se entre ficção e não-ficção, além de ter também uma série

de outros programas, como musicais, humor, esportes, curiosidades e programas infantis.

Todavia, com o passar do tempo, a linguagem televisiva começa a se modificar e a se

adaptar ao sistema capitalista. Com a constante busca pela audiência e os avanços

tecnológicos, o modo de fazer televisão anula as barreiras entre ficção e não-ficção.

Marcondes Filho menciona que o primeiro teórico a defender a tese da abolição desta divisão

na TV é o italiano Umberto Eco102. Para este, já não existe mais a clássica separação entre

ficção e não-ficção, entre programas jornalísticos e programas ligados ao imaginário, mas sim

a divisão entre dois tipos de forma de se fazer televisão: aquela em que as pessoas falam

olhando para a câmera e outra, em que as pessoas falam sem olhar para ela. Marcondes Filho

contextualiza os pensamentos de Eco da seguinte forma:

No primeiro tipo, a televisão representa a si mesma, ela está lá exatamente

para demonstrar que existe e que as coisas que estão acontecendo por trás

das câmeras também estão lá porque ela existe. Falar olhando para a câmera

significa que tudo o que acontece, que se passa, só tem garantida sua

existência por força do próprio meio de comunicação. Por outro lado, falar

sem olhar para a câmera é uma forma de produção televisiva em que a tevê

representa o outro, ou seja, mostra as coisas que acontecem por si

mesmas103.

101 Id. Ibid., p. 38.102 Cf. MARCONDES FILHO, Ciro. Op. cit., 1994.103 MARCONDES FILHO, Ciro. Op. Cit., 1994, p. 38-39.

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O que se caracteriza aqui, não é a dualidade clássica entre ficção e não-ficção, mas a

dualidade entre dois planos de apresentação televisiva. No entanto, voltando-se para a ficção

que é o foco principal desta pesquisa, é pertinente mencionar que a telenovela, apesar de ser

um produto ligado ao imaginário não deixa de retratar e representar a realidade e o dia-a-dia

do espectador. Esta afirmação também pode ser relacionada ao cinema e à minissérie, os quais

da mesma forma, procuram produzir histórias em que haja a identificação com a realidade

vivida pelo espectador. Contudo, enquanto as telenovelas tendem a representar os traços que

caracterizam as relações sociais, a valorização do corpo, as paixões pelo futebol e carnaval, as

belezas naturais do Brasil, entre outros, as minisséries “[...] são uma nova forma de recontar a

história do nosso país”104.

Em se tratando de formatos ficcionais televisivos, aqui estudados, pode-se dizer que a

música, o teatro, a literatura e a pintura influenciaram diretamente na forma de se fazer

cinema, em como contar histórias por meio de uma seqüência de imagens, a princípio, e

depois pela junção de seqüência imagética e áudio. Anos mais tarde, o romance literário do

mesmo modo, juntamente com a linguagem do cinema, já arraigada, as soap-operas

americanas e as radionovelas latino-americanas influenciaram e contribuíram para o

nascimento de um outro modo de contar histórias por meio da TV, as telenovelas e,

posteriormente, com a adesão de todas as experiências anteriores, surgem as minisséries

(próximas das primeiras novelas).

De acordo com Brasil Júnior, “foi em meados da década de 80 que a Rede Globo

inaugurou este novo formato de programa – as minisséries”105. Segundo o autor, até 2003 a

Globo produziu oitenta e sete minisséries, “[...] sendo que trinta e uma foram feitas tendo por

base textos literários, a maioria de autores do século XX”106. Observe-se que entre as obras

adaptadas estão as dos renomados autores da nossa literatura contemporânea:

Jorge Amado, com o qual a Rede Globo mais trabalhou, teve quatro obras

adaptadas: Tenda dos Milagres, produzida em 1985; Tereza Batista, feito

pela emissora em 1990; Dona Flor e seus dois maridos, exibida em 1998;

sendo o último Pastores da Noite, no ano passado. O segundo escritor mais

adaptado foi Nélson Rodrigues, com três trabalhos: Meu destino é pecar, que

104 BRASIL JUNIOR, Antonio da Silveira; GOMES, Elisa da Silva; OLIVEIRA, Maíra Zenun de. Os Maias, aliteratura na televisão. Revista Habitus: revista eletrônica dos alunos de graduação em Ciências Sociais –IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, v.2, n.1, p. 5-20, 30 mar. 2004. Anual. Disponível em www.habitus.ifcs.ufrj.br.Acesso em: 01 dez 2006.105 Id. Ibid.106 Idem.

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foi a segunda minissérie adaptada pelo canal de televisão, em 1984;

Engraçadinha, feita em 1995; e também A vida como ela é, que foi

televisionada em 1996. Os outros dois autores nacionais mais de uma vez

adaptados são: Érico Veríssimo com O Tempo e o Vento em 1985 e

Incidente em Antares no ano de 1994 e Dias Gomes, com O Pagador de

Promessas em 1988, que anteriormente havia sido adaptado para o cinema, e

Decadência, exibida em 1995107.

Dentre as outras adaptações todas foram baseadas em autores brasileiros, com exceção

do argentino Mempo Giardelli, que teve a obra Luna Caliente resgatada e transformada em

minissérie em dezembro de 1999 e Eça de Queirós, autor português duas vezes adaptado –

primeiro com O Primo Basílio em 1988 e em 2001 com Os Maias.

O sucesso deste formato – minissérie - crê-se que é devido ao acúmulo de experiências

de outros formatos como o fílmico e o da telenovela. Embora apresentados ao espectador por

códigos correspondentes às suas características próprias de meios de comunicação diferentes,

o filme, a telenovela e a minissérie apresentam similaridades estruturais e de proposta com o

conto, o folhetim e o romance. Esta proximidade é verificável quando se comparam as

narrativas literárias com as fílmicas, bem como com as televisuais. Considerando os códigos

de cada meio, Moscariello tece as seguintes afirmações:

Depois de reconhecida a vocação narrativa do filme, resta analisar – sob

pena de se cair em perigosos equívocos translinguísticos – o comportamento

diferente da narrativa no caso do filme e no romance. A diversidade reporta-

se, evidentemente, apenas à substância da expressão, dado que a meta para

onde correm as duas práticas é idêntica. Reporta-se em suma, aos diferentes

procedimentos escriturais que regem a produção de sentido na tela e na

página, mantendo-se inalterada a tensão efabuladora comum que faz mover

tanto a máquina de filmar como a pena108.

A narrativa da sétima arte, como é denominado o cinema, pode ser relacionada ao

conto, pois este constitui uma unidade dramática que gira em torno de um só conflito, ou seja,

todos os componentes de um conto se unem em um único objetivo: a concentração de efeitos

e de pormenores, evitando-se as digressões e divagações. Em suma, o conto estabelece uma

ação dramática na qual o tempo presente é crucial, enquanto o passado e o futuro tornam-se

107 Idem.

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nulos ou sem notoriedade, ou melhor, mencioná-los é relevante quando isso corrobora,

alimenta ou elucida o presente; o mesmo se verifica na narrativa fílmica a qual privilegia o

tempo presente. No conto, bem como no filme, o espaço em que ocorrem as ações é restrito.

Os personagens que aparecem e atuam, geralmente, são dois, o protagonista e o

antagonista. Poucos mais são referidos de passagem, mas não participam do diálogo,

aparecendo como pano de fundo conferindo veracidade à ação dos personagens principais.

Nota-se também que em ambas as narrativas a unidade de ação, de lugar e de tempo,

denominadas na literatura como unidade de tom, têm a preocupação de despertar no

espectador um só sentimento ou impressão, por exemplo, de pavor, ternura, piedade, raiva,

entre outros. A cronologia do conto e do filme segue ao ritmo do relógio, a isso se deve o fato

destas narrativas abstraírem tudo o que não interesse ao conflito, trazendo a objetividade para

o desenrolar da história, a qual se limita a um curto espaço de tempo.

Claro que é possível tecer um emaranhado de analogias entre o conto e o filme, mas o

objetivo deste capítulo é apenas mostrar algumas semelhanças entre os formatos televisivos

entre si, e entre a literatura, além de instigar o leitor a buscar mais informações a respeito do

assunto.

Assim como a telenovela ou minissérie, o filme também é uma mercadoria destinada

ao consumo. “É sobre estas bases estritamente comerciais que será concebida a feitura dos

filmes, que assim se tornam um artigo de massa, porque é necessário acima de tudo que cada

um deles seja visto por um número máximo de consumidores”109. Outra característica da TV e

do cinema é como estes meios fragmentam a realidade e a transmitem para o espectador.

Ambos utilizam a câmera como um olho humano que tudo vê e através dos meios técnicos

são transmitidos para o espectador que passa a enxergar a realidade representada pela câmera.

Conforme a posição tomada pela câmera em relação ao objeto filmado, tanto a

linguagem fílmica quanto a televisiva comporta os planos fixos e os planos em movimento.

Os principais planos fixos são: o primeiro plano ou close up ou plano de detalhe, o plano

médio ou plano americano e o plano geral110. Estes planos fixos podem combinar-se com os

108 MOSCARIELLO, Ângelo. Como ver um filme. Lisboa: Editorial Presença, 1985, p. 51.109 AGEL, Henri. O Cinema. Porto: Livraria Civilização, 1983, p. 12.110 “Os planos – ou shots – podem se fixos ou estar em movimento. Vejamos quais são os planos fixos:Primeiro Plano (close up): o termo inglês close up designa um plano próximo do objeto, e corresponde tanto ao‘primeiro plano’ (rosto cortando por baixo dos ombros) como ao ‘plano de detalhe’. Por extensão, tambémcostuma ser utilizado para designar um ‘primeiríssimo plano’ (plano dos olhos e da boca) [...] Plano médio ouamericano costuma-se distinguir entre plano médio como sendo aquele que corta a figura pela cintura e o planoamericano o que corta a figura pelos joelhos [...] e o Plano geral (long shot ou full shot) é freqüente distinguirentre plano geral - que dá ênfase ao ambiente – e plano de conjunto como aquele que descreve uma cena,entretanto em ambos os casos abarca tanto todas as personagens como o cenário completo”. Cf. COMPARATO,Doc. Da criação ao Roteiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1996, p. 313-314.

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planos em movimento (moving shots) que são: dolly shot, ponto de vista, travelling shot,

panorâmica (pan), process shot, tela partida ou múltipla, zoom, desfocagem (transfocator) e o

halo desfocado (flou)111. Os planos quando utilizados da melhor forma e posteriormente bem

sucedidos, denominando-os seqüência fílmica, permitem ao espectador reconstruir o conjunto

da cena, tal como os sucessivos movimentos dos olhos permitem, na realidade, perceber

qualquer espetáculo oferecido a eles.

Se o filme pode ser comparado ao conto, na sua composição estrutural, a telenovela a

minissérie, enquanto formato textual, aproximam-se do romance-folhetim, “[...] vários

estudos reconhecem este tipo de narrativa como uma espécie de arquétipo da telenovela; neste

sentido a denominação ‘folhetim eletrônico’ é sugestiva; ela indica a persistência literária

herdada do século XIX”112. Entretanto, deve-se considerar que o passado da novela tem

características da soap-opera113 americana e até da radionovela latino-americana. Este

formato televisivo também não deixa de ser uma característica cultural advinda da cultura de

mercado.

A primeira publicação do folhetim foi na França. “Em outubro de 1836 La Presse, de

Émile Girardin, publica um romance inédito de Balzac, e a partir de então, esta forma seriada

de literatura torna-se cada vez mais aceita”114. Posteriormente, os jornais passaram a ver o

folhetim como uma oportunidade comercial para o aumento da venda dos periódicos, pois

incitavam o leitor a saber o que iria acontecer com os personagens nos próximos capítulos. No

Brasil o folhetim se desenvolve quase que simultaneamente ao seu surgimento na França.

“Em outubro de 1838, o Jornal do Comércio (RJ) publica Capitão Paulo de Alexandre

111 Já os planos em movimento (moving shots) são: Dolly shot costuma-se designar por travelling qualquerdeslocamento da câmera que seja basicamente horizontal [...], o qual caracteriza-se pela aproximação (dolly in)ou pelo afastamento da objetiva (Dolly out) e ainda, pelo Dolly back que significa que a câmera retrocede, deixaa cena e desaparece. O ponto de vista é quando a câmera se situa ao nível dos olhos da personagem e temos asensação de estar olhando através dela temos um ponto de vista subjetivo. Já no denominado travelling shot acâmera acompanha o movimento da personagem ou de alguma coisa que se mexe na mesma velocidade. Apanorâmica (pan) pode ser dividida em horizontal (paning) e vertical (tilling). O process shot projeta uma cenapré-filmada por trás das personagens. A tela partida ou múltipla – mostra ações simultâneas. O zoom designaaproximação ou afastamento do objeto filmado. A desfocagem (transfocator) – diante de dois elementos acâmera concentra-se em um só e o halo desfocado (flou) – a câmera desfoca tudo o rodeia o objeto com o fim deo pôr em relevo. COMPARATO, Doc. Op. cit., p. 312-317.112 ORTIZ, Renato (Org.). Telenovela – História e Produção. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 11.113 “O advento das soap-opera nos Estados Unidos sugere uma comparação com o folhetim, do contraste entreestas duas formas é possível formarmos um quadro mais claro sobre o desenvolvimento da novela no continentelatino-americano. Primeiro uma diferença inicial, contrariamente ao gênero folhetinesco, que se organiza em‘próximos capítulos’ que anunciam o desfecho final da estória, a soap-opera se constitui de um núcleo que sedesenrola indefinidamente sem ter realmente um fim. Não há verdadeiramente uma estória principal, quefuncione como fio condutor guiando a atenção do ‘leitor’; o que existe é uma comunidade de personagensfixados em determinado lugar, vivendo diferentes dramas e ações diversificadas”. ORTIZ, Renato (Org.) Op.cit., p. 19.114 ORTIZ, Renato (Org.). Op. Cit., p. 14.

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Dumas, série que é iniciada em Paris, no Echo, somente alguns meses antes (setembro do

mesmo ano)”115. Tudo indica que as condições sociais para o florescimento do folhetim como

literatura popular no Brasil foram adversas. O sucessor do folhetim, a radionovela, chega ao

Brasil somente em 1941, a qual adaptou as características seriais do primeiro, para o código

verbal. Somente cerca de 10 anos depois estréia na TV Tupi de São Paulo, Sua vida me

pertence, de Walter Forster. É o início de uma produção que permanece até 1963 com o

advento da telenovela diária. Há então toda uma adaptação do formato seriado do folhetim e

dos códigos do rádio para a TV, a qual exige além do texto a interpretação dos personagens,

cenários e figurinos. É então que há a junção do trabalho dos profissionais do rádio e do teatro

que começam a desvendar o que seria hoje o formato das telenovelas e minisséries.

A contribuição do cinema para a telenovela também está no âmbito técnico e estético.

O cinema norte-americano foi o espelho das inovações técnicas e artísticas, no que diz

respeito ao imagético para a construção da dimensão da telenovela e da minissérie. Além

disso, neste âmbito, podemos considerar a linguagem digital que vem ganhando espaço na

televisão, cite-se, como exemplo, a exibição recente de uma releitura da novela Sinhá Moça,

produzida pela TV Globo, em formato digital e levada ao ar no presente ano.

Uma pergunta simples paira no ar. No que a telenovela difere da minissérie? Ambas se

enquadram como gêneros dramatúrgicos televisivos. A minissérie é produzida num tempo

mais curto que a telenovela, os capítulos são condensados e a ação é mais concentrada em

cada capítulo.

A minissérie desenvolve, na verdade, uma trama básica, à qual se

acrescentam incidentes menores. Se biográfica, gira em torno de uma vida

humana, se ficcional por inteiro (e supomos sempre que as biografias

mencionadas sejam ficções que têm por base a vida de uma personalidade

conhecida), a minissérie procura se conter num plot, num conflito básico,

numa linha central de ação bem definida, não comportando a diversidade de

linhas de ação da telenovela, às vezes só consolidadas depois que ela está em

andamento116.

Não se pode deixar de ao menos mencionar os seriados, os quais também fazem parte

dos tipos de formatos televisivos veiculados na atualidade. A sua proximidade com a

minissérie termina na independência de um capítulo para o outro. Enquanto a minissérie

115 Id. Ibid., p. 15.

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estabelece uma ligação dramática, uma história, entre um capítulo e outro, o seriado possui

capítulos independentes, pois o centro da ação é um protagonista e não a história, neste caso a

apresentação de cada capítulo é o total da história.

A distinção entre telenovela e outros gêneros ficcionais está no fato de que esta possui

variedade de núcleos de personagens, de dramas diversos propositalmente interligados por

meio de histórias e uma flexibilidade, que se caracteriza pela simultaneidade entre produção e

apresentação das cenas que ocorrem nos diversos núcleos.

A minissérie é européia – moderada, civilizada, propositada. A telenovela é

latino-americana – desmesurada, mágico-realista, absurda, apaixonada,

temperamental (com todo o preconceito que se queira atribuir a esta

classificação, de resto um pouco ligeira)117.

Enquanto a minissérie possui cerca de 25 capítulos, núcleos de personagens reduzidos,

ações dramáticas condensadas além de ter um horário diferenciado para ir ao ar, conferindo-

lhe um caráter intelectualizado, a telenovela brasileira possui uma trama principal e muitas

subtramas.

As subtramas são histórias paralelas, de vários tipos e coloridos, que correm

ao lado da trama principal, ligando-se de alguma forma a ela. É como se

fossem ramos de uma árvore que se entrelaçam – o que de fato acontece com

árvores de muitos tipos. Cada ramo tem vida própria, com folhas e flores,

tem sua unidade; mas está ligado aos demais, saindo todos do tronco

principal e guardando a unidade principal, exatamente proveniente deste

tronco118.

Além deste emaranhado dramático, as telenovelas são levadas ao espectador em

horários apropriados para o entretenimento, ao cair da noite, quando as pessoas já estão em

casa de volta do trabalho, e querem descansar assistindo uma boa história. Convém mencionar

aqui também o caráter áudio da telenovela que é realizada com a preocupação de ser

acompanhada apenas pela audição, quase como se fosse uma radionovela, isso porque se

considera o fato de o espectador, nesse momento, estar realizando atividades domésticas

como preparar o jantar, por exemplo, enquanto mantém a TV ligada para fazer companhia. O

116 PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de Televisão. São Paulo: Moderna, 1998, p. 29.117 Id. Ibid., p. 38.

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telejornal também leva esse fato em consideração. Por outro lado, as minisséries já

consideram um espectador que, devido ao horário, está sentado, descansando, diante da TV,

portanto pode usufruir mais da imagem.

No próximo capítulo pretende-se estudar a obra de Eça de Queirós – O Primo Basílio -

adaptada para minissérie televisiva por Gilberto Braga e Leonor Bassères e com a produção e

direção de Daniel Filho. A minissérie estreou no dia 9 de agosto de 1988, sendo exibida em

16 capítulos sempre as terças e sextas-feiras às 22h20.

118 Id. Ibid., p. 74.

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Capítulo III

3.1 – A transcodificação: do livro à TV

A utilização de um código como base para a produção de um outro código pode ser

considerado uma transcodificação. À primeira vista, esta explicação seria óbvia. Entretanto,

quando se trata da transcodificação de um código literário ficcional para a linguagem

audiovisual não é tão simples. Este processo de adaptação, argumenta Comparato, “[...] é uma

transcrição de linguagem que altera o suporte lingüístico utilizado para contar a mesma [grifo

nosso] história”119, equivale, portanto, à recriação da mesma obra levando em consideração a

linguagem própria do meio para o qual se está produzindo. Todavia, não são só estas as

dificuldades encontradas.

A escolha da obra a ser adaptada é o primeiro passo para o desencadeamento do

processo de transcodificação. Para tanto, há inúmeros pontos de convergência e divergências,

dentre eles está o suposto antagonismo entre o que se convencionou chamar de cultura erudita

(a obra literária, neste caso) e a sua disseminação por meio da cultura de massa (produtos

televisivos, considerando o objeto de estudo desta pesquisa)120. Mesmo que a programação

das emissoras de televisão não consiga convencer os espectadores mais exigentes da validade

de sua condição cultural, salvo as emissoras fundadas para cumprir este objetivo, como por

exemplo, a TV Cultura de São Paulo. A escolha da obra O Primo Basílio, pela Rede Globo,

para ser adaptada, coloca em dúvida estes questionamentos sobre as possibilidades culturais

da TV. Sua adaptação, ao que se observa, foi fidedigna à obra original e conseguiu atingir as

massas.

O Primo Basílio de Eça de Queirós faz parte do histórico educacional brasileiro e

ultrapassa as barreiras culturais. Sua atuação no meio pedagógico e a riqueza literária

proveniente do estilo singular de Eça de Queirós foram alguns dos principais motivos que

levaram à escolha de O Primo Basílio para ser adaptado para a minissérie televisiva.

119 COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1996, p. 330.120 Como sustenta Bordieu, as diferentes formas culturais só podem ser entendidas enquanto inseridas nummesmo espaço relacional de posições diferenciadas, de modo que só se é possível definir o que é cultura eruditaem oposição à cultura de massa e vice-versa. Cf. mais informações em: BORDIEU, Pierre. A economia dastrocas simbólicas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1999.

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Há muitos questionamentos acerca deste processo, contudo antes de avaliar se o

produto recriado é melhor do que o original, o que se deve levar em conta é que o primeiro

tem que ter uma relação com o segundo.

Uma adaptação implica certas limitações criativas, uma vez que o roteirista

tem de levar em conta o conteúdo da obra, isto é, os ambientes, as

personagens, as intenções, etc. Mas como vimos, mesmo tais limitações

podem ser positivas e dar azo a uma obra substancialmente superior à

original. Tudo depende, claro está, do talento do roteirista121.

A partir destas premissas, é possível observar que a minissérie O Primo Basílio é uma

adaptação propriamente dita. Esta designação é conferida às produções reelaboradas com a

maior fidedignidade possível à obra original. De acordo com Comparato numa adaptação

propriamente dita “[...] não há alteração da história, nem de tempo, nem de localizações, nem

de personagens. Os diálogos refletem apenas as emoções e os conflitos presentes no

original”122. Estas afirmações podem ser notadas no decorrer da minissérie, a qual preserva

todos estes detalhes mencionados no romance de Eça.

A narrativa imagética guarda, de acordo com as exigências do seu formato, através das

imagens, todo o cenário lisboeta que é muito evidenciado por meio das cenas que mostram a

localização da casa de Jorge, as ruas de “pedra e granito” mencionadas pelo personagem do

Conselheiro Acácio. Outra demonstração da fidelidade ao espaço descrito no romance, e

apresentado na minissérie, é o Teatro de São Carlos, mostrado logo no início da narrativa

televisiva.

O tempo é visualmente exibido pelos cenários que compõem o ambiente interno das

residências e principalmente pelo figurino de época, que retrata como a sociedade lisboeta se

vestia no século XIX. Os personagens que compõem o núcleo dramático da minissérie

correspondem aos mesmos criados pelo autor textual, inclusive é notável que suas

personalidades condigam em inúmeros aspectos com os descritos por este.

Quanto ao diálogo, o roteirista aproveitou quase que totalmente os diálogos diretos e

indiretos do romance. Porém, Comparato menciona que “[...] este tipo de trabalho não é uma

mera ilustração audiovisual, mas que é preciso ultrapassar os limites da fidelidade para se

121 Id. Ibid., p. 331.122 COMPARATO, Doc. Op. cit., p. 331.

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conseguir um roteiro correto e eficaz”123. Depois destas breves considerações far-se-á a

análise da minissérie.

3.1.1 – A minissérie O Primo Basílio

A abertura da minissérie televisiva se dá num ambiente luxuoso, onde Jorge e Luísa

estão apreciando um espetáculo de ópera. O ambiente de estilo neoclássico, mais

precisamente o Teatro de São Carlos, em Lisboa, insere o receptor num ambiente formal de

luxo, freqüentado por pessoas da alta sociedade. Pressupõe-se que o espaço escolhido para o

início da narrativa televisiva teve o mesmo efeito das descrições verificáveis no texto do

romance, ou seja, através de um costume da sociedade burguesa de Lisboa do século XIX,

freqüentar espetáculos de ópera, foi possível inserir o receptor na realidade social dos

personagens apresentados pelo narrador, no caso, pelas câmeras.

O espetáculo já está no final, o casal segue de tipóia para a sua casa. Chegando, Jorge

gentilmente se oferece para ajudar Luísa a descer da tipóia, ele abre a porta da casa e ambos

sobem as escadas que levam aos seus aposentos, Jorge cantarolando o que ouvira no

espetáculo e Luísa soltando risinhos de felicidade. A vestimenta dos personagens são peças

chave para mostrar suas personalidades, Jorge de preto, índice de austeridade e Luísa vestida

de branco, demonstrando inegáveis delicadeza e fragilidade, aspectos que se intensificarão

num e noutro personagem ao longo da trama. Além disso, a linha mestra proposta por Braga e

Bassères para a releitura e/ou transcodificação da obra de Eça de Queirós, preserva ainda

muitos diálogos, personagens e ações dramáticas presentes no romance.

E cofiando a barba curta e fina, muito frisada, os seus olhos iam-se

demorando com uma ternura, naqueles móveis íntimos, que eram do tempo

da mamã: o velho guarda-louça envidraçado, com as pratas muito tratadas a

gesso-cré, resplandecendo decorativamente; o velho painel a óleo, tão

querido, que vira desde pequeno [...]. Vivera sempre naquela casa com sua

mãe. Chamava-se Isaura: era uma senhora alta, de nariz afilado, muito

apreensiva [...]. Fisicamente Jorge nunca se parecera com ela. Fora sempre

robusto, de hábitos viris. Tinha os dentes admiráveis de seu pai, os seus

ombros fortes124.

123 Id. Ibid., p. 331-332.124 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 13.

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Tanto o romance quanto a minissérie começam no meio da história (in media res) com

Jorge e Luísa já casados. No romance é através dos objetos que formam o espaço da casa do

casal, que o narrador retoma aos acontecimentos anteriores da vida dos personagens, como,

por exemplo, quando Jorge começa a olhar ao seu redor, os móveis, a decoração, os quadros,

o retrato de seu pai na parede que é contado ao leitor sobre a família de Jorge, sua

personalidade e seus anseios. Assim também ocorre com a personagem Luísa, que só depois

de serem apresentados todos os personagens é que o narrador narra o seu passado, como uma

forma de instigar o leitor a desvendar o mistério do porquê o passado de Luísa só foi revelado

depois de ser apresentado o personagem do seu primo Basílio. Isto evidencia e organiza,

prolepticamente, o espaço do destino trágico de Luísa.

Na minissérie não é diferente, a narrativa inicia-se num espetáculo de ópera e logo

mostra o espaço principal, onde podemos constatar os objetos, ambientes e personagens que

se perpetuam por todo o romance. A câmera percorre os cenários, os cômodos da casa, como

numa descrição do passado de Jorge, juntamente com os outros personagens que são o elo

entre o casal e a sociedade lisboeta.

Estabelece-se, tanto no livro quanto na minissérie, uma semiologia dos objetos,

organizando-se uma linguagem própria, que fala à nossa sensação e percepção. Ainda que

consideremos a construção, o funcionamento e a denominação dos objetos pela linguagem,

sua existência concreta, permanecem suas relações quanto ao espaço artístico, ao tempo da

narrativa, à causalidade ficcional, como resultantes de uma experiência sensível, que a sua

utilização e a sua própria presença nos cenários descritivos ou filmados nos impõe.

Acredita-se, portanto, que a estratégia narrativa utilizada pelo autor textual tem como

objetivo criar efeitos sobre o leitor e esta mesma energia inculcada nos objetos que se faz

presente no texto de Eça também é um dos recursos técnicos utilizados pela minissérie, os

quais decorrem de um processo criador que, personificando o objeto inerte, revelam-no

dotado de uma série de qualidades evocadas, permitindo ao leitor/espectador, através de uma

complexa transferência sentimental e qualitativa, diversas interpretações.

O espaço, que se constitui juntamente com o tempo, como uma das

categorias da narrativa, é criado na narrativa verbal através das palavras, o

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que propicia uma inevitável indeterminação e incerteza, levando o leitor a

recriar, em sua mente, as imagens espaciais descritas125.

É possível observar que o tempo e o espaço são claramente percebidos pelos detalhes

da descrição tanto na narrativa literária quanto na televisiva, a qual se utiliza de enfoques,

como o close e a abertura de câmera que chamam o receptor a interagir através de suas

projeções interpretativas reavivando o espírito da narrativa queirosiana, com diálogos

escassos. A atuação dos objetos, com sua simbologia e força de persuasão, possibilitando

várias leituras que a narrativa fílmica consegue preservar, respeitando, como se pode

constatar, características inerentes ao discurso queirosiano. Nota-se ainda este detalhismo na

descrição de uma confeitaria, neste trecho retirado do capítulo IV do livro, combinando

elementos gerais e particulares, objetividade e subjetividade:

Estavam parados ao pé da Confeitaria. Na vidraça, por trás deles

emprateleirava-se uma exposição de garrafas de malvasias com os seus

letreiros muito coloridos, transparências avermelhadas de gelatinas,

amarelidões enjoativas de doces de ovos, e queques de um castanho-escuro

tendo espetados cravos tristes de papel branco ou cor-de-rosa. Velhas natas

lívidas amolentavam-se no oco dos folhados; ladrilhos grossos de

marmeladas esbeiçavam-se ao calor; as empadinhas de marisco

aglomeravam suas crostas ressequidas. E no centro, muito proeminente

numa travessa, enroscava-se uma lampreia de ovos, medonha e bojuda

[...]126

A prosa do autor caracteriza-se pela ironia fina, humor, caricaturismo na composição

dos personagens, paródia, senso de contraste, espírito crítico e, muitas vezes, grande lirismo

na descrição da natureza. E ainda, é possível notar que Eça resgata a dimensão da prosa

poética na fotografia meticulosa e lírica que faz dos ambientes. Estes aspectos constatados no

texto literário podem ser verificados na minissérie na cena em que Jorge recebe os amigos em

sua casa.

O plano geral mostra o ambiente doméstico, mais precisamente a sala da casa de

Jorge (Tony Ramos), onde seus amigos estão reunidos para o chá de domingo. O plano médio

destaca a vestimenta da personagem Juliana (Marília Pêra), a qual está uniformizada como

125 FLORY, Suely F. V. Entre textos e código, uma leitura da abertura de Os Maias: do romance à minissérie.Comunicação & Veredas, São Paulo: Editora Unimar, v.1, p. 64-79, 2002, p. 12.

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criada, sugerindo o estatus burguês e a formalidade convencional das famílias burguesas do

século XIX. A postura dos convidados juntamente com os diálogos denotam o falso

moralismo que servia de alicerce para a sociedade da época, a qual pode ser exemplificada

pelo personagem do Conselheiro Acácio (Sérgio Viotti). Ainda nesta cena, dentre os diálogos,

o que leva o espectador a presumir que Jorge irá passar por uma situação de infidelidade

conjugal, é o comentário que faz acerca do final da peça de teatro que Ernestinho (André

Valli) está escrevendo. Quando a câmera faz um close up em Jorge ao enfatizar a Ernestinho

que a sua personagem teatral deve ser punida com a morte, no final da peça, por trair o

marido, em fração de segundos a câmera se volta, também em close up, para Luísa (Giulia

Gam) a qual está atenta ao ponto de vista de Jorge em relação às mulheres adúlteras, um

índice de que se um dia ela viesse a traí-lo, sua pena seria também a morte.

O plano exterior de O Primo Basílio predomina sobre o plano interior. O exagero

descritivo dos ambientes reforça e complementa a fragilidade psicológica dos personagens,

que nada têm de admirável. Emoções, sensações e desejos surgem no texto como ações

externas ao personagem como o trecho que descreve o impulso extraconjugal de Luísa.

A narrativa televisiva também parte deste pressuposto, do detalhismo na descrição dos

personagens e do espaço no desenrolar da ação, como podemos observar na montagem dos

cenários, na disposição e organização dos objetos, os quais estabelecem uma relação de

interdependência entre narração e descrição que utilizam das minúcias de Eça como um

complemento diegético da ação, que na minissérie é evidenciado pelos cortes e movimentos

de câmera, enfocando os objetos que compõe os cenários, num jogo estático e ao mesmo

tempo dinâmico que caracteriza sua simbologia através das aproximações e distanciamentos

dos planos de filmagem, de acordo com a leitura do diretor.

[...] A construção fílmica, por outro lado, tem no espaço, uma dimensão

ampla e complexa. Estabelece-se uma relação isomórfica com os objetos, as

paisagens, os figurinos e as dimensões e relações espaciais do mundo real. O

espaço em movimento na minissérie oferece um suporte ao desenvolvimento

da sucessão temporal da narrativa, pois a cada espaço corresponde um tempo

específico [...]127

126 QUEIRÓS, Eça. Op. cit. p. 132.127 FLORY, Suely F.V. Op. cit., p. 12.

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A passagem do tempo, em ambas as narrativas, se dá com o passar dos dias e meses

enquanto a história dura por um ano, é o que consta nas informações que o próprio Eça

descreve no romance.

No contexto da narrativa da abertura do romance e da minissérie é possível notar que a

construção do romance é feita de maneira que proporciona condições de comunicação entre a

obra e o leitor. “A potencialidade emancipatória da obra confere ao leitor um papel ativo e à

literatura uma importância social que ultrapassa o papel reprodutor, atribuído a ela pelos

enfoques marxistas e/ ou da sociologia da literatura”128. Se considerar a experiência estética a

que se refere Jauss, que divide em três atividades simultâneas e complementares - a poiesis, a

aisthesis e a katharsis – pode-se afirmar que esta teoria se encaixa nos pressupostos da

construção do romance. Jauss contextualiza da seguinte maneira:

A arte tem uma função comunicacional, pois o leitor participa da construção

do texto, à medida que ocupa os espaços vazios deixados pelo autor. A

poiesis corresponde ao prazer de se sentir co-autor da obra. Ao realizar esta

tarefa que lhe é destinada, o leitor usufrui do prazer estético da poiesis129.

Enquanto é possível verificar que a poiesis é atuante na estrutura textual do romance

em análise, já que o leitor é transportado para a realidade de Lisboa no século XIX ao se

deparar com a história e com os personagens. O enredo da trama provoca no leitor/receptor

uma espécie de estranhamento tanto no contexto social em que os personagens estão incluídos

quanto na própria linguagem e diálogo entre eles, este é o processo que pode ser denominado

como aisthesis, pois “[...] compreende a recepção prazerosa do objeto estético que, através do

processo de estranhamento, gera possibilidade de renovar a sua percepção tanto da realidade

externa, quanto da interna”130. A terceira categoria da experiência estética a qual proporciona

ao leitor/receptor identificar-se com as situações vividas pelos personagens, é denominada por

Jauss como katharsis que “corresponde tanto à tarefa prática das artes como função social,

servir de mediadora, inauguradora e legitimadora de normas de ação... quanto à determinação

ideal de toda arte autônoma [...]”131. Crê-se que a Katharsis é o objetivo maior do autor

textual, pois a construção do texto e dos personagens é uma crítica à sociedade vigente na

época, a qual pode ser claramente identificada pelo leitor/espectador.

128 Id. Ibid., p.4-5.129 JAUSS apud FLORY, Suely F. V. Op. Cit., p.5.130 FLORY, Suely F. V. Op. Cit., p. 5.131 Idem.

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Na seqüência pretende-se expor alguns dos pontos que se julga importante neste

processo de identificação do espectador com a obra, através do olho mecânico da câmera, que

narra a história por meio da seqüência de imagens em movimento, mostrando ao espectador, o

espaço e o tempo em que vivem os personagens.

3.2 – Quando a câmera narra a história

Um roteiro bem feito é essencial para o sucesso de qualquer trabalho de ficção

cinematográfico e/ou televisivo. “O trabalho do roteirista é contar histórias, não fazer

histórias”132. Levando em conta que roteirizar é fazer um filme no papel, segundo Howard &

Mabley, em se tratando de cinema e televisão, uma história bem contada

[...] não significa apenas uma história bem narrada, habilmente

estruturada e tramada. A história tem de ser mostrada em cenas

esmeradas, com papéis bem concebidos (e bem interpretados), que

inspirem o cenógrafo, o fotógrafo, o compositor, o montador e todos

os demais colaboradores a acrescentarem seus talentos à forma final

com que as imagens e palavras do roteirista aparecem perante o

espectador133.

Pensa-se que é através da câmera que se torna possível transmitir ao espectador todo o

trabalho do roteirista e de toda a equipe que atua no processo de contar a história. É ela que

mostra por meio da imagem e do movimento o que fora escrito e idealizado pelo roteirista, o

trabalho do cenógrafo, do figurinista, a interpretação dos atores, além de todo o andamento e

ritmo da narrativa. Quando se trata de adaptação, Balogh questiona que “quase todos os

estudos de adaptação conhecidos se detiveram primordialmente nos elementos diferenciadores

existentes entre os textos original e adaptado”134. Contudo, não é este o objetivo deste estudo,

embora seja possível notar que o romance foi cuidadosamente transcodificado para a

minissérie, permanecendo os diálogos intocáveis e considerando a perfeita interpretação dos

132 HOWARD & MABLEY. Op. cit., p. 21.133 Id. Ibid., p. 21-22.134 BALOGH, Anna Maria. Conjunções Disjunções Transmutações: da Literatura ao Cinema e à TV. 2. ed. SãoPaulo: Annablume, 2005, p. 49.

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atores e a composição cenográfica minuciosa na escolha das locações externas e na

ambientação interna das casas, do teatro, enfim.

Da mesma forma que o narrador, no romance, a câmera atua como que descrevendo

minuciosamente os espaços e as ações dos personagens. Através da sua descrição é possível

notar que Luísa é mostrada como se fosse um objeto de decoração para a casa de Jorge. Ou

está sentada ao piano, ou ao toucador, ou na poltrona a ler seus romances ou na mesa a tomar

café. Na casa há muitos vitrais e espelhos, há cenas em que os personagens são mostrados

através dos espelhos que compõem o cenário, índices da fragilidade educacional e moral de

Luísa, marcada por uma frivolidade indiscutível que intensifica e acompanha a sua

personalidade infantil e frágil.

A trilha sonora da minissérie é composta de música clássica e música portuguesa

orquestrada. A música unida com as imagens transmite ao espectador as sensações de alegria,

tristeza, medo, angústia, prazer, desespero e pânico sofridos pelos seres de papel. No entanto,

cabe observar que, pelo fato de se tratar de uma das primeiras minisséries realizadas pela TV

brasileira, a utilização desse recurso descritivo (pois cria ambientes, projeta consciências)

ainda não demonstra a eficiência descritiva que se pode verificar, por exemplo numa

minissérie que transcodificou mais recentemente uma obra do mesmo autor, Os Maias, levada

ao ar pela TV Globo em 2001. Ali, a trilha sonora corrobora de maneira contundente a carga

dramática do destino trágico daquela família.

A transcodificação de uma obra literária, ou seja, a transposição desta para um outro

código só é possível porque cada obra literária oferece múltiplas possibilidades de

interpretação (função poética, artística, estética da linguagem, etc). Balogh tece o seguinte

comentário ao dissertar sobre adaptação e transmutação: “O filme adaptado deve preservar em

primeiro lugar a sua autonomia fílmica, ou seja, deve-se sustentar como obra fílmica, antes

mesmo de ser objeto de análise como adaptação”135, crê-se que este comentário também se

estenda à adaptação para a minissérie televisiva. Todavia a autora complementa que “Na

prática, se reconhece como adaptado o filme que ‘conta a mesma história’ do livro no qual se

inspirou, ou seja, a existência de uma mesma história é o que possibilita o ‘reconhecimento’

da adaptação por parte do destinatário”136.

A imagem e o movimento são os aspectos fundamentais para a narrativa televisiva.

Porém, o que importa não é tanto seguir o comportamento de um dado personagem na tela e

sim estar atento ao comportamento que a máquina de filmar adota relativamente ao

135 BALOGH, Anna Maria. Op. cit., p. 53.136 Id. Ibid., p. 55.

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personagem. Segundo Moscariello, quando se trata da relação entre ator/personagem e a

câmera, o primeiro pode ser cúmplice do segundo, mas também pode acontecer – e é o caso

mais freqüente - que um não seja solidário com o outro, antes corrigindo-o ou mesmo

contradizendo-o. Aqui, um exemplo claro, é a cena em que Luísa vai pela primeira vez ao

Paraíso. Ao entrar no prédio que corresponde ao endereço que Basílio havia escrito no

bilhete, o movimento da câmera, dolly in, dá a sensação de que o espectador está subindo as

escadas atrás de Luísa.

De uma forma geral, a presença marcante dos cenários e conseqüentemente dos

objetos que o compõem, assinalam reiteradamente a convivência diária dos

personagens/atores dando indícios de seus estados psicológicos e de situações que ainda estão

por vir. A partir desta premissa, pode-se notar que ao subir as escadas, a câmera mostra as

paredes manchadas como se indicassem o estado moral de Luísa, adúltera, sujeitando-se a

estar naquele lugar de aspecto pobre, simples e sujo para encontrar-se às escondidas com o

amante. Enquanto Luísa sobe, sua voz narra em off o encontro de dois amantes, que lera em

um de seus romances, quando o homem prepara um ambiente luxuoso no espaço interno de

uma casinha simples, para receber a amada. Ao chegar ao quarto, onde Basílio a espera, a

decepção de Luísa se completa ao ver aquele ambiente rústico, enxovalhado. É então que a

câmera dá um close up na colcha de retalhos estendida sobre a cama, como um indício de que

a vida da personagem estava como aquela colcha, toda retalhada moralmente, perante si

própria, perante Jorge, seus amigos e até mesmo diante dos vizinhos da sua rua.

Outro exemplo, observado desde o início do romance são os constantes close ups nas

alianças que Jorge usa como símbolo do casamento, sugerindo uma premonição de que algum

conflito vai surgir para romper com o laço do matrimônio, considerado sagrado pelos cristãos.

Estes indícios da decadência moral da personagem vão ser evidenciados a seguir.

3.2.1 – A decadência moral da personagem Luísa na minissérie

A narrativa televisiva de O Primo Basílio basicamente utiliza os planos fixos para

contar a história, predominando o primeiro plano e o plano médio e posteriormente o plano

geral. Já os planos em movimento são pouco usados. Também é visível a similaridade desta

com a obra original, o tempo, o espaço, os personagens e até mesmo a seqüência da narrativa

televisiva poucas vezes difere da obra de Eça.

Em se tratando dos indícios mais relevantes do processo de decadência moral da

personagem Luísa, observa-se que na minissérie procurou-se chegar o mais perto possível das

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descrições do autor textual. A louvável interpretação dos atores escolhidos para atuarem como

personagens de Eça de Queirós permitem ao espectador associar as características dos seres

textuais com os televisuais.

Assim como no romance, um dos primeiros índices da decadência moral da

personagem Luísa (Giulia Gam) é a cena em que esta recebe a visita da sua amiga de infância

– Leopoldina (Beth Goulart). Considerada por todos os que a conhecem como a infiel, a

devassa, a “Pão e Queijo”, Leopoldina questiona Luísa acerca do adultério, dando indícios ao

espectador da possibilidade de Luísa vir a se tornar também uma adúltera. As características

mostradas pela interpretação de Beth Goulart sugerem ao espectador que o comportamento da

sua personagem difere das outras mulheres, consideradas de bem, casadas e fiéis, educadas

para servir somente ao marido. Leopoldina aparece fumando e confidenciando suas aventuras

amorosas, apesar de não se esquecer que continua casada com um marido que considera um

‘porco’, tem personalidade própria e seu único objetivo é ser feliz independentemente do que

a sociedade comenta a seu respeito.

A indumentária da personagem Luísa, no início da minissérie, é composta dos tons

pastéis, um bege, um rosa muito desbotado e às vezes um azul muito claro. Aos olhos do

receptor estas cores leves sugerem a delicadeza, a frágil personalidade da personagem e

também o romantismo que rodeia o seu cotidiano.

Contudo, a fragilidade de Luísa pode ser notada em toda a narrativa televisiva. A cena

em que Jorge (Tony Ramos) pede a Sebastião (Pedro Paulo Rangel) que, na sua ausência,

esteja sempre presente em sua casa para fazer companhia a Luísa, para adverti-la de que não

deve receber a visita de Leopoldina por não ser boa influência, é um exemplo. Este

comportamento de Jorge insinua a debilidade moral da esposa, a qual pode ser corrompida se

ficar em contato com a amiga Leopoldina. Jorge afirma várias vezes que a “Luizinha é

mulher, muito mulher!” assinalando a sua educação que é destituída de senso crítico, o que a

impossibilita distinguir a realidade da fantasia, o certo – segundo a moral vigente na época –

do que é considerado imoral. Observa-se nesta passagem que as características que compõem

a estrutura da personagem Luísa estão sendo reveladas por outros personagens.

E os índices do adultério tornam-se cada vez mais contundentes. Assim que Jorge

viaja, Luísa recebe a visita do primo Basílio (Marcos Paulo). Nesta cena, Luísa aparece no

topo da escada, toda formosa, bem penteada, numa roupa de cor clara, bonita e muito

engomada, demonstrando o seu estado de esposa exemplar. Pode-se supor que a sua ação de

descer as escadas até Basílio já insinua o seu contínuo processo de decadência moral. Depois

de cumprimentá-lo, na seqüência a narrativa é envolta em uma analepse ou flash-back, Luísa

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se lembra quando Basílio a deixou e partiu para o Brasil, em busca de fortuna. Esta

bifurcação, usada para mostrar uma lembrança do passado da personagem, pela narrativa

televisiva, expõe ao espectador o que ainda não havia sido mostrado com riqueza de detalhes,

que Luísa fora apaixonada e abandonada pelo primo, no passado. Esta lembrança demonstra

o caráter individualista e grotesco de Basílio, pois se compromete com a prima e não cumpre

a promessa de voltar do Brasil e se casar com ela. Observa-se aqui que tanto na narrativa

literária quanto na televisual, os personagens além de serem revelados um pelos outros

também são construídos com a seqüência e conseqüência das suas ações no decorrer da

narrativa. “A imagem tem, portanto, seus próprios códigos de interação com o espectador,

diversos daqueles que a palavra escrita estabelece com o seu leitor”137. Acredita-se que é

necessário lembrar que na linguagem audiovisual

[...] o tempo pode parar, inverter-se, repetir-se, fazer avançar ou retroceder a

ação, dando forma à simultaneidade. Trata-se agora, do tempo da imagem

móvel, que antecede o tempo da imagem ágil da televisão. Não mais o

tempo da imagem fixa, do quadro ou da fotografia, que a narrativa literária

realista imitava na sua prolixidade descritiva e que, a despeito de tantas

transformações, até hoje presente, em maior ou menor grau138.

Segundo Pellegrini, o tempo é a condição da narrativa e no caso da televisual, só é

possível pela seqüência linear ou não linear das imagens. Todavia quando se pensa em tempo,

o espaço também se faz presente. Na narrativa televisual, o espaço perde a estaticidade,

“tornando-se ilimitadamente fluido e dinâmico, adquirindo uma dimensão temporal que

repousa na sucessividade descritiva e/ou narrativa [...] assume a heterogeneidade do

movimento do tempo que o conduz”139. Quanto ao espaço, na minissérie os ambientes são

retratados geralmente em plano geral, porém observa-se que praticamente em quase todas as

cenas é possível notar a presença de vitrais e espelhos, o que pode denotar que o objeto

presente naquele espaço desmitifica a personalidade da personagem que ali vive. Na cena da

segunda visita de Basílio à casa de Luísa, ele presenteia a prima com rosário e luvas.

Enquanto ele dialoga com Luísa, a sua imagem é mostrada ao espectador através de um dos

espelhos que compõe o cenário da sala da casa de Jorge.

137 PELLEGRINI, Tânia. Literatura, Cinema e Televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo: Instituto AbrilCultural, 2003, p. 15-16.138 Id. Ibid., p. 21-22.139 PELLEGRINI, Tânia. Op. cit., p. 21-22.

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Na terceira visita que Basílio faz a prima, quando ele toca a campainha, ela está

novamente na frente do espelho, penteando-se e cuidando da pele, o que demonstra a sua

função de objeto decorador na casa. No seu vestido em tom pastel, passa um bom tempo a

apreciar Basílio cantando e tocando piano. É quando Basílio usa de todas as artimanhas para

conquistar novamente a prima. Como ele sabe que Luísa é uma romântica sonhadora, que

vive a ler romances e a sonhar com uma vida ainda mais fútil, vale-se de um discurso

romântico para conquistá-la. Nesta cena é possível notar através do olho mecânico, que

enfoca em plano médio a expressão sonhadora da personagem - enquanto Basílio conta que

sonhou com ela – que Luísa está totalmente propensa a cair na tentação do adultério, como

previa Jorge ao pedir a Sebastião que sempre estivesse presente em sua casa, na sua ausência.

Ao se imaginar nos sonhos de Basílio, Luísa levanta-se da poltrona e em passos lentos põe-se

a caminhar sem direção pela sala, como se estivesse sonhando. Ao mesmo tempo, em close up

uma das mãos de Luísa acaricia o medalhão com a foto de Jorge que carrega no pescoço,

índice da sua instabilidade emocional. É possível notar a partir desta cena, que a personagem

sonha com uma vida diferente da que vive com o marido, da mesma forma como é descrita no

romance, há uma grande chance de ceder aos encantos de Basílio. Basílio beija-a.

A decadência da personagem passa a ser mostrada abertamente, já não são mais

indícios nem inferências. A partir de então suas vestimentas passam a mudar gradativamente

para tons mais escuros até chegar ao vermelho e preto, cor que vai perseguir a personagem até

o fim.

Os encontros com o primo tornam-se diários. Ela aceita passear com Basílio e o beija

novamente, ao voltar do passeio para a casa. Luísa mostra-se totalmente vulnerável aos apelos

de Basílio, sem ao menos questionar as suas reais intenções, muito menos considerar as

conseqüências que o seu ato adúltero poderia desencadear, caso fosse descoberto por Jorge.

Luísa não pensa, apenas sonha. É então que se torna nítida a sua fragilidade e a facilidade que

tem em se deixar levar pelo novo, pelo inusitado, o que também pode ser observado pelo

desenrolar da narrativa televisual, por meio dos diálogos que são os mesmos da narrativa

literária. Nota-se também, que quanto mais ela se relaciona com Leopoldina, mais ela tende a

se degradar moralmente. Crê-se que isto se deve ao fato de que ela imagina que pode ter uma

vida cheia de aventuras como a da amiga. Entretanto, não leva em consideração a sua

formação frívola e totalmente sentimental, enquanto Leopoldina apesar de não ter nenhuma

moral, tem uma educação voltada para a razão. Leopoldina tem uma visão racional do seu

modo de vida. Os seus amantes servem aos seus caprichos e necessidades, enquanto Luísa

serve aos caprichos do seu amante além de ficar idealizando uma vida a dois. Estes

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posicionamentos podem ser justificados na cena em que Leopoldina vai à casa de Luísa para

jantar. Depois de comerem e beberem sem nenhuma etiqueta, recordando os tempos e os

amores do colégio, Luísa totalmente solta numa poltrona diz que ser feliz é estar com o seu

homem, com um filho. Enquanto Leopoldina contrapõe-se afirmando que um filho a

impossibilitaria de ter prazer na vida.

Nesta mesma noite acontece a consumação do adultério, quando Basílio chega sem

avisar com o pretexto de se despedir da prima. Na euforia e no medo de perder o amante,

Luísa se entrega a Basílio no sofá da sala da casa de Jorge e ainda deixa indícios do ato

sexual, os quais são checados por Juliana, que desde a chegada do primo desconfia da

possibilidade do adultério.

Luísa fica totalmente encantada e alegre por ter um amante. Não consegue se ver só,

esperando por Jorge. Numa manhã, no escritório de Jorge, começa a escrever uma carta para

Basílio quando inesperadamente chega D. Felicidade. Luísa atira a carta ao cesto de lixo e

Juliana encontra-a. É aqui que começa o processo de decadência moral da personagem Luísa

no espaço doméstico, ou seja, perante as suas criadas. Embora ainda demore um pouco para

que Juliana comece a chantageá-la.

Neste espaço de tempo, Juliana consegue mais provas roubando as cartas que Basílio

endereçou à prima. E ainda, Luísa começa a se encontrar com Basílio no Paraíso. Desta

forma, o decurso da sua derrocada pode ser notado no comportamento de Juliana que aos

poucos começa a folgar nos afazeres domésticos, a sair mais para visitar suas amigas.

Outro fator que também confere a decadência de Luísa é a submissão que tem perante

o amante que começa, depois de alguns encontros, a tratá-la como uma qualquer. Ela sente-se

usada. Em uma das cenas, Luísa partilha com Leopoldina o sentimento de que está sendo

usada pelo primo. Leopoldina com a sua experiência com amantes adverte-a que não pode ser

assim, tem que falar e demonstrar que está chateada. O ápice da decadência de Luísa na

próxima cena acontece quando Leopoldina comenta que o banqueiro Castro também a deseja.

Aqui o espectador ainda observa a necessidade que Luísa – que reclama a Leopoldina que

Basílio não tem ido todos os dias ao Paraíso - tem de se ver sempre envolta de uma pessoa

que a trate bem, que a enalteça, que a note. Já no diálogo da cena em que Leopoldina está com

o seu novo amante há indícios de que Luísa nunca mais vai voltar a ter uma vida como a que

tinha com Jorge.

A cena que com nitidez mostra a decadência de Luísa no espaço doméstico é a que

narra a irritação de Luísa quando ao chegar do Paraíso, depara-se com a casa por arrumar,

com seu quarto totalmente bagunçado e Juliana a cantarolar. As duas se descontrolam e

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Juliana grita que nem todos os papéis foram para o lixo. Luísa desmaia. Para mostrar que

Luísa estava acordando do desmaio foi utilizado o movimento de câmera chamado de ponto

de vista, no qual a câmera se situa ao nível dos olhos da personagem dando ao espectador a

sensação de estar olhando através dos olhos de Luísa.

Começa o calvário de Luísa. Confiando que Basílio a socorreria naquele momento de

desespero, faz as malas e vai para o Paraíso com o intuito de fugir para Paris com o amante.

Ao contrário do que sonhara, Basílio trata-a com desdém e prontamente se recusa a acolhê-la

em sua vida. Luísa termina por se sentir abandonada diante de uma situação que não tem idéia

de como resolver.

Por outro lado, apesar de Basílio mostrar-se extremamente machista e individualista,

Luísa não tem consciência de que para fugir há a necessidade de dinheiro, que os homens têm

negócios que não podem ser deixados de forma tão rápida. Ela ainda não tinha se dado conta

de que Juliana só estava querendo dinheiro em troca das cartas. Basílio é quem diz isso a

Luísa que, nervosa, rompe o romance com o primo, pois ele não demonstra nenhum

comprometimento com o seu problema. Toda ruína da personagem pode ser vista pelo traje

que veste há dois dias, pelos cabelos eriçados e pelas olheiras aparentes em seu rosto.

Da mesma forma que foi demonstrada a decadência moral de Luísa na narrativa

literária, na televisiva também há a cena em que Basílio conta sobre os fatos ocorridos ao

amigo, o Visconde Reinaldo. É por meio da interpretação dos atores e dos diálogos que se

pode notar o machismo predominante na sociedade da época.

A cada dia que passa Juliana pressiona mais Luísa que sente medo da criada. Os

papéis se invertem, Juliana passa a ser a senhora da casa, enquanto Luísa começa a servir, a

varrer, a passar e a engomar. Seus vestidos engomados dão lugar aos roupões encardidos. Os

penteados cedem lugar ao lenço de amarrar os cabelos. A pele clara e macia das mãos começa

a ficar machucada. As olheiras tomam espaço no seu rosto e o cansaço transtorna o seu corpo.

Nesta fase a iluminação denota a decadência da personagem, que passa a viver na penumbra,

retratando o seu arrependimento por ter traído Jorge, um homem que a amava e que a tratava

como uma princesa.

Não suportando mais as ameaças de Juliana, Luísa procura Sebastião. Mas não tem

coragem de contar a ele o seu caso amoroso com Basílio, que a estas alturas já tinha viajado

há tempos para Paris, para se safar. Nota-se a angústia de Luísa pela expressão em seu rosto,

pelo traje negro que veste e pelo lenço negro com que esconde o rosto, como se tivesse se

escondendo da sociedade atrás dele.

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É possível constatar que a educação que Luísa recebeu, foi voltada estritamente para o

lar. Ela não sabe negociar, lidar com dinheiro, muito menos trabalhar para consegui-lo, o que

também não era comum para uma integrante da sociedade burguesa. Mesmo com o abandono

de Basílio e a ausência de Jorge, Luísa não amadurece, fato que confirma a caracterização

desta como uma personagem plana.

Luísa até tenta conseguir as cartas de volta dando vestidos de presente para Juliana,

que por pouco tempo se acalma. Luísa tem muito medo de Juliana, por sua personalidade

determinada, por ter seus objetivos próprios e por não se render aos presentes.

Jorge chega. Em vez da barba cerrada, está com bigodes semelhantes aos de Basílio. E

as chantagens continuam. Juliana exige um novo quarto e uma cômoda porque quer um pouco

de humanidade. Jorge não quer deixá-la trocar de quarto porque acha que os seus ricos baús

vão se deteriorar se ficarem no quarto de Juliana. Os baús, na sua opinião, tem mais valor do

que um ser humano doente, no caso a criada. Aqui é possível mencionar que tanto o autor

textual quanto os roteiristas mostram que Juliana é a personagem que exemplifica como a

maioria da sociedade vive, ou seja, as pessoas menos favorecidas financeiramente, a

desigualdade social, etc.

Juliana começa a abandonar seus afazeres e obrigações. Em vez de fazer os serviços,

as arrumações, veste-se com roupas boas, enquanto Luísa está descomposta, com olheiras,

mal vestida. E quando se arruma, coloca os seus vestidos pretos, os amigos começam a notar

o seu cansaço e Jorge começa a questionar o seu desânimo. Na cena em que Juliana assegura

que não vai vazar as águas sujas e sugere cinicamente que Luísa mesma as jogue antes que

Jorge chegue, ocorre a demonstração da decadência moral da personagem perante suas

próprias criadas.

Como Luísa não consegue, num primeiro momento, resolver a sua situação com

Sebastião, a alternativa que sobra é procurar o banqueiro Castro, que há tempos demonstra

grande interesse por ela. Mas a tentativa é vã. Luísa não consegue deitar-se com o banqueiro e

o chicoteia com uma fúria intensa.

Luísa continua sofrendo com as chantagens, os mandos e desmandos da criada Juliana.

Mas não tenta mudar a situação, não se impõe como a dona da casa e submissamente cede aos

caprichos de sua serviçal, tal fato é explicitamente observado na cena em que Juliana manda

Luísa falar para Jorge não a tratar com voz alterada. A câmera mostra Juliana no topo da

escada, enquanto Luísa acata as suas ordens de baixo, decadente, imóvel, desesperada e numa

posição inferiorizada.

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Para Jorge a mulher tem que estar sempre bela e disposta, como se fosse um adorno do

lar. Ele não consegue vê-la cansada. Na cena na qual ele chega do trabalho e surpreende Luísa

varrendo a sala com um lenço maltrapilho na cabeça e exausta, sai de si e grita com Luísa,

que não consegue responder-lhe, pois está quase desmaiando. Juliana, na seqüência, cai

doente e Jorge não a quer mais como criada e resolve despedi-la. O que provoca pânico em

Luísa, pois ao dispensar da criada, a probabilidade de Jorge saber do seu romance com Basílio

cresce. O medo, a insegurança e o pavor de ser descoberta fazem Luísa viver aterrorizada.

O cúmulo da chantagem está representado na cena em que Luísa cede a mais uma das

chantagens de Juliana e se ajoelha aos pés da sua criada Joana pedindo que ela se vá e não

conte nada a ninguém. A iluminação neste momento tem um importante papel, o de mostrar a

derrocada da personagem, que parece um fantasma a vagar pelo corredor. Juliana dá as ordens

domésticas e afirma que naquela casa quem manda é ela.

Sem mais nenhuma alternativa, Luísa procura novamente Sebastião e conta ao bom

amigo tudo o que aconteceu, da mesma forma como o autor textual, o roteirista conseguiu

transmitir, através da imagem, a bondade e servidão do bom Sebastião e o imenso desespero

de Luísa.

A personagem volta a ficar alegre com a promessa de Sebastião de que iria resolver o

problema ainda naquela noite. Luísa, juntamente com Jorge e D. Felicidade foram para o

teatro, enquanto Sebastião e dois policiais foram até a casa de Jorge ameaçar Juliana e

conseguir recuperar as cartas. Juliana grita e se desespera, vê naquela devolução o pão da sua

velhice “ir-se por água abaixo”, tem um aneurisma e morre. Luísa queima as cartas.

Embora estando livre de todas as ameaças que caíra sobre o seu casamento em

conseqüência do adultério, cai doente. Depois de alguns dias melhora e novamente recebe, em

sua casa, os amigos para o chá do domingo. Entretanto, dias antes, enquanto estava acamada

recebeu uma correspondência de Basílio em resposta ao seu pedido, a qual revelava sobre

seus encontros com o primo. Jorge abriu-a, leu-a e vendo Luísa aparentemente recuperada

pede que ela a leia.

Luísa desespera-se e adoece novamente. Tem inexplicáveis dores de cabeça, febre e

delírios. Uma cena comovente é quando Julião Zuzarte, como médico da família, opta por

raspar a cabeça de Luísa como uma possível alternativa para a cura da sua doença. Os cabelos

compridos simbolizam a identidade da mulher e quando Luísa os perde, acaba perdendo sua

própria identidade de mulher e esposa. E como Jorge sabe da verdade, ela perde perante o

sacramento do matrimônio a sua dignidade e a sua vontade de viver.

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Depois da sua morte, Jorge vai morar com o seu amigo Sebastião. Basílio retorna à

Lisboa dias depois do falecimento da amante e ao saber da notícia comenta com o amigo

Visconde Reinaldo que deveria ter trazido de Paris a sua outra amante, a Alphonsine.

A decadência da personagem Luísa foi minuciosamente narrada pela câmera, levando

em conta o seu modo e as suas características próprias, como um código diferente do texto

original, mas que o retratou com uma clarividência notável, fazendo-se por reconhecer a

genialidade do texto queirosiano. No decorrer da narrativa televisiva, foram utilizadas

estratégias próprias do código televisivo para que fosse possível haver uma interação entre a

adaptação e o espectador, as quais foram essenciais no processo de identificação entre o

público e os personagens.

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Considerações Finais

É inquestionável a riqueza literária de O Primo Basílio, romance do português Eça de

Queirós, escolhida como base para esta pesquisa. A imortalidade das obras de Eça pode ser

observada pelos inúmeros estudos feitos por pesquisadores de diversas áreas, que ainda

encontram nos seus escritos uma fonte inesgotável de questionamentos e de releituras.

Todavia, estas não são as únicas evidências que as tornam imperecíveis. Os romances do

autor têm caráter didático, sendo a sua leitura recomendada para todos os estudantes do

Ensino Médio. Vale ressaltar ainda que é uma obra obrigatória no currículo dos estudantes

que desejam prestar vestibular e ingressar no Ensino Superior.

Considerado um clássico da língua portuguesa, O Primo Basílio, é um dos principais

romances que representam o movimento Realista-Naturalista (1825-1865), o qual propunha a

reprodução da realidade social através da arte literária.

Publicado em 1878, O Primo Basílio retrata minuciosamente a sociedade burguesa

lisboeta do século XIX. Para tanto, Eça enfoca um lar burguês aparentemente feliz e perfeito,

mas com falsas bases morais, pois tem o intuito de questionar uma das instituições sociais

tidas como uma das mais sólidas: o casamento. Embora o Romantismo já tenha trabalhado

com o tema do adultério, o autor consegue inovar por meio da sua criatividade e imensa

facilidade de mostrar através dos seus personagens, que representam a burguesia, a

imoralidade e a ociosidade de uma sociedade que vive de aparências.

Foi a partir da relevância do trabalho de Eça de Queirós e o profundo interesse em

descobrir e apreender o sentido da atemporalidade de sua obra, que esta pesquisa se propôs a

investigar a relação entre o romance O Primo Basílio e a sua transcodificação para o formato

televisivo, a minissérie homônima produzida e veiculada pela Rede Globo de Televisão em

agosto de 1988, tendo como objeto-recorte a derrocada moral da personagem Luísa.

Quanto à obra literária, observou-se que O Primo Basílio é um romance dramático

porque não há uma divisão notória entre enredo e personagens. Como o objeto-recorte

estudado é a decadência da personagem Luísa nos espaços doméstico e do adultério, por meio

de citações retiradas do romance foi possível fazer esta identificação. As características físicas

e psicológicas da personagem revelam-se e interferem na sua maneira de agir e de se

relacionar com a realidade, o que exemplifica algumas das particularidades deste gênero

dramático.

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Através de um narrador onisciente e extremamente minucioso, a história de Luísa

Mendonça de Brito Carvalho e seu relacionamento adúltero com o seu primo Basílio de Brito

é contada. A narrativa vai se desenvolvendo em direção a um fim enquanto constrói os

personagens, caracteriza-os e os tipifica desencadeando o enredo, com pequenas pitadas de

sarcasmo, caminhando rapidamente com a narração e muitas vezes demorando-se ao retratar

cuidadosamente os espaços, as personalidades, os pensamentos e desejos dos personagens,

pela descrição.

O narrador onisciente, aquele que tudo sabe e que tudo vê, até mesmo os pensamentos

mais íntimos dos personagens, também conta ao leitor e descreve o espaço em que estes

vivem, bem como o tempo do discurso, que pode ser entendido como a conseqüência da

representação narrativa e o tempo da história ou diegese que pode ser pluridimensional. Nota-

se então que o tempo do discurso é equilibrado pela narração e pela descrição.

Acredita-se que n’O Primo Basílio a descrição, num primeiro momento, é a

responsável pela construção dos personagens e posteriormente a narração concretiza, por

meio das suas ações o caráter descrito, tornando-os seres de papel que povoam um mundo

possível.

Contudo, esta pesquisa enfatizou basicamente, tanto na análise literária quanto na sua

transcodificação para a minissérie televisiva, a personagem Luísa: uma jovem romântica,

inconseqüente, ingênua e frágil. A heroína sem caráter, que pelo fato de ter tido uma educação

calcada na frivolidade ao se deparar com a realidade, posterior as suas ações, não tem

maturidade psicológica para sobreviver perante as conseqüências de seus ímpetos. Foi

possível observar, de um modo geral, que os personagens agem uns sobre os outros e se

revelam uns pelos outros e assim se apresentam perante o leitor com suas ideologias e

personalidades.

Quanto à minissérie televisiva, antes mesmo de se estudar os formatos, a linguagem e

o processo de transcodificação, procurou-se apresentar ao leitor deste trabalho, um breve

histórico da chegada da TV no Brasil, somente com os fatos principais que levaram este meio

de comunicação, que é o suporte técnico para o objeto abordado, a evoluir e a conquistar com

rapidez o público brasileiro.

Concluiu-se que a linguagem televisiva permite a fácil transposição entre realidade e

ficção, o que também pode vir a contribuir para que o processo de transcodificação, do código

literário para o código audiovisual, seja possível.

Na transcodificação, a narrativa televisiva que articula um complexo de elementos,

próprios do meio audiovisual (palavra, imagem, som, movimento, luz e cor), desencadeia

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novas relações entre o imaginário individual e coletivo, no que diz respeito a relação entre a

obra literária e a sua adaptação. Em se tratando de adaptação, a narrativa televisiva

transcodifica fragmentos da obra original oferecendo dinamicidade e identificação entre o

mundo possível, da história, e o mundo real, do espectador, através da composição das falas,

das imagens e do movimento dos personagens/atores, ou seja, a ação.

Neste caso, é a partir do impacto dramático, que implica dificuldades, provação,

reação social e ameaça, determinados pela obra original, que se constrói a estrutura da

narrativa televisiva da minissérie, bem como os códigos sociais a serem utilizados neste

processo (a cidade de Lisboa no século XIX), fonte e forma de aliança ou conflito entre a

primeira e a que vai ser transcodificada.

Portanto, apesar de ser baseada na obra original, na transcodificação reconstrói-se o

tempo, o espaço e os personagens. A narrativa televisiva, neste caso, pode ser considerada

como uma das releituras da obra original e ainda suscitar no espectador o interesse tanto pela

obra, quanto para compreender a realidade vivida pela burguesia no século XIX. Além da

problemática social desta sociedade e a luta de classes espelhada na personagem Juliana

(Marília Pêra), no decorrer da minissérie o espectador consegue identificar por meio dos

demais personagens/atores, que apesar de terem se passado muitos anos desde a publicação do

romance, as situações vivenciadas pelos personagens são muito parecidas com a realidade

atual do Brasil.

Entretanto, para que haja este processo de identificação entre o que é veiculado na

minissérie e o espectador é necessário que as escolhas feitas na montagem, que vai desde o

roteiro até a edição final, sejam pertinentes. Os atores e as suas interpretações, as locações e o

som, as cores e a iluminação, o ordenamento do tempo (cortes), os enquadramentos, objetos e

os detalhes são elementos essenciais para a concretização eficaz do processo da narrativa

televisiva.

Em ambas as narrativas nota-se a excelência de um trabalho bem elaborado. Em

relação a obra de Eça de Queirós pode-se afirmar que O Primo Basílio representa a interação

do homem com seu meio físico, histórico e social, correlacionando sempre uma ação

particular com o estado geral do mundo, com a totalidade da sua época, com o terreno

substancial em que ela se insere e se desenvolve. Por isso, na sua narrativa assume valor tão

relevante a representação daquele meio, das coisas e das instituições que constituem

elementos de mediação da atividade humana, dos costumes de uma época e de uma classe

social, dos fatos rotineiros de que se entretece a vida individual e coletiva dos personagens

que refletem a sociedade lisboeta do século XIX. Já a recriação do romance O Primo Basílio

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para a linguagem televisiva é uma adaptação propriamente dita, pois, consiste em ser o mais

fiel possível à obra. Não há alteração da história, nem de tempo, nem de localizações, nem de

personagens. Os diálogos refletem apenas as emoções e conflitos presentes no original.

Acredita-se que a genialidade de Eça foi integralmente preservada na transcodificação.

O roteiro, a direção de câmera, a interpretação dos atores, os cenários e a indumentária

caracterizaram imagética e verbalmente as descrições da obra original.

Ao final desta pesquisa percebe-se que ainda há muito do que analisar e aprender com

os objetos escolhidos como base deste estudo, pois o estilo de Eça de Queirós é inigualável e

a sua fórmula literária engrandece-se e se firma com o passar do tempo. Da mesma forma, a

minissérie também oferece diversas releituras, principalmente pelo fato de se manter o mais

fiel possível à obra original. Todavia, crê-se que esta investigação, aqui feita, venha a

contribuir para a pesquisa em Comunicação no que tange aos questionamentos sobre a relação

existente entre a literatura e a sua transcodificação para a minissérie televisiva, principalmente

quando se trata das disparidades e semelhanças entre narrativas literárias e narrativas

televisuais.

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