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DA LITERATURA ÀS REDES DIGITAIS: NARRATIVAS E CONFISSÕES DO EU EM CIBERRAIZES OLIVEIRA,Ocinei Trindade1, MARTINS,Analice Oiveira2 Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de dezembro de 2015, ISSN 2316-266X, n.4 236 DA LITERATURA ÀS REDES DIGITAIS: NARRATIVAS E CONFISSÕES DO EU EM CIBERRAÍZES TRINDADE DE OLIVEIRA, Ocinei Estudante de Mestrando no Programa de Cognição e Linguagem (PGCL) da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) [email protected] DE OLIVEIRA MARTINS, Analice Doutora em Estudos de Literatura (PUC-RJ), Professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Cognição e Linguagem da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) [email protected] RESUMO Este ensaio reflete sobre narrativas confessionais, biográficas, autobiográficas e fictícias na literatura e na web que despertam interesse de público em tempos de “reality shows”. A partir de Phillipe Lejeune, Denise Schittine, Walter Benjamin e Paula Sibília, observam-se algumas possibilidades de “escritas do eu e ficções de autoria” que se manifestam desde o texto oral e impresso ao texto virtual incessante na Internet. O rizoma “livro-raiz”, exemplificado por Gilles Deleuze e Félix Guattari para conceituar ramificações de palavras, fonte de informações, ideias e hipertextos, inspirou o termo “ciberraiz”. Em rede, textos se espalham velozes e desnorteados, independentemente de serem verdadeiros, falsos ou ficcionalizados por seus autores. Escritores de livros respondem sobre prováveis transferências e disfarces de si em suas obras Palavras-chave: autobiografia, ficções do eu, ciberraiz ABSTRACT: This essay reflects about confessional, biographical, autobiographical and fictional narratives in literature and web literature, when arouse public interest in times of "reality shows". From Phillipe Lejeune, Denise Schittine, Walter Benjamin and Paula Sibilia, we can observe some possibilities of "writings by self and fictions authored" from the oral and printed text to incessant virtual text on the Internet. The rhizome "book-root", exemplified by Gilles Deleuze and Felix Guattari to conceptualize ramifications of words, source information, ideas and hypertext, inspired the term "cyber-root". In networking, texts spread fast and bewildered, regardless if true, false or fictionalized by its authors. Book writers respond on likely transfers and disguises themselves in his works. Key-words: autobiography, fictions of self, cyber-root INTRODUÇÃO Um dos objetivos desta pesquisa é analisar algumas narrativas confessionais, biográficas, autobiográficas e fictícias na literatura escrita e na web, em que o “eu-autor” se destaca em publicações impressas ou em postagens nas redes sociais digitais, seja de modo

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DA LITERATURA ÀS REDES DIGITAIS: NARRATIVAS E CONFISSÕES DO EU EM CIBERRAIZES

OLIVEIRA,Ocinei Trindade1, MARTINS,Analice Oiveira2

Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de dezembro de 2015, ISSN 2316-266X, n.4

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DA LITERATURA ÀS REDES DIGITAIS: NARRATIVAS E

CONFISSÕES DO EU EM CIBERRAÍZES

TRINDADE DE OLIVEIRA, Ocinei

Estudante de Mestrando no Programa de Cognição e Linguagem (PGCL) da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF)

[email protected]

DE OLIVEIRA MARTINS, Analice

Doutora em Estudos de Literatura (PUC-RJ), Professora colaboradora do Programa de

Pós-Graduação em Cognição e Linguagem da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF)

[email protected]

RESUMO Este ensaio reflete sobre narrativas confessionais, biográficas, autobiográficas e fictícias na literatura e

na web que despertam interesse de público em tempos de “reality shows”. A partir de Phillipe Lejeune,

Denise Schittine, Walter Benjamin e Paula Sibília, observam-se algumas possibilidades de “escritas do eu e ficções de autoria” que se manifestam desde o texto oral e impresso ao texto virtual incessante na

Internet. O rizoma “livro-raiz”, exemplificado por Gilles Deleuze e Félix Guattari para conceituar

ramificações de palavras, fonte de informações, ideias e hipertextos, inspirou o termo “ciberraiz”. Em rede, textos se espalham velozes e desnorteados, independentemente de serem verdadeiros, falsos ou

ficcionalizados por seus autores. Escritores de livros respondem sobre prováveis transferências e

disfarces de si em suas obras

Palavras-chave: autobiografia, ficções do eu, ciberraiz

ABSTRACT:

This essay reflects about confessional, biographical, autobiographical and fictional narratives in

literature and web literature, when arouse public interest in times of "reality shows". From Phillipe Lejeune, Denise Schittine, Walter Benjamin and Paula Sibilia, we can observe some possibilities of

"writings by self and fictions authored" from the oral and printed text to incessant virtual text on the

Internet. The rhizome "book-root", exemplified by Gilles Deleuze and Felix Guattari to conceptualize ramifications of words, source information, ideas and hypertext, inspired the term "cyber-root". In

networking, texts spread fast and bewildered, regardless if true, false or fictionalized by its authors.

Book writers respond on likely transfers and disguises themselves in his works.

Key-words: autobiography, fictions of self, cyber-root

INTRODUÇÃO

Um dos objetivos desta pesquisa é analisar algumas narrativas confessionais,

biográficas, autobiográficas e fictícias na literatura escrita e na web, em que o “eu-autor” se

destaca em publicações impressas ou em postagens nas redes sociais digitais, seja de modo

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explícito ou sob “disfarces literários”. No início do Século XX, a “cultura do eu” já despertara

muitos interesses na literatura, filosofia, antropologia e em outras ciências. O eu emblemático

segue presente em diversas manifestações artísticas e literárias no Século XXI, assumindo

muitas faces e formas. Surge, então, a possibilidade de contextualizar algumas obras, autores

conhecidos e desconhecidos do grande público, que recorrem ao formato tradicional do livro e

às mídias digitais para exibirem suas vidas e intimidades em histórias reais ou fictícias.

Foram escolhidos para análise alguns escritores que, de algum modo, exercem a ficção

com vestígios de realidade (ou vice-versa) em suas produções. Destacamos, ainda, por meio de

entrevistas e depoimentos, três autores de ficção da cidade fluminense de Campos dos

Goytacazes. Além de livros publicados, estes interagem com seus leitores em sítios eletrônicos,

redes sociais e blogues, eventual ou constantemente a respeito de suas obras. O pacto sobre

prováveis verdades, mentiras e ficção entre autor e leitor não fica de fora. A respeito deste

pacto, contamos com a colaboração do francês Philippe Lejeune. A figura do narrador ou do

contador de histórias é refletida por meio das considerações do pensador e ensaísta alemão

Walter Benjamin. Já a escrita íntima na Internet e a necessidade de revelar intimidades e

extimidades na rede mundial de computadores são temas pesquisados pelas estudiosas

brasileiras Denise Schittine e Paula Sibília.

A pesquisa busca investigar sobre prováveis práticas de ficção de autoria, a influência

do eu na literatura e nas redes sociais digitais em exercícios de escritas. O eu se insere assumido

ou camuflado em ligações ou conexões de escrituras multiplicáveis e divisíveis que passam e

passeiam pela literatura tradicional e pelo ciberespaço. Não há como desconsiderar jamais a

hipertextualidade e intertextualidade quando se escreve, se publica e se lê uma obra,

especialmente em suportes digitais.

Depois que Deleuze e Guattari se apropriaram do conceito do rizoma para se aprofundar

sobre a existência do livro e do texto que se ramificam em reescritas e releituras, o que esperar

de um texto ou narrativa postados e espalhados na Internet? As rotas de fuga aparecem em

situações, lugares e não-lugares mais distintos e surpreendentes. Se é possível, segundo

Deleuze e Guattari, fazer rizoma de tudo, incluindo o livro-mundo ou o livro-raiz, entre outros,

com o advento da conexão em rede, podemos sugerir o rizoma da cibernética/ciberespaço e da

raiz imaginária de uma árvore vital, literária e cheia de conhecimentos que se alastra sem

cronologia, começo, meio e fim definidos: o texto e o eu se potencializam e se atualizam em

ciberraízes.

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I - NARRATIVAS INVENTADAS OU FICTÍCIAS: CÓDIGOS DECIFRÁVEIS

Há de existir um narrador. Para Walter Benjamin, contar histórias sempre foi a arte de

contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são conservadas. Quanto mais o

ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido

(BENJAMIN, 1987, p.205). O ensaísta alemão que cogitou um dia a extinção da figura do

narrador, sinalizava algum pessimismo quanto ao futuro de algumas narrativas já consagradas

até então.

Apesar de tanta informação que nos cerca neste século, em plena era tecnológica de

notícias velozmente descartadas, ainda há alguém em busca de fábulas contadas ou recontadas,

testemunhos ou sagas, seja pela oralidade, pelo livrinho ilustrado, pela encenação teatral, pelo

formato cinematográfico ou teledramatúrgico. Benjamin estava certo quanto ao interesse que é

capaz de despertar um bom narrador e uma boa história. Porém, caberia ainda, ao bom leitor

“sair à caça" do sabedor-narrador de experiências vividas ou inventadas.

Além da literatura, do cinema e da dramaturgia, Benjamin não alcançou em seu curto

tempo de existência, outra fonte informativa que não cessa de alimentar a imaginação e a

imagem em ação: a Internet. Atualmente, escritores, escreventes e digitadores vorazes se

mesclam com artesãos de palavras que tecem, fiam, comungam, comunicam-se, fundem-se.

Com tanta oferta, eleger histórias ou escolher quem contá-las ficou mais simples e fácil. Resta

saber se tantos enredos e narradores são capazes de satisfazer e convencer seus leitores.

Conscientemente ou não, narrador e leitor firmam um tipo de acordo durante a

exposição de textos em deciframentos. Um pacto forjado em moldes inspirados pela sedução

de quem escreve e de quem lê. Sofre-se para alcançar e atingir o cume das revelações, os

penhascos das dúvidas que estão contidas ou descontidas em uma obra. Se o leitor sai em busca

de respostas de identidade para seus anseios em uma determinada narrativa, o desencontro é

uma possibilidade frequente, mas também o contrário. Seriam o livro e outro tipo de suporte

tecnológico uma espécie de esfinge ambulante? Uma busca do eu ou pelo eu se reflete em

muitos personagens reais e fictícios? Leia-me ou te devoro? Leio-te ou me devoro? Benjamin

dá uma pista a respeito dessa relação entre ouvinte e narrador, considerada por ele como

“ingênua”, sobre o que de fato interessa a ambos:

Não se percebeu devidamente até agora que a relação ingênua entre o ouvinte

e o narrador é dominada pelo interesse em conservar o que foi narrado. Para o

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ouvinte imparcial, o importante é assegurar a possibilidade da reprodução. A memória é a mais épica de todas as faculdades. Somente uma memória

abrangente permite à poesia épica, apropriar-se do curso das coisas, por um

lado, e resignar-se, por outro lado, com o desparecimento dessas coisas, com o poder da morte. (BENJAMIN, 1987, p.210)

Entre fábulas e epopéias, atualmente consumimos postagens virtuais, além de

biografias (des)autorizadas e autobiografias, todas, de algum modo, questionáveis em

relevância se devem ser preservadas na memória. Quando a vida do outro é bem mais

interessante que a minha? E quando é possível transformar a própria realidade em algo mais

espetacular ou fascinante, mais glorioso ou comovente, menos banal e menos comum? A

literatura ficional poderia oferecer alguma resposta?

O ensaísta francês Phillipe Lejeune (2008) em O pacto autobiográfico se questiona ao

apresentar o tema logo no início de seu livro, sobre a complexidade de definição quanto ao

gênero autobiografia. Há os que escarafuncham, diários íntimos, biografias e autobiografias

por razões banais ou complexas. O interesse pessoal pode surgir desde a bisbilhotice

corriqueira à necessidade de estudos comportamentais realizados por experts. Quanto à

problemática do gênero, Lejeune afirma que, quando se busca a clareza, correm-se dois riscos:

de um lado, dar a impressão de estar repisando em evidências (já que é preciso retomar tudo a

partir da base), de outro, complicar as coisas estabelecendo diferenças demasiadamente sutis

(LEJEUNE, 2008 p.13).

Por meio de memórias, biografias, romances pessoais, poemas, diários, autorretratos ou

ensaios, gêneros vizinhos da autobiografia, é possível um escritor/narrador apresentar-se ou

disfarçar-se em personagens em um espetáculo literário? Com ou sem sutilezas, com ou sem

complicações, o leitor pode desejar consumir todo o tipo de exibição de intimidades alheias

(sem cortes, de preferência). E a sanha mercadológica comprova tal atitude. No capítulo

intitulado Eu real e os abalos da ficção, a pesquisadora Paula Sibília faz referência às raízes

desse gosto pelo real já no século XIX (SIBILIA, 2008 p.196). Ela considera a Internet um

palco privilegiado para proliferação e midiatização de confissões do eu cada vez mais realistas

ou próximas disto:

“Espetacularizar o eu consiste precisamente nisso: transformar nossas

personalidades e vidas já nem tão) privadas em realidades ficcionalizadas com recursos midiáticos...Com uma frequência inédita,

o eu protagonista — que costuma coincidir com as figuras do autor e do

narrador — se torna uma instância capaz de avalizar o que se mostra e o

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que se diz. A autenticidade e inclusive o valor dessas obras — e, sobretudo, das experiências que elas reportam — apoia-se fortemente

na biografia do autor-narrador-personagem. Em vez da imaginação, da

inspiração, da perícia ou da experimentação que nutriam as peças de ficção mais tradicionais, nestes casos é a trajetória vital de quem fala —

e em nome de quem se fala — que constitui a figura do autor e o

legitima como tal. Tanto essas vivências pessoais como a própria personalidade do eu autoral, porém, também são ficionalizadas com a

ajuda da aparelhagem midiática. (SIBÍLIA, 2008, p.197, p.198)

O "tudo" quando não cabe na rotina diária ou pessoal, pode-se construí-lo e escrevê-lo

dentro daquilo sugerido como ficcional. Quando a vida não bastar (assim de um modo

gullariano), a arte de reinventá-la poderá ser uma saída, escape e salvação para quem escreve e

para quem lê. A exibição e a inibição dos “eus” por meio de escritos e escrituras, anotações e

rabiscos podem tornar o espetáculo mais caloroso. Para cada eu existirá um tu ou todos nós?

De acordo com a pesquisadora Denise Schittine, a escrita íntima na Internet está associada a

uma tentativa de alimentar e preservar a memória de si mesmo. (SCHITTINE, 2004, p.21):

(...) O escrito íntimo vai garantir também a memória do diarista sobre sua

trajetória, os fatos que aconteceram na sua vida e as ideias que desenvolveu em uma determinada época. Ele dará o apoio para que, pelo menos através da

escrita, o autor se sinta próximo da imortalidade (daí a importância da ficção

de Borges, em particular do conto “O Imortal”, como um parâmetro para entender por que uma das vias para a imortalidade do homem se faz através

da escrita). (SCHITTINE, 2004, p.21,p.22).

Quando a “vida íntima ou vida alheia” ganha relatos escritos impressos ou virtuais,

afirmar sobre conteúdos reais ou autoficcionais não é tarefa simples. Antes de publicar o livro

Uma vida inventada: memórias trocadas e outras histórias, a atriz e escritora Maitê Proença

foi surpreendida em um programa de televisão transmitido ao vivo, por revelações de sua vida

privada. Tragédias pessoais vieram a público sem o conhecimento e o consentimento prévios

da famosa atriz brasileira. Sua mãe foi assassinada pelo marido em circunstâncias que

envolveram ciúme e adultério. O pai de Maitê cumpriu pena de prisão e, depois de algum

tempo, suicidou-se. Anos depois dessa revelação em rede nacional, as intimidades dolorosas

foram romanceadas e transformadas em confissões literárias.

O livro de Maitê Proença foi classificado como romance, mas reúne características

típicas de uma autobiografia como as apontadas por Phillipe Lejeune: traços de perspectiva e

retrospectiva, a vida individual, gênese da personalidade, sem desmerecer a crônica social e

política durante a narrativa. Em quase toda a narrativa, é usada a primeira pessoa para contar

memórias mescladas com outras tramas. Não se sabe até ao certo onde estão verdades ou

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ficções de seus eus. Maitê Proença conta duas histórias ao mesmo, ora revelando, ora

confundindo, ora despistando. Oferece ao leitor oportunidade para que este chegue às suas

próprias conclusões. Lejeune afirma que para existir uma autobiografia com teor de literatura

íntima, é preciso que haja relação de identidade entre o autor, o narrador e o personagem.

Apesar de tais semelhanças na obra de Maitê, preferiu-se intencionalmente, é provável, adotar

o estilo de romance pessoal a fim de conservar, quem sabe, um pouco mais do que sobrou da

intimidade e da subjetividade da autora. O pacto autobiográfico pode ter sido quebrado por ela,

quem sabe, ao decidir escrever parte de suas memórias sem o "tudo ou nada" condicionados

por Lejeune para definir uma autobiografia:

"Mas fui tomando prazer no negócio, e hoje, agradecida ao destino que me

colocou aqui, reconheço que foi a atriz que me salvou de uma vida na aridez

sentimental. Como tinha a desculpa da personagem, podia sofrer, sentir saudade, euforia, inveja, dor, porque não era eu, mas ela quem se permitia

essas bobagens. E, assim enganando-me, deixei de ser uma pessoa assustada

e defendida, para aprender que não se morre de intensidade. Morre-se, ao contrário, pelo embrutecimento" (PROENÇA, 2008, p.13)

Se a autora Maitê Proença romanceou sua autobiografia, se construiu uma narrativa

ficcional, o mesmo ocorreria entre não famosos que nem sempre separam realidade da

fantasia? Para Paula Sibília, "é sempre frágil o estatuto do eu" (SIBÍLIA, 2008, p.31). Ela

considera ainda a complexidade da entidade do eu entre nós e sua vacilação peculiar quando o

narrador se propõe relatar a vida em texto autobiográfico. O caos e a multiplicidade da

experiência individual aliada à necessidade do outro, e ainda, de uma alteridade indispensável

aos que convivem, reforçam a ideia de um eu ficcionalizado de modo especial ou bem

subjetivo. Aliás, a subjetividade faz do eu e dos eus algo ainda mais complexo, delicado e

desafiador em se tratando de revelações de intimidades de vida, sejam de modo testemunhal,

narrações ou relatos biográficos e autobiográficos. Estamos sempre de alguma forma

procurando pistas e rastros daqueles que estão vivos ou dos que já morreram através de seus

escritos. Gostaríamos de nos refletir neles?

Para Phillipe Lejeune, o "eu" não se concebe sem o "tu". E este "tu-leitor", deve ser a

principal razão para a revelação do "eu-narrador", do "eu-autor", do "eu-personagem", do "eu

-pessoa". Ainda de acordo com Lejeune, a autobiografia como gênero literário carrega a

melhor marca da confusão entre autor e pessoa, confusão esta que atinge o leitor desde o

século XVIII. Quando o autor utiliza seu próprio nome justificando sua existência, seja por

vaidade ou por uma outra razão, haverá a possibilidade de se narrar utilizando outros estilos

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como a poesia, prosa, pseudônimos, heterônimos, ficções, romances, notas. ensaios e afins?

Sim, segundo o próprio Lejeune que recorreu ao Dicionário universal das literaturas, de 1876.

Na publicação, autobiografia é considerada uma obra literária, romance, poema ou tratado

filosófico, cujo autor teve a intenção secreta ou confessa de contar sua vida, expor

pensamentos ou expressar sentimentos. Depois de passados vinte e cinco anos da publicação

de O pacto autobiográfico, Lejeune reflete sobre a releitura de si mesmo, revendo conceitos

sobre a suposta distinção da autobiografia do romance autobiográfico, da ficção e narrativa

produzidas em condições particulares, constatando que, transformar a vida em narrativa é

simplesmente viver. "Somos homens-narrativas", concluiu.

II – OS MUITOS EUS ESPETACULARES

“Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, não há

nada mais simples. Tem só duas datas — a da minha nascença e a da

minha morte. Entre uma e outra todos os dias são meus” (Fernando Pessoa/Alberto Caiero, 1925)

Quando o reverenciado poeta português Fernando Pessoa se transforma em outros

poetas e escritores para refletir sobre o mundo, sobre si, sobre tu, sobre eles, quem de fato

seriam Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caiero e Bernardo Soares, seus

heterônimos conhecidos? Todos são mesmo o homem Fernando Pessoa? Em O eu

profundo e outros eus (PESSOA, 1980), há um conto ou poema dramático chamado O

Marinheiro. A narrativa revela que, durante o velório de uma jovem, três donzelas

desejam que a arrastada noite não demore passar, a fim de quê, o quanto antes, sepultem a

falecida. Para ocupar o tempo, iniciam uma sessão de histórias e memórias. Espantam-se

com o que recordam, com o que não se lembravam mais ou fingiam ter esquecido. De

onde vem as vozes das personagens? Todas elas pertencem ao próprio Fernando Pessoa,

dono de tantos “eus” fingidos, nomes fictícios e identidades imaginárias? "Falemos do

passado - isso deve ser belo, porque é inútil e faz tanta pena... falemos, se quiserdes, de

um passado que não tivéssemos tido. Não. Talvez o tivéssemos tido" (PESSOA, 1980,

p.113). Em O show do eu, Paula Sibília cita o escritor britânico John Keats que ousou

dizer: "o poeta não tem personalidade, e essa é justamente a sua glória" (SIBÍLIA, 2008,

p.227). Houve um tempo em que pouco importava “quem” dizia, mas sim “o que” era

dito. Na contemporaneidade, o “culto ao ego” em redes ciberespaciais ou em pretensas

ciberraizes, assume desejos e posturas cada vez mais destacadas e consumidas.

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Há outros escritores que poderiam ter simulado perfis pessoais ou experiências

íntimas que se tornaram depois obras literárias, romances, poemas, teatros, filmes,

ensaios. Quem pode negar ou afirmar que o piloto de avião em apuros no deserto do

Saara após sofrer uma pane no livro clássico O pequeno príncipe seja o seu autor, o

escritor, piloto e ilustrador francês Antoine de Saint-Exupéry? E o principezinho

protagonista poderia ser sua memória infantil dialogando com o adulto em crise?

Saint-Exupéry morreu em um desastre aéreo em 1944, durante a Segunda Guerra

Mundial em missão inspecionária no Mar Mediterrâneo. O pequeno príncipe (1943)

tornou-se um referência na literatura mundial com reflexões a respeito da vida e de

valores humanos. "Quando a gente quer fazer graça, às vezes mente um pouco"

(SAINT-EXUPÉRY, 2010, p.57). Mentir e ficcionalizar podem não significar a mesma

coisa, provavelmente.

Philippe Leujeune, entre tantos questionamentos sobre autobiografia, argumenta:

"O autor não seria ele próprio um texto?" (LEJEUNE, 2008, p.77). Sabe-se que o célebre

Memórias de Adriano, livro publicado pela primeira vez em 1951, levou quase trinta anos

para ser concluído por sua autora, a francesa Marguerite Yourcenar. A obra recupera

vestígios de manuscritos do próprio imperador romano, além de testemunhos de quem

viveu no período de dezoito séculos atrás. Trata-se de uma pesquisa quase arqueológica

para dar voz a um personagem real da História, com narrativa depurada em primeira

pessoa.

Marguerite Yourcenar revela um Adriano no mais cristalino atributo do

Humanismo antigo. Dramas pessoais, enfermidade, preocupações políticas, intrigas e

traições, as orientações ao seu sucessor, Marco Aurélio, o amor homossexual pelo jovem

Antínoo, as confissões de Adriano interpretadas por Yourcenar podem causar certezas e

dúvidas em se tratando de constituição da memória. No prefácio, a tradutora de Memórias

de Adriano no Brasil, Martha Calderaro, disse que antes de se dedicar à versão do francês

para o português, debruçou-se em dezenas de textos, enciclopédias e documentos a fim de

pesquisar sobre o personagem biografado, para ter certeza de estar sendo fiel à obra da

autora e ao biografado. Para alguns críticos literários à época, Adriano seria a própria

Marguerite Yourcenar, cuja especulação Calderaro discorda. Para esta, a obra transcende

e a História transforma-se em sentimento, alma, amor, paz, vida e morte através da

trajetória de Adriano.

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Que sentido há escrever apenas para nós mesmos? As correspondências, as

escritas íntimas, as memórias, o diário que ganhou versão digital na internet também são

regidos por "um pacto", pois todo texto tem um destinatário. Mesmo que as

correspondências e as mensagens não sejam enviadas ou não cheguem a tempo aos seus

destinatários e interlocutores, escreve-se para ser lido cedo ou tarde. Entre os dias 10 e 20

de novembro de 1919, o autor tcheco Franz Kafka escreveu uma carta de cinquenta

páginas destinada ao seu pai, Hermann Kafka, mas nunca a enviou. O conteúdo da

correspondência se tornou livro em 1985, sessenta e um anos depois da morte do autor.

Carta ao Pai revela intimidades, memórias biográficas, ressentimentos, vingança e uma

espécie de acerto de contas entre um filho humilhado por toda vida pelo pai tirano. O

texto em primeira pessoa exibe um pouco do que o escritor imprimiu em seus livros de

ficção, um emaranhado de contradições, ambivalências e dor. A carta íntima de Kafka

não chegou ao seu pai, mas aos seus leitores ávidos por segredos e confissões em mais

uma publicação sobre o eu espetacularizado.

Se vivos falam e escrevem, os mortos também podem se manifestar de alguma

forma. Gavetas, baús, sótãos e porões de algum escritor famoso ou anônimo podem ser

vasculhados na tentativa de se alcançar a novidade de um texto inédito. Em 1987, foi

anunciada a morte da escritora Marguerite Yourcenar. Ela deixou a obra então inédita e

inacabada, A eternidade o que é?, publicada em 1988; a coletânea de ensaios Peregrina e

estrangeira, publicada em 1989; e um testemunho sobre viagens, A volta da prisão,

publicado em 1991.

Insatisfeitos, admiradores da obra de Yourcenar continuaram a busca em “caçadas

e expedições arqueológicas” atrás de vestígios da escritora. Em 1993, seus leitores

tiveram a chance de trazê-la de "volta à vida" por meio de uma obra que nunca fora

publicada, Conto azul. Este e outros dois textos, A primeira noite e Malefício, foram

escritos entre 1927 e 1930. Apenas Conto azul era inédito, já que os outros dois tinham

sido publicados em jornal e revista de circulação francesa da época. Os três textos

olvidados em fundos de gaveta foram reunidos em Conto Azul e outros contos (1995). A

necessidade de perpetuar e eternizar obras e autores se manifesta entre editores e leitores.

Na literatura, de algum modo, o eu se mostra até postumamente.

III – EUS LITERÁRIOS E CIBERESPACIAIS

DA LITERATURA ÀS REDES DIGITAIS: NARRATIVAS E CONFISSÕES DO EU EM CIBERRAIZES

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O livro Chicletes e Prazer (2010), do autor campista Márcio de Aquino, conta a

história de um adolescente chamado Alex, apaixonado por rock and roll, música popular

brasileira e outros estilos em voga nos anos 1970, durante o governo militar no Brasil. O

protagonista tímido está encantado por uma jovem rebelde filha de um coronel do

exército. A história é narrada em primeira pessoa. Coincidência ou não, os gostos

musicais e o temperamento do personagem se assemelham aos de seu autor. Aquino e

Alex seriam a mesma pessoa? Chicletes e Prazer seria uma autobiografia romanceada ou

um romance com insinuações autobiográficas? Em diversos trechos, o

narrador-personagem (autor?) faz revelações do que pensa e sente:

A transformação repentina em uma imagem que melhor me conviesse

naquele momento, e que não refletisse minhas inseguranças, meus

receios, minhas dúvidas existenciais, e que naquela hora não mostrasse diante do espelho aquela cara de idiota com um enorme esparadrapo

acima do olho, com três pontos costurados, como um Frankenstein

juvenil... o texto me ajudou a enxergar que eu teria que definitivamente seguir meu rumo, distante de qualquer desejo de retomar uma fase de

minha vida, ainda bem próxima, mas para sempre destinada a virar

apenas uma lembrança. (AQUINO, 2010, p..34, p.126 )

Julguemos um pouco mais os eus pessoais e literários. ."Eu em pessoa não, eu em

demônio é mais apropriado. Mas vamos aos fatos" (MOURA, 2013, p.23). Nem Deus,

nem o Diabo escapariam de especulações na montagem teatral em Campos, Rio de

Janeiro, no ano de 2009. A peça O Julgamento de Lúcifer, de Adriano Moura, em 2013

ganhou versão literária, e em 2014, uma remontagem no teatro. A história se conecentra

em um julgamento midiático inspirado em talk shows e reality shows consumidos por

telespectadores mundo afora. O texto é carregado de humor, ironia e crítica aos padrões

sociais, religiosos e históricos. Até que ponto o eu autoral aparece em textos ficcionais?

Na obra de Moura, suas opiniões pessoais ligadas à fé ou à crítica aos veículos de

comunicação estariam em O Julgamento de Lúcifer? Já no prólogo, o autor é

provocativo: "Deus é uma metáfora. O homem, a metonímia", escreve.

O jornalista e escritor Vitor Menezes publicou uma coleção de quarenta textos

divididos entre crônicas e contos em Eu transaria com mortos (2014). Na crônica de

abertura, Oração para São José Cândido, Menezes revela sem rodeios duas afeições. A

primeira, pelo escritor da cidade de Campos mais conhecido nacionalmente, o imortal

José Cândido de Carvalho, e a segunda, pela literatura. Muitos textos narrados em

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primeira pessoa possibilitam especular se prováveis experiências pessoais foram

transformadas em literatura. Um exemplo é o texto Resposta Comercial, onde o escritor

relata uma carta endereçada a uma companhia de aviação: "Não sei se vocês estão

preparados para a notícia que eu vou dar. Ainda assim, embora seja dolorosa, vou ser

direto. O fato é que meu pai morreu. E isso aconteceu em 1989" (MENEZES, 2014,

p.25). Além das publicações realizadas em livros, Menezes, Moura e Aquino também já

escreveram textos em redes sociais ou blogues. Seus perfis e postagens em sítios

eletrônicos de relacionamento auxiliam a traçar impressões quanto aos seus gostos e

interesses pessoais, preferências políticas, estilos de arte e cultura, por exemplo.

Em Blog: comunicação e escrita íntima na internet, a autora Denise Schittine

analisa escritores diaristas que se expõem na web por meio de postagens confessionais.

Ela cita a relação de confiança entre o diarista e o leitor que passaram a se juntar em

"redes de segredos" (SCHITTINE, 2004, p.20). Algo que a escrita tradicional pré-internet

já propunha. Ela reforça a necessidade do autor contar com a ajuda e a lembrança do

Outro para propagar a memória de si mesmo (p.21). "Para enxergar a vida de forma

diferente, o diarista é capaz de tudo, até mesmo de misturá-la com a ficção e fazer de si

mesmo um personagem" (p.16). A espetacularização de intimidades combina com

literatura? Para saber o que pensam os ficcionistas a respeito de intimidades, biografia,

autobiografias e relacionamento virtual com leitores, elaborei dez perguntas aos autores

de Chicletes e Prazer, O julgamento de Lúcifer e Eu transaria com mortos. Foram

realizados os seguintes questionamentos:

I. Quando escreve ficção, o que tem de real ou baseado em fatos reais em tua

obra?

II. Como autor, é possível afirmar se esconder ou se revelar por meio da obra?

III. No caso de Chicletes e Prazer, O julgamento de Lúcifer, Eu transaria com

mortos há algum personagem que seja o autor/narrador em disfarce?

IV. Com o (s) livro (s) que já publicou, seria possível um leitor traçar um perfil

biográfico ou característico do autor?

V. A tua obra de ficção serve para revelar alguma intimidade que não

revelaria de outra maneira?

VI. O leitor de seus livros se difere do leitor de seu blog ou postagens nas redes

sociais?

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VII. Qual a importância do comentário de algum leitor quanto a livros, blogs ou

posts?

VIII. Você lê biografias? Gosta? Por quê?

IX. Gostaria de ser biografado?

X. De modo geral, o que caberia ou o que não caberia em sua suposta

biografia se publicada?

As perguntas e respostas foram enviadas aos entrevistados por meio de chats do

Facebook e por correio eletrônico. As entrevistas foram publicadas no blog pessoal

Ocinei Trindade Escreve, e receberam o título de postagem “Três escritores, intimidades

e autobiografia: ficções do eu”. O escritor Adriano Moura relata:

Toda ficção nasce da realidade, seja ela objetiva ou subjetiva. A criação não está na elaboração dos fatos, pois eles pré-existem à preparação da

obra. A criação está na transformação da realidade em ficção. Posso

transformar um acidente de trânsito numa comédia surrealista, por exemplo. O autor é agente de um certo tipo de discurso contaminado

por sua história de vida e visão de mundo. Mas o que aparece na obra é

um simulacro. A obra não esconde nem revela o autor. A obra é um ser independente de quem a escreveu. Depois de publicada só pertence ao

autor por vias legais (direitos autorais). A obra revelará ou esconderá o

autor assim como revelará ou esconderá o leitor, co-autor do que lê. Toda escrita é “autobiográfica” no sentido de apresentar as marcas

discursivas de seu autor, não a vida dele. Prefiro “simulacro” a disfarce.

Ficção é fingimento, não disfarce. Disfarce é mascaramento, mentira. Ficção não é mentira, finge-se por hora ser o que não é, sentir o que não

sente, enxergar o que não vê. Mas o autor está ali o tempo todo. O

personagem é criado para dizer e viver coisas que o autor não viveria nem diria. Por isso não é o autor disfarçado. É o autor desdobrado, é o

duplo do autor fingindo, não mentindo, mas fingindo tão bem que

parece o autor real, apenas em disfarce. É possível saber como vejo e entendo o mundo, não minha biografia. A ficção existe justamente para

criar um mundo paralelo por meio da linguagem. Mesmo os autores que escrevem autobiografias fingem o tempo todo. Não confie em

nenhuma delas. Em todas há apenas simulacros. Ninguém se revela

totalmente. É muito perigoso. A ficção, mesmo disfarçada de autobiografia é sempre mais segura. Não revelo minha intimidade na

ficção, pois escrevo para leitores e a eles minha vida íntima não

interessa. Pode acontecer de coisas que vivi intimamente servirem de material para composição de algum personagem. Mas já não serei eu

mais, e sim ele. Apenas com finalidade acadêmica. A vida “real” do

outro me entendia, pois não me interessa, mesma que sido figura de grandes feitos. Biografia como todo texto escrito é ficção disfarçada, e

por não se assumir como tal fica no meio do caminho na maioria das

vezes. Prefiro a autobiografia que está bem próxima do ficcional. Não. Não há nada em minha vida que valha uma biografia: não perdi uma

perna como Roberto Carlos, não fui (ainda pelo menos) ao fundo do

poço como Garrincha, não sou genial como Nelson Rodrigues, não tive

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câncer como Gianechini. Se é para biografar que conte tudo. Não tem essa de “pode isso, mas não pode aquilo”. Biografia não pode ser

hipócrita. Ou conta tudo ou não conta nada (MOURA, 30.set.2014).

O escritor e jornalista Vitor Menezes discorreu sobre produções de escritas

biográficas, autobiográficas, e como a ficção se manifesta em suas obras:

Há muito (de pessoal ou real em sua obra), mas sempre como ponto de

partida ou aspecto acessório em uma narrativa completamente ficcional. Pode ser uma sensação, uma atmosfera, uma característica de

um personagem, uma situação, tudo isso pode ter sido captado no dito

mundo real (seja lá o que isso signifique), mas depois de incorporado à história ganha um destino inteiramente na ficção. É como se a

imaginação tomasse emprestado da realidade alguns elementos, mas ela

continuasse senhora da condução da história. Eu sei que acontece, mas não me preocupo com isso. Tenho que destravar os dedos quando

escrevo, sem me preocupar se estou me expondo ou não. O que desejo é

que o resultado tenha vida literária própria, independentemente de ter ou não relação com a minha existência real. Em alguns momentos até

sim, uma vez que há coincidência entre as visões de mundo da voz que

narra com a do autor, especialmente na parte das crônicas, quando o autor, pela própria natureza do gênero, se coloca mais mesmo. Nos

contos, a autonomia do universo diegético é maior, e então creio que o

descolamento do autor também pode ser maior. Difícil responder. Publiquei bem pouco. Embora "Eu transaria com mortos" seja o meu

terceiro livro, ele é o primeiro inteiramente de ficção e inteiramente de

minha completa autoria. O primeiro foi uma organização minha e de Jorge Rocha com vários autores ("Contos da Terra Plana") e o segundo

teve mais caráter jornalístico, com artigos meus publicados em vários

veículos ("Daqui desse Lugar"). Talvez fosse possível sim extrair algum perfil dessas obras, mas creio que não seria muito revelador. Não

a uso para isso, com essa intenção de revelar. O que de eventualmente

íntimo pode haver está dentro do mesmo espírito de captar qualquer aspecto da realidade para alimentar a imaginação. Não é para fazer o

leitor brincar de descobrir meus segredos. Para mim, o ideal é que ele

nem pense nisso, e que a história flua sem que ele se lembre quem é o autor. Me interesso muito por jornalismo literário, e a biografia é um

tipo de jornalismo literário. Não tenho predileção específica por elas,

mas as leio com alguma frequencia. Recentemente, li duas do cineasta Billy Wilder, para uma pesquisa sobre jornalistas no cinema. E alguns

dos livros que me impactaram bastante são biografias, como a de Che

Guevara, de Jon Lee Anderson, e a de Assis Chateubriand, do Fernando Morais. Nunca pensei nisso! Minha vida não é tão interessante assim

(ser biografado). Se algum dia ela fosse existir, gostaria que fosse não

autorizada. Não gostaria de ter que aprová-la. Acho que nem gostaria de lê-la. (MENEZES, 30.set.2014).

O autor Márcio de Aquino considerou:

Muitos fatos reais são contados em meu livro, porém às vezes

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modificados pela ficção, para dar mais sabor. Sim, dependendo da proposta da obra o autor pode se revelar em muitos aspectos, trazendo

dados autobiográficos, ou colocar ideias totalmente antagônicas às

suas. Como livro é narrado em primeira pessoa, o personagem principal (Alex) traz muitas características pessoais, embora a obra não seja

autobiográfica. No livro alguns aspectos pessoais são mostrados através

do personagem narrador, como gostos pessoais, visão política, opiniões, etc. As questões mais íntimas do personagem principal são

meramente ficcionais, portanto não existe nenhum aspecto revelador.

Leio muitas biografias. É o gênero literário que mais tenho consumido ultimamente. Gosto de conhecer aspectos da vida de personalidades

biografadas. Não gostaria de ser biografado, não porque tenha algo a

esconder, mas simplesmente porque não me sentiria bem em ver minha vida pessoal exposta. Além do mais, não considero que minha vida seja

tão interessante a ponto de interessar a um público que consome

biografias. O que caberia ser publicado seriam aspectos pessoais, formação cultural, vivências, pessoas com as quais me relacionei e

foram importantes em minha vida, as coisas que criei, etc. O que não

caberia seriam aspectos pessoais mais íntimos, fatos que não teriam relevância em ser expostos. Como falei na resposta anterior, de uma

forma geral não me agradaria ver minha vida exposta. (DE AQUINO,

1.out.,2014)

Para o escritor Adriano Moura, blogues e redes sociais servem mais como

divulgação do que meio de circulação de textos. O que falam sobre seus escritos lhe

interessa como autor. Para Vitor Menezes, os leitores de seus livros e de suas postagens se

distinguem. “Em blogue e redes sociais, a relação com o leitor é mais superficial. Já quem

comenta um livro meu se comporta de modo quase confidente”, diz. Já Márcio de

Aquino, acredita que seus seguidores nas redes sociais são leitores em potencial de seu

livro, sem diferenciação de público. Críticas e elogios sobre sua obra são bem-vindos.

De acordo com Paula Sibília, o autor de Em busca do tempo perdido, Marcel

Proust, afirmara que de nada serve conhecer a biografia do escritor para compreender os

sentidos de sua obra literária. “Por isso, forçar as conexões entre o eu narrador e o eu

autor seria uma banalidade sem sentido algum, já que os personagens de toda obra

literparia são inventados” (SIBÍLIA, 2008, p.226). Será que Proust diria o mesmo se

vivesse em plena era tecnológica que agrega a literatura virtual?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa ainda pretende ser concluída, pois há outros questionamentos sobre

a prática das escritas confessionais reveladas por autores, romancistas e internautas a

serem feitos, além da necessidade de maior aprofundamento teórico e histórico a respeito

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do eu na literatura, e sua utilização em textos virtuais. Há que se aprimorar ainda o

suposto conceito rizomático de ciberraiz e seus efeitos na leitura e na escrita em rede e em

publicações impressas de ficção, autoficção, biografia e autobiografia. Contar ao mundo

sobre si mesmo ainda parece estimulante, assim como ler e narrar boas histórias parecem

causar algum impacto nesta época.

No livro Grandes vidas, grandes obras (1980) há sessenta e duas breves

biografias de personalidades marcantes da História. O biógrafoThomas Carlyle diz que

"nenhum grande homem vive em vão. A história da Humanidade não é mais do que a

biografia dos grandes Homens". Constata-se que, ao narrar sobre si e também sobre os

outros, isto auxiliaria na tentativa de preservar parte da vida e da memória, sem desprezar

selfs e posts em experiências e experimentações de tantos eus. Viver é narrativa.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história

da cultura. 3.ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.

DE AQUINO, Márcio. Chicletes e Prazer. Campos dos Goytacazes: Edição FCJOL,

2010.

DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Volume I. São Paulo: Ed.34, 1995

KAFKA, Franz. Carta ao pai. Belo Horizonte: Boa Viagem, 2010.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte:

UFMG, 2008.

MENEZES, Vítor. Eu transaria com mortos. Rio de Janeiro: E-papers, 2014.

MOURA, Adriano. O julgamento de Lúcfer. São Paulo: Novo Século, 2013.

PESSOA, Fernando. O eu profundo e os outros eus. São Paulo: Nova Fronteira, 1980.

PROENÇA, Maitê. Uma vida inventada: memórias trocadas e outras histórias. Rio de

Janeiro: Agir, 2008

SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O pequeno príncipe. Rio de Janeiro: PocketOuro, 2008.

SCHITTINE, Denise. Blog: comunicação e escrita íntima na internet. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2004.

SELEÇÕES / READER´S DIGEST. Grandes vidas, grandes obras. Lisboa:

Ambar-Porto, 1980.

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SIBÍLIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 2008

TRINDADE DE OLIVEIRA, Ocinei. Três escritores, intimidades e autobiografia:

ficções de autoria. Em: Ocinei Trindade Escreve, disponível em

<http://ocineitrindade.blogspot.com.br/2014/10/tres-escritores-intimidades-e.html>,

acessado em 7 de outubro de 2014

YOURCENAR, Marguerite. Conto azul e outros contos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

1995; Memórias de Adriano. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.