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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 Produção Didático-Pedagógica Versão Online ISBN 978-85-8015-053-7 Cadernos PDE VOLUME I I

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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOSDA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE

2009

Produção Didático-Pedagógica

Versão Online ISBN 978-85-8015-053-7Cadernos PDE

VOLU

ME I

I

SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO – SEED PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL –

PDE

PROFESSORA PDE: ELSA SCARPETA MATERIAL DIDÁTICO-PEDAGÓGICO PARA INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA NA ESCOLA: A LITERATURA DE AUTORIA FEMININA E A

DESCONSTRUÇÃO DA OPRESSÃO.

UMUARAMA 2009

Ser um homem feminino

Não fere o meu lado masculino

Se Deus é menina e menino

Sou masculino e feminino ...

(Baby Consuelo, Didi Gomes e Pepeu Gomes)

Material Didático-pedagógico para Intervenção Pedagógica Na Escola

Professor PDE: Elsa Scarpeta

Área PDE: Língua Portuguesa

Professora orientadora: Lúcia Osana Zolin

IES vinculada: UEM – Universidade Estadual de Maringá

Escola de Implementação: Colégio Estadual Monteiro

Lobato – Umuarama

Público objeto da intervenção: Alunos da 1ª série do Ensino

Médio

Título: A literatura de autoria feminina e a desconstrução da

opressão

Tema de estudo: A literatura de autoria feminina

Apresentação

Este Caderno Pedagógico tem como objetivo promover a reflexão

acerca da literatura de autoria feminina, historicamente emudecida e varrida da

história da literatura, em nome da cultura patriarcal. Impulsionada pelas

conquistas do movimento feminista, essa tradição literária foi aos poucos

ganhando visibilidade e, a seu modo, veiculando a voz feminina, discutindo,

denunciando e reagindo contra a opressão da mulher. Para tanto, pretende-se

lançar mão de análises de parte da obra da escritora brasileira contemporânea

Marina Colasanti. Nos seus Contos de Amor Rasgados, por meio de uma

linguagem concisa e metafórica, ela traz à tona essa discussão, numa espécie

de convite à reflexão desse tema. Apesar de tantas conquistas empreendidas

no feminismo brasileiro, tem-se muito a refletir, a reivindicar e a redimensionar

sobre os papéis sociais da mulher na contemporaneidade. A escritora em

questão parece muito consciente desse estado de coisas.

Este Caderno Pedagógico foi desenvolvido a partir de leituras e

pesquisas bibliográficas, e tem por finalidade subsidiar o trabalho pedagógico

com o aluno e trazer contribuições na abordagem da literatura de autoria

feminina.

Em vista disso, traça o percurso histórico da literatura de autoria

feminina, no Brasil, e propõe, por meio do reconhecimento dessa trajetória,

trazer à tona possíveis discussões sobre o porquê da invisibilidade e

silenciamento da voz feminina na literatura canônica, as chamadas “altas

literaturas”, tomadas como modelo.

Na UNIDADE I, é apresentado um texto sobre Relações de gêneros e a

(des)construção da opressão feminina, seguido de um debate sobre a

opressão. Para uma análise prática foi selecionado o miniconto Para que

ninguém a quisesse, de Marina Colasanti, que possibilita discussões acerca da

opressão da mulher na sociedade patriarcal e seu modo de representação na

literatura de autoria feminina. Nele, foi explorado o título, feito uma análise

estrutural e uma análise sob a perspectiva dos estudos feministas. Na

seqüência, há a sugestão de uma produção textual, seguida de um momento

para a socialização dos textos produzidos e selecionados. E, como atividade

complementar, há a sugestão da apresentação do filme A cor púrpura de

Steven Spielberg, baseado em uma história real, de Alice Walker.

Na UNIDADE II, há uma reflexão teórica que traz para debate a forma

como a literatura canônica, de até meados do século XX, tem representado a

mulher em algumas de suas produções literárias. E, principalmente, quais as

razões cristalizadas historicamente, e o papel exercido pela cultura patriarcal

na crescente opressão feminina, desvelando-a como resultante de uma

construção social e não como algo de ordem natural. Além de apresentar

subsídios teóricos para que o educando perceba a influência dessa cultura na

construção de personagens femininas na literatura canônica. Para tanto foram

selecionados alguns excertos das obras: Iracema, de José de Alencar; Dom

Casmurro, de Machado de Assis e O cortiço, de Aluísio Azevedo. Há a

sugestão da leitura dessas obras em sua íntegra, além de alguns links para

maior aprofundamento sobre as mesmas.

Na UNIDADE III, há uma leitura teórica sobre o que foi o feminismo, sua

essência, importância, a trajetória do Movimento Feminista aqui no Brasil e a

sua influência na prática literária de nossas escritoras. Para uma análise

prática, foi selecionado o miniconto Como se fosse na Índia, de Marina

Colasanti. Para tanto, foram propostos leitura, a exploração do título, uma

análise estrutural e uma análise sob a perspectiva dos estudos feministas. Para

fechar esta Unidade, foram sugeridas leituras informativas sobre algumas

práticas históricas indianas, tais como: a incineração das viúvas, junto aos

maridos mortos; o alto índice de infanticídios femininos e os casamentos

arranjados através da apresentação de dotes.

Na UNIDADE IV, Mulher Sujeito X Mulher Objeto, há uma reflexão e

proposta de debate acerca da objetificação das mulheres e de como a mídia

tem se posicionado ou disseminado esses valores. Tudo visando encontrar

respostas para alguns questionamentos, tais como: quando o indivíduo deixa

de ser sujeito e assume o papel de objeto? Isso ocorre consciente ou

inconscientemente? Até que ponto a exposição e a exploração da figura

feminina nas diversas mídias são aceitas naturalmente? E a publicidade, de

que forma apresenta e explora a figura feminina?

Sobre esse último questionamento, foi sugerida a escolha de alguns

anúncios publicitários para serem analisados e debatidos. Como leitura e

análise, foi escolhido o miniconto Ela era sua tarefa, de Colasanti. Para tanto,

foram propostos leitura, um olhar mais atento sobre o título, uma análise

estrutural e uma análise sob a perspectiva dos estudos feministas.

Na UNIDADE V, o desafio é o (re)conhecimento das três etapas da

literatura de autoria feminina, segundo a proposta da pesquisadora norte-

americana Elaine Showalter.

Ao aplicá-la às escritoras brasileiras, selecionou-se Júlia Lopes, como

representante da primeira fase. O conto escolhido foi A caolha, pois traz

evidência da reduplicação da visão patriarcal na representação da figura

feminina. Nele, foi explorado o título, feito propostas de análises, tanto

estrutural quanto sob a perspectiva dos estudos feministas. Houve a sugestão

de um vídeo, e como leitura complementar a apresentação, e a análise de uma

crônica de opinião: O vestuário feminino, de Júlia Lopes de Almeida, através da

qual se é possível conhecer um pouco sobre alguns aspectos da mulher do

final do século XIX e início do século XX. Para ilustrar a segunda fase foi

selecionada a escritora Clarice Lispector, e, como produção literária o conto

Uma galinha. Para melhor situar o leitor, foram sugeridos alguns links que

trazem uma análise crítica desse conto. Nele, foi explorado o título, feito uma

análise estrutural e uma análise sob a perspectiva dos estudos feministas. Para

fechar essa Unidade foram sugeridos links que trazem a última entrevista

concedida pela escritora no ano de sua morte, 1977. Para ilustrar a terceira

fase, foi selecionada a escritora Zulmira Ribeiro Tavares e o conto Cortejo em

Abril, Nele, foi explorado o título, feito uma análise estrutural e uma análise sob

a perspectiva dos estudos feministas. Para fechar essa Unidade, foi sugerido

um link, em que a Revista Veja traz uma reportagem sobre a escritora e suas

obras, principalmente sobre o conto aqui abordado.

Na UNIDADE VI, que fecha este Caderno Pedagógico, foi selecionada a

escritora Marina Colasanti tendo em vista seu engajamento em relação às

questões feministas. Os minicontos selecionados da obra Contos de Amor

Rasgados trazem implícita a denúncia e/ou o questionamento da opressão

feminina. Após apresentar referências biográficas da escritora, essa Unidade

traz uma reflexão teórica sobre as questões de gênero (homem/mulher).

Apresenta a capa da obra Contos de Amor Rasgados e faz uma pequena

análise sobre a mesma. Na sequência, apresenta alguns comentários sobre o

estilo utilizado pela escritora para compor os minicontos. O miniconto

selecionado para leitura e análise foi Sem que fosse tempo de migração. Nele,

foi explorado o título, feito uma análise estrutural e uma análise sob a

perspectiva dos estudos feministas. Para fechar essa Unidade foi sugerida

como leitura complementar de A palavra em foco, justamente, por ser a palavra

a matéria-prima de todos aqueles que a transformam em arte, transcendendo e

explorando suas múltiplas possibilidades semânticas, ou seja, suas

plurissignificações.

Não é objetivo dos estudos aqui propostos neste Caderno Pedagógico

esgotar todos esses desafios aqui elencados, mas contribuir para que tanto os

docentes quanto os discentes se sintam desafiados e instigados a aprofundar

mais seus estudos e, consequentemente, seus conhecimentos sobre esse

tema, impelindo-os a ler o texto literário com mais criticidade, percebendo a

ideologia existente por detrás das palavras. Esse é o grande desafio.

Sumário

UNIDADE I ....................................................................................................... 11 1. Reflexão teórica: Relações de gêneros e a (des)construção da opressão feminina ......................................................................................................... 11 2. Instigando o olhar crítico... ......................................................................... 16 3. Explorando o título do miniconto: Para que ninguém a quisesse .............. 17 4. Leitura ........................................................................................................ 17 5. Análise estrutural ....................................................................................... 18 7. Produção textual ........................................................................................ 19 8. Socialização do texto produzido ................................................................ 19 9. Atividade complementar ............................................................................ 19

UNIDADE II ...................................................................................................... 21

1. Reflexão teórica: Como a literatura canônica, de até meados do século XX, tem representado a mulher? .......................................................................... 21 2. Instigando o olhar crítico... ......................................................................... 23 3. Pesquise na internet sobre essa obra e socialize as suas descobertas com a turma. Sugestão de link: ............................................................................. 24 4. Instigando o olhar crítico... ......................................................................... 24 3. Conheça mais sobre esse clássico da literatura lendo a obra Dom Casmurro ou acessando o link sugerido 26 4. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas ..................................... 26 5. Instigando o olhar crítico... ......................................................................... 28 6. Sugestão de endereço eletrônico para se conhecer mais sobre O Cortiço, de Aluísio Azevedo: ....................................................................................... 28

UNIDADE III ..................................................................................................... 30

1. Reflexão teórica: O que é feminismo e qual a trajetória do Movimento Feminista no Brasil? ...................................................................................... 30 2. Instigando o olhar crítico... ......................................................................... 33 3. Explorando o título do miniconto: Como se fosse na Índia ........................ 34 4. Leitura ........................................................................................................ 34 5. Análise estrutural ....................................................................................... 35 6. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas ..................................... 35 7. Curiosidades: ............................................................................................. 36 8. Pesquise: .................................................................................................. 36

UNIDADE IV ..................................................................................................... 40

1. Reflexão teórica: Mulher Sujeito X Mulher Objeto .................................... 40 2. Instigando o olhar crítico... ......................................................................... 41 3. Explorando o título do miniconto: Ela era sua tarefa ................................. 42 4. Leitura ........................................................................................................ 43 5. Análise estrutural ....................................................................................... 43 6. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas ..................................... 44

UNIDADE V ...................................................................................................... 47

1. Reflexão teórica: A trajetória da literatura de autoria feminina e suas principais representantes ............................................................................... 47

PRIMEIRA FASE ......................................................................................... 47 2. Referência biográfica de Júlia Lopes de Almeida – Representante da primeira fase literária (fase feminina) ............................................................. 47 3. Explorando o título do conto: A caolha ...................................................... 49 4. Leitura ........................................................................................................ 49 5. Análise estrutural ....................................................................................... 55 6. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas ..................................... 55 7. Sugestão de vídeo ..................................................................................... 56 8. Leitura complementar ................................................................................ 56 9. Análise estrutural ....................................................................................... 58 10. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas ................................... 59

SEGUNDA FASE ........................................................................................ 59

2. Referência biográfica de Clarice Lispector – Representante da segunda fase literária (fase feminista) .......................................................................... 60 3. Explorando o título do conto: Uma galinha ................................................ 62 4. Leitura ........................................................................................................ 62 5. Sugestões de links para se conhecer comentários autorizados sobre o conto: Uma galinha, de Lispector: ................................................................. 64 6. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas ..................................... 65 7. Sugestões de links para que se conheça um pouco mais sobre a grande escritora Clarice Lispector ............................................................................. 66

TERCEIRA FASE........................................................................................ 67

2. Referência biográfica de Zulmira Ribeiro Tavares – Representante da terceira fase literária (fase fêmea ou mulher) ................................................ 66 3. Explorando o título do conto: Cortejo em Abril .......................................... 68 4. Leitura ........................................................................................................ 68 5. Análise estrutural ....................................................................................... 88 6. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas ..................................... 88

7. Sugestão de link para que se conhecer um pouco mais sobre Zulmira Ribeiro Tavares e também sobre o conto Cortejo em Abril, aqui explorado .. 88

UNIDADE VI ..................................................................................................... 91

1. Referência biográfica (Marina Colasanti) ................................................... 91 2. Reflexão teórica ......................................................................................... 93 3. Capa do livro Contos de Amor Rasgados .................................................. 94 4. O estilo ...................................................................................................... 95 5. Explorando o título do miniconto: Sem que fosse tempo de migração ...... 96 6. Leitura ........................................................................................................ 96 7. Análise estrutural ...................................................................................... 97 8. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas. .................................... 97 9. Leitura complementar: A palavra em foco ................................................. 99

REFERÊNCIAS .............................................................................................. 101 REFERÊNCIAS EM MEIO ELETRÔNICO (on-line) ...................................... 102

Unidade I

E I D

A

D

I

N

U

11

UNIDADE I

1.Reflexão teórica:

Relações de gêneros e a (des)construção da opressão feminina

Ao visitar a história da humanidade, em seus diversos contextos

histórico-geográficos, é possível perceber que a condição social da mulher está

marcada por discursos discriminatórios e segregativos no que se refere às

relações de gênero. A crítica especializada atribui tal discriminação em relação

à figura feminina ao fato de a História, na maior parte das vezes, ter sido

escrita do ponto de vista masculino.

Não há como dissociar um discurso da voz que o produz e esta é

sistematizada de acordo com os seus anseios e interesses, portanto não se

tem acesso a realidade pura, mas àquela que passa pela interpretação e pela

ideologia do produtor do discurso. E os vários discursos dominantes exercem

um controle sobre o sujeito.

Se nas culturas nômades a união do grupo, tanto de homens como de

mulheres, independente do gênero, garantia a sobrevivência de todos, na

Antiguidade, quando surgem as primeiras sociedades não-nômades, a força

física ganha relevância para a guerra, para a pesca, para trabalhos pesados

direcionados ao homem. Já aqui se registra a ruptura de igualdade de direitos

entre os sexos. Às mulheres coube cuidar da prole, cozinhar, tecer. Quando

esses homens dominam outros povos, tornando-os seus escravos, os mesmos

vão executar os trabalhos femininos e dessa forma surge um simbolismo

negativo com relação a ambos que os exerciam. Pois, aos homens couberam

os cargos de mando, de maior prestígio social, na área jurídica, governamental

e financeira. Já, o trabalho feminino, igualado ao do servo e, por isso, não-

remunerado, é banalizado. Essa desigualdade social ampliou-se com o

mercantilismo e o capitalismo.

Portanto, a dominação do homem sobre a mulher não consiste em uma

questão natural, mas em uma construção social que foi aos poucos se

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consolidando a partir de fatores econômicos, mais precisamente a partir da

divisão do trabalho que caberia ao homem e à mulher, com o desprestígio

deste último. Segundo Zolin, (2003, p. 43)

o fato é que o patriarcalismo tornou-se uma realidade tão bem-

sucedida, tão arraigada no inconsciente coletivo que, para muitos,

para não dizer a maioria, é impossível pensar as relações humanas

de modo que o macho não domine de direito e de fato.

Engels e Marx buscaram no estudo científico respostas para essas

inquietações, pois era quase unânime, até aquela época (século XIX) a

aceitação de que se encontrava na gênese feminina a sua condição para a

subordinação e dependência masculina.

A gênese das pesquisas de Engels e Marx, pensadores socialistas

alemães, está na obra O Direito Materno, 1861, produzida por Bachofen. Essa

obra escandaliza e choca a sociedade da época, extremamente machista e

conservadora. Nela o autor expõe a tese de que em certo período, nas

sociedades primitivas, teria predominado o matriarcado, ou seja, a ascendência

social e política das mulheres sobre os homens. Isso foi considerado uma

revolução para a época, pois até então a discriminação feminina era legitimada

e propagada até mesmo por princípios religiosos.

Engels (1891) escreveu embasado na descoberta de Bachofen, que nas

sociedades primitivas as mães eram os únicos genitores certos de seus filhos e

por isso tiveram uma posição social mais elevada, naquele período. Com isso,

ele comprova que a subordinação das mulheres foi uma construção processual

e histórico-social.

Outro pensador importante foi Lewis Morgan que afirma que a

discriminação da mulher não é um fato natural. Ele dividiu a sociedade em três

fases de evolução, as quais denominou de: 1- o estado selvagem; 2- o estado

de barbárie; 3- civilização. E, foi justamente nesse último que ocorre todo o

processo de submissão da mulher. É quando os clãs começam a se

transformar em tribos. Os homens se fixam e demarcam as terras próximas a

água onde pescam e buscam o sustento.

Ao longo de milênios couberam ao homem as estratégias de defesa da

tribo surgindo assim, na sociedade, a “superioridade” masculina. Ao passo que

13

às mulheres coube cuidar de seus descendentes e com isso fica fora do

processo produtivo confinada ao trabalho doméstico, forjando uma sociedade

machista e conservadora.

Esse negativismo sobre a mulher se faz presente nos escritos da época

e vão fundamentar o cristianismo, o pensamento ocidental e os preconceitos

patriarcalistas e falocêntricos sobre as mulheres, repetidos e perpetuados até

hoje. Nos primeiros capítulos de Gênesis aparece a cultura machista, quando o

escritor diz que Deus fez o homem a sua semelhança e depois fez a mulher.

Outro fator relevante para a objetificação feminina foi o fato de os

homens não poderem legal e moralmente casar-se com suas mães e irmãs,

trata-se da proibição do incesto. Isso fez com que, nas sociedades primitivas,

elas se tornassem objeto de barganha, pois as mulheres de um grupo eram

trocadas por mulheres do outro.

Mas o que intriga é por que foram as mulheres a serem objetos de troca

e não os homens. E, a explicação mais plausível foi o fato de as mulheres

procriarem, amamentarem e terem uma ligação mais estreita com o filho

impedindo ou limitando sua mobilidade. Portanto, o fato de reproduzir a vida

não é visto como algo positivo, mas sim como fator que dificulta sua

dominação, segundo alguns estudiosos.

Se se considerar o Brasil como espaço geográfico, e o século XXI como

marco temporal e se analisar e comparar a situação da mulher de hoje à

mulher de outros tempos, perceber-se-á que muitas coisas mudaram, de que

conquistas foram realizadas. Seria ingênuo considerar que elas ocorreram

naturalmente. Pelo contrário, elas foram e são frutos da dedicação, do

empenho e da indignação de mulheres guerreiras, batalhadoras, obstinadas

que estiveram à frente de seu tempo e que anteviram a possibilidade e a

necessidade de lutar, de conquistar e de serem reconhecidas pelas suas ações

e não pelo gênero a que pertencem.

Apesar de a história ter negligenciado a participação da mulher brasileira

em muitos de seus construtos e de ter apagado séculos de sua participação

efetiva na construção histórica de nosso país deixando-as no anonimato e no

esquecimento, aparecem os primeiros registros de suas lutas no século XIX.

14

Trata-se do Movimento Feminista, inaugurado no Brasil ainda nesse século,

porém não com essa denominação.

Esse foi um momento histórico marcante, que trouxe em seu bojo o

combate à opressão, em todas as suas formas de manifestações, e evidenciá-

la como uma construção social e não como de ordem natural, aceita até então.

Opressão: essa é uma palavra que quando analisada fora de seu

contexto ganha uma infinidade de possibilidades semânticas que seria

praticamente impossível tentar aprisioná-la dentro de um conceito. Apesar

disso, não há ninguém que, mesmo inconscientemente, não sinta sua

negatividade. Segundo o dicionário Caldas Aulete; vol.IV; p. 2587:

OPRESSÃO, s. f. ação e efeito de oprimir. // (Fig.) Jugo; tirania exercida contra

outrem; estado do que vive sob o despotismo ou sob a prepotência de outrem;

[...]

Todas as possibilidades semânticas elencadas acima são possíveis

quando, fazendo um retrocesso histórico, se resgata as relações de poder do

homem sobre a mulher. Essa opressão, algumas vezes velada, mas, em sua

grande maioria, aceita como natural vem sendo rejeitada e questionada nos

últimos tempos.

Segundo Bonnici, (2007, p. 194)

A opressão feminina é o resultado de uma estruturação de poder

pela qual a ideologia masculinista e a Weltanschauung masculina

dominam a totalidade da sociedade humana, deixando a mulher

hierarquizada e restrita a funções societárias estritamente ligadas

à sua biologia.

Todos esses fatores se fragilizam diante de indícios arqueológicos

resultantes de escavações realizadas na Europa e no Oriente Médio que

demonstram que há cerca de vinte e cinco mil anos atrás as divindades eram

representadas por deusas/mulheres e de que as honrarias fúnebres não

Para se conhecer mais profundamente sobre esse assunto leia sobre O que

é feminismo? (p.17) e A Trajetória do Movimento Feminista no Brasil (p. 20).

15

levavam em consideração o sexo mas sim o seu prestígio social. Segundo

Bauer (2001, p.7),

sabemos de momentos em que essa sobreposição não existia,

tempos em que o homem não se localizava no processo de

reprodução e desconhecia sua participação na continuidade da

espécie. Tempos em que a descendência era identificada a partir da

mãe, numa estrutura social que se sustentava no matriarcado,

inexistindo a submissão. Porém ao descobrir a participação do

espermatozóide na procriação, os homens desempenharam o novo

papel, retirando da mulher toda participação significativa na

reprodução humana e relegando-a a simples receptáculo da nova

vida que eles criaram.

Portanto a mulher não apenas perdeu a função central na

continuidade da espécie, mas foi-lhe subtraída toda importância

social, instaurando-se uma sociedade em que o homem tornou-se

protagonista da história e, além disso, outorgou-se a si mesmo

legitimidade no exercício do poder sobre todos e, principalmente,

sobre a mulher.

Sob essa ótica percebe-se que os conceitos mudam ao longo do tempo

e que muitas noções e valores que permeiam e povoam a história da

humanidade, muitas vezes consideradas verdades absolutas, são altamente

questionáveis e passíveis de mudanças. Isso, por si só já é um avanço

gigantesco, pois possibilita um outro olhar sobre as relações humanas, sociais,

políticas, culturais, religiosas, enfim, nas mais variadas esferas, e que devem

ser pautadas no respeito e na igualdade de direitos tanto para homens quanto

para mulheres.

Esse novo olhar é que possibilitará não só detectar, mas também

combater e repelir toda forma de opressão que não consiste em uma questão

natural, mas em uma construção social que foi aos poucos se consolidando

deixando à margem não só a mulher, mas negros, indígenas, homossexuais,

ou seja, uma gama muito grande de pessoas.

Esta é uma página da história da humanidade que para ser reescrita terá

muitos obstáculos a serem vencidos, muitos (pré)conceitos a serem revistos,

muitos mitos a serem desconstruídos. E isso só se torna possível através da

informação, do conhecimento, de um olhar mais crítico e atento.

16

2. Instigando o olhar crítico...

Debate sobre opressão:

a) Já foi vítima de algum tipo de opressão? Já foi agente dessa opressão?

b) Já presenciou em sua vivência e convivência familiar e social algum tipo

de opressão? Como se sentiu e reagiu?

c) Por que há opressão e quais fatores podem ser os vetores de tal

conduta?

d) O grau de opressão se intensifica dependendo do gênero

(homem/mulher) da classe social, do grau de escolaridade, ou, não tem

essa relação?

e) Qual é a melhor forma para se combater e tentar atenuar as

conseqüências resultantes da opressão?

Para materializar a histórica opressão feminina segue a apresentação de

um dos minicontos que compõem Contos de amor rasgados, de Marina

Colasanti, para que o leitor possa, ao lê-lo, se antecipar aos meandros que

serão percorridos e desbravados nesta empreitada.

Depois de levantados esses pontos, sugere-se um espaço para que os alunos

coloquem seus posicionamentos e sua percepção de como essas condutas se

instalam e qual é a melhor forma de combatê-la.

Porém, sugere-se que antes de se realizar a leitura do miniconto Para que

ninguém a quisesse da obra Contos de amor rasgados, o leitor se inteire do que

Marina Colasanti comenta sobre a produção dessa obra em sua estada em Uberaba

no dia 5 de abril ao participar do projeto Tim Estado de Minas – Grande Escritores,

no auditório da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro (FMTM). A escritora,

por essa ocasião concedeu uma entrevista exclusiva ao repórter André Azevedo,

gravada na manhã de 5 de abril de 2003 no hotel em que estava hospedada, onde

falou, também, sobre literatura, vida, amor e feminismo.

Disponível em: <http://azevedodafonseca.sites.uol.com.br/0514col1.html> Acesso

em: 20 de mar. 2010.

17

http://azevedodafonseca.sites.uol.com.br/0514col1.html

3. Explorando o título do miniconto: Para que ninguém a quisesse

O título, quer seja de um livro, de um conto, crônica ou de qualquer outro

gênero discursivo, nos sugere e nos faz formular antecipações cognitivas, tais

como: levantamento de hipóteses, criação de expectativas e é pelo título que

o leitor realiza a sua primeira interpretação.

Pensando nisso, que tal explorar e responder a alguns questionamentos:

a) Lendo apenas o título do miniconto, é possível descobrir sobre o que ele

relata?

b) Liste as hipóteses que o título lhe sugere e registre-as, depois leia o

miniconto e verifique se elas se concretizaram. Socialize sua experiência.

4. Leitura

Para que ninguém a quisesse

Porque os homens olhavam demais para a sua mulher, mandou que

descesse a bainha dos vestidos e parasse de se pintar. Apesar disso, sua

beleza chamava a atenção, e ele foi obrigado a exigir que eliminasse os

decotes, jogasse fora os sapatos de saltos altos. Dos armários tirou as roupas

de seda, da gaveta tirou todas as jóias. E vendo que, ainda assim, um ou outro

olhar viril se acendia à passagem dela, pegou a tesoura e tosquiou-lhe os

longos cabelos.

Agora podia viver descansado. Ninguém a olhava duas vezes, homem

nenhum se interessava por ela. Esquiva como um gato, não mais atravessava

praças. E evitava sair.

Tão esquiva se fez, que ele foi deixando de ocupar-se dela, permitindo

que fluísse em silêncio pelos cômodos, mimetizada com os móveis e as

sombras.

Uma fina saudade, porém, começou a alinhavar-se em seus dias. Não

saudade da mulher. Mas do desejo inflamado que tivera por ela.

18

Então lhe trouxe um batom. No outro dia um corte de seda. À noite tirou

do bolso uma rosa de cetim para enfeitar-lhe o que restava dos cabelos.

Mas ela tinha desaprendido a gostar dessas coisas, nem pensava mais

em lhe agradar. Largou o tecido em uma gaveta, esqueceu o batom. E

continuou andando pela casa de vestido de chita, enquanto a rosa desbotava

sobre a cômoda.

5. Análise estrutural

Explorando os elementos da narrativa teça e registre informações, que

se põem depreender do texto, relativas aos seguintes questionamentos:

a) Quais são as personagens da história e como elas são denominadas?

b) Quais são as características das personagens?

c) Onde se passa a história?

d) Qual personagem lhe chamou mais a atenção? Por quê?

e) O narrador também participa da história? Quem narra?

f) Qual foi o conflito inicial?

6. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas

a) Como a mulher é representada nesse miniconto de Colasanti?

b) Em que medida a escritora critica a ideologia patriarcal que oprime a

mulher?

c) Quais os papéis desempenhados por cada uma das personagens do texto?

d) Esses papéis são “naturais” ou construídos? Comente.

e) Pode-se afirmar que nesse miniconto houve a objetificação da mulher? Por

quê?

Fonte: COLASANTI, Marina. Para que ninguém a quisesse. In: Contos de amor

rasgados. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. p. 111-2.

19

f) Retire uma parte do texto em que essa objetificação se apresenta com mais

evidência, com mais força.

7. Produção textual

Depois de ler o miniconto, de elencar as informações depreendidas da

leitura feita, e de tecer algumas reflexões pessoais, reconstrua essa

história mudando o foco narrativo para a primeira pessoa, isto é, seja um

narrador-personagem.

8. Socialização do texto produzido

9. Atividade complementar

Assista ao filme de Steven Spielberg A Cor Púrpura, baseado na história de

Alice Walker, vencedora do Prêmio Pulitzer. Veja a sinopse do filme:

Geórgia, sul dos Estados Unidos, 1906. Violentada por seu próprio pai, Celie

(Woopi Goldberg) torna-se mãe de duas crianças ainda na adolescência. Mal os

filhos nascem e são arrancados da mãe, a mesma acaba sendo doada a Albert

(Danny Glover), por quem continua sendo maltratada e escravizada. Cada vez mais

calada e solitária espera incansavelmente as cartas de sua irmã Nettie (Akosua

Busia), missionária na África, porém elas são interceptadas por Danny. Mas, com

ajuda de pessoas especiais Celie encontrará forças para lutar contra as portas que o

mundo lhe fecha. A Cor púrpura é um drama contundente adaptado para o cinema

por Steven Spielberg a partir da obra da obra da romancista Alice Walker, e marca a

estréia de Whoopi Goldberg no cinema. Não se engane com a distância que a

época do filme e o cenário podem impôr: A Cor púrpura, um filme sobre a vida, o

amor, é na verdade um filme sobre cada um de nós.

Depois dos textos produzidos, os alunos, em grupos de cinco, se reunirão por 15 minutos em um lugar da escola, escolhido pelo grupo, para que sejam feitas as leituras de todos os textos e escolhido o mais interessante, segundo o grupo. Ao retornar, cada grupo lerá o texto selecionado para os demais colegas de sala.

20

Unidade II

E II D

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I

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UNIDADE II

1. Reflexão teórica:

Como a literatura canônica, de até meados do século XX, tem representado a mulher?

Até meados do século XX a maior parte das manifestações culturais

reproduzia o discurso patriarcal e machista, aceito e disseminado como algo

natural. Nele o homem detinha o poder; a mulher e outras minorias eram

marginalizadas.

Sendo assim, é previsível que a literatura, como um dos principais

veículos de edificação da cultura, represente o poder instituído, machista e

patriarcal, sobretudo, a literatura canônica, aquela produzida essencialmente

por homens brancos, influentes e ocidentais. E é essa literatura que é

disseminada pelas grandes editoras, livrarias, revistas e estão presentes nos

livros didáticos e nos currículos escolares. Portanto, há que se considerar que

a quase total ausência de escritoras no cânone literário nacional, até as

primeiras décadas do século XX tem suas raízes na dominação masculina.

Fazer parte da literatura canônica é ter seu discurso aceito, ouvido,

tomado como modelo. Para autorizar essa assertiva é bom lembrar que o

adjetivo “canônica” deriva da palavra grega “kanon” termo este que designava

uma espécie de vara utilizada como instrumento de medida; mais tarde houve

uma evolução semântica do termo para “padrão” ou “modelo”. A primeira

utilização generalizada de cânone data do século IV, quando a igreja cristã

seleciona os textos que comporiam os Livros Sagrados que transmitiriam a

palavra de Deus e desta forma representariam a verdade e a lei que deveria

alicerçar a fé e reger o comportamento de seus seguidores. Após essa

“seleção”, o cânone bíblico torna-se hermético e inalterável. Mas, indica um

modelo a ser seguido, contudo, passível de ser questionado. Nesse sentido,

torna-se claro que um cânone veicula o discurso normativo e dominante num

determinado contexto, teológico ou não.

Quando se transpõe essa concepção e modelo de valor para a literatura,

o discurso por ela veiculado produz e reproduz valores patriarcais, até então

22

tidos e aceitos como verdades universais, mas que merecem ser questionados.

Segundo Bonnici (2007, p. 38),

Desmoronou a doutrina segundo a qual a formação do cânone

literário tem sido estritamente impessoal, objetiva, conforme regras

estéticas independentes. Constatou-se que o cânone é uma

fabricação submetida a limitações sociais, políticas e institucionais.

Atualmente, o esforço da academia internacional, inclusive a

brasileira, está dirigido para redescobrir escritoras oriundas de

diferentes raças e etnias que foram colocadas ao lado principalmente

por serem do sexo feminino. Constatou-se uma regra geral de que o

patriarcalismo, permeando a crítica literária, tendia a anular ou

marginalizar a escrita feminina.

Dentro de uma cultura com esse perfil, é óbvia a marginalização das

mulheres e de outras minorias, que são retratadas de forma depreciativa. Essa

recorrência, muitas vezes, faz com que a maioria acredite, realmente, que a

raça humana é formada por seres superiores e inferiores e, aceitando isso

como verdade absoluta, não perceba toda a manipulação social e cultural que

impera há séculos, mas, que pode ser desconstruída por meio do

conhecimento, da informação.

A literatura foi até há pouco tempo uma atividade exclusivamente

masculina regida por princípios patriarcais e falocêntricos, assim como, nos

períodos medieval, renascentista, barroco e neoclássico era uma atividade

exercida por nobres e religiosos. Desta forma, foram eles que estabeleceram

os conceitos teóricos a respeito da posição da mulher na sociedade.

E, até então, como essa mulher é retratada na literatura brasileira?

Para se buscar respostas a esse questionamento, teria que se visitar a

literatura produzida pelos escritores, aqueles que ganharam visibilidade e

prestígio e que povoam as bibliotecas de todo país. Tomando como exemplos

escritores como José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, Manuel Antônio

de Almeida, Visconde de Taunay e outros, pode-se verificar que a mulher

geralmente, é representada como nascida para o casamento, para dedicar-se

ao lar, ao bem estar de filhos e marido. Há uma idealização da figura feminina

construída pelo imaginário masculino. Esperava-se que as mulheres da

23

sociedade da época se adequassem a esses papéis para não serem

execradas.

Nesse sentido, a mulher era retratada de modo maniqueísta, a partir de

dois extremos, ora como anjo, ora como demônio. A mulher dissimulada,

manipuladora, enigmática, pérfida, perigosa, uma ameaça às instituições

morais e sociais, até então vigentes, povoa e é facilmente encontrada e

reconhecida em romances de Aluísio de Azevedo, Raul Pompéia e,

principalmente, em Machado de Assis.

Já a mulher anjo pode ser facilmente encontrada na ficção do escritor

José de Alencar. No excerto abaixo, retirado de Iracema, romance indianista

pertencente ao Romantismo brasileiro, Alencar retrata a figura feminina de

forma idealizada, estereotipada.

Excerto I

[...]

Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu

Iracema.

Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros

que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira.

O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no

bosque como o seu hálito perfumado.

Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as

matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O

pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra

com as primeiras águas.

[...]

2. Instigando o olhar crítico...

a) No excerto acima predomina a descrição, ou a narração? Comente.

b) Há uma clara idealização dessa personagem. Comprove essa assertiva com

partes do texto e teça argumentos que reforcem e que deem credibilidade à

seleção feita por você.

24

3. Pesquise na internet sobre essa obra e socialize as suas descobertas com a turma. Sugestão de link:

Se no Romantismo as personagens são, geralmente, retratadas como

criaturas dotadas de extrema beleza, e capazes de se doar ao ponto de se

anular como sujeito, isso não ocorre no Realismo. Esse movimento que tem

como marco inicial o ano de 1881, e a obra Memórias Póstumas de Brás

Cubas, de Machado de Assis, inaugura uma outra forma de compor, criar e de

retratar o painel social da época. E quando se fala em Machado de Assis há

que se considerar, aqui, a sua segunda fase, ou seja, a fase de maturidade do

escritor. Não é foco deste trabalho, aprofundar a análise de sua obra, mas,

pode-se observar que Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba,

Dom Casmurro e Esaú e Jacó têm em seu título nomes próprios masculinos;

além disso, são obras que apesar dos protagonistas serem do sexo masculino,

são as mulheres as figuras enigmáticas, emblemáticas que têm em comum o

fato de transgredirem, ou de serem acusadas de transgressão. É bom lembrar

que elas são construídas sob a ótica de um escritor masculino; no caso de

Dom Casmurro, narrada por um narrador masculino, em primeira pessoa,

interessado em provar para si e para o/a leitor/a que sua mulher o traiu com

seu melhor amigo.

4. Instigando o olhar crítico...

a) Capitu traiu ou não traiu Bentinho?

b) E independentemente de se ter, ou não, havido o adultério no clássico

acima, como nossa sociedade lida com esse tema? O adultério tem o mesmo

peso tanto para homens quanto para mulheres?

c) O que mudou do século XIX, época de sua produção, aos nossos dias sobre

a questão do adultério?

d) Apesar de tanto se discutir sobre o fato de se ter ou não havido a traição,

será que o ponto mais relevante seria o adultério, ou os ciúmes de Bentinho?

http://pt.wikipedia.org/wiki/Iracema

http://pt.wikipedia.org/wiki/Iracema

25

Leia os excertos abaixo:

Excerto II: (capítulo XXXII / OLHOS DE RESSACA; P. 218)

[...]

─ Juro! Deixe ver os olhos, Capitu.

Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, “olhos de

cigana oblíqua e dissimulada”. Eu não sabia o que era oblíqua, mas

dissimulada sabia, e queria ver se se podiam chamar assim.

[...]

Excerto III: (CAPÍTULO CI / NO CÉU; p. 301)

[...]

Pois sejamos felizes de uma vez, antes que o leitor pegue em si, morto

de esperar, e vá espairecer em outra parte; casemo-nos. Foi em 1865, uma

tarde de março, por sinal que chovia. Quando chegamos ao alto da Tijuca,

onde era o nosso ninho de noivos, o céu recolheu as nuvens e acendeu as

estrelas, não só as já conhecidas, mas ainda as que serão descobertas daqui a

muitos séculos. Foi grande fineza e não foi a única. São Pedro, que tem as

chaves do céu, abriu-nos as portas dele, fez-nos entrar, e depois de tocar-nos

com o báculo, recitou alguns versículos da sua primeira epístola: “As mulheres

sejam sujeitas a seus maridos... Não seja o adorno delas o enfeite dos cabelos

riçados ou as rendas de ouro, mas o homem que está escondido no coração...

Do mesmo modo vós, maridos, coabitai com elas, tratando-as com honra,

como vasos mais fracos, e herdeiras convosco da graça da vida...”

[...]

Excerto IV: (CAPÍTULO CXXXI / ANTERIOR AO ANTERIOR; p. 330)

[...]

Foi o acaso que a minha vida era outra vez doce e plácida, a banca do

advogado rendia-me bastante, Capitu estava mais bela, Ezequiel ia crescendo.

Começava o ano de 1872.

26

─ Você já reparou que Ezequiel tem nos olhos uma expressão

esquisita? – perguntou-me Capitu. – Só vi duas pessoas assim, um amigo de

papai e Escobar. Olha, Ezequiel; olha firme, assim, vira para o lado de papai,

não precisa revirar os olhos, assim, assim...

Era depois do jantar; estávamos ainda à mesa, Capitu brincava com o

filho, ou ele com ela, ou um com o outro, porque, em verdade, queriam-se

muito, mas é também certo que ele me queria ainda mais a mim. Aproximei-me

de Ezequiel, achei que Capitu tinha razão; eram os olhos de Escobar, mas não

me pareceram esquisitos por isso.

[...]

3. Conheça mais sobre esse clássico da literatura lendo a obra Dom Casmurro ou acessando os links abaixo:

4. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas

a) Como Capitu é retratada nesse romance de Machado de Assis?

b) Ela é construída e retratada sob a ótica de quem?

c) Quando Bentinho resolve narrar sua história, ele o faz à revelia de Capitu,

ou seja, a ela não é dado o direito de voz. O que isso pode sinalizar aos

leitores?

d) O que esse silenciamento tem a ver com a histórica opressão feminina?

e) Ao ler o romance e juntar as suas partes, é possível traçar o perfil de

Bentinho, um homem conservador, inseguro e mimado desde menino que vai

construindo seus conceitos levado sempre pela opinião alheia. Exemplifique

essa assertiva selecionando, para isso, partes dos excertos acima.

f) Que tipo de voz ideológica está presente no excerto III?

<http://www.google.com.br/search?hl=pt-BR&source=hp&q=dom+casmurro&rlz=1W1ADBF_pt-BR&aq=0&aqi=g10&aql=&oq=Dom+&gs_rfai= > <http://www.livroclip.com.br/index.php?acao=hotsite&cod=4>

27

g) De que forma a mulher é estigmatizada nesse mesmo excerto?

Esses e tantos outros são valores que permeiam as relações humanas e

sociais, e que nem sempre são discutidos, repensados. Há muitos valores

morais e éticos que são relativizados, ou seja, ganham pesos diferentes e,

dessa forma, excluem, estigmatizam, pois se moldam conforme o gênero

(homem/mulher), etnia, nacionalidade, credo, orientação sexual...

Por mais que alguns conceitos morais, nesse caso o adultério, tenham

ganhado um discurso novo atualmente, ele não difere muito das concepções

do século XIX. No caso do homem, essa atitude é vista até, com certo mérito,

uma marca de superioridade sobre os outros homens. Por isso divulgam suas

conquistas, quando não as criam para tornar visível sua condição de macho-

dominador. Isso é social. São valores que são disseminados sem os devidos

questionamentos, problematizações e, principalmente, reflexões. Ou seja, a

mesma conduta recebe veredicto e penas diferentes quando é praticada por

um ou por outro gênero.

Depois de conhecer a representação do perfil de uma das personagens

mais polêmicas da obra machadiana, que tal adentrar e conhecer a sua

construção sob a ótica naturalista na obra O cortiço, de Aluísio Azevedo.

Excerto V:

[...]

“Jerônimo levantou-se, quase que maquinalmente, e, seguido por Piedade,

aproximou-se da grande roda que se formara em torno dos dois mulatos. Aí, de

queixo grudado às costas das mãos contra uma cerca do jardim, permaneceu,

sem fugir nem mugir, entregue de corpo e alma àquela cantiga sedutora e

voluptuosa que o enleava e tolhia, como à robusta gameleira brava o cipó

flexível, carinhoso e traiçoeiro.

E viu a Rita Baiana, que fora trocar o vestido por uma saia. Surgir de

ombros e braços nus, para dançar. A lua destoldara-se nesse momento,

envolvendo-a com sua coma de prata, a cujo refulgir os meneios da mestiça

28

melhor se acentuavam, cheios de uma graça irresistível, simples, primitiva, feita

toda de pecado, toda de paraíso, com muito de serpente e muito de mulher”.

[...]

5. Instigando o olhar crítico...

a) Você já leu alguma obra do escritor acima citado? Qual/quais ?

b) Quando você está lendo uma obra literária, se atenta para a existência de

ideologias, de vozes sociais povoando essa obra? Comente.

c) Todo enunciado discursivo vem carregado de outras vozes, sociológicas,

filosóficas, religiosas, midiáticas, etc. que cabe ao leitor/receptor percebê-las.

Qual voz pode-se perceber nitidamente no último período, do excerto V, e

também no excerto III?

d) Qual seria a razão pela qual a cultura patriarcal/machista perdurou sem

muitas contestações por tanto tempo? Comente.

6. Sugestão de endereço eletrônico para se conhecer mais sobre O Cortiço, de Aluísio Azevedo:

http://www.google.com.br/search?hl=pt-BR&source=hp&q=Ocorti%C3%A7o+-

+an%C3%A1lise+cr%C3%ADtica&rlz=1R2ADBF_pt-

BRBR331&aq=f&aqi=&aql=&oq=&gs_rfai=

http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=resumos/docs/cortico

29

Unidade III

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UNIDADE III

1. Reflexão teórica:

O que é feminismo e qual a trajetória do Movimento Feminista no Brasil?

Segundo Bonnici, (2007, p.86) “o feminismo poderá ser definido como

uma crença e convicção na igualdade sexual aclopada ao compromisso de

erradicar qualquer dominação sexista e de transformar a sociedade.” BONNICI,

(2007, p.86).

O termo feminismo começa a ser usado no Brasil por volta de 1905, mas

já era utilizado em alguns países europeus, como França e Inglaterra, desde o

século XIX, por volta de 1890. Por ser um movimento de grande amplitude, e

que ocorreu em muitos lugares, simultaneamente ou não, vem carregado de

ideologias e reivindicações próprias. Porém, todos têm em comum a luta pela

igualdade de direitos entre os sexos.

Esse movimento visa combater o binarismo que divide o mundo em dois,

resultado da cultura patriarcal em que o homem é o dominador e a mulher é a

dominada. Reduzir todas as possibilidades e pluralidades individuais e

situacionais de uma forma tão simplista é no mínimo duvidoso. Portanto, há

que se considerar o feminismo em sua pluralidade, pois as necessidades, a

realidade de uma mulher africana não é a mesma de uma mulher que habita

em qualquer outro lugar do planeta. Esse espírito de embate, de combate aos

conceitos de dominação que são colocados como naturais, e, portanto

indiscutíveis ganham evidência e força e se tornam uma bandeira de luta,

contra qualquer tipo de opressão, de violência.

E, como afirma Wallerstein, (2004, p. 10)

O feminismo vem mostrando um aspecto positivo do pensamento,

um aspecto de reconstrução de um mundo menos violento, menos

agressivo, menos opressor. E tudo isso feito através de um

pensamento ferozmente crítico. O pensamento feminista é um

pensamento crítico na medida em que ele desconfia das coisas que

nos parecem como sendo naturais. Se a junção mulher-corpo é

natural, desconfiemos dela. E ao desconfiarmos dessa naturalidade,

estamos abalando uma estrutura opressora que faz que essa junção

31

pareça natural, pois atende a interesses opressores. O feminismo

aparece assim como um pensamento da diferença que promove a

mudança. Uma crítica que não aceitando sequer que o social ou o

real sejam o limite, reinventa o mundo de formas criativas e

diferentes.

É equivocado pensar que o feminismo é um campo de batalha de

identidade de mulheres contra homens, mas sim o combate a uma ideologia

que apregoa que há vantagem em ser homem. Por si só essa ideologia não se

sustenta e necessita ser investigada, repensada e desconstruída, pois ela

legitima toda a forma de exclusão e de preconceitos construídos sob a ótica de

um modelo patriarcal em relação às mulheres.

Revisitando a trajetória percorrida e construída por feministas brasileiras,

Duarte (2003), com um olhar atento sobre o Movimento Feminista, de avanços,

pausas e recuos, detecta momentos específicos aos quais ela chama de

ondas.

A primeira onda feminista que tem como reivindicação básica o acesso

à cultura, ao conhecimento, ou seja, à educação formal até então reservada

apenas ao sexo masculino. Para uma classe pequena e seleta, o acesso às

letras se restringia a uns poucos conventos ou a aulas nas casas de

professoras. Data de 1827 a primeira legislação autorizando a abertura de

escolas públicas femininas, graças à luta das primeiras pioneiras “feministas”.

Conforme Duarte, (2003, p. 3),

foram aquelas primeiras (e poucas) mulheres que tiveram uma

educação diferenciada, que tomaram para si a tarefa de estender as

benesses do conhecimento às demais companheiras, e abriram

escolas, publicaram livros, enfrentaram a opinião corrente que dizia

que mulher não necessitava saber ler nem escrever.

O nome de destaque desse momento é o da capixaba Nísia Floresta

Brasileira Augusta que tem textos publicados em jornais da época. Ela afirmava

que as desigualdades vêm da educação e circunstâncias da vida, ou seja, ela

preconizava e atribuía a diferença de gêneros a uma construção sociocultural,

portanto, passível de ser desconstruída, alterada.

A segunda onda feminista surge por volta de 1870 com um número

expressivo de jornais e revistas que aderem a esse movimento e publicam as

32

reivindicações favoráveis ao direito ao voto, à educação superior e à

profissionalização feminina.

Segundo Duarte, (2003, p.8),

movida por uma mesma força e idealismo, esta imprensa terminou

por criar – concretamente – uma legítima rede de apoio mútuo e de

intercâmbio intelectual, e por configurar-se como instrumento

indispensável para a conscientização feminina.

Se no final do século XIX são muitas as reivindicações, a primeira

metade do século XX surge com algumas conquistas resultantes da terceira

onda. O governador do Rio Grande do Norte, Juvenal Lamartine, se antecipa

ao governo federal e concede, às mulheres de seu Estado, o direito ao voto em

1927. Isso incita a luta em outros Estados. Em 1929 é eleita a primeira mulher

no Brasil. Isso repercute até no exterior, pois Alzira Soriano será a primeira

prefeita, fato este inédito não só no Brasil, mas também na América do Sul.

Foi necessário esperar mais cinco anos para que esse direito se

estendesse a todos os Estados brasileiros. Somente em 1932 as mulheres de

todo o Brasil conquistam o direito ao voto, mas só poderão exercê-lo em 1945,

pois Getúlio Vargas havia suspendido as eleições durante esse período.

A década de setenta foi marcante. A chamada quarta onda, segundo

Duarte, (2003) revolucionou radicalmente os costumes brasileiros. Temas

polêmicos: tais como, liberdade sexual, aborto, planejamento familiar, controle

da natalidade foram abordados. Naquele momento histórico fez-se necessário

que elas se posicionassem contra a ditadura militar, a censura e lutassem pela

redemocratização do país e pela anistia dos exilados políticos. Foram grandes

os enfrentamentos do feminismo brasileiro contemporâneo naquele período,

pois, além de toda ideologia patriarcal discriminatória tinha também a Ditadura

Militar, ou seja, a liberdade cerceada por duas frentes poderosíssimas. Há um

fervilhar de mobilizações, inquietações, de reivindicações. Em 1975 é instituído,

pela ONU o Ano Internacional da Mulher. Nesse mesmo ano, é fundado, no Rio

de Janeiro, o Centro da Mulher Brasileira, com a participação de diversas

ONGS. Em 1995, há em Beijing a IV Conferência Mundial da Mulher. Tudo isso

contribuiu para dar um pouco mais de visibilidade às questões femininas. Não

só visibilidade, mas novos posicionamentos, mesmo que discretos quanto à

33

violência doméstica e à impunidade masculina, direito à saúde, direitos

reprodutivos, ampliação do quadro de mulheres eleitas em todos os níveis

políticos, a luta por cargos e salários iguais, enfim, igualdade de direitos sem

discriminação de gênero. Todo esse movimento e envolvimento contribuíram

para dar mais equilíbrio à sociedade brasileira, tornando-a menos excludente,

com mais mulheres no poder e nas instâncias de decisão, porém distantes da

situação ideal.

Foi também um período fértil para a literatura em que textos de autoria

feminina invadem as academias e são premiados. Eles estão lado a lado com

obras de autoria masculina disputando o mercado. As piores batalhas, enfim, já

haviam sido travadas a fim de que a literatura de autoria feminina conquistasse

esse espaço.

2. Instigando o olhar crítico...

Debate sobre questões femininas:

a) Até as primeiras décadas do século XIX não havia escolas públicas

femininas e era recorrente a “crença” de que mulheres não necessitavam saber

ler nem escrever (DUARTE, 2003, p.3).

O que você pensa sobre essa “crença”?

Em sua opinião, a quem interessaria disseminar essas ideias?

O fato de as mulheres serem excluídas do acesso à educação formal,

até então, trouxe prejuízos as mesmas? Quais? Comente.

b) É bandeira de luta das feministas da década de setenta, o combate à

violência doméstica contra as mulheres e a impunidade masculina.

Você já presenciou esse tipo de violência? Comente.

Quais fatores contribuem para que esse tipo de prática continue

ocorrendo?

O que fazer diante deste tipo de violência?

Diante das inúmeras violências contra a mulher apresentadas pela

mídia, qual mais lhe chamou atenção? Por quê?

34

c) As estatísticas apontam que as mulheres, de uma forma geral, ganham

menos do que os homens, mesmo exercendo as mesmas funções,

O que você pensa a esse respeito?

O que é necessário para mudar essa concepção?

Apesar de tantos pontos ainda pendentes sobre a igualdade de direitos,

houve muitos avanços e conquistas. Como já se mencionou, a década de

setenta foi um período bastante fértil para a literatura de autoria feminina. E a

conquista desse espaço propiciou condições favoráveis para que escritoras

engajadas às questões femininas pudessem, através da literatura, denunciar

violências impostas à mulher. Violências estas que, quando levadas a

extremos, desrespeitam o direito ao bem maior que é a vida e, muitas vezes

com o silenciamento e a conivência da própria vítima que ao aceitar a

superioridade masculina, como sendo natural, não se opõe aos seus

desmandos. Veja como Colasanti denuncia isso em seu miniconto abaixo:

3. Explorando o título do miniconto: Como se fosse na Índia

.a) Lendo apenas o título do miniconto, é possível descobrir sobre o que ele

relata?

b) Liste as hipóteses que o título lhe sugere e registre-as, depois leia o

miniconto e verifique se elas se concretizaram. Socialize sua experiência.

4. Leitura

Como se fosse na Índia

Quando ele soube que ia morrer, comprou uma serra, um formão, e

durante semanas, com as poucas forças que lhe restaram, empenhou-se em

Depois de levantados esses pontos, abre-se um espaço para que os alunos

coloquem seus posicionamentos e sua percepção de como essas condutas se

instalam e qual é a melhor forma de combatê-la.

35

destruir os móveis do apartamento, reduzindo armários, mesas, cadeiras,

molduras e consoles em cavacos de pau que ordenadamente empilhava no

centro da sala.

A mulher acompanhava o labor, varrendo o entulho, cuidando para que

ele não se cansasse demais, sempre disponíveis na bandeja a xícara de

cafezinho ou o copo d’água. E estando tudo pronto afinal, quando já esgotava o

tempo do homem, subiu ela no alto da pilha, atenta para não derrubar o

cuidadoso arranjo.

Deitada lá em cima, ainda tirou com a mão uma teia de aranha do

lustre. Depois vasculhou o bolso do avental, e estendeu para o marido a caixa

de fósforos.

5. Análise estrutural

Explorando os elementos da narrativa teça e registre informações, que

se pode depreender do texto, relativas aos seguintes questionamentos:

a) Quais são as personagens da história e como elas são denominadas?

b) As personagens são caracterizadas física ou psicologicamente? Como elas

são caracterizadas?

c) Onde se passa a história?

d) Qual personagem lhe chamou mais a atenção? Por quê?

e) O narrador também participa da história? Quem narra?

f) Qual foi o conflito inicial?

g) E o desfecho final?

6. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas

a) Como a mulher é representada nesse texto de Colasanti?

Fonte: COLASANTI, Marina. Como se fosse na Índia. In: Contos de amor

rasgados. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. P.135.

36

b) Em que medida a escritora critica a ideologia patriarcal que oprime a

mulher?

c) Quais os papéis desempenhados por cada uma das personagens do texto?

d) Esses papéis são “naturais” ou construídos? Comente.

e) Pode-se afirmar que neste miniconto houve a objetificação da mulher? Por

quê?

f) Retire uma parte do texto em que essa objetificação se apresenta com mais

evidência, com mais força.

7. Curiosidades:

9. Pesquise:

a) Atualmente ainda perduram essas ações, ou, isso é coisa do passado?

b) Os casamentos arranjados aparecem em alguns romances brasileiros

c)

d)

e)

8. Pesquise:

a) Atualmente ainda perduram essas ações, ou seja, as viúvas ainda são

queimadas junto ao marido morto, ou isso é coisa do passado?

b) Os casamentos arranjados aparecem em alguns romances brasileiros

produzidos no século XIX. Levante informações a esse respeito e traga-as para

a sala.

O miniconto Como se fosse na Índia faz uma analogia à forma extrema de

execração do gênero feminino. Na Índia os corpos vivos das esposas eram

queimados junto na pira funerária de seus maridos mortos em prova de seu amor e

fidelidade. Observe que o oposto não era exigido por essa mesma sociedade.

Percebe-se um dualismo escancarado com atitudes e reações divergentes para a

mesma situação. Lá, uma prática comum é que os casamentos sejam arranjados de

acordo com interesses materiais, ou seja, o marido escolhe a esposa de acordo com

o tamanho do dote que a acompanhará. Além disso, as mulheres já são educadas

para obedecerem tanto pais quanto maridos, pois, depois de casadas só poderão

voltar à casa paterna, mortas.

37

c) Outra prática considerada comum lá, na Índia, era o infanticídio de crianças

do sexo feminino.

Isso ainda ocorre?

Se ocorre, quais as prováveis causas e por que são aceitas?

O que você pensa sobre essas práticas? Argumente.

d) Ideologias histórico-filosóficas como essas atreladas a uma educação

castradora podem ter sido vetores da não visibilidade da voz feminina nos

constructos históricos da humanidade. Comente argumentando e justificando

seu posicionamento.

No estruturalismo, essa divergência entre os gêneros (homem/mulher) é

chamada de binarismo, que segundo BONNICI (2007)

é um dos pontos básicos do estruturalismo, consiste dois termos

mutuamente excludentes, mas hierárquicos: direita/esquerda;

homem/mulher; branco/preto; natureza/cultura. O estruturalismo

mostra que essas oposições são básicas em todos os fenômenos

culturais e que conhecemos um termo porque se refere ao outro

contrastante. Essas premissas foram, contudo, rechaçadas pelos

críticos desconstrucionistas, os quais argumentam que o significado

não é oposicionista tanto quanto os estruturalistas asseriam. Com

referência à posição estruturalista da construção hierárquica no

binarismo, o termo “homem” é considerado positivo e privilegiado,

enquanto o segundo é negativo e subalterno. As feministas utilizaram a

perversidade e a instabilidade dessa posição para mostrar como foi

construído o patriarcalismo e, portanto, o conceito de mulher como

negativo e periférico.

No miniconto, anteriormente analisado, Colasanti desmascara essa

forma, já, historicamente arraigada na maioria das culturas, tanto oriental

quanto ocidental, da supremacia do homem em detrimento da mulher. É como

se as pessoas estivessem em estado letárgico impossibilitadas de questionar

ao ponto de atos como os ali mencionados não causar estranhamento, repúdio.

Nele estão presentes todos os indícios de como a sociedade, e aí

entram todos sem exceção, tem disseminado comportamentos pertinentes e

38

adequados às mulheres e aos homens. Às mulheres está destinado o

casamento, o cuidar da casa, da família, a se submeter às ordens dos homens

sem questionamentos ou restrições.

Apesar do espaço profissional que aos poucos as mulheres vêm

conquistando, resta-lhes, para a grande maioria, a dupla jornada de trabalho,

pois o cuidar da casa e da família continuam concebidos e cristalizados como

tarefa, majoritariamente, feminina.

39

Unidade IV

E IV

D

A

D

I

N

U

40

UNIDADE IV

1. Reflexão teórica:

Mulher Sujeito X Mulher Objeto

O ser humano é um ser de cultura. Ele se constitui no convívio com o

outro. Dentre as espécies vivas, e, especificamente os mamíferos, os bebês

humanos são os mais imaturos e que ficam mais tempo dependentes de seus

ascendentes, tanto de cuidados físicos quanto psicológicos. Portanto, não há

como dissociar os posicionamentos de cada indivíduo (homem/mulher) ao

longo de sua vida, dos papéis sociais imputados a cada um, dependendo de

seu gênero. Isso é social e é muito forte. Romper com estigmas de que a

mulher nasceu para depender do homem, para cuidar da casa, dos filhos e

tantos outros estereótipos, suscitam bastantes esforços. E, dependendo do

contexto e das relações humanas e sociais as quais esse indivíduo vivenciou e

ficou exposto, isso certamente se evidenciará em suas tomadas, ou não, de

decisões ao longo de sua vida. Quando oriundo de um meio social em que não

é aceito em suas singularidades, facilmente se tornará um ser “objeto”, ou seja,

subordinado à vontade e aos mandos alheios, perdendo, dessa forma, a

oportunidade de ser sujeito de sua vida, de suas ações e escolhas.

Vive-se em um mundo globalizado em que a pressão midiática é muito

forte. Por isso, valores morais, éticos, comportamentais por ela disseminados,

são incorporados quase que inconscientemente sem maiores reflexões pela

grande maioria das pessoas. Isso é bastante pernicioso e pode se alastrar de

forma voraz comprometendo as relações humanas quando a tônica é a de se

levar vantagem sempre, e, portanto a exploração, o “uso” do outro acabam

sendo incorporados e aceitos como naturais e sem muita reflexão. Nisso, a

história está repleta de exemplos.

Quando se menciona “ser sujeito”, pode-se abarcar a concepção de ser

como ente, organismo, essência daquilo que se encontra no eu, no interior do

espírito. Porém, é praticamente impossível manter-se a posição de sujeito

tempo integral, entendendo-a como aquele que de posse da mesma age de

acordo com valores inerentes apenas a ele e livre das amarras sociais.

Escolhas, opções nunca são aleatórias, elas estão revestidas e impregnadas

41

de outras vozes que estigmatizam e direcionam o comportamento humano.

Reconhecê-las torna-se essencial para poder reforçá-las, quando construtivas,

e combatê-las quando forem depreciativas e excludentes.

Ao se afirmar que é praticamente impossível manter-se na posição de

sujeito o tempo todo, isso se refere a aquelas pessoas que dizem ter feito suas

próprias opções. Porém, não adianta ser sujeito na hora de escolher se no

contexto essa escolha lhe coloca numa posição de subordinação.

É inconteste a assertiva da objetificação da mulher nas diversas mídias,

principalmente na televisiva. Quando as ações ganham corpo, cor, raça, credo

e tantas outras roupagens, as mesmas ações se revestem de valorações

ambíguas, disformes e preconceituosas dependendo do perfil e do gênero de

quem as praticou.

Segundo BONNICI (2007, p. 192),

A objetificação (lat. Objectum, objeto; facere, fazer) é a maneira pela

qual indivíduos ou grupos de indivíduos tratam os outros como

objetos. É a prática própria da ideologia patriarcal e da ideologia

colonial de tratar o outro (diferente na cor da pele, na raça, na etnia,

na religião, no gênero) como inferior. Portanto, em sociedades

reprimidas o relacionamento entre as pessoas não é visto na base

de reciprocidade, ou seja, sujeito-sujeito (SARTRE, 1943). Na teoria

feminista, os participantes (o homem e a mulher) são hierarquizados

de tal forma que o homem e seu discurso se petrificam como

sujeitos, enquanto a mulher e seu discurso são reduzidos a objeto.

2. Instigando o olhar crítico...

Só para instigar... De que forma a mídia, principalmente a televisiva, tem

representado a mulher em seus anúncios publicitários?

Sugere-se que cada grupo composto por quatro alunos, selecione uma

propaganda em que fique evidenciada a objetificação da mulher; traga-a para a

sala e apresente-a aos colegas utilizando para tanto a TV pendrive, o datashow,

ou o vídeo. Depois de realizados esses passos o grupo desafiará os demais

colegas a encontrarem vestígios da exploração da figura feminina, tendo como

norte os seguintes questionamentos:

42

a) Houve a objetificação da mulher? Caso tenha ocorrido, essa objetificação

aparece de forma implícita ou explícita?

b) De que forma a figura feminina foi objetificada?

c) Há a conivência feminina nesta objetificação? Caso sua resposta seja

afirmativa, essa conivência é universal? Justifique sua afirmação, se possível,

com dados resultantes de pesquisas midiáticas ou de campo.

d) Leia a seguinte assertiva: “O fato do “objeto” ter escolhido ser objeto não

elimina o contexto de objetificação.” Busque ancoragem no quarto parágrafo do

texto acima e relacione-o à propaganda selecionada materializando e

explicitando essa afirmação.

É importante ratificar que essa objetificação quando se cristaliza, ganha

outras proporções e invadem outros segmentos sociais. É bastante comum nos

relacionamentos entre homens e mulheres, aqueles se sentirem e agirem como

se fossem seus proprietários e não parceiros. E desta forma, interferem na

maneira de como elas devem se vestir, se comportar, se relacionar com as

pessoas, onde devem frequentar, enfim, são inúmeras as exigências como se

as mesmas não tivessem vontades próprias. Essa invasão do espaço da

mulher em sua forma de ser, de agir e em suas relações sociais, sugerem que

seus parceiros as consideram como sua propriedade.

Essas concepções foram sendo construídas lentamente e estão

arraigadas no ideário das pessoas. Criar-lhes novas ressignificações é um

processo lento e que demanda tempo, além do envolvimento coletivo. Para

isso se tem que sair da zona de conforto e aceitar o desafio.

3. Explorando o título do miniconto: Ela era sua tarefa

Para melhor tal explorá-lo, responda aos questionamentos abaixo:

a) Lendo apenas o título do miniconto, é possível descobrir sobre o que ele

relata?

b) Liste as hipóteses que o título lhe sugere e registre-as, depois leia o

miniconto e verifique se elas se concretizaram. Socialize sua experiência.

43

4. Leitura

Ela era sua tarefa

Desde sempre, o dia chegando vinha encontrá-lo ali, no começo da

encosta, já empurrando e rolando sua esposa para cima, longo esforço em

direção ao cume.

Desde sempre, resvalando lentamente para a noite, o sol desenhava a

sombra embolada do corpo da mulher que, mal chegada ao alto despencava

novamente pelo flanco do monte.

Desde sempre. Até o momento em que cravando os dentes e agarrando

as unhas nas pedras daquele cimo árido, a mulher contém seu destino. E

erguidas aos poucos as costas, mal equilibrada ainda sobre si, faz-se de pé.

Desaparece quase a luz do sol, o último alento vermelho tinge a mão do

homem. Que se levanta. E firme, empurra a mulher pelas costas, monte

abaixo.

3. Depois de realizada a leitura, responda:

5. Análise estrutural

Explorando os elementos da narrativa teça e registre informações, que

se pode depreender do texto, relativas aos seguintes questionamentos:

a) Quais são as personagens da história e como elas são denominadas?

b) As personagens apresentadas nesse miniconto se fazem conhecer pela

caracterização psicológica apenas. Essa caracterização sofre alterações à

medida que a narrativa avança. De que forma isso se evidencia nesse

miniconto?

c) Onde se passa a história?

d) Qual personagem lhe chamou mais a atenção? Por quê?

Fonte: COLASANTI, Marina. Ela era sua tarefa. In: Contos de amor rasgados.

Rio de Janeiro: Rocco, 1986. P.99.

44

e) O narrador também participa da história? Quem narra?

f) Qual foi o conflito inicial?

g) E o desfecho?

6. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas

a) Em quais parágrafos observa-se nitidamente a objetificação de mulher? O

que há neles que justifique a sua escolha?

b) Em que parágrafo a mulher deixa de ser um ser objeto e torna-se sujeito?

Comprove com partes do texto?

c) Essa conquista foi fácil ou difícil? O que a/o fez chegar a essa conclusão?

d) O que abrevia ou interrompe essa conquista?

e) A atitude tomada pelo marido no último parágrafo era previsível, ou não? Por

quê?

f) Depois de todos esses estudos realizados, o que se pode inferir quanto à

repetição proposital da locução adverbial de tempo: Desde sempre que

aparece no início dos três primeiros parágrafos?

g) O que se pode depreender da expressão que inicia o quarto parágrafo:

Desaparece quase a luz do sol, analisando-a no sentido literal (denotação) e

no sentido figurado (conotação)?

h) Dentro do contexto, explique o significado da última expressão do penúltimo

parágrafo faz-se de pé.

Quem é o sujeito (agente) dessa ação?

Ele representa um sujeito singular ou universal? Por quê?

i) Leia, analise e comente: E firme, empurra a mulher pelas costas, monte

abaixo.

Em nossa cultura o que permeia ideológica e moralmente agir pelas

costas de outra pessoa?

45

A expressão negritada anteriormente, neste contexto, ela se apresenta

em sentido denotativo ou conotativo. Comente.

46

Unidade V

E V

D

A

D

I

N

U

47

UNIDADE V

1. Reflexão teórica:

A trajetória da literatura de autoria feminina e suas principais representantes

Em relação à trajetória da literatura de autoria feminina, Elaine Showalter

(1985), baseada na literatura inglesa, aponta três etapas:

PRIMEIRA FASE

a) Fase de imitação – A esta primeira fase, ela denominou de feminina, pois

percebe-se nessas obras literárias a internalização e a imitação dos valores e

padrões vigentes da ideologia patriarcal, ou seja, as escritoras, ainda sem ter

como referencial o Movimento Feminista, reduplicam em suas obras o sistema

de opressão feminina vivenciado na sociedade da época. Transpondo-a para a

literatura brasileira em que escritoras trazem em seus romances personagens

femininas que refletem os valores vigentes no que tange a valores éticos e

ideológicos da época. São elas: Maria Firmina dos Reis, Úrsula (1859); Júlia

Lopes de Almeida, A Intrusa (1908); Carolina Nabuco, A sucessora (1934).

2. Referência biográfica de Júlia Lopes de Almeida – Representante da primeira fase literária (fase feminina)

JÚLIA LOPES

Fonte:

Júlia Lopes de Almeida nasceu no Rio de Janeiro em 24 de setembro de

1862 e recebeu toda educação formal em sua casa como era comum a

mulheres que faziam parte das classes mais abastadas da época, pois a

grande maioria vivia à margem sem acesso a qualquer tipo de formação mais

http://www.diaadia.pr.gov.br/tvpendrive/arquivos/File/imagens/2010/lingua_portuguesa/julia_lopes.jpg

48

elaborada. Foi com o apoio de seu pai que estreou no jornal Gazeta de

Campinas com apenas 19 anos e foi aprimorar os seus estudos na Europa.

Casou-se com o poeta Felinto de Almeida e voltou a morar no Rio de Janeiro,

onde passou a colaborar em diversos semanários, principalmente em A

Semana. Publica em Lisboa, em 1886 o seu primeiro livro, Traços e Iluminuras.

Considerada como pioneira das letras, teve o reconhecimento em sua

época como escritora e jornalista mulher que circulava entre a elite literária do

século XIX. A sua obra era destinada principalmente ao público feminino, por

retratar a conduta de diversas gerações de mulheres brasileiras, mas debateu

em seus livros temas políticos importantes como a abolição da escravidão, e

também o difícil acesso das mulheres à educação e os limites inerentes aos

papéis de mãe e esposa. José Veríssimo, importante crítico literário da época,

considera suas obras como prosseguimento natural de Machado de Assis e

Aluísio de Azevedo, e pouquíssimas mulheres no período oitocentista tiveram

este privilégio.

Em 1886 lança Livro das noivas e conquista um grupo de leitores fiéis,

grande o suficiente para torná-la um dos poucos literatos - junto com Olavo

Bilac, Coelho Neto e João do Rio - a fazer conferências públicas. Alguns anos

depois, faz a abertura do II Congresso Internacional Feminista, clamando pelo

voto feminino e pelo reconhecimento das mulheres no espaço político e

cultural.

Apesar de todo seu envolvimento com as questões sociais de seu

tempo, ela reduplica os valores patriarcais de sua época em sua produção

literária na qual é visível os papéis femininos que vêm bem demarcados e que

valoriza a mulher dona de casa e que cuida do bem estar do marido e dos

filhos. Dessa forma, ela seria uma autêntica representante da chamada

primeira fase da literatura de autoria feminina, que Elaine Showalter denominou

de “feminina”, em que as obras literárias imitam a ideologia patriarcal, ou seja,

as escritoras, ainda sem ter como referencial o Movimento Feminista,

reduplicam valores pré-existentes sem conseguir transpô-los totalmente.

49

3. Explorando o título do conto: A caolha

O título desse conto, obviamente, lhe sugere e lhe faz formular antecipações

cognitivas. Pensando nisso, que tal explorar e responder a alguns

questionamentos:

a) Lendo apenas o título do conto, é possível descobrir sobre o que ele relata?

b) Liste as hipóteses que o título lhe sugere e registre-as, depois leia o conto e

verifique se elas se concretizaram. Socialize sua experiência.

4. Leitura

A caolha

A caolha era uma mulher magra, alta, macilenta, peito fundo, busto

arqueado, braços compridos, delgados, largos nos cotovelos, grossos nos

pulsos; mãos grandes, ossudas, estragadas pelo reumatismo e pelo trabalho;

unhas grossas, chatas e cinzentas, cabelo crespo, de uma cor indecisa entre o

branco sujo e o louro grisalho, desse cabelo cujo contato parece dever ser

áspero e espinhento; boca descaída, numa expressão de desprezo, pescoço

longo, engelhado, como o pescoço dos urubus; dentes falhos e cariados.

O seu aspecto infundia terror às crianças e repulsão aos adultos; não

tanto pela sua altura e extraordinária magreza, mas porque a desgraçada tinha

um defeito horrível: haviam-lhe extraído o olho esquerdo; a pálpebra descera

mirrada, deixando, contudo, junto ao lacrimal, uma fístula continuamente

porejante.

Era essa pinta amarela sobre o fundo denegrido da olheira, era essa

destilação incessante de pus que a tornava repulsiva aos olhos de toda a

gente.

Morava numa casa pequena, paga pelo filho único, operário numa

oficina de alfaiate; ela lavava a roupa para os hospitais e dava conta de todo o

serviço da casa inclusive cozinha. O filho, enquanto era pequeno, comia os

pobres jantares feitos por ela, às vezes até no mesmo prato; à proporção que

ia crescendo, ia-se-lhe a pouco e pouco manifestando na fisionomia a

50

repugnância por essa comida; até que um dia, tendo já um ordenadozinho,

declarou à mãe que, por conveniência do negócio, passava a comer fora...

Ela fingiu não perceber a verdade, e resignou-se.

Daquele filho vinha-lhe todo o bem e todo o mal.

Que lhe importava o desprezo dos outros, se o seu filho adorado lhe

apagasse com um beijo todas as amarguras da existência?

Um beijo dele era melhor que um dia de sol, era a suprema carícia para

o seu triste coração de mãe! Mas... os beijos foram escasseando também, com

o crescimento do Antonico! Em criança ele apertava-a nos bracinhos e enchia-

lhe a cara de beijos; depois, passou a beijá-la só na face direita, aquela onde

não havia vestígios de doença; agora, limitava-se a beijar-lhe a mão!

Ela compreendia tudo e calava-se.

O filho não sofria menos.

Quando em criança entrou para a escola pública da freguesia,

começaram logo os colegas, que o viam ir e vir com a mãe, a chamá-lo - o filho

da caolha.

Aquilo exasperava-o; respondia sempre.

Os outros riam-se e chacoteavam-no; ele queixava-se aos mestres, os

mestres ralhavam com os discípulos, chegavam mesmo a castigá-los - mas a

alcunha pegou, já não era só na escola que o chamavam assim.

Na rua, muitas vezes, ele ouvia de uma ou de outra janela dizerem: o

filho da caolha! Lá vai o filho da caolha! Lá vem o filho da caolha!

Eram as irmãs dos colegas, meninas novas, inocentes e que,

industriadas pelos irmãos, feriam o coração do pobre Antonico cada vez que o

viam passar!

As quitandeiras, onde iam comprar as goiabas ou as bananas para o

lunch, aprenderam depressa a denominá-lo como os outros e, muitas vezes,

afastando os pequenos que se aglomeravam ao redor delas, diziam,

estendendo uma mancheia de araçás, com piedade e simpatia:

─ Taí, isso é pra o filho da caolha!

O Antonico preferia não receber o presente a ouvi-lo acompanhar de tais

palavras; tanto mais que os outros, com inveja, rompiam a gritar, cantando em

coro, num estribilho já combinado:

─ Filho da caolha, filho da caolha!

51

O Antonico pediu à mãe que o não fosse buscar à escola; e, muito

vermelho, contou-lhe a causa; sempre que o viam aparecer à porta do colégio

os companheiros murmuravam injúrias, piscavam os olhos para o Antonico e

faziam caretas de náuseas!

A caolha suspirou e nunca mais foi buscar o filho.

Aos onze anos o Antonico pediu para sair da escola: levava a brigar com

os condiscípulos, que o intrigavam e malqueriam. Pediu para entrar para uma

oficina de marceneiro. Mas na oficina de marceneiro aprenderam depressa a

chamá-lo o filho da caolha, a humilhá-lo, como no colégio.

Além de tudo, o serviço era pesado e ele começou a ter vertigens e

desmaios. Arranjou então um lugar de caixeiro de venda; os seus ex-colegas

agrupavam-se à porta, insultando-o, e o vendeiro achou prudente mandar o

caixeiro embora, tanto que a rapaziada ia-lhe dando cabo do feijão e do arroz

expostos à porta nos sacos abertos! Era uma contínua saraivada de cereais

sobre o pobre Antonico!

Depois disso passou um tempo em casa, ocioso, magro, amarelo,

deitado pelos cantos, dormindo às moscas, sempre zangado e sempre

bocejante! Evitava sair de dia e nunca, mas nunca, acompanhava a mãe; esta

poupava-o: tinha medo de que o rapaz, num dos desmaios, lhe morresse nos

braços, e por isso nem sequer o repreendia! Aos dezesseis anos, vendo-o mais

forte, pediu e obteve-lhe, a caolha, um lugar numa oficina de alfaiate. A infeliz

mulher contou ao mestre toda a história do filho e suplicou-lhe que não

deixasse os aprendizes humilhá-lo; que os fizesse terem caridade!

Antonico encontrou na oficina uma certa reserva e silêncio da parte dos

companheiros; quando o mestre dizia: Sr. Antonico, ele percebia um sorriso

mal oculto nos lábios dos oficiais; mas a pouco e pouco essa suspeita, ou esse

sorriso, se foi desvanecendo, até que principiou a sentir-se bem ali.

Decorreram alguns anos e chegou a vez de Antonico se apaixonar. Até

aí, numa ou outra pretensão de namoro que ele tivera, encontrara sempre uma

resistência que o desanimava, e que o fazia retroceder sem grandes mágoas.

Agora, porém, a coisa era diversa: ele amava! amava como um louco a linda

moreninha da esquina fronteira, uma rapariguinha adorável, de olhos negros

como veludo e boca fresca como um botão de rosa. O Antonico voltou a ser

assíduo em casa e expandia-se mais carinhosamente com a mãe; um dia, em

52

que viu os olhos da morena fixarem os seus, entrou como um louco no quarto

da caolha e beijou-a mesmo na face esquerda, num transbordamento de

esquecida ternura.

Aquele beijo foi para a infeliz uma inundação de júbilo! Tornara a

encontrar o seu querido filho! - pôs-se a cantar toda a tarde e nessa noite, ao

adormecer, dizia consigo:

─ Sou muito feliz... o meu filho é um anjo!

Entretanto, o Antonico escrevia, num papel fino, a sua declaração de

amor à vizinha. No dia seguinte mandou-lhe cedo a carta. A resposta fez-se

esperar. Durante muitos dias Antonico perdia-se em amarguradas conjeturas.

Ao princípio pensava:

─ "É o pudor". - Depois começou a desconfiar de outra causa; por fim

recebeu uma carta em que a bela moreninha confessava consentir em ser sua

mulher, se ele se separasse completamente da mãe! Vinham explicações

confusas, mal alinhavadas: lembrava a mudança de bairro; ele ali era muito

conhecido por filho da caolha, e bem compreendia que ela não se poderia

sujeitar a ser alcunhada em breve de - nora da caolha, ou coisa semelhante!

O Antonico chorou! Não podia crer que a sua casta e gentil moreninha

tivesse pensamentos tão práticos!

Depois o seu rancor voltou-se para a mãe.

Ela era a causadora de toda a sua desgraça! Aquela mulher perturbara a

sua infância, quebrara-lhe todas as carreiras, e agora o seu mais brilhante

sonho de futuro sumia-se diante dela! Lamentava-se por ter nascido de mulher

tão feia, e resolveu procurar meio de separar-se dela; considerar-se-ia

humilhado continuando sob o mesmo teto; havia de protegê-la de longe, vindo

de vez em quando vê-la à noite, furtivamente...

Salvava assim a responsabilidade de protetor e, ao mesmo tempo,

consagraria à sua amada a felicidade que lhe devia em troca do seu

consentimento e amor...

Passou um dia terrível. À noite, voltando para casa, levava o seu projeto

e a decisão de o expor à mãe.

A velha, agachada à porta do quintal, lavava umas panelas com um trapo

engordurado. O Antonico pensou: "A dizer a verdade eu havia de sujeitar minha

mulher a viver em companhia de... uma tal criatura?". Estas últimas palavras

53

foram arrastadas pelo seu espírito com verdadeira dor. A caolha levantou para

ele o rosto e o Antonico, vendo-lhe o pus na face, disse:

─ Limpe a cara, mãe...

Ela sumiu a cabeça no avental; ele continuou:

─ Afinal nunca me explicou bem a que é devido esse defeito!

─ Foi uma doença - respondeu sufocadamente a mãe, - é melhor não

lembrar isso!

─ E é sempre a sua resposta: é melhor não lembrar isso! Por quê?

─ Porque não vale a pena; nada se remedeia...

─ Bem! Agora escute: trago-lhe uma novidade - o patrão exige que eu vá

dormir na vizinhança da loja... Já aluguei um quarto. A senhora fica aqui e eu

virei todos os dias a saber da sua saúde ou se tem necessidade de alguma

coisa... É por força maior; não temos remédio senão sujeitar-nos!...

Ele, magrinho, curvado pelo hábito de costurar sobre os joelhos, delgado

e amarelo como todos os rapazes criados à sombra das oficinas, onde o

trabalho começa cedo e o serão acaba tarde, tinha lançado naquelas palavras

toda a sua energia, e espreitava agora a mãe com um olho desconfiado e

medroso.

A caolha levantou-se e, fixando o filho com uma expressão terrível,

respondeu com doloroso desdém:

- Embusteiro! O que você tem é vergonha de ser meu filho! Saia! Que eu

também já sinto vergonha de ser mãe de semelhante ingrato!

O rapaz saiu cabisbaixo, humilde, surpreso da atitude que assumira a

mãe, até então sempre paciente e cordata; ia com medo, maquinalmente,

obedecendo à ordem que tão feroz e imperativamente lhe dera a caolha.

Ela acompanhou-o, fechou com estrondo a porta, e vendo-se só,

encostou-se cambaleante à parede do corredor e desabafou em soluços.

O Antonico passou uma tarde e uma noite de angústia.

Na manhã seguinte o seu primeiro desejo foi voltar à casa; mas não teve

coragem; via o rosto colérico da mãe, faces contraídas, lábios adelgaçados

pelo ódio, narinas dilatadas, o olho direito saliente, a penetrar-lhe até o fundo

do coração, o olho esquerdo arrepanhado, murcho - e sujo de pus. Via a sua

atitude altiva, o seu dedo ossudo, de falanges salientes, apontando-lhe com

energia a porta da rua; sentia-lhe ainda o som cavernoso da voz, e o grande

54

fôlego que ela tomara para dizer as verdadeiras e amargas palavras que lhe

atirara no rosto; via toda a cena da véspera e não se animava a arrostar com o

perigo de outra semelhante.

Providencialmente lembrou-se da madrinha, única amiga da caolha, mas

Foi pedir-lhe que interviesse, e contou-lhe sinceramente tudo que houvera.

A madrinha escutou-o comovida; depois disse:

─ Eu previa isso mesmo, quando aconselhava tua mãe a que te dissesse

a verdade inteira; ela não quis, aí está!

Encontraram a caolha a tirar umas nódoas do fraque do filho - queria

mandar-lhe a roupa limpinha. A infeliz arrependera-se das palavras que dissera

e tinha passado toda a noite à janela, esperando que o Antonico voltasse ou

passasse apenas... Via o porvir negro e vazio e já se queixava de si! Quando a

amiga e o filho entraram, ela ficou imóvel: a surpresa e a alegria amarram-lhe

toda a ação.

A madrinha do rapaz começou logo:

─ O teu rapaz foi suplicar-me que te viesse pedir perdão pelo que houve

aqui ontem e eu aproveito a ocasião para, à tua vista, contar-lhe o que já

deverias ter-lhe dito!

─ Cala-te! – murmurou com a voz apagada a caolha.

─ Não me calo! Essa pieguice é que te tem prejudicado! Olha, rapaz,

quem cegou tua mãe foste tu!

O afilhado tornou-se lívido; e ela concluiu:

─ Ah, não tiveste culpa eras muito pequeno quando, um dia, ao almoço,

levantaste na mãozinha um garfo; ela estava distraída, e antes que eu pudesse

evitar a catástrofe, tu enterraste-lho pelo olho esquerdo! Ainda tenho no ouvido

o grito de dor que ela deu!

O Antonico caiu pesadamente de bruços, com um desmaio; a mãe

acercou-se rapidamente dele, murmurando trêmula:

─ Pobre filho! Vês? Era por isto que eu não lhe queria dizer nada!

Fonte: MARICONI, I. Os cem melhores contos do século. Rio de Janeiro: Objetiva,

2001.

55

5. Análise estrutural

Explorando os elementos da narrativa teça e registre informações, que

se pode depreender do texto, relativas aos seguintes questionamentos:

a) Quais são as personagens da história e como elas são denominadas?

b) Ao se omitir o nome próprio da personagem principal deste conto, o que isso

pode sugerir ao leitor?

c) Qual é a personagem principal e como ela é descrita?

d) Essa descrição é, predominantemente, física ou psicológica? Por quê?

e) Ao descrevê-la o narrador emite juízo de valor. Retire as partes descritivas

nas quais isso ocorre.

f) A história se passa em um lugar restrito ou ocorre em diversos espaços

geográficos? Qual(ais)?

g) Qual personagem lhe chamou mais a atenção? Por quê?

h) Sabendo que há dois tipos de narração que são as mais comuns e as mais

exploradas: as em primeira pessoa e as em terceira pessoa. Na narração em

primeira pessoa há um narrador-personagem, ou seja, narra e também faz

parte da história. Já na narração em terceira pessoa o narrador é chamado

de narrador-observador porque apenas observa e relata os fatos sem participar

da história. Diante disso, diga que tipo de narrador o conto apresenta e

justifique sua escolha fazendo os comentários cabíveis.

i) Retire as marcas temporais presentes no texto e que demarcam o avanço

narrativo.

j) Qual foi o conflito inicial?

l) E o desfecho?

6. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas.

a) Como a mulher é representada nesse texto de Júlia Lopes?

b) Em que medida a escritora reduplica em sua obra a ideologia patriarcal até

então vigente?

56

c) A reflexão feita na Unidade II sobre a representatividade da personagem

feminina na literatura canônica que, geralmente a caracteriza, principalmente

no Romantismo e no Realismo, ora como símbolo de perfeição, ora como o

mais sórdido dos seres. De que forma isso se evidencia na construção da

personagem feminina do conto aqui estudado?

d) Pode-se afirmar que nesse conto houve a objetificação da mulher? De que

maneira ela se manifestou no texto?

e) Houve um momento no conto em que a personagem se manifesta contra

essa objetificação. Encontre e retire a parte em que isso ocorre.

f) Depois de ter conhecido um pouco sobre Mulher sujeito X Mulher objeto

(Unidade 4; p. 23), responda:

Pode-se afirmar que a personagem feminina consegue romper com as

barreiras que lhe são impostas tornando-se e mantendo-se sujeito de

suas ações? Por quê?

g) É foco de discussão e de questionamentos a dupla jornada de trabalho de

muitas mulheres. Pois, ao assumir um trabalho formal, fora de casa para

contribuir, ou até mesmo sustentar a família, não deixa de realizar as tarefas de

casa, tidos como femininos.

Isso também ocorre nesse conto. Encontre e retire parte do texto que

comprova a assertiva anterior.

7. Sugestão de vídeo

8. Leitura complementar

Para se conhecer algumas curiosidades e costumes da sociedade carioca do final do século XIX e início do século XX, sugere-se a leitura da crônica de opinião abaixo, de Júlia Lopes de Almeida.

57

O vestuário feminino

É uma esquisitice muito comum entre senhoras intelectuais, envergarem

paletó, colete e colarinho de homem, ao apresentarem-se em público,

procurando confundir-se, no aspecto físico, com os homens, como se lhes não

bastassem as aproximações igualitárias do espírito.

Esse desdém da mulher pela mulher faz pensar que: ou as doutoras

julgam, como os homens, que a mentalidade da mulher é inferior, e que, sendo

elas exceção da grande regra, pertencem mais ao sexo forte, do que do nosso,

fragílimo; ou que isso revela apenas pretensão de despretensão.

Seja o que for, nem a moral nem a estética ganham nada com isso. Ao

contrário; se uma mulher triunfa da má vontade dos homens e das leis, dos

preconceitos do meio e da raça, todas as vezes que for chamada ao seu posto

de trabalho, com tanta dor, tanta esperança, e tanto susto adquirido, deve

ufanar-se em apresentar-se como mulher. Seria isso um desafio?

Não; naturalíssimo pareceria a toda a gente que uma mulher se

apresentasse em público como todas as outras.

Basta ver um jornal feminista para toparmos logo com muitos retratos de

mulheres célebres, cujos paletós, coletes e colarinhos de homem, parece

quererem mostrar ao mundo que esta ali dentro um caráter viril e um espírito

de atrevidos impulsos. Cabelos sacrificados à tesoura, lapelas (sem flor!) de

casacos escuros, saias esguias e murchas, afeiam corpos que a natureza

talhou para os altos destinos da graça e da beleza.

Os colarinhos engomados, as camisas de peito chato, dão às mulheres

uma linha pouco sinuosa, e contrafeita, porque é disfarçada.

Médicas, engenheiras, advogadas, farmacêuticas, escritoras, pintoras,

etc. por amarem e se devotarem às ciências e às artes, porque hão de

desdenhar em absoluto a elegância feminina e procurar nos figurinos dos

homens a expressão da sua individualidade?

Há certas mulheres, precisamos convir, que têm desculpa na adoção

dos murchos trajes masculinos, porque para elas isso não representa uma

questão de estética, mas de incontestável necessidade - as exploradoras, por

exemplo.

58

A essas, as saias impediriam as passadas e os saltos, no labirinto

enredado dos cipoais, entre todos os obstáculos das florestas eriçadas de

espinhos e cortadas de valos a transpor.

As calças grossas e as altas polainas são para elas, portanto, não objeto

de fantasia, mas de comodidade e salvamento. O pano flutuante do vestido

prendê-las-ia de instante a instante aos troncos e às arestas do caminho, e,

quando molhado, pesar-lhes-ia no corpo como chumbo.

Por exigências de comodidade no trabalho, também escultoras e

pintoras se sujeitam muitas vezes a vestirem-se assim e só quando executam

obras de grandes dimensões. As calças facilitam então as subidas e as

descidas de andaimes e de escadas.

Rosa Bonheur, conta-nos um seu biógrafo, surpreendida no atelier pela

notícia de que a imperatriz Eugênia entrava em sua casa para oferecer-lhe a

Legião de Honra, - viu-se atrapalhada para enfiar às pressas os trajes do seu

sexo e poder receber respeitosamente a soberana.

Só de portas a dentro ela abusava dessas entradas por seara alheia,

para usar com liberdade de todos os seus movimentos; mas desde que a

artista era procurada por estranhos, ela aparecia como mulher.

Nas cidades, sobre o asfalto das ruas ou o saibro das alamedas, não

sabe a gente verdadeiramente para que razão apelar, quando vê, cingidas a

corpos femininos, essas toilettes híbridas, compostas de saias de mulher,

coletes e paletós de homem... Nem tampouco é fácil de perceber o motivo por

que, em vez da fita macia, preferem essas senhoras especar o pescoço num

colarinho lustrado a ferro, e duro como um papelão!

9. Análise estrutural

a) Pesquise a concepção de crônica e conto e responda:

Fonte: O vestuário feminino, crônica de opinião, de Júlia Lopes. Disponível em:

<http://www.biblio.com.br/conteudo/JuliaLopesdeAlmeida/mlivrodasdonas.htm>

Acesso em: 01 jul. 2010

59

O texto lido anteriormente O vestuário feminino, de Júlia Lopes,

trata-se de um conto ou de uma crônica? Justifique sua escolha buscando

Indícios de um ou de outro gênero dentro do texto estudado.

10. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas

a) O que se evidencia na escritura de Júlia Lopes que faz com que alguns

críticos literários a considere pertencente a primeira fase da literatura feminina?

b) Transcreva partes do texto em que se evidencia e há o aval explícito à

concepção patriarcalista de que o homem é superior à mulher.

d) Conheça um pouco sobre Rosa Bonheur acessando o link abaixo, e

responda: hhttp://www.lilithgallery.com/arthistory/realism/Rosa-Bonheur.html

Por que ela foi considerada como uma das figuras mais originais

de seu tempo?

Quais as regras do século XIX (1822 – 1899), que ela teve que

transgredir para atingir seus objetivos?

e) Segundo a escritora, como deveria ser a roupa feminina?

Fonte:

Fase de ruptura – A segunda fase, chamada de feminista caracteriza-se

A trajetória da literatura de autoria feminina e suas principais

representantes

SEGUNDA FASE

b) Fase de ruptura – A segunda fase, chamada de feminista caracteriza-se

pela ruptura, pelo caráter de luta, de protesto contra os valores e os padrões

vigentes e em defesa dos direitos e dos valores das minorias. Clarice Lispector,

Rosa Bonheur Disponível em hhttp://www.lilithgallery.com/arthistory/realism/Rosa-

Bonheur.html

O vestuário feminino, crônica de opinião, de Júlia Lopes. Disponível em:

<h ttp://www.biblio.com.br/conteudo/JuliaLopesdeAlmeida/mlivrodasdonas.htm

60

por meio de sua obra, segundo Zolin, (2005) inaugura outra forma de narrar

dentro de um espaço tradicionalmente fechado à mulher. Suas obras trazem

críticas evidentes aos valores patriarcais, tornando visível a repressão feminina

nas práticas sociais. Em muitas de suas obras as personagens femininas estão

enredadas em um ambiente alienante, quando de repente surge algo novo,

inusitado, que faz com que essa personagem reflita de uma forma intensa,

introspectiva e angustiante sobre sua condição humana. Romances e contos

de Lispector com esse perfil: Perto do coração selvagem (1943), Cidade Sitiada

(1949), Laços de família (1960), Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres

(1969). Há também outras escritoras, cujas obras apresentam características

desta fase, são elas: Lya Luft, As parceiras (1980), A asa esquerda do anjo

(1980), Reunião de família (1982), Quarto fechado (1984); Márcia Denser,

Diana caçadora (1986); Sônia Coutinho, Atire em Sofia (1989); Helena Parente

Cunha, A mulher no espelho (1985), As doze cores do vermelho (1988);

Marilene Felinto, Mulheres de Tijucopapo (1987) e Nélida Piñon, A casa da

paixão (1972)

2. Referência biográfica de Clarice Lispector – Representante da segunda fase literária (fase feminista)

CLARICE LISPECTOR

Fonte:

Clarice Lispector chega ao Brasil, muito criança, e sua família se instala

http://www.diaadia.pr.gov.br/tvpendrive/arquivos/File/imagens/2010/lingua_portuguesa/clarice.jpg

61

na região Nordeste do Brasil, onde a escritora vive por onze anos. Depois,

mudam-se para o Rio de Janeiro. Lá, ela ingressa na faculdade de direito.

Estreia como escritora em 1943, com a publicação do romance Perto do

coração selvagem. Em 1946, publica O Lustre, em 1949, A cidade sitiada e

muitos outros. Em 1952 publicou alguns contos. Dentre seus contos os que

mais se destacam são Laços de família e Felicidade Clandestina.

Ela escreve seu livro A hora da estrela, em 1977, ano de sua morte.

Veja também o que Clarice Lispector nos adianta sobre essa produção,

Clarice Lispector surpreende a todos com o seu jeito peculiar de

escrever e de abordar os conflitos humanos, principalmente os femininos.

Numa busca incessante de uma maior compreensão da consciência individual,

cria personagens extremamente introspectivos. Sem se preocupar com a

linearidade da narrativa e com os fatos em si, mas sim o que determinados

fatos podem desencadear no interior da personagem quando ela toma

consciência de sua individualidade, do seu “eu”, esse é sempre um momento

de uma grande desordem interior, de buscas e de anseios.

Para o leitor esses momentos se apresentam de forma bastante

complexa, intercortados, cheios de lacunas que precisam ser preenchidas por

aquele que lê a obra de Clarice Lispector.

Segundo Waldman (1993),

(...) o modo de apreensão artística da realidade se faz a partir de um

centro que é a consciência individual, daí resultam características

tais como o monólogo interior, a digressão, a fragmentação dos

episódios, que caracteriza a ficção moderna em geral, e inclui a

totalidade da obra de Clarice Lispector.

Graças à escolha desse centro, a experiência interior passa para o

primeiro plano da criação literária e com ela a temática da existência.

Ao lado desse tema, a linguagem, a arte e a morte são, em geral, os

Conheça mais detalhes sobre A hora da estrela acessando o link abaixo:

http://www.youtube.com/watch?v=ptCJzf20rbY&feature=related

Veja também o que Clarice Lispector nos adianta sobre essa produção, a qual

denomina de novela nordestina. Esta foi a última entrevista da escritora que neste

ano de 1977 morre afetada por um câncer. Acesse o link abaixo para conhecer a

fala da escritora:

http://www.youtube.com/watch?v=TbZriv5THpA&feature=related

62

acionadores das digressões que retardam a narrativa, instâncias

sempre retomadas com o intuito de atingir uma expressão à altura da

percepção da escritora tem do mundo.

3. Explorando o título do conto: Uma galinha

Através da apresentação do título há a possibilidade de se formular

antecipações cognitivas, tais como: levantamento de hipóteses, criação de

expectativas e, é pelo título que o leitor realiza a sua primeira interpretação.

Pensando nisso, que tal explorar e responder a alguns questionamentos:

a) Lendo apenas o título do conto, é possível descobrir sobre o que ele relata?

b) Liste as hipóteses que o título lhe sugere e registre-as, depois leia o conto e

verifique se elas se concretizaram. Socialize sua experiência.

4. Leitura

Uma galinha

Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove

horas da manhã.

Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não

olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram,

apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou

magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.

Foi, pois, uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo,

inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um

instante ainda vacilou – o tempo da cozinheira dar um grito – e em breve

estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou o

telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A

família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma

chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer

esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de

banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o

telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A

63

perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais

de um quarteirão de rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a

galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum

auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais

íntima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.

Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda,

concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e

enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade, tinha tempo de se refazer

por um momento. E então parecia tão livre.

Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que

é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É

verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria

contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que

havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão

igual como se fora a mesma.

Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz

alcançou. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo

por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa

violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos.

Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo.

Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que

fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o

ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu

coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de

tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e

assistiu tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do

acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:

- Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o

nosso bem!

Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem

parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem

alegre nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum

sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem

64

propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça

de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:

- Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na

minha vida!

– Eu também! Jurou a menina com ardor.

A mãe, cansada, deu de ombros.

Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar

com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem

interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se

lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-

se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e

o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a da apatia e a do

sobressalto.

Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido,

enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga e circulava

pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo,

embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho

susto de sua espécie já mecanizado.

Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha

que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses

momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às

fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora

nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no

descanso, quando deu à luz ou bicando milho – era uma cabeça de galinha, a

mesma que fora desenhada no começo dos séculos.

Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.

5. Sugestões de links para se conhecer comentários autorizados sobre o conto: Uma galinha, de Lispector:

Fonte: Clarice Lispector, Laços de família. Rio, Francisco Alves, 2ª ed., 1961.

Matéria publicada em 01/02/2001 - Edição Número 18

65

6. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas

a) Depois de ler os comentários acima fica mais fácil lançar um novo olhar e

novas possibilidades de leituras desse conto. Considerando-se que a tentativa

de fuga da galinha poderia ser uma metáfora da tentativa da mulher de se livrar

da realidade que a oprime há séculos, relacionando a primeira com a segunda

parte. Enumere-as adequadamente:

Primeira parte

(1) Discurso em que se evidencia a supremacia masculina sobre a feminina.

(2) Discurso que retrata a insegurança da personagem.

(3) Discurso em que faz uma analogia à maternidade e aos cuidados familiares,

como funções ditas nobres por uma cultura machista, e, atribuídas à mulher.

Segunda parte

( ) Um instante ainda vacilou – o tempo da cozinheira dar um grito – e em breve

estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou o

telhado.

( ) Não vitoriosa como seria um galo em fuga.

( ) Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha

mãe habituada.

( ) Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé.

( ) Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista.

( )Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre nem

triste ...

( ) ...em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula,

escolhia com urgência outro rumo.

( ) A galinha tornara-se a rainha da casa.

( ) Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se

fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente.

http://www.artigos.com/artigos/humanas/artes-e-literatura/seria-apenas-uma-

galinha-?-917/artigo/

http://recantodasletras.uol.com.br/teorialiteraria/607511

66

b) Leia o excerto abaixo e responda:

"Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda,

concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e

enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por

um momento. E então parecia tão livre”.

Analisando a expressão sem pai nem mãe, a que semanticamente ela

nos remete literalmente (sentido denotativo) e figurativamente (sentido

conotativo)

E então parecia tão livre. Através dessa assertiva, pode-se depreender

que essa liberdade é real, concreta, ou apenas fictícia? Qual elemento

(palavra) desse período autoriza a sua escolha? Comente.

7. Sugestões de links para que se conheça um pouco mais sobre a grande escritora Clarice Lispector

Assista a última entrevista de Clarice Lispector concedida no mesmo ano de

sua morte (1977), acessando:

(1ª parte da entrevista)

http://www.youtube.com/watch?v=9ad7b6kqyok

(2ª parte)

http://www.youtube.com/watch?v=TvLrJMGlnF4&feature=related

(3ª parte)

http://www.youtube.com/watch?v=ZVwj3pHAi_s&feature=related

(4ª parte) – A Hora da Estrela

http://www.youtube.com/watch?v=ptCJzf20rbY&feature=related

(5ª parte)

http://www.youtube.com/watch?v=TbZriv5THpA&feature=related

(fotos de Clarice)

http://www.youtube.com/watch?v=uUgY8j1FUfU&feature=related

67

1. Reflexão teórica:

A trajetória da literatura de autoria feminina e suas principais

representantes

TERCEIRA FASE

c) Fase da auto-descoberta - A terceira fase, denominada de fêmea ou

mulher (female) é a etapa da auto-descoberta, da busca pela própria

identidade. Nessa terceira fase, pode se dizer que entram as obras publicadas

a partir da década de 1990. No entanto, mesmo a partir desse período, é

comum as escritoras se expressarem em consonância com a postura da

chamada fase feminista, ou seja, fase de protesto e luta contra a opressão da

mulher. Como escritoras e obras representativas desta fase, temos: Nélida

Piñon, A república dos sonhos (1984); Adélia Prado, O homem da mão seca

(1994); Lya Luft, A sentinela (1994), O ponto cego (1999); Patrícia Melo, O

matador (1998), Inferno (2000); Zulmira Ribeiro Tavares, Jóias de família

(1990).

2. Referência biográfica de Zulmira Ribeiro Tavares – Representante da terceira fase literária (fase fêmea ou mulher)

ZULMIRA RIBEIRO TAVARES

Fonte:

TAVARES, Z. R. Cortejo em Abril. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

68

Zulmira Ribeiro Tavares nasceu em São Paulo, em 1930. Além de

colaborações em livros coletivos na área de ficção e não-ficção, publicou

Termos de comparação (Perspectivas, 1974; prêmio Revelação de Literatura

da APCA); O japonês de olhos redondos (Paz e Terra, 1982); O nome do bispo

(Brasiliense, 1985; prêmio Mercedes-Bens de Literatura; traduzido para o

alemão); O madril (Brasieliense, 1988); Jóias de família (Brasiliense, 1990;

prêmio Jabuti de melhor autor e melhor romance; traduzido para o alemão e o

italiano); Café pequeno (Companhia das Letras, 1995), e Cortejo em Abril.

(Companhia das Letras, 1998).

3. Explorando o título do conto: Cortejo em Abril

Para uma melhor reflexão sobre o que se pode depreender desse título,

que tal realizar as seguintes sugestões:

a) Pesquise o significado de cortejo. De posse dessa informação e lendo

apenas o título do conto, é possível descobrir sobre o que ele relata?

b) Liste as hipóteses que o título lhe sugere e registre-as, depois leia o conto e

verifique se elas se concretizaram. Socialize sua experiência.

4. Leitura

Cortejo em Abril

(...) No anfiteatro do Centro de Convenções

Rebouças, em frente ao Instituto do Coração do

Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, o

porta-voz da presidência da República, jornalista

Antônio Britto, anunciou, às 22h30, o falecimento do

presidente Tancredo Neves após uma internação de

39 dias, primeiro no Hospital de Base de Brasília e,

depois, no Instituto do Coração. Assim, José Sarney,

que ontem mesmo decretou hoje feriado nacional,

torna-se presidente da República Federativa do Brasil.

69

O Estado de S. Paulo, edição extra, 22 de abril de

1985. Transcrito por IstoÉ-Senhor, "São Paulo, 110

Anos de Industrialização─1880-1990", Ivan Ângelo

No dia seguinte ao domingo em que morreu Tancredo Neves, o

Consertador de Tudo saiu de casa como sempre para responder a um

chamado. Mas havia pedido à mulher, que atendera o telefonema, para

avisar ao senhor do outro lado da linha que ele ia demorar um pouquinho

porque tinha outro chamado já combinado antes. Mentira. Ele soubera

pelo rádio que o cortejo com o corpo passava pela avenida Brasil, depois

seguiria pela avenida Pedro Álvares Cabral a caminho do aeroporto. Ele

cortaria caminho pelo parque do Ibirapuera e esperaria a passagem do

cortejo. O dia estava limpo, muitas pessoas acorriam de dentro das casas

com a mesma intenção. A mulher pediu para ir também. Nem por

sombras, disse o Consertador de Tudo com autoridade. Tenho cá para

mim que hoje, um dia depois de um homem tão santo ter chegado ao

reino de Deus, é dia de sorte. Vão chover chamados.

O Consertador de Tudo morava numa ruazinha torta atrás da rua

Afonso Brás, para os lados de Vila Uberabinha. Morava na divisa, entre

um lado nobre, Vila Nova Conceição, e o outro lado nobre, Moema. Muita

gente que morava em Vila Uberabinha gostava de dizer que morava em

Moema. Ele conhecia esses macetes das pessoas para subirem na vida e

não culpava ninguém. Ele próprio falava do seu pequeno prédio

encortiçado como ficando "para os lados de Moema". Dobrando-se uma

outra pequena rua que saía da sua, dava-se de cara com o córrego do

Uberabinha, e lá do outro lado com a favela, erguida à margem. Na

margem de cá, e acompanhando-a em parte, havia se formado uma

grande lixeira horizontal, como se a favela explicasse a presença da lixeira

e a justificasse, tirando dos ombros dos habitantes desse lado, afinal seus

provedores, a responsabilidade por sua existência. Todos os moradores

deste lado mostravam o maior desprezo pela lixeira, o córrego, a favela. O

Consertador de Tudo também, mas é verdade que tinha alguns fregueses

na favela, por onde se chegava dando uma larga volta. Muitos deles não

pagavam, outros pagavam em espécie, ele porém insistia que lhe traziam

70

sorte e dizia que depois de atender a um favelado choviam chamados dos

grandes prédios. Já a mulher se apavorava dele entrar na favela; além do

mais, essa história de sorte ela a conhecia bem, levava a parte alguma,

ela pelo menos não saía do lugar, sempre presa ao telefone e de ouvido

atento à porta. Às vezes também os dois, em horas mortas, carregavam

algum lixo mais obstinado, que se negava a entrar nos sacolões de

plástico, lá para a Grande Lixeira. No inverno e em dia sem vento podia-se

esquecer a Grande Lixeira e por conta esqueciam-se também o córrego

do Uberabinha e a favela do Uberabinha. Era só não dobrar a pequena

rua torta que ia desembocar na outra; caminhar exatamente para o lado

oposto, logo ali alguns quarteirões adiante onde grandes prédios se

erguiam. Mas no verão, vindo o vento dos lados de Moema, ao passar

pela favela, arrepiar as águas do córrego e soprar na lixeira, como um

ladrão pé-de-vento deles roubava certo cheiro pestilento com um

misterioso fundo doce. Era então o tempo das moscas de asinhas de arco-

íris e dos pernilongos assobiadores que se encarregavam também de lhe

lembrar que morava bem no centro de Vila Uberabinha.

O Consertador de Tudo de tanto conversar com os moradores dos

altos prédios em Vila Nova Conceição e no Itaim-Bibi tinha adquirido um

jeito especial de abordá-los, muito bonito. Inclinava o corpo um pouco para

o lado e fazia um ar pensativo antes de dar o orçamento. Parecia estar

meditando, voltado muito para dentro de si mesmo, recusando as altas

cifras que lhe sobrevoavam tentadoramente o coração e escolhendo entre

elas a menor, de pouco peso, para oferecê-Ia com deferência ao freguês

ou freguesa. Se ainda assim o freguês ou freguesa simulasse um grande

susto e pusesse em dúvida o orçamento, o Consertador de Tudo tinha,

para essas ocasiões, atitudes e respostas variadas, muitas imponentes.

Diante de um velho fogão, por exemplo, podia olhá-Io então com certa

ternura e compaixão, soltar mesmo um suspiro e, corroborando as

palavras do freguês ou freguesa, dizer que talvez fosse mesmo o caso de

consertá-Io, era de alta qualidade (elogiava sempre indiscriminadamente

tudo o que encontrava pela frente para consertar), marca excepcional e

estava "muito bem conservado", mas era um fogão usado, muito vivido, e

71

quem sabe fosse o caso de comprar um novo, ainda que ele

pessoalmente, pela experiência que tinha no assunto, não dava dois

tostões de mel coado por essas engenhocas novas, coloridas, cheias de

botões, mas sem tutano, sem ossatura, e que com uma leve sacudidela

se desmontavam. Porém se apesar disso o Consertador de Tudo perdia a

visita porque o freguês se mostrava estupidamente teimoso, mesmo

assim não se abalava e apresentava um ar tão ou mais amável do que

quando entrara. Dizia que não era seu costume cobrar a visita, não lhe

deviam nada, despedia-se sem mostrar rancor e pedia apenas licença

para antes de sair lavar as mãos. O que perdia aqui, ganhava ali, e não

baixava o nível.

A mulher lhe deu antes de partir mais uma dose de café forte que ele

nunca recusava. Fumou dois cigarros, um atrás do outro, pegou sua

maleta de trabalho e partiu. Era um homem magro, entre trinta e cinco e

quarenta anos, mas talvez tivesse entre quarenta e cinco e cinqüenta, ou

mais, não se sabia ao certo, dependia um pouco do ângulo e da distância

de que o olhassem, era um pouco parecido com aquelas regiões: ora

mais novo e desempenado como o prédio que subia à esquerda, ora, se

encarado bem de perto, mostrava trazer no rosto um maceramento de

coloração escura e irregular, e mesmo a postura adquiria certo ar de coisa

desabante mas que fica, a forma incerta dos barracos do outro lado do

córrego.

Claro que havia um exagero naquilo dele consertar tudo. Mas sabia

lidar com fogões, máquinas de lavar, de escrever, trocar torneiras. Tinha a

mão, o dom para fazer as coisas quebradas funcionarem de novo, como

se dizia na vizinhança.

Quando saiu de casa sentiu que apesar do dia limpo o vento lhe trazia

aquele cheiro duvidoso da Grande Lixeira, com um misterioso fundo doce.

Pensou então no Santo Homem sendo levado do Instituto do Coração

para o aeroporto de Congonhas, deixou de vê-lo reinando entre os anjos

para pensá-lo destinado à terra, com a qual aos poucos iria se

assemelhar, e nela se perder, sentiu certa angústia envergonhada.

72

Na véspera, no domingo, dia da morte de Tiradentes, o Consertador

de Tudo, tomando a sua cerveja à noite, havia tido uma sensação

medonha como disse à mulher depois, quando aquele homem bonito e

moreno, olhando fundo nos olhos dele de dentro da televisão, tinha dado a

notícia; com muito respeito e sem fazer bulha. Grande novidade ela não

era, era de espantar então que produzisse espanto daquela forma como

se fosse a notícia menos esperada do Brasil. A mulher começou a chorar

loucamente e ele mesmo tão fora do sério ficou que se abrisse a boca não

responderia por si, foi procurar café na cozinha.

Pensou então com rapidez vertiginosa nas mil vezes em que tinha

visto o Santo Homem na televisão. Primeiro nem dera muito por ele. Era

baixinho, meio corcunda, barrigudo, tinha olheiras fundas, careca. Depois,

como aparecia cada vez mais, começou a prestar mais atenção. Era

impressionante como não se atrapalhava com as palavras, os repórteres

podiam perguntar qualquer coisa, qualquer coisa do mundo que ele assim

que a pergunta terminava começava a resposta; as respostas saíam de

sua boquinha engraçada, sem se atropelarem, sem atraso, sem erro, sem

engano, uma após outra, uma após outra, uma após outra. Depois,

quando o Santo Homem caiu doente foi aquilo que se viu. Na televisão

entrava médico, filho, político, o próprio homem sorrindo, o próprio

homem de antes da doença, o homem na doença sentado num sofá ao

lado da mulher e do médico, posando para uma foto com jeito de foto de

família. Ele trazia um sorriso meio vago e idiota, assim pareceu quando a

foto começou a repinicar na televisão e nos jornais. Depois se entendeu:

era santidade pura. E vieram as entrevistas de muito antes, de quando o

Santo Homem ainda não estava no Instituto do Coração e ninguém sabia

da sua santidade. E ele dizia coisas que o Consertador de Tudo ouvia

com muita, muita atenção, para aprender e fazer igual. De onde lhe vinha

tanta saúde? E o Santo Homem respondia: tenho por hábito depois do

banho tomar uma ducha gelada. Alimenta-se bem? E o Santo Homem

dizia sim e falava de uma certa farofinha, um certo tutu de feijão, coisas

que apreciava muito. Médico só o seu, antigo, de confiança, que visitava

vez por outra mais para dar notícia da saúde, quando aproveitava para

73

comentar algum incômodo antigo, sem importância, também de

confiança. E a televisão mostrava de novo o Santo Homem andando por

toda parte do mundo, conversando com os grandes, os grandes eram

grandes também no tamanho, mas o Santo Homem lhes passava por

entre as pernas com desembaraço, mal erguia a cabeça, parecia como

sempre estar procurando um alfinete ou fósforo perdido no chão, e dizia

coisas sem cessar para os grandes com aquela sua boquinha engraçada,

e sorria de um jeito só seu, e os grandes e abismavam. Grandes Bobos

eram o que eram.

O momento em que o Santo Homem começou a morrer não se sabia

ao certo. As televisões, os jornais, fuxicavam que ele já estava começando

a morrer quando conversava com os Grandes Bobos. Quando tomava sua

ducha gelada, comia sua farofinha, seu tutu de feijão. Que absurdo diziam

outros: ele só começou a morrer quando se sentou para aquela foto

estapafúrdia com aquele sorriso esquisito que não se sabia ainda que era

santidade. Os repórteres contaram que presos nele e bem escondidos

atrás do sofá havia muitos fios fazendo o seu sangue correr por dentro do

corpo, seu coração bater, suas águas não fugirem para fora. No tempo em

que ele não parava de falar (e como falava bem!) ele sempre olhava para

o chão como se procurasse um alfinete ou fósforo perdido, mas naquela

foto ele estava mudo - não mudo como as pessoas são obrigadas a ficar

nas fotos -, mas diferente, já não olhava para o chão, olhava para a frente

com aquele ar, meu Deus do Céu, aquele ar! Olhava para fora da vida e

naturalmente mesmo de dentro da foto tinha se calado para escutar e

enxergar o lado de fora da vida, que era diferente de tudo o que se podia

imaginar.

Um dia, numa das muitas vezes em que o Santo Homem saía e

voltava a entrar na sala de cirurgia de maca, disseram que ele havia

falado a alguém segurando-lhe a mão (mão de repórter, na certa, tinha

observado a mulher do Consertador, mas este não estava assim tão

seguro): eu não merecia isso. E agora, hoje, lembrando a frase, o

Consertador de Tudo reconhecia que mesmo um homem santo tem seus

74

limites. Que ninguém é de ferro. E seu coração se apertou.

Ele corria como podia na direção do Ibirapuera, muita gente ia junto,

seu coração estava apertado de dor e sua boca amarga com gosto de

cigarro velho, acendeu dois cigarros, um depois do outro para tirar o

gosto, não largava a maleta e estava com medo de perder a hora. Se

embarafustou por um dos portões do Ibirapuera ao lado da República do

Líbano e continuou apressado.

Ali atrás de um matinho de bambus ele escutou um barulho. Deu uma

ligeira parada já sem fôlego e espiou entre os bambus. No chão, sobre a

grama, um casal se amassava de uma maneira particular, como se

fossem duas almofadas viventes, dois bonecos de ar e de plástico vendo

qual estourava o outro primeiro; sem nem por um momento deixar de

bater firme, mexiam-se com incalculável leveza de lá para cá. Ele ficou um

pouco tonto, esqueceu naquele instante o que fazia no meio do parque

num feriado nacional com a maleta de serviço na mão. Depois, a sua

alavanca lá embaixo no meio das pernas deu um pequeno salto como se

quisesse avançar por conta própria, mas ir em direção a quê? Ficou muito

alegre de repente e mais ainda sem fôlego, seus dois ovos cantarolavam,

só que não era hora de fazerem nenhum omelete, ah seus pivetes, seus

malandrinhos! Dois pares de olhos rancorosos o estavam espiando de

volta lá do chão. Ao redor, ficara tudo agora tão quieto, até demais, as

folhas de grama e de mato por ali, espetadinhas e alertas como pequenas

criaturas verdes à escuta, à espera de que a função continuasse. Ele

recuou, quase caiu, virou-se num repelão e retomou a direção da avenida

Pedro Álvares Cabral, para os lados do obelisco aos Mortos de 32, da

Assembléia Legislativa, do Departamento de Trânsito, por onde iria passar

o cortejo levando o corpo de Tancredo Neves para o aeroporto, que

destino, pensou impressionado.

O povo achava-se apinhado e se acotovelando perto do meio-fio,

separado da avenida por cordões, e eis que o cortejo já apontava ao

longe na avenida Brasil. Ele foi se embarafustando, abriu caminho com o

seu corpo magro e conseguiu chegar perto dos cordões. Lá vinham!

75

Todas as cabeças estavam voltadas para aquele lado. Vinha gente a pé e

gente de carro portando faixas, bandeiras. Passou um caminhão com

faixas enormes que iam de ponta a ponta do veículo, as pessoas de pé e

de braços abertos traziam os queixos erguidos, olhavam adiante algum

ponto perdido entre o céu e a avenida. O cortejo agora avançava

lentamente, quase parava, o carro fúnebre com a bandeira brasileira por

cima veio vindo, chegou, foi passando. Mas o automóvel logo a seguir,

com homens de ternos e gravatas escuros atrás dos vidros erguidos até

em cima, foi que chamou a atenção do Consertador de Tudo. Olhavam de

olhos arregalados para o povo apinhado no parque. Não faziam qualquer

movimento, só o automóvel lentamente se movimentava levando-os,

todos de escuro, os pescoços torcidos para o lado do parque onde a

multidão era maior. O Consertador de Tudo lembrou-se de quando uma

vez havia ido passear no Simba Safári no jipe de um feirante amigo e

tinha sido assim. Eles dois haviam se fechado no jipe que se deslocava

muito devagar e a todo momento tinham a impressão de que os leões

sentados preguiçosamente na relva, soltando longos bocejos, iriam se

levantar e dar taponas nos vidros. Esperavam por isso. Mas havia leões

que até dormiam e outros que lhes davam o traseiro abanando-lhes a

cauda com desinteresse. Não que aqueles entre os quais se encontrava,

acotovelando-se à passagem do cortejo, lembrassem leões dorminhocos.

Pareciam antes macacos espertos, cada um cavando o melhor lugar para

si. Nem ele e o amigo do jipe estavam naquele dia do Simba Safári de

gravata e ternos escuros. Traziam camisas floridas abertas até quase a

barriga e tomavam pausadamente em pequenos goles a cerveja gelada de

lata. Mas o Consertador de Tudo lembrava-se de como olhavam para fora

do jipe de um jeito que deveria ser igual ao daqueles homens de escuro

com os olhos grudados nos que se amontoavam no meio-fio. O cortejo

percorreu a avenida Pedro Álvares Cabral tomando o rumo da avenida

Rubem Berta. O povo dispersava-se aos poucos, o Consertador de Tudo

olhou o relógio e foi caminhando de volta pelo parque na direção de seu

compromisso em um prédio de Vila Nova Conceição. Impressionante,

não? Comentou uma mulher velhusca ao lado. As pessoas falavam umas

com as outras, ele seguia ao lado da mulher, ela lhe disse, nunca vai ter

76

outro homem assim. Ele concordou com um aceno, sorriam agora um para

o outro mas a todo momento sacudiam desconsoladamente a cabeça

espantando o sorriso para mais adiante voltarem a sorrir, era uma mulher

gordinha, de tailleur azul-marinho e cabelos brancos com tintura azul, uma

mulher com a qual ele nunca pudera imaginar que haveria de estar

passeando pelo Ibirapuera, conversando, ela devia ter saído de um dos

casarões da própria avenida, era do tipo de mulher que o Consertador de

Tudo encontrava muito quando ia a serviço e que costumava ficar do seu

lado, calada, só apontando com o dedo o defeito, o quebrado. Sabe, lhe

disse a mulher, ele devia era ser enterrado aqui, em São Paulo. Mas era

mineiro! lembrou o Tudo. Nem por um instante esqueci o fato, disse a

mulher, mas foi aqui em São Paulo que sofreu o martírio! - Isso foi, disse o

Consertador, e agora está indo para Minas. Não agora, falou a mulher, e

chegou bem perto dele: vai antes para Brasília, onde tudo começou! Acho

ridículo, disse o Consertador de Tudo com um à vontade que mesmo a ele

espantava, passar por Brasília antes, é como um amigo meu que faz

trabalho externo na Prefeitura mas tem de ir todo dia na repartição assinar

o ponto; passar por Brasília só para lembrar que era presidente? - Quase

presidente, divergiu a mulher do cabelo quase azul. - Se é para ir para

Minas, por que não vai então de uma vez? É a casa dele!, teimou o

Consertador de Tudo. - Antes ficasse aqui, suspirou a mulher. O senhor

viu esse nosso povo que educação, como respeitou a passagem do

cortejo? É, concordou o Consertador, só choravam. - E eu também não

chorei? disse a mulher. Veja os meus olhos. O Consertador de Tudo olhou

bem de perto o rosto da mulher com o seu cabelo meio azul puxado para

o alto e afirmou com segurança, a senhora chorou, estou vendo. Pois se

não faço outra coisa há duas semanas, e ontem então. Os dois

continuavam pela grama do parque, o Conserta dor de Tudo diminuía o

passo para a mulher não ficar atrás e ela acelerava o seu. Ele sentia pela

mulher uma amizade tão grande, mais forte do que sentira tempos atrás

pelo amigo feirante dono do jipe. Era como se ele e ela conhecessem tudo

sobre o Santo Homem, e quando diziam, o Tancredo, por que o Tancredo,

sabiam muito bem do que falavam. Despediram-se. A mulher ainda

repetiu, ele devia ser enterrado em São Paulo, no cemitério da

77

Consolação onde está enterrada a marquesa de Santos, depois de tanto

sofrimento merecia; quando chegar em Minas vai ser um deus-nos-acuda

porque o povo de lá assistiu ao martírio de longe, não vão se contentar em

chorar, pode até sair gente pisoteada, amassada, ouça o que eu digo. O

Consertador de Tudo pensou no que vira atrás do pequeno bambual ainda

há pouco, distraiu-se nas lembranças. Bem, vou indo, repetiu a mulher,

bom dia para o senhor. Estou desesperado! gritou-lhe o Consertador de

Tudo do seu jeito rouco de quem sempre gritou para dentro e jogou para

dentro do coração muito fumo, como se a quisesse segurar um pouco

mais ao seu lado conversando sobre o Santo Homem. Não se desespere!

respondeu-lhe a mulher já se afastando, a voz apertada de quem tira

rapidamente lições do mundo cortando-o com os dentes em tiras finas e

as devolvendo em seguida com rapidez ao próprio mundo. Foi a vontade

de Deus!

O Consertador de Tudo atravessou a avenida República do Líbano de

volta e foi caminhando por ali atrás do número que procurava. Parou

diante de um prédio comprido, circular e estreito como uma chaminé, de

tijolos entre rosa e ocre, com muitos vidros esfumados. Mas já há muito

ele não mais se espantava com esses prédios que não pareciam prédios e

com certas casas que pareciam navios. O senhor demorou, disse o moço

ao lhe abrir a porta, e foi fechar a tevê. Tinha barba e cabelos

encaracolados e usava uns minúsculos óculos sem aros, perfeitamente

redondos. -Minha patroa não lhe avisou que eu tinha um outro chamado

antes? estranhou o Consertador de Tudo, entrando, pisando com gosto no

tapete macio. É, disse o moço, mas assim mesmo cheguei a pensar que

não vinha mais, o senhor veio a pé? - A bicicleta estava tendo problema

na direção por isso ficou em casa mas costumo circular nela por aí, e

disse circular desenhando círculos com a mão no ar, de um jeito que

levava alguém a pensar antes num artista de circo, num malabarista, ou

em um dos freqüentadores do parque do Ibirapuera, entretidos em

exercitar cabriolas perigosas e proibidas; tanto que o moço comentou: É

um esporte ótimo para o equilíbrio e a musculatura das pernas. E ainda

disse: Eu não ia incomodá-Io em um dia de feriado nacional (que dia,

78

abanou a cabeça o Consertador de Tudo), mas me contaram que para o

senhor não existia nem domingo nem dia santo; que o senhor é incrível,

conserta tudo que se põe na sua frente. Bem, comentou o Tudo: tudo,

tudo... não vamos exagerar. Bom, disse o moço, de qualquer forma acho

que não é tão complicado assim. A minha Olivetti quebrou no meio de

uma redação, sempre é o mesmo defeito, o espaçamento não funciona, o

rolo não gira, e quando mando para o Serviço Autorizado eles devolvem

só depois de duas semanas, fazem o diabo com ela, inventam serviços

que eu não pedi e no fim falam sempre no Tirante da Entrelinha. Ora, ora,

acalmou-o o Consertador, uma limpeza vez por outra não acho ruim,

agora exageros não são comigo. O senhor usa muito a máquina? Sou

arquiteto, disse o moço, mas escrevo também artigos sobre arquitetura, a

vida na cidade, dou aulas, e tudo o que escrevo é com essa máquina. Oh,

disse o Consertador de Tudo, então esse prédio é do senhor? Fui eu que

o projetei mas não é meu. Muito, muito bonito, elogiou o Consertador de

Tudo, muito bonito e muito moderno; diferente dos outros; quero dizer,

diferente de uns, parecido com outros. Ótimo, disse o Arquiteto com uma

ponta de irritação na voz, mas logo se corrigiu e comentou com

urbanidade (à medida que ia limpando a sua mesa de trabalho, retirando

livros e papéis, para o Consertador poder começar o serviço): enquanto

esperava o senhor chegar procurei verificar se dava para ver daquela

janela o cortejo passar mas acabei abrindo a televisão, da televisão

sempre se enxerga do melhor ângulo. E quando terminou a frase, pelo

olhar do Consertador, que deu um passo à frente como se fosse falar, e

outro atrás, como se tivesse se arrependido, o Arquiteto entendeu que

ele, Consertador, tinha estado vendo passar o corpo de Tancredo Neves

para fora de São Paulo, ao vivo. Ficou desconfiado, pensou por sua vez o

Consertador de Tudo. Não gostava de começar um conserto debaixo da

desconfiança do freguês, fosse de qual tipo fosse a desconfiança, e foi

sua a vez de sentir uma ponta de irritação mas logo se corrigiu: o senhor

mora aqui sozinho? Daqui a duas semanas me caso, revelou o Arquiteto

sorrindo, mas até lá... , minha diarista também não veio, hoje estou só,

não a culpo, a morte do Tancredo, deve ter sido isso, e olhou nos olhos

do Consertador de Tudo para ver se ele abria o jogo, mas o homem ficou

79

pensativo, a morte do Tancredo; e pelo seu rosto macerado, de diversos

tons sombrios, abateu-se um novo tom escuro cobrindo os demais, como

a breve sombra de uma asa de avião varrendo a terra quando o avião

corre baixo no céu sob o sol, abrigando por vezes um morto entre os

vivos; como aquele que em Congonhas iria levantar-se do chão com o

corpo do Santo Homem, sob o barulho ensurdecedor das turbinas,

apontando com a grande face metálica voltada para o sol- o Reino de

Deus.

O Consertador de Tudo começou com segurança a desmontar a

máquina, envolto numa nuvem de fumaça de cigarro. O arquiteto apoiou o

cotovelo na janela e ficou olhando para fora, um pouco para deixá-lo à

vontade, um pouco para respirar o ar limpo de abril, nesse dia de um luto

claro de feriado nacional. Por vezes volvia levemente o rosto procurando

fisgar com o canto do olho como estaria indo o serviço e então a luz de

fora, batendo-lhe nos óculos, virava-os em duas lágrimas graúdas,

refulgentes, perfeitamente redondas, não lhes desciam pela face nem

secavam. Se acontecia de o Consertador de Tudo voltar-se para a janela

em um daqueles momentos, seus olhos batiam então em cheio nos dois

pontos de luz suspensos de cada lado do nariz do Arquiteto. Se os fosse

tocar com as mãos sujas de graxa tinha a certeza de que lhe

desmanchariam nos dedos em água e sal. Os seus próprios olhos

ardiam de fumo mas não só de fumo e pensar que o Santo Homem teria

de bater ponto em Brasília antes de ir para os braços dos seus; longe,

onde havia de estar uma mulher muito fina, também no falar, que iria

olhar para baixo do alto, de uma das janelas mineiras, e exortar a

multidão a ter muita calma: Meus filhos! Cuidado! - Diria também a

intervalos: Tancredo! Tancredo! - O enterro será na sua terra natal, uma

cidade histórica, lhe estava informando o Arquiteto e começou a recitar,

com a voz um pouco fanhosa, as histórias e os tesouros de São João deI

Rei, quando, tendo-lhe o rosto se voltado inteiramente para dentro da

sala, as duas lágrimas nele se apagaram quietamente. Mas o

Consertador de Tudo apenas via a mulher, Risoleta, enfeitada e

sofredora à janela de um segundo andar, ele já a conhecia da televisão,

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vira-a muitas vezes nos últimos tempos portando enormes óculos de sol,

lembrava-se particularmente dela em uma missa repleta de autoridades,

pouco antes do dia marcado para a posse, quando o Santo Homem a

seu lado (e sem que ela desse conta do fato), com a cabeça muito

abaixada - pensara-se então que para melhor se devotar (disfarçando

modestamente os altos pensamentos) às intrincadas causas brasileiras e

às de Deus -, havia, com as mãos cruzadas na frente, segurado

cautelosamente a barriga. Sabia-se agora que a morte, como uma

ratazana pestilenta, já ali se escondia, refugiando-se do esplendor da

nave.

A campainha da porta soou às costas do Tudo mas este mostrou o

seu empenho no serviço permanecendo do mesmo jeito; firme na cadeira

só tinha olhos e mãos para a máquina. O Arquiteto atravessou a sala num

passinho rápido e ao abrir a porta o Consertador o escutou dizer: ah, é

você! - Uma voz forte de homem comentou: também aproveitando o seu

feriado, heim? Estou vendo - e depois: obrigado pelo livro, voltou inteiro,

verifique você mesmo; e que belas fotos e croquis! Invejo a sua profissão

de artista. - Pelo amor de Deus! exclamou o Arquiteto, ontem expliquei

que não tinha pressa nenhuma e hoje você já o traz de volta! Não quer

entrar um pouco então? Não fique aí parado na porta, estou com uma

pessoa consertando a minha Olivetti, vamos entrar... - À palavra "uma

pessoa" o Consertador nem assim se deu por achado e continuou firme de

costas. Outra vez, outra vez, resmungou a voz forte, outra hora. (Se não

fosse eu estar aqui com certeza entrava, pensou o Consertador com uma

ponta de orgulho. Ora! Que volte outra vez mesmo.) Porém, quando a voz

forte tornou a falar não era ainda para se despedir, dizia, soube pelo

zelador que você casa este mês, terá ele se enganado? Não, não se

enganou, respondeu o Arquiteto. Pergunto não é por nada - esclareceu a

voz - quer dizer, nada de importância, é porque talvez você vá precisar de

uma empregada fixa agora, e estou justamente com uma que é muito

amiga da empregada de minha sogra, pessoa de toda a confiança, você

pode pegar tranqüilo (jogando conversa fora, pensou o Consertador de

Tudo, não respeita o sossego dos vizinhos; tal qual prosa de portão de

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Vila Uberabinha; e num prédio do porte deste!), isto é, se não se importa

de pegar pretas, como diria minha sogra. - Me caso com uma, respondeu

brevemente o Arquiteto. Como assim? fraquejou a voz forte - e depois de

uma pausa prolongada: se entendi bem sua noiva se emprega em uma

empresa, é empregada de, de... , uma empregada de... Não uma

empregada. Uma preta. Me caso com uma. - Aaahhh - e em seguida a

outra pausa prolongada: uma de nossas belas morenas... -Moreno sou

eu, moreno é você, moreno é aquele ali (mas o Consertador de Tudo,

com o seu rosto sombrio de coloração irregular abaixado para a máquina,

nem assim mudou de posição); uma preta, estou dizendo. Sem pinga de

sangue branco. Chega daqui a duas semanas, e então vamos decidir as

coisas da casa. Vem da África. - Da África vem! - a voz parecia falar solta,

desassistida da garganta. - Sim, da África do Sul, estudou sociologia na

moita, você conhece as coisas como são por lá. Ela é do grupo do Nelson

Mandela, na prisão há séculos, luta para a sua libertação, sabe de quem

se trata. Siiimmm... hesitou a voz. - Aliás, continuou o Arquiteto, um preto

que é tudo menos preto, mulato claro, o que quiserem; nem por estar

sofrendo cativeiro eterno, pretejou; preto é o pai de minha noiva, esse

sim, a mãe, essa sim, a irmã, o irmãozinho, esses sim (e olhe que são de

um povo de língua banto que não é lá essas coisas em matéria de

pretura...), para não esticar, uma família de pretos; numerosa. Mas por

que fica aí parado de pé na porta, não entra de uma vez Rodolfo? intimou

o Arquiteto, diante do quê, a voz nomeada, tão forte de início, fraquejou

mais fundo e repetiu oscilando: outra hora, outra hora. - Minha noiva é

zulu! - gritou-lhe ainda o Arquiteto (e pareceu ao Consertador de Tudo

que o fazia de fora da sala, do corredor, como se perseguisse a voz); e

sabe o que quer dizer zulu? CÉU!

Aquela conversa animou o Consertador de Tudo de uma forma

extraordinária. Assim que o Arquiteto fechou a porta trancando-a com

duas voltas bem dadas, ele, sempre sem levantar os olhos do serviço, e

ainda um pouco vacilante de fala na sua nova disposição de fazer

confidências (adquirida tão recentemente à passagem do cortejo, junto da

mulher velhusca que azulava nos cabelos), permitiu-se informar com

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fingido aborrecimento: veja o senhor como é a vida: já a minha patroa é

alvinha demais. Filha de pernambucano que no passado se misturou com

holandês, não pega sol de jeito nenhum, só sardas; avermelha mas não

escurece, como ela fica zangada com isto! e o Tudo abanou a cabeça com

falso desânimo. O Arquiteto foi se chegando para perto sem comentários

mas o Consertador se embarafustava nas lembranças e suas mãos pela

primeira vez descansaram na mesa ao lado da máquina. Viu-se num

domingo de verão de há muitos anos passados, ao lado da mulher

sentada de shorts com as pernas cruzadas perto do rádio de onde saía

uma musiquinha esperta. A sala estava toda fechada para não entrarem

os mosquitos assobiadores, e como anoitecia as luzes já haviam sido

acesas e fazia muito calor ali dentro. A mulher sentada com as pernas

cruzadas balançava o corpo de lá para cá. Suas pernas gorduchas eram

um pouco moles e assim apertadas uma na outra lembravam, das coxas

aos joelhos, um grande coração de ricota, pulsando. As carnes brancas

tremiam mas ele gostava era mesmo assim, e à lembrança a pequena

alavanca escondida deu novamente um salto como se fosse pular fora, o

que o obrigou rapidamente a recorrer aos pensamentos tristes daquela

segunda-feira para as coisas se aquietarem debaixo da mesa. O barulho

que haviam feito na sua família de morenaços quando a mulher chegara

com aquela fala descansada e aquela brancura toda. Como é alvinha! se

admiravam - e nordestina! - contava ele para o Arquiteto, e tal como abria

sua alma para o outro, assim lhe ia abrindo a máquina e mostrando os

seus segredos: Tenho certeza como o senhor não sabe limpar os tipos da

máquina, vou ensinar como se faz, estão sujinhos como unha de criança.

De permeio conversavam um pouco sobre o Santo Homem. Com as

duchas frias que tomava no fim do banho, sempre apreciando comida

caseira e sem o médico da família precisar passar receita para nada,

como foi lhe acontecer uma coisa dessas? admirava-se o Consertador de

Tudo. Já o Arquiteto nutria sérias dúvidas sobre a saúde do Santo

Homem. Olhe só aqui, dizia cutucando com o dedo uma letra do teclado

da máquina, ele de perfil era desse jeito, um S exato, corcunda e

barrigudinho, nunca reparou? E as olheiras! - O Consertador se abismava,

não havia reparado que fosse um S. Acendia um cigarro depois de pedir

83

licença, que o Arquiteto concedia mas sem deixar de dizer de cada vez, o

senhor exagera! - Qual nada, meu cunhado diz que sou movido a fumo e

café forte, se parar caio! respondeu numa das vezes o Tudo, e o Arquiteto

então prometeu que logo iria preparar um cafezinho para os dois, depois

do que conversaram longamente sobre cigarro e café forte. Finalmente o

Consertador de Tudo confessou que no caminho para chegar ali ele não

havia resistido à tentação de fazer um desvio para dar uma espiadela no

cortejo levando o Tancredo Neves pela avenida Pedro Álvares Cabral, o

Arquiteto o que pensava da idéia? O Arquiteto deu uma resposta à altura:

Fez muito bem, disse, é um espetáculo que não se repete - e em seguida,

limpando na fazenda da camisa as lentes dos minúsculos óculos

redondos, considerou: Então viu mesmo passar o caixão... - Do caixão só

cheguei a ver pedaço mínimo porque vinha embrulhado na bandeira

brasileira, mas o que me deu uma impressão ruim foram os que vinham

logo atrás num automóvel. Hummm... , família? - Olhavam para a gente...

- E o Consertador de Tudo vacilou. E então? impacientou-se o Arquiteto;

olhavam como? - Olhavam como... - Aí na certa o Consertador não

encontrou a palavra buscada porque debruçou-se mais sobre a máquina.

Então, então, muito tristes? - insistiu o Arquiteto passando a mão na

barba encaracolada. - Muito... nem eu sei bem o quê ... - hesitou o

Consertador soprando fala e fumo para dentro da Olivetti. - Mas o que

vocês todos estavam fazendo ali, que espécie de zoeira afinal de contas?

- o Arquiteto parecia desgostoso com a própria ausência, e ocupado por

testemunha tão insatisfatória. - Como vocês estavam afinal, aos gritos? -

Quietos, esclareceu com uma ponta de orgulho o Consertador; o cortejo

chegava lá da avenida Brasil muito devagar, povo, automóvel, gente de

caminhão, e eu pude ver bem quando passaram, o automóvel de trás

vinha com os vidros fechados até a tampa, nem sei como se respirava lá

dentro, e eles olhavam para fora de um jeito ... confesso ao senhor que

cheguei a perder a atitude ... - E o Consertador, para desviar a própria

atenção e a do Arquiteto dos homens encerrados no automóvel com as

cabeças viradas teimosa e fixamente para o parque do Ibirapuera, deu

um pequeno inesperado tranco na máquina e a deixou de pé. A Olivetti e

o coração iam juntos naquele processo de remeximento do que traziam

84

dentro, mas ele já agora se desviava dos homens de escuro (rolariam por

qual céu ou estrada do país naquele exato momento, teriam se perdido

do cortejo talvez) para encarar de frente o fim do serviço. Até o momento

tinha se ocupado só com a limpeza e os ajustes, porém eis que chegara a

hora do Tirante da Entrelinha. De uma vez por todas o que é o Tirante da

Entrelinha? - lhe havia perguntado minutos atrás o Arquiteto batendo

aborrecido com as costas da mão num papelucho timbrado, enquanto ele,

Tudo, desaparafusava aqui e ali para melhor parafusar depois. - Veja,

continuara, leia na nota fiscal, é o que sempre escrevem os do Serviço

Autorizado: colocação de um novo Tirante da Entrelinha; peça nova e

mão- de-obra, preço cobrado em separado. O que é esse Tirante, se

posso saber? - Isso havia se passado um pouco antes de a voz que

atendia pelo nome de Rodolfo se fazer ouvir pela porta entreaberta. Na

ocasião o Tudo o acalmara: vai saber logo mais. E agora finalmente tirava

o estojo da maleta de serviço e o abria.

Que ridículo era o Tirante da Entrelinha! Pequeno, uma pecinha de

nada, um anzol de fio de cabelo, uma bobagem; e o Consertador de Tudo

segurou nos dedos manchados de graxa, com extrema delicadeza, a

Coisa Insignificante, erguendo-a contra a luz da janela como uma hóstia

para o Arquiteto poder examiná-Ia bem. Depois, baixou a mão e realizou o

serviço com atenção concentrada e lentidão respeitosa, mas todo o

processo não durou mais que segundos. O Arquiteto estava simplesmente

maravilhado; e furioso. Sim senhor, o Tirante da Entrelinha, ora vejam,

quem diria; calou-se logo após, no que foi acompanhado pelo Consertador

de Tudo. Sem exteriorizarem um para o outro o que continuavam

pensando do Serviço Autorizado, assim permaneceram de olhos fixos na

Olivetti, guardando o minuto de silêncio. Em seguida o Arquiteto convidou

o Conserta dor a ir com ele até a cozinha para o café combinado, o que

este aceitou de pronto, pedindo contudo licença para antes lavar as mãos.

Porém durante o café, com o ar limpo de abril entrando pela janela,

entraram de volta, farfalhando levemente como folhas soltas de jornais, a

vida e a morte do pequeno homem. Para muitos, um Santo; para outros,

85

um Sestroso, um Fala-Solta; para outros ainda, um Sábio, um Político,

um Ilustrado, um Mineiro, um Doutor, uma Raposa Velha; Estafeta da

Redemocratização para os invejosos, e havia também os azedos e

desencantados que o chamavam simplesmente de Coisa Insignificante,

sem poder contudo evitar breve recuo supersticioso seguido de arrepio na

espinha, como se nele, pequenino, figurasse a redondeza leve de

estearina da hóstia erguida na consagração. Dúvidas, dúvidas, dúvidas; e

assim, pequenino, testa abaulada, com aquele engraçado nariz virado

para cima, o que pensar dele para Presidente? É verdade que havia o

caso anterior, antigo, do dr. Getúlio Vargas, cuja figura também não

combinava com os altos encargos e a envergadura das estátuas, e do

qual até hoje se falava pelos cotovelos e pelos contrários, não se tirando

nada a limpo completamente. Ele foi amigo do Getúlio, ocupou cargo nos

tempos dele, mas antes lhe fez oposição, na ditadura, informava o

Arquiteto, e o Tudo fazia sim com a cabeça, sabia que era um dado a

mais para não se pôr de lado, sim, dava importância à informação. E na

certa àquela mesma hora em que o Arquiteto e o Consertador de Tudo

tomavam o seu café forte, os dois de pé, comentando o caso (pois como

pensar e falar muito tempo de outra coisa qualquer), no Brasil inteiro

também se murmurava, bisbilhotava, recordava. E se dizia que no

Instituto do Coração, os homens de branco haviam aberto o relógio da

vida de Tancredo Neves e virado os ponteiros para trás, para prender a

sua alma na engrenagem, soltando-a só no domingo, dia do aniversário

da morte de Tiradentes. Certo, aventava o Arquiteto pensativo, para

aniversariarem juntos, certo, mas aqui, aqui da Terra (não do Alto, como

quer o senhor), para as comemorações irem juntas, dando cada uma

maior força à outra. Porque, veja o senhor, e o Tudo via sim, encostado

na parede de azulejos amarelos: - O cortejo veio vindo pela avenida

Brasil, passou pelo monumento às Bandeiras, pegou a avenida Pedro

Álvares Cabral, passou pelo obelisco aos Mortos de 32, são datas,

percebe, tudo são datas e nomes por esses lados do mundo; ainda assim

confesso que tive muita pena, muita; muita! Punha esperança na coisa

toda. - Não se desespere! consolou-o o Consertador pensando na

mulherinha do parque cujos cabelos brancos irradiavam luz azul! Deus

86

quis! - Não tenho por que estar alegre com esta decisão de Deus,

respondeu o Arquiteto secamente, e o Consertador, pelo sim, pelo não,

concordou com a cabeça (sem apanhar bem no ar o que o Arquiteto

pensava de Deus), pois a última lembrança que um freguês deve guardar

de um consertado r tem de ser a melhor, a ótima das ótimas, para chamar

de novo.

Terminado o café, e assim a visita, ao voltarem para a sala, o dia

mostrou-se ao Consertador de Tudo com desalento; um coador murcho

lembrava, esvaziado de si. Aquela segunda-feira iniciava uma semana

tão diferente das outras dos últimos tempos. A companhia telefônica de

São Paulo, a Telesp, não iria mais dar várias vezes ao dia os boletins da

saúde do Santo Homem como se fossem os boletins do tempo, como no

rádio ao cair da noite as ave-marias. Não eram os boletins da saúde

afinal, eram os boletins da morte, mas disso não se tinha conhecimento

então. Se tivessem todos prestado mais atenção naquela fotografia com o

Santo Homem sentado de pijama e roupão no quarto do hospital de

Brasília, olhando para a frente e por cima da cabeça dos brasileiros com

aquele sorriso esquecido na cara, só Deus sabe para onde, só Deus sabe

para onde!, teriam guardado distância, escutado menos vezes a Telesp,

não teriam criado hábito. E o hábito era um negócio danado de feio que

quando arrancado sem cerimônia de uma pessoa podia arrastá-Ia

consigo; só Deus sabe para onde; só Deus sabe para onde.

Já na porta de saída o Consertador de Tudo acendeu um cigarro e se

encostou no batente, assim um pouco inclinado balançando a maleta de

serviço com a outra mão; meio torto e desabante como alguns dos

barracos da favela do Uberabinha erguida ao lado do córrego do

Uberabinha, mas não sem a elegância de certas velhas casas das regiões

mais distantes dos Jardins (... Europa, arredores) com suas paredes de

pedra gasta, sombria, de coloração irregular, seus telhados pontudos de

duas águas esperando pacientemente o dia em que nevasse em São

Paulo.

Por isso sabia como lidar com as palavras finais de um encontro

87

daquele tipo, mas esse tinha sido um encontro muito especial pelo fato de

o dia ser o dia que era, e ele caprichava jogando as palavras com

displicência para o alto como se fossem fumaça, deixava um pedido no ar,

sem insistência, como o fumo azul indo embora, se o doutor Arquiteto

tivesse a bondade, fizesse o favor de recomendá-lo aos conhecidos, aos

vizinhos, como aquele que ainda há pouco batera à porta, mas aí o

Arquiteto soltou uma exclamação que o assustou, teria a bondade, sim,

lhe faria favor, sim, não dizendo uma palavra sobre ele ao outro, era um

carrapato, um cacete de marca, na certa ainda por cima seria mau

pagador. Então não havia percebido como tinha precisado espantá-lo com

a história da África para pô-lo a correr e ver se desencantava de vez?

Como assim? chegou a perguntar o Tudo, abismado, mas logo calou

o seu espanto meditando: o Arquiteto então havia mentido sobre a mulher

que chegava dali a duas semanas para casar, ele não sabia até onde ia a

mentira; mas da própria mulher, da sua, o que dela dissera também não

combinava com o que era; pois a que havia chegado de Pernambuco tão

alvinha a ponto de surpreender a sua família, e na certa ter provocado a

admiração do Arquiteto, na contagem dos anos foi tendo a pele aos poucos

encoscorada como chapa coberta de ferrugem. Sim, sim, sim, estava o

Arquiteto esmurrando o batente, não me dá sossego, é aposentado do

serviço público, não tem o que fazer, e o senhor acha que se tocou com a

morte do homem? (. .. santo, santo, santo, se permitiu acrescentar baixo o

Consertador, numa jaculatória, pois aquele havia sido um dia realmente

diferente dos outros, de espetáculo único como bem dissera o próprio

Arquiteto, que não se repete, e ele o tinha podido admirar ao vivo, parado

no meio-fio da avenida, mas não o freguês à sua frente, destemperado). O

carro mortuário seguido dos outros ia passar novamente à noite na

televisão, e amanhã, e depois, porém ele havia feito um largo desvio pela

grama do parque, quase sem poder respirar tão depressa ia, o seu coração

até agora apertado no esforço, bem lhe dizia a mulher que ainda ia morrer

do fumo jogado em cima, sabia que perdia a respiração todos os dias um

pouco, que principiara a perdê-Ia mais naquele dia sobre a grama do

parque, com o verde por baixo dos pés e o amarelo do sol por cima, cada

88

vez mais ia ficando sem ar, ele o ia perdendo com as coisas que se

perdiam lhe passando diante dos olhos escancarados, uma atrás da outra,

vagarosas como passa um cortejo.

5. Análise estrutural

Explorando os elementos da narrativa teça e registre informações, que

se pode depreender do texto, relativas aos seguintes questionamentos:

a) Quais são as personagens da história e como elas são denominadas?

b) Ao denominar a personagem principal dessa forma, quais as possíveis

hipóteses que podem ser levantadas por a escritora ter feito essa opção?

c) Onde se passa a história?

d) Que fato histórico permeia essa narração?

e) O narrador também participa da história? Quem narra?

f) Qual foi o conflito inicial?

g) E o desfecho final?

6. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas.

a) A mulher é representada nesse conto de Zulmira Ribeiro Tavares?

b) Por que isso ocorreu? Levante algumas hipóteses tendo em vista todo o

estudo realizado anteriormente.

c) Em que esse conto difere dos demais textos e excertos literários

selecionados para esta proposta de trabalho?

d) O que se evidencia na escritura de Zulmira Ribeiro Tavares que a possibilita

representar e pertencer à terceira fase e não as demais fases aqui estudadas?

Fonte: TAVARES, Z. R. Cortejo em Abril. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

89

7. Sugestão de link para que se conhecer um pouco mais sobre Zulmira Ribeiro Tavares e também sobre o conto Cortejo em Abril, aqui explorado.

http://epoca.globo.com/edic/19980921/cult4.htm

90

Unidade VI

E VI

D

A

D

I

N

U

91

UNIDADE VI

1. Referência biográfica (Marina Colasanti)

Para se fechar este Caderno Pedagógico foi selecionada, dentre tantas

outras escritoras de relevo, Marina Colasanti por sua visão crítica e porque,

para a escritora, o feminino é mais do que tema ou assunto literário, é

essência.

MARINA COLASANTI

Fonte:

Marina Colasanti nasceu em Asmara, Etiópia, em 1937. Aos dois anos

foi para a Itália e aos doze veio para o Brasil. Estudou na Escola nacional de

Belas Artes (gravura em metal) e ingressou na imprensa em 1962, como

redatora, ilustradora e colunista. Nesse período inicia sua carreira literária, com

a publicação de seu primeiro livro: Eu sozinha, publicado pela Gráfica Record

Brasileira, Rio, em 1968. Publicou suas crônicas no “Jornal do Brasil” e seus

contos em diversas revistas e suplementos. Trabalhou na revista “Nova”, como

editora e redatora onde permaneceu de 1977 até 1991.

Traduziu dezenas de livros e é autora de várias obras, dentre os quais

destacam-se: Zooilógico (1975), A Morada do Ser (1978), Uma Idéia toda azul

(1979), livro este que lhe rendeu o Primeiro Prêmio da Crítica (1979) em São

Paulo, de muitos que estariam por vir.

Desde os primeiros tempos como jornalista, Marina Colasanti volta sua

atenção para a questão da mulher. Seu pensamento feminista a levará a

: http://www.diaadia.pr.gov.br/tvpendrive/arquivos/File/imagens/2010/lingua_portuguesa/marina.jpg

92

realizar palestras em todo o País, e essa temática se encontra bastante

evidente nas obras produzidas pela escritora na década de 80. Nesse período

ela mantém um intenso e estreito diálogo com suas leitoras, que será base

para quatro de seus livros: A Nova Mulher (1880); Mulher Daqui Pra Frente

(1881); Aqui entre Nós (1988); Intimidade Pública (1990). De 1985 a 1989

Colasanti foi membro do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.

Na apresentação de seu livro A Nova Mulher em abril de 1980, Colasanti

afirmou que começou a falar para mulheres quase paralelamente ao início de

sua atividade jornalística, ou seja, em 1962 e que falar para elas transformou-

se em falar delas e com elas. Escreveu livros de contos, fez televisão onde

atuou como entrevistadora, redatora e apresentadora de programas

jornalísticos ou culturais. Por sete anos foi também publicitária, atividade esta

que lhe rendeu mais de vinte prêmios. Mas nunca rompeu o fio dessa conversa

que se mantinha através de revistas, palestras, cartas, e que na revista Nova

teve o seu maior veículo de propagação de seus ideais feministas. Afirma que

levada por profissão, ela se viu aos poucos aproximada por afeto. Descobriu,

no infinito reflexo de tantas e tantas outras mulheres, o seu eu mulher. E que

floresceu, comovida, um sentimento de irmandade que a liga indissoluvelmente

às do seu sexo.

No prefácio de seu livro Mulher daqui pra frente (1981), comenta que em

suas conferências e nos contatos que fazia com universitários brasileiros e do

exterior ela sempre abordava as questões inerentes às mulheres esmagadas

por problemas de sobrevivência, operárias, domésticas, camponesas,

prostitutas e faveladas, para as quais o problema da condição feminina é

menor frente à necessidade de reformulações sociais. Reformulações estas

que sempre compuseram a sua bandeira de luta.

Em matéria publicada no Revelação (jornal-laboratório do curso de

Comunicação Social da Universidade de Uberaba) n. 245, em 6 de maio de

2003, o entrevistador André Azevedo da Fonseca perguntou à Colasanti qual

era o papel do movimento feminista naquela época. Ao que ela respondeu:

Primeiro a gente tem que dizer em que países. Se é no Brasil, a

expressão “movimento feminista” prescreveu, não se usa mais.

Agora usam-se as expressões “estudos de gênero”, “questões de

93

gênero”, e isso é muito sintomático. Porque quando se dizia

movimento feminista, tratava-se de um movimento que lutava pelos

direitos das mulheres, defendia os direitos das mulheres. Era um

movimento de mulheres para mulheres. Quando se passa a falar em

questões de gênero, já deslizamos para um outro universo

semântico, e não à toa. Ou seja, estamos dizendo que vamos nos

ocupar de questões de homens e de mulheres, questões de

cidadania ligadas ao feminino e ao masculino. Com essa abertura,

proposta, aceita e estabelecida sobretudo no encontro de Beijing

(China), o que aconteceu foi que as questões do feminino que

estavam em aberto, que não estavam resolvidas num país onde a

miséria é um problema de primeiríssima linha, e onde, portanto, as

mulheres estão num estado terrível – porque sempre que há pobres,

os mais pobres são as mulheres, os mais sacrificados são as

mulheres – num país nessa situação, o enfraquecimento daquilo que

era trabalho em cima do feminino, cravado no feminino, insistindo no

feminino, foi muito ruim. Os movimentos praticamente se desfizeram,

as militantes montaram as suas ONGs, nós temos as coisas

governamentais, os centros de estudos, mas os grupos militantes

que existiam, já não há mais, ou os que há são muito raros. Não há

uma visibilidade, um avanço desse trabalho.

2. Reflexão teórica

Quanto ao conceito de gênero, citado e definido acima pela escritora,

seria pertinente confrontá-lo, para melhor entender os estudos de literatura de

autoria feminina, com o que diz Bonnici (2007, p.128)

Gênero é a maneira como uma cultura vê a mulher (e o homem) e

como esta é construída culturalmente. O estudo de gênero não

analisa biologicamente a mulher. Ou seja, o fato de mulher ter seios

e útero não faz parte do objeto de estudos de gênero. Referindo-se à

mulher como naturalmente passiva, tímida, intuitiva, chorona,

dependente, sem iniciativa, a reduz automaticamente a um série de

papéis. São os tradicionais papéis femininos, os quais, construídos

culturalmente, foram atribuídos a muitas gerações de mulheres.

Como Bonnici afirma, tais conceitos foram “construídos culturalmente”.

Tudo isso nos autoriza a desmitificar e desestereotipar antigos conceitos, que

muitas vezes passam por atuais, principalmente, na visão daqueles que não

94

conseguem acompanhar as evoluções de seu tempo e nem tampouco fazer

parte da vanguarda pensante de sua época. Pois, não há como conviver com

antigos (pré)conceitos sem indignar-se.

Toda essa indignação, todo esse desejo de mudança, e, a certeza de

que só há crescimento nas divergências é que faz da obra de Colasanti um

capítulo à parte da literatura canônica brasileira que merece ser investigado e

estudado. Contos de Amor Rasgados, de Marina Colasanti, que teve sua

primeira edição publicada pela editora Rocco, em 1986. Trata-se de uma

coletânea de noventa e nove contos, cujo título já revela seu caráter

provocador e ao mesmo tempo desconstrutor pela possibilidade polissêmica do

adjetivo rasgados. Nessa obra, Colasanti apresenta minicontos, pequenas

fábulas e até mesmo pequenos poemas em prosa.

3. Capa do livro Contos de Amor Rasgados

Fonte:

O aspecto provocador é comprovado já na escolha da ilustração da capa

que foi feita por Ana Maria Duarte, a qual reproduz um casal com suas línguas

enroladas de tal forma que parecem não mais se desatar. Há, a meu ver, uma

possibilidade de ambiguidade nesta imagem, pois o roçar de línguas em uma

relação a dois pode demonstrar uma eroticidade, uma demonstração de amor,

de desejo, mas uma observação mais atenta poderá nos levar a outras leituras

inclusive a de revide nessa relação tão complexa entre homens e mulheres na

busca incessante do amor ideal, da completude, feitos de encontros e

COLASANTI, Marina. Contos de Amor Rasgados. Rio de janeiro: Rocco, 1986.

95

desencontros que a vida e a literatura nos presenteiam ou nos estarrecem com

suas histórias.

4. O estilo

Nesses minicontos que compõem a referida obra, as relações humanas

nos são apresentadas sem meias palavras. Elas são colocadas sem nenhum

pudor, sem nenhum artífice, sem eufemismos, ou seja, são colocadas em seu

estado bruto, primitivo, sem supostas preocupações e preconceitos. Há um

desvelamento explícito.

À semelhança do que vem ocorrendo na literatura de autoria feminina,

conforme demonstram vários estudos, a literatura produzida por Marina

Colasanti também retrata e representa os modos de estar de homens e

mulheres na sociedade. Nosso objetivo, portanto, ao estudar os minicontos que

compõem Contos de Amor Rasgados, de Marina Colasanti, é reconhecer esses

fenômenos relacionados à cultura machista e patriarcal.

Para compor suas narrativas, Colasanti utilizou-se de uma linguagem

metafórica repleta de simbolismos, sugestões, inventividades; enfim, viva,

aberta, e, em contínua exploração e construção. Nelas ela retrata um pouco do

universo existencial feminino, de suas buscas, anseios, transgressões,

insatisfações e até mesmo de revide a uma sociedade castradora e hipócrita.

A escolha desses minicontos não foi aleatória. Essa ordem demarca o

avanço que a mulher vem conseguindo e conquistando sua autonomia

rompendo com a opressão milenar que marcou a sua trajetória ao longo da

história da humanidade.

Os três primeiros contos mencionados, no retângulo acima, já foram

analisados no decorrer dos trabalhos explorados, neste Caderno Pedagógico,

Os contos selecionados para tal estudo e investigação foram: Para que ninguém a

quisesse (p.111); Como se fosse na Índia (p.135 ). Ela era sua tarefa (p. 99); Sem

que fosse tempo de migração (p. 203).

96

portanto, para fechar os desafios até então propostos, conheça o último

miniconto selecionado para este trabalho.

5. Explorando o título do miniconto: Sem que fosse tempo de migração

Para melhor explorar o título responda aos questionamentos abaixo:

a) Lendo apenas o título do miniconto, é possível descobrir sobre o que ele

relata?

b) Liste as hipóteses que o título lhe sugere e registre-as, depois leia o

miniconto e verifique se elas se concretizaram. Socialize sua experiência.

c) Pesquise o significado da palavra migração e, depois de realizada a leitura,

teça comentários sobre a escolha e sua presença no título do miniconto Sem

que fosse tempo de migração e se a mesma se mostra coerente no desenrolar

da história. Por quê?

6. Leitura

Sem que fosse tempo de migração

Embora vivendo na gaiola há tantos anos, sua esposa não cantava. Nem

ele a culpava por isso. Bastava-lhe a presença vivificando a casa.

Com quanto amor cuidava dela, trocando sua água todo dia,

providenciando alimentos que só bem lhe fizessem à saúde. Com quanto

encantamento a admirava na hora do banho, apesar do gesto habitual com que

ela, sacudindo dos cabelos pingentes de cristal, o obrigava a trocar os jornais

com que forrava o fundo. E era sempre com doçura que à tardinha, dando o dia

por encerrado, cobria a gaiola com um pano.

Sim, a vida conjugal era cheia de alegrias, repetia para si mesmo

quando, chegando em casa com um pacotinho de uvas, deparou com a

portinhola aberta. Vazia, a gaiola pareceu-lhe subitamente inconsistente, agora

que nada havia para reter seu olhar entre as varetas.

97

Chamou, sabendo que não teria resposta. Procurou nos quartos, olhou

atrás de móveis e portas, lugares onde ela não estaria. Depois debruçou-se à

janela como se ela tivesse podido voar, e em alguma cornija ou fio ainda o

esperasse.

Mas lá embaixo as pessoas iam a suas vidas. E nenhum rosto era o

rosto da mulher.

Então colocou uma cadeira debaixo de gaiola, subiu, ergueu uma perna

esgueirando-a com cuidado, levantou-se na ponta do outro pé, puxou para

cima o resto do corpo.

Só depois de entrar e fechar com cuidado a portinhola, percebeu que

ninguém viria trazer-lhe a noite com um pano.

7. Análise estrutural

Explorando os elementos da narrativa teça e registre informações, que

se pode depreender do texto, relativas aos seguintes questionamentos:

a) Quais são as personagens da história e como elas são denominadas?

b) Onde se passa a história?

d) Qual personagem lhe chamou mais a atenção? Por quê?

e) O narrador também participa da história? Quem narra?

f) Qual foi o conflito inicial?

g) E o desfecho?

8. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas.

a) Como a mulher é representada nesse texto de Colasanti?

Fonte: COLASANTI, Marina. Sem que fosse tempo de migração. In: Contos de

amor rasgados. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. P.203.4.

98

b) Em que medida a escritora critica a ideologia patriarcal que oprime a

mulher?

c) Quais os papéis desempenhados por cada uma das personagens do texto?

d) Esses papéis são “naturais” ou construídos? Comente.

e) Pode-se afirmar que neste miniconto houve a objetificação da mulher? De

que maneira ela se manifestou no texto?

e) Retire uma parte do texto em que essa objetificação se apresenta com mais

evidência, com mais força.

f) O que levou um dos personagens a crer que a vida conjugal ia bem?

d) Esse comportamento pode ser considerado como um fato isolado, ou, uma

prática comum nas relações marido/ mulher? Por quê?

g) Depois de ter conhecido um pouco sobre Ser sujeito X Ser objeto (Unidade

4; p. 23), responda:

Em qual parágrafo percebe-se que a personagem feminina torna-se

sujeito de suas ações? Comente.

Geralmente as ações ou atitudes das personagens são materializadas e

se fazem representar, quer no discurso oral quer no discurso escrito de

narrativas, por meio de verbos. Qual o motivo provável para que

Colasanti, nesta produção, optasse por omitir ações verbais explícitas à

personagem feminina? Que efeito essa escolha causa ao texto?

h) O desfecho da história ocorre nos dois últimos parágrafos. Ele lhe causou

surpresa? Por quê?

i) Os textos literários apresentam, geralmente, uma linguagem

plurissignificatica, isto é, uma linguagem em que as palavras apresentam mais

de um sentido. Sabendo-se que a metáfora é uma figura de palavra que

consiste em utilizar-se uma palavra ou uma expressão em lugar de outra, por

haver entre elas uma noção de semelhança, além de ser uma espécie de

comparação implícita, em que o elemento comparativo (como) não aparece, se

atente para o desafio a seguir:

99

A escritora utilizou-se de uma linguagem metafórica para compor este

miniconto. Encontre a metáfora que propriamente retrata e denuncia a

opressão da personagem feminina.

Dentro deste contexto narrativo, cite algumas das possibilidades

semânticas, ou seja, as plurissignificações que podem ser depreendidas

da metáfora encontrada anteriormente.

9. Leitura complementar: A palavra em foco

Toda e qualquer manifestação ou produção literária faz uso de uma

linguagem própria. A maioria dos pesquisadores vê a literatura como uma

manifestação artística que tem como matéria-prima a palavra.

A palavra é, pois, para o homem de letras, o material intrínseco para

realizar e alcançar seu objetivo artístico.

A escritora em estudo soube como ninguém trabalhar com a palavra,

matéria-prima da arte literária. E sobre isso, na escritura de seus minicontos,

Colasanti diz que são textos muito exigentes pois nada pode sobrar, nada pode

faltar. Se faltar ele fica hermético; se sobrar ele borra. Tem um ponto certo, ele

tem que ficar penetrável senão ele rejeita o leitor. Essa preocupação da

escritora é louvável, pois,

[...] Toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo

fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige a

alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e

do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao

outro. [...] A palavra é território comum do locutor e do interlocutor

(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1999, p. 113).

E, para tanto, há que se considerar que a palavra, no texto literário, vem

carregada de significado e necessita de um leitor preparado para desvendar

essa polissemia recorrente nos textos literários. Para isso o escritor escolhe e

manipula as palavras para além de seu significado objetivo, para que ela,

embora embasada em situações reais, dê vida e credibilidade ao ficcional e ao

imaginário que é na verdade a recriação do real. Ele capta a realidade através

100

de sua percepção de mundo, de sua sensibilidade e explorando todas as

possibilidades lingüísticas, tanto no campo semântico quanto fonético e

sintático, ele cria o texto literário. Ao criá-lo o mesmo vem carregado com o

estilo subjetivo de cada autor que interpreta a realidade sob o seu ponto de

vista ou, ainda, analisando o ponto de vista ideológico de uma determinada

sociedade e em uma época específica a transpõe para sua obra.

Desta forma, a literatura como instrumento de comunicação transmite e

registra os conhecimentos e a cultura de um determinado povo possibilitando

que gerações posteriores possam lhe dar vida desvendando o seu percurso de

avanços e de recuos através da leitura dos mesmos.

As obras literárias nos ajudam a compreender nós mesmos, as

mudanças do comportamento do homem ao longo dos séculos, e a partir dos

exemplos, refletir sobre os construtos e a ideologia veiculada pelos formadores

de opinião em determinado tempo e lugar.

As palavras estão carregadas de conteúdo ideológico, elas “são tecidas

a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as

relações sociais em todos os domínios” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1999, p.

41).

Para desvelar as ideologias e vozes presentes nos textos literários há que

se estar atento às palavras que os compõem e a maneira como elas estão

distribuídas ao longo do texto, mas, principalmente, ser um leitor assíduo e

atento dos mais variados gêneros discursivos e composicionais.

101

REFERÊNCIAS

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ASSIS, M. de. Memórias Póstumas de Brás Cubas; Dom Casmurro. São Paulo: Abril Cultural, 1982.

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BONNICI, T. Teoria e crítica literária feminista: conceitos e tendências. Maringá: EDUEM, 2007

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ZOLIN, L. O. A literatura de autoria feminina. Maringá: EDUEM, 2005.

ZOLIN, L. O. Desconstruindo a opressão: A imagem feminina em A República dos sonhos, de Nélida Piñon. Maringá: EDUEM, 2003.

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REFERÊNCIAS EM MEIO ELETRÔNICO (on-line)

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