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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 Produção Didático-Pedagógica Versão Online ISBN 978-85-8015-053-7 Cadernos PDE VOLUME I I

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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOSDA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE

2009

Produção Didático-Pedagógica

Versão Online ISBN 978-85-8015-053-7Cadernos PDE

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Em 1975 o escritor João Antonio veio a Londrina com o intuito de realizar uma experiência inédita: fazer um jornal de qualidade numa cidade do interior - o Jornal Panorama. Por algum motivo ficou aqui apenas três meses. Em compensação escreveu um ensaio literário sobre a cidade de Londrina dos anos 50/70, privilegiando fontes orais e jornalísticas. Fiel ao método literário de Lima Barreto, investigou a fundo as contradições sociais de Londrina, destacando as condições dos “tipos” marginais de uma cidade que era reconhecida nacionalmente como rica e próspera. Daí surgiu Os Anos Loucos de Londrina.

Os anos loucos de LondrinaJoão Antonio

Corria um tempo em que, como se diz, se amarrava cachorro com lingüiça e se ganhava dinheiro a rodo. Amavam-se mulheres finas, admiráveis, beldades que se revezavam, lindas e muitas trazidas e chegadas de todas as partes. Havia chilenas, argentinas, mexicanas, bolivianas, as melhores cariocas, gaúchas, paulistas, uruguaias. Só se bebia champanhe francês e scotch importado. Os cigarros eram americanos e acesos, alguns, ao fogo de notas enroladas de cinco mil réis, no meio penumbra de mesas ricas dos bordéis de Londrina. O dinheiro rolava solto, ágil, fácil e muito. Inesperado. O herói era o café de quem nunca se esperou tanto. A heroína era a terra roxa, firme, forte na cor e na fertilidade. Mas Londrina aceitava o desafio da loucura do café e assumia a si mesma. Esbanjando à grande, gulosamente festiva e boêmia, a cidade cumpria sua contradição – chegava aos vinte anos de vida e já era capaz de ganhar mais do que produzia, gastar mais do que necessitava, aproveitar menos do que podia assimilar. E, sem nenhuma raiz, trouxe todas as raízes de fora. Como num golpe, como num susto, o movimento inflacionário deu partida. O meio circulante, o dinheiro, de um salto acompanhou o pulo dos preços do café. Fazendeiros, cafeicultores, exportadores, corretores, toda a gente ligada ao café estava rica da noite para o dia. Londrina, terceiro aeroporto em movimento do país. Para alguns veteranos, o ano de 51, é o momento alto da euforia. Táxis aéreos particulares, além das linhas regulares da Varig, Real Aerovias e Vasp fazem a média de 40 a 50 vôos diários, despejando ou levando gente que entra e sai, principalmente de Foz do Iguaçu, Porto Alegre, São Paulo, Curitiba, Rio de Janeiro, Goiás e Belo Horizonte. Nesse ano, a famosa Boate Diana fretava um avião de linha comercial trazendo vinte mulheres a Londrina. A dona da boate, Selma, anunciara pelas rádios, pelos altos falantes da cidade e até com fotos em biquíni, a nova safra que estava por chegar: BOATE DIANA – NOVOS SHOWS – GRANDES ATRAÇÕES. O principal bar da cidade, o Líder da Rua Rio de Janeiro, expunha fotos de jovens mulheres, lindas e gritava reclames. Cafeicultores, fazendeiros, madeireiros, coronéis, picaretas foram ao aeroporto assistir à chegada das chinas, como a linguagem da época as chamava. E, ali mesmo, cada um já escolheu a sua mulher, com quem se avistaria à noite. A safra de mulheres era chamada lote e os compradores as escolhiam previamente, como gado. Mas gado de raça, diga-se. Possivelmente, ainda hoje, extrair vivo da memória dos antigos o clima de paroxismo daqueles anos de glória, alegria e loucura. Uma crise de muito dinheiro explodindo entre 1949 e 1953, flagrando, envolvendo, desnorteando todos. Despreparados, fascinados, ricaços da noite para o dia, os poderosos de Londrina e os poderosos vindos de fora, fizeram nascer

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um movimento esdrúxulo e glorioso e, conforme alguns testemunhos, a maior de todas as aventuras boêmias e alegres já vividas por uma cidade brasileira. Um fazendeiro freta um avião da Varig de Londrina para Porto Alegre levando um amigo e uma mulher e ali ficam, à larga, gastando e vivendo. Por dez dias Diana, Laura, Esperança, Dagmar, Cídica são as casas alegres mais ricas e famosas dentro e principalmente fora de Londrina. Mas o meretrício é muito mais. Falava-se, em termos estatísticos, que havia entre zona, casas e chácaras, cinco mil mulheres em exercício. Nas grandes casas, rodízio permanente, que os consumidores querem novidade. Pagam e pagam alto – se chove o fazendeiro vai ficando na casa e está disposto a tudo enquanto chover e quiser ficar. Sustenta o fogo aceso de trinta mulheres bebendo. Bêbado, é roubado na conta. Gasta vinte mil cruzeiros, paga trinta ou mais. E paga. As grandes casas não servem cerveja, é bebida barata. Só trabalham com Schotch autêntico (Cavalo Branco ou John Haigs), vinho Adriano Ramos Pinto, legítimo português, ou champanhe francês. Os garçãos, vestidos a rigor trabalham com pratarias, cristais e servem em pires de metal, quando a pedida é individual. Noutras cidades do Norte do Paraná, o café fazia enriquecer. Todo o Norte cresceu. No Estado de São Paulo, as cidades de Presidente Prudente, Marília, Ourinhos, Bauru conheciam o auge. Mas Londrina era o centro boêmio dessa euforia que chegou a nacional - o café – e abriu suas asas para os vícios e as graças da vida alegre. Montou as casas mais ricas de prostituição do país, conluiou picaretas, otários, golpistas, papeleiros, cáftens, marafonas caras e finas, hábeis malandros de jogo e carteados, do pif-paf à caixeta, do bacará à roleta, músicos, cantores famosos e nomes internacionais em moda, orquestras estrangeiras, suntuosos automóveis importados, manteve clubes de jogos as dezenas, trouxe e renovou em aviões fretados as mais finas safras de mulheres da noite, enquanto suas ruas continuavam sem pavimentação e a cidade tinha problemas de saúde, saneamento, educação, transportes. A cidade estava dividida em duas, a de baixo e a de cima, a que fica antes e a que depois dos trilhos dos trens, a zona e a família, a devassa e a bem comportada. O café, só se plantava café, cerca a cidade dividida em duas. A duzentos metros de onde é hoje o número 540 da Rua Mato Grosso já havia cafezal intenso. Havendo sol, Londrina impregna seu pó vermelho, roxo, terra de siena; havendo chuva, as ruas da cidade viram lama que só as charretes conseguem atravessar. Quando chove, abaixo dos trilhos, na zona é possível viver o tempo que se queira. Há restaurantes, bares, vida correndo, cabeleleiro, tudo. O grande restaurante está lá, o Tuninho. Já naqueles anos de ouro oferecia a melhor comida de Londrina. É algo como não há outro no Brasil. Importa os maiores profissionais da malandragem, até estrangeiros, cria grandes otários, na época chamados marrecos, trouxas, coronéis farristas, divertidos e endinheirados, anima rufiões e faz virem de fora os gigolôs com suas mulheres ou virem sós e aqui se argolarem. De colt 38, cabo de madrepérola na cintura, os coronéis adentram as casas e dançam o shot animado pela sanfona e bateria, ou se dança o tango. Na pedra da Rua Rio de janeiro, lado esquerdo de quem desce para a estação ferroviária, a picaretagem corre firme, vem queimando, envolve terras, letras falsas, começam a surgir os primeiros cheques sem fundo, terras frias são vendidas, cartórios venais e mancomunados com os picaretas vão escriturando duas, três vezes a mesma propriedade. Os problemas policiais crescem rapidamente, há desordens, conflitos e tiroteios na zona. Rápidos, ariscos e impunes, os vigaristas, chamados corretores, funcionam elétricos, desenvolvendo tombos, estouros, segundas, datas (lotes de terra) que jamais existiram. Levantam o dinheiro fácil, fácil ganhando do jacu (comprador de terras, pacato, crédulo, ignorante, vítima frágil) e vão gastar lá embaixo, à noite, nos bordéis. Nasce a expressão “ir para baixo”, ir para o brega (lupanhar).

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Nas ruas, uma lama só, quando chove. E pó vermelho, se faz sol. Mas a ostentação e as viagens dominam. O carro estrangeiro, enorme, de preço, chega a Londrina – o Nadch e principalmente o Cadilaque rabo de peixe. Os fazendeiros e endinheirados preferem o bem preto, banda branca, exuberante, suntuoso embora o pó avermelhado suje tudo, se intrometa e fique impregnado em tudo: pessoas, animais e coisas. Até no dinheiro, até entre as unhas que o desfolham e contam, a marca roxa da terra. E, já se sabe, coisa do Norte do Paraná. Tempo de dinheiro bravo. Hoje o dono de uma churrascaria da Rua Mato Grosso confessa não saber mais o que faça e nem a quem recorrer. Está recebendo uma média diária de quatro cheques sem fundo. E de pessoas amigas. De 1948 a 51 os cheques praticamente não circulavam em Londrina. Era dinheiro vivo. Os sabidos da região inventam expedientes e depenam seus otários. A picaretagem reunida em vários cantos da cidade, parece ter recebido uma ordem geral de comando: vamos malhar os irmãos, falsos, aplicar uma segunda, vamos vender ações do Banco Continental, vamos dar falsos espetáculos de luta livre, judô, Karatê e luta romana. Assim Londrina chega a apresentar até touradas para otário deslumbrado ver. E uma cervejaria que aparece com objetivo de dar um golpe, acaba dando certo e tem, querendo ou não, de levar o negócio para frente no roldão dos lucros. A dona da boate Diana, em carro aberto ou fechado, desfila pelas ruas de Londrina mostrando a sua mercadoria, o novo lote de meninas que acabam via aérea pelo chamado “balaio”, falado dentro e fora do Norte do Paraná. Chegadas as mulheres dançam, pintam e bordam, rolando e ganhando o dinheiro. E o jogo de azar corre intenso, dia e noite, pela fresta de um expediente engendrado pelos malandros. Alugam-se no centro de Londrina edifícios que funcionam como subsedes dos clubes. São aluguéis caros, alguns vão a 100 mil réis mensais. Para que se tenha referência do dinheiro que rola em jogo na cidade em 1951 há 15 clubes. E os melhores são freqüentados também por mulheres que acompanham seus homens, marrecos ou rufiões. Malandros, atilados e finos de jogo chegam de todo o Brasil, Uruguai, Chile e Argentina. O grande jogo é o pif-paf, mas há o bacará, a caixeta e outras modalidades, que as autoridades com o tempo e com as confusões , brigas, fugas e prisões decorrentes, mandam parar. A roleta também vem a Londrina, ficando pouco mais de uma semana. As autoridades mandam parar. Mulheres bonitas chegando, as grandes paixões passam a comuns. Noivos desmancham compromissos, fogem levando a concubina consigo. Maridos desnorteiam-se, rapazes bonitos viram gigolôs, amores inesperados explodem, gloriosos e malditos. Há tiroteios na disputa de uma mulher, há tentativas de suicídio para trazer um gigolô à cama. Amar, beber e jogar. Esse, o trinômio que Londrina não conhecia antes da explosão do café. Que faltava à cidade pacata, enlameada ou poeirenta, que não estendia outro divertimento além da caça, pesca, alguma briga de galo, alguma penca (corrida de cavalos, disputada em pista de linha reta). Assim o brega, o bordel, ao lado da jogatina, era o grande divertimento único da cidade. E mais que isso. Muito mais. Era um ambiente de amor espúrio e camaradagem entre boêmios alegres e endinheirados, com jogos e arrumações. Naquelas libações do brega, reunia-se o alto mundo do café no Brasil, firmando grandes negócios de compra, venda, troca, exportação. Todo grande negociante de café é, em geral, grande boêmio, maneja dinheiro grande e viaja intensamente. Chocalharam um pé de prostituta no Rio de Janeiro e até as que estavam verdes caíram aqui. A frase, de exagerada, não tinha nada. Uma vez, por volta de 51, um homem poderoso, político e fazendeiro, vai ao Rio de Janeiro resolver negócios de exportação e almoçar com autoridades e um ministro. Comem no Lê Itec Fim, a mais fina cozinha de Copacabana na

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Avenida Nossa Senhora de Copacabana, ali pela altura do Lido. Almoço lindo, uma das autoridades da roda, propõem amenizarem o encontro visitando na Avenida Atlântica, uma requintada casa de mulheres, luxuosa e discreta. Lá, terminadas as apresentações formais, a dona da casa bate a palmas clássicas:

- Meninas!Surge no salão, a safra mais fina, o que há de melhor e mais jovem, a nata das profissionais da Zona do Sul do Rio de Janeiro. No entanto, estão nervosas, constrangidas, perdendo o lindo rebolado, enquanto o homem poderoso de Londrina, convidado por um ministro e autoridades, que estavam certo de que lhe reservavam um presente, uma surpresa, olhava com cercealidade. Uma delas, dissimuladamente, se aproxima e lhe diz, quase no ouvido:- Doutor, por favor. Não diga a ninguém aqui no Rio de Janeiro que o senhor já nos

conhece.O homem rico do café já conhecia todas aquelas mulheres de sua vida boêmia nas casas da noite de Londrina. A Companhia de Terras do Norte do Paraná mantém vivo interesse em divulgar suas terras, os usos e cultura da região, aproveitando a ascenção do momento inflacionário e o salto dos preços do café. Afora tudo isso as terras são privilegiadas, dando de tudo, terras roxas do Paraná. Assim uma imobiliária local, a Ipiranga, chega a ponto de montar um escritório de representação de vendas de terras em Paris. Londrina é comentário. Um carro de chapa londrinense transitando por São Paulo ou pelo Rio de Janeiro, por exemplo, levanta observações exclamativas e olhos compridos na dinheirama do dono. Uma massa de população flutuante de todos os Estados do Brasil e até do estrangeiro parte ou chega à cidade. Que é um chamamento, é alegre, convida, apesar do pó vermelho ou da lama vermelha. As novidades fervem. Roupas, carros, mulheres, aparelhos elétricos, modernos confortos – Londrina adota de pronto. É a primeira cidade do interior brasileiro a estar na moda, depois do Rio, que imita apenas Paris, Roma e Londres. Tem bons hotéis, o é Franz Hotel, depois o São Jorge, o Grande Hotel, o Tóquio Palace Hotel. Alguns cinemas – o Cine Londrina, o Cine Municipal e o Ouro Verde. Teatro nenhum, biblioteca nenhuma. Comum não haver uma vaga em nenhum dos hotéis da cidade. Então as tripulações dos aviões em trânsito hospedam-se, naturalmente, nas casas de mulheres, na Diana, na Cidica. E tudo bem. Gente que tem posição de café (nunca se pode dizer que quem possua menos de 5 mil pés tenha posição) fica mais rica do que qualquer previsão. Nomes como Vitorelli (Londrina), Codato (Cambe) Mazi (Rolândia) e Manoel Lage (Arapongas) e Coleto em Rolândia e todo o Norte do Paraná tornam-se, da noite para o dia, discutidos, invejados e citados nas altas rodas de negócios do país. (Coleto, mais tarde, aplica um estouro na praça do Norte do Paraná, que ganha dimensões de escândalo público, indo de 15 a 20 milhões de cruzeiros atuais e, por pouco, chegaria ao tamanho de um escândalo como o da Manesmann, ainda de fresca memória).- Eu estou duro.Não se ouvia esta frase em Londrina. Todos ganhavam dinheiro: saqueiros (carregadores de sacaria), peões, garçãos, moleques entregadores de recado, serviçais humildes, todos ganhavam dinheiro na terra. Havia um garapeiro da Rua Curitiba, que além de servir garapa, era agiota. E como não existe agiota perdulário, hoje o cidadão possui três apartamentos de aluguel no centro da cidade. O mexicano Pedro Vargas, cantor de boleros. A orquestra de Francisco Canaro, Silvio Caldas, Dircinha Batista, Isaura Garcia, Grande Otelo, Carlos Ramirez, Cauby Peixoto foi crooner da Boate Colonial. Luz del Fuego e Elvira Pagã. As grandes orquestras Calo e

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Darienzo. Londrina atrai e agasalha o de melhor, debaixo de convite alto. É a época do tango, do shot, do baião e o bolero está apenas começando a pintar nas madrugadas. Londrina, além de seus grandes bailes e shows (Evandro Castro Lima a visitou como bailarino), importa o melhor e mais caro, paga alto, desde que seja a última moda. Enquanto isso, na madrugada da Rua Rio de Janeiro, no bar Líder, ponto de boêmios, afortunados, jogadores e jovens, corre o jogo de vida, nas mesas de bilhares. A dinheiro alto, claro. Pontifica nas casas de mulheres, o Marquês do Bom Michê, figuraço incorrigível, protetor dadivoso de marafonas, otário oferecidos e que, enciumado ataca todas as façanhas dos jovens gigolôs, fortes, bonitos, viris. E há aquele bacharel em Direito que mesmo roubado ostensivamente, não diz palavrão, não perde a classe, a dignidade. Repudiado pela bonita mulher que o troca por um rufião, o mais que faz é dizer uma frase solene:- Olhem só que vulgar estelionatária do amor! Laura, hoje dona de um dos maiores prostíbulos do Brasil, o La Licorne, em São Paulo, é vista assim pela memória dos que a conheceram em sua passagem por Londrina, onde fez dinheiro como dona de uma casa – trazia mulheres de fora, principalmente de São Paulo e explorava violentamente as infelizes. Dava-lhes o chamado banho de loja, vestindo as com roupas caras, vistosas, insinuantes, onde o tomara-que-caia era o requinte da moda noturna. Depois lhes cobra os olhos da cara, as espezinhava, taxava-lhes juros impagáveis. Suas vítimas só encontravam uma maneira de se alforriar daquele tipo de escravidão – fugindo, de pinote, espiantando-se nas últimas horas da madrugada e deixando roupas (duonas) e sapatos (pisantes). A cafetina odiada por todos, até pelos policiais, é atribuída a chegada dos tóxicos à cidade, em 1960 – pervitin, dexamil, maconha, droga. Presa várias vezes em Londrina, seu dinheiro conseguiu corromper policiais e Lei. - Era a mulher mais falsa sobre a terra. Esta frase se acrescentou a outras de calão menos comportado ou publicável. Metia, dizem, tóxicos nas bebidas, viciava suas vítimas, trouxe para a cidade toxicômanos famosos, até mesmo cantores e principalmente menores e meninas fugidas de casa. Não era mulher bonita, nem era mulher tratada, não se trajava com apuro, capricho ou categoria. Trazia os cabelos longos escorridos e lambidos, conforme os que a viram na época. Destacava do geral das donas de casas de mulheres. Fria, negocista, calculista, mediadora, plantava-se atenta e sovina atrás da caixa de seu bordel, verificando tudo, olhos de águia e atacando sempre o primeiro otário ofertado que cruzasse a sua porta.. Rápida é a primeira a atacar. Despreza os policiais, não faz deferências e cumprimentos especiais às autoridades. É odiada, portanto. Já Diana, sua concorrente, estende todas as honrarias da casa às autoridades que a visitam, manda servir uísque e chama para a roda oficial as mulheres mais finas. Vai à delegacia convidar para uma bebida em seu bordel. E nas festas juninas, faz questão de dar festa à luz da fogueira no dia de São João, onde se come pinhão, batata doce assada e se bebe quentão em ambiente familiar. Nem todos, no entanto, ganham da vida o que merece e, segundo aqueles antigos dos tempos de ouro do café, a tal Diana perdeu-se de amores por um cantor toxicômano, importador de mulheres, atravessador de drogas, Roberto Luna, que para sustentar o vício caro, a caftinava alto e implacável, tomando-lhe até os últimos. Dizem as bocas antigas. O ano de 51 presencia a entrada de fazendeiros intelectualizados (bacharéis em direito) nos bordéis. Assim, o brega cresce de padrão, abre alas e da entrada gloriosa aos fazendeiros que chegam montados em cadilaques pretos de banda branca. Tudo é lama ou pó vermelho em Londrina. Tem início o calçamento das ruas, há uma profusão de charretes funcionando como táxis, é a época dos fordes e jipes 49 e 51, de aluguel, principalmente

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usados pelos picaretas que levam os jacus para ver as terras que comprarão. E que outros igualmente desavisados, já compraram antes. Selma, loira, e dona de bordel, querida, polaca, hoje estabelecida em São Paulo com a Boate Versalles, foi a mulher que colocou na zona a primeira grande casa, a Diana, da Rua Vila Velha, atrás do estádio de futebol. Também abriu o grande bordel Nova Diana, dentro de um cafezal, com piscina moderníssima, dois pavimentos, três quartos sofisticados, ostensivamente luxuosos, além do quarto de três paredes e teto de espelhos. Atual dona de uma das grandes casas da noite de São Paulo, começou na Vila Velha. Casou-se com Sebastião Alves Aguiar, hoje agraciado com o título de comendador. Selma tem um filho, Alberto, que gerencia a Boate Nova Diana, em pleno cafezal. Os cadilaques de Londrina, caros, ostensivos, bebedores de gasolina, viram notícia e fornecem reportagens para os jornais e as revistas paulistas e cariocas. Aparecem primeiro pelas mãos dos corretores, dos picaretas, dos papeleiros, dos grandes vigaristas. Depois, os fazendeiros os adotam e neles escapam para as beiradas dos rios Tibagi ou Cambezinho, onde fazem churrascos ou tomam banhos com as mulheres. Cáftens desembarcam em Londrina portanto suas minas, mulheres chilenas, paraguaias, bolivianas, mexicanas, argentinas e até francesas. Os cantores famosos chegam para cantar de dia nas rádios locais e à noite nos bailes ou nas três grandes boates, onde a Colonial é o ponto alto, na Rua Maranhão. Harpas paraguaias, Miltinho, Pedro Vargas, Roberto Luna. A cidade importa variedades e dá opções, oferece grandes restaurantes, ainda mais na zona boêmia. Depois das quatro da manhã, fechadas as boates, há o Tuninho, abaixo dos trilhos dos trens e há o Bar Líder, na Rua Rio de Janeiro, olho aceso na noite e ponto de boêmios da parte de cima da cidade. São ceias se esticando até o nascimento do sol.

Preconceito e feroz. As prostitutas têm hora determinada para transitar pela cidade. Devem viver isoladas, confinadas, na zona. A linha dos trens é um limite, linha divisória, não subisse para a área familiar. As prostitutas não têm essas liberdades e corre um tempo em que não se pode dizer que tudo o que é moda não incomoda. Hoje, mulher comum e prostituta se veste com semelhanças. Naquele tempo, segundo os antigos – foram eles que fizeram aquele tempo – a mulher se vestia com recato, grave prudência, saias lá em cima, pernas escondidas. Hoje mostram tudo o que têm. E até o que não têm. Observam os antigos. Restaurante Calone, 1951. Na Avenida Paraná, entre o Cine Ouro Verde e o Edifício Autolon, as prostitutas entram, roupas avançadas, decotadas, ousadia das indecências. Pedem, as três, sorvete. O dono do bar, dissimulado, sem que as mulheres percebam, joga sal no sorvete antes de servir. E cobra três vezes mais caro para que elas não voltem nunca mais. À noite, talvez o mesmo homem procure no bordel uma daquelas três mulheres para comprar amor. E não aceitará o produto, se o servirem frio. Havia Soilo, cabaretista, cantor, que declamava na noite. Havia tentativas de suicídio e de morte no hotel por causa de um gigolô, por causa de um coronel. Os homens se impunham como machos, brigavam, armados de colt 38. Os mais velhos eram habitues, os mais moços sem dinheiro mas na força da idade, gigoletavam. E havia os deboches divertidos dos alegres rufiões. Os corretores vinham e iam e ficavam homiziados nas casas de mulheres, semanas a fio, varadas com música, bebida estrangeira e mulher bonita. Londrina atraía gente de fora, a ponto de importações e figuraços das mais diversas atividades descerem em seu aeroporto e ficarem semanas, quinzenas. Esbanjamento de fortunas no jogo e na prostituição não têm conta. Mais no jogo, claro. Importante, nesse espetáculo todo, para alguns, é que em tudo isso havia tranqüilidade e a vida era festiva nos bordéis. Mas há a

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história incrível do pistonista Booker Pittman, pai de Eliana Pittman, que viveu em Londrina cinco anos, tocando de casa em casa e morrendo de beber. É temporada eleitoral, um candidato a senador pela oposição foi flagrado na madrugada no quarto de mulheres nas grandes casas. O homem de Londrina, perdulário desbragado, exige novidade e paga alto. E no intercâmbio boêmio dessas cidades, há diálogos onde a palavra de ouro é Londrina:- Eu vou junho ou julho.

Mulheres que tinham noção de safra e de quando o dinheiro ia correr. E a zona quase elegeu um vereador. Ângelo Daniel, candidato do Partido Social Trabalhista, garção da antiga Diana, hoje ainda como garção do Versalles, em São Paulo, praticamente já estava eleito naquele começo da década de 50, quando alguns cidadãos bem comportados ou temerosos da terra da terra lembraram-se de botar um freio na situação. Afinal eleger-se vereador um garção de bordel, poderia ir de encontro ao bom nome da cidade, já falada pela sua devassidão e excessos. Naturalmente debaixo do peso de dinheiro, Ângelo Daniel, retirou sua candidatura. Era só café. O resto da produção agrícola era ralo, para o gasto, verduras, hortaliças, ovos, leite. O gado de leite vinha à cidade, era puxado pelas ruas lamacentas ou poentas. E os vendedores, gente rude, gritavam:

- Leite, leite!No portão das casas, a patroa atendia. As crianças pediam:- Mamãe me compra um caneco?Então o leite era tirado na hora, vendido ainda quente do úbere.As ruas eram povoadas de verdureiros, frutas e legumes, baratos e fresquinhos, sem plantios e crescimentos artificiais, sem a técnica japonesa. A cidade não tinha nem 20 por cento dos japoneses de agora. Comia-se melhor, tudo era sadio. Não havia carne congelada, nem supermercados, cozinhava-se a lenha e a carvão. O elevador não havia chegado ainda, as casas eram baixas, no máximo de dois pavimentos. Um edifício de três andares era raro, tudo era escadaria. Na zona, os homens dançam o shot com revolveres na cintura e as mulheres, no rodopio, derrubam de propósito as garrafas de champanhe francês para o otário pagar. O champanhe importado custa de 500 réis a um mil réis. Muitos homens andam montados, éguas bonitas, vindas do mato e das fazendas para a cidade e, ao apear, amarram os cavalos em estacas de pau. A cavalo também vão à zona, bolsos cheios, com dignidade e arrogância. Com um homem daqueles não se mexia sem receber troco na hora. O homem se vestia melhor, pelo testemunho dos antigos. Bota marrom de cano curto, calças de linho marrom e blusão marrom. Tudo marrom. Pó vermelho. Lenço no pescoço para evitar o pó. Capitão Eusébio, fazendeiro e político (PSD), figurão das noites boêmias, dançava shot, era alegre, bom, amigo da farra e das mulheres, boêmio extremado, vivido. Teodoro Vitorelli, era boêmio sem remissão. A boemia era esparramada, numa e outra casa, não havia as rodas, as concentrações. Todos se conheciam, mas cada qual na sua vida. Capitão Luis, chamado Capitão Mamão, prefeito de Apucarana depois deputado, gordo de 150 quilos, boêmio e homem direto. Capitão Fernando Flores, gaúcho macho, dos que não mostram os dentes sem motivo, garantia o serviço policial. Jogava-se bilhar francês, mandavam-se os filhos estudar em Ponta Grossa, Curitiba, Bauru, Ribeirão Preto, Sorocaba, Campinas, cidades mais estabilizadas. Capitão Pimpão, finalmente. Limpou a cidade dos ladrões e dos picaretas que, quando os pilhava, os fazia beber óleo de rícino, óleo de caminhão, dava-lhes um purgante. Havia sido interventor na Prefeitura e tratou de

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obras de terraplenagem da cidade. Depois, candidata-se a prefeito e oferece uma churrascada memorável, feita no campo de futebol. Mataram-se muitos bois, o povo desceu em caminhões e comeu todo o churrasco. Mas não votou no Capitão Pimpão para prefeito. E ele que havia feito tanto por Londrina. Povo falso, dizem. E dizem que noventa por cento dos que iam à zona eram homens maduros. Os jovenzinhos pouco iam lá, temendo encontrar seus pais e levarem uma esparrela. Hoje, não; vão pai, filho e avô. Juntos e debochados. Perdeu-se o respeito, observam. Não se ficava, de imediato, com a mulher escolhida no bordel. Havia uma técnica de romance, namorava-se, ia-se a casa duas ou três vezes, presenteava-se, mimava-se. Só depois, o ato. Também as profissionais não fixavam preço, taxativo, inflexível, frio, duro, antipático. Mas isto gerava um pagamento inesperado e, de comum, decuplicado, que poderia jorrar a qualquer momento. O lucro era certo, e grande, no fim. Depois, os homens do café e os corretores viajavam muito. Nos reencontros, prostituta e cliente retomavam afeições e amores que pareciam cada vez mais firmes, como coisa de amante – fúria, dependência, paixão.

Havia coronéis escalados para serem os padrinhos dos filhos das mulheres, pareciam não ter outra função no cenário. E a vida dos gigolôs tinha passagens que faziam um capítulo. Os viajantes nos jantares, nos jantares depois das quatro da manhã, passavam tempo sem fim desfiando o anedotário novo. O Operário (Sociedade Operária) era o carnaval popular, com ordem e alegria, nas Ruas Mato Grosso e Vila Velha. O principal traço era sua democratização, nele entrava de tudo, rico, pobre e médio. Alugavam-se também grandes armazéns de café que estivessem vazios, salões que tinham 50 metros por 30 e o povo misturado, se divertia no carnaval. Agora, conforme os antigos, Londrina é o que é, não se encontra um divertimento sadio na cidade. Os clubes são fechados. Morreu o Operário, a diversão popular, barata e de todos. Agora, os armazéns de café ficam vazios no carnaval, naquele tempo eram alugados. Taxas, impostos, burocracia, imposto sobre imposto, matou-se o carnaval do Operário. A prefeitura e os homens do governo deveriam ver isso, analisar, facilitar as coisas. Assim, o povo não se diverte. Se chovia, lá em baixo se passava uma semana entre as mulheres, a bebida e a comida. Numa dessas estiradas, um gigolô debochado, acompanhado de mais de uma dezena de mulheres bêbadas e quase nuas, apoderou-se de um caminhão numa sexta-feira da Paixão e desandaram todos a rezar, acompanhando uma procissão que passava. Foram excomungados pelo padre furioso. Apareceu na cidade um circo e um gigolô engenhoso arrastou, afoito, asas sobre a proprietária, mulher mais velha que ele. Perdulário, dado à bebida estrangeira, gastou o dinheiro da amante e só lhes restou um leão como último patrimônio. Haviam bebido tudo. Mas o rufião queria prosseguir e acalmou a amante, apavorada, a um passo da miséria:

- Calma. O dinheiro acabou. Agora vamos beber o leão.Necessitando de dinheiro, as nove e meia da noite, um gigolô matutava:- A esta hora da noite, diabo, onde haverá um otário disponível?- Lembrou-se que era a hora dos padeiros. Procurou um e vendeu-lhe uma data (lote de

terra ) inexistente, abrindo-lhe uma carta extravagante de loteamento, em que o jacu estaria comprando um terreno vizinho às Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo e à Anderson Clayton. O marreco vibra, antevendo o lucro certo. O gigolô apanha o dinheiro e vai para o brega. Histórias de gigoletagem não acabam, multiplicam-se, proliferam. Houve estranhos acordos e conluios neste triunvirato velhaco, coronel, mulher e gigolô. Mulherengos empedernidos

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montaram casas e viveram nelas com três mulheres ao mesmo tempo. Um dia, aquelas três foram ao Cine Ouro Verde e, juntas, desencadeou-se um escarcéu e foram presas. Na delegacia, todas se diziam mulher do mesmo homem, um poderoso da cidade. Então, o delegado telefonou ao ricaço, pedindo orientação, explicando, querendo saber o que fazer. Do lado de lá do fio, a resposta veio rente:

- Bote todas na cadeia que eu quero ver se me livro um pouco delas.Gigolôs, picaretas e papeleiros funcionavam se entrelaçando. Um dia, um desses, arrumou amante bonita que passou, dali em diante, a ser cortejada, com insistência, por um endinheirado da cidade. O ricaço insistia, o gigolô advertia amistosamente. A mulher reclamava dos pedidos insistentes do outro. Então, disse o malandro:

- Você diga que vou viajar. Receba o marreco. Quando estiver nu e entusiasmado, embole toda a roupa dele e jogue pela janela.Foi dito e foi feito. Então, o gigolô pegou a roupa do prevaricador e foi entrega-las à sua esposa, não se esquecendo de a alertar para o local onde se encontrava o marido. Um monumento de mulher, uma graça rara, pinta pela primeira vez na cidade. Um gigolô atento, desfecha a conquista para aquela noite mesmo, num encontro nas últimas horas da madrugada. E sai para a zona, a se divertir. Hora marcada, volta para o bordel. E estarrece. Na mesa, sentado e bebendo com aquela mulher, está um poderoso coronel do café que, com uma nota de cinco mil réis enrolada e em chamas acende o cigarro estrangeiro. Essa, a Londrina louca e gloriosa, devassa e amante, alegre e boêmia, velhaca, frívola e transitória, que os anos de cinqüenta viram nascer e brilhar de repente, passando como uma chispa. Em 53 viria a primeira queima do café, a geada, a queda violenta de vendas e de preços. A loucura acabou, as luzes foram desmaiando, as casas sendo deixadas pelos grandes nomes importados, a festa quase parou e a cidade foi voltando ao seu lugar. Quem viveu os anos de ouro, viveu. Quem não viveu, não viverá mais. Londrina é outra.

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A tripulação muda de cores e sotaque, os passageiros também. Fala-se com sotaque italiano ou agauchado, as mulheres são mais claras, menos ginga, catimba, graça, veneno e as pessoas se comportam menos à vontade, mais graves do que nas ruas do Rio. É o Sul começando, se estrangeirando. A misturação vai aumentar em São Paulo. Com a mudança da tripulação do jato, a morenice e a carioquice ficam ainda mais distantes, a malemolência acabou, a espontaneidade está se sumindo nos ares. Os anos se mudaram, cadê o chiado da fala, o pessoal da aeronave aloirou-se, os jornais são outros, outras conversas. Desembarco no aeroporto de Londrina e não acho isso nem aquilo. É pequeno o aeroporto que me chegou aos ouvidos uma vez, como um dos mais movimentados do Brasil nos tempos dourados do café, aí por 1950. Daqui vejo alguns grandes edifícios da cidade. Julgava, no meu desconhecimento que não tivesse mais de dois ou três aí por cinco andares. A terra roxa está me gritando, ela se enfia em tudo, se intromete. O calor é bravo, o motorista do táxi reclama, num sotaque acaipirado, mais do interior do Estado de São Paulo do que do Sul. É preciso que haja mesmo um jornal de peso aqui para que se denunciem as coisas do trânsito e o preço sovina, insuficiente dos táxis. A brasa para a sardinha dele. Uma arquitetura de mixórdia e contrastes, me vai aparecendo pelo caminho que o calor castiga, um sol ardido, como diz o motorista. O Norte do Paraná que me desculpe, isto não é Sul do país, é uma desarrumada confusão de arquitetura, tem de tudo, desde casinhas de madeira, até alvenarias e passando quase por choupanas. Há verde, mas faltam árvores.

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Compreendo isso logo, no corpo, nos pés nas mãos que estão pegajosas. Um vento, o bochorno, me batendo na cara pela janela do carro de quatro portas. Não, não há mar – não me adianta olhar suplicante para a esquerda, para a direita, para a linha do horizonte. Estou no Norte do Paraná e é bom que enfie isso de vez na minha malemolência praiana. Brisa marinha, não há. Roxa, vermelha, terra de siena. Olho a planície e estou na terra roxa, dadivosa, a que dá de tudo, segundo sei, e que levou o café deste país às alturas nos mercados internacionais. Quando o motorista me faz o troco já compreendo – é a terra que envolve e aqui dobra o homem. Ela é forte, está incrustada, metida de vez e para sempre, até no dinheiro da região.Um dinheiro vermelho-roxo, marcado pela terra.

Encontro a minha gente metida nos fundos de um edifício de dois pavimentos em construção, cuja fachada será de falso concreto, moderno, baixo e comprido, amplo. Passo pedreiros, homens trabalhando, começam sinais de mão e abraços. Estão todos mudados, há algo novo. Narciso Kalili, os cabelos embranqueceram, uma barba profética, os olhos claros. Miltinho de botas e engordou. Georges Bourdoukan, barba crescida, talvez mais magro. Mário de Andrade, eternamente calmo nos olhos claros, tranqüilos. Têm a mesma agitação que teriam em qualquer redação de jornal ou revista do Rio ou de São Paulo. Mas há algo, inexplicável, indefinível. Sei lá, não sei não, é muito cedo para julgamentos. Mas nunca vi em anos e anos nesta ou naquela cidade, jornal ou revista, a trabalho ou a passeio. Milton Severiano da Silva ou Narciso kalili de cara tão boa. O sol ardido, dando de chapa, sumiu e deu numa chuvada de vento, caindo em linha inclinada, firme formando poças vermelhas. Os homens da construção param o trabalho, esperam a chuva. Já sei que aqui não é o lugar para as minhas sandálias abertas e para as higienes falsamente civilizadas. Homens daqui são marcados pelo pó vermelho, terra de siena, até entre as unhas. Incrível, lá em Copacabana. Mais acreditável aqui, menos de duas horas depois do vôo do jatão – realmente os caras vão fazer um jornal e, fantástico, eles estão aqui – Mário, Narciso, Bourdeujan, Miltainho, Ruy – em carne e osso. Uns até mais gordos. Chuva não diminui o calor e almoçamos numa tal churrascaria Campo Grande, onde a comida vai me embebedando pela quantidade, pelo sabor. Um despotismo de comida, um desperdício, muito maior do que o que conheci em Porto Alegre, em Florianópolis, nos restaurantes de beira de estrada a caminho do Sul ou nos interiores do Rio Grande do Sul, onde o exagero dos pratos já é absurdo. Mas aqui, come-se e bebe-se escandalosamente. Se a entrada inclui uma variedade de saladas, tomates, crus, batatas, feijão branco, e quando chega a carne, a tal bisteca, colocada como uma bandeira no centro da mesa, estou empanturrado. A cachaça amarela é de qualidade. Somos seis ou sete, comendo e suando, numa churrascaria que mais parece um casarão de família colocado no fundo do quintal, depois das árvores e das gaiolas dos pássaros. Por que se come tanto, por que se bebe tanto? Por que a arquitetura é desencontrada lá fora, uma catedral redonda e em estilo inglês, o pó da terra enfiado em tudo, ao lado de charretes – me lembro que passei em frente a um centro de serviços de dados IBM onde havia uma charrete puxada a burro – por que esse desconcerto? As coisas se embaralham, difíceis, para a minha compreensão, muito necessária à cama, o hotel, dormitar um sono. Uma misturação, muitos tipos contrastantes nas ruas, carrocinhas de cachorro quente nas esquinas com nomes engraçados: Dogão, Au-Au, as bancas de jornal têm nome: Banca Fim da Picada, Banca Amiga, Banca Triângulo, Banca Panorama: japoneses, polacos, negros, mestiços, tipos matutos, carros de preço, ônibus. Enfio-me no hotel, enfio-me debaixo do chuveiro, enfio-me na cama. Peço-me tempo para pensar. E concedo-me, por

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cansaço. Desnorteado de dia, mais desconcertado à noite. Acabo, entra amigos e desconhecidos – um carioca, um nissei, Miltainho num tal Posto Karango do Trevo Cambe-Mauá onde uma tal Rita da Silva está aniversariando. Essa Rita da Silva, uma dama da noite prostituída ao longo do caminho, é uma loira envolvente, desnorteante, de longo cor de vinho e olhos pintados de verde e faz num posto de gasolina uma festa de aniversário parecendo festa de família, onde há docinhos e salgados. Parece-me que convidou os melhores clientes ou amigos de confiança. Fala muito, abraça, não deixa a peteca cair, serve bebidinhas, trouxe as suas colegas de bordel. Motiva convivência apresenta um desconhecido ao outro, pede música, não deixa o movimento morrer. Às 23:45 no Posto Karango, pelo que entendo, Rita da Silva está convidando com o alto mundo nissei do soja de Londrina e de outras cidades vizinhas do Norte do Paraná. Muito talento, sobre numa cadeira e pode uma homenagem a si mesma. Cantamos os Parabéns a Você, ela recebe presente como se fora uma adolescente aniversariando, enquanto o carioca que nos acompanha revela-se um envolvedor de categoria, há uma roda de fazendeiros jovens e nisseis em torno dele. Falando de coisas que entende ou não – bolsas de cereais, safra, soja, mulher, café. Alguém me diz, meio bêbado e a boca pequena que ele mente mais do que bula de biotônico. Amanheço o meu segundo dia de Londrina e reconheço que com Ritas da Silva, Charlas cariocas, arquiteturas decorosas, comilanças extravagantes e libações desenfreadas, só há uma salvação. A cidade é desconcertante? Então vou me desencontrar. Compro, junto a um lambe-lambe do Bosque, na praça arborizada ao lado da catedral, cartões postais, uns quatro, e envio para amigos jornalistas. Faço só uma frase em cada um: Para Paulo Patarra: “Londrina é outra civilização”. Para Luís Fernando Mercadante: “Abaixo as megalópoles!”. Para João Bath: “In Londrina Veritas”. Para Eurico Andrade: “Deste lado do Paraíso”. Fico imaginando, enquanto tomo um copo de garapa, debaixo de um sol sem brisa, a confusão e as caras desses amigos quando receberem o postal. A cidade tem muitos garapeiros que vendem também sucos de frutas, colocados nas esquinas. Uma tarde, no hotel, notei que a minha calça urbana, carioca e falsamente classe média estava vermelha de terra, impregnada de roxo avermelhada na barra. Nem adiantaria arregaçar, nem chamar a camareira e entregar à lavanderia para uma limpeza. Estava impregnada como todas as barras da cidade. Estivesse limpa e precisasse dar um giro pela cidade, um só, ela voltaria roxa. Também notei que meu isqueiro a gás havia acabado e agora usava fósforos do Paraná. Esse momento, rápido como um susto, me deu fé dessas mudanças. Era aceitar, não havia jeito. Aí, então, a partir dessa anuência, pareço ter começado a pisar em Londrina, a andar com as minhas pernas. Desci, fui para a Praça das Flores, de que ninguém sabe o nome, ali na floricultura, defronte ao Café Cinelândia, num banco sinuoso de cimento, comprido na praça, a que chamam Minhocão, entre uns vinte garotos engraxates que me disputavam, engraxei sapatos e fiquei olhando mulheres, tipos, a banca de jornal e a carrocinha de cachorro quente. Havia, uniformizados 600 engraxates na cidade, fichados no Juizado de Menores. Usavam macacões de mangas curtas, um azul escuro desbotado, era meninos entre os dez e doze anos. Uma engraxada custava a metade do Rio ou de São Paulo – Cr$ 1,50. Tudo diferente neles, tinham sotaque do interior paulista e eram bem mais meninos brincando do que engraxates, não

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tinham o tom profissionalizado, safadamente esperto, da molecadinha paulista ou a malandrice da batucada na caixa dos engraxates do Rio. Tímidos e infantis. Meus olhos viajavam para as mulheres que passavam, tipos variados, miscigenação de nisseis e polacos, pouco mulatada e negritude. Não vestem mal, não calçam mal, mas lhes falta um quê, a ginga, a pegada carioca, o requebro, a catimba. Não se empertigam, não fazem aquele jogado, aquele caído lindo de cabeça, não jogam a barriga para dentro, as nádegas para fora, não fazem passo miúdo, nem esquecem os braços estirados, indo e vindo ao longo do corpo, e por isso não tem bom balanço nas cadeiras. Falta-lhes altanaria na colocação da cabeça e de queixo. Andam encolhidas, contraídas, como se escondendo. Falta-lhes manha ao subir o degrau do meio fio. São mulheres que não mostram o pescoço. Aquilo que me incomodou um tanto. Afinal, a nissei que avistei um dia no balcão da floricultura era esguia, cabelos pretos, de olhos rasgados, agazelada . Uma graça. Toquei pela Avenida Paraná, entrei num barzinho, construção velhusca, castigada e encardida pelo tempo, o Suzuki, com um pastel de palmito, saboroso, paguei trinta centavos a menos que no Rio: Cr$ 1,20. Já vi, em menos de três quarteirões, mais de oito vendedores de bilhetes de loteria. É um dos bons negócios da região, sem dúvida. Ando. A Avenida Paraná é uma misturação comercial, bancaria de serviços, cafés, cinemas. Não há livrarias. Ou antes há papelarias que, entre outras coisas, vendem livros. Os títulos são poucos e de best-sellers americanos, muita capa erótica e poucos autores nacionais. Nada além da dupla badalada jamais de trinta anos em todas as livrarias do país: Érico Veríssimo e Jorge Amado. Converso com um estudante nissei – meio contrariado, meio cabisbaixo, mas me olhando de frente atrás de seus óculos de grau, diz que certos livros, quando estudantes necessitam, são comprados em São Paulo. Por que não, Curitiba? Não é mais perto e à mão? Na frente do Cine Ouro Verde, defronte a uma praça Willy Davids, um dos fundadores da cidade, que ninguém sabe o nome – um homem bem vestido, barba tratada, uns 45 anos, anda apertadamente do meio-fio para a porta dos estabelecimentos e berra essa coisa estranha, profética e inesquecível: - Três em três são as três que semeio! Grita, os dois pés sobre o meio-fio, olhando o céu. Descubro que se chama Caruso, um dos loucos mais conhecidos da cidade.

Resolvo andar de ônibus. Toco para o ponto ali da praça, onde um ajuntamento de gente mais pobre, mais suja, roupas piores, espera. Num banco da praça, um velho conta moeda. O ônibus que mais demora, o que pretendo tomar faz um dos percursos mais longos, para o Jardim Leonor. Em dez minutos de espera sou suplicado por cinco mendigos – meninos e mães molambentas com criança no colo. É descer para os lados da Rodoviária, dar com os pedintes, crianças esmolando e sentir na pele que os postais me mentiam a cidade. Aqui, não é um ponto a desfavor de Londrina. Afinal todos os postais do mundo mentem coloridos. Meto-me no ônibus W. Hauer – Shangri-lá, vou de coletivo até o final da linha. Por dentro e por fora, tudo no ônibus é marcado pela terra roxa – rodas, bancos, passageiros, cobrador, motorista, dinheiro, uma camada de pó, sempre renovando nas costas das poltronas. Nada para limpo. Os motoristas têm os mesmos defeitos dos paulistas, que a população carioca não tolera. Param longe do meio-fio, a um ou dois metros de distância, dificultando a subida ou descida de mulheres e crianças, freiam abruptamente. Correm menos que no Rio e mais do que em São Paulo. No seu interior, não se pode dizer que haja aquela camaradagem carioca entre os passageiros, mas há mais respeito e atenção pelo vizinho do que em São Paulo. As

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pessoas, mais simples e mais rudes, não negam informações e não informam errado quando não sabem. O povo dos ônibus é humilde, meio quieto: não é alegre como o carioca, não é carrancudo e fechado como o paulista. O sotaque é sempre mais para o interior paulista e, nessas condições, é onde mais aparece o negro e suas miscigenações mulatas e enfuzas da cidade. É um negro típico, acaboclado sem os meneios do carioca, nem a ginga do baiano. Mas é igualmente doce, vivo, sensível e algo nobre na sua humildade impregnada de pó vermelho. Desço, apeio numa alameda de oitis, ao lado da estrada de ferro, no Jardim Shangri-lá. Muito verde, chão asfaltado, casas térreas boas, enormes, com jardins enorme, tudo parece resolvido aqui. Havendo dinheiro, o cidadão terá televisão, aparelho de ar e todos os eletro domésticos. Havendo telefone, a tecnologia permitirá que se fale do Jardim Shangri-lá com Paris, Nova Iorque ou Londres. Luz elétrica, água encanada, pavimentação e outras benfeitorias. Um trecho da cidade norte-americana do interior, como talvez dissesse Hamiltinho de Almeida. Mas dou para atravessar os trilhos do trem e caio noutro mundo, num golpe. É o Jardim do Sol. Aqui começa um mundão de pobreza, outra Londrina, uma cidade que me parece de pés no chão. Quem olhe do Jardim Shangri-lá para a linha do horizonte depois dos trilhos do trem verá, enquanto ouve cigarras e o farfalhar do arvoredo, o pio de algum pássaro, após um pequeno vale, uma planície toda verde, cultivada de cafezais. Terá uma visão de abastança, tranqüilidade, riqueza. Longe de supor o que há entre a distância que separa o Jardim Shangri-lá dos verdes do cafezal. Uma miséria que mistura gente mais magra, pé no chão, casas de madeira, duas águas, cães, cavalos e burros magros pelas ruas, onde a terraplanagem se existiu foi precária, cercas cambaias de ripas, ausência de árvores e uma tendência firme para se transformar no pior de favela – a favela na horizontal. O sotaque é mais acaipirado, há uma igreja de madeira como nas cidades do Sul, não se vê uma criança com bons dentes. Um grupo escolar, uma escola para excepcionais, alguns botequins, biroscas, farmácias, um barbeiro de uma cadeira só. Ar parado ou vento quente, completa ausência de planificação no casario imundo, irregular, bagunçado. A birosca, os botequins são escuros, feios, quentes. Do lado de fora, as portas de duas folhas de madeira poderão até parecer coisa bonita, antiga, como os botequins do Estácio de Sá, no Rio. Quem passar para o lado de dentro, dará com a pobreza das prateleiras, do sortimento, atrasado e ruim. Homens desocupados e desanimados nos botequins, crianças desdentadas e de pés no chão nas ruas. Como em todo aglomerado pobre as crianças proliferam, muitas, maioria que esmaga. No Jardim do Sol a misturação das cores mostra que polacos e negros estão marginalizados, embora perto das coisas boas da cidade. O de melhor fica em cima do asfalto, o que não presta fica nas áreas de terra. E o pior é que não há tempo nem espaço de defasagem. A cidade é dividida em duas, antes e depois dos trilhos do trem. Para cima a fartura e os equipamentos; para baixo, um misere bem marcado por um traço de ironia velhaca dos nossos tempos. Há antenas de televisão em quase todos os telhados pobres, há um e outro automóvel moderno. Atravesse a linha do trem e caia no mundo. Tem a feiúra da necessidade. Mas também é verdade que se o visitante tiver passado pobre, vai dar um passeio por sua infância. De dia e à noite outra Londrina está lá. Mas foi o único lugar da cidade em que vi à noite de esquina mal iluminadas, o amor de namoradinhos. O mesmo amor de qualquer esquina de bairro pobre do mundo. Sempre aquela coisa enluarada. Não vi isso nas praças do centro, nos bares falsamente elegantes, nem no Igapó, nem em Higienópolis. Em toda Londrina, nunca vi uma cena de beijo na boca, sugado e espetacular, tão comum em qualquer lugar público do Rio de Janeiro.

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Descubro, uma noite, que na cidade come bom peixe, o pintado, de couro e de água doce. Na Rua Professor João Cândido, 333, numa esquina providencial, está plantado um restaurante, Rodeio, que para o meu gosto, é um dos pontos altos da cidade. Mantendo a dignidade de ser meio restaurante e meio casa da noite, entrando pela madrugada, é quase sórdido em suas paredes e habitantes. Uma misturação humana o procura – estudantes sem dinheiro, forasteiros, gente de família aos sábados e domingos, prostitutas descidas do Copão em busca de comida mais barata, gente ligada a negócios miúdos, rapaziada, meninos. Parece-me que uma cena do Rodeio vale como síntese do centro de Londrina. Foi onde vi uma família chegar com os filhos menores, topo depois de um grupo de cinco prostitutas, uma negra, uma morena, uma polaca, uma mestiça italianada e uma morena acaboclada. Curioso é como apenas em dois restaurantes da cidade, vi garçons realmente profissionais, vivaços, traquejados, acordados. O Rodeio é um deles. Traço curioso – tenho comido peixes e camarões de água doce e, até o momento não vi nenhuma faca de comer peixe na cidade. Para compensar, tenho visto a rudeza dos problemas, a ausência da fossa, dos postiços impasses existenciais que apanham a faixa jovem principalmente paulista, carioca e mineira. Ponto a favor de Londrina, é claro.

A cidade tem quarenta anos e alguns arranha-céus. Habituou-se a gastar, comendo e bebendo, muito mais do que pode assimilar. Com esse calorão batendo nos trinta e tantos à sombra, durante o dia, as refeições deveriam ser leves. Come-se, no entanto, superlativamente. No desfile de restaurantes, as comilanças e libações proliferam variações, principalmente de carnes. E há diversidade: cozinha italiana (Toscano) chinesa (Tai Wan) árabe (Quiberama), churrascos (Campo Grande, Gaúcha, Pioneiros). Por onde vou me empanturram. Quarenta anos e nenhuma raiz, catou tudo de fora, importou os costumes. De desconcertante, Londrina está me saindo à esdrúxula. O diabo é que as paixões são esdrúxulas. Estudantes tentam fazer samba com instrumentos caros de percussão, café já me foi apresentada, num posto de gasolina com bar no fundo, O Baiano, uma cuíca de plástico. Mas o samba sai marcha e nada tem que ver com a batida das escolas de samba cariocas. Também não se tira samba no pé, dança-se pulando, mexendo o corpo todo, sem balanço, esquecendo-se do jogo dos quadris. Não vi ninguém tirando samba no pé, vi tirando o pé do chão. Também não vi mulher, por estas noites, que soubesse dar nó nas cadeiras. Tudo o que sabia ou imaginava sobre Londrina prendia-se aos anos quentes da explosão da alta do café, quando a cidade pontificou como concentração de bordéis de luxo e uma enchente de clubes de jogo. Encontro isso em ponto menor, sem ostentações gloriosas ou grandes lances de loucura. Ouvi, por exemplo, que havia um crioulo sambista molambento, talentoso, enfiado nas madrugadas dos muqinfos da cidade, lá pelos cantos da Rua Sergipe, já nas beiradas dos trilhos de trem. Mandei-me, farejei o tipo; encontrei prostituições de rua, fera malhada, capionga e ruim, misturando-se a travestidos com ar de cansaço e sono e caftenagem rampeira, fuleira esbarrando em outras aves noturnas no estado de horror. Achei seu companheiro, um violeiro, andrajoso, desdentado, mulato velho, mais sarará do que para negro. Lamentou-se, encardido, violão no braço, encolhendo-se medroso e comovido, pedindo um cigarro: - A polícia não deixa a gente cantar e tocar na rua. Acabaram com a noite Então, vindo isto de quem veio e com esta força, desisto de procurar purezas, raízes ou fonte de ternura em Londrina.

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Estou no Com-Tour Londrina Shopping Center, ao lado do Hiper Mercado Peg Pág, onde há de tudo, em edifício moderno de dois pavimentos amplíssimos – banco, boutique, o cinema mais fino da cidade, lembrando os cinemas de arte paulistas e cariocas, floricultura, farmácia, xerox, choparia, sorveteria, cafés, doçarias – e muito modernos, contrastando violenta e fotogenicamente com os seus freqüentadores e tipo físico de seus serviçais – a gente rude ou do campo, impregnada de terra roxa. Tudo ali parece postiço, artificial, uma briga estética entre o local e as pessoas. Ando sondando, por conta própria, essa coisa de briga de galos. Pertenço, por mais bem comportado que me dissimule ou queira fingir, a um tipo de gente que não confia em informação tirada de boca. Tudo está escondido no mundo e há risos demais. Há risos acanalhados, cínicos, nos cantos das bocas. Ninguém da nada de graça a ninguém e o que cai é chuva. Assim, pela conta de achar, acabei na Rua Alagoas, número mil e poucos, topei a tal Sociedade Esportiva de Londrina com a placa apresentando, em seus dois extremos, dois galos de briga., empertigados, coloridos, valentes. Ou, se quiserem: dois brigadores vermelhos, firmes, uns canibais. Aquilo era uma rinha e de pegada em pegada, eu iria acabar na Favela do Pito Aceso. Na placa da Sociedade Esportiva de Londrina, se lia:

VETAMOSa) ingresso de menoresb) bebidas alcoólicas no recintoc) ingressos de mulheres suspeitasa) A Diretoria. Estava nos lados de Higienópolis, um bairro elegante em que vi as pessoas mais bonitas

da cidade, dei uma chegada ao cemitério, que não é rico nem grande e dividido de frente, no outro lado, algumas casas de madeira trepadas numa encosta, imundas por fora, sem jeito de favela, que havia mais espaço entre um barraco e outro. Era o Grilo do Pito Aceso, uma favela que mais parece um quilombo de polacos e mestiços e alguns crioulos. Ali se arrumavam, pelos jeitos, caras, desconfiança, dissimulações, uma gente corrida de outro Estado ou da polícia. Ao lado da miséria, ali havia medo, sobressalto, pé atrás. Havia um cercado com uns cavalos e potros de raça, um tordilho. Provavelmente eram cavalos que corriam de penca (pequena pista em linha reta) de um lugar a que chamavam Cacique. Apareceu um rapaz. Denivaldo, como um balde de ração para os cavalos. Falador, dezoito anos, magro, levando jeito de nordestino, logo me mostrou sua casa que, apesar de ser de madeira, tinha quintal grande e muitos viveiros de aves. Polacos e negrinhos, pelo nosso caminho, duas menininhas negras metidas dentro de uma bacia enorme tomavam banho numa arrelia barulhenta. Favelados me olhavam, estranhamente um homem de fora chegando ao grilo. Miséria, assim, mas diferente do Jardim do Sol e das favelas cariocas. Todo o quintal da casa de madeira cercado por viveiros. Denivaldo foi me mostrando tudo rapidamente, como se lidasse com um entendido em galos de briga. Calculei rapidamente engradados e gaiolas. Havia uns cem galos índios. O rapaz me explicava pronto e rápido, abrindo e fechando gaiolas, puxando as aves para fora numa destreza que me impressionava. Havia um cheiro forte de ração.

- Tem o Índio Corvo, o Japonês, o Carne Seca. Mostrou-me como os exercitava, todas as manhãs, 15 minutos cada ave. Abrindo as penas, segurando o galo pela traseira ia fazendo com que se descrevesse rapidamente um oito entre as suas pernas. Depois, mostrou-me a escova com que esfregava o pescoço dos galos, todas as manhãs, para enrijecerem a pele. Disse que ia buscar o bico de ouro e a espora postiça, de

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metal. Eu fazia o possível para prender os nervos, mas eram instrumentos horríveis. Aquilo estava remexendo por dentro. Ao mesmo tempo, estava estarrecido diante da inconsciência de Denivaldo, um garoto ainda, entusiasmado com os matadores de raça.

- Venha ver, o Índio Argentino.Colocou-me diante de uma gaiola, onde um galo esguio, coxas fortes e firmes, se mexia nervoso, ininterruptamente. E uns olhos de assassino espetando.

O pai apareceu de repente e tentou dissimular, jeitosamente, as informações que o filho me passara e passará. Disse-me que um galo daqueles não valia nada, mal chegaria a uns trezentos cruzeiros por cabeça. Outra coisa não havia mais de trinta daquelas aves. Talvez trinta e quatro. Também a temporada era ruim, eles estavam trocando de penas, não haveria brigas na rinha antes de maio. Aos fundos, depois das gaiolas numerosas, uma rinha. Aquilo, assim vazio, sinistro, me arrepiava. Preferi olhar os pássaros, dentro de uns quatro viveiros enormes – coleirinhos, bigodinhos, canários, pássaros pretos, pintassilgos, muito mais de cem. Mas o pai de Denivaldo tratava de menorizar números e preços, desconfiado, indisfarçadamente abespinhado com o filho que me abria o jogo. Fingindo se humilde e inocente. Desci o Grilo do Pito Aceso, me embarafustei para o centro de Londrina. Já entendia uma coisa que brigava comigo. Nos domingos de rinha, pelas manhãs, freqüentadores e apostadores vão à briga de galo como a um aperitivo. Precisam de um pouco de sangue para depois almoçar bem. Já andei pelos bordéis do brega, cada um é cada um – um capítulo. Chegando o momento, dou um balanço. Há lances, situações em que detesto a cidade, indo mais de dia, com o bochorno e a canícula. Falam em 35, 36graus ao meio dia. Nada. Sem brisa marinha, é mais quente que o Rio. De mais a mais, falta vegetação, árvores grandes, copadas e não essa coisa de oitis e arvorezinha. A cidade precisa de águas, piscinas, sei lá. Num desses momentos de aporrinhação, escapo para o Igapó, de carro. Passei o resto da tarde olhando a Lagoa e a visão das águas mesmo barrentas, os meninos brincando na piscina, um horizonte mais aberto e tudo isso me acalmou. Bom. Paz, abandono só consegui sentir no Igapó, até agora. Estivera ali à noite, no mesmo restaurante San Remo, com pista de dança, música ao vivo, baianas em trânsito pela cidade, que sambavam o samba-enredo da Portela como se estivessem dançando samba baiano ou maculelê. Comera o tal prato de Santa Felicidade, uma misturação violenta, só encontrável nos restaurantes de beira de estrada do sul – polenta frita, carnes, saladas, azeitonas, macarrão, frango a passarinho, risoto, verduras cruas, feijão branco – uma mixórdia. À tarde, no entanto, sem comilanças e sem samba falso, o horizonte se abria. O verde e as águas me desatordoam o calor. Logo fui importunado por um cabelo à escovinha, bermuda e barriga de fora, que resolveu brincar com uma lancha de controle remoto, desfechando um barulho importuno, remitente, amolando todos e quebrando a harmonia. Paguei o refrigerante e me raspei de volta ao Hotel. Ficasse ali e arrumaria uma encrenca desnecessária. As águas do Igapó, apesar de barrentas não mereciam. A cidade consegue me entreter e me envolve muitas vezes. Aí me entrego e é bom. Um exemplo, a linguagem da região, marcada, tocada de rudeza e, por isso mesmo, forte, dando de sobejo, a graça de coisas saborosas. É uma mixórdia, mas interessante, arrumando e desarrumando coisas dos interiores de São Paulo e coisas do sul. À noite, antes de ir para o brega sou surpreendido pela percussão do samba ali pelos lados do restaurante Batavo que, após as duas da manhã as prostitutas e motoristas de táxi chama

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de Bata. É um grito de carnaval da terra. Como sempre, aqui, ali, no Rio, em São Paulo, em Salvador, o negro é a força do samba. Mas aqui, ele tira muito o pé do chão e dança mais marcha do que samba. Mas são samba de escola – Mangueira, Portela, Império Serrano – e há o desejo de conhecer e participar do ritmo. Assim, o samba está vivo, tanto nos crioulos tirando samba na rua quanto nos rapazes universitários que fazem batucadas no Baiano. Vale. Mesmo que atravesse, acho que vale. Aliás, a misturação é total. O Baiano, por exemplo, é japonês. Chama-se Izume. Giro pela zona, pelo aglomerado de casas da Vila Velha com sinais de decadência de um tempo que já foi rico, lotado de lances gloriosos. A Vila Velha, apesar de sordidez, tem um quê típico das bocas de meretrício em que as mulheres namoram, vivem e amam. Não usam aquilo só para fazer a vida. Terminada a hora dos fregueses, lá pelo fim da madrugada, chega o momento de seus machos, os rufiões. Não há a extorsiva perseguição policial, como nas grandes cidades em que o grosso da prostituição, em geral, está metido nos trotões e em que as mulheres, apavoradas oprimidas, vivem com um olho no freguês e outro no carrão da polícia. Da Vila Velha para a Boate Rosângela e caio num pequeno pedaço de loucura que, a princípio, mal entendo e, de pronto, chego a um juízo definitivo. Se Rosângela surrealista existe tudo lhe é permitido. Há um estranho conjunto musical formado pelo pai, mãe e filha. O pai, me informa, vai avisando que sua filha é virgem e quem bulir com ela, leva bala. Ele canta e toca instrumento de corda; mãe e filha são mulheres claras, de certa forma bonitas, fazem percussão. A mãe, de pé, bate em dois bangôs; a filha, sentada acompanha na bateria. Todos cantam. Nesta noite, Rosângela vive um momento grandioso. Vai apresentar o grande êxito internacional da canção Luci Lessa, “cantora que saiu pelo mundo”, mas que pertence, nas origens, ao pequeno mundo de Rosângela. A dona da casa, longo vermelho e uma rosa nos cabelos, figura gorda, sem cintura, é agitada, meio mulata, atiçada e protetora da animação ambiente. As garotas são nível médio de beleza. Ali, quem aparece mais é uma morena clara, esguia, de branco, cabelos jogados para o alto e certa categoria quando caminha para a pista de dança, fazendo par constante com o homem que atende. Chegou de Curitiba, me dizem. A Rosângela mantém a tradição antiga das casas de prostituição cara de Londrina, o rodízio permanente de mulheres. Um vento de loucura varre a Rosângela, as raízes do bordel estão vibrando. O sucesso internacional Luci Lessa, prata da casa, abre sua apresentação cantando “Esse cara” de Caetano Veloso. A dona da casa salta de alegria quando Luci Lessa termina Caetano e ergue um brinde com champanhe. Há um viva feérico, geral. Na barriga do brega, madrugada entrando, a cantora tem aquele mundo a seus pés e vive um momento de glória unânime. Noite e dia, nessas andanças, me aparecia sempre, em lugares variados da cidade, inda mais na escadaria do Rodeio, à noite um garoto de cabeça raspada e no corpinho magro se salientavam as coxas enormes, musculosas, firmes como um jogador de futebol. Baixote, olhos adultos, vivos e assustados, espiando tudo. Pés no chão, 11 anos, virador, uma espécie de trombadinha, usava todos os expedientes. Sebastião mentiu-me muitas vezes. Quase sempre era catador de papel, se levantava às 5 da manhã no barraco do Jardim do Sol, onde morava, e ganhava Cr$ 5,00 diários. Nada. Foi a figura que mais nos cantos escondidos e muquifos mais diferentes de Londrina, uma inquietação de galinho de briga, virador, estava em todas – guardando carros, vendendo limões, esperando sobras nos restaurantes, se mexendo como um bicho noturno. Desconfio que dorme na rua. Diz que não sabe ler, só ver dinheiro, mas já o flagrei olhando revistas em quadrinhos, todo animado, curioso, perninhas

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abertas nos degraus do Rodeio. Imundo, como sempre, pulando nas calças curtas, tem uma peraltice que me encanta e se mexe como um animal elétrico, motivado por uma gorjeta. A cidade tinha uma estrela. Maior que o Exorcista dos cartazes, havia uma grande estrela, de nome Fuganti, que se repetia em fachadas de lojas, casas de modas, armazéns, supermercados, depósitos, kombis, em vários pontos, esquinas, ruas e portas. Isso me batucou nos olhos e na cabeça, alguns dias. Era Mário Fuganti, um dos irmãos Fuganti e homem poderoso da cidade. Entre outros negócios, era o distribuidor do gás engarrafado, que Londrina não tem gás de rua. Busquei uns contatos na TV Coroados e acabei almoçando na casa e com o dono daquele nome que, pela repetição e pela incidência, eu considerava a maior estrela da cidade. Pediu-me pressa, tinha tempo e contato. Naquela tarde com a esposa, filha, empregados e cachorros, Mário Fuganti partira para a praia, onde passaria um mês em Camboriu. Um palacete no bairro de Higienópolis, em dois pavimentos e uma gama variada de confortos e recursos, em que me contavam duas piscinas, sauna, adega subterrânea com duas mil garrafas de vinho enterradas, coleções de quadros, armas, selos, porcelanas. Gaúcho de Santa Maria, educado em São Paulo, 32 anos de Londrina. Cabelos grisalhos, olhos firmes, claros, sem sotaque da região, sem os vícios paulistas ou paulistanos na fala. Discorre fluentemente sobre pecuária, negócios imobiliários, vida agrícola, inclinações do mercado, economia de Londrina, a sociedade local, uma elite de médicos vai formando, sem tradição, uma pequena burguesia, a indústria de construções, a cultura branca – soja, trigo. Fazendeiro, advogado, fala bem e gesticulando. Filatelista e numismata. É um flagrante comportado de modéstia.

- Colecionador, não. Sou um juntador. Conhece todo o Brasil. Em consórcio, participou da compra da maior área de terra adquirida no Brasil, 450 mil alqueires no Acre (duas vezes o tamanho do município de Londrina) e diz que fará a colonização. Demonstra preocupação com o lado médico, hospitais e problemas de saúde. Almoçamos no segundo pavimento. Toalha de linho, louças finas, um risoto excepcional, bacalhoada como poucas que comi em vida. A mesa enorme, comprida, madeira de lei, jacarandá (tudo é em jacarandá e muito mármore). Mário Fuganti vai me falando, preocupadamente de problemas cruéis dos brasileiros. Surge, entre goles e garfadas, o impasse quase insolúvel do menor abandonado e, recaindo a conversa sobre o Nordeste, acentua com dados a miséria que viu no Piauí. Esdrúxula, desconcertante, um refúgio de pingentes urbanos ou corridos de algum canto, forasteiros, por uma razão ou outra. Esta, a cidade. Talvez, por isso apaixone, do pior tipo de paixão. Porque intriga. Daqui a três meses, Londrina poderia estar diferente de agora.

Na noite quente de sábado, ali por volta das dez horas, zanzando pelo Bosque da catedral fui apanhado por uns amigos, dois rapazes e uma garota; me enturmaram e acabei numa festa de aniversário, num tal edifício Alvorada, na Avenida São Paulo, 482, apartamento 102. Festa de classe média, mulheres vestiam longos caros, brilhosos, apesar do calor. Havia salgadinhos, finos, variados e fartos e uísque estrangeiro. Procurei uma poltrona ou cadeira, os móveis eram do tipo falso antigo, a personalidade da despersonalidade, o antigo usado pela primeira vez – pretensiosa e graves arcas de jacarandá, consoles, volteios redondos e o resto de presepada. Não me sentia em casa. Havia um mal-estar, clima de peso. Não fosse a percussão do samba que os rapazes estudantes faziam, aquilo seria um encontro sem vibração, morninho e bem comportado, desses em que as pessoas não ousam sequer falar

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alto. Um festival da caretice classe média, o postiço bom tom da mediocridade de costumes importados, empostados. Rápida e zelosa, a mãe de família, dona Lourdes de Moraes , distribui uma ordem ao ouvido de algumas conhecidas de confiança e eu, mais os companheiros, somos convidados a nos retirar. Levantei-me, zonzo e caminhei até a porta. Ao cruza-la e antes de procurar o elevador, vi dona Lourdes que me impunha, de dentro de sua casa e do alto gabarito de suas solenidades. - O senhor me desculpe. Mas não posso aceitar pessoas que não conheço em meu apartamento. Tenso, catando o que restava de controle, cortei rente, mordendo palavras: - A senhora faz muito bem em preservar a dignidade de seu lar. E eu faço questão absoluta de não conhece-la. Felizmente aquela mulher não me respondeu nada. Um réptil. Lá embaixo, na calçada roxa avermelhada da Avenida São Paulo, me senti um réptil. (Se meu pai me via apequenado assim, humilhado assim e me comendo por dentro, provavelmente me mandaria, aos gritos, que fosse em frente e reagisse, quebrasse todos os vidros daquelas janelas a pedradas) Eu embaralhava coisas estranhas na cabeça, que começava a doer. Adoraria estar longe. Nunca em minha vida , estes anos todos em várias cidades que andei, a trabalho ou a passeio, ricas ou miseráveis, pobres ou grandiosas, nunca havia sido expulso da casa de ninguém. Precisava uma compensação. Aí procurei, dentro do cafezal, longe do centro, o prostíbulo mais caro, que me pesava há anos como uma lenda, mito, coisa faraônica, metida no mato. A Nova Diana, com piscina, quartos maravilhosos, coisas das mil e uma noites em clima luso-afro-tupiniquim. Era isso e ainda mais. Nem a casa de Mônica, em Porto Alegre, nem as casas de Cuiabá, em Mato Grosso, têm luxo da Nova Diana, plantada no meio do cafezal. A piscina é suntuosa e os quatro quartos do segundo pavimento são de um luxo extravagante. Os de espelhos, tão famosos, realmente tem três paredes e teto de espelhos. Também há cama oval, superlativamente badalada. Mas o que em mais reparei naquele mundo de dourados e madeira de lei, foi um vazio, frívolo, foi em certo retrato na parede, mostrando o casal dono da casa – a polaca Selma e seu marido, quase mulato Sebastião Alves Aguiar, condecorado com uma comenda em São Paulo: o brega organizado e vitorioso em grandes formas comerciais. Eu sentia estar dentro de um mundo que poderia desaparecer de uma hora para outra. Esta intuição estava em tudo da Nova Diana – um chiquê, uma aristocratice a um passo da decadência. Um sentimento indefinível, mas solapando. Pela divulgação que fazem dentro e fora de Londrina, esperava mulheres mais bonitas. Um garção vestido a rigor, desculpou-se – estávamos vivendo um fim de semana fraco. No entanto, tudo melhoraria. Afinal, Selma, a proprietária, é dona também de uma das boates mais caras e ricas da noite de São Paulo, a Versalles e faz intercâmbio de mulheres, usa aviões, movimenta grandes rodízios. Aquele luxo e aquela ostentação ficaram brigando comigo até a minha volta à cidade, quando entrei para uma cerveja e para espairecer, num bar da Avenida Tiradentes, número 220, o Estágio 2001. Minha mornidão agoniada passou, o ranço e o amargo de ter sido expulso da festinha classe média foi se sumindo, as impressões do luxo mirabolante da Nova Diana foram desmaiando. O Estágio 2001 gritava como a própria loucura em ritmo acelerado. Dança na sua decoração uma mixórdia colorida, um humor azedo que desnorteia, encabula, leva ao riso. Como que possuído do Diabo, o pintor de paredes Saturno, havia desenhado e pintado as paredes do bar e criara signos zodiacais malditos, em preto e branco. Uma

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enxurrada de demência, humor negro, condenação e doença. Saturno, em estado de paroxismo, marcara assim os signos do seu Zodíaco pungente:Carneiro – um carneiro espetado pelo raboTouro – um touro dependurado pelo raboGêmeos – dois homens sem cabeçaCâncer – um defunto no caixãoLeão – uma juba de leão com bobes de mulherVirgem – um cadeado sem chaveBalança – uma mão venal aperta e corrompe um dos pratos da balançaEscorpião – um escorpião é esmagado por um péSagitário – homossexualismo bestialógico entre um burro e um centauroCapricórnio – um carneiro cornudo e triste; seus cornos formam um caracolAquário – uma mão de afogado pedindo socorro sai de dentro de um copoPeixe – um homem retira um peixe de seu calção de banho Aquela composição do pintor de paredes Saturno, aparentemente de mau gosto, me batia com um tom de aviso profético nessa noite. Para uma terra de pioneiros, havia um risco e um preço – a vinda destrambelhada de forasteiros e picaretas, aventureiros, pingentes, bóias-frias, deserdados, prostitutas de todos os escalões, fartura e ganância, violentos contrastes fotogênicos, sociais, humanos, culturais – e como deveria ser o signo zodiacal? Saturno, em sua demência ou tortura mental, não teria captado tudo isso, apocalíptico, debaixo do pó roxo e vermelho desta terra de siena? Afinal era a luta para a construção de uma cidade – contraditória, terrível, safada, miúda, grandiosa, desnorteante. Sem a menor possibilidade de bom comportamento. No outro dia, na Avenida Paraná, eu vi a figura que mais mexeu comigo nesta cidade. Um bóia-fria, vermelho de terra, sandálias de borracha nos pés calosos, enxada ao ombro, se mexendo entre o povo passante da Avenida Paraná. Só conseguia enxergar a ele, única figura destacada, na calçada cheia. A enxada nas costas era levada como uma arma, leve e eficiente: era admirável a destreza, a leveza como ele se mexia entre as pessoas, imundo, tostado do sol e também pardacento, esguio, ligeiro. Ele mais deslizava que andava na calçada e ao atravessar a rua, teve um intimo conhecimento, quase familiar, do trânsito – não esbarrava em nada. Nem nas pessoas, nem nos veículos. Era rápido, calmo e, apesar de andrajoso, composto, ereto, inteiriço. A partir dessa cena, pareceu-me que não tinha mais nada a ver na vida urbana de Londrina. Tinha razão Hélio Duque – ninguém vem ao Norte do Paraná impunemente. A cidade já se mostrara, estava escancarada, e tinha uma marca definida agora, um jeito de quilombo de brancos, nisseis, polacos, árabes, negros, mestiços, estrangeiros e todos os que viessem. Então, decido. Vou-me embora deste quilombo, antes que fique de vez.