da dispora - stuart hall

223
Stuart Ha

Upload: leticia-brum

Post on 21-Jun-2015

1.205 views

Category:

Documents


6 download

TRANSCRIPT

Page 1: Da Dispora - Stuart Hall

Stuart

Ha

Page 2: Da Dispora - Stuart Hall

"

jetoria de Stuart Hall como inte-

al comec.ou no bojo da reelabo-

i do que e ser de esquerda, depois

errota pela Uniao Sovietica do

.mento antiestalinista na Hungria,

1956. Continuou nos anos 60 e

em meto a preocupac.ao com a

cente influencia dos meios de

unicac,ao na cultura, ao mesmo

30 democratizadora e — segundo

dic,ao bem-pensante, de esquerda

Je direita — avittante. E nesse

)do que preocupaooes ferninistas

cismo entram explicitamente

seu repertorio. Sua trajetoria

agua, nesses ultimos vinte

s, na preocupagao em repensar

jltura no meto de uma globali-

io complexa e contraditoria. Esse

momento em que as identidades

urais se tornam lances discursivos

fundamental tmportancia para

:m os faz. E nessa ultima fase, a de

ilizar a globaliza^ao e as politicas

:urais, que Halt tornou-se uma das

icipais referencias atuais sobre

dimensoes politico-cutturais da

balizagao, vistas a partir da dias-

a negra. Ao longo desse caminho,

.I! foi protagonista dos Estudos

Iturais, com seu projeto de pensar

ultura em urn precario e vital equi-

rio entre a valoriza^ao do trabalho

DA DIASPORAIDENIIDADES E MEDIATES CULTUIAIS

Page 3: Da Dispora - Stuart Hall

STUART HALL

DA DIASPORAIDEN1IDAOES E MEDIATES CUL1URAIS

Liv SOVIK

Adelaine La Guardia ResendeAna Carolina Escosteguy

Claudia AlvaresFrancisco RudigerSayonara Amaral

Belo HorizonteEditora UFMG

BrasiliaRepresentacao da

UNESCO no Brasil

2003

Page 4: Da Dispora - Stuart Hall

© 2003 dos originals em ingles by Stuart Hall© 2003 da traducao by Editors UFMGEste livro on parte dele nao pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorizatao cscrita doEditor.O autor e responsavel pela escolha e pela apresentacao dos fatos contidos nesla publicafao e pelasopinioes aqui cxpressas, que nao sao necessariamente as da UNESCO e nao compromeiem aOrganizacao. As designates empregadas e a apresenta9ao do material nao implicam a expressao dequalquer opiniao que seja, por parte da UNESCO, no que diz respeito ao status legal de qualquer pais,terrii6rio, cidade ou area, ou de suas autoridades, on no que diz respeilo S delimitacao de suasfronteiras ou de seus limites.

H179d Hall.Stiiari

Da diaspora: Identidades e mediacoes culturais / Stuart Hall;Organizacao Liv Sovik; Traducao Adelaine La Guardia Resende ... let all.- Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasilia: Representacao da UNESCO noBrasil, 2003.

4M p. (Humanitas)

ISBN: 85-7041-356-4

I. Identidade Social 2. Cultura 3. Etnologia I. Sovik, Liv11. Resende, Adelaine La Guardia III. Tftulo IV. Serie

CDD: 306CDU: 316

Catalogacao na publicacao: Divisao de Planejamenlo e Divulgacao da Biblioteca Universilaria - UFMG

ED1TORACAO DE TEXTO: Ana Maria de MoraesPROJETO GRAFICO: GI6ria Campos - MangdCAPA: Stuart McPhail Hall, diptico de Dawoud Bey, acervo da National Portrait Gallery, Londrcs.REV1SAO E NORMALIZACAO: Simone de Almeida Gomes'"VISAO DE PROVAS: Cida Ribeiro e Lfvia Renala L. Salgado

Rh .'TSAO TfiCNICA: Liv SovikPRODUCAO GRAFICA: Warren M. SantosFORMATAgAO DO MIOLO: Cassio Ribeiro

UN1VERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAISReitora: Ana Lucia Almeida GazzolaVice-Reitor: Marcos Borato Viana

EDITORA UFMGAv. Antonio Carlos, 6627Ala direita da Biblioteca Central - lerreo -Campus Pampulha31270-901 - Belo Horizonte/MGTel.: (31) 3499-4650 . Fax: (3D 3499-4768www.editora.ufmg.br [email protected]

CONSELHO EDITORIALTITULARSAntonio Luiz Pinlio Ribeiro, Bcairiz Rezende Danlas,Cados Antonio Leite Brandao, Heloisa Maria MurgelStarling, Luiz Otavio Fagundes Amaral, Maria dasGracas Santa Barbara, Maria Helena Damascene eSilva Megale, Romeu Cardoso Guimaraes,Wander Meio Miranda (Presidente)SUPLENTES

Cristiano Machado Gontijo, Denise Ribeiro Scares,Leonardo Barci Castriola, Lucas Jose Bretas dosSantos, Maria Aparecida dos Santos Paiva, MaurflioNunes Vieira, Newton Bignotto de Souza,Reinaldo Martiniano Marques, Rkardo CastanheiraPimenta Figueiredo

50Sistema Integrado

de Bibliotecas/UFES

CONSELHO EDITORIAL DA :

UNESCO NO BRASILJorge Wertliein, Juan Carlos Tedcsco,Cecilia Braslavsky, Adarna Quane,Celio da Cunha

Organizacao das Nafoes Unidas para aEducacao, a Ciencia e a CulturaRepresentacao no BrasilSAS, Quadra 5 Bloco H, Lote 6, Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9° andar70070-914 - Brasilia -DE - BrasilTel.: (55 61) 321-3525 Fax: (55 61) 322-4261UHBRZSuncsco.org.br

CREDITOS DOS TE3 i Id ien^fdades ec u l t u r a i s

PARTE 1 - CONTROV^RSL< 198681/05)

"-*

pensando a diaspora: reflexoes sobre a terra no exteriorHALL, S. Thinking the Diaspora: Home-Thoughts from Abroad. Small Axev. 6, p. 1-18, Sept., 1999.© Indiana University Press.

Quest5o multiculturalHALL, S. The Multi-cultural Question. In: HESSE, Earner (Org.). Un/settledMulticulturalisms. London: Zed Books, 2000.

Quando foi o p6s-colonial? Pensando no limlteHALL, S. When Was "The Post-colonial"? Thinking at the Limit. In: CHAMBERS,Iain; CURTI, Lidia (Org.). The Post-Colonial Question: Common Skies, DividedHorizons. London: Routledge, 1996.

PARTE 2 - MARCOS PARA OS ESTUDOS CULTURAIS

• Estudps Culturais: dois paradigmasReprinted by permission of Sage Publications from Stuart Hall, "Cultural Studies:Two Paradigms", in Media, Culture and Society, 2, 57-72, 1980.© Sage Publications 1980. -t

^.V1"

Significant), representacao, Ideologia: Althusser e os debates pos-estruturalistas.HALL, S. Signification, Representation, Ideology: Althusser and the Post-Structuralist Debates. Critical Studies in Mass Communication, v. 2, n. 2,p. 91-114, June 1985. Used by permission of the National CommunicationAssociation.

^Estudos Culturais e seu legado teoricoHALL, S. Cultural Studies and Its Theoretical Legacies. In: GROSSBERG,Lawrence et al. (Org.). Cultural Studies. New York: Routledge 1992p. 277-286.

Para AUon White: metaforas de transformacaoHALL, S. For Allon White: Metaphors of Transformation. In: WHITE, Allon.Carnival, Hysteria and Writing. Oxford: Clarendon Press, 1993. Reprinted bypermission of Oxford University Press.

PARTE 3 - CULTURA POPULAR E IDENTIDADE

-r Notas sobre a desconstrucao do "popular"HALL, S. Notes on Deconstructing "the Popular".© History Workshop Journal, 1981, by permission of Oxford University Press.

Page 5: Da Dispora - Stuart Hall

O problema da ideologla: o marxismo sem garantiasHALL, S. The Problem of Ideology: Marxism Without Guarantees. In:MATTHEWS, B. (Org.). Marx: 100 Years on. London: Lawrence & Wishart,1983, P- 57-84.

A relevancia de Gramsci para o estudo de raca e etnicidadeHALL, S. Gramsci's Relevance for the Study of Race and Ethnicity. Journal ofCommunication Inquiry, 10 (2), 5-27.© 1986 by Sage Publications. Reprinted by permission of Sage Publications, Inc.

"negro" e esse na cultura negra?HALL, S. What is This "Black" in Black Popular Culture?© 1998 Black-Popular Culture: Discussions in Contemporary Culture #8,edited by Michele Wallace. Reprinted by permission of The New Press.(800) 233-4830. (Led. Seattle: Bay Press, 1992.)

PARTE 4 - TEORIA DA RECEPgAO<Reflexoes sobre o modelo codificacao/decodifica^aoHALL, S. et al. Reflections upon the Encoding/Decoding Model. In: CRUZ,Jon; LEWIS, Justin. Viewing, Reading, Listening.© 1994 by Westview Press. Reprinted by permission of Westview Press, amember of Perseus Books', LLC.

CodificacaWdecodificacaoHALL, S. Encoding/Decoding. Culture, Media, Language-, Working Papers inCultural Studies, 1972-1979- London: Hutchinson/CCCS, 1980.

PARTE 5 - STUART HALL FOR STUART HALL

A formacao de um intelectual diasporico: uma entrevlsta com StuartHall, de Kuan-Hsing ChenHALL, S.; CHEN, K.-H. The Formation of a Diasporic Intellectual: anInterview With Stuart Hall by Kuan-Hsing Chen. In: MORLEY, David;CHEN, Kuan-Hsing (Org.). Stuart Hall: Dialogues in Cultural Studies-London: Routledge, 1996.

D M N O

Este livro tern suas origens na vinda de Stuart Hall aoBrasil, quando proferiu uma palestra na sessao de aberturado VIII Congresso da Associate Brasileira de LiteraturaComparada, realizado na Bahia em julho de 2000. Portanto,sinceros agradecimentos se fazem a Diretoria da ABRALIC,na gestao de 1998-2000, particularmente a sua presidente,Evelina Hoisel, e a vice-presidente, Eneida Leal Cunha. Aenvergadura deste livro deve muito ao interesse da EditoraUFMG em publica-lo.

Adelaine La Guardia Resende foi uma excelente parceirade trabalho. Ela traduziu para um portugues claro e proximodo original a maioria dos textos e revisou comigo todos eles.A revisao tecnica de textos repletos de metaforas, termino-logias conceituais especializadas e referencias tiradas deobjetos os mais diversos — que passam por Volochinov, abanda The Police e Hamlet— encontrou nela uma interlocu-tora sempre disposta a discutir o que poderia parecer merodetalhe, concordando, discordando e recomendando solucoes.Recebi generosas contribuicoes, tambem, de Nilza Iraci,na revisao de "Que 'negro' e esse na cultura negra?" e natransposicao para o portugues do Brasil de "Estudos culturaise seu legado teorico", e de Itania Gomes em "Codificacao/Decodificacao".

Esta obra talvez tivesse naufragado nao fosse a dispo-sicao de Stuart Hall de sugerir textos e ver publicado noBrasil um livro unicamente de sua autoria, coisa rara. Seuapoio ao projeto, sua generosidade em comentar a apresen-tacao e sua correspondencia precisa e bem-humoradadurante os dois anos em que este livro foi gestado, forampreciosos incentives ao trabalho e ao bom humor.

Page 6: Da Dispora - Stuart Hall

u M O

APRESENTACAO

PARA LER STUART HALL

P AjfR T E CONTROVERSIASJH.

PENSANDO A DIASPORA

REFLEXOE5 SOBKE A TERRA NO EXTERIOR

A QUESTAO MULTICULTURAL

QUANDO FOI O P6S-COLONIAL?

PENSANDO NO LIMITE

25

51

101

P A>K T E MARCOS PARA OS ESTUDOS CULTURAIS

ESTUDOS CULTURAIS

DOIS PARADIGMAS 131

S1GN1FICACAO, REPRESENTACAO, 1DEOLOGIA

ALTHUSSER E OS DEBATES POS ESTRUTURALTSTAS 160

ESTUDOS CULTURAIS E SEU LEGADO TE6RICO 199

PARA ALLON WHITE

METAFORAS DE TRANSFORMAgAO 219

T E CULTURA POPULAR E IDENTIDADE

NOTAS SOBRE A DESCONSTRUgAO DO

"POPULAR" 247

O PROBLEMA DA IDEOLOGIAO MARXISMO SEM GARANT1AS 265

Page 7: Da Dispora - Stuart Hall

A RELEVANCIA DE GRAMSCI PARA O ESTUDODE RA£A E ETNICIDADE 294

QUE "NEGRO" £ ESSE NA CULTURA NEGRA? 335

T E TEORIA DA RECEP£AO

REFLEXOES SOBRE O MODELO DECODIFICAgAO/DECODIFICAgAOUMA ENTREV1STA COM STUART HALL 353

CODIFICAgAO/DECODIFICAgAO 387

A P R E S E N T A ^ A OPARA m STUARl HALL

STUART HALL FOR STUART HALL

A FORMAgAO DE UM INTELECTUAL

DIASP6RICOLIMA ENTREVISTA COM STUART HALL, DE KUAN HS1NG CHEN 407

CLQiito de origem dps Estudos_Culturais reza que StuartHa]i_e__seju_pai. Foi^dirjetor_^Q_X£atre_for_jC_Qntej2r3^_ajyCulturaj_J?tudies (CCCS)jda Universidade de Birmingham,na Inglaterra, durante seu periodo mais fertil, qsjuios 70.Na verdade e um dos pais, pois o mito de origem incluiRichard Hoggart, Raymond Williams e, as vezes, E. P. Thompsonnesse papel. Mas foi Stuart Hall quern assumiu os EstudosCulturais como projeto institucional na Open University, econtinuou, periodicamente, a se pronunciar sobre os rumosde algo que se tornou um movimento academico-intelectualinternacional.

Ao mesmo tempo, Stuart Hall recua diante da autoridadeque Ihe e atribuida. Faz de seu estatuto paterno^uma van-tagem de testemunha ocular (cf. LT).1 Ou ironiza-o, comofez em palestra no congresso da Associacao Brasileira deLiteratura Comparada (ABRALIC), em Salvador, em julho de2000, ao falar da importancia, para ele, de ler Roger Bastidee Gilberto Freyre nos anos 50. Os_Estudos Culturais teriamorigem, inclusive^_b£asileira. O recuo de Hall e indicacaode uma atitude peculiar diante do trabalho intelectual, pelaqual os antepassados e contemporaneos teoricos sao, a umso tempo, aliados, interlocutores, mestres e adversaries, decuja forca Hall se apropria, sem se preocupar em denunciarpontos fracos ou demonstrar devocao filial as suas ideias.Npjnelhor sentido brasileiro, Hall e antropofago. Deglutiu

Page 8: Da Dispora - Stuart Hall

Marx, Gramsci, Bakhtin. Saboreou Louis Althusser, RaymondWilliams, Richard Hoggart, Fredric Jameson, Richard Rorty,Jacques Derrida, Michel Foucault, E. P. Thompson, GayatriSpivak, Paul Gilroy, com algo de len Ang, Cornel West, HomiBhabha, Michele Wallace, Judith Butler, David Morley, assimcomo ingeriu Doris Lessing, Barthes, Weber, Durkheim e Hegel.

Existem eventualmente duas excecoes a metafora antro-pofagica para o Hall leitor. Ele e filho amotinado de F. R.Leavis, grande defensor do canone literario como moralmentesuperior a cultura de massa que dominou a critica literariabritanica nosvanos 30 a 50 do seculo XX. E se filia ao metodoe as prioridades de Gramsci, dentre as quais esta fazer umtrabalho teorico que contribua para uma ideologia e umacultura "populares", em contraposicao a cultura do bloco depoder (cf. NP), ao mesmo tempo em que se desconfia doalcance politico limitado do trabalho intelectual. Quandocolocado na posicao de grande mestre e exaltado por aquiloque escreveu, Hall desconversa, pois.^maisjmportante doque criar discipulos e alimentar o debate sobre_a_ tematica^bla^Ue^e^jnTcomerrtario sobrelflmportancia do seu ensaio"Que 'negro' e esse na cultura negra?", reforcou a metaforaantropofagica ao dizer: "Help yourself." Sirva-se.

de uma-- _ n a_familia de classe media, adquiriu, ainda jovem, consciencia"da contradicao da cultura colonial, de como a gente sobre-vive a experiencia da dependencia colonial, de classe e cor,e de como isso pode destruir voce, subjetivamente" (FID).O movimento pela independencia da Jamaica fez parte doambiente em que ele cresceu, ao passo que a Segunda GuerraMundial foi fundamental ao suscitar nele, estudante secun-darista, uma consciencia historica e geografica como contextodas preocupac.6es anticoloniais de sua geracao. Enquanto seuscolegas pretendiam estudar economia, ele se interessou maispela historia e sonhou em ser escritor. Em 1951, foi estudarliteratura em Oxford "e "aca'bou n"a~o" mais voltando a morarna Jamaica. -

Num primeiro momento, Hall se associou a jovens cari-benhos que formaram a primeira gerac.ao de uma inteli-gencia negra, anticolonialista. Mais tarde, fez parte de umgrupo fundamental para a formacao da New Left inglesa, do

10

final dos anos 50 e inicio dos 60, que incluiu E. P. Thompson,Raymond Williams, Raphael Samuel, Charles Taylor, muitosdeles originahos jas^margens, seja por motives de classe ougeografia-^Essa "nova esquerda" se cristalizou a partir^dosacontecimentos de 1956: a invasao sovietica da Hungria e acrise do Suez, quando as forcas israelitas, francesas e brita-nicas atacaram o Egito do nacionalista arabe Nasser. Nao seidentificava nem com o stalinismo, com o qual os membrosdo Partido Comunista estavam alinhados com diversos grausde entusiasmo, nem com o nacionalismo britanico, com seuprojeto imperialista. Nessa perspectiva_critica. Hall foi editorda New Left tft^wMte 19_^aJJ26l^j^

Tfiscussao sobre novas^cornpreensoes de classe social, _mpvi-IrrenTos^spciais eTp.olitica, da ,questao... do..des_armamentonucleate — a partir dos disturbios raciais no bairro NettingHill em 1958 — sobre a incipiente tjuestao .racial britanica.

Stuart Hall participou da fundacao, em 1964, do Centre forContemporary Cultural Studies (CCCS)j_da Universidade deBirmingham, que deu o nome de(Estudos_C_ulturai^a uma

_f^rma_de_pensar sobre cultura^ Financiado parcialmente comos lucres das vendas de The Uses^fJLiteracy, de Hoggart,sobre o consume cultural da classe operaria inglesa, eledirigiu o Centre nolTseus primeiros quatro anos. Foi noperiodo sob a direcao de Stuart Hall, de 1968 a 1979, que seconsolidaram os Estudos Culturais, a partir de uma preocu-pacao politica e do projeto de colocar em bases teoricas maissolidas as leituras de "textos" da cultura, que incluiam desdeo fotojornalismo2 e programas de televisao, ate a ficcaoromantica consumida por mulheres e as subculturas juvenisbritanicas (leia-se teds, mods, skinheads, rastas) as vesperasdo movimento punk.3

O pensamento de Hall passa por conviccoes democraticase pela agucada observacao da cena cultural contemporanea.A maioria de seus textos teoricos responde a uma conjunturaespecifica, incluindo ai um momento da discussao teoricasobre a cultura. Deixam clara sua ligacao com o projetode formular "estrategias culturais que fazem diferenca edeslocam (shift) as disposicoes de poder" (QN). Desloca-mento, alias, e a imagem que Hall faz da relacao da culturacom estruturas sociais de poder; pode-se fazer pressoesatraves de politicas culturais, ern uma (guerra~de posicoes",

11

Page 9: Da Dispora - Stuart Hall

mas a absorcao dessas pressoes pelas relacoes hegemonicasde poder faz com que a pressao resulte nao em transfor-macao, mas em(deslocamentoP)da nova posicao fazem-senovas pressoes.

As pressoes se efetuam dentro de uma situacao complexa.Em um trecho do texto intitulado "Que 'negro1 e esse nacultura negra?", Hall explica o dificil quadro em que se fazpoliticas culturais negras e se produz cultura:

Etnicidades dominantes sao sempre sustentadas por uma eco-nomia sexual especifica, uma figuracao especifica de masculi-nidade, uma identidade especifica de classe. Nao existe garantia,quando psocuramos uma identidade racial essencializada daqual pensamos estar seguros, de que sempre sera mutuamentelibertadora e progressista em todas as outras dimensoes. [...] Defato nao € nada surpreendente a pluralidade de antagonismose diferencas que hoje procuram destruir a unidade da politicanegra, dadas as complexidades das estruturas de subordinacaoque moldaram a forma como nos fomos inseridos na diasporanegra (QN).

Ressaltam-se as tensoes: a pergunta sobre identidade negraa que se refere o titulo do artigo reverte para a consideracaocritica da etnicidade dominance; a id_entidade_jiegra_. e_ gtra-

t inclusive dgjgenero e orien-tacao sexual. A politica identitaria essencialista aponta paraalgo pelo qual vale lutar, mas nao resulta simplesmente emlibertacao da dominacao. Nesse contexto complexo, aspoliticas culturais e a luta que incorporam se trava em muitasfrentes e em todos os niveis da cultura, inclusive a vida coti-diana, a cultura popular e a cultura de massa. Hall aindaacrescenta um complicador, no final do texto: o meio mercan-tilizado e estereotipado da cultura de massa se constitui derepresentacoes e figuras de um grande drama mitico com oqual as audiencias se identificam, .e^mais uma experiencia

_de_ fantasia do que de auto-reconhecimento.A construcao por Hall do problema e argumento sobre

politicas culturais negras coloca em pauta uma constelacaode ideias em tensao umas com as outras, criando uma espe-cie de cama-de-gato ou ponte pens^l. O proprio Hall usametaforas diferentes para descrever seu trabalho. Ja fezjardinagem teorica com as ideias de Gramsci, que podem

ser "desenterradas delicadamente de seu solo concrete e desua especificidade historica e transplantadas para um novoterreno, com muito cuidado e paciencia" (RG). Ao fazerisso, as ideias se tornam uteis para pensar ra£a e etnicidadeem outros climas e epocas. Em outro momento, comparao ambiente de trabalho do CCCS a uma estufa (FID) altamenteseletiva, onde os Estudos Culturais puderam ser cultivadosem condicoes otimas, embora artificials. Teorizar^significavaresponder a enigmas e lidar cpjn^^jmj^oo^d^jiQY^s^m^vi^nientos sooais., No~CCCS tratou-se de travar uma luta com econtra teorias, como se fosse Jaco com o anjo (cf. LT). Lutarcom as teorias dessa forma significava nao aceitar sua autori-dade como se fosse divina. O trabalho teorico e um corpo-a-corpo com outros teoricos, sua autoridade e seus discipulos,sua historia e mudancas de rumo. E um jogo agonistico, masnao e uma mera brincadeira, pois e fundamentalmente utilna busca de respostas a questoes complexas que grupos esociedades enfrentam. Pois, para Hall, o social ainda existe,sim, e como Deleuze, ele entende que as teorias sao caixasde ferramentas a serem usadas em seu beneficio.

Com a preocupacao de fazer dialogar uma teorizacaocomplexa e sofisticada com as demandas de segmentos socials,

JHtal^transferiu-se. em 1979. de Birmingham_para a_OpjgnUniversity, uma instituicao de ensino superior na qual adultosobtem diplomas universitarios atraves de uma combinacaode educacao a distancia e seminaries intensivos. De la dirigiu,com exito, esforcos para^institucionali7:ar Qg_EsjLudos Culturais

abordagem que engajavabritanicos, fazendo delesos intelectos nao so na estufa. mas tambem em_camposmais amplo_s_da_p_opulacao britanica cujo_aces_^J_e_ducacagsuperior era Umjtado ou recente, Nos anos 80 e 90, veio aaceitacao dos Estudos Culturais no meio academico britanicoe sua incorporacao pela industria editorial como linha deproducao academica e de interesse geral, com boas vendas.Finalmente, Stuart Hall assistiu a um crescente interesse pelosEstudos^Culturais fora da Gra-Bretanha, por estudlosos nosmais diversos lugares, principalmente no enorme e rico meiouniversitario dos Estados Unidos.

Q__trahajho_d£_Hall focaliza a "questao paradigmatica dateoria cultural", ou seja, "c.Qrno_!pensar', de forma nao redu-

.^as. re 1 acqes_ejitre_^i^ociaj/.__ejp_simholico'" (AW).

12

Page 10: Da Dispora - Stuart Hall

O pensamento tern um peso especifico, pois o_discurso teorico£ uma^ratica^ultu^l^ntica^que se faz^comapretensao deintervir em uma discussaojnais ampja ; por natureza, ajteoiiatern ess^pote^noal^de^ntervgngao. Quando reve a questaoda~ ideblogia, Hail diz: "Tambem quero coloca-la [a ideologia]enquanto um problema geral — um problema para a teoriaporque tambem e um problema para a poKtica e a estrategia."(PI)- A teoria e uma tentativa de solucionar problemas poli-ticos e estrategicos; nao uma elaboracao a partir deles. ^Ateoria e uma tentativ^^de_^aber_algo__que, por sua vez, levaa um novo ponto de partida em um p_r_ocesso_se.rn.pj:ejnac.a-Bacfo de~Tndagag"ao~e'~descoberta; nao_e um sistema_ _C[ue

Autil.nadiferenca de enfase e importante e esclarece por que, paraHall, a teoria e "um conhecimento conjuntural, contestadoe local", mais do que uma manifestacao da vontade de ver-dade (LT). Por esta razao, o legado teorico do CCCS nao tomaa forma de um referencial teorico, na visao de Hall, mas deum posicionamento sobre o que significa fazer trabalho inte-lectual serio hoje. Essa postura entende os Estudos. Oolturaiscomo projeto que implica o_envolyimento com — e a consti-tuicao teorica de — forc.as de mudanca_econ 6m icaj^ social.

Os textos neste livro seguem as convenc,6es do generoteorico-academico. Podem ser lidos em busca de concei-tuac,6es de hegemonia, ideologia, agenciamento politico,art.iculac.ao, globalizacao, por exemplo, ou, em uma leituramais transversal, a perspectiva de Hall sobre. a relacao entre

©•os meios de comunicacjio e a cultura, o lugar da historia noestudo da cultura contemporanea, a sua epistemologia ou,ainda, a maneira pela qual le questoes das etnicidades domi-nantes e de genero. Essas leituras e outras se enriqueceraoao levar em conta a consciencia de jjall dametafora xomncaminho e limite de_compreensao. Em "Estudos Culturais esexT le gacTote orico " t relata que "a~b~usca de uma pratica insti-tucional que pudesse produzir um intelectual organico" foi ametafora que orientou o trabalho do CCCS nos anos 70,embora nao se conseguisse identificar o "movimento historicoemergente" no qual o intelectual organico se inseriria. Tam-pouco, no CCCS, se teria reconhecido tal intelectual organicoque se procurava produzir, diz. A metafora gramsciana detrabalho intelectual presente em Birmingham esta "sob a

rasura" (metafora derridiana, a qual Hall recorre frequente-mente) da constatacao de ingenuidade. Este intelectual,lembra, trabalha em duas frentes. Deve saber mais do que ointelectual tradicional, estar "na vanguarda do trabalho te6-rico intelectual" e, ao mesmo tempo, repassar seu saber paraintelectuais fora da academia. Os intelectuais tradicionaisse colocam ao lado do conhecimento e interesses sociaisja estabelecidos. Os intelectuais organicos sag comprome-tidos com un^^abglho inteteclu^sociais e economicas.

No mesmo texto, apresentado a uma plateia de academicosnorte-americanos, na conferencia sobre cultural studies naUniversity of Illinois at Champaign-Urbana, em 1990, Hallafirma a necessidade de uma compreensao politica dosEstudos Culturais que leve em conta a "sujeira do jogosemi6tico", a qualidade "mundana" do que esta em jogo,seu arraigamento em fenomenos sociais que incluem em-presas e classes sociais, nac.6es e generos. O riso de superio-ridade perante o romantismo nos primordios dos EstudosCulturais encontra seus limites em novas metaforas: QJLEstudos CuJturai-S—nascejram impuros. nao como denomi-nac.ao ou igreja academica. Metaforas regem a compreensaoda situacao retratada, e a compreensao do que esta em jogopassa pelas tensoes que a comparacao metaforica suscita. Masas metaforas nao sao somente a forma elegante que Hall ternde dizer varias coisas ao mesmo tempo. Sao, em si, reconheci-mentos de que a substancia, a materialidade da vida social, aomesmo tempo escapa e e captada na linguagem, Os Estudos_Culturais se fazem na propria ...tggsaoentre_a discursividade eputras questoesj^ujsjrnp^^ramente abarcadas pela textualidade critica" (LT). Um temaque capta essa tensao claramente e o da _mistura_ cultural,me^tic^gejrj^JubrjclJ^rjacL-Hall afirma o valor estrategico dosdiscursos de identidade negra diante do racismo, com suasmultiplas raizes nos diversos niveis da formacao social: poli-tico, economico, social, cultural. Ao mesmo tempo, em ummovimento que parece paradoxal, enfoca_sempjre .o jogoda diferenca, a differance, a natureza intrinsecamente hibri-dizac|a_de_ toda tdegtidade e das_i.d^XLtj.da_d£sldias,po^ricjt.s

. O paradoxo se desfaz quando se entende queassume, uma costura de

ernesp,ec*r———'—- \.a (Tdentidade)e um lugar

14 15

Page 11: Da Dispora - Stuart Hall

e coatexto, e nao uma essencia ou substancja aser examinada.

Outra tensao entre discursos e suas circunstancias, obser-vada no trabalho de Hall, e gerada pela consciencia daposicao, da tensao entre quern narra e o que e narrado notrabalho critico-teorico, uma consciencia tipica da atual cri-tica cultural. A abordagem de Hall a essa questao responde,de um lado, a qualquer tendencia de desarraigar as teoriasdos problemas aos quais se dirigem, em um processo deexcessiva abstracao. Esses excesses, frequentemente, levamao determinismo e reducionismo. Sobre esse tema, Hall"lutou" com(Marx> o economicismo do marxismo classico.Seu engajamento com Marx foi por se sentir atraido por umateoria~dcTcapital e classe social, de poder e exploracao, dapratica da produc.aq de conhecimentos criticos; mas discor-dava do espae/o relativamentejgecrueno destinado-a-cultura, aIdeblogia e ao simboligo^elo marxismo classico, e do euro-centrismo implicito no modelo de transformacao capitalista deMarx, pois ignora o fato de que as potencias metropolitanasimpuseram o capitalismo nas colonias, ele nao evoluiu rumoas colonias de forma organica, "a partir de suas proprias trans-formacoes".^ Decorre desse engajamento com Marx a distingaorecorrente, em Hall, entre a determinacao (determinacy)enquanto condicao e gama de possibilidade, enquanto loca-lizacao e orientacao historicas, de um lado, e a determinacao(determination) que implica em um modelo de sistema eco-nomico capitalista integrado e autotransformador, quearrasta outras dimensoes da sociedade consigo, definindo-asno caminho.

Novamente,(ijnimscrpode servir de Hustracao de como adistincao funciona em Hall. Um breve relato biografico dessesardenho, que migrou para o norte da Italia e se envolveucom o movimento operario e o Partido Comunista em Turim,e feito em "A relevancia de Gramsci para o estudo de raca eetnicidade". Mesmo depois de abandonar o nacionalismode sua juventude a favor do comunismo, Gramsci pensou arelacao entre setores camponeses e industriais, e as desi-gualdades regionais criadas a partir de relacoes internas"colonials", conforme Hall as qualifica. A localizacao deGramsci na Italia em uma conjuntura historica especifica, umadescricao do caminho que adotou e os problemas que tratou

16

esclarecem suas preocupacoes teoricas. Nos ajudam a entenderos paralelos entre as circunstancias de Gramsci e o contextocontemporaneo do estudo de raca e etnia. Mapeiam o terrenono qual as ideias de Gramsci cresceram.

No entanto, a elaboracao da posiclo (positionality) naodeve ser confundida com uma especie de extrapolac.ao teo-rica de questoes particulares. Nem se deve entender que _oreconhecimento da localizagao historica seja uma questao dereconhecer e, portanto, de neutralizar a subjetividade comoponto de partida de qualquer discurso. Ao contrario, quernescreve teoria precisa gj]j££4ec-QsJJrmtes de sua experienciae, em um esforc.o de imaginacao, de abstrac/ao, comunicar-sealem delas. Afirma Hall em "Estudos Culturais e a politicada internacionaliza^ao":

Sempre se deve ter consciencia da forma especifica da propriaexisiencia. As ideias nao sao simplesmente determinadas pelaexperiencia; podemos terjxle'ias fora da propria experiencia..Mas precisamos reconhecer tambem que a experiencia tem umaforma, e se nao refletirmos bastante sobre os limites da propriaexperiencia (e a necessidade de se fazer um deslocamentoconceitual, uma traducao, para dar conta de experiencias quepessoalmente nao tivemos), provavelmente vamos falar a partirdo continente da propria experiencia, de uma maneira bas-tante acritlca. Eu acho que isso acontece nos estudos culturaishoje.5

A imagem do iludido, ilhado, falando a partir de seuproprio continente, coincide com as criticas frequentes deHall ao "puramente discursive" e a "fluencia teorica" (LT). Hallexplica o que separa o discurso teorico fluente das questoesde "poder, historia, politica" que esse discurso ignora, citandosua experiencia como diretor do CCCS na epoca do surgimentoexplosive do feminismo, quando descobrkr que "falar de abrirmao do poder e radicalmente diferente de ser silenciado" (LT).Mas a questao nao e de opor a experiencia vivida ao discurso,de tal forma que a subjetividade autorize o discurso, mas reco-nhecer que o trabalho de elaborac.ao e produ^ao de cultura,em todos os ambitos, e de interesse publico, politico.

Evidentemente, sempre ha diferentes interesses em jogo.Em Hall, F. R. Leavis e uma referenda negativa recorrente e

17

Page 12: Da Dispora - Stuart Hall

representa interesses politicos e teoricos antagonicos, atemesmo porque a relacao entre a cultura e a sociedadecontemporanea e o foco de interesse de ambos. Leavis^ereferencia negativa porque aposta na Civilizacao (europeia)e nos classicos da literatura como antidoto aos efeitosnefastos da publicidade e da cultura de massa. Memoravelfrase, escrita por Q. D. Leavis, mulher, colega e adepta deF. R.<Leavis>, resume, em uma caricatura involuntaria, a valo-rizacao ~do canonico do Leavisism e seu horror diante_da_cultura de massa. Sobre a epoca de Shakespeare, Marlowe ea drarfiaturgia elizabetana, Q. D. Leavis escreveu: "As massastiveram os mesmos divertimentos que seus superiores...Felizmente, nao tinham escolha."6 A critica recorrente de Hallao "puramente discursive", de um lado, e a F. R. Leavis, deoutro, convergem sobre esse ponto: a sua limitacao aosvalores e ao "continente" academicos.

O elitismo cultural e o moralismo no estilo dos Leavistendem a ser coisa do passado na discussao teorica, emboracontinuem fazendo parte do senso comum, presentes nodesprezo pelo discernimento ou gosto popular. O eurocen-trismo ainda esta vivo nos pressupostos e discursos da midiae da cultura de massa, a historia colonialista se recicla nosdiscursos publicos contemporaneos. Ao definir-se como^inteleclual diasporico", Hall escolhe o lugar que o discursoeurocentrico destina a ele, um lugar de negro. Por isso, esteHvro nao tern so um conjuntodeensaios nos quais Halltrabalha a questao de raca e racismo, como "Que 'negro' eesse na cultura negra?", "A relevancia de Gramsci para oestudo de raca e etnicidade" e "Pensando a diaspora". Querno ler tambem vai encontrar o tema de raca e racismo nadiscussao da ideologia em "Significacao, representacao, ideo-logia: Althusser e o debate pos-estruturalista". Vai encontrarreferencias ao legado cultural do colonialismo e reflexoessobre hierarquias, sua construcao historica e eventuais des-tinos em praticamente todos os ensaios. Hall nao e um teo-rico que se dedica ao "negro-tema", que Guerreiro Ramosdefine como "coisa examinada, olhada, vista".7 Tampouco eum grande mestre cuja preocupacao com questoes raciaispossa ser entendida como uma especie de hobby militante.Fala desde uma dupla diaspora, africana no Caribe e cari-benha na Gra-Bretanha. Assim, a perspectiva do critico como

18

diasporico € constitutiva de seu trabalho, enquanto ele falado centre da Europa.

O conteudo deste livro pode ser percorrido com diversosmapas e, entre eles, foram pensados pelo menos quatro: a Qdis^ussag^da^dejiJldacIe rulniral, da questao racial e doracismq;-a'formagao do campo de interesses, a abordageme o acumulo de cojjjiecimentos que se apresentam como"Estudos Culturais'Va questao da contestacao a hegernonia'oJ[turalnj_sociedade mediatica e de jconsumo;; p^dialogo;3critico de Hall com cqrrentes cpntejmppj;aneaA.de_p£nsjamentosobre cultura,. Os textos, lidos a partir de perspectivas di-versas, criam uma topografia de varios niveis de abstracao,tons e prop6sitos, de problematicas e preocupagoes teoricasdiferentes. Comecam com tres ensaios sobre importantesquestoes atualmente em debate.

O ensaio "Pensando a diaspora" aborda identidades cari-benhas diasporicas sob as condicoes contemporaneas deglobaliza^ao. Hall examina os mitos de origem, sua necessi-dade e perigos quando levados ao pe da letra; pensa a Africacomo elemento que sobreviveu e como meio de sobrevi-vencia na diaspora, dgfende_a hibridiza^ao ou "impureza"cultural enquanto a "forma em i que oAssim, a velha politica identitaria de reivindicacao, respostae negociacao e vista contra um pano de fundo em que asintervencoes das margens nunca consolidam uma posie.aofinal, essencial, embora sua afirmacao tenha o que Hallchama de "repercussoes reais e conceituais" em um processoque envolve nao so a conhecida globalizac.ao economica, masas dimensoes culturais de fluxos migratorios, a producaoartistica e as raizes, novas e antigas. Em "A questao multi-cultural", Hall discute as mudancas culturais e politicas naGra-Bretanha sob a rubrica abrangente do "multicultural" eprocura proper uma politica identitaria em uma epoca deglobalizacao contradit6ria, que evite os extremes do indivi-dualismo liberal e do relativismo cultural. Embora se dirija asituac.ao britanica, marcada por ondas recentes de migracaodas antigas colonias, pode ser uma contribuicao para a re-flexao sobre aspectos teoricos da politica cultural brasileirae as transformacoes do discurso identitario nacional.

J'Quando foi o 'pos-colonial'?" defende o paradigma pos-colonial contra o "retorno do reprimido". o eurocentrismo,

•Lotf19

Page 13: Da Dispora - Stuart Hall

e demonstra a importancia atribuida por Hall nao_s6 as poli-ticas culturais, mas a "politica da teoria" e os rumos do debate

"Intel ectuaf.

Em "Estudos Culturais: dois paradigmas", de 1980, Hallavalia os Estudos Culturais ate entao. Examina os pontos

Tortes e traces da abordagem culturalista a cultura, a ideo-logia e sua articulacao a outros niveis de praticas sociais,focalizando sobretudo o trabalho de Raymond Williams e seudialogo com E. P. Thompson. Depois, avalia a abordagemestruturalista de Althusser e Levi-Strauss. O texto foi escritona epoca de uma polemica de E. P. Thompson contra osalthusserianos. Para Hall, Thompson chegava perto demaisda evocacao de uma experiencia em estado bruto comolastro da narrativa historiografica e da ideologia e abando-nava precipitadamente &• contribuicao de Althusser.8 "Signifi-cacao, representacao, ideologia", de 1985, da continuidadeao debate em torno de cultura e ideologia, relembrando oAlthusser de A favor de Marx, e fazendo sua critica a partirde teorias da linguagem de Bakhtin/Volochinov.9 "Estudos.Culturais_e^s_eu legado teorico", publicado em 1992, e urntexto mais^metodologico e politico, e faz o balalico mais^recemejdos Estados--Culturais. "Para Allon White: metaforasde transformacao" analisa a "virada lingiiistica" nos EstudosCulturais com o impacto de Bakhtin.

Preocupagoes com o popular permeiam os textos. "Notassobre a desconstrucao do 'popular'", escrito logo ap6s avitoria eleitoral de Margaret Thatcher, faz uma discussaoconceitual e historica do que seja o popular. "Que 'negro' eesse na cultura negra?" e um exemplo claro do metodo anali-tico de Hall e seu interesse por "politicas culturais quefacam diferenca"; forma o nexo para uma resposta a per-gunta do que resta de "negritude" quando a industria cul-tural a acolhe. "O problema da ideologia: o marxismo semgarantias" e a chave da relacao um tanto fora-de-moda deHall com o marxismo em epoca pos-marxista e apres.enta acompreensao de Hall de que|Tcle~nTiffadelt s5o jituacoes.j "Arelevancia de Gramsci para o estudo de raca e etnicidade",encomendado pela Unesco para um coloquio sobre racismoem 1985, apresenta a posi^ao de Hall sobre Gramsci e faz atransigao entre seu pensamento anterior, mais ligado a ide-ologia, e o atual, que passa pela identidade e o discursive.

20

Em "A formacao de um intelectual diasp6rico", uma entre-vista que pode, com proveito, ser lida em primeiro lugar, Hallfala das condicoes pessoais, institucionais e historicas deseu trabalho. Finalmente, em "Codificacao/Decodificacao"uma teoria da recepgao da televisao, talvez seja o texto maisclassicamente teorico, pois e de um alto mvel de abstracaoe ja gerou muitos estudos e discussoes por contornar atradicao behaviorista na pesquisa de audiencia. Publica-sejunto com "Reflexoes sobre o Modelo 'Codificar/Decodificar'",em que Hall coloca os termos do modelo em contexto histo-rico e avalia seus pontos fracos e fortes.

Estes doze ensaios e as duas entrevistas sao publicadosem uma conjuntura especifica, no Brasil. A identidade racialbrasileira e as formas brasileiras de racismo estao no centrado debate politico-cultural. Estao nos discursos dos meios decomunicacao e nos produtos culturais de massa, em pronun-ciamentos oficiais e nas universidades, onde a propensao aestudar as tendencias sociais como se fossem externas foiinterrompida pela proposta de cotas para alunos negros nasuniversidades, feita por diversas instancias de governo. Aspoliticas federals para a educacao superior vem provocandoum debate sobre o lugar social e institucional do trabalhointelectual, sobre o qual Stuart Hall tern tanto a dizer. Aselegao dos textos foi influenciada por essa conjuntura poli-tica, cultural e academica e tambem pela preocupacao emapresentar boas traducoes de textos, ja consagrados ou maisrecentes, relacionados a esses e outros temas atuais — poli-ticas culturais democraticas, por exemplo.

Espera-se, com esta publicacao, que Stuart Hall possa serlido com a delicadeza, paciencia e cuidado que ele dedicoua Gramsci, Althusser, Bakhtin e muitos outros, e que sejaproveitosamente discutido, explicado, questionado e contes-tadp em sua adequacao a situacoes brasileiras e latino-americanas. Sirvam-se.

Liv Sovik

Rio de Janeiro, outubro de 2002

21

Page 14: Da Dispora - Stuart Hall

NOTAS

1 As iniciais maiusculas entre parenteses se referem aos titulos dos seguintesensaios contidos neste livro: Estudos Culturais e seus legados teoricos(LT); Para Allon White: metaforas de transforrnacao (AW); Notas sobre adesconstrucao do "popular" (NP); O problema da ideologia: o marxismosem garantias (PI); A relevancia de Gramsci para o estudo de raca e etnici-dade (RG); Que "negro" e esse na cultura negra? (QN); A formacao de umintelectual diasporico (FID).2 HALL, Stuart. The Determinations of News Photographs. Working Papers inCultural Studies, CCCS, n. 3, 1973-3 Cf. HALL, Stuart; JEFFERSON, Tony (Org.). Resistance Through Rituals.-Youth Subcultures in Post-War Britain. London: Hutchinson/CCCS, 1976.4 Esta descricao se baseia em "Estudos Culturais e seu legado teorico", mas odebate de Hall com Marx e o marxismo se encontra em maior profundidadeem "O problema da ideologia", (ambos se encontram neste volume) e emensaios anteriores, tais como: "Marx's Notes on Method; A 'Reading1 of the'1857 Introduction'" (in: Working Papers in Cultural Studies 6, Birmingham,University of Birmingham, p. 132-171, 1977); "Culture, the Media and the'Ideological Effect1" (in: CURRAN, James (Ed.). Mass Communication andSociety. London: Edward Arnold, 1977. p. 315-348); "The Hinterland ofScience: Ideology and the Sociology of Knowledge" (HALL, S.; LUMLEY,B.; MCLENNAN, G. (Ed.). On Ideology. London: Hutchinson/CCCS, 1978.Traducao brasileira: Da ideologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1980).5 HALL, Stuart; CHEN, Kuan-Hsing. Cultural Studies and the Politics of Inter-nationalization: an Interview With Stuart Hall. In: MORLEY, David; CHEN,Kuan-Hsing (Org.). Stuart Hall: Critical Dialogues in Cultural Studies.Londres: Routledge, 1996. p. 401.6 Citado por John Storey in: SIM, Stuart (Org.). The A~Z Guide to ModernLiterary and Cultural Theorists. Londres: Prentice Hall/Harvester Wheatsheaf,1995. p. 255-7 GUERREIRO RAMOS, fntroducdo critica a sociologia brasileira. Rio deJaneiro: Editora da UFRJ, 1995. p. 215.8 Cf. THOMPSON, E. P. The Poverty of Theory. Londres: Merlin Press, 1995/1978; HALL, Stuart. Defense of Theory. In: SAMUEL, Raphael (Org.). People'sHistorv and Socialist Theory. London: Routledge & Kegan Paul, 1981;THOMPSON, E. P. The Politics of Theory. In: SAMUEL, Raphael (Org.).People's History and Socialist Theory. London: Routledge & Kegan Paul,1981.

"Quern precisa de identidade?", ja publicado no Brasil, leva a discussaomais adiante, deixando de lado o termo "ideologia" e discutindo subjetivi-dade e discurso identitario, o social e o simbolico, Lacan e Foucault. In:SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferenca. Petropolis: Vozes,

22

C O N T R O V E R T S

Page 15: Da Dispora - Stuart Hall

P E N S A N D O A DIASPORAR E F I E X O E S S O B R E A T E R R A N O E X T E R I O R

A ocasiao desta palestra foi o quinquagesimo aniversariode fundacao da Universidade das Indias Ocidentais (UWI).Mil novecentos e quarenta e oito foi tambem, por acaso, oano em que o SS Empire Windrush, um navio-transporte,chegava as Docas de Tilbury no Reino Unido, trazendo seucarregamento de voluntarios caribenhos que retornavam delicenc a, junto com um pequeno grupo de migrantes civis. Esseevento significou o comeco da migracao caribenha para aGra-Bretanha no pos-guerra e simboliza o nascimento dadiaspora negra afro-caribenha no pos-guerra. Seu aniversarioem 1998 foi comemorado como simbolo "da irresistivelascensao da Gra-Bretanha multirracial".1

A migracao tern sido um tema.constante na narrativa cari-benha. Mas o Windrush iniciou uma nova fase da formacaodiasporica cujo legado sao os assentamentos negros cari-benhos no Reino Unido. Meu objetivo aqui nao e oferecerum relato hist6rico da evolucao dessa diaspora — emborasua dificil historia mereca ser melhor conhecida no Caribe,ate mesmo (ouso dizer) estudada mais sistematicamente.O destino dos caribenhos que vivem no Reino Unido, nosEstados Unidos ou no Canada nao e mais "externo" a historiacaribenha do que o Imperio foi para a chamada historiainterna da Gra-Bretanha, embora esta seja a forma como, defato, a historiografia contemporanea os construa. Em todocaso, a questao da diaspora e colocada aqui principalmente

Page 16: Da Dispora - Stuart Hall

por causa da luz que ela e capaz de lancar sobre as complexi-dades, nao simplesmente de se construir, mas de se imaginara nacao [nationhood e a identidade caribenhas, numa era deglobalizacao crescente.

As nacoes, sugere Benedict Anderson, nao sao apenasentidades politicas soberanas, mas "comunidades imaginadas".2

Trinta anos apos a independencia, como sao imaginadas asnacoes caribenhas? Esta questao e central, nao apenas paraseus povos, mas para as artes e culturas que produzem, ondeum certo "sujeito imaginado" esta sempre em jogo. Ondecomecam e onde terminam suas fronteiras, quando regional-mente cada uma e cultural e historicamente tao proxima deseus vizinhos e tantos vivem a milhares de quilometros de"casa"? Como imaginar sua relacao com a terra de origem, anatureza de seu "pertencimento"? E de que forma devemospensar sobre a identidade nacional e o "pertencimento" noCaribe a luz dessa experiencia de diaspora?

Os assentamentos negros na Gra-Bretanha nao sao total-mente desligados de suas raizes no Caribe. O livro Narrativesof Exile and Return, de Mary Chamberlain, que containhistorias de vida dos migrantes barbadianos para o ReinoUnido, enfatiza como os elos permanecem fortes.3 Tal qualocorre comumente as comunidades transnacionais, a familiaampliada — como rede e local da memoria — constitui ocanal crucial entre os dois lugares. Os barbadianos, sugereela, tern mantido vivo no exilio um forte senso do que ea "terra de origem" e tentado preservar uma "identidadeCultural" barbadiana. Esse quadro e confirmado por pesquisasrealizadas entre os migrantes caribenhos em geral no ReinoUnido, o que sugere que, entre as chamadas minorias etnicasna Gra-Bretanha, aquilo que poderiamos denominar "identi-ficacao associativa" com as culturas de origem permaneceforte, mesmo na segunda ou terceira geracao, embora oslocais de origem nao sejam mais a unica fonte de identifi-cacao.4 A forca do elo umbilical esta refletida tambem nosnumeros crescentes de caribenhos aposentados que retornam.A interpretacao de Chamberlain e de que "uma determina^aode construir identidades barbadianas autonomas na Gra-Bretanha (...) se permanecerem as tendencias atuais, poderaser potencializada e nao diminuir com o tempo".5

26

Contudo, seria errSneo ver essas tendencias como alsosingular ou nao ambiguo. Na situacao da diaspora, as identi-dades se tornam multiplas. Junto com os elos que as ligam auma ilha de origem especifica, ha outras forcas centripetas:ha a qualidade de "ser caribenho" [West-Indianness] queeles compartilham com outros migrantes do Caribe. (GeorgeLamming afirmou uma vez que sua geracao — e, incidental-mente, a minha — tornou-se "caribenha", nao no Caribe, masem Londres!) Existem as semelhancas com as outras popu-lagoes ditas de minoria etnica, identidades "britanicas negras"emergences, a identificacao com os locais dos assentamentos,tambem as re-identificacoes simb61icas com as culturas "afri-canas" e, mais recentemente, com as "afro-americanas" —todas tentando cavar um lugar junto, digamos, &. sua "barba-dianidade" [Barbadianness].

Os entrevistados de Mary Chamberlain tambem falameloquentemente da dificuldade sentida por muitos dos queretornam em se religar a suas sociedades de origem. Muitossentem falta dos ritmos de vida cosmopolita com os quaistinham se aclimatado. Muitos sentem que a "terra" tornou-seirreconhecivel. Em contrapartida, sao vistos como se os elosnaturais e espontaneos que antes_ possuiam tivessem sidointerrompidos por suas experiencias diasporicas. Sentem-sefelizes por estar em casa. Mas a historia, de alguma forma,interveio irrevogavelmente.

Esta e a sensacao familiar e profundamente moderna dedes-locamento, a qual — parece cada vez mais — nao preci-samos viajar muito longe para experimentar. Talvez todos nossejamos, nos tempos modernos — apos a Queda, digamos —o que o filosofo Heidegger chamou de unheimlicheit— literal-mente, "nao estamos em casa". Como Iain Chambers eloquen-temente o expressa:

Nao podemos jamais ir para casa, voltar a cena primariaenquanto momento esquectdo de nossos comedos e "autentici-dade", pois ha sempre algo no meio [between}. Nao podemosretornar a uma unidade passada, pois so podemos conhecer opassado, a memoria, o inconsciente atraves de seus efeitos,isto e, quando este e trazido para dentro da linguagem e dela embarcamos numa (interminavel) viagem. Diante da "flo-resta de signos" (Baudelaire), nos encontramos sempre na

27

Page 17: Da Dispora - Stuart Hall

encruzilhada, com nossas histo'rias e mem6rias ("reliquiassecularizadas", como Benjamin, o colecionador, as descreve)ao mesmo tempo em que esquadrinhamos a constelacSocheia de tensao que se estende diante de n6s, buscando alinguagem, o estilo, que vai dominar o movimento e dar-Iheforma. Talvez seja mais uma questao de buscar estar em casaaqui, no unico momento e contexto que temos...6

Que luz, entao, a experiencia da diaspora lanca sobre asquestoes da idencidade cultural no Caribe? Ja que esta e umaquestao conceitual e epistemologica, alem de empirica,_oque a experiencia da diaspora causa a nossos modelos deidentidade cultural? Como podemos conceber ou imaginar aidentidade, a diferenca e o pertencimento, apos a diaspora?Ja que "a identidade cultural" carrega consigo tantos tragosde unidade essencial, unicidade primordial, indivisibilidade emesmice, como devemos "pensar" as identidades inscritas nasrelacoes de poder, construidas pela diferenca, e disjuntura?

Essencialmente, presume-se que a identidade cultural .seja,fixada no nascimento, seja parte da natureza, impressa atravesdo parentesco e da linhagem dos genes, seja constitutiva denosso eu mais interior. E impermeave! a algo tao "mundano",secular e superficial quanto uma mudanga temporaria denosso local de residencia. A pobreza, o subdesenvolvimento,a falta de oportunidades — os legados do Imperio em todaparte — podem forgar as pessoas a migrar, o que causa oespalhamento — a dispersao. Mas cada disseminacao carregaconsigo a promessa do retorno redentor.

'Essa interpretacao potente do conceito de diaspora e amais familiar entre os povos do Caribe. Tornou-se parte donosso recem-construido senso coletivo do eu, profundamenteinscrita como subtexto em nossas historias nacionalistas.E modelada na historia moderna do povo judeu (de onde otermo "diaspora" se derivou), cujo destine no Holocausto— um dos poucos episodios historico-mundiais comparaveisem barbaric com a escravidao moderna — e bem conhecido.Mais significante, entretanto, para os caribenhos 6 a versaoda hist6ria no Velho Testamento. La encontramos o analogo,crucial para a nossa historia, do "povo escolhido", violenta-mente levado a escravidao no "Egito"; de seu "sofrimento"nas maos da "Babilonia"; da lideranca de Moises, seguida

28

pelo Grande Exodo — "o movimento do Povo de Jah"que os livrou do cativeiro, e do retorno a Terra Prometida.Esta € a wr-origem daquela grande narrativa de liberta^aoesperanca e redencao do Novo Mundo, repetida continua-mente ao longo da escravidao — o Exodo e o Freedom Ride.1

Ela tem fornecido sua metafora dominante a todos os dis-cursos libertadores negros do Novo Mundo. Muitos creemque essa narrativa do Velho Testamento seja muito maispotente para o imaginario popular dos povos negros do NovoMundo do que a assim chamada estoria do Natal. (De fato,naquela mesma semana em que esta palestra foi proferidano campus Cave Hill da UWI, o jornal Barbados Advocate— antecipando as comemoracoes da independencia — atri-buiu os tftulos honorarios de "Moises" e "Aarao" aos "paisfundadores" da independencia de Barbados, Errol Barrow eCameron Tudor!)

Nessa metafora, a historia — que se abre a liberdade porser contingent^ — e representada como teleologica e reden-tora: circula de volta a restauracao de seu momento origi-nario, cura toda ruptura, repara cada fenda atraves desseretorno. Essa esperanca foi condensada, para o povo cari-benho, em uma espe"cie de mito fundador. Pelos padroesusuais, trata-se de uma grande visao. Seu poder — mesmono mundo moderno — de remover montanhas jamais deveser subestimado.

Trata-se, e claro, de uma concepcao fechada de "tribo",diaspora e patria. Possuir uma identidade cultural nessesentido e estar primordialmente em contato com um nucleoimutavel e atemporal, ligando ao passado o future e opresente numa linha ininterrupta. Esse cordao umbilical e oque chamamos de "tradicao", cujo teste e o de sua fidelidadeas origens, sua presenca consciente diante de si mesma, sua"autenticidade". E, claro, um mito — com todo o potencialreal dos nossos mitos dominantes de moldar nossos imagi-narios, influenciar nossas a^oes, conferir significado asnossas vidas e dar sentido a nossa historia.

Os mitos fundadores sao, por definicao, transistoricos: naoapenas estao fora da historia, mas sao fundamentalmenteaistoricos. Sao anacronicos e tem a estrutura de uma duplainscric.ao. Seu poder redentor encontra-se no futuro, que

29

Page 18: Da Dispora - Stuart Hall

ainda esta por vir. Mas funcionam atribuindo o que predizema sua descrigao do que ja aconteceu, do que era no principle.Entretanto, a historia, como a flecha do Tempo, e sucessiva,senao linear. A estrutura narrativa dos mitos e ciclica. Masdentro da historia, seu significado € frequentemente trans-formado- E justamente essa concepcao exclusiva de patria quelevou os servios a se recusarem a compartilhar seu territdrio— como tern feito ha seculos — com seus vizinhos muful-manos na Bosnia e justificou a limpeza etnica em Kosovo.E uma versao dessa concepcao da diaspora judia e de seuanunciado "retorno" a Israel que constitui a origem da disputacom seus vizinhos do Oriente Me'dio, pela qual o povo pales-tino tem pago um prec.o tao alto, paradoxalmente, com suaexpulsao de uma terra que, afinal, tambem e sua.

Aqui entao situa-se o paradoxo. Agora nossos ma-lescomegam. Um povo nao pode viver sem esperanc.a. Massurge um problema quando interpretamos tao literalmenteas nossas metaforas. As questoes da identidade cultural nadiaspora nao podem ser "pensadas" dessa forma.8 Elas temprovado ser tao inquietantes e desconcertantes para o povocaribenho justamente porque, entre nos, a identidade eirrevogavelmente uma questao historica. Nossas sociedadessao compostas nao de um, mas de muitos povos. Suasorigens nao sao unicas, mas diversas. Aqueles aos quaisoriginalmente a terra pertencia, em geral, pereceram ha muitotempo — dizimados pelo trabalho pesado e a doenga. A terranao pode ser "sagrada", pois fbi "violada" — nao vazia, masesvaziada. Todos que estao aqui pertenciam originalmente aoutro lugar. Longe de constituir uma continuidade comos nossos passados, nossa relacjio com essa historia estamarcada pelas rupturas mais aterradoras, violentas eabruptas. Em vez de um pacto de associagao civil lenta-mente desenvolvido, tao central ao discurso liberal damodernidade ocidental, nossa "associac,ao civil" foi inaugu-rada por um ato de vontade imperial. O que denominamosCaribe renasceu de dentro da violencia e atraves dela. A viapara a nossa modernidade esta marcada pela conquista,expropriate, genocidio, escravidao, pelo sistema de engenhoe pela longa tutela da dependencia 'colonial. Nao e desurpreender que na famosa gravura de van der Straet quemostra o encontro da Europa com a America (c. 1600),

30

Americo Vespucio e a figura masculina dominante, cercadopela insignia do poder, da ciencia, do conhecimento e dareligiao: e a "America" e, como sempre, alegorizada comouma mulher, nua, numa rede, rodeada pelos emblemas deuma — ainda nao violada — paisagem exotica.9

Nossos povos tem suas raizes nos — ou, mais precisa-mente, podem tracar suas rotas a partir dos — quatro cantosdo globo, desde a Europa, Africa, Asia; foram forc.ados a sejuntar no quarto canto, na "cena primaria" do Novo Mundo.Suas "rotas" sao tudo, menos "puras". A grande maioriadeles e de descendencia "africana" — mas, como teria ditoShakespeare, "norte pelo noroeste".10 Sabemos que o termo"Africa" e, em todo caso, uma construcao moderna, que serefere a uma variedade de povos, tribos, culturas e linguascujo principal ponto de origem comum situava-se no traficode escravos. No Caribe, os indianos e chineses se juntarammais tarde a "Africa": o trabalho semi-escravo [indenture]entra junto com a escravidao. A distinc.ao de nossa culturae manifestamente o resultado do maior entrelagamento efusao, na fornalha da sociedade colonial, de diferenteselementos culturais africanos, asiaticos e europeus.

Esse resultado hibrido nao pode mais ser facilmente desa.-gregado em seus elementos "autenticos" de origem. O receiode que, de alguma forma, isso faga da cultura caribenha nadamais que um simulacro ou uma imitac,ao barata das culturasdos colonizadores nao precisa nos deter, pois obviamenteeste nao e o caso. Mas a logica colonial em funcionamentoaqui e evidentemente uma "crioulizacao" ou do tipo "trans-cultural", no sentido que Mary Louise Pratt da ao termo,seguindo a tradifao de alguns dos melhores textos teoricosculturais da regiao.11 Atraves da transculturafao "grupossubordinados ou marginais selecionam e inventam a partirdos materials a eles transmitidos pela cultura metropolitanadominante". E um processo da "zona de contato", um termoque invoca "a co-presenca espacial e temporal dos sujeitosanteriormente isolados por disjunturas geograficas e histo-ncas (...) cujas trajetorias agora se cruzam". Essa perspecttvae dialogica, ja que e tao interessada em como o colonizadoproduz o colonizador quanto vice-versa: a "co-presenca,interapao, entrosamento das compreensoes e praticas,frequentemente [no caso caribenho, devemos dizer sempre]

31

Page 19: Da Dispora - Stuart Hall

no interior de relates de poder radicalmente assimetricas".12

E a 16gica disjuntiva que a colonizacao e a modernidadeocidental introduziram no mundo e sua entrada na hist6riaque constituiram o mundo, apos 1492, como um empreendi-mento profundamente desigual, mas "global", e fez do povocaribenho aquilo que David Scott recentemente descreveu como"os recrutas da modernidade".13

No inicio dos anos 90, fiz uma serie de TV chamadaRedemption Song [Cancao da Redencao] para a BBC, sobreos diferentes tributaries culturais dentro da cultura cari-benha.14 Nas visitas que fiz em relacao a serie, o que mesurpreendeu for" a presenca dos mesmos elementos rastrea-dores basicos (semelhanca), junto com as formas pelas quaisestes haviam sido singularmente combinados em distintasconfiguracoes em cada lugar (diferenca). Senti a "Africa" maisproxima da superficie no Haiti e na Jamaica. Ainda assim, aforma como os deuses africanos haviam sido combinados comos santos cristaos no universe complexo do vodu haitianoconstitui uma mistura especifica, que apenas se encontra noCaribe ou na America Latina — embora haja analogos ondequer que sincretismos semelhantes tenham emergido naesteira da colonizacao. O estilo da pintura haitiana frequen-temente descrito como "primitivista" e, na verdade, uma dasmais complexas representacoes — em termos visionarios —dessa "dupla consciencia" religiosa. O ilustre pintor haitianoque filmamos — Andre Pierre — fazia uma prece a ambos osdeuses, cristao e vodu, antes de iniciar seu trabalho. Como opintor jamaicano Brother Everald Brown, Pierre via a pinturacomo uma tarefa essencialmente visionaria e "espiritual".Ele cantava para nos a "historia" de sua tela — "santos"negros e viajantes em trajes brancos e torcos cruzando "ORio" — enquanto pintava.

Senti-me proximo a Franca tanto no Haiti quanto naMartinica, mas ha Francas diferentes: no Haiti, a "Franca"do Velho Imperio, cuja derrota foi causada pela RevolucaoHaitiana (a fusao explosiva da resistencia escrava africana edas tradicoes republicanas francesas na demanda pela liber-dade sob Toussaint L'Ouverture). Na Martinica, a "Franca" doNovo Imperio — do Republicanismo, do Gaullismo, do "chic"parisiense, atravessado pela transgressao do "estilo" negro eas complexas afiliacoes ao "ser franees" de Fanon e Cesaire.

32

Em Barbados, como esperado, senti maior aproximacao coma Inglaterra e sua disciplina social implicita — como certavez ocorreu, incidentalmente, mas nao mais, na Jamaica.Contudo, os habitos, costumes e a etiqueta social especificosde Barbados sao claramente uma traducao, atraves da escra-vidao africana, daquela cultura do engenho, intima e depequena escaia, que reconfigurou a paisagem barbadiana.Sobretudo em Trinidad, as complexas tradicoes do "Ocidente"e do "Oriente" — das Rainhas do Carnaval Indiano, dasbarraquinhas de roti, pao indiano, no local do carnaval, edas velas Diwali brilhando na escuridao de Sao Fernando, eo ritmo nitidamente hispanico-catolico de pecado-contricao-absolvicao (o baile da terca-feira de carnaval seguido pelamissa da quarta-feira de cinzas) tao proximo ao carater deTrinidad. Em toda parte, hibridismo, differance.

O conceito fechado de diaspora se apoia sobre umaconcepcao binaria de diferenca. Esta fundado sobre aconstrucao de uma fronteira de exclusao e depende daconstrucao de um "Outro" e de uma oposicao rigida entre odentro e o fora. Porem, as configuracoes sincretizadas daidentidade cultural caribenha requerem a nocao derridianade differance— uma diferenca que nao funciona atraves debinarismos, fronteiras veladas que nao separam finalmente,mas sao tambem places de passage, e significados que saoposicionais e relacionais, sempre em deslize ao longo de umespectro sem comeco nem fim. A diferenca, sabemos, eessencial ao significado, e o significado e crucial a cultura.Mas num movimento profundamente contra-intuitivo, a lingiiis-tica moderna pos-saussuriana insiste que o significado naopode ser fixado definitivamente. Sempre ha o "deslize" inevi-tavel do significado na semiose aberta de uma cultura, enquantoaquilo que parece fixo continua a ser dialogicamente reapro-priado. A fantasia de um significado final continua assom-brada pela "falta" ou "excesso", mas nunca e apreensivel naplenitude de sua presenca a si mesma. Como argumentaramBakhtin e Volochinov:

A plurivalencia social do signo ideologico e um tra^o da maiorimportancia (...) na verdade, e este entrecruzamento dos indicesde valor que torna o signo vivo e m6vel, capaz de evoluir.

33

Page 20: Da Dispora - Stuart Hall

O signo, se subtraido as tensoes da luta social (...) ira infalivel-mente debilitar-se, degenerara em alegoria, tornar-se-a objetode estudo dos filologos.15

Nessa concepcao, os polos binarios do "sentido" e do "naosentido" sao constantemente arruinados pelo processo maisaberto e fluido do "fazer sentido na tradugao".

Essa logica cultural foi descrita por Kobena Mercer comouma "estetica diasporica":

Numa gama inteira de formas culturais, ha uma poderosa dina-mica sincretica que se apropria criticamente de elementos doscodigos mestres das culturas dominantes e os "criouliza",desarticulando certos signos e rearticulando de outra formaseu significado simbolico. A forca subversiva dessa tendenciahibridizante fica mais aparente no nivel da propria linguagem(incluindo a linguagem visual) onde o crioulo, o patois e oingles negro desestabilizam e carnavalizam o dominio lingiiis-tico do "ingles" — a lingua-nacao [nation-Ianguagd do meta-discurso — atraves de inflexoes estrategicas, novos indicesde valor e outros movimentos performatives nos codigossemantico, sintatico e lexico.16

A cultura caribenha e essencialmente impelida por umaestetica diasporica. Em termos antropologicos, suas culturassao irremediavelmente "impuras". Essa impureza, tao frequen-temente construida como carga e perda, e em si mesma umacondigao necessaria a sua modernidade. Como observou certavez o romancista Salman Rushdie, "o hibridismo, a impureza,a mistura, a transformac.ao que vem de novas e inusitada_scombinac.6es dos seres humanos, culturas, ideias, politicas,filmes, cancoes" e "como a novidade entra no mundo".17

Nao se quer sugerir aqui que, numa formagao sincretica,os elementos diferentes estabelecem uma relacao de igual-dade uns' com os outros. Estes sao sempre inscritos diferen-temente pelas relacoes de poder — sobretudo as rela^oes dedependencia e subordinacao sustentadas pelo proprio coloznialismo. Os momentos de independencia e pos-colonial, nosquais essas historias imperials continuam a ser vivamenteretrabalhadas, sao necessariamente, portanto, momentos deluta cultural, de revisao e de reapropriagao. Contudo, essa

34

reconfiguracao nao pode ser representada como uma "voltaao lugar onde estavamos antes", ja que, como nos lembraChambers, "sempre existe algo no meio".18 Esse "algo no meio"e o que torna o proprio Caribe, por excelencia, o exemplo deuma diaspora moderna.

A relacao entre as culturas caribenhas e suas diasporasnao pode, portanto, ser adequadamente concebida em termosde origem e copia, de fonte primaria e reflexo palido. Tern deser compreendida como a relacao entre uma diaspora e outra.Aqui, o referencial nacional nao e muito util. Os Estados-nacao impoem fronteiras rigidas dentro das quais se esperaque as culturas floresc.am. Esse foi o relacionamento primarioentre as comunidades politicas nacionais soberanas e suas"comunidades imaginadas" na era do dominio dos Estados-nacao europeus. Esse foi tambem o referencial adotado pelaspoliticas nacionalistas e de construcao da nagao apos a inde-pendencia. A questao e se ele ainda constitui uma estruturautil para a compreensao das trocas culturais entre as dias-poras negras.

A globalizacao, obviamente, nao e um fenomeno novo. Suahistoria coincide com a era da exploracao e da conquistaeuropeias e com a formacao dos mercados capitalistas mundiais.As primeiras fases da dita historia global foram sustentadaspela tensao entre esses polos de conflito — a heterogeneidadedo mercado global e a forca centripeta do Estado-nagao —,constituindo juntas um dos ritmos fundamentals dos primeirossistemas capitalistas mundiais.19 O Caribe foi um dos seuscenarios chave, dentro do qual lutou-se pela estabilizacao dosistema europeu de Estados-nacao, alcanc.ado em uma seriede acordos imperiais. O apogeu do imperialismo no final doseculo dezenove, as duas guerras mundiais e os movimentospela independencia nacional e pela descolonizacao noseculo vinte marcaram o auge e o termino dessa fase.

Agora ela esta rapidamente chegando ao fim. Os desen-volvimentos globais acima e abaixo do nivel do Estado-nacaominaram o alcance e o escopo de manobra da nacao e, comisso, a escala e a abrangencia — os pressupostos panopticos— de seu "imaginario". Em qualquer caso, as culturas semprese recusaram a ser perfeitamente encurraladas dentro das

Page 21: Da Dispora - Stuart Hall

fronteiras nacionais. Elas transgridem os limites politicos.A cultura caribenha, em particular, nao foi bem servida peloreferencial nacional. A imposicao de fronteiras nacionaisdentro do sistema imperial fragmentou a regiao em entidadesnacionais e linguisticas separadas e alheias, algo de que elanunca mais se recuperou. A estrutura alternativa O Atlanticonegro, proposta por Paul Gilrqy, e uma potente contranarra-tiva a insercao discursiva do Caribe nas historias nacionaiseuropeias, trazendo a tona as trocas laterais e as "semelhancasfamiliares" na regiao como um todo que "a historia nacionalistaobscurece".20

A nova fase pos-1970 da globalizac.ao esta ainda profunda-mente enraizada na^s disparidades estruturais de riqueza epoder. Mas suas formas de operacao, embora irregulares, saomais "globais", planetarias em perspectiva; incluem interessesde empresas transnacionais, a desregulamentacao dos rher-cados mundiais e do fluxo global do capital, as tecnologias esistemas de comunicacao que transcendem e tiram do jogoa antiga estrutura do Estado-nacao. Essa nova fase "transna-cional" do sistema tem seu "centro" cultural em todo lugar eem lugar nenhum. Esta se tornando "descentrada". Isso naosignifica que falta a ela poder ou que os Estados-na^ao naotem funcao nela. Mas essa funcao tem estado, em muitosaspectos, subordinada as operacoes sistemicas globais maisamplas. O surgimento das formacoes supra-nacionais, taiscomo a Uniao Europeia, e testemunha de uma erosao progres-siva da soberania nacional. A posicao indubitavelmente hege-monica dos Estados Unidos nesse sistema esta relacionadanao a seu status de Estado-nacao, mas a seu papel e ambi9oesglobais e neo-imperiais.

Portanto, e importante ver essa perspectiva diasporicada cultura como uma subversao dos modelos culturais tradi-cionais orientados para a nacao. Corno outros processes globa-lizantes, a globalizacao cultural e desterritorializante em seusefeitos. Suas compressoes espaco-temporais, impulsionadaspelas novas tecnologias, afrouxam os lagos entre a cultura eo "lugar". Disjunturas patentes de tempo e espaco sao abrupta-mente convocadas, sem obliterar seus ritmos e tempos dife-renciais. As culturas, e claro, tem seus "locais". Pore"m, nao emais tao facil dizer de onde elas se originam. O que podemos

36

mapear e mais semelhante a um processo de repeticao-com-diferenga, ou de reciprocidade-sem-comeco. Nessa perspec-tiva, as identidades negras britanicas nao sao apenas umreflexo palido de uma origem "verdadeiramente" caribenha,destinada a ser progressivamente enfraquecida. Sao o resul-tado de sua propria formacao relativamente autonoma. En-tretanto, a logica que as governa envolve os mesmos proces-ses de transplante, sincretizacao e diasporizacao que antesproduziram as identidades caribenhas, so que, agora, operamdentro de uma referenda diferente de tempo e espaco, umcronotopo distinto — no tempo da differance.

Assim, a musica e a subcultura dancehall (salao de baile)na Gra-Bretanha se inspiraram na musica e na subculturada Jamaica e adotaram muito de seu estilo e atitude. Masagora tem suas proprias formas variantes negro-britanicas eseus proprios locais. O recente filme sobre dancehall, Baby-mother, se localiza "autenticamente" na zona de mistura racialdo centro pobre de Harlesden, nas ruas e clubes, nos estudiosde gravacao e locais de shows, na vida das ruas e zonas deperigo do norte de Londres.21 As tres garotas ragga,22 suasheromas, compram suas roupas exoticas em outro suburbiode Londres, o Southall, que e familiarmente conhecido comoPequena India. Essas differances nao deixam de ter efeitosreais. Ao contrario de outras representacoes classicas dodancehall, esse filme traca um mapa das lutas das tres garotaspara se tornarem DJs de ragga — dessa forma trazendo parao centro da narrativa a controvertida questao da politicasexual na cultura popular jamaicana, onde outras versoesainda a escondem atras de um biombo nacionalista cultural.O documentario de Isaac Julien, The Darker Side of Black,foi filmado em tres locais — Kingston, Nova lorque e Londres.Talvez seja essa relativa liberdade de lugar que o permitaconfrontar a profunda homofobia comum as distintas vari-antes do gangsta rap sem cair na linguagem degenerada da"violencia inata das galeras negras" que hoje desfigura ojornalismo domingueiro britanico.

A musica dancehall e hoje uma forma musical diasporicaincorporada — uma das varias musicas negras que conquistamos coracoes de alguns garotos brancos "quero-ser" de LondresGsto e, "quero-ser negro"!), que falam uma mistura pobre depatois de Trench Town, hip-bop nova-iorquino e ingles do

37

Page 22: Da Dispora - Stuart Hall

j T «Hr-^ e para os quais o estilo negro" e simples-leste de Lonares, *- r^•tivalente simb6hco de um moderno prestigiomente o equivai«=n *- e

/c ^-i-irn nue eles nao sao a unica especie comum daurbano. (t claro 4^ , . , ,ide britanica. Existem tambem os skin-heads, tatuados

de suastica frequentadores dos suburbios brancos abando-nados tais como Eltham, que tambem praticam "giobalmente"suas manobras violentas nos jogos de futebol internacionais,cinco dos quais esfaquearam ate a morte o adolescente negroStephen Lawrence nunia parada de onibus no sul de Londres,simplesmente porque ele ousou trocar de onibus no "terri-torio" deles.)23 O que hoje se conhece como jungle music emLondres e outro cruzamento "original" (houve muitos, desdeas versoes britanicas do ska, da musica so«/negra, do reggae,musica two-tone e de "raizes") entre o dub jamaicano, ohip-hop de Atlantic Avenue, o gangsta rap e a white techno(assim como o bangra e o tabla-and-bass sao cruzamentosentre o rap, a techno e a tradicao classics Indiana).

Nas trocas vernaculares cosmopolitas que permitem astradicoes musicals populares do "Primeiro" e do "Terceiro"Mundo se fertilizarem umas as outras, e que tern construidoum espaco simbolico onde a chamada tecnologia eletronicaavancada encontra os chamados ritmos primitivos — ondeHarlesden se torna Trench Town —, nao ha mais como tracaruma origem, exceto ao longo de uma cadeia tortuosa edescontinua de conexoes. A proliferacao e a disseminacaode novas formas musicals hibridas e sincreticas nao pode maisser apreendida pelo modelo centro/periferia ou baseadasimplesmente em uma nocao nostalgica e exotica de recupe-racao de ritmos antigos. E a historia da produfao da cultura,de musicas novas e inteiramente modernas da diaspora — eclaro, aproveitando-se dos materials e formas de muitastradicoes musicals fragmentadas.

Sua modernidade necessita, sobretudo, de ser enfatizada.Em 1998, o Institute de Artes Visuals Internacionais e a GaleriaWhitechapel organizaram a primeira maior retrospectiva daobra de um grande artista visual caribenho, Aubrey Williams(1926-1990). Williams nasceu e trabalhou por muitos anos comoagronomo na Guiana. Subseqtientemente, viveu e pintou, emdiferentes estagios de sua carreira, na Inglaterra, na Guiana,na Jamaica e nos Estados Unidos. Seus quadros incluem uma

38

variedade de estilos do seculo vinte, desde o figurative e oiconografico ate a abstracao. Suas obras mais importantesdemonstram uma variedade ampla de influencias formais ede fontes de inspiracao — os mitos, artefatos e paisagensguianenses, os motivos, a vida selvagem, os passaros e osanimals pre-colombianos e maias, o muralismo mexicano, assinfonias de Shostakovitch e as formas do expressionismoabstrato caracteristicas do modernismo pos-guerra britanicoe europeu. Seus quadros desafiam caracterizacoes, seja simples-mente do tipo caribenho ou britanico. Essas telas vibrantes,explosivamente coloridas, com suas formas cosmicas e trafosindistintos de formas e figuras tenues, mas sugestivamenteembutidas nas superficies abstratas, claramente pertencem ahistoria essencial do "modernismo britanico", sem jamaisterem sido oficialmente reconhecidas como parte dela. Semduvida, seu namoro com a musica e a abstracao europeias,na mente de alguns, modificaram suas credenciais como pintor''caribenho". Contudo, sao os dois impulses funcionando emconjunto, sua posicao de traducao entre dois mundos, variasesteticas, muitas linguagens, que o estabelecem como umartista excepcional, original e formidavelmente moderno.

No catalogo produzido para a retrospectiva de Williams, ocritico de arte Guy Brett comenta:

E claro que a sutileza da questao — a complexidade dahistoria que ainda esta por ser escrita — e que a obra deAubrey Williams teria que ser considerada em tres contextosdiferentes: o da Guiana, o da diaspora guianense e caribenhana Gra-Bretanha, e o da sociedade brit&nica. Esses contextosteriam que ser considerados um tanto separadamente e emseus inter-relacionamentos complexos, afetados pelas reali-dades do poder. E todos teriam que ser ajustados em relacaoao proprio desejo de Williams de ser simplesmente um artistamoderno, contemporaneo, o par de qualquer outro. Nummomento ele poderia dizer: "Nao gastei muita energia nessenegocio de raizes. (...) Prestei atencao em uma centena decoisas (...) por que devo isolar uma filosofia?" Em outromomento: "O cerne da questao inerente a minha obra desdemenino foi a condicao humana, especificamente em relacaoa situacao guianense."24

O que dizer entao sobre todos aqueles esforcos de recons-trucao das identidades caribenhas por um retorno a suas fontes

39

Page 23: Da Dispora - Stuart Hall

originarias? As lutas pela recuperacao cultural foram em vao?Longe disso. Retrabalhar a Africa na trama caribenha tern sidoo elemento mais poderoso e subversive de nossa politicacultural no seculo vinte. E sua capacidade de estorvar o"acordo" nacionalista pos-independencia ainda nao terminou.Porem, isso nao se deve principalmente ao fato de estarmosligados ao nosso passado e heranca africanos por umacadeia inquebrantavel, ao longo da qual uma cultura afri-cana singular fluiu imutavel por geracoes, mas pela formacomo nos propusemos a produzir de novo a "Africa", dentroda narrativa caribenha. Em. cada conjuntura — seja nogarveyismo, Hibbert, rastafarianismo ou a nova culturapopular urbana — tem sido uma questao de interpretar a"Africa", reler a "Africa", do que a "Africa" poderia significarpara nos hoje, depois da diaspora.

Antropologicamente, essa questao foi frequentementeabordada em termos de "sobrevivencias". Os sinais e tracesdessa presenca estao, e claro, por toda parte. A "Africa" vive,nao apenas na retencao das palavras e estruturas sintaticasafricanas na lingua ou nos padroes ritmicos da musica, masna forma como os jeitos de falar africanos tem estorvado,modulado e subvertido o falar do povo caribenho, a formacomo eles apropriaram o "ingles", a lingua maior. Ela "vive"na forma como cada congregacao crista caribenha, mesmofamiliarizada com cada frase do hinario de Moody e Sankey,arrasta e alonga o compasso de "Avante Soldados de Cristo"para um ritmo corporal e um registro vocal mais aterrados. AAfrica passa bem, obrigado, na diaspora. Mas nao e nem aAfrica daqueles territories agora ignorados pelo cartografopos-colonial, de onde os escravos eram sequestrados etransportados, nem a Africa de hoje, que e pelo menos quatroou cinco "continentes" diferentes embrulhados num so, suasformas de subsistencia destruidas, seus povos estruturalmenteajustados a uma pobreza moderna devastadora.25 A "Africa"que vai bem nesta parte do mundo e aquilo que a Africa setornou no Novo Mundo, no turbilhao violento do sincre-tismo colonial, reforjada na fornalha do panelao colonial.

Igualmente significativa, entao, e a forma como essa"Africa" fornece recursos de sobrevivencia hoje, historiasalternativas aquelas impostas pelo dominio colonial e asmaterias-primas para retrabalha-las de formas e padroes

40

culturais novos e distintos. Nessa perspectiva, as "sobrevi-vencias" em suas formas originais sao macicamente sobre-pujadas pelo processo de traducao cultural, Como SaratMaharaj nos lembra:

A traducao, como Derrida a coloca, e muito diferente decomprar, vender, trocar — nao importa o quanto ela tenhasido convencionalmente retratada nesses termos. Nao se tratade transportar fatias suculentas de sentido de um lado dabarreira de uma lingua para a outra — como acontece com ospacotes de fast food embrulhados nos balcoes de comida paraviagem. O significado nao vem pronto, nao e algo portatil quese pode "carregar atraves" do divisor. O tradutor e obrigado aconstruir o significado na lingua original e depois imagina-lo emodela-lo uma segunda vez nos materials da lingua com a.qual ele ou ela o esta transmitindo. As lealdades do tradutorsao assim divididas e partidas. Ele ou ela tem que ser leal asintaxe, sensacao e estrutura da lingua-fonte e fiel aquelas dalingua da traducao. (...) Estamos diante de uma dupla escrita,aquilo que poderia ser descrito como uma "perfida fideli-dade". (...) Somos conduzidos ao "efeito de Babel" de Derrida.26

Na verdade, cada movimento social e cada desenvolvimentocriativo nas artes do Caribe neste seculo come^aram com essemomento de traducao do reencontro com as tradicoes afro-caribenhas ou o incluiram. Nao porque a Africa seja um pontode referencia antropologico fixo — a referencia hifenizadaja marca o funcionamento do processo de diasporizacao, aforma como a "Africa" foi apropriada e transformada pelosistema de engenho do Novo Mundo. A razao para isso eque a "Africa" € o significante, a metafora, para aqueladimensao de nossa sociedade e historia que foi macicamentesuprimida, sistematicamente desonrada e incessantementenegada e isso, apesar de tudo que ocorreu, permanece assim.Essa dimensao constitui aquilo que Frantz Fanon denominou"o fato da negritude".27 A raca permanece, apesar de tudo,o segredo culposo, o codigo oculto, o trauma indizivel,no Caribe. E a "Africa" que a tem tornado "pronunciavel",enquanto condicao social e cultural de nossa existencia.

Na formacao cultural caribenha, traces brancos, europeus,ocidentais e colonizadores sempre foram posicionados comoelementos em ascendencia, o aspecto declarado: os tracesnegros, "africanos", escravizados e colonizados, dos quais

41

Page 24: Da Dispora - Stuart Hall

havia muitos, sempre foram nao-ditos, subterraneos e sub-versivos, governados por uma "logica" diferente, sempre po-sicionados em termos de subordinate e marginalizacao. Asidentidades formadas no interior da matriz dos significadoscoloniais foram construfdas de tal forma a barrar e rejeitar oengajamento com as historias reais de nossa sociedade ou desuas "rotas" culturais. Os enormes esforcos empreendidos,atraves dos anos, nao apenas por estudiosos da academia, maspelos proprios praticantes da cultura, de juntar ao presenteessas "rotas" fragmentarias, freqiientemente ilegais, e recons-truir suas genealogias nao-ditas, constituem a preparacao doterreno historico de que precisamos para conferir sentido amatriz interpretativa e as auto-imagens de nossa cultura, paratornar o invistvel visivel. Em outras palavras, o "trabalho" detraducao que o significante africano realiza e o trabalho de"fidelidade perfida" que devem assumir os artistas carlbenhosneste momento pos-nacionalista.

As lutas por redescobrir as "rotas" africanas no interiordas complexas configuracoes da cultura caribenha e falar,atraves desse prisma, das rupturas do navio, da escravidao,colonizacao, exploracao e racializacao produziram naosomente a unica "revolucao" bem-sucedida no Caribe anglo-fono neste seculo — a chamada revolucao cultural dos anos60 — como tambem a formacao do sujeito caribenho negro.Na Jamaica, por exemplo, seus traces ainda podem serencontrados em milhares de locais nao investigados — nascongregacoes religiosas de todos os tipos, formais e irregu-lares; nas vozes marginalizadas dos pregadores e profetaspopulares de rua, muitos deles loucos declarados; nashistorias folcloricas e formas narrativas orais; nas ocasioescerimoniais e ritos de passageni; na nova linguagem, na mu-sica e no ritmo da cultura popular urbana, assim como nastradicoes politicas e intelectuais — no garveyismo, no "etio-pismo", nas renovacoes religiosas e no rastafarismo. Este,sabemos, rememorou aquele espaco mitico, a "Etiopia", ondeos reis negros governaram por mil anos, local de uma congre-gacao crista estabelecida seculos antes da cristianizacao daturopa Ocidental. Mas, como movimento social, ele nasceurealmente, como sabemos, naquele "local" fatidico mas iloca-izavel mais proximo de casa, onde o retorno de Garveyencontrou a pregacao do Reverendo Hibbert e os delirios de

42

Bedward, levando ao recolhimento na comunidade rastafari,Pinnacle, e a dispersao for£ada desta. O rastafarismo sedestinava aquele espaco politizado mais ampio, de ondepoderia falar por aqueles — que me perdoem a frase —"despossuidos pela independencia"!

Como todos esses movimentos, o rastafarismo se repre-sentou como um "retorno". Mas aquilo a que ele nos "retornou"foi a nos mesmos. Ao faze-lo, produziu "a Africa novamente"— na diaspora. O rastafarismo aproveitou muitas "fontesperdidas" do passado. Mas sua relevancia se fundava napratica extraordinariamente contemporanea de ler a Bibliaatraves de sua tradicao subversiva, sua nao-ortodoxia, seusapocrifos; lendo-a ao reves, de cabeca para baixo, voltandoo texto contra si mesmo. A "Babilonia" de que ele falava,onde as pessoas ainda sofriam, nao era o Egito, mas Kingston— e depois, quando o nome foi sintagmaticamente esten-dido para incluir a Policia Metropolitana, os bairros deBrixton, Handsworth, Moss Side e Netting Hill. O rastafarismoexerceu um papel crucial no movimento moderno que tornou"negras", pela primeira vez e irremediavelmente, a Jamaicae outras sociedades caribenhas. Numa traducao ulterior, essadoutrina e discurso estranhos "salvaram" as jovens almasnegras da segunda geracao de migrantes caribenhos nascidades britanicas nos anos 60 e 70 e deu-lhes orgulho eautoconhecimento. Nos termos de Frantz Fanon, eles desco-lonizaram as mentes.

Ao mesmo tempo, vale lembrar o fato embara9oso de quea "naturalizacao" do termo descritivo "negro" para todo oCaribe, ou o equivalente "afro-caribenho" para todos osmigrantes caribenhos no exterior, opera sua propria formade silenciamento em nosso mundo transnacional. O jovemartista de Trinidad, Steve Ouditt, viveu e trabalhou nos EstadosUnidos, na Inglaterra e descreve algo que ele chama de"Sucrotopia" de Trinidad. Ele se descreve como "um artistado sexo masculino crioulo caribenho trinidadiano indianocristao de educacao anglo-americana pos-independencia", cujaobra — em forma de escrita e arte ambiental — "navega odificil terreno entre o visual e o verbal". Ele aborda de frenteesse assunto em uma recente peca que compoe seu diarioonline, "O enigma da sobrevivencia":

43

Page 25: Da Dispora - Stuart Hall

Afro-caribenho e o termo generico para qualquer caribenhona Inglaterra. De verdade. Assim como quando muita gentebem-educada aqui diz para mtm: "Voce e do Caribe, como eque pode, nem negro voce e, parece asiatico"... Creio que otermo "afro-caribenho" e uma designate britanica e talvez seespere que ele represente a imagem da maioria dos migrantescaribenhos que vieram para ca no periodo pos-guerra. E eusado para marcar e lembrar no passado deles as polfticas e oshorrores da escravatura, a classificacao europ^ia dos africanoscomo ultra-inferiores. A fragmentac.ao e a perda da "cultura",mas com vontade de negociar uma nova "africanidade"[Afroness] neste local diasporico... Nesse sentido especificoposso lidar com o "afro-caribenho" (...) mas nao quando ele 6usado como mdice privilegiado do horror que fixa e centratodas as outras historiografias caribenhas subalternas sob umaafrofilia do Caribe aqui na Gra-Bretanha... Trinidad teve umahistoria de semi-escravidao de indianos em regime apartheidnos campos de trabalho que durou tanto quanto a escravidao"organizada"...28

O que esses exemplos sugerem e que a cultura nao eapenas uma viagem de redescoberta, uma viagem de retor-no. Nao e uma "arqueologia". A cultura e uma producao. Temsua materia-prima, seus recursos, seu "trabalho produtivo".Depende de um conhecimento da tradicao enquanto "o mesmoem mutacao" e de um conjunto efetivo de genealogias.29

Mas o que esse "desvio atraves de seus passados" faz e noscapacitar, atraves da cultura, a nos produzir a nos mesmos denovo, como novos tipos de sujeitos. Portanto, nao e umaquestao do que as tradicoes fazem de nos, mas daquilo quenos fazemos das nossas tradicoes. Paradoxalmente, nossasidentidades culturais, em qualquer forma acabada, estaoa nossa frente. Estamos sempre em processo de formacaocultural. A cultura nao e uma questao de ontologia, de ser,mas de se tornar.

Em suas formas atuais, desassossegadas e enfaticas, aglobalizacao vem ativamente desenredando e subvertendocada vez mais seus proprios modelos culturais herdadosessencializantes e homogeneizantes, desfazendo os limitese, nesse processo, elucidando as trevas do proprio "Ilumi-nismo" ocidental. As identidades, concebidas como estabele-cidas e estaveis, estao naufragando nos rochedos de umadiferenciacao que prolifera. For todo o globo, os processes

44

das chamadas migracoes livres e forcadas estao mudando decomposifao, diversificando as culturas e pluralizando as iden-tidades culturais dos antigos Estados-na^ao dominantes, dasantigas potencias imperiais, e, de fato, do proprio globo.30

Os fluxos nao regulados de povos e culturas sao tao amplose tao irrefreaveis quanto os fluxos patrocinados do capital eda tecnologia. Aquele inaugura um novo processo de "minori-zacao" dentro das antigas sociedades metropolitanas, cujahomogeneidade cultural tern sido silenciosamente presu-mida. Mas essas "minorias" nao sao efetivamente "restritasaos guetos"; elas nao permanecem por muito tempo comoenclaves. Elas engajam uma cultura dominante em uma frentebem ampla. Pertencem, de fato, a um movimento transna-cional, e suas conexoes sao multiplas e laterals. Marcam ofim da "modernidade" definida exclusivamente nos termosocidentais.

De fato, ha dois processes opostos em funcionamento nasformas contemporaneas de globalizacao, o que e em si mesmoalgo fundamentalmente contraditorio. Existem as forcasdominantes de homogeneizacao cultural, pelas quais, porcausa de sua ascendencia no mercado cultural e de seudominio do capital, dos "fluxos" cultural e tecnologico, acultura ocidental, mais especificamente, a cultura americana,amea^a subjugar todas as que aparecem, impondo umamesmice cultural homogeneizante — o que tern sido chamadode "McDonald-izacao" ou "Nike-zacao" de tudo. Seus efeitospodem ser vistos em todo o mundo, inclusive na vida populardo Caribe. Mas bem junto a isso estao os processes que vaga-rosa e sutilmente estao descentrando os modelos ocidentais,levando a uma disseminacao da diferenca cultural em todoo globo.

Essas "outras" tendencias nao tern (ainda) o poder deconfrontar e repelir as anteriores. Mas tern a capacidade, emtodo lugar, de subverter e "traduzir", negociar e fazer com quese assimile o assalto cultural global sobre as culturas maisfracas. E ja que o novo mercado consumidor global dependeprecisamente de sua assimilacao para ser eficaz, ha certavantagem naquilo que pode parecer a principio como mera-mente "local". Hoje em dia, o "meramente" local e o globalestao atados um ao outrp, nao porque este ultimo seja omanejo local dos efeitos essencialmente globais, mas porque

45

Page 26: Da Dispora - Stuart Hall

cada um e a condicao de existencia do outro. Antes, a "moder-nidade" era transmitida de um unico centre. Hoje, ela naopossui um tal centre. As "modernidades" estao por toda parte;mas assumiram uma enfase vernacula. O destino e a sorte domais simples e pobre agricultor no mais remoto canto domundo depende dos deslocamentos nao regulados do mercadoglobal — e, por essa razao, ele (ou ela) e hoje um elementoessencial de cada calculo global. Os politicos sabem que ospobres nao serao excluidos dessa "modernidade" ou defi-nidos fora dela. Estes nao estao preparados para Rear cercadospara sempre em uma tradicao imutavel. Estao determinadosa construir seus proprios tipos de "modernidades vernaculas"e estas sao representativas de um novo tipo de conscienciatranscultural, transnacional, ate mesmo pos-nacional.

Essa "narrativa" nao tern garantia de um final feliz. Muitosnos antigos Estados-nacao, que estao profundamente vincu-lados as formas mais puras de autoconhecimento nacional,estao sendo literalmente levados a loucura por sua erosaq.Eles sentem que todo o seu universe esta sendo ameacadopela mudanca e ruindo. "A diferenca cultural" de um tiporigido, etnicizado e inegociavel substituiu a miscigenacaosexual enquanto fantasia pos-colonial primordial. Um "funda-mentalismo" de impulse racial veio a tona em todas essassociedades da Europa ocidental e da America do Norte, umnovo tipo de nacionalismo defensive e racializado. O precon-ceito, a injustica, a discriminacao e a violencia em relacao ao"Outro", baseados nessa "diferenca cultural" hipostasiada,passou a ocupar seu lugar — o que Sarat Maharaj chamou deum tipo de "sosia-assombracao do apartheid" — junto comracismos mais antigos, fundados na cor da pele ou na dife-renca fisiologica — originando come resposta uma "politicade reconhecimento", ao lado das lutas contra o racismo epela justica social.

Em principio, esses desdobramentos podem parecerdistantes das preocupacoes das novas nacoes e culturas emer-gentes da "periferia". Mas como sugerimos, o velho modelocentro-periferia, cultura-nacionalista-nacao e exatamente aquiloque esta desabando. As culturas emergentes que se sentemameacadas pelas forcas da globalizacao, da diversidade e dahibridizacao, ou que falharam no projeto de modernizacao, po-dem se sentir tentadas a se fechar em torno de suas inscricoes

nacionalistas e construir muralhas defensivas. A alternativanao e apegar-se a modelos fechados, unitarios e homogeneosde "pertencimento cultural", mas abarcar os processes maisamplos — o jogo da semelhanca e da diferenca — que estaotransformando a cultura no mundo inteiro. Esse e o carninhoda "diaspora", que e a trajetoria de um povo moderno e deuma cultura moderna. Isso pode parecer a principio igual —-mas, na verdade, e muito diferente — do velho "internacio-nalismo" do modernismo europeu. Jean Fisher argumen-tou que, ate recentemente,

o internacionalismo sempre se referiu exclusivamente a umeixo de afiliacoes politicas, militares e economicas que passavapela Europa e a diaspora europeia... Esse eixo dominante eentrincheirado cria, nas palavras de Mosquera, "zonas desilencio" nos outros locais, dificultando as comunicacoeslaterals e demais afilia^oes. Aracen e Oguibe nos lembramque a iniciativa atual [de definir um novo internacionalismonas artes e cultura] e apenas a mais recente numa historia detentativas tais como esta de estabelecer um dialogo entre asculturas que foram apagadas das "narrativas oficiais da praticacultural na Gra-Bretanha [e que nao foram capazes] de dominaras estruturas profundamente arraigadas e firmes que nosinterrogamos" (Oguibe).31

O que temos em mente aqui e algo bem diferente — aquele"outro" tipo de modernidade que levou C. L. R. James acomentar sobre o povo caribenho: "Aquele povo que esta nacivilizacao ocidental, que cresceu nela, mas que foi obrigadoa se sentir e de fato se sente fora dela, tern uma compreensaounica sobre sua sociedade."32

[Esta palestra foi apresentada como parte das comemoracoesdo qiiinquagesimo aniversario de fundacao da University ofthe West Indies (UWI), realizadas no seu campus de Cave Hill,Barbados, em novembro de 1998. Aparece aqui em forma revi-sada, com a autorizacao da UWI. Traducao de Adelaine LaGuardia Resende.]

47

Page 27: Da Dispora - Stuart Hall

NOTAS

1 Este e o subtftulo do volume Windrush, de Mike Phillips c Trevor Phillips(London: Harper Collins, 1998), que acompanhou o seriado da BBC.

^ANDERSON, Benedict. Imagined Communities. 2. ed. London: Verso, 1991-[Nacao e ConsciSncia Nacional. Sao Paulo: Atica, 1989-1

3 CHAMBERLAIN, Mary. Narratives of Exile and Return. Houndsmill: Mac-millan, 1998.

4 Ver MODOOD, T.; BERTHOUD, R. et al. Ethnic Minorities in Britain.London: Policy Studies Institute, 1997.

5 CHAMBERLAIN. Narratives of Exile and Return, p. 132.

6 CHAMBERS, Iain. Border Dialogues: Journeys in Post-Modernity. London:Routledge, 1990. p. 104.

7 Freedom rides eram uma acao de desobediencia civil de 1961 nos EstadosUnidos, em que onibus de manifestantes brancos e negros atravessaram osestados do Sul. A muito custo, os freedom rzWesdesmontaram o sistema desegregacao racial nos onibus interests duais na regiao, pois levaram a apro-vacao de uma lei federal que vetava a reserva dos lugares na frente dosonibus para brancos, os de tras para negros e a segregacao racial dosservices e do cornercio nas rodoviarias. Alem dessa vitoria pontual, osfreedom rides conseguiram obrigar o governo federal a se envolver na lutapela igualdade racial. (N. da T.)

6 Ver HALL, S. Cultural Identity and Diaspora. In: RUTHERFORD, Jonathan(Ed.). Identity: Community, Culture, Difference. London: Lawrence and Wishart,1990 [HALL, S. Identidade cultural e diaspora. Revista do Patrimonio Histori-co eArtistico Nacional, n. 24, p. 68-75, 1996] e HALL, S.; DU GAY P. (Ed.).Questions of Cultural Identity. London: Sage, 1997. p. 1-17. [TADEU, Tomazda Silva et al. Quern precisa de identidade? In: Identidade e diferenga; aperspectiva dos Estudos Culturais. Petr6polis: Vozes, 2000.]

9 Ver HALL, S. The West and the Rest: Discourse and Power. In: Forma-tions of Modernity. Cambridge Polity Press e The Open University, 1990.p. 274-320.

10 Em Hamlet, Ato II, cena 2, o principe da as boas-vindas a Rosencrantz eGuildenstern, que foram enviados pelo casal real para descobrir o motivo docomportamento estranho de Hamlet. Este afirma; "my uncle-father andaunt-mother are deceived (...) I am but mad north-north-west: when thewind is / southerly I know a hawk from a handsaw". [Meu tio-pai e tia-maeestao enganados (...) 56 sou louco norte-noroeste: quando o vento veindo sul, distingo bem um falcao de um serrote.] Ou seja, sua loucura ecircunstancial. (N. da T.)

11 PRATT, Mary Louise. Imperial Eyes: Travel Writing and Transculturation.London: Routledge, 1992. Ver inter alia, ORTIZ, Fernando. Cuban Counter-point. Tobacco and Sugar. New York: A. A. Knopf, 19-47; GLISSANT, Edouard.

48

Le discours antillais. Paris: Editions du Seuil, 1981. BRATHWAITE, EdwardKamau. The Development of Creole Society in Jamaica, 1770-1820. Oxford:Oxford University Press, 1971.

12 PRATT. Imperial Eyes: Travel Writing and Transculturation, p. 6-7.

's SCOTT, David. Conscripts of Modernity, (trabalho nao publicado).

" REDEMPTION SONG. Sete programas feitos com Barraclough e Carey paraa BBC2 e transmitidos entre 1989-1990.

15 BAKHTIN, M.; VOLOCHINOV, V. N. Marxism and the Philosophy ofLanguage. New York/London: Seminar Press, 1973- [Marxismo efilo-sofia da linguagem. Sao Paulo: Hucitec, 1981. p. 46.]

16 MERCER, Kobena. Diaspora Culture and the Dialogic Imagination. In:Welcome to the Jungle-. New Positions in Black Cultural Studies. London:Routledge, 1994. p. 63-64.

17 RUSHDIE, Salman. Imaginary Homelands. London: Granta Books, 1990.p. 394.

18 CHAMBERS. Border Dialogues.-Journeys in Post-Modernity, p. 104.

19 WALLERSTEIN, Immanuel. The National and the Universal. In: KING, A.(Ed.). Culture, Globalization and the World-System. London: Macmillan, 1991-p. 91-106.

20 GILROY, Paul. The Black Atlantic. London: Verso, 1993.

21 "Babymother" foi lancado em Londres, Estados Unidos e Jamaica em 1998.Foi dirigido por Julian Henriques, filho de um ilustre antropologo jamaicanoque vive em Londres e produzido por sua esposa e sdcia, Parminder Vir, que€ do Punjab. Eles vieram, desnecessario dizer, desses dois polos do Imperioe se encontraram em Londres.

22 Um genero sucessor do reggae, que influenciou e depois foi influenciadopela cultura hip hop norte-americana, inclusive em sua visao de generomachista e homofobica. (N. da T.)

23 O inquerito oficial instalado por Sir William Macpherson para apurar amorte de Stephen Lawrence, aberto apos cinco anos, como resultado dosesforcos her6icos dos pais da vitima, Doreen e Neville Lawrence e de umpequeno grupo de apoio negro, tornou-se um evento publico e uma causacelebre em 1998 e um ponto decisivo nas relacoes raciais britanicas.Resultou na senten9a do juiz de que a Policia Metropolitana fora culpada de"racismo institucional". Ver Sir William Macpherson of Cluny, The StephenLawrence Inquiry Report. Cmnd.4262-1(1999)-

24 BRETT, Guy. A Tragic Excitement. In: Aubrey Williams. London: Institutefor the International Visual Arts and Whitechapel Gallery, 1998. p. 24.

15 Ver SCOTT, David. That Event, this Memory: Notes on the Anthropologyof African Diasporas in the New World. Diaspora, v. 1, n. 3, p- 261-284, 1991.

49

Page 28: Da Dispora - Stuart Hall

26 MAHARAJ, Sarat. Perfidious Fidelity. In: FISHER, Jean (Ed.). GlobalVisions: Towards a New Internationalism in the Visual Arts. London: Insti-tute of the International Visual Arts, 1994. p. 31. (A referenda e DERRIDA,Jacques. Des tours de Babel. In: Difference in Translation. Ithaca: CornellUniversity Press, 1985.)

27 O tftulo de um dos mais importantes capitulos em FANON, Frantz. BlackSkin, WhiteMasks. London: Pluto Press, 1986.

28 OUDITT, Steve. Enigma of Arrival. In: TANADROS, Gilane (Ed.). Anota-tions 4: Creole-in-Size. London: Institute of the International Visual Arts1998. p. 8-9.

29 Sobre "tradicao enquanto o mesmo em mutacao" ver GILROY, The BlackAtlantic.

30 Ver, por exemplo, APPADURAI, Arjun. Modernity at Large. Minneapolis:University of Minnesota Press, 1996.

31 FISHER, Jean. Editor's note. In: FISHER, J. (Org.). Global Visions: Towardsa New Internationalism in the Visual Arts. London: Institute for the Interna-tional Visual Arts, 1994. p. xii.

32 JAMES, C. L. R. Africans and Afro-Caribbeans: A Personal View Tenv. 8, n. 16. '

A QUESTAO MULT CULTURAL

Este ensaio parte da observacao de Homi Bhabha de queo "multiculturalismo" e um termo valise que se expandiu deforma heterogenea e que o "multicultural" tornou-se umsignificante oscilante. A primeira parte1 opera uma crtticadesconstrutora desses termos-chave. Considera suas condicoesde emergencia e sua existencia disseminada na sociedadecontemporanea e no discurso politico a partir da experienciabritanica. A segunda parte se inicia com a ideia de BarnorHesse dos "efeitos transruptivos" da questao multicultural eos localiza em varies dominios. O ensaio se conclui com atentativa de resgatar uma nova "logica" politica multiculturaldos escombros dos vocabularies politicos atuais, arruinadosna erupcao da propria questao multicultural.

O termo "multiculturalismo" e hoje utilizado universal-mente. Contudo, sua proliferacao nao contribuiu para esta-bilizar ou esclarecer seu significado. Assim como outrostermos relacionados — por exemplo, "raca", etnicidade,identidade, diaspora — o multiculturalismo se encontra taodiscursivamente enredado que so pode ser utilizado "sobrasura" (Hall, 1996a). Contudo, na falta de concertos menoscomplexes que nos possibilitem refletir sobre o problema,nao resta alternativa senao continuar utilizando e interro-gando esse termo.

Page 29: Da Dispora - Stuart Hall

A DISTINgAO MULTICULTURAL/MULTICULTURALISMO

Pode ser util fazer aqui uma distincao entre o "multicul-tural" e o "multiculturalismo".2 Multicultural e um termo quaii-ficativo. Descreve as caracteristicas socials e os problemas degovernabilidade apresentados por qualquer sociedade na qualdiferentes comunidades culturais convivem e tentam construiruma vida em comum, ao mesmo tempo em que retem algo desua identidade "original". Em contrapartida, o termo "multi-culturalismo" e substantive. Refere-se as estrategias e poli-ticas adotadas para governar ou administrar problemas dediversidade e multiplicidade gerados pelas sociedades multi-culturais. E usualmente utilizado no singular, significando afilosofia especifica ou a doutrina que sustenta as estrategiasmulticulturais. "Multicultural", entretanto, e, por definicao,plural. Existem muitos tipos de sociedade multicultural, comopor exemplo, os Estados Unidos da America, a Gra-Bretanha,a Franga, a Malasia, o Sri Lanka, a Nova Zelandia, a Indo-nesia, a Africa do Sul e a Nigeria. Estes sao, de forma bastantedistinta, "multiculturais". Entretanto, todos possuem umacaracterlstica em comum. Sao, por definicao, culturalmenteheterogeneos. Eles se distinguem neste sentido do Estado-nacao "moderno", constitucional liberal, do Ocidente, que seafirma sobre o pressuposto (geralmente tacito) da homoge-neidade cultural organizada em torno de valores universais,seculares e individualistas liberals (Goldberg, 1994).

Ambos os termos sao hoje interdependentes, de tal formaque e praticamente impossivel separa-los. Contudo, o "multi-culturalismo" apresenta algumas dificuldades especificas.Denomina "uma variedade de articulacoes, ideais e praticassociais". O problema e que o -ismo tende a converter o "multi-culturalismo" em uma doutrina politica, "reduzindo-o a umasingularidade formal e fixando-o numa ccfndicao petriflcada(...) Assim convertida (...) a heterogeneidade caracteristicadas condicoes multiculturais e reduzida a uma doutrina facile prosaica" (Caws, 1994). Na verdade, o "multiculturalismo"nao e uma unica doutrina, nao caracteriza uma estrategiapolitica e nao representa um estado de coisas j£ alcancado.Nao e uma forma disfarcada de endossar algum estado ideal

ou utopico. Descreve uma serie de-pr-ocessos e estrategiaspoliticas sempre inacabados. Assim como ha distintas socie-dades multiculturais, assim tambe"m ha "multiculturalismos"bastante diversos. O multiculturalismo conservador segueHume (Goldberg, 1994) ao insistir na assimilacao da dife-rene/a as tradicoes e costumes da maioria. O multicultura-lismo liberal busca integrar os diferentes grupos culturaiso mais rapido possivel ao mainstream, ou sociedade majo-ritaria, baseado em uma cidadania individual universal,tolerando certas praticas culturais particuiaristas apenasno dominio privado. O multiculturalismo pluralista, porsua vez, avaliza diferencas grupais em termos culturais econcede direitos de grupo distintos a diferentes comunidadesdentro de uma ordem politica comunitaria ou mais comunal.O multiculturalismo comercial pressupoe que, se a diversi-dade dos individuos de distintas comunidades for publicamentereconhecida, entao os problemas de diferenca cultural seraoresolvidos (e dissolvidos) no consumo privado, sem qualquernecessidade de redistribuicao do poder e dos recursos. Omulticulturalismo corporative (publico ou privado) busca"administrar" as diferencas culturais da minoria, visando osinteresses do centre. O multiculturalismo critico ou "revo-lucionario" enfoca o poder, o privilegio, a hierarquia dasopressoes e os movimentos de resistencia (McLaren, 1997).Procura ser "insurgente, polivocal, heteroglosso e anti-fundacional" (Goldberg, 1994). E assim por diante.

Longe de ser uma doutrina estabelecida, o "multicultura-lismo" e uma ideia profundamente questionada (May, 1999)-E contestado pela direita conservadora, em prol da pureza eintegridade cultural da nacao. £ contestado pelos liberals,que alegam que o "culto da etnicidade" e a busca da dife-renca ameacam o universalismo e a neutralidade do estadoliberal, comprometendo a autonomia pessoal, a liberdadeindividual e a igualdade formal. Alguns liberals afirmam que omulticulturalismo, ao legitimar a ideia dos "direitos de grupo",subverte o sonho de uma nacao e cidadania construidas apartir das culturas de povos diversos — epluribus unum? Omulticulturalismo e tambem contestado por modernizaclo.resde distintas conviccoes politicas. Para estes, o triunfo douniversalismo da civilizacao ocidental sobre o particula-rismo de raiz etnica e racial, estabelecido no Iluminismo,

52 53

Page 30: Da Dispora - Stuart Hall

marcou uma transigao decisiva e irreversivel do Tradiciona-lismo para a Modernidade. Essa mudanca nao deve jamaisser revertida. Algumas versoes pos-modernas do "cosmopoli-tismo", que tratam o "sujeito" como algo inteiramente contin-gente e desimpedido, se opoem radicalmente ao multicul-turalismo, em que os sujeitos se encontram mais localizados.Ha ainda o desafio de varias posicoes na esquerda. Os anti-racistas argumentam que, erroneamente, o multiculturalismoprivilegia a cultura e a identidade, em detrimento das questoeseconomicas e materiais. Os radicals creem que ele divide,em termos etnicos e racialmente particularistas, uma frenteracial e de classe unida contra a injustica e a exploracao.Outros apontam as varias versoes do multiculturalismo"de butique", comercializado e consumista (Fish, 1998),que celebram a diferenca sem fazer diferenca.4 Ha tambemaquilo que Sarat Maharaj oportunamente denomina "gerencia-lismo multicultural", o qual apresenta "uma assombrosa seme-Ihanca com a logica do apartheid" (Maharaj, 1999).

Pode um conceito que significa tantas coisas diferentese que tao efetivamente acirra os animos de inimigos taodiversos e contraditorios realmente ter algo a dizer? For outrolado, sua condicao contestada nao constitui precisamente seuvalor? Afinal: "O signo, se subtraido as tensoes da luta social,se posto a margem da luta de classes, ira infalivelmente debi-litar-se, degenerara em alegoria, tornar-se-a objeto de estudodos filologos e nao sera mais instrumento racional e vivopara a sociedade." (Volochinov/Bakhtin, 1973). For bemou por mal, estamos inevitavelmente implicados em suaspraticas, que caracterizam e definem as "sociedades damodernidade tardia". Nos termos de Michele Wallace,

todos sabem (...) que o multiculturalismo nao e a terra prome-tida... [Entretanto] mesmo em sua forma mais cinica e pragma-tica, ha algo no multiculturalismo que vale a pena continuarbuscando (...) precisamos encontrar formas de manifestarpublicamente a importancia da diversidade cultural, [e] deintegrar as contribuicoes das pessoas de cor ao tecido dasociedade. (Wallace, 1994)

CONDUCES DE EMERGENCIA

As sociedades multiculturais nao sao algo novo. Bemantes da expansao europeia (a partir do seculo quinze) — ecom crescente intensidade desde entao — a migracao e osdeslocamentos dos povos tern constituido mais a regra que aexcecao, produzindo sociedades etnica ou culturalmente"mistas". "Movimento e migracao (...) sao as condicoes dedefinicao socio-historica da humanidade." (Goldberg, 1994).As pessoas tern se mudado por varias razoes — desastresnaturais, alteracoes ecologicas e climaticas, guerras, con-quistas, exploracao do trabalho, colonizacao, escravidao,semi-escravidao, repressao politica, guerra civil e subdesen-volvimento economico. Os imperios, produtos de conquistae dominacao, sao frequentemente multiculturais. Os imperiosgrego, romano, islamico, otomano e europeu foram todos,de formas distintas, multietnicos e multiculturais. O colonia-lisrno — sempre uma inscrigao dupla — tentou inserir o colo-nizado no "tempo homogeneo vazio" da modernidade global,sem abolir as profundas diferencas ou disjunturas de tempo,espaco e tradi^ao (Bhabha, 1994; Hall, 1996a). Os sistemascoloniais de monocultura do mundo ocidental, os sistemasde trabalho semi-escravo do Sudeste da Asia, da India colo-nial, assim como os varies Estados-nacao conscientementefabricados a partir de um quadro etnico mais fluido — naAfrica, pelos poderes colonizadores; no Oriente Medio, nosBalcas e na Europa Central, pelas grandes potencias — todosse ajustam mais ou menos a descrif ao multicultural.

Esses exemplos historicos sao relevantes a questao daemergencia do multiculturalismo no mundo pos-guerra, poiseles produziram algumas das condicoes para que isso ocor-resse. Contudo, nao ha uma relacao linear entre o colonial eo pos-colonial. Desde a II Guerra Mundial, o multicultura-lismo nao so tern se alterado, mas tambem se intensificado.Tornou-se mais evidente e ocupa um lugar central no campoda contestagao politica. Isso e o resultado de uma serie demudangas decisivas — uma reconfigura^ao estrategica dasformas e relagoes sociais em todo o globo.

Primeiramente, o fim do velho sistema imperial europeue das lutas pela descolonizacao e independencia nacional.

54

Page 31: Da Dispora - Stuart Hall

Nos prii»<5rdios do desmantelamento dos antigos impedes,varies novos Estados-nacao, multietnicos e multiculturais,f ram criados. Entretanto, estes continuam a refletir suascondicoes anteriores de existencia sob o colonialismo.5

Esses novos estados sao relativamente frageis, do ponto devista economico e militar. Muitos nao possuem uma sociedadecivil desenvolvida. Permanecem dominados pelos imperativesdos prirneiros movimentos nacionalistas de independencia.Governam populates com uma variedade de [radioese"tnica$, culturais ou religiosas. As culturas nativas, deslo-cadas, senao destruidas pelo colonialismo, nao sao inclusivasa ponto de fornecer a base para uma nova cultura nacionalou civica. Somam-se a essas dificuldades a pobreza generali-zada e o subdesenvolvimento, num contexto de desigual-dade global que se aprofunda e de uma ordem mundialeconomica neoliberal nao regulamentada. Cada vez mais,as crises nessas sociedades assumem um carater multiculturalou "etnicizado".

Ha uma intima relacao entre o ressurgimento da "questao^multicultural" e o fenomeno do "pos-colonial". Este poderianos fazer desviar por um labirinto conceitual do qual poucosviajantes retornam. Contentemo-nos, por enquanto, emafirmar que o "pos-colonial" nao sinaliza uma simplessucessao cronologica do tipo antes/depois. O movimento quevai da colonizacao aos tempos pos-coloniais nao implica queos problemas do colonialismo foram resolvidos ou suce-didos por uma epoca livre de conflitos. Ao contrario, o"pos-colonial" marca a passagem de uma configuracao ouconjuntura historica de poder para outra (Hall, 1996a).6

Problemas de dependencia, subdesenvolvimento e margi-nalizacao, tipicos do "alto" periodo colonial, persistem nopos-colonial. Contudo, essas relacoes estao resumidasem umanova configuracao. No passado, eram articuladas comorelacoes desiguais de poder e exploracao entre as sociedadescolonizadoras e as colonizadas. Atualmente, essas relacoessao deslocadas e reencenadas como lutas entre forcas sociaisnativas, como contradicoes internas e fontes de desesta-bilizacao no interior da sociedade descolonizada, ou entreela e o sistema global como um todo. Pensemos em comoa instabilidade do governo democr&tico, por exemplo, no

56

Paquistao, Iraque, Indonesia, Nigeria ou Argelia, ou oscontinues problemas de legitimidade e estabilidade poll-tica no Afeganistao, Namibia, Mozambique ou Angola temorigens claras em sua recente historia imperial. Essa "duplainscricao" pos-colonial ocorre em um contexto global ondea administracao direta, o controle ou o protetorado de umpoder imperial foi substituido por um sistema de poderassimetrico e globalizado, cujo carater e pos-nacional e pos-imperial. Suas principals caracteristicas sao a desigualdadeestrutural, dentro de um sistema desregulamentado de livremercado e de livre fluxo de capital, dominado pelo PrimeiroMundo; e os programas de reajuste estrutural, nos quaisprevalecem os interesses e modelos ocidentais de controle.

O segundo fator e o fim da Guerra Fria. Suas principalscaracteristicas sao a ruptura pos-1989 da Uniao Sovieticaenquanto formacao transetnica e transnacional; e o decliniodo comunismo de Estado como modelo alternative de desen-volvimento industrial, e o declinio da esfera sovietica deinfluencia, especialmente na Europa Oriental e na AsiaCentral. Isso causou efeitos regionais semelhantes de certaforma ao desmantelamento dos velhos sistemas imperais.O ano de 1989 foi seguido pela tentativa, liderada pelosEstados Unidos da America, de construir uma "nova ordemmundial". Uma caracteristica desse impulso foi a pressaocontinua do Ocidente, destinada a arrastar, contra sua vontadee da noite para o dia, aquelas sociedades tao distintas e relati-vamente subdesenvolvidas do Leste Europeu para o que sechamou de "o mercado". Esta entidade misteriosa e propelidapara dentro de culturas e constituigoes politicas antigas e com-plexas como se fosse um principio abstrato e desnudo, semconsiderar o envolvimento cultural, politico, social e institu-ciona! que os mercados sempre requerem. Conseqiientemente,os problemas pendentes de desenvolvimento social tem sesomado ao ressurgimento de traces de antigos nacionalismosetnicos e religiosos malresolvidos, fazendo com que astensoes nessas sociedades ressurjam sob a forma multicultural.

E importante frisar que esse nao e um simples ressurgi-mento de etnias arcaicas, embora tais elementos possampersistir. Traces mais antigos se combinam com novas e emer-gentes formas de "etnicidade", que freqiientemente resultam

57

Page 32: Da Dispora - Stuart Hall

da globalizacao desigual ou da modernizacao falha. Essa mis-tura explosiva revaloriza seletivamente os discursos maisantigos, condensando numa combinacao letal aquilo queHobsbawm e Ranger (1993) denominaram "a invencao datradicao" e o que Michael Ignatieff (1994) chamou (depoisde Freud) de "narcisismo das pequenas diferencas". (O nacio-nalismo servio e a limpeza etnica na Bosnia e em Kosovo saoexemplos claros disso.) Sua reinvencao do passado-no-presentee remanescente do carater de Janus do discurso nacionalista(Nairn, 1977). Esses movimentos de revivificacao continuamprofundamente vinculados a ideia da "nacao"7 enquantomotor da modernizacao, que garante um lugar no novosistema mundial, precisamente no mome'nto em que a globa-lizacao conduz a um hesitante desfecho da fase do Estado-nacao da modernidade capitalista.

O terceiro fator e a nossa velha conhecida "globalizacao".Reitero, a globalizacao nao e algo novo. A exploracao, a con-quista e a colonizacao europeias foram as primeiras formasde um mesmo processo historico secular (Marx denominou-o"a formacao do mercado mundial"). Porem, desde os anos 70do seculo vinte, o processo tem assumido novas formas, aomesmo tempo em que tem se intensificado (Held et al.? 1999).A globalizacao contemporanea e associada ao surgimentode novos mercados financeiros desregulamentados, ao ca-pital global e aos fluxos de moeda grandes o suficiente paradesestabilizar as economias medias, as formas transnacionaisde producao e consume, ao crescimento exponencial denovas industrias culturais impulsionado pelas tecnologiasde informacao, bem como ao aparecimento da "economiado conhecimento". Caracteristica desta fase e a compressaodo tempo-espaco (Harvey, 1989), que tenta — embora deforma incompleta — combinar tempos, espacos, historiase mercados no centre de um cronotopo espaco-temporal"global" homogeneo. E marcada ainda pelo desarraigamentoirregular das relacoes sociais e por processes de destra-dicionalizacao (Giddens, 1999) que nao se restringem associedades em desenvolvimento. Tanto quanto as sociedadesda periferia, as sociedades ocidentais nao podem mais evitaresses efeitos.

58

O sistema e global, no sentido de que sua esfera deoperacoes e planetaria. Poucos locais escapam ao alcancede suas interdependencias desestabilizadoras. Ele tem enfra-quecido significativamente a soberania nacional e o "raio deacao" dos Estados-nacao (os motores das primeiras fases daglobalizacao), sem desloca-los completamente. O sistema,entretanto, nao e global, se por isso se entende que oprocesso e de carater uniforme, afeta igualmente todos oslugares, opera sem efeitos contraditorios ou produz resul-tados iguais no mundo inteiro. Ele continua sendo um sistemade desigualdades e instabilidades cada vez mais profundas,sobre o qual nenhuma potencia — nem mesmo os EstadosUnidos, que e a nacao mais poderosa em termos economicose militares da terra — possui o controle absolute.

Como o pos-colonial, a globalizacao contemporanea e umanovidade contraditoria. Seus circuitos economicos, finan-ceiros e culturais sao orientados para o Ocidente e domi-nados pelos Estados Unidos. Ideologicamente, e governadapor um neoliberalismo global que rapidamente se tornao senso comum de nossa epoca (Fukuyama, 1989). Suatendencia cultural dominante e a homogeneizacao. Entretanto,esta nao e a sua unica tendencia. A globalizacao tem causadoextensos efeitos diferenciadores no interior das sociedadesou entre as mesmas. Sob essa perspectiva, a globalizacao naoe um processo natural e inevitavel, cujos imperatives, comoo Destine, so podem ser obedecidos e jamais submetidos aresistencia ou variacao.8 Ao contrario, e um processo homo-geneizante, nos proprios termos de Gramsci. E "estruturadoem dominancia", mas nao pode controlar ou saturar tudodentro de sua orbita. De fato, entre seus efeitos inesperadosestao as formacoes subalternas e as tend£ncias emergentesque escapam a seu controle, mas que ela tenta "homoge-neizar" ou atrelar a seus propositos mais amplos. E umsistema de con-formagdo da diferenga, ern vez de um sino-nimo conveniente de obliteracao -da diferenca. Este argu-mento torna-se crucial se considerarmos como e onde asresistencias e contra-estrategias podem se desenvolver comsucesso. Essa perspectiva implica um modelo de poder maisdiscursive do que comumente se encontra no novo ambienteglobal entre os "arautos do hiper-global" (Held et al., 1999)-

59

Page 33: Da Dispora - Stuart Hall

A PROLlFERAgAO SUBALTERNA DA DlFERENgA

Juntamente com as tendencias homogeneizantes da globa-lizacao, existe a "proliferacao subalterna da diferenca".Trata-se de um paradoxo da globalizacao contemporanea ofato de que, culturalmente, as coisas parec.am mais ou menossemelhantes entre si (um tipo de americanizagao da culturaglobal, por exemplo). Entretanto, concomitantemente, haa proliferacao das "diferencas". O eixo "vertical" do podercultural, economico e tecnologico parece estar sempremarcado e compensado por cpnexoes laterais, o que produzuma visao de mundo composta de muitas diferencas "locals",as quais o "global-vertical" e obrigado a considerar (Hall,1997). Nesse modelo, o classico binarismo iluminista Tradi-cionalismo/Modernidade e deslocado por um conjunto disse-minado de "modernidades vernaculas". Consideremos, porexemplo, como a empresa News International se viu forcadaa fazer uma retirada tatica ao tentar saturar a India e a Chinacom um regime basico da programagao televisiva ocidental.So conseguiu avancar atraves de uma "local-izacao" dasindustries televisivas locais, o que complica sobremaneira oambito das imagens oferecidas localmente e conduz aodesenvolvimento de uma industria local enraizada em dife-rentes tradicoes culturais. Alguns veem nisso apenas umaversao mais lenta de uma ocidentalizacao das culturas indianae chinesa, quando expostas ao mercado global. Outros consi-deram que esta e a forma pela qual os povos dessas areasobtem acesso a "modernidade", adquirem os frutos de suastecnologias e o fazem, ate certo ponto, em seus propriostermos. No contexto global, a luta entre os interesses "locais"e o "globais" nao esta definitivamente concluida.

Isso e o que Derrida, em outro contexto, denomina diffe-rance: "o movimento do jogo que 'produz' (...) essas dife-rencas, esses efeitos de diferenca" (Derrida, 1981, 1982).9 Naose trata da forma binaria de diferenca entre o que e absoluta-mente o mesmo e o que e absolutamente "Outro". E urna"onda" de similaridades e diferencas, que recusa a divisao.em oposicoes binarias fixas. Differance caracteriza umsistema em que "cada conceito [ou significado] esta inscritoem uma cadeia ou em um sistema, dentro do qual ele se refere

ao outro e aos outros conceitos [significados], atrave~s de umjogo sistematico de diferencas" (Derrida, 1972). O significadoaqui nao possui origem nem destine final, nao pode serfixado, esta sempre em processor "posicionado" ao longo deum espectro. Seu valor politico nao pode ser essencializado,apenas determinado em termos relacionais.

As estrategias de differance nao sao capazes de inaugurarformas totalmente distintas de vida (nao funcionam segundoa nocao de uma "superacao" dialetica totalizante). Naopodem conservar intactas as formas antigas e tradicionaisde vida. Operam melhor dentro daquilo que Homi Bhabhadenomina "tempo Hminar" das minorias (Bhabha, 1997). Con-tudo, a differance impede que qualquer sistema se estabilizeem uma totalidade inteiramente suturada. Essas estrategiassurgem nos vazios e aporias, que constituem sitios potenciaisde resistencia, intervencao e traducao. Nesses intersticios,existe a possibilidade de um conjunto disseminado de moder-nidades vernaculas. Culturalmente, elas nao podem confera mare da tecno-modernidade ocidentalizante. Entretanto,continuam a modular, desviar e "traduzir" seus imperatives apartir da base.10 Elas constituem o fundamento para um novotipo de "localismo" que nao e auto-suficientemente parti-cular, mas que surge de dentro do global, sem ser simples-

"mente um simulacro deste (Hall, 1997). Esse "localismo" naoe um mero residue do passado. E algo novo — a sombra queacompanha a globalizacao: o que e deixado de lado pelofluxo panoramico da globalizacao, mas retorna para perturbare transtornar seus estabelecimentos culturais. E o "exteriorconstitutive" da globalizacao (Laclau e Mouffe, 1985; Butler,1993)- Encontra-se aqui o "retorno" do particular e do especi-fico — do especificamente diferente — no centro da aspi-rac.ao universalista panoptica da globalizacao ao fechamento.O "local" nao possui um carater estavel ou trans-historico.Ele resiste ao fluxo homogeneizante do universalismo comtemporalidades distintas e conjunturais. Nao possui inscrigaopolitica fixa. Pode ser progressista, retrograde ou fundamen-talista — aberto ou fechado — em diferentes contextos (Hall,1993). Seu impulse politico nao e determinado por um con-teudo essencial (geralmente caricaturado como "resistenciada Tradic.ao a modernidade"), mas por uma articulacao comoutras forgas. Ele emerge em muitos locais, entre os quais o

61

Page 34: Da Dispora - Stuart Hall

mais significante e a migrate planejada ou nao, forcosaou denominada "livre", que trouxe as margens para o centro,o "particular" multicultural disseminado para o centro dametropole ocidental. Somente nesse contexto se pode com-preender por que aquilo que ameaca se tornar o momentode fechamento global do Ocidente — a apoteose de suamissao universalizante global — constitui ao mesmo tempoo momento do descentramento incerto, lento e prolongadodo Ocidente.

AS MARGENS NO CENTRO: O CASO BRITANICO

De que forma o aparecimento extemporaneo das margensno centro — o foco da "questao multicultural" — tornou-seaquilo que Barnor Hesse denomina "forca transruptiva" den-tro da instituicao polftica e social dos estados e sociedadesocidentais?

O caso britanico pode servir como breve exemplo de umargumento mais amplo. A historia nacional pressupoe que aGra-Bretanha tenha side uma cultura homogenea e unificadaate a ocorrencia das migracoes do subcontinente caribenho easiatico no pos-guerra. Esta e uma versao altamente simplistade uma historia complexa (Hall, 1999a, 1999b, 1999c, 1999d).A Gra-Bretanha nao e uma ilha real, que surgiu do Mar doNorte integralmente formada e isolada como um Estado-nacao. Embora "supostamente fixa e eterna", foi constituidaa partir de uma serie de conquistas, invasdes e colonizacoes(Davies, 1999). Fez parte do continente europeu ate o seculoseis a.C.; foi dominada pelos normandos durante seculos ese Hgou inteiramente a Europa ate a Reforma. Passou a existirenquanto Estado-nacao somente a partir do seculo dezoito,em virtude do pacto civil (originado, na verdade, de umasupremacia protestante anglo-saxonica), que uniu culturassignificativamente distintas — a Escocia e o Pals de Gales —com a Inglaterra. O "Decreto de Uniao" com a Irlanda (1801),que culminou na Cisao, jamais logrou integrar o povo irlandesou o elemento celta catolico ao imaginario britanico. A Irlandae a mais antiga "colonia" da Gra-Bretanha e os irlandeses,o primeiro grupo a ser sistematicamente "racializado". Atao proclamada homogeneidade da "britanidade" enquanto

62

cultura nacional tern sido consideravelmente exagerada. Estasempre foi contestada pelos escoceses, gauleses e irlandeses,desafiada por aliancas locals e regionais e dividida porclasse, genero e geracao. Sempre existiram muitas formasdistintas de ser "britanico". A maioria das realizacoes na-cionais — desde a liberdade de expressao e o sufragio uni-versal ate" o Estado do bem-estar social e o Service Nacionalde Saude (NHS) — foram alcancadas as custas de penosaslutas entre um tipo e outro de individuo "britanico". Vistasem retrospecto, essas diferencas radicais foram suavementereintegradas ao tecido homogeneo de um discurso de "brita-nidade" transcendente. A Gra-Bretanha foi tambem o centrodo maior imperio dos tempos modernos, que governou umavariedade de culturas. Essa experiencia imperial moldou pro-fundamente a identidade nacional britanica, seus ideais degrandeza e definiu seu lugar no mundo (C. Hall, 1992). Essarelacao mais ou menos contmua com a "diferenca", situadano amago da coionizacao, projetou o "outro" como elementoconstitutivo da identidade britanica.

Ha uma presenca "negra" na Gra-Bretanha desde o seculodezesseis, uma presenca asiatica, desde o seculo dezoito. Maso tipo e a dimensao da migracao da periferia global de corpara a Gra-Bretanha, que tem questionado seriamente anocao estabelecida de uma identidade britanica e colocadoem pauta a "questao multicultural", constituem um fenomenopos-colonial ou pos-Segunda Guerra Mundial. Historica-mente, surgiu com a chegada do navio S.S. Empire Windrushem 1948, trazendo de volta os caribenhos em servico militarvoluntario e, tambem, os primeiros imigrantes civis cari-benhos, os quais abandonavam as economias em depressaodaquela regiao em busca de uma vida meihor. O fluxo foirapidamente reforcado pelo Caribe, depois pelo subcontinenteasiatico e por asiaticos expulsos da Africa Oriental, junto comafricahos e outros do Terceiro Mundo, ate o fim dos anos70, quando a legislacao de imigracao efetivamente fechouas portas.

As antigas relacoes de coionizacao, escravidao e dominiocolonial, que ligaram a Gra-Bretanha ao Imperio por mais de400 anos, marcaram os rumos seguidos por esses imigrantes.Contudo, essas relacoes historicas de dependencia e subor-dinacao foram reconfiguradas — sob a forma pos-colonial

63

Page 35: Da Dispora - Stuart Hall

classica — quando reunidas no solo domestico britanico.Na esteira da descolonizacao, disfarcadas na amnesia cole-tiva ou em um sistematico repudio ao "Imperio" (que desceucomo uma Nuvem do Nao-Saber nos anos 60), esse encontrofoi interpretado como "um novo comeco". A maioria do povobritanico olhava esses "filhos do Imperio" como se naopudessem sequer imaginar de onde "eles" vinham, por queou que outra relacao eles poderiam ter com a Gra-Bretanha.

Em geral, os imigrantes encontravam condicoes de moradiaprecarias e empregos mal remunerados e nao especializadpsnas cidades e regioes industrials, ainda em processo de recu-pera£ao da guerra e afetadas pelo declinio vertiginoso dascondicoes economicas na Gra-Bretanha. Atualmente, esses imi-grantes e seus descendentes constituent 7% da populacaobritanica.11 Contudo, eles ja compoem 25% da populacaode Londres e de algumas outras cidades, o que reflete a densi-dade seletiva da fixacao. Eles passaram por todos os processesda exclusao social, sofreram a desvantagem que o racismoIhes impunha [racialized disadvantage], o racismo informale institucionalizado, tao comuns hoje na Europa Ocidentalem face de processes semelhantes que afetam a Franca,Espanha, Portugal, Alemanha, Italia e Grecia. Sua historiapos-guerra tern sido marcada por lutas contra o preconceitoracial, por confrontos com grupos racistas e a policia, bem comopelo racismo institucionalizado e as autoridades publicas queadministram e distribuem diferencialmente os sistemas desuporte dos quais dependem as comunidades imigrantes. Emtermos gerais, a maioria se concentra na extremidade inferiordo espectro social de privacao, caracterizada por altos niveisrelativos de pobreza, desemprego e insucesso educacional. Em1991, menos de dois tercos dos homens e menos da metadedas mulheres em idade economicamente ativa realmentetrabalhavam.

Entretanto, seu posicionamento social e economico temse tornado significativamente mais diferenciado com o passardo tempo (Modood et al., 1997). Alguns indianos, asiaticosda Africa Oriental e chineses, apesar de altamente quali-ficados, tem enfrentado o "teto de vidro" do bloqueio apromocao nos niveis superiores da carreira profissional.As comunidades paquistanesas sao bastante atuantes no setordas pequenas empresas. Contudo, os milionarios asiaticos

nao conseguem esconder o fato de que algumas famfliasindianas e muitas asiaticas ainda vivem em grave condicaode pobreza. Os imigrantes de Bangladesh sao em mediaquatro vezes mais carentes do que qualquer outro grupoidentificavel. As diferencas de genero exercem um papeldecisive. Jovens rapazes afro-caribenhos sao altamente vulne-raveis ao desemprego e ao baixo desempenho educacional,sao desproporcionalmente presentes entre os excluidos daescola e a populacao prisioneira e sao o objeto mais frequentedas detencoes em operacoes de blitz policial. As mulheresafro-caribenhas, no entanto, tem hoje maior mobilidade noemprego, melhores salaries e taxas mais elevadas de partici-pacao na educacao do que as mulheres brancas. O quadronao e mais de privacao uniforme, embora a desvantagemsocioeconomica continue sendo ampla.

Que tipos de "comunidade" esses individuos formam? Suasculturas sao unificadas e homogeneas? Qual o seu relaciona-mento com a sociedade britanica majoritaria? Quais sao asestrategias mais adequadas para sua plena integracao a essasociedade?

O termo "comunidade" (como em "comunidades de minoriasetnicas") reflete precisamente o forte senso de identidadegrupal que existe entre esses grupos. Entretanto, isso podeser algo perigosamente enganoso. Esse modelo e uma ideali-zacao dos relacionamentos pessoais dos povoados compostospor uma mesma classe, significando grupos homogeneos quepossuem fortes lacos internes de uniao e fronteiras bemestabelecidas que os separam do mundo exterior. As chamadas"minorias etnicas" de fato tem formado comunidades culturaisfortemente marcadas e mantem costumes e praticas sociaisdistintas na vida cotidiana, sobretudo nos contextos familiare domestico. Elos de continuidade com seus locals de origemcontinuam a existir. E o que ocorre nas areas densamenteocupadas pelas comunidades afro-caribenhas, tais comoBrixton, Peckham e Tottenham, o bairro de Moss Side emManchester, Liverpool e Handsworth, ou, no caso das comu-nidades asiaticas, locals como Southall, Tower Hamlets, BalsallHeath em Birmingham, Bradford e Leeds. Mas existem aindadiferencas que se negam a ser consolidadas. Os caribenhosdas diferentes ilhas provem de misturas etnicas e raciaismuito distintas, embora todos tendam (erroneamente) a ser

65

Page 36: Da Dispora - Stuart Hall

vistos como "jamaicanos". Os asiaticos tambem sao tratadoscomo um grupo unico. Pore"m, "apesar de compartilharemaiguns traces culturais, ... [os asiaticos] pertencem a gruposetnicos, religiosos e linguisticos diferenciados e trazemconsigo receios e memorias hist6ricas diferentes" (Parekh,1997). Todas essas comunidades sao etnica e racialmentemiscigenadas e possuem um numero substancial de popu-lae.6es brancas. Nenhuma e segregada em guetos raciais ouetnicos. Sao consideravelmente menos segregadas do que,por exemplo, as minorias nao brancas em muitas cidadesdos Estados Unidos. Assim como ocorre entre a, populacaobranca, os fatores de classe e generos sao altamente respon-saveis pela determinacao de suas posicoes na sociedadebritanica (Brah, 1996; Yuval-Davis, 1997; Phoenix, 1998).Um quadro mais precise teria que partir da complexidadevivida que surge nessas comunidades diasporicas, onde asformas de vida derivadas de suas culturas de origem e deno-minadas "tradicionais" continuam influenciando as autodefi-nicoes comunitarias, embora constantemente operem em todosos niveis ao longo das interacoes cotidianas amplas, juntocom a vida social britanica como um todo.

A manutencao de identidades racializadas, etnico-culturaise religiosas, e obviamente relevante a autocompreensao-dessas comunidades. O fator da "negritude" e decisive paraa identidade da terceira geracao de afro-caribenhos,12 assimcomo e a f e hindu ou muculmana para a segunda geracao decertos asiaticos. Mas certamente essas comunidades naoestao emparedadas em uma Tradicao imutavel. Assim comoocorre na maioria das diasporas, as tradicoes variam deacordo com a pessoa, ou mesmo dentro de uma mesmapessoa, e constantemente sao revisadas e transformadasem resposta as experiencias migratorias. Ha notavel variaclo,tanto em termos de compromisso quanto de pratica, entreas diferentes comunidades ou no interior das mesmas —entre as distintas nacionalidades e grupos linguisticos, noseio dos credos religiosos, entre homens e mulheres ou ge-racoes. Jovens de todas as comunidades expressam certafidelidade as "tradicoes" de origem, ao mesmo tempo em quedemonstram um declmio visivel em sua pratica concreta.

66

Declaram nao uma identidade primordial, mas uma escolhade posicao do grupo ao qual desejam ser associados. Asescolhas identitarias sao mais politicas que antropol6gicas,mais "associativas", menos designadas (Modood et al., 1997).

Portanto, as generalizac,6es se tornam extremamente di-ficeis diante dessa complexidade multicultural. BhikhuParekh, um observador arguto, adota uma definicao/ortede"comunidades etnicas": "As comunidades asiaticas e afro-caribenhas sao etnicas por natureza, isto e, sao fisicamentediferenciaveis, ligadas por lacos sociais derivados de cos-tumes, linguas e praticas intermatrimoniais compartilhadas;possuem historia, memorias coletivas, origens geograficas,visoes de mundo e modos de organiza^ao social proprios."Contudo, ele reconhece que

ao contrSrio da impressao popular, grandes modificanoesestao ocorrendo nas comunidades etnicas e cada famflia temse tornado um terreno de lutas reprimidas ou explosivas. Emcada familia, marido e inulher, pais e filhos, irmaos e irmasestao tendo que renegociar e redefinir seus padroes de rela-cionamento, de acordo com seus valores tradicionais e comaqueles caracteristicos do pais adotado. Cada familia chegaas suas proprias conclusoes experimentais... (Parekh, 1991)

Portanto, e um erro fundamental confundir suas formasdiasporicas com uma vagarosa transic.ao para a assimilacaocompleta (uma ideia decisivamente deixada de lado, na Gra-Bretanha pelo menos, durante os anos 70). Elas representamuma nova configuracao cultural — "comunidades cosmopo-Htas" — marcadas por amplos processes de transculturacao(Pratt, 1992). Por sua vez, tem causado um impacto macic.o epluralizante sobre a vida social publica e privada na Gra-Bretanha, transformando literalmente muitas das cidadesbritanicas em metropoles multiculturais. Essas comunidadesse destacaram no breve fenomeno do Novo Trabalhismoconhecido como Cool Britannia.™ Um sinal de que elasultrapassaram as categorias do senso comum e o fato de queservem de exemplo de um "senso de comunidade" que asociedade liberal supostamente perdeu e, ao mesmo tempo,sao os significantes mais avancados da experiencia metropo-litana do pos-moderno urbano!

67

Page 37: Da Dispora - Stuart Hall

O leitor pode discordar de detalhes do processo acimadescrito (que, necessariamente, e generalizado e abstrato).Contudo, a menos que o quadro fundamental seja questio-nado substancialmente, vale a pena refletir a respeito dasenormes consequencias dis- ou (como coloca Barnor Hesse)"transruptivas" desses desdobramentos para uma estrategiaou abordagem politica a questao multicultural. O restantedeste ensaio se ocupa em tra^ar alguns desses efeitos trans-ruptivos.

PERTURBANDO A LINGUAGEM DE"RAfA" E "ETNIA"

O primeiro desses impactos e o que atua sobre categoriasde "raca" e "etnia". O surgimento da questao multiculturalproduziu uma "racializacao" diferenciada de areas centraisda vida e cultura britanicas.H Cada vez mais, os britanicostern sido obrigados a pensar sobre si mesmos e suas relacoescom os outros no Reino Unido em termos raciais. A etnici-dade tambem foi incluida no vocabulario domestico brita-nico. Enquanto na mentalidade norte-americana os EstadosUnidos constituem uma sociedade composta de etnias, aGra-Bretanha (embora diversa em suas origens) sempreaplicou o termo aos outros em geral — o "ser britanico"constitui um significante vazio, a norma em relacao a qual a"diferenca" (etnicidade) e mensurada. A crescente visibili-dade das comunidades etnicas, junto com os movimentos porgovernos regionais mais autonomos, questionou a "homoge-neidade" da cultura britanica e do "ser ingles" enquantoetnia, trazendo a questao multicultural para o centro da crisede identidade nacional. •

Claro que o "ser britanico" enquanto categoria sempre foiracializado — quando e que deixou de conotar a "branqui-tude"? Mas esse fato sempre foi cuidadosamente isolado dodiscurso nacional, popular ou academico. Tem-se feito umesforco para que a questao da "raca" seja reconhecida comseriedade na teoria politica em geral, no pensamento jorna-listico e academico.15 Esse silencio esta sendo rompido amedida que esses termos se impoem sobre a consciencia

68

publica. Sua crescente visibilidade constitui, inevitavelmente,um processo dificil e pesado. Alem do mais, encontramosagora "raca" entre parenteses, "raca" sob rasura, "raca" emuma nova configurable com etnicidade. Esse deslocamentoepistemico constitui um dos efeitos mais transruptivos domulticultural.

Entre as duas maiores comunidades pos-migratorias naobrancas na Gra-Bretanha, o termo "raca" 6 aplicado geralmenteaos afro-caribenhos e "etnicidade" aos asiaticos. Na verdade,esses termos fornecem um mapeamento bem grosseiro dessascomunidades. Considera-se que a "raca" traduza melhor aexperiencia afro-caribenha por causa da importancia da corda pele, uma ideia derivada da biologia. O espectro de corentre os afro-caribenhos e extremamente amplo — resultanteda intensa miscigenagao da sociedade colonial caribenha eseculos de "transculturacao" (Ortiz, 1940; Brathwaite, 1971;Glissant, 1981; Pratt, 1992). Os asiaticos nao constituem deforma alguma uma "raca", nem tampouco uma unica "etnia".A nacionalidade e frequentemente tao importante quanto aetnia. Os indianos, os paquistaneses, os oriundos de Bangla-desh e Sri Lanka, os ugandenses, os quenianos e os chinesessao perpassados por diferencas regionais, urbano-rurais,culturais, etnicas e religiosas.

Conceitualmente, a categoria "raca" nao e cientifica. Asdiferencas atribuiveis a "raca" numa mesma populacao saotao grandes quanto aquelas encontradas entre populacoesracialmente definidas. "Raga" e uma construcao politica esocial. E a categoria discursiva em torno da qual se orga-niza um sistema de poder socioeconomico, de exploracao eexclusao — ou seja, o racismo. Contudo, como pratica discur-siva, o racismo possui uma logica propria (Hall, 1994). Tentajustificar as diferencas socials e culturais que legitimam aexclusao racial em termos de distincoes geneticas e biolo-gicas, isto e, na natureza. Esse "efeito de naturalizacao"parece transformar a diferenca racial em um "fato" fixo ecientifico, que nao responde a mudanca ou a engenhariasocial reformista. Essa referenda discursiva a natureza e algoque o racismo contra o negro compartilha com o anti-semi-tismo e com o sexismo (em que tambem "a biologia £ o des-tino"), porem, menos com a questao de classe. O problema e

69

Page 38: Da Dispora - Stuart Hall

que o nivel genetico nao e imediatamente visivel. Dai que,nesse tipo de discurso, as diferencas geneticas (supostamenteescondidas na estrutura dos genes) sao "materializadas" epodem ser "lidas" nos significantes corporals vislveis e facil-niente reconheciveis, tais como a cor da pele, as caracteris-ticas fisicas do cabelo, as feicoes do rosto (por exemplo, onariz aquilino do judeu), o tipo fisico e etc., o que permiteseu funcionamento enquanto mecanismos de fechamentodiscursivo em situacoes cotidianas.16

Ja a "etnicidade" gera um discurso em que a diferenca sefunda sob caracteristicas culturais e religiosas. Nesses termos,ela freqiientemente se contrapoe a "raca". Porem, essa opo-sicao binaria pode ser delineada de forma muito simplista.O racismo biologico privilegia marcadores como a cor da pele.Esses significantes tern sido utilizados tambem, por extensaodiscursiva, para conotar diferencas sociais e culturais. A"negritude" tern funcionado como signo da maior proximidadedos afro-descendentes com a natureza e, consequentemente,da probabilidade de que sejam preguicosos e indolentes, deque Ihes faltem capacidades intelectuais de ordem mais ele-vada, sejam impulsionados pela emocao e o sentimento emvez da razao, hipersexualizados, tenham baixo autocontrole,tendam a violencia etc. Da mesma forma, os estigmatizadospor razoes etnicas, por serem "culturalmente diferentes" e,portanto, inferiores, sao tambem caracterizados em termosfisicos (embora talvez nao tao visivelmente quanto os negros),sustentados por estereotipos sexuais (os negros seriam exces-sivamente masculinizados, os orientals afeminados etc.)- Oreferente biologico nunca opera isoladamente, porem nuncaesta ausente, ocorrendo de forma mais indireta nos discursosde etnia. Quanto maior a relevancia da "etnicidade", mais assuas caracteristicas sao representadas como relativamentefixas, inerentes ao grupo, transmitidas de geracao em geracaonao apenas pela cultura e a educac.ao, mas tambem pelaheranca biologica, inscrita no corpo e estabilizada, sobre-tudo, pelo parentesco e pelas regras do matrimonio endo-gamo, que garantem ao grupo etnico a manutencao de sua"pureza" genetica e, portanto, cultural. A "etnicidade" econstruida por caracteristicas "fisicamente distinguiveis ...oriundas ... [da] pratica do casamento end6geno" (Parekh,1991). Em suma, a articulacao da diferenca com a natureza

70

(o biologico e o genetico) esta presente no discurso da etnia,mas e deslocada pelo parentesco e o casamento endogeno.

Assim, tanto o discurso da "raca" quanto o da "etnia"funcionam estabelecendo uma articulacao discursiva ou urna"cadeia de equivalencias" (Laclau e Mouffe, 1985) entre oregistro sociocultural e o biologico, fazendo com que as dife-rencas em um sistema de significados sejam inferidas atravesde equivalemes em outra cadeia (Hall, 1990). Portanto, oracismo biologico e a discriminagao cultural nao constituemdois sistemas distintos, mas dois registros do racismo. Namaioria das vezes, os discursos da diferene.a biologica ecultural estao em jogo simultaneamente. No anti-semitismo,os judeus eram multiplamente racializados por razoes biolo-gicas, culturais e religiosas. Como argumenta Wieviorka, oracismo existe "onde ha uma associacao dessas duas prin-cipals estrategias, cuja combinacao peculiar depende dasespecificidades da experiencia, do momento historico e dapreferencia individual" (Wieviorka, 1995). Portanto, parecemais apropriado falar nao de "racismo" versus "diferencacultural", mas de "duas logicas" do racismo.17

Parece haver tres razoes para a atual confusao conceitual.A primeira delas e empirica. Os imigrantes afro-caribenhos— vistos basicamente em termos raciais — chegaram primeiroa Gra-Bretanha. Os asiaticos, caracterizados pela diferencacultural e religiosa, chegaram mais tarde e so depois setornaram visiveis enquanto "problema". Nos anos 70, aslutas anti-racismo empreendidas pelos dois grupos tendiama se unificar sob a afirmacao de uma identidade "negra", defi-nida pelo compartilhamento da diferenca racial em relacao asociedade branca. Entretanto, disso resultou o inesperadoprivilegio da experiencia afro-caribenha sobre a asiatica.Quanto mais evidente se tornava a "politica de reconheci-mento" (Taylor, 1994), enfatizando o direito a diferenca cul-tural, mais as duas trajetorias se distanciavam. "Negro" setornou a descricao mais comum dos afro-descendentes,enquanto os asiaticos tenderam a voltar a usar termos deidentificacao etnica especificos. Dai a atual descricao ano-mala — "negro asiatico" — que combina "raga" e "etnici-dade". Em segundo lugar, ha muitas outras situacoes nomundo em que a etnicidade, e nao a "raca", tern sido foco deviolentos conflitos de exclusao (por exemplo, na Indonesia,

71

Page 39: Da Dispora - Stuart Hall

Sri-Lanka, Ruanda, B6snia e Kosovo). Em terceiro lugar,tern havido um aumento significative da discriminacao eda exclusao baseadas na religiao ou em um forte compo-nente religiose (Richardson, 1999), em particular contra ascomunidades muculmanas, relacionado a politizacao mundialdo Isla. Alguns autores creem que um multiculturalismo foca-lizado sobre o racismo biologico, e nao sobre uma diferen-ciacao cultural, ignora essa dimensao religiosa (por exemplo,Modood et al., 1997).

Nos anos 80, alguns criticos observaram um declinio noracismo de base biologica e um aumento do "novo racismocultural" (Barker, 1981). Modood de fato menciona um "retrai-mento do racismo de cor" e um "reforco [do] racismo culturalem micro escala" na Gra-Bretanha. Nao se sabe se os atuaisacontecimentos sustentam empiricamente essa contagem (osataques racistas as famllias asiaticas e as violentas agressoesde rua aos jovens negros continuam com toda forca) ou se eutil trocar uma coisa pela outra dessa forma. O que parecemais apropriado e uma concepcao mais ampla do racismo,que reconheca a forma pela qual, em sua estrutura discur-siva, o racismo bio!6gico e a discriminacao cultural sao arti-culados e combinados. Essas duas "logicas" estao semprepresentes, embora sofram combinacoes diferentes e sejampriorizadas distintamente, de acordo com o contexto ou emrelacao a diferentes populacoes subjugadas. Evidentementeas historias do fechamento racial e etnico variam bastantede acordo com o lugar (por exemplo, nos Estados Unidos ena Gra-Bretanha), emergem em momentos distintos e sobformas diferentes, e exercem diferentes impactos politicos esociais. Nao devem ser homogeneizadas. Entretanto, a fusaodos discursos de inferiorizacao biol6gica e cultural pareceser uma caracteristica definidora do "momento multicultural".18

Uma vez que "negro" — antes um epiteto negative —•tornou-se um termo de identificacao cultural positive (Bonnett,1999), pode-se falar aqui de uma "etmzacao" de "raca".19 Aomesmo tempo, a diferenca cultural adquiriu um significadomais violento, politizado e contestatario, que se pode pensarcomo a "racializacao" da etnicidade (por exemplo, "limpezaetnica"). Consequentemente, colocam-se na agenda do multi-culturalismo britanico duas demandas politicas relacionadas,

72

mas distintas, as quais tinham sido consideradas incompa-tiveis, mutuamente excludentes ate entao: a demanda (contraum racismo diferenciado) por igualdade social e justica racial;e a demanda (contra um etnocentrismo universalizante) peloreconhecimento da diferenga cultural. Voltaremos a impor-tancia politica dessa dupla demanda logo abaixo.

DESESTABILIZANDO A CULTURA

O segundo efeito transruptivo e aquele que "a questaomulticultural" exerce sobre a compreensao da cultura. Aoposicao binaria, derivada do Iluminisrno — Particularismoversus Univeraalismo, Tradicao versus Modernidade —produz uma forma especifica de compreensao da cultura.Trata-se das culturas distintas, homogeneas, auto-suficientes,fortemente aglutinadas das chamadas sociedades tradicionais.Nessa definicao antropologica, a tradicao cultural saturacomunidades inteiras, subordinando os individuos a formasde vida sancionadas comunalmente. Isto e contraposto a "cul-tura da modernidade" — aberta, racional, universalista eindividualista. Nesta, os vinculos culturais particulares devemser deixados de lado na vida publica — sempre proclamadospela neutralidade do estado civil — para que o individuofique formalmente livre para escrever seu proprio script.Considera-se que essas caractensticas sao fixadas por seusconteudos essencializados. A ideia de que a sociedade liberalpoderia agir de maneira "fundamentalista" ou que o "tradi-cionalismo", digamos, do Isla poderia combinar formasmodernas de vida parece uma contradicao em termos. Atradicao e representada como se fosse fixada em pedra.20

Entretanto, desde o comeco do "projeto" global doOcidente no fim do seculo quinze, o binarismo Tradicao/Modernidade tern sido progressivamente minado. As culturastradicionais colonizadas permanecem distintas: mas elas inevi-tavelmente se tornaram "recrutas da modernidade".21 Podemser mais fortemente delimitados que as chamadas socie-dades modernas. Mas nao sao mais (se e que ja foram) enti-dades organicas, fixas, autonomas e auto-suficientes. Comoresultado da globalizacao em seu sentido historico amplo,

73

Page 40: Da Dispora - Stuart Hall

muitas delas se tornaram formacoes mais "hibridas". A tradicaofunciona, em geral, menos como doutrina do que como reper-tories de significados. Cada vez mais, os individuos recorrem aesses vinculos e estruturas nas quais se inscrevem para darsentido ao mundo, sem serem rigorosamente atados a elesem cada detaihe de sua existencia.22 Eles fazem parte de umarelacao dialogica mais ampla com "o outro". As culturaspre-coloniais foram — em graus bem distintos — sucessi-vamente convocadas globalmente sob a rubrica da moder-nidade capitalista ocidental e do sistema imperial, sem queseus tracos distintivos fossem inteiramente apagados. Isso Ihespermitiu — conforme C. L. R. James uma vez comentou sobreos caribenhos — "estar dentro da Europa sem ser dela". Comoobservou Aijaz Ahmad (que nao e um aliado natural da inte-lligentzia hibridizante): "A fertilizacao cruzada das culturastern sido endemica a todos os movimentos populacionais ...e todos esses movimentos na historia tern envolvido viagem,contato, transmutacao, hibridizacao de ideias, valores e normascomportamentais." (Ahmad, 1995).

Um termo que tern sido utilizado para caracterizar asculturas cada vez mais mistas e diasporicas dessas comuni-dades e "hibridismo". Contudo, seu sentido tern sido comu-mente mal interpretado.23 Hibridismo nao e uma referencia acornposicao racial mista de uma populacao. E realmenteoutro termo para a logica cultural da tradugdo. Essa logicase torna cada vez mais evidente nas diasporas multiculturaise em outras comunidades minoritarias e mistas do mundopos-colonial. Antigas e recentes diasporas governadas poressa posicao ambivalente, do tipo dentro/fora, podem serencontradas em toda parte. Ela define a logica culturalcomposta e irregular pela q.ual a chamada "modernidade"ocidental tern afetado o resto do mundo desde o inicio doprojeto globalizante da Europa (Hall, 1996a).

O hibridismo nao se refere a individuos hibridos, quepodem ser contrastados com os "tradicionais" e "modernos"como sujeitos plenamente formados. Trata-se de um pro-cesso de traducao cultural, agonistico uma vez que nunca secompleta, mas que permanece em sua indecidibilidade.

Nao e simplesmente apropriacao ou adaptacao; e um processoatraves do qual se demanda das culturas uma revisao de seus

74

pr6prios sistemas de referencia, normas e valores, pelo distan-ciamento de suas regras habituais ou "inerentes" de transfor-macao. Ambivalencia e antagonismo acompanham cada ato detraducao cultural, pois o negociar com a "diferenc.a do outro"revela uma insuficiencia radical de nossos proprios sistemasde significado e significacao. (Bhabha, 1997)

Em suas muitas variantes, a "tradicao" e a "traducao" sao combi-nadas de diversas formas (Robbins, 1991). Nao e simplesmentealgo celebrativo, pois implica em profundos e impeditivoscustos, derivados de suas multiplas formas de deslocamentoe habitacao (Clifford, 1997). Como sugeriu Homi Bhabha, ohibridismo significa um

momento ambiguo e ansioso de ... transicao, que acompanhanervosamente qualquer modo de transformacao social, sem a_promessa de um fechamento celebrativo ou transcendenciadas condicoes complexas e ate conflituosas que acompanhamo processo ... [Ele] insiste em exibir ... as dissonancias a serematravessadas apesar das relacoes de proximidade, as disjuncoesde poder ou posicao a serem contestadas; os valores eticos eesteticos a serem "traduzidos", mas que nao transcenderaoincolumes o processo de transferencia. (Bhabha, 1997)

Entretanto, e tambem "como a novidade entra no mundo"(Rushdie, 199D-

A ideia de cultura implicita nas "comunidades de minoriaetnica" nao registra uma relacao fixa entre Tradigao e Moder-nidade. Nao permanece no interior de fronteiras unicas nemtranscende fronteiras. Na pratica, ela refuta esses binarismos.24

Necessariamente, sua nocao de "comunidade" inclui umaampla gama de praticas concretas. Alguns individuos perma-necem profundamente comprometidos com as praticas evalores "tradicionais" (embora raramente sem uma modulacaodiasporica). Para outros, as chamadas identificacoes tradi-cionais tern sido intensificadas (por exemplo, pela hostilidadeda comunidade hospedeira, pelo racismo ou pelas mudancasnas condicoes de vida mundiais, tais como a maior proemi-nencia do Isla). Para outros ainda, a hibridizacao esta muitoavancada — mas quase nunca num sentido assimilacionista.Esse e um quadro radicalmente deslocado e mais complexoda cultura e da comunidade do que aqueles inscritos na

75

Page 41: Da Dispora - Stuart Hall

literatura socio!6gica ou antropologica convencional. O "hibri-dismo" marca o lugar dessa incomensurabilidade.

Em condicoes diasporicas, as pessoas geralmente saoobrigadas a adotar posicoes de identificacao deslocadas, mul-tiplas e hifenizadas. Cerca de dois tercos dos oriundos decomunidades minoritarias, quando perguntados no QuartoCenso Nacional de Minorias Etnicas se eles se consideravam"britanicos", responderam que sim, embora tambem sentissem,por exemplo, que ser britanico e paquistanes nao era algoconflituoso em suas mentes (Modood et al., 1997). Negro-e-britanico ou asiatico-britanico sao identidades as quais osjovens respondem cada vez mais. Algumas mulheres, que acre-ditam que suas comunidades tern o direito de ter suas dife-rencas respeitadas, nao desejam que suas vidas enquantomulheres, que seus direitos a educacao e as escolhas matrimo-niais, sejam governados por normas reguladas e policiadaspela comunidade. Mesmo quando se trata dos setores maistradicionalistas, o principio da heterogeneidade continua aoperar fortemente. Nesses termos, entao, o perito contadorasiatico, de terno e gravata, tao vividamente invocado porModood (1998), que mora no suburbio, manda seus filhospara a escola particular e le Selecoes e o Bhagavad-Gita; ou oadolescente negro que e um DJ de um salao de baile, tocajungle music mas torce para o Manchester United; ou o alunomuculmano que usa calca jeans larga, em estilo hip-hop, derua, mas nunca falta as oracoes da sexta-feira, sao todos, deformas distintas, "hibridizados". Se eles retornassem a suascidadezinhas de origem, o mais tradicional deles seria consi-derado "ocidentalizado" — senao irremediavelmente diaspo-rizado. Todos negociam culturalmente em algum ponto doespectro da differance, onde as disjuncoes de tempo, geragao,espacializacao e disseminacao se recusam a ser nitidamentealinhadas.

DESESTABILIZANDO AS FUNDAgOES DOESTADO CONSTITUCIONAL LIBERAL

Um terceiro efeito transruptivo da "questao multicultural"e seu questionamento dos discursos dominantes da teoria

76

politica ocidental e as fundacoes do Estado liberal. Em faceda disseminacao de diferencas instaveis, o debate estabele-cido entre liberals e comunidades, que hoje domina a tra-dicao politica ocidental, tern sido seriamente perturbado.

O universalismo pos-iluminista, liberal, racional e huma-nista da cultura ocidental parece nao menos significante histo-ricamente, mas se torna menos universal a cada momento.Muitas grandes ideias — liberdade, igualdade, autonomia,democracia — foram aperfeicoadas na tradic.ao liberal. Entre-tanto, e evidente que o liberalismo hoje nao e "a culturaalem das culturas", mas a cultura que prevaleceu: aqueleparticularismo que se universalizou com exito e se tornouhegemonico em todo o globo. Seu triunfo ao praticamenteestabelecer os limites do dorninio "da politica" nao foi, emretrospecto, o resultado de uma desinteressada conversao emmassa & Regra da Razao Universal, mas algo mais proximo aum tipo de "jogo" de poder-conhecimento mais mundano efoucaultiano. Ja houve no passado criticas teoricas ao lado"tenebroso" do projeto Iluminista. Mas a "questao multicul-tural" foi a que mais efetivamente conseguiu revelar seudisfarce contemporaneo.

A cidadania universal e a neutralidade cultural do estadosao as duas bases do universalismo liberal ocidental. E claroque os direitos de cidadania nunca foram universalmenteaplicados — nem aos afro-americanos pelas maos dos PaisFundadores dos EUA nem aos sujeitos colonials pelo governoimperial. Esse vazio entre ideal e pratica, entre igualdadeformal e igualdade concreta, entre liberdade negativa e posi-tiva, tem assombrado a concepcao liberal de cidadania desdeo inicio. Quanto a neutralidade cultural do estado liberal,seus avancos nao devem ser levianamente descartados. Atolerancia religiosa, a liberdade de expressao, o estado dedireito, a igualdade formal e a legalidade processual, osufragio universal — embora contestados — sao realizacoespositivas. Entretanto, a neutralidade do Estado funcionaapenas quando se pressupoe uma homogeneidade culturalampla entre os governados. Essa presuncao fundamentouas democracias liberais ocidentais ate recentemente. Sob asnovas condicoes multiculturais, entretanto, essa premissaparece cada vez menos valida.

77

Page 42: Da Dispora - Stuart Hall

A alegaeao e de que o Estado liberal perdeu sua cascaeitnico-particularista e emergiu em sua forma civica, universa-lista e culturalmente purificada. A Gra-Bretanha, entretanto,como todos os nacionalismos civicos, nao e" apenas umaentidade soberana em termos politicos e territorials, mas etambem uma "comunidade imaginada". Este ultimo constituio foco de identificacao e pertencimento. Ao contrario do quese supoe, os discursos da nac.ao nao refletem um estadounificado ja alcangado. Seu intuito e forjar ou construir umaforma unificada de identificacao a partir das muitas dife-rencas de classe, genero, regiao, religiao ou localidade, quena verdade atravessam a nacao (Hall, 1992; Bhabha, 1990).Para tanto, esses discursos devem incrustar profundamente eenredar o chamado estado "civico" sem cultura, para formaruma densa trama de significados, tradicoes e valores culturaisque venham a representar a nacao. E somente dentro da culturae da representacao que a identificacao com esta "comunidadeimaginada" pode ser construida,

Todos os modernos Estados-nagao liberals combinam achamada forma civica racional e reflexiva de alian£a ao estadocom uma alianca intuitiva, instintiva e etnica a nacao. Essaformacao heterogenea, o "ser britanico", funde o Reino Unido,a entidade politica, como uma "comunidade imaginada".Conforme observou o grande patriota, Enoch Powell: "A vidadas nacoes, nao menos que a dos homens [sic], e vivida emgrande parte na mente." As fundacoes racionais e constitu-cionais da Gra-Bretanha ganham significado e textura de vidaatraves de um sistema de representacao cultural. Elas sesustentam nos costumes, habitos e rituais do dia-a-dia, nosc<5digos e convencoes sociais, nas versoes dominantes demasculine e feminino, na memoria socialmente construidados triunfos e desastres nacionais, nas imagens, nas pai-sagens imaginadas e distintas caracteristicas nacionais queproduzem a ideia de "Gra-Bretanha". Esses aspectos nao saode menor importancia por terem sido "inventados" (Hobsbawme Ranger, 1993). Embora a nacao constantemente se reinvente,ela e representada como algo que existe desde as origensdos tempos (Ver Davis, 1999). Mas nao decorre do fato desua fundacao em particularidades culturais bem distintas queo Estado "universal" nao seja outra coisa senao um playgroundde definicoes concorrentes do bem. O que nao se pode mais

78

sustentar, face a "questao multicultural", e o contraste binarioentre o particularismo da demanda "deles" por reconhecimentoda diferenca versus o universalismo da "nossa" racionali-dade civica.25

Na verdade, a tao proclamada homogeneidade da culturabritanica tern sido bastante exagerada. Sempre existirammaneiras muito distintas de "ser britanico". A Gra-Bretanhasempre foi profundamente marcada por clivagens de genero,classe e regiao. Grandes diferencas de poder material ecultural entre os diferentes "reinos" do Reino Unido foramencobertas pela hegemonia dos ingleses sobre os demais oudo "ser ingles" sobre o "ser britanico". Os irlandeses nuncapertenceram propriamente. Os pobres sempre foram excluidos.A maioria da populacao so adquiriu o direito de voto no iniciodo seculo vinte. A isso se deve acrescentar a crescente diver-sidade cultural da vida social britanica. Os efeitos da globali-zacao, o declinio das fortunas economicas britanicas e de suaposicao no mundo, o fim do Imperio, as pressoes cada vezmaiores pela delegacao de governo e poder as regioes, e odesafio da Europa, tudo isso desestabeleceu a chamadahomogeneidade britanica, produzindo uma profunda crisena identidade nacional. Ha ainda o ritmo surpreendente dopluralism© social e das mudancas tecnologicas e economicas,que abalaram as relac.6es de classe e genero tradicionais,transformaram a sociedade britanica em um lugar menosprevisivel, e constituem fontes de macic.a diversidade internana vida social.26 Hoje em dia e raro haver algum consensonacional significative sobre quaisquer assuntos sociaiscriticos, sobre os quais ha profundas diferencas de opiniao ede experiencia vivida. As pessoas pertencem a varias "comu-nidades" sobrepostas que por vezes exercem pressoescontrarias. A Gra-Bretanha constitui uma sociedade "multi-culturalmente diversa" mesmo antes de se considerar oimpacto gerado pelas comunidades multietnicas do periodopos-migratorio. Realmente, parece que estas sao as porta-doras simbolicas de um padrao complexo de mudanca,diversificacao e "perda", do qual sao apenas o mais conve-niente bode expiatorio.

A questao multicultural tern ajudado a desconstruir al-gumas outras incoerencias do Estado constitucional liberal.Acredita-se que a "neutralidade" do Estado liberal (isto e, o

79

Page 43: Da Dispora - Stuart Hall

fato de que este e representado como se nao buscasse naesfera publica nenhuma no£ao particular do "bem") garante aautonomia pessoal e a liberdade do individuo de buscar suapropria concepejio do "bem", contanto que isso seja feito nodominio privado. A ordem legal eticamente neutra do Estadoliberal depende, assim, da estrita separacao entre as esferaspublica e privada. Mas isso e algo cada vez mais dificil de secumprir de forma estavel. A lei e a politica intervem cada vezmais no chamado dominio privado. Julgamentos publicosse justificam a partir do dominio privado. Com o pos-femi-nismo, podemos compreender melhor como o contratosexual sustenta o contrato social. Dominios como a familia,a sexualidade, a saude, a alimentacao e o vestuario, que antespertenciam fundamentalmente ao dominio privado, torna-ram-se parte de um ampliado campo publico e politico decontestacao. As claras distincoes entre as esferas domestica ea publica nao se sustentam, principalmente apos a entradaem massa das mulheres e das atividades "privadas" antesassociadas ao domestico. Em toda parte, o "pessoal" tornou-se"politico".

Aquilo que Michael Walzer chamou de "Liberalismo 1"constitui um dos grandes sistemas discursivos do mundomoderno, que praticamente tomou conta da teoria politica,em tempos recentes. Somente uma definicao fragil da culturae uma no?ao altamente atenuada de direitos coletivos saocompativeis com a enfase individualista situada no centrodessa concepcao liberal de mercado.27 Ela nao reconhece oquanto o individuo e o que Taylor (1994) denominou "dia-logico" — nao no sentido binario do dialogo entre doissujeitos ja constituidos, mas no sentido de sua relacao comoutro ser fundamentalmente constitutive do sujeito, que podese posicionar como uma "identidade" somente em relacao comaquilo que a ele falta — seu outro, seu "exterior constitutive"(Lacan, 1977; Laclau e Mouffe, 1985; Butler, 1993). A vidaindividual significativa esta sempre incrustada em contextosculturais e e somente dentro destes que suas "escolhas Hvres"fazem sentido.

Do ponto de vista normative, a integridade da pessoa fisicanao pode ser garantida sem a protecao das experienciascompartilhadas intersubjetivamente, bem como dos contextos

80

de vida nos quais a pessoa foi socializada e formou sua iden-tidade. A identidade do individuo esta entrela^ada as identi-dades coletivas e pode ser estabilizada apenas em uma redecul tu ra l que, tal como a lingua materna, nao pode serapropriada como propriedade privada. Consequentemente,o individuo permanece na qualidade de portador de "direitosa participacao cultural". (Habermas, 1994)

Na pratica, sob a pressao da diferenca multicultural, algunsEstados constitucionais ocidentais como a Gra-Bretanha ternsido obrigados a adotar aquilo que Walzer denomina Libera-lismo 2, ou aquilo que, no vocabulario menos restrito daEuropa, se chamaria de programa reformista da "socialdemocracia".28 O Estado reconhece formal e publicamenteas necessidades sociais diferenciadas, bem como a crescentediversidade cultural de seus cidadaos, admitindo certosdireitos grupais e outros definidos pelo individuo. O Estadoteve que desenvolver estrategias de redistribuicao atraves deapoio publico (como programas de acao afirmativa, legis-lacao que garanta igualdade de oportunidades, fundospublicos de compensacao e um estado de bem-estar socialpara grupos em desvantagem etc.), ate mesmo para garantir aigualdade de condicoes tao cara ao liberalismo formal. Terntransformado em lei algumas definicoes alternativas do "bemviver" e iegalizado certas "excecoes" por razoes essencialmenteculturais. Por exemplo, ao reconhecer os direitos dos Sikhsde usar turbantes sem suspender as obrigacoes dos empre-gadores quanto a regulamentos de saude e seguranca ou aoaceitar como legais os casamentos consensualmente arranjados,mas declarando coercitiva e, portanto, ilegal, a imposicaode matrimonios arranjados sem o consentimento da mulher— ao fazer isso, a lei britanica avancou na pratica rumo aoequilibrio entre o pluralismo cultural, definido em relagaoas comunidades, e as concepfdes liberals de liberdade dosujeito individual.29 Na Gra-Bretanha, entretanto, esse movi-mento tern sido gradativo e incerto, desde o desgaste docompromisso do Novo Trabalhismo com a previdencia social:uma resposta acidental a crescente visibilidade e presencadas comunidades etnicas no amago da vida britanica. Eleconstitui uma especie de "deriva multicultural" (Hall, 1999a).

81

Page 44: Da Dispora - Stuart Hall

ALEM DOS VOCABULARJOS POLITICOSCONTEMPORANEOS

O que seria necessario para tornar essa "deriva" um movi-mento sustentado, um esforco conjunto de vontade politica?Em outras palavras, que premissas podem haver por tras deuma forma radicalmente distinta de multiculturalismo brita-nico? Este teria que ser fundado nao em uma nocao abstratade nacao e comunidade, mas na analise do que a "comuni-dade" realmente significa e como as diferentes comunidadesque hoje compoem a nacao interagem concretamente. Aotratar das origens da desvantagem, ele teria que levar emconta o que estamos chamando de "dois registros do racismo"— a interdependencia do racismo biologico e da diferen-ciacao cultural. O compromisso de expor e confrontar oracismo em quaisquer de suas formas teria que se tornar umobjetivo positive e uma obrigac.ao estatutaria do governo, doqual sua propria reivindicagao de legitimidade representa-tiva dependeria. Teria que tratar da dupla demanda politics,que advem da interacao entre as desigualdades e injusticasgritantes proveniences da falta de igualdade concreta, e aexclusao e inferiorizaclo decorrentes da falta de reconheci-mento e da insensibilidade a diferen^a. Finalmente, em vezde constituir uma estrategia para melhorar a sorte apenas dasminorias raciais ou "etnicas", esta teria que ser uma estra-tegia que rompesse com a I6gica majoritaria e tentasse recon-figurar ou reimaginar a nacao como um todo de uma formaradicalmente pos-nacional (Hall, 1999b).

A dupla demanda por igualdade e diferenca parece exceder oslimites dos nossos atuais vocabularies politicos. O liberalismovem sendo incapaz de se conciliar com a diferenca culturalou garantir a igualdade e a justifa para os cidadaos minori-tarios. Em contrapartida, os comunitaristas afirmam que, jaque o eu nao pode prescindir de seus fins, as concepgoesdo "bem viver" incrustadas na comunidade deveriam serpriorizadas sobre as individuais. Os pluralistas culturaisfundamentam essa ideia em uma definiyao muito forte decomunidade: "culturas distintas que encarnam conceitoscarregados de associates e memorias historicas ... que moldamsua compreensao e abordagem do mundo e constituentculturas de comunidades distintas e coesas" (Parekh, 1991).

82

Como tentamos demonstrar, as comunidades etnicas mino-ritarias nao sao atores coletivos integrados de uma forma queIhes permita se tornarem sujeitos oficiais de direitos comuni-tSrios integrals. A tentacao de essencializar a "comunidade"tern que ser resistida — e uma fantasia de plenitude emcircunstancias de perda imaginada. As comunidades migrantestrazem as marcas da diaspora, da "hibridizacao" e da differanceem sua propria constituicao. Sua integra9ao vertical a suastradicoes de origem coexiste como vinculos laterals estabe-lecidos corn outras "comunidades" de interesse, pratica easpirac.ao, reais ou simbolicos. Os membros individuais, prin-cipalmente as geracoes mais jovens, sao atraidos por forcascontraditorias. Muitos "estabelecem" seus proprios acordosou os negociam dentro e fora de suas comunidades. As mulhe-res que respeitam as tradigoes de suas comunidades se sen-tern livres para desafiar o carater patriarcal destas, bem comoo chauvinismo da autoridade ali exercida. Outras se sentembem, se conformando. Outras ainda, mesmo nao querendotrocar identidades, insistem em seu direito individual deconsentir e, quando nao ha consentimento, em seu direito asair da comunidade corretamente reivindicando o apoio dosistema judiciario e de outras agendas sociais para que oexercicio daquele direito se torne efetivo.30 O mesmo aconte-ce com a dissidencia politica e religiosa.

Assim, ao se fazer um movimento em direc.ao a maior diver-sidade cultural no amago da modernidade deve-se ter cuidadopara nao se reverter simplesmente a novas formas de fecha-mento etnico. Deve-se ter em mente que a "etnicidade" e suarelacao naturalizada com a "comunidade" e outro termo queopera "sob rasura". Todos nos nos localizamos em vocabu-laries culturais e sem eles nao conseguimos produzir enun-ciagoes enquanto sujeitos culturais. Todos nos nos originamose falamos a partir de "algum lugar": somos localizados — eneste sentido ate os mais "modernos" carregam tragos de uma"etnia". Como Laclau argumenta, parafraseando Derrida, nosso podemos pensar "dentro de uma tradic.ao". Contudo, noslembra o autor, isso so se torna possivel "se a propria relagaocom o passado for concebida como uma recepc.ao cntica"(Laclau, 1996). Os entices cosmopolitas estao corretos ao noslembrarem que, na modernidade tardia, tendemos a extrair ostrac.os fragmentarios e os repertories despeda^ados de varias

83

Page 45: Da Dispora - Stuart Hall

linguagens culturais e eticas. Nao se trata de uma negacaoda cultura insistir que "o mundo social [nao] se divide discinta-mente em culturas particulares, uma para cada comunidade,[nem] que o que todos necessitam e de apenas uma dessasentidades — uma unica cultura coerente — para moldar edar significado a ... vida" (Waldron, 1992). Frequentementeoperamos com uma concepcao excessivamente simplista de"pertencimento". As vezes nos revelamos mais pelos nossosvfnculos quanto mais lutamos para nos livrar deles, oudiscutimos, criticamos ou discordamos radicalmente deles.Como os relacionamentos paternos, as tradicoes culturaisnos moldam quando nos alimentam e sustentam, e tambemquando nos forcam a romper irrevogavelmente com elas paraque possamos sobreviver. Mais alem — embora nem sempfereconhecamos —, geralmente existem os "vinculos" que temoscom aqueles que compartilham o mundo conosco e que saodistintos de nos. A pura assercao da diferenca so se tornaviavel em uma sociedade rigidamente segregada. Sua logicafinal e aquela do apartheid.

Deve entao a liberdade pessoal e a escolha individualter precedencia sobre toda particularidade nas sociedadesmodernas, como o liberalismo sempre reclamou? Nao necessa-riamente. O direito de viver a propria vida "a partir dedentro", que se situa no centre da concepcao de individuali-dade, foi realmente afiado e desenvolvido dentro da tradicaoliberal ocidental. Mas nao e mais um valor restrito ao Ocidente— em parte porque as formas de vida que essa tradicao gerounao sao mais exclusivamente "ocidentais". Tornou-se antesum valor cosmopolita e, sob a forma do discurso dos direitoshumanos, e relevante para os trabalhadores do Terceiro Mundoque lutam na periferia do sistema global, para as mulheresnos paises em desenvolvimento que enfrentam concep£6espatriarcais sobre os papeis femininos, para os dissidentespoliticos sob ameaca de tortura, assim como para os consu-midores ocidentais na economia sem peso. Neste sentido,paradoxalmente, o pertencimento cultural (etnicidade) e algoque, em sua propria especificidade, todos partilham. E umaparticularidade universal, ou uma "universalidade concreta".

Outra forma de considerar o problema seria observar que,por definicao, uma sociedade multicultural sempre envolvemais que um grupo. Deve haver um referencial no qual os

84

conflitos mais graves de perspectiva, crenca ou interessepodem ser negociados, e ele nao pode ser de um grupo, comoocorreu no assimilacionismo eurocentrico. A diferenca espe-cifica de um grupo ou comunidade nao pode ser afirmada deforma absoluta, sem se considerar o contexto maior de todosos "outros" em relacao aos quais a "particularidade" adquireum valor relative. Filosoficamente, a logica da differancesignifica que o significado/identidade de cada conceitoe constituido(a) em relacao a todos os demais conceitosdo sistema em cujos termos ele significa. Uma identidadecultural particular nao pode ser definida apenas por suapresenca positiva e conteudo. Todos os termos da identidadedependem do estabelecimento de limites — definindo o quesao em relacao ao que nao sao. Como argumenta Laclau: "Naose pode afirmar uma identidade diferencial sem distingui-lade um contexto, e no processo de fazer a distincao, afirma-seo contexto simultaneamente." (Laclau, 1996). As identidades,portanto, sao construidas no interior das relacoes de poder(Foucault, 1986). Toda identidade e fundada sobre umaexclusao e, nesse sentido, e "um efeito do poder". Devehaver algo "exterior" a uma identidade (Laclau e Mouffe, 1985;Butler, 1993). Esse "exterior" e constituido por todos os outrostermos do sistema, cuja "ausencia" ou falta e constitutiva desua "presenca" (Hall, 1996b). "Sou um sujeito precisamenteporque nao posso ser uma consciencia absoluta, porque algoconstitutivamente estranho me confronta". Cada identidade,portanto, e radicalmente insuficiente em termos de seus"outros". "Isso significa que o universal e parte de minhaidentidade tanto quanto sou perpassado por uma falta consti-tutiva." (Laclau, 1996).31

O problema e que este argumento parece constituir umalibi para o retorno sub-repticio do velho liberalismo uni-versal. Contudo, como observa Laclau: "A expansao imperia-lista europeia teve que ser apresentada em termos de umafuncao civilizadora, modernizadora universal, etc. As resis-tencias a outras culturas foram ... apresentadas nao como iutasentre culturas e identidades particulares, mas como parte deuma luta abrangente e que faz epoca entre o universalismo eos particularismos." (Laclau, 1996). Em suma, o particula-rismo ocidental foi reescrito como um universalismo global.

85

Page 46: Da Dispora - Stuart Hall

Portanto, neste caso, o universalismo se opoe de cima abaixo a particularidade e a diferenca. Entretanto, se o outrofato constitui parte da djfgjrefifa que estamos afirmando (aausencia que permite a presenca significar algo), entaoqualquer pretensao generalizada que inclua o outro naoprovem do nada, mas surge do interior do particular. "O uni-versal emerge do particular, nao como um principio que osubjaz e explica, mas como um horizonte incomplete quesutura uma identidade particular deslocada." (Laclau, 1996).For que incompleta? Porque ela nao pode — como ocorre naconcepcao liberal — ser preenchida por um conteudo especf-fico e imutavel. Sera redefinida sempre que uma identidadeparticular, ao considerar seus outros e sua propria insufi-ciencia radical, expandir o horizonte dentro do qual asdemandas de todos precisarem e puderem ser negociadas.Laclau esta correto ao insistir que seu conteiido nao pode serconhecido antecipadamente — neste sentido, o universal 6um signo vazio, "um significante sempre em recuo". E esse ohorizonte que deve orientar cada diferenca particular, paraque se evite o risco de cair na diferenca absoluta (o que,naturalmente, e a antitese da sociedade multicultural). Aquiloque afirmamos sobre as generalizacoes entre as culturas e odesejo do individuo de viver sua vida "a partir de dentro" eum exemplo desse processo. Uma demanda'' que surge dointerior de uma cultura especifica se expanded e seu elo coma cultura de origem se transforma ao ser obrigada a negociarseu significado como outras tradicoes dentro de um "hori-zonte" mais amplo que agora inclui ambas.

Portanto, como poderao ser reconhecidos o particular e ouniversal ou as pretensoes da diferenca e da igualdade? Estee o dilema, o enigma — a questao multicultural — existenteno centre do impacto transruptivo e reconfigurador do multi-cultural. Ele exige que pensemos para alem das fronteirastradicionais dos discursos politicos existentes e suas "solucoes"prontas. Ele sugere que nos concentremos seriamente nao nareiteracao de argumentos estereis entre os criticos liberais ecomunitarios, mas em algo novo e formas novas de combinara diferenca e a identidade, trazendo para o mesmo terrenoaquelas incomensurabilidades formais dos vocabulariespoliticos — a liberdade e a igualdade junto com a diferenca,"o bem" e "o correto".

86

Do ponto de vista formal, esse antagonismo pode nao seracessrvel a uma resolucao abstrata. Mas pode ser negociadona pratica. Um processo de julgamento politico final entredefinicoes rivais do "bem" seria contrario ao projeto multi-cultural como um todo, ja que seu efeito seria o de constituircada espaco politico como uma "guerra de manobras" entrediferencas absolutizadas e entrincheiradas. As unicas circuns-tancias capazes de impedir que este nao se torne um jogovazio sao aquelas que permitem uma estrutura de negociacaodemocratica agonistica (Mouffe, 1993)- Entretanto, e precisoenfatizar o "agonistico" — a democracia como luta continuasem solucao final. Nao podemos simplesmente reafirmar a"democracia". Mas a questao multicultural tambe'm sugere queo momento da "diferenca" e essencial a definicao de demo-cracia como um espafo genuinamente heterogeneo, Em nossoanseio de identificar pontos de possivel articulacao, devemosser cautelosos para nao enfatizar a necessidade inerradicaveldesse momento de differance?2 Contudo, e evidente que naose deve permitir que o processo mantenha a afirmacao poli-tica de uma particularidade radical. Deve-se tentar construiruma diversidade de novas esferas publicas nas quais todosos particulares serao transformados ao serem obrigados anegociar dentro de um horizonte mais amplo. E essencialque esse espaco permaneca heterogeneo e pluraltstico e queos elementos de negociacao dentro do mesmo retenham suadifferance. Eles devem resistir ao impeto de serem integradospor um processo de equivalencia formal, como dita a concepcaoliberal de cidadania, o que significa recuperar a estrategiaassimilacionista do Iluminismo atraves de um longo desvio.Como reconhece Laclau:

Essa universaliza?ao e seu carSter aberto certamente condenamtoda identidade a uma inevitavet hibridizacao, mas hibridi-za^ao nao significa necessariamente um declinio pela perdade identidade. Pode significar tambem o fortalecimento dasidentidades existentes pela abertura de novas possibilidades.Somente uma identidade conservadora, fechada em si mesma,poderia experimentar a hibridizacao como uma perda. (Laclau,1996).

87

Page 47: Da Dispora - Stuart Hall

RUMO A UMA NOVA LOGICA POLITICA

Na parte final deste ensaio, tentamos identificar e exporos contornos de urna nova 16gica politica multicultural. Talestrategia buscaria, conjunturalmente, aquilo que no modeloliberal-constitucional se conhece como incomensuravel emprincipio: causar uma reconfiguracao radical do particular edo universal, da liberdade e da igualdade com a diferenca. Oobjetivo foi comec/ar a recompor as herancas dos discursosliberal, pluralista, cosmopolita e democratico a luz docarater multicultural das sociedades da modernidade tardia.Nenhuma solucao final pode ser alcancada com facilidade.Em vez disso, tentamos esbocar uma abordagem que, aoinstigar a adocao de estrategias vigorosas e descomprome-tidas, capazes de confrontar e tentar erradicar o.racismo, aexclusao e a inferiorizacao (a velha agenda anti-racista ou daigualdade racial, tao relevante hoje como no passado),implica o respeito a certos limites (nas novas circunstanciasmulticulturais da diferenca, dentro das quais essas estrategiasoperam atualmente).

Assim, nao podemos simplesmente reafirmar a liberdadeindividual e a igualdade formal (aquilo que o Novo Traba-Ihismo cordialmente denomina "igualdade de merito"!), poispodemos perceber o quanto ambas sao inadequadas ascomplexidades de vinculo, pertencimento e identidade intro-duzidas pela sociedade multicultural, e como as profundasinjusticas, exclusoes sociais e desigualdades continuam a serperpetradas em seu nome. A escolha individual, emborarecoberta pelo fino verniz de um comunitarismo, nao podefornecer os elos de reconhecimento, reciprocidade e conexaoque dao significado a nossas vidas enquanto seres sociais.Este e o limits cultural e comunitdrio das formas liberals(incluindo o "mercado liberal") de multiculturalismo. Foroutro lado, nao podemos avalizar as pretensoes de culturase normas comunitarias em detrimento dos individuos sem aomesmo tempo ampliar— nao apenas em teoria, mas na pratica— os direitos dos individuos ao dissenso, ao abandono ou,se necessario, a oposicao a suas comunidades de origem.H;a perigos concretes de se cair em uma forma oficialmente

isolada e plural de representa^ao politica. Ha o perigo desimplesmente se prezarem os valores distintivos da "comu-nidade" como se eles nem sempre participassem de um rela-cionamento dinamico com todos os outros valores queconcorrem a seu redor. O retorno a etnicidade em sua forma"etnicamente absolutista" (Gilroy, 1993a, 1993b) pode pro-duzir tipos especificos de violencia. Este retorno a etnicidadeessencializa sobremaneira a diferenca cultural, fixa os bina-rismos raciais, congelando-os no tempo e na historia, conferepoder a autoridade estabelecida sobre os outros, privilegiaos "pais e a Lei" e leva ao policiamento da diferenc.a. Estaparece ser a fronteira crltica onde o pluralismo cultural ou ocomunitarismo etnico encontra seu limite liberal.

Entretanto, o fato e que nem os individuos enquanto enti-dades livres e sem amarras nem as comunidades enquantoentidades solidarias ocupam por inteiro o espaco social. Cadaqual e constituida na relacao com aquilo que e outro ou dife-rente dela propria (ou atraves dessa relacao). Se isso naoresultar em uma "guerra de todos contra tudo", ou em umcomunalismo segregado, entao devemos nos perguntar se omaior reconhecimento da diferenca e a maior igualdade ejustica para todos podem constituir um "horizonte" comum.Como sugere Laclau, parece que "o universal e incomensu-ravel com o particular" e que o primeiro "nao pode existirsem o segundo". Antes de corroer a democracia, essa chamada"falha" e "a precondic.ao para a democracia" (Laclau, 1996).Dessa forma, a logica politica multicultural requer pelomenos duas outras condicoes de existencia: uma expansao eradicalizacao cada vez mais profundas das praticas democra-ticas da vida social, bem como a contestagao sem tregua decada forma de fechamento racial ou etnicamente excludente(praticado por outrem sobre as comunidades minoritariasou no interior delas). Pois a desvantagem e exclusao raciaisimpedem o acesso de todos, inclusive das "minorias" detodos os tipos, ao processo de definir uma "britanidade" maisinclusiva; esse acesso constitui precondicao para a legitimi-dade do chamado a identificacao de todos. Isso constitui olimite democratico ou cosmopolita das alternativas liberalse comunitarias.

89

Page 48: Da Dispora - Stuart Hall

As dificuldades enfrentadas no processo de expansaopratica e politica da 16gica politica multicultural sao nume-rosas, e aborda-las transcende o escopo deste ensaio. Con-tudo, nao poderiamos concluir o argumento sem pelo menosapontar essas dificuldades. For um lado, na Gra-Bretanha,este £ o momento propicio para se levantar a questao multi-cultural — pois a britanidade como identidade nacional passapor um estagio de transicao, esta acometida por problemas esujeita a extensa renovacao e renegociacao. Entretanto, essasoportunidades sao sempre mementos profundamente peri-gosos. Pois, assim como a questao multicultural abre espacopara assuntos considerados fechados ou estabelecidos, nainstituicao politica ocidental ela e considerada por muitoscomo a ultima gota d'agua. Ela aponta em direcao a redefi-nicao do que significa ser britanico, onde o impensavel podeacontecer — por ser possivel ser negro e britanico, asiatico ebritanico (ou mesmo britanico e gay!). Entretanto, a ideia deque todos devem ter acesso aos processes pelos quais taisformas novas de "ser britanico" sao redefinidas, juntamentecom a perda do Imperio e do declinio enquanto potenciamundial, tem levado alguns de seus cidadaos literalmente aloucura. A "poluicao" da Pequena Inglaterra, na visao dessaspessoas, produz nao apenas o ressurgimento de antigos este-reotipos biologicos, mas a proliferacao de um lexico denovos binarismos excludentes, fundados em urna "diferencacultural" racializada: uma versao britanica dos novos racismosencontrados e em expansao em toda parte e que tem ganhadoterreno.

Ambos os processes estao prosperando na Gra-Bretanhanesta virada de rm'lenio. Ambos florescem de maos dadas,numa simbiose fatal. A comemoracao do aniversario de che-gada do navio S. S. Empire Windrush — descrita por algunscomo o "surgimento irresistivel de uma Gra-Bretanha multir-acial" (Phillips e Phillips, 1998) — ocorreu um ano antes dotao protelado Inquerito Macpherson sobre o assassinatede um jovem negro, Stephen Lawrence, por cinco rapazesbrancos, e do veredicto de "racismo institucional" (Macpherson,1999). Ambos os acontecimentos sao profundamente para-digmaticos do estado contraditorio do multiculturalismo

90

britanico e sua ocorrgncia simultanea, na mesma conjuntura, eessencial para uma compreensao da resposta confusa eproblematica da Gra-Bretanha a "questao multicultural".

[In: HESSE, Barnor (Org.). Un/settledMulticulturalisms. London:Zed Books, 2000. ISBN: 185649 5594.Tradu?ao de Adelaine LaGuardia Resende.l

NOTAS

1 Partes deste ensaio foram apresentadas na Johns Hopkins University,Baltimore; University of Michigan, Ann Arbor, na Palestra Herbert GutmanMemorial na City University of New York Graduate Center; e na PalestraAnual "Race Against Time" [Corrida (Race) contra o tempo] do Instituto deEducacao da University of London. Agradefo aos que comentaram aspectosdo texto naquelas ocasioes. Primeira publicafao: HESSE, B. (Org.). Un/settled Multiculturalisms. [Muticulturalismos Des/estabelecidos]. Londres:Zed Books, 2000,2Ate certo ponto, essa distincao se sobrepoe aquela oferecida na Introducaodo livro onde o texto foi publicado pela primeira vez, mas tambem sedistancia dela em certos aspectos importantes. Ver: HESSE, Barnor (Org.).Un/settled Multiculturalisms. Londres: Zed Books, 2000.

s-Na verdade, como Kymlicka (1989) afirma, os problemas apresentadospelo multiculturalismo nao sao adequadamente representados como senecessitassem de uma forte concepcao dos direitos coletivos, ja que, naperspectiva do autor, os individuos devem continuar sendo os portadoresdos direitos. Por outro lado, Parekh (1991) argumenta que muitos direitosreconhecidos pelas sociedades liberals (por exemplo, a Iegisla9ao sindica-lista, o Atos das Relacoes Raciais e das Oportunidades Iguais, a isencao dossikhs das exigencias de Saude e Seguranca) sao definidos pela coletividadeou baseados nos interesses de grupo.

4 Hazel Carby (1998) comentou sobre "a total reversao da visibilidade docorpo masculino negro", em que as imagens do homem negro se deslocaramnotavelmente do gueto das drogas para as capas das revistas de moda,enquanto seus corpos verdadeiros permanecem basicamente onde sempreestiveram (um numero excessivo deles na cadeia).

5 Em 1983 havia 144 nacoes reconhecidas no mundo. No final dos anos 90,eram pouco menos que 200. Outras certamente surgirao nos proximos anos,na medida em que grupos etnicos locals e nacoes sem um estado pressio-narem por maior autonomia (GIDDENS, Anthony: 2000, p. 153).

91

Page 49: Da Dispora - Stuart Hall

6 Nenhuma conjuntura e inteiramente nova. t. sempre uma combinacao deelementos ja existences com outros, emergences — nos termos de Gramsci, arearticulacao de uma desarticulacao. (Ver GRAMSCI: 1971 e HALL: 1998).

7 "A globalizacao em uma era pos-imperial permite uma consciencia pds-nacional somente aos cosmopolitas que t6m a sorte de viver no Ocidenterico." (IGNATIEFF: 1994)

8 A globalizacao como destine parece ser um aspecto chave da posicao deTony Blair, do Novo Trabalhismo e da Terceira Via. Giddens, que tambemdesenvolveu semelhante argumento, agora defende a regulamentacao dopoder corporative global (Ver GIDDENS: 2000).

9 Naturalmente, o que fa^o aqui e traduzir da filosofia a cultura e expandir oconceito de Derrida sem autorizacao — embora, espero, nao o faca contra oespirito de seu sentido/proposito (Ver DERRIDA: 1978, 1982).

10 Para Derrida, differance e" tanto "marcar diferenca" [to differ^ quando"diferir" [to defer\. O conceito se funda em estrategias de protela9ao, suspensao,referenda, elisao, desvio, adiamento e reserva (Ver DERRIDA: 1972).

11 £ necessario comparar esse numero com o tamanho das populacoes afro-americana, latina, caribenha, coreana e vietnamita nos Estados Unidos parase ter uma ide"ia da escala comparativa.

12 Ha evidencias sugerindo que a "negritude" nao era fortemente marcadaentre os primeiros imigrantes caribenhos e se desenvolveu na Gra-Bretanha,nos anos 60, como resposta ao racisrno.

13 Jogo de palavras com "Rule Britannia", slogan do Imperio. (Nota da T.)

H O impacto desse inquerito oficial sobre a morte de Stephen Lawrence e oRelatorio Macpherson (1999) constituem os exemplos recentes mais extraor-dinarios disso.

15 Paul Gilroy corretamente se refere a "inabilidade de levar a ra?a a serio euma indisposicao absoluta em se reconhecer a igualdade do valor humano ea dignidade das pessoas que nao sao brancas" (GILROY: 1999).

16 Em termos discursivos, o racismo possui uma estrutura metommica — asdiferencas geneticas ocultas sao deslocadas ao longo da cadeia de significantesatraves de sua inscricao na superficie do corpo, o qual e visivel. £ a isso queFrantz Fanon se referia ao falar da epidermizacao ou do "esquema corporal".(Ver HALL: 1994, 1996).

17 Essa e a posicao adotada por Balibar (1991), em sua discussao sobre o"racismo diferenciador", um termo tornado de emprestimo a Taguieff,tambem por Wieviorka (1995, 1997). Entretanto, Modood (1997), a meuver, exagera ao tentar distinguir o "racismo cultural" de qualquer vinculocom a fixidez ou o biol6gico e estabelece uma oposifao radical demais entreo "racismo bioldgico" e a "diferenciacao cultural". Creio que esse equivocoadvem da desconsideracao do carrier discursivo do racismo. Modoodengana-se ao ler o referente biol6gico em "racismo biologico" de umaforma excessivamente literal.

92

1B Neste ponto, discordo da maneira de distinguir entre raca e etnia feita, porexemplo, por Pnina Werbner em uma importante contribui£ao (WERBNER;

1997).19 Isso resultou de uma luta ampla de re-significacao. Judith Butler (1993)argumenta que o importante nos termos "negro" ou "veado" [queeft, os quaisdeixaram de ter uma conotacao negativa, e que eles retem em si mesmos ostraces da luta pela mudanca. Esta pode ser uma estrategia alternativa aquelado "politicamente correto", que tenta purificar a linguagem de todo traco denegatividade.

20 Enquanto se deve compreende-la como "o mesmo apesar de sua mutacao"[the changing same] (GILROY: 1993) ou como "conceito discursivo... [que]procura conectar, de forma legitima dentro da estrutura de sua narrativa,uma relacao entre passado, comunidade e identidade" (SCOTT, 1999). Afixidez e algo que ocorre na tradicao sob certas condicoes — como estadeixa de ser criativa e se torna presa a "autoridade".

21 Ver David SCOTT, 1999-

22 Trata-se da importante distingao entre a concepcao de cultura como "formade vida" e a concepcao de cultura enquanto "pratica significativa" (HALL:

1998).

23 Portanto, nao levo a serio o argumento de Robert Young (1995) de que ouso do termo "hibridismo" simplesmente restaura o velho discurso raci-alizado da diferenca que se tentava superar. Isso e ninharia semantica.Certamente, os termos podem ser desarticulados de seus significados ori-ginals e rearticulados. O que significa essa concepcao pre pos-estruturalistada linguagem na qual o significado encontra-se eternamente preso a seureferente racializado? Obviamente minha preocupacao tem sido com o hibri-disrno cultural, o qual relaciono a combinacao de elementos culturais hete-rogeneos em uma nova sintese — por exemplo: a "creolizacao" e a"transculturacao" — que nao podem ser fixadas ou associadas ao chamadocarater racial das pessoas cuja cultura estou discutindo.

21 A tradicao nao implica algo fixo. fi antes um reconhecimento do caraterencarnado de todo discurso. "fi um tipo especial de conceito discursivo, namedida em que este desempenha uma tarefa distinta; busca compor oficial-mente, dentro da estrutura de sua narrativa, uma relacao entre o passado,a comunidade e a identidade. Ela depende do conflito e da controve"rsia.E um lugar de disputa e tambem de consenso, de discurso e de acordo."(SCOTT: 1999)

25 Rawls fez uma importante concessao a seus criticos comunitarios ao reco-nhecer que sua teoria de justica se aplicava especialmente a sociedadepluralista liberal, em que o desejo de cooperacao politica ja e generalizado(ou seja, 6 dependente de certos pressupostos culturais particulares). (VerTHOMPSON, 1998)

26 Isso inclui padroes irregulares de mudanca economica e tecnologica, arevolucao na posicao das mulheres e a feminizacao da forca de trabalho, odecimio da cultura da classe operaria masculina e de comunidades ocupa-cionais mais antigas; novos padroes de consumo e a religiao do livre mercado,

93

Page 50: Da Dispora - Stuart Hall

as novas formas de familia e estilos de relacionamento com os filhos, asdiferengas entre geragoes dentro de uma popula9ao cada vez mais madura, odeclfnio da religiao organizada, profundas mudancas no comportamentosexual e na cultura moral, o declinio da deferencia, o aumento do geren-cialismo, a exalta^ao do empresario enquanto heroi, o novo individualismoe o novo hedonismo-

27 Walzer discorre confusamente (e, em vista de recentes desdobramentos,com otimismo) sobre os Estados Unidos "optarem pelo Liberalismo 1 emlugar do Liberalismo 2". Na verdade, polfticas piiblicas americanas recentes,com seu ataque aos programas de ac.ao afirmativa em nome da liberdadeindividual, mais parecem um esforc.o conjunto para arrastar os Estados Unidosde volta ao Liberalismo 1 depois de um breve flerte com Liberalismo 21 Deuma perspectiva canadense, Kyimlicka argumenta que certos direitos degrupo definidos individualmente sao compativeis com a concepcao liberal, eestende ao maximo a concepcao liberal para que tais direitos assim sejam.Taylor (1994) sugere que isso nao ocorre; primeiro por causa dos pressu-postos individualists que fundam o liberalismo; e segundo, porque a pro-tecao das identidades coletivas 6 incompativel com o direito as liberdadesindividuals. Portanto, seria necessSrio uma reforma no liberalismo para aco-modar a demanda multicultural por "reconhecimento". Ja Habermas (1994)sustenta que, obviamente, a individualidade e constituida intersubjetiva-mente, mas que, corretamente compreendida, uma teoria dos direitos naoapenas pode acomodar, mas tambem requerer uma politica de reconheci-mento que proteja a integridade do individuo como detentor de direitos; istoe compatfvel com o liberalismo, desde que haja "a atualizacao constante dosistema de direitos".

23 John Rex, que apoia a proposifao geral da neutralidade cultural do estado,corretamente afirma que essa abordagem difere daquela do liberal indivi-dualismo. Ela tern sido sustentada, pelo menos ate o advento do NovoTrabalhismo, por um programa de bem-estar social democratico que incluimedidas de redistribuicao substancial, que seria enganoso incluir sob umarubrica liberal abrangente so porque respeita os direitos do individuo.

29 Para um argumento persuasive sobre a complexidade da avaliacao dasdiferencas entre praticas culturais de uma forma nao absolutista, verPAREKH, 1999.

30 Ver os extensos debates sobre essa questao em "Women Against Funda-mentalism" [Muiheres contra o Fundamentalismo], em varies lugares.

31 Na frente, estou particularmente grato pela forma como o argumentosobre o universalismo/particularismo e conduzido no recente trabalho deErnesto Laclau, especialmente em Emancipations[Emancipafoes], 1996.

32 Isso pode ser mais uma questao de enfase do que de discordancia funda-mental. Laclau, por exemplo, escreve como se a proliferafao das identidadesfosse algo que simplesmente aconteceu com as sociedades da modernidadetardia; seu foco e a maneira em que um campo tao disseminado aindapoderia ser hegemonizado atraves de um certo tipo de "universalismo".Quando desenvolvido por certos proponentes, este argumento se torna uma

94

recuperacao da diferenfa e uma reafirmacao do velho universalismo Ilumi-nista. Entretanto sob a perspectiva multicultural, a heterogeneiza9ao do camposocial — ou a pluralizacao dos posicionamentos — constitui, em si mesma,um momento necessario e positivo, mesmo nao sendo sufictente, e deve serpreservada (em suas formas hibridizadas) juntamente com os esforcos (sempreincompletos) de definir, de dentro de suas particularidades, um horizonte

mais universal.

BIBLIOGRAFIA

AHMAD, A. The Politics of Literary Post-Coloniality. Race and Classv. 36, n. 3, London, 1995-

BARKER, M. The New Racism. London: Junction Books, 1981.

BHABHA, H. The Voice of the Dom. Times Literary Supplement,

n. 4.923, 1997.

BHABHA, H. Nation and Narration. London: Routledge, 1990.

BHABHA, H. The Location of Culture[O local da cultura. Trad. MyriamAvila, Eliana Lourenfo de Lima Reis e Glaucia Renate Gongalves. BeloHorizonte: Editora UFMG, 1998]. London: Routledge, 1994.

BONNETT, A. Anti-Racist Dilemmas. Race and Class, v. 36, n. 3,London, 1999.

BRAH, A. Cartographies of Diaspora. London: Routledge, 1996.

BRATHWAITE, E. K. The Development of Creole Society in Jamaica1770-1820. Oxford: Oxford University Press, 1971.

BUTLER, J. Bodies that Matter. London: Routledge, 1993-

CARBY, Hazel. Race Men: The W. E. B. DuBois Lectures. Cambridge,MA: Harvard University Press, 1998.

CAWS, P. Identity, Trans-cultural and Multicultural. In: GOLDBERG, D.(Org.). Multiculturalism.'London-. Routledge, 1994.

CLIFFORD, J. Routes. Cambridge: Harvard University Press, 1997.

DERRIDA, J. Margins of Philosophy. Brighton: Harvester, 1982.

95

Page 51: Da Dispora - Stuart Hall

DERRIDAJ. Positions. Chicago: Chicago University Press, 1972.

FISH, S. Boutique Multiculturalism. In: MELZER, A. et al. (Ed.).Multiculturalism and American Democracy. Lawrence: University ofKansas Press, 1998.

FUKUYAMA, F. The End of History, New York: Free Press, 1992.

GIDDENS, .Runaway World. London: Profile Books, 1999.

GIDDENS, A. The Consequences of Modernity: the Third Way and itsCritics. London: Polity Press, 2000.

GILROY, P.Joined-upPoliticsandPost-colonialMelancholia. The 1999Diversity Lecture. London: Institute of Contemporary Arts, 1999.

GILROY, P. Small Acts. London: Serpent's Tail, 1993b.

GILROY, P. The Black Atlantic: Modernity and Double Consciousness[OAtldntico negro. Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes/Ed.34, 2001.] London: Verso, 1993a.

GLISSANT, E. Le discoursantillais. Paris: Editions du Seuil, 1981.

GOLDBERG, D. Introduction. In: , (Org.). MulticulturalismLondon: Blackwell, 1994.

GRAMSCI, A. Selections From the Prison Notebooks. London: Lawrenceand Wishart, 1971.

HABERMAS, J. Struggles for Recognition in the Democratic ConstitutionalState. In: GUTMAN, A. (Ed.) Multiculturalism. Princeton: PrincetonUniversity Press, 1994.

HALL, C. White, Male and Middle Class. Cambridge: Polity, 1992.

HALL, S. Cultural Identity and Diaspora. In: RUTHERFORD, J. (Ed.).Identity, Community, Culture, Difference. London: Lawrence & Wishart,1990. [Identidade cultural e diaspora. Revista de Patrimonio Historicoe Artistico National, n. 24, p. 68-76, 1996.]

HALL, S. The Question of Cultural Identity. In: HALL, S.; HELD, D.;McGREW(Ed-). Modernity and Its Futures. Cambridge: Polity, 1992.

96

Milton Keynes: The Open University / Sage, 1992. [Identidades cul-turais napos-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1997].

HALL S. Culture, Community, Nation. Cultural Studies, Chapel Hill,

NC, v! 7, n. 3, 1993-

HALL, S. From Scarman to Stephen Lawrence. History Workshop journaln. 48, London, 1999(a).

HALL, S. National and Cultural Identity Artigo para a ComissaoRunnymede sobre o Futuro da Gra-Bretanha Multi-etnica. London,

1999(c).

HALL, S. New Ethnicities. In: DONALD, J.; RATTANSI, A. (Ed.). "Race",Culture and Difference. London: Open University / Sage, 1992.

HALL, S. The Local and the Global. In: KING, A. D. (Ed.). Culture,Globalization and the World System. Minneapolis, MN: University ofMinnesota Press, 1997.

HALL, S. Thinking the Diaspora. Small Axe., n. 6, Kingston, Universityof the West Indies Press, 1999(c). (Veja neste volume.)

HALL, S. When Was the Post-Colonial? In: CURTI, L; CHAMBERS, I.(Ed.). The Post-Colonial Question: Common Skies, Divided Horizons.London: Routledge, 1996(a). (Veja neste volume.)

HALL, S. Who Needs Identity? In: HALL, S.; DUGAY, P. (Ed.). Questionof Cultural Identity. London: Sage, 1996(b). [Quern Precisa de Identi-dade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e Diferenca: aperspectiva dos Estudos Culturais. Petropolis: Vozes, 2000.]

HALL, S. Aspiration and Attitude... Reflections on Black Britain in theNineties'. New Formations, n. 3, Spring, 1998.

HALL, S. Whose Heritage? Unsettling the Heritage, Re-imagining thePost-Nation. Third Text, n. 49, Winter, 1999(d).

HARVEY, D. The Condition of Post-modernity. Oxford: Blackwell, 1989-[A condicdodapos-modernidade. Sao Paulo: Loyola, 19931-

HELD, D.; McGREW. A.; GOLDBLATT, D.; PERRATON, J. GlobalTransformations. Cambridge: Polity, 1999.

97

Page 52: Da Dispora - Stuart Hall

HESSE, Barnor. Introduction. In:Mutiiculturalisms. London: Zed Books, 2000.

-• (Org.). Un/Settled

HOBSBAWM, E.; RANGER, T. The Invention of Tradition. Cambridge:Cambridge University Press, 1993- [A invencdo das tradifoes. Trad.Celina Cardim Cavalcante. Sao Paulo: Paz e Terra, 1984].

IGNATIEFF, M. Blood and Belonging, London: Vintage, 1994.

KVMLICKA, W. Liberalism, Community and Culture. Oxford: ClarendonPress, 1989.

LAGAN, J. Ecrits. London: Tavistock, 1997.

LACLAU, E. Emancipations. London: Verso, 1996.

LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemony and Socialist Strategy. London:Verso, 1985.

MACPHERSON, W. The Stephen Lawrence Inquiry- Report of anInquiry by Sir William Macpherson ofCluny. London: StationeryOffice, 1999.

MAY, S. CriticalMulticulturalism-. Re-thinking Multicultural andAnti-Racist Education. Brighton: Palmer Press, 1999-

McLAREN, P. Revolutionary Multiculturalism- Pedagogies of Dissentfor the New Millennium. Boulder: Westview Press, 1997.

MODOOD, T. Anti-Semitism, Multiculturalism and the "Recognition" ofReligious Groups. Journal of Political Philosophy, v. 6, n. 4, 1998.

MODOOD, T.; BERTHOUD, R. et al, (Ed.). Ethnic Minorities inBritainDiversity and Disadvantage. London: Policy Studies Institute, 1997.

MOUFFE, C. The Return of the Political. London: Verso, 1993-

NAIRN, T. The Break-up of Britain. London: Verso, 1997.

ORTIZ, F. Cuban Counterpoint: Tobaco and Sugar. Durham/London:Duke University Press, 1940/1995.

PAREKH, B. British Citizenship and Cultural Difference. In: ANDREWS,G. (Org.). Citizenship. London: Lawrence & Wishart, 1991.

98

PAREKH, B. The Logic of Inter-Cultural Evaluation. In: MORTON, J.;MENDUS, S. (Org.). Toleration, Identity and Difference. Basingstoke:

Macmillan, 1999-

PHILLIPS, M.; PHILLIPS, T. Windrush:The Irrestistible Rise of Multi-Racial Britain London: Harper Collins, 1998.

PHOENIX, A. "Multiculture", "Multiracisms" and Young People:Contradictory Legacies of Windrush, Soundings, n. 10, Autun, 1998.

PRATT, M. L. Imperial Eyes: Travel Writing and Transculturation. London:Routledge, 1992.

RAWLS, John. A Theory of Justice. Oxford: Oxford University Press,1988.

RICHARDSON, R. Islamophobia. London: Runnymed Trust, 1999-

ROBBINS, K. Tradition and Translation. In: CORNER, J.; HARVEY, S.Enterprise and Heritage. London: Routledge, 1991-

RUSHDIE, S. Imaginary Homelands. London: Granta, 1991.

SCOTT, D. Re-fashioning Futures-. Criticism After Post-Coloniality.Princeton: Princeton University Press, 1999-

TAYLOR, C. The Politics of Recognition. In: GUTMAN, A. (Ed.).Multiculturalism. Princeton: Princeton University Press, 1994.

THOMPSON, J. Community, Identity and World Citizenship. In:ARCHIBUGI, A.; HELD, D. KOHLER, M. (Ed.). Re-imagining PoliticalCommunity. Cambridge: Polity Press, 1998.

VOLOCHINOV/BAKHTIN, M. Marxism and the Philosophy ofLanguage. London/New York: Seminar Press, 1973. [Marxismo efilo-sofia da linguagem. Sao Paulo: HUCITEC, 1981.]

WALDRON, J. Minority Cultures and the Cosmopolitan Alternative. In:KYMLICKA, W. (Ed.) The Rights of Minority Cultures. Oxford: OxfordUniversity Press, 1992.

WALLACE, M. The Search for the Good-enough Mammy. In:GOLDBERG, D. (Ed.). Multiculturalism. London: Blackwell, 1994.

99

Page 53: Da Dispora - Stuart Hall

WERBNER, P. The Dialectics of Cultural Hybridity. In- WERBNERP.; MODOOD, T. (Ed.). Debating Cultural Hybridity. London- ZedBooks, 1997.

WIEVIORKA, M. Is it so Difficult to be an Anti-Racist? In- WEBNERP.; MODOOD, T. (Ed.). Debating Cultural Hybridity. London- ZedBooks, 1995.

YOUNG, Robert J. C. Colonial Desire: Hybridity in Theory, Cultureand Race. London: Routledge, 1995.

YUVAt-DAVIS, N. Gender and Nation. London: Sage, 1997.

QUANDO FOI 0 PCS-COLONIAL?PEN5AHDO NO LIMITE

E precise descartar as tendencias que estimulam o jogoconsolador dos reconhecimentos.

Michel Foucault, inNietzsche, Genealogia, Historia

100

JQuando fo iop^s- colon ial^O que deveria ser incluido eexcluido de seus Hmites? Onde se encontra a fronteira invi-sivel que o separa de seus "outros" (o colonialismo, o neo-colonialismo, o Terceiro Mundo, o imperialism©) e em cujosHmites ele se define incessantemente, sem supera-los em de-finitive? O objetivo principal deste^ensaiQ-e.exploraiLjQS-p.Qji-tos deinterrogagao que comecam^apidamente a se aglutinarem torno da questao ^pos-colonial" e da ideiade uma erapos-colonial. Se o momento pos-colonial e aquele que vemaposo colonialismo, e sendo este definido em termos de umadivisao binaria entre colonizadores e colonizados,4>or queo

_p6s-colgriia^l e tambetnum tempo de "diferen^a"? Que tipo dediferenca e essa e quais as suas implicacoes para a politica epara a formagao dos sujeitos na modernidade tardia? Essasquestoes tem assombrado cada vez mais o espaco de contes-tag:ao no qual o conceito de "pos-colpnial" opera hoje. Naose pode explora-las^satisfatoriamente sem que se saiba maissobre o significado deste conceito e as razoes que o fizeramportador de tantos e tao poderosos investimentos incons-cientes — um signo do desejo para alguns, e igualmente paraoutros, um sinal de perigo.

Page 54: Da Dispora - Stuart Hall

Esse questionamento pode ser feito de maneira mais utilse tomarmos os argumentos contrarios aoj^pos-colonial" quetern surgido recentemente em varies {gornent^rips cntjgpi^Ella ShoJxat. cujo trabalho neste campo tem sido exemplar,censurou o termo por implicar uma variedade de errosconceituais. A autora critica o^pjos^olaniar'j>oj^ujL_ajnbi-guidade teoricTelpolidcg — ^aJ^^tirjlicicbde^grtigiriQsade posigoes", seus "desiocamentos universalizantes e ainisto-ricos" esuasJllmplicacoes despolitizantes" (Shohat, 1992).

. — i i ' "•"• "---E ~-5,,^-._____ C_^~_.,,.« .,.,„«, „ ' f '

Segundo Shohat, o pos-colonial e politicamente ambivalenteporque obscurece as distincoes nitidas entre colonizadores ecolonizados at£ aqui associadas aos paradigmas do "colonia-lismo", do "neocolonialismo" e do "terceiro mundismo" queele pretende suplantar. jDissolv.e..a poiitica de esistencia. umavez que "nao propoe uma dominacao clara, nem tampoucodemanda uma clara oposicao". Como os outros "pos" comos quais se alinha, o'^o^coTonial\fujid.e_higtorias, temrjora-lidades e formac^e^s_xaciais_^istintas em uma mesma cate-gona^uniyersalizante. Essa visao e compartilhada por AnneMcClintock, outra dentre as primeiras estudiosas destecampo que cntjcaj) conceito por sua jinearidade e sua_^sjjs^pensaQ.,axr^batacia^^_histgria^1' (McClintock, 1992). Paraambas, o conceito e utilizado para marcar o fechamentofinal de um periodo historico, como se o colonialismo eseus efeitos estivessem definitivamente terminado. O "p6s",para Shohat, significa "passado": algo definitivamente con-cluido e fechado. Porem, para a autora, isso tambem fazparte de sua ambiguidade, ja que o conceito nao esclarecese essa periodizacao e epistemologica ou cronologica. Estariao "pos-colonial" marcando o ponto de ruptura entre duasepistemes da historia intelectual ou se referindo as "estritascronologias da historia tout court?" (Shohat, 1992: 101)

Em sua recente contribui^ao para o debate, o ilustre estu-dioso da China moderna, Arif^girHk (1994), nao apenascita e aprova muitas das criticas de Shohat e McClintock —ele tambem considera que o conceito e uma celebracaodo chamado fim-d_o__colonialismo — mas acrescenta duascriticas px^rias^-q-uesao substanciais. A primeira e deque o/p^s-colonialisjno^l urn ___^™r~-=^^^=^^^x^ ~pos-fundacionista empregado principalmente por inteiectuais"deslocados^cTo Terceiro Mundo, que estao se dando bem

102

em universidades americanas prestigiosas, do "Ivy League",e que utilizam da linguagem em voga da "virada" linguistica ecultural para reformular o marxismo, remetendo-o a "outralinguagem do Primeiro Mundo com pretensoes universalis-tico-epistemologicas". O segundo argumento, ligado aoprimeiro, e de que o ^rjos-colonial"_jmenospreza grosseira-mente "a estruturagao capjtalista ^do.._ numdo> rngdernQ". Sualio^ao de identidade e discursiva, nao estrutural. Repudia aestrutura e a totalidade. Ojdiscursg_p^os-colonial, afirma elesem rodeios, ejimJ!£ulturalismo^ (Dirlik, 1994: 347). Esprei-tando por tras do primeiro argumento de Dirlik encontra-seum refrao comum a todas as criticas recentes, a saber, "anegociabilidade academica ubiqua" do termo "pos-colonial"(McClintock, 1992) e sua utilizacao por proeminentes "inte-lectuais academicos originarios do Terceiro Mundo ... [queagem como] marcadores do passo da critica cultural" (Dirlik,1994: 347).

Deixemos de lado esse ultimo ponto e o cheiro de metralhapoliticamente correta, bem como o vislumbre nada bem-vindoque ele inconscientemente oferece do que esta "por dentro"ou "por fora" na Academia americana (assim como a preocu-pagao bizarra, dos intelectuais que moram nos EstadosUnidos, com essas questoes). Ha questoes maiores pairandonas sombras aqui, as quais teremos que retornar — tais como,por exemplo, o reducionismo da proposicao de Dirlik de quea critica pos-colonial "repercute as necessidades conceituais"dos relacionamentos globais causados pelas mudancas naeconomia capitalista mundial (quando foi a ultima vez queouvimos tal formulacao?), o que, segundo ele, explica arazao de um conceito, destinado a ser critico, "parecer cumpliceda 'consagracao da hegemonia'" (Dirlik, 1994: 331, citandoShohat; ver tambem Miyoshi, 1993).

Obviamente, quando se atenta para esses argumentos emseus respectivos contextos, observa-se que_h^jnenos concor-dancia^subj a c entee ntr e eles dojque parece. A "multiplici-dade de posicoes" que Shohat considera inquietante nopos-colonial pode nao ser tao distinta da "multiplicidade"que McClintock julga ser uma ausencia preocupante:"Surpreende-me o quao raramente o termo e utilizado paradenotar multiciplidade." O ataque ao pos-estruturalismo emDirlik nao se ajusta ao que conhecemos da solida obra de

103

Page 55: Da Dispora - Stuart Hall

McClintock, que e profundamente "pos-fundacional" em suainspiracao Cpor exemplo, o brilhante ensaio sobre "O retor-no do fetichismo feminino" (em New Formations, 1993; vertambe"m 1995). Embora Shohat conclua seu argumento reco-nhecendo que uma estrutura conceitual nao e necessariamente"incorreta" e a outra "correta", sua crftica e tao extensa e pre-judicial que fica dificii saber o que ela realmente pretendiaresgatar das ruinas. Mas isso e detalhismo^^^gimi^nto_rjrin-cipal co_atra-Q^pQSj£olonialismo apresentadg^por_esses criti-^ _

Uma certa nostalgia percorre alguns desses argumentosque anseiam pelo retorno a uma politica bem definida deoposicoes binarias, onde se possa "tracar linhas claras naareia" que separem os bonzinhos dos malvados (o artigo deShohat comeca com o exemplo "elucidative" da Guerra doGolfo). Esse argumento nao e tao convincente quanto parecea primeira vista. Essas "linhas" podem ter sido simples detracar no passado (eram mesmo?), mas nao sao assim hojeem dia. Caso contrario, como poderiamos compreender acrise geral da politica de esquerda, senao em termos de umasimples conspiracao? Isso nao significa que nao existam o"certo" e o "errado", que nao haja escolhas politicas dificeisde se fazer. Porem, parece-me que a licao ubiqua dos nossostempos, que doi ate a alma, consiste em saber que os bina-jJSJXiO5-43oiitiQQS.jiaojesXa_bilizam p^rrnji^^ntemente o campo_49 ^ntaggjnsjno^rjolitico (se e que ja o fizeram antes)Tliernconferem_aje_slejumajn^ Os "efeitosde fronteira" nao sao "gratuitos", mas construidos; consequen-temente, as posicoes politicas nao sao fixas, nao se repetemde uma situacao historica a outra, nem de um teatro de anta-gonismos a outro, sempre "em seu lugar", em uma infinitaiteracao. Isso nao representa uma mudanca da politicaenquanto "guerra de manobras" para uma politica enquanto"guerra de posicoes", conforme Gramsci decisivamente amapeou no passado? Afinal, jiag_estarnos todos, de formasdistintas^e— a-tf&Kes de _espacos conceituais diferentesjclosquais o_^aszccj^maj_d£fin[tivamente e urn), byscandodesesperadameate^ciamR£e.ender,o flue sjgnifica fazer umaescglha_RoIitica etica e.se~posic~ionar em um campo politico

104

^ ^

de politica resulta disso?Pode haver diferentes respostas para esse questionamento

nos Estados Unidos e na Gra-Bretanha. Sem querer me estendermuito acabo insistindo que a Guerra do Golfo nao forneceu aexperiencia polftica esclarecedora das "linhas tracadas na areia",mas sim uma visao das dificuldades que surgiram de uma opo-sicao a guerra ocidental no deserto, quando evidentementea situacao no Golfo envolvia as atrocidades cometidas pelosAliados contra o povo iraquiano (em cujo "subdesenvolvi-mento" historico o Ocidente esta profundamente implicado),em defesa dos interesses ocidentais no petroleo, sob a cober-tura das Nacoes Unidas; e, ao mesmo tempo, as atrocidadescometidas por Saddam Hussein contra seu proprio povo econtra os melhores interesses da regiao, sem falar nos inte-resses dos curdos ou dos arabes do pantano no sul do Iraque,o povo Ma'dan. Ha uma "politica" nisso; mas nao uma poli-tica cuja complexidade e ambiguidade podem ser conveni-entemente eliminadas. Tampouco e um exemplo atipico,escolhido aleatoriamente, mas algo caracteristico de um certotipo de evento politico dos "novos tempos", no qual a criseda luta inconclusa pela "descolonizacao", bem como a crisedo estado "pos-independencia" estao profundamente inscritas.Em suma, nao foi a Guerra do Golfo, neste sentido, um cias-sico evento "pos-colonial"?

E claro que, em certo ponto, Ella Shohat compreende esteargumento, se e que nao endossa todas as suas implicates.A autora observa que as tres ultimas decadas no "TerceiroMundo"

produziram um numero bastante complexo e politicamenteambiguo de desdobramentos ... [inclusive] a compreensao deque os condenados da terra nao sao unanimemente revolucio-harios ... e [que] a despeito dos amplos padroes de hegemoniageopolitica, as relates de poder no Terceiro Mundo saotambem dispersas e contraditorias.

Ela se refere aos conflitos "nao apenas entre as nacoes ...mas no interior destas, a partir de mudancas constantes nasrelac.6es entre grupos dominantes e subalternos..." (Shohat,1992: 101). Entretanto, essa observacao nao provoca um

105

Page 56: Da Dispora - Stuart Hall

exame do valor potencial do termo "p6s-colonial" na abor-dagem teorica dessa mudanca. Ao contrario, essa parte dadiscussao e concluida com uma observacao negativa sobre avisibilidade do "pos-colonial" "nos estudos cuiturais acade-micos anglo-americanos". Em suma, no ponto onde poderiafacilmente concluir com uma reflexao conceitual, a autoraoptou por um fechamento polemico.

r' ser um conceito confu-duvida^cer.tD-.de^cuido e homo-

devido a popularidade crescentedo termo, seu uso extenso, o que as vezes tern gerado suaaplicacao inapropriada. Ha serias distincoes a serem feitas,as quais tern sido negligenciadas, o que tern causado umenfraquecimento do valor conceitual do termo. A Gra-Bretanhae "pos-colonial" no mesmo sentido em que sao os EstadosUnidos? E conveniente considerar os Estados Unidos umanacao "pos-colonial"? Deveria o termo ser aplicado igualmentea Australia, um pais de colonizacao branca, e a India? A Gra-Bretanha e o Canada, a Nigeria e a Jamaica seriam todos"igualmente pos-coloniais", tal como Shohat questiona em seuartigo? Os argelinos que vivem em seu pais e os que vivemna Franca, os Franceses e os colonos pied-noir, seriam todoseles "pos-coloniais"? A America Latina seria "pos-colonial",ainda que suas lutas de independencia tenham ocorrido noinfcio do seculo dezenove — portanto bem antes da recentefase de "descolonizacao" a qual o termo se refere mais eviden-temente — e tenham sido lideradas pelos descendentes doscolonizadores espanhois quehaviam colonizado os "povosnativos"? Em seu artigo^'srTohaJ explora com eficacia essadeficiencia, ficando claro que',~a luz da critica "p6s-colonial",ajqujslejSjqm^^suas discriminacoes e^especificidades e/ou jestaheJ^cer commais clarezaejri_gualjirve^de abstracao o termo estiLsendoapl^icadoTle_jCj^^js^so^eyita uma "universalizacao" esguria.Anne McClintock, de forma persuasiva, tambem faz umadistincao entre as varias trajetorias da dominacao global,enquanto defende um argumento geral valido e importantesobre a necessidade de se pensar conjuntamente "as conti-nuidades e as descontinuidades do poder" (p. 294). Ja LataMani^Ruth Frankenberg (1993), em uma avaliacao bastante

106

cuidadosa, alertam para o fato de que nem todas as socie-.clacles sao "pos-coloniais^ num mesmo ^enriWoe qu^em todb^aso, o "pos-colonial" nao_o_gera isoladamente, masj'e^cje7at.ouma constru^ao inteniamente diferenciada por suas intersecoes

as_ielScc'es dinamicas".Portanto, uma discriminacao mais criteriosa esta por se

fazer entre as distintas formacoes sociais e raciais. A Aus-tralia e o Canada, de um lado, a Nigeria, a India e a Jamaica,de outro, certamente nao sao "pos-coloniais" num mesmosentido. Mas isso nao significa que esses paises nao sejam demaneira alguma "pos-coloniais". guasjelagoes com o centreimperial e as formas pelas q^i^jhejjjy^m^^OcTdente senf ser"SeleVST como C. L. R. James caracterizou6 Caribe7 6s^3eIinij^£ri^laj^mejUe_cona^ e osfazem ser hoje designados^po^cxd^niais^muito embora

"aTria^neira, o momento e as condicoes de sua colonizacaoe independencia variem bastante. Da mesma maneira, osEstados Unidos e suas atuais "guerras cuiturais", conduzidasgeralmente em relacao a uma concepcao mitica e eurocentricade civilizacao, sao literalmente incompreensiveis fora docontexto de seu passado colonial.

Contudo, ha formas de se distinguir os usos do termo que,a meu ver, em nada contribuem. Alguns criticos nao reconhe-ceriam o "pos-colonial" nas colonias brancas, utilizando-o paradescrever exclusivamente as sociedades colonizadas nao-ocidentais. Outros se recusariam a atribui-lo as sociedadescolonizadoras da metropole, restringindo seu uso para sereferir as colonias da periferia. Isso e confundir uma cate-goria descritiva com uma categoria avaliativa. O que_oconceito pode nos aiudajLa. fazer e descrever ou caracterizara_mudanca nas rejj^oes^globais, que rnarca a^tran.siicjc^(necessariam£me_j.iTegular)_^a era dos Imperios para omomento da^rj^-independencia ou d^^Pocle"ser uTil tambem (embora aqui seu valor seja mais simbo-lico) na identificacao do que sao as novas relacoes e dispo-sicoes do poder que emergem nesta nova conjuntura.Contudo, como Peter Hulme recentemente argumentou:

Se "pos-colonial" e uma palavra util, esta se refere a um processode desvincula^ao da smdrome colonial como um todo, queassume diversas formas e que provavelmente 6 inevitavel para

107

Page 57: Da Dispora - Stuart Hall

todos aqueles cujo mundo foi marcado por um conjunto dfenomenos, o "pos-colonial" e (ou deveria ser) nao urn te ^avaliativo, mas descritivo .., [Nao e] uma especie de ernblede honra ao merito. (Hulme, 1995)

Essa ideia nos ajuda ainda a identificar nao apenas o nivelem que as distincoes cuidadosas devem ser feitas, mas tambemo nivel em que o "pos-colonial" se torna adequadamente"universalizante" (ou seja, trata-se de um conceito que serefere a um alto nivel de abstracao). O_jenno__se_t££erprocesso geral de descolonizacao que, tal comoa_rjropriacdlomzajglQ ? marcou '^olfrJigu^Mrxtensi_dade as sociedadesco lo n iza doras^e^as^cploniza das (de forma s distintas^e d.aro).Dai a subversao do antigo binarismo colonizador/coloni-zado na nova conjuntura. De fato, uma das principals contri-buicoes do termo^rjo^coloniai^tern sido dirigir nossa atencaopara o fato de que a^cojonizacao nunca^fgLalgo-extejjK) as.spciedades-das-inet-r-epele-s-i-m-pe-r-iais. Sempre esteve profun-damente inscrita nelas — da mesma forma como se tornouindelevelmente inscrita nas culturas dos colonizados. Os efeitosnegatives desse processo forneceram os fundamentos damobilizacao politica anticolonial e resultaram no esforco deretornar a um conjunto alternative de origens culturais naocontaminadas pela experiencia colonial. Esta foi a dimensaocrftica das lutas anticoloniais, conforme observa Shohat.Contudo, no que diz respeito ao retorno absolute a umconjunto puro de origens nao-contaminadas, os efeitosculturais e hist6ricos a longo prazo do "transculturalismo"que caracterizou a experiencia colonizadora demonstraramser irreversiveis. Asjdiferencas entre_as^culturas cqlgnizadorae coIpjrnz_ajda_p,eJxaan£C£r^^de fqrma,absolutamenle binaria . nem certarnente o fazem mais.Essa mudanca de circunstancias, nas quais as lutas anticolo-nialistas pareciam assumir uma forma binaria de represen-tacao para o presente momento em que ja nao podem maisser representadas dentro de uma estrutura binaria, eu descre-veria como um movimento que parte de uma concepcao de

_diferenca para outra (ver Hall, 1992), de diferenca para diffe-mudanca e precisamente o que a trahsicao em

serie ou.titubeante para o "pos_-colonial" designa. Mas nao setrata apenas de nao3esigria-la em termos de um "antes" e um

108

-atSun» - Ele nos obriga a reler os binarismos como formasdetrgnscuLturacao. de_traduglo_cultural, destinadas a~pe7tur5ar'^anTs'ernpre os binarismos culturais do tipo aqui/la.--""I; precisamente essa "dupla inscricao" — que rompe comas demarcacoes claras que separam o dentro/fora do sistemacolonial, sobre as quais as historias do imperialismo flores-ceram por tanto tempo — que o conceito de "pos-colonial"traz a tona. CpjisejCiiientenaente.^^mcx^os-colonial/Jjiaose restringe a descreyexjjj3ia^de±erminada_sociediBe^ouepoca^Ele njileji^a^lomzju^^ r-'pssftficialmente trans_najc_io_naLe.,transcultuj:aL^- e produz umareescrita_des.centxada, diasg6rica_ou "global" das grandesn?irrativas^imp.er.iais._dQ_passado. centrad~as na_jTacjJLO^ Seuvalor teorico, portanto, recai precisamente sobre sua recusade uma perspectiva do "aqui" e "la1", de um "entao" e "agora",de um "em casa" e "no estrangeiro". "Global"jieste sentidonao sign^ca—universal, nem tampouco e algo especifico aalguma nacao ou sociedade. Trata-sede como as relacoe_stransversals e laterais que GiTroy denomina Miasporicas"(Gilroy, 1993) cornple^iej}tarn_e^ojne^mojempq^ des^^ocarri v >as nocoes de centro^^perifena, e de como o global e olocal reorganizam e rn old a mum ao o utro'. Como Mani ~eFrankenberg afirmam, o "colonialismo", como o "pos-colo-nial", diz respeito as formas distintas de "encenar osencontros" entre as sociedades colonizadoras_e^seus "outros^'— "embora nem sempre~cla~mesma forma ou no mesmograu" (Mani e Frankenberg, 1993: 301).

Esse argumento se vincula a outra vertente da critica —qual .seja^o "pos-colonial" como forma de periodizacao^oque^Shohat)denomina sua "temporalidade problematica".O "pos-colonial" certamente nao e uma dessas periodizacoesbaseadas em "estagios" epocais, em que tudo e revertido aomesmo tempo, todas as antigas relacoes desaparecem defini-tivamente e outras, inteiramente novas, vem substitui-las.Obviamente, o rompimento com o colonialismo foi um pro-^gesso longo, prolongado e diferenciador em que os movi-nientos recentes do pos-guerra pela descolonizacao figuramcomo um, e apenas um, "momento" distinto. Neste caso, acolonizacao" sinaliza a ocupac^oe o controle colonial direto.

Ja a transi^ao para o jp6s^colonial"/ e caracterizada pela inde,-pendencia do ^on£rgj^c^lonjai_diretg. pela formacao de

109

Page 58: Da Dispora - Stuart Hall

novos Estados^nacjlp, por formas de desenvolvimento eco-nomico dominadas pelo crescimento do capital local e suasrelacoes de dependencia neocolonial com o mundo desenvol-vido capitalista, bem como pela politica que advem da emer-gencia de poderosas elites locals que administram os efeitoscontraditorios do subdesenvolvimento. E igualmente signi-ficativo o fato de ser caracterizada pela persistencia dps muitosefeitos da colonizacao e, ao mesmo tempo, por seu desloca-Tnenfcn3o~eixo~colonizador/coloni2ado ao ponto jde_sua..inter-fia7i2acao~na"p"ro"'pria sociedade descolonizada. Dai que osbritamcos^ profundamente envolvidos nas economias regio-nais, nas faccoes dominantes e na complexa politica dosEstados do Golfo, Persia e Mesopotamia, atraves de uma redede mandates ou de "esferas de influencia" protegidas, apos aPrimeira Guerra Mundial, recuam no momento da descoloni-zacao "para oeste do Suez"; fazendo com que os "efeitossecundarios" desse tipo difuso de hegemonia colonial indi-reta passem a ser "vividos" e "re-trabalhados" nas varias crises"internas" dos estados e sociedades p6s-coloniais e das socie-dades que compoem os Estados do Golfo — Iraque, Iran eAfeganistao — sem falar na Palestina e em Israel. Nesse,.cenario, o "colonial" nao estajmorto, ja que sobrevive atraves-de seus "eFeitos secondaries^. Contudo, nao se pode maismapear cornpletamente sua politica, nem consider^-la, nomomento pos-colonial, identica aquela que vigorou duranteo mandate britanico. Tais complexidades e reencenacoestornaram-se uma caracteristica comum em varias partes dosmundo "pos-colonial", embora tenham ocorrido outras traje-torias "descolonizadoras", algumas anteriores e outras comresultados significativamente distintos.

Poderfamos questionar — parece que alguns criticos o ternfeito — por que entao privilegiar este momento do "£6s^colonial"? Sua preocupacao CQm.o.,reJaciQriamejitg_cojQni2^colonizadr7~n^o^eria~~sirnplesmente uma revivescencia ou

TeerTcerTa^ao daquilo que oproprio pos-colonial triunfante-mente declara "concluido"^Dirli^ por exemplo, acha estranhoque os criticos p6s-coloniais~Se"xocupem tanto com o Ilumi-nismo e a Europa, cuja critica parece constituir sua tarefa prin-cipal. McClintock igualmente critica o "recentramento dahistoria global sob a rubrica do tempo europeu" (p. 86). Everdade que o "pos-colonial" sinaliza a prolifeza.cao-jde_

no

hist6rias e temporajjdades, a mtrusao daespecificidade n a r a c i a i T a t i v a s generaliza_ciQras_d2

\ A

^culturais lateraise descentradas, os moyimentos e migra9oesquT~cornpoem hoje o rnundp, f r e q u e n ternente_§g.jy>nt Q r-

centros metropolitanos. Entretanto, talvezdevessemos ter atentado para outros exemplos te6ricos, nosquais a desconstrucao de conceitos-chave pelos chamadosdiscursos "pos" nao foi seguida pela extincao ou desapareci-mento dos mesmos, mas por sua prolifera$ao (conformealertou Foucault), estes ocupando agora uma posicao "descen-trada" no discurso. O sujeitoje__a_i_dentidade sao apenas doisdos conceitos que, tendo sido solapados em suas formasunitarias e essencialistas, proliferaram para alem de nossasexpectativas, atraves de formas descentradas, assumindonovas_ppsic6es_disciirsivas. — •*

Ao mesmo tempo, ha pertinencia em se afirmar, como ofazem Lata Man! e Ruth Frankenberg em sua critica ao WhiteMythologies [Mitologias brancas], de Robert Young (1990), que,por vezes, Q_finico_grog6sitp_ da j^rit_ic.a_-p6.Sj:,colcinJ5i.p_a.receser a desconstrucao do discurso filospfico ocidental, asseme-Ihano'o^se'a^um "mero desvio para retornar a posicao do Outroenquanto recurso para se repensar o proprio eu ocidental".Como. jif irma m^s_giutpras :, sena surpreendente se o "pbjeto.chave e o sucesso da Guerra de Independencia . a_rgeliaafossem derrubar a dialetica hTegeliaria" (1993: 101)! A meuver, o problema do White Mythologies (1990) nao e a percepcaoda relac.ao entre o pos-colonial e a critica da tradicao metafi-sica ocidental, mas sim o desejo prometeico que o impulsionaa alcancar uma correta e ultima posigao teorica — um desejode teorizar mais que todo o mundo — e, ao faze-lo, Qjgxtoestabelece_uma hierargiaia que vai desde os,^maus" (Sartre, omarxismo e Jameson), passa pelos ^razoayeis, mas incor-retos^, (Said e Foucault) ate chegar aos "quase legate^ (Spivake Bhabha), sem que sequer se proponha uma investigacaocritica rigorosa do discurso normative, daquela figura funda-cional — ou seja, Derrida — cuja ausencia/presenga definea encenacao de toda a seqiiencia linear. Mas isso e outrahistoria — ou melhor, a mesma historia em uma outra parteda floresta...

ill

Page 59: Da Dispora - Stuart Hall

Portanto, muitas das criticas aoj".p6s-colonial"l — parado-yahnente._Eorjiu.a _o_ne_ntagaQ pos-estruturalista — assumema forma de uma dernandajppr maior multiplicidade e dispjrga^(embora Dirlik, ao salientar a forca estruturante do capita-lismo, se mostre profundamente desconfiado desse tipo de"namoro" pos-estruturalista). Contudo, mesmo nos atendo adiferenciacao e a especificidade, nao podemosignorar osefeitos sobredeterminantes do momento colonial, a "missao"que seus binarismos tiveram^gLie cumprir de re(a)preseniar^.proliferacao da diferenca cultural^ das formas de vida (quesempre estiveram presentes ali) nojnterior da_.^unidade'' sutu*rada e sobredetejininAda_d^ueja..pol_aridade simplificadora e_todo-abrangente: "OOcidente_e__a.r!estQl[^^ West and the Rest].(Esse reconhecimento avanca um pouco no sentido de livrar o"Orientalismo" de Edward Said da crftica que o acusa de naodiscriminar os distintos imperialismos.) Devemos manter erajogo as duas pontas da cadeia simultaneamente — sobredeter-minacao e diferenca, condensacao e disseminacao — para quenao caiamos em um alegre desconstrucionismo e na fantasiade uma impotente utopiajda_ diferenca. E sobremaneiratentador imaginar que, so porque e desconstruido teoricamente,o essencialismo fica deslocado politicamente.

Em termos de periodizacao, contudo, o \^p 6s -colonial^retem alguma ambigujdade, pois,, , _ c r _ pmomento postenorj_descolonizaglo como momento cnticppara um leslocamento nas relacoes globais, o terrno tamb^mpferece — comcTtoda "— qu"^£narrativa alter-nativa, desiacando oojijunturas-chave aquelas_ incrustadasna narrativa classica da Modernidade. Vista sob a perspectiva"pos-colonial", a coJoHIza^aoniao" foi um subenredo localou marginal de uma historia maior (por exemplo, da transifaodo feudalismo para o capitalismo na Europa Ocidental, esseultimo se desenvolvendo "organicamente" nas entranhas doprimeiro). Na narrativa reencenada do pos-colonial, a colo-nizacao assume o lugarea importancia_de_um_amplo_ej^erUpde ruptura historico-mundia^. O pos-colonial se refere a "colo-nizaga^"^omo^lgo mais do que um dommio direto de certasregioes do mundo pelas potencias imperials. Creio que signi-fica o processo inteiro de expansao, explpragao, conquista,

' que constituiu a "face mais

112

evidente", o exterior constitutiyq, da modernidade capita-"lista europgir^TdegoJii^idental,.^pi&s.X4^.

Essa renarracao desloca a "estoria" da modernidade capi-talista de seu centramento europeu para suas "periferias"dispersas em todo o globo; a evolucjio pacifica para a vio-lencia imposta; a transicao do feudalismo para o capitalismo(que exerceu uma funcao talismanica, por exemplo, nomarxismo ocidental) para a formacao do mercado mundial,usando termos simplistas por um momento; ou desloca essa"estoria" para novas formas de conceituar o relacionamentoentre esses distintos "eventos" — .do tipo dentro/fora da emergente modernMade_capjtalista"global:" . A reformulacao retrosp"ectivada Modernidade nointerior de uma estrutura de "globalizacao", em todas as suasformas de ruptura e em todos os seus momentos (desde aentrada portuguesa no Oceano Indico e a conquista do NovoMundo, ate a internacionalizacao dos mercados financeiros edos fluxes de informacao), constitui o elemento verdadeira-mente distintivo de uma periodizacao "pos-colonial". Dessaforma, o "pos-colonial" _grande narrativa historiografica que, na histpriogra f ia_ lib erale na_spciolQgia_ji|sto£ica weberiana, assim como nas tra-dicoes dominantes do marxismo ocidental, reservou a essadimensao global uma presenca subordinada em uma historiaque poderia ser contada a partir do interior de seus para-metros europeus.

Compreendida ou relida neste sentido, a colonizagao. setornaria inteligivel somente enquanto acontecimento designificancia global — pelo qual seria assinalado nao oseu carater universal ejntali/anle, mas seu carater desloca doe diferejiciadg. Isso quer dizer que a colonizacao teve queser compreendida naquele momento, e certamente so podeser compreendida nos dias de hoje, nao so em termos dasrelacoes verticals entre colgnizadores e colonizados. mastambem em termos de como essas e outrasjonnas^e^ relacoesdepoSer^sempre r|oram, geslocadas e descenrradas por umoutro conjunto de vetores — as ligacoes transversals ou quecruzam asTfernteiras-dofTEstados-nacao e os inter-relaciona-mentos global/local que nao podem ser inferidos nosmoldes de u*m Estado-nacao. E na reconstituicao dos campos

H3

Page 60: Da Dispora - Stuart Hall

epistemico e de poder/saber em torno das relacoes da globa-Hzasao, atraves de suas diversas formas hist6ricas, que a"periodizacao" do "pos-colonial" se torna realmente desafia-dora. Contudo, este ponto raramente emerge em qualquercritica. E quando isso ocorre (como em Dirlik, 1994), seusefeitos contrariam o desenvolvimento do argumento, comoespero demonstrar logo abaixo. Alem do mais, saltandovarios estagios por um momento, e precisamente por causadesse revezamento critico atraves cTcTgloEal que o "pos-colo-

aquelas dimensoespYoKlemaficaT— as _£uestoes do hibridismo_e_sjnc£etismo,da indecidibilidade cultural, e as complexidades jaidenti-ffcagSo diasporica que interrompem qualquej^£eJornQ," ahistorias originals Jechadas e_f^ntTadasJ', em termos etnicos.'Compreendida em seu contexto global e transculrural, acolonizacao tern transformado oCabsolutismo etnicojem uma- 5 _ ^- •—r^r^jsi-^-. f

''estrategia culturjTTXada vez maisCinsustentaveJ) Transformouas proprias "colonias", ou mesmo grandes extensoes domundo "pos-colonial", em regioes desde ja e sempre "dias-poricas", em relacao ao que se poderia imaginar como suasculturas de origem. A nocao de que somente as cidadesmulticulturais do Primeiro Mundo sao diasporizadas e umafantasia que so pode ser sustentada por aqueles que nuncaviveram nos espacos hibridizados de uma cidade "colonial"do Terceiro Mundo.

Nesse momento "pos-colonial", os movimentfiSJxans-''. p/ersais, transnacioriais e transcu"Iturais7 inscritos desde sempre

na historia da "colonizacao", mas cuidadosamente oblite-rados por formas mais binarias de narrativizacao, tern surgicjpde distintas formas para perturb^^jreja^ogs^ estabelecidasde dominacao^^resisigncia inscritas em outras narrativas eforma^dejdcia, Eles reposicionam e des-iocam a "diferenca"sem que, no sentido hegeliano. se atinja sua J'sup^raglo"^Shohat observa que a enfase antiessencialista do discurso"pos-colonial" por vezes parece constituir uma tentativaqualquer de recuperar ou inscrever o passado comum comouma forma de idealizacao, a despeito de sua relevanciaenquanto local de resistencia e identidade coletiva. Ela apontacom pertinencia que esse passado poderia ser negociadodiferentemente, "nao como uma fase estatica e fetichizada a

114

ser literalmente reproduzida, mas como conjuntos fragmen-tados de memorias e experiencias narradas" (1992, p. 109).Eu concordana^com esse argumento. Ele implica levar a serioas BUplas inscri£oesjlo encpntro colonizador, o carater dialo-gico de sua^TtencIade, o caraieF^^ecif^o^^^aJ^S^enja71",a centralTHade das questoes narrativas e o imaginario daluta politica (ver, por exemplo, Hall: 1990). Contudo, nao e"exatamente isso o que significa pensar as conseqiiencias cul-turais do processo colonizador em termos "diasporicos" oude uma forma nao-originaria — isto e, atraves e nao em tornodo "hibridismo"? Nao significa tentar pensar asjjuestoes dopoder cultural e da luta politica^no interior do_p6s-colonial,em vez de ojazer ao_reves_dele?

A forma como a diferenca foi vivenciada nas sociedadescolonizadas, apos a violenta e abrupta ruptura da coloni-zacao, foi e teve que ser decisivamente distinta daquela queessas culturas teriam desenvolvido isoladamente umas dasoutras. A partir desse marco nas decadas finals do seculoquinze, nao tern havido "um unico tempo (ocidental) homo-geneo vazio". Ha, sim, condensacoes e elipses. que surgemquando todas as temporalidades distintas, mesmo permane-cendo "presentes" e "reals" em seus efeitos diferenciados, saoreunidas em termos de uma ruptura em relacao aos efeitossobredeterminantes das temporaiidades e sistemas de repre-sentacao e poder eurocentricos, devendo marcar sua "dife-renca" nesses termos. E isso que se tern em mente quando secoloca a colonizacao dentro da estrutura da "globalizacao",ou melhor, quando se afirma que o que distingue a moderni-dade e esse carater sobredeterminado, suturado e suple-mentar de suas temporalidades. Q hibridismo. o sincretismo,as temporalidades multidimensionais, as_clu la jLas,.cjr.i£Q.es.dos tempos colonial e metropolitanOj o trafico.. cultuiaL.demap dupla (caracteristico das zonas de contato das cidades"colohizadas", muito antes de se tornarem tropos caracteris-ticos das cidades dos "colonizadores"), as formas de tradu^ape transcultura£ao que 5^r^c^r|^£iram_ aj^rela^clo_cploniar'de^a^^sejas^pxirnjordios,- as desautorizacfies e entrelugares, -os^gui-e-acolas marcam as aporias^Q reduplicac6es^ujo^_intersticios os discursos ^gjomais^tem sempm_negociadg esobTe^_gjjaisJio.mi..Bhabha-.escreyeu coni^prpfunda clari-videncia (Bhabha, 1994), Nao e necessario dizer que elas

115

Page 61: Da Dispora - Stuart Hall

sempre civeram que se situar dentro e em oposicao as relatesdiscursivas sobredeterminantes de poder e conhecimento, quecosturavam ou entreteciam os regimes imperials entre si. Elassao os tropos da suplementaridade e da differance dentro deum sistema global deslocado, mas suturado, que so emergiuou pode emergir nos primordios do processo colonizadorexpansionista que Mary Louise Pratt denomina "aventuraeuro-imperial" (Pratt, 1992).

Desde o seculo dezesseis, essas historias e temrjorali-dades diferenciais tern_sjdo irreypgayel e vinjenrajn^nieemparelhadas. Isso nao significa que elas tenham sido ousao o mesmo. Contudo, tem sido impossivel desenredar,conceituar ou narrar, enquanto entidades distintas, as traje-torias totalmente desiguais que constitufram as bases de seuantagonismo politico e resistencia cultural, embora seja issoprecisamente o que a tradi^ao historiografica ocidentaldominante tern freqiientemente tentado fazer. Nenhum dbcalj?seja "la" ou "aqui", em su^^AJtonomiaJantasiada ou i n - "

' sem levar em conskleraclo seus^ . A propria nocao d e uma

identtdade cultural identica a si mesma, autoproduzida e auto-noma, tal como a de uma economia auto-suficiente ou de umacomunidade politica absolutamente soberaria, teve que serdiscursivamente construida no "Outro" ou atraves dele-p.Qrum sistema de similaridades e diferencas, pelo jogo dafdiffiP

f^ ^^S v_ J_^^--

ranee) e pela tendencia que esses significados fixos possuem<3e~oscilar e de"s"lizaT. '' CPDutro" deixou de ser um termo fixono espaco e no tempo externo ao sistema de identificaclo ese tornou uma "exterloridade constitutiva" simbolicamentemarcada, uma posiclo marcada de forma diferencial dencroda cadeia discursiva.

E possivel agora responder a questao anteriormenteproposta sobre a preocupagao do "pos-colonia!" com o tempoeurocentrico. No discurso do "p6s-colonial" o Ilumimj>rno_ressurge_ emurrta posigao descentrada, jjoisj'epj'esenta umdeslocamento epistemico critico dentro de um processo^de

^cotonizagaoTcompreendido em um sentido mais amplo, cujosefeitos de poder/saber discursivo ainda estao em jogo (comoe que, nos discursos ocidentais dominados pelas CienciasExatas e Sociais, isso poderia deixar de acontecer?). Ate oIluminismo, a diferenca havia sido concebida em termos das

116

ordens distintas do ser — "Sac^eles homens de verdade?^foi a pergunta que Sepulveda fez^~Baflolomeu de las Casasno famoso debate em Valladolid, diante de Carlos X em 1550.Enquanto isso, sob o olhar panoptico universalista do Ilumi-nismo , t : l a i s x ) n n u sescopo universaljde uma_unJca qrdem do ser. de tal formaque a diferenca teve que ser constantemente reforrnulada namarcagao e remarcacao de posicoes dentro de um unicosistema discursivo (differance). Tal processo era organizadopelos mecanismos mutaveis de "ser Outro", alteridade eexclusao, e pelos tropos do fetichismo e patologizaclo queserviam a tentativa de fixaclo ou consolidacao da diferencadentro de um discurso "unificado" de civilizac-ao. Tais meca-nismos eram essenciais a producao simbolica de uma exterio-ridade constitutiva, que sempre se recusou a ser fixada eescapulia de volta, como o faz ainda mais hoje, atravessandoos limites porosos e invisiveis, para perturbar e subvertera partir de dentro (Laclau, 1990; Butler, 1993).

Nao se quer afirmar com isso que tudo permanece omesmo desde entao — a colonizacao se repetindo ate ofim dos tempos. Mas, sim, que a colonizacao reconfigurou_o terreno de tal maneirague, desde entao, a^pjopria ideiaclellm^Tmjn^crcoln^osto por identidades isoladas, por cul-tu ras e e co nomias_ s e pa racla s e_ au to -s u f icien te s tem tidoque ceder a umj_yarieclacle de^paj^digmas^destinaclQS^aca£tarjes_sas__form_as distintas__e afins de relacionamento.interconexao e descontinylda.de. Essa foi a forma evidentede dis^eminagao-e-condensagao que a colonizacao colocouem jogo. E privilegiando essa dimensao ausente ou .desvalo-rigada da n_arratiy_a_ oficial da "colonizagao" queyo discurso

os-colonial" se torna conceitualmente djstintgp Embora asformas particulares de inscricao e sujeicao da colonizagaotenham variado em muitos aspectos de uma parte a outra doglobo, seus efeitos gerais tambem devem ser crua e decisiva-mente marcados teoricamente, junto com suas pluralidades emultiplicidades. Isso, a meu ver, e o que o significante ano^malo "colonial" faz no "p6s-colqnial".

E quanto a questao incomoda do prefixo "pos"? Shohat,por exemplo, reconhece que o ^posj^ sinajjza tanto o "fecha^mento de um certo evento histc)rico ou era" quanto um "ir

comentar um certo movimento intelectual" (1992,

117

Page 62: Da Dispora - Stuart Hall

•^'\A e°'°

p. 101, 108). Ela prefere claramente o segundo ao primeiro.Para Peter Hulme (1995), contudo, o "pos" no "pos-colonial"

possuiduas dimensoes em tensao uma com a outra: umai dimensao temporal) na qual ha um relacionamento pontualvrto tempo, poT exempjoj^entre^uma colOnia e um estado

p6s-colonial; e umavdimensao crfticaXna qual, por exemplo,uma teoria p6s-coloniaT^as^a~a~e?astir atraves de uma crfticade um corpo teorico.

Alem disso, a tensao, paraHulme, e produtiva. enquanto1 quepara Shohat produj_j.mia__ambiy^ljjicia estruturada.Sobre isso a^ajjtora sugere^ue o Cgos^goloriiaD se distinguede todos^ os outros "qqs.Lajjutejitarjser epistemico ecronoTo^'gico. E tajitom p. .piajajdigma^quanto^^^^"colonial" que^o "p6sj^lonial'' pretende superar.

Contudo, parece-me que, neste sentido, o "pos-colonial"nao difere dos demais "pos". Nao se trata^jy^enas denser"pQSterigr^' mas'deJ4£ajem''idgdolgjiial, tantg^tuanto g^''pos-modernismo" e posterior e vai alem do modernismo, e_opos-estrutuTalismo segue cronologicamente e obtem seus^Hhos"Teofic"os~cacT "suborji^s^os^s^^g^ejtTutu^ Aquestao mais' HelTcada e saber se ambos poderiam ser real-mente separados, e o que tal separacao significaria para aforma como_a-pr-opria "colonizacao" estaria sendo concei-tuada. O '(cplonialismcr'se refere a um momento historicoespecifico (um momento complexo e diferenciado, como ten-tamos sugerir); mas sempre foi tambem uma forma de encenarou narrar a historia, e seu valor descritivo sempre foi estrutu-rado no interior de um paradigma teorico e definidor distinto.A propria sucessao de termos que foram cunhados para sereferir a esse processo — colonizacao, imperialismo, neocolo-nial, dependencia, Terceiro Mundo — demonstra a intensi-dade com a qual uma importante bagagemjx>litica, conceituale^epistemologica estava~atrelacfa a cada um desses termosdescritivos aparentemente inocentes; em suma, a intensidadecom que cada um deve ser compreendido discursivamente.Decerto, a distincao critica que se tenta fazer aqui entre"poder" e "conhecimento" e exatamente o que o discurso "pos-colonial" (ou entao, aquilo que, discursivamente, o pensa-mento sobre o "colonial" e o "pos-colonial") tern deslocado.

Com a "colonizacao" e, cojisequentemente^ornjo^pos-colonial".nos situamos irrevogavelmente dentro de ujnJc^Tir2p_deJ:ojjca-sde poder-saber^ t justamente a distincao falsa e impeditivaentre colonizacao enquanto sistema de governo, poder e explo-racao e coloniza9ao enquanto sistema de conhecimento erepresenta^ao que esta sendo recusada. Uma vez que asrelagoes que caracterizaram o '^colonial" nao mais ocupamo mesmo lugar ou a mesma posigao relativa, po demos naosomente nos ppor a elas masjambem criticajr,_desa3n^trujre tentar "ir ale^ljielasr

Shohat_argumenta que "a operacao de, ao mesmo tempo, privilegiare afastar-se da narrativa colonial, superando-a, vai definir aestrutura do 'entrelugajr^do fr£os:£pJaniaJL^,(19921 p. 107). Aautora nao se contenta corn essa indecidibilidade.JZorvtudo,e possivel argumentar que a tensao entre o jepistemol6gico] eo^rgnoJ6gico^nao e irnpeditiva, mas produtiva. "Posterior"

o outro^^o cglonial), no q a l.predgmina a relagag ^olgnial. Nao significa, conforme ten-tamos demonstrar anteriormente, que o que chamamos de"efeitos secundarios" do domrnio colonial foram suspenses.Certamente nao significa que passamos de um regime depoder-saber para um fuso horario sem conflitos e sem poder.Contudo, reafirma-se aqui o fato de que cqnfiguracoes "emer-gentes". porem relacionadas. de poder- sab er^c^mecjirn^exej^ej^sejas^ejfeitos^^ge^icos. Dessa forma, a conceituagaode mudanca entre esses paradigmas — nao como uma "ruptu-ra" epistemologica no sentido estruturaltsta/althusseriano,mas, em analogia ao que Gramsci denominou "movimentode desconstrucao-reconstrucao" ou ao que Derrida, numsentido mais desconstrutivo, denomina "^pja_jnscricao'' —e caracteristica de tqdos os "pos".~~~K6 se referir as transformacoes no campo do senso pra-

tico comum, Gramsci observa que estas devem ser pensadascomo

um processo de distinfao e mudanga no peso relative dos ele-mentos da veiha ideologia ... o que era secundario ou mesmocasual adquire importancia primaria, tornando-se o nucleo deum novo conjunto ideologico e doutrinario. A antiga vontadecoletiva se desintegra em elementos contradit6rios, para que

118 119

Page 63: Da Dispora - Stuart Hall

os elementos subordinados entre eles possam se desenvolversocialmente... (Gramsci, 1995, 1979- Ver tambern Hall, 1998,p. 138)

Aquilo que, de formas distintas, essas describees teoricastentam construir e uma nocao de mudanca ou transicao conce-bida como uma reconfiguragSo^de urn campp, em vez de ummovimento de transcendencia linear entre dois estados mutua-mente exclusivos. Tais tj^ns£cujiiagoes_pe^manecem incon^clu^aj_e^ad^rn^iag_jex^ptgxlas_dentro de um paradigmaquejpressupoe que todasasgrandes mudancas hisioricas sejamimgulsionadas por umajogica determinista em direcao a um_fini_leleolpgi£o. Lata Man! e Ruth Frankenberg fazem umadistincao critica entre a transicao que e "decisiva" (o que,certamente, o "pos-colonial" €) e aquela que e "definitiva".Em outras palavras, todos os con^eito^^haj/e^no"£os=£olo-

nos termosForam submetidos ~a uma critica

severa e radical, expondo seus pressupostos como um con-junto de efeitos fundacionais. Mas essa desconstrucao nao osabole, no movimento classico de superacao, Aufhebung. Elespermanecem os unices instrumentos conceituais ou ferra-mentas para se pensar o presente — mas somente se foremutilizados em sua forma desconstruida. Eles sao "uma pre-senc.a que existe em suspense [in abeyance], para usar outraformulae.ao mais heideggeriana que Iain Chambers, porexemplo, prefere (Chambers, 1994).

Em um famoso debate sobre "o pensar no limite" — queme parece uma boa descricao do status do "pos-colonial"enquanto episteme-em-formac.ao — Derrida definiu o Jimite_do djs^ursoJilQSQfico como "a episteme, fu^ionaridcLdentro

_ _ceituais fora das quais a fiio5ofi^se.jpfnamjin^raticavel". Ocriticb menciona "um gesto necessariamente duplo, marcadoem certos pontos por uma rasura que permite a leitura daquiloque se oblitera, inscrevendo violentamente no texto aquilo quetentou governa-lo de fora". Fala tambem da tentativa derespeitar, o mais rigorosamente possivel, "o jogo interno eregulado dos filosofemas ... fazendo-os deslizar ... ate o pontode sua nao-pertinencia, sua exaustao, seu fechamento."

120

Desconstruir a filosofia assim seria pensar — da forma interiormais fiel — a genealogia estruturada dos conceitos da filosofia,mas ao mesmo tempo determinar — de um certo exterior quee inquantific&vel ou mominavel na filosofia — o que essahistoria foi incapaz de dissimular ou esconder. Atraves dessacircula^ao ao mesmo tempo fiel e violenta entre o interior e oexterior da filosofia ... produz-se um certo trabalho textual...(Derrida, 1981).

Quando seu interlocutor, Ronse, perguntou-lhe se isso signi-fica que poderia haver uma "superagao da filosofia", Derridarespondeu:

Nao ha uma transgressao, se por isso se entende aquela aterris-sagem no al6m da metafisica ... Mas, atraves do trabalho feitode um lado ao outro do limite, o campo interior se modifica, euma transgressao e produzida que, consequentemente, nao seapresenta em lugar algum como fait accompli... (Derrida, 1981)

O problema, entao, nao e que o "pos-colonial" 6 um para-digma convencional do tipo logico-dedutivo, que errpneamenteCQn£uflde o cronologia^Qarn-O-ejiigiemologico^ For tras deleha uma escolha mais profunda de epistemologias: entre umalogica racional e sucessiva e uma desconstrutora. Neste sen-tido, JQJrlik esta correto ao apontar a questao da relafao do"pos-colonial" com acjuilo quje^mais armolamente se podechamar de formas "pos-estruturalistas" de pensamento, cqmpumaquestao_central que_ _incomoda. Estao em jogo neste debate questoes maiores doque aquelas sugeridas pela critica.

Dirlik e particularmente feroz nesta S.rea e por razoes quenao sao dificeis de identificar. Ao descobrir que o termo "pos-colonial" e aplicado a muitos autores que nao concordamnecessariamente uns com os outros, alguns dos quais eleadmira e outros nao, Dirlik_chega a conclusao polemica deque o "jD6s^c_Qianial" nao e a descricaojienada nem deninguem em particular, mas "um^disgurso que procura cons^tituir o mundo naau to- imaggjn dos Jntelectuals que se veemou passaram a se ver como intejectuajs.p^s-c^lcjniaja [e] ...uma expressao ... de_jjeu1 poder recem-desco.b_er.to" naAcademia do Primeiro Mundo. Esse Hnguajar rude, dirigidoad bominem e ad feminam, desfigura o argumento de um

121

Page 64: Da Dispora - Stuart Hall

notavel conhecedor da China moderna e talvez fosse maissensato considera-lo como algo "sintomatico". Mas sintoma-tico do que? Um indicio de resposta pode ser obtido quandoele Coma como pretexto a elegante defesa p6s-estruturalistado pos-colonial de Cyan Prakash, "Post-colonial Criticism andIndian Historiography" [A critica pos-colonial e a historio-grafia indiana] (1992). Deixemos de ladoas rnuitas criticasmenores desse artigo, algumasjjas quaisiiT foram mencio-nadas. A principal acusacao e de que oCpj6s-cplonjaJ)como oTiiscurso pos-estrufiTrahsta, que fornece seu fundamento filo-sofico e teorico, 6 antifundadojwl e, como tal, nao podelidar com um conceito como o "capitalismo" e com "a estrutu-ragao capitalista do mundo moderno" (p. 346). Alem do mais, o"pos-colonial" e um "culturalismo". Preocupa-se com questoesde identidade e sujeito e, portanto, nao pode explicar "omundo fora do sujeito". A atencao se desloca da origemnacional para a posicao do sujeito e "uma politica de locali-zacjio precede a politica informada por categorias fixas (nestecaso, a nac.ao, embora obviamente outras categorias tais comoo Terceiro Mundo e a classe social tambem estejam impli-cadas)" (p. 336). O "pos-colonial" apjesenta taniQ-.ao_CQloni-^zadpjiJ5uanto_j.o_colpnizado "um problerna de identidade"(p. 337). ~

Tudo isso avanca com bastante brio ao longo de umasvinte paginas ate que, na pagina 347, uma "virada" um tantocaracteristica come^a a se revelar. "Essas criticas, emboraveernentes por vezes, nao indicam necessariamente^gueoscriticos do p6s^cplonialismo neguenTseu^alcTr..." O discurso"pos-colonial" parece, afinal, ter algo a dizer sobre "uma crisenos modos de compreensao do mundo associados a conceitoscomo Terceiro Mundo e Estado-nac.ao". Nem aparentementedeve-se negar que

na medida em que a situafao global tornou-se mais obscuracom o desaparecimento dos estados socialistas, com a emer-gencia de importances diferencas economicas e politicas entreas sociedades do chamado Terceiro Mundo e os movimentosdiasporicos dos povos pelas fronteiras nacionais e regionais, a_fragmentagao do g]obal em local emergiu em primeiro pianona consci^ncia historica e politica. (Dirlik, 1992, p. 34?)

Ao olhar inocente, a passagem acima parece recuperar umterrit6rio em grande parte repudiado, alem de conter algumasformulagoes questionaveis. (Certos criticos p6s-modernospodem acreditar que o global se fragmentou no local, mas amaioria dos que sao series afirma que o que esta ocorrendoe uma reorganizacao mutua do local e do global, uma PJQQO-

jiicjip muito diferente. Ver Massey, 1994; Robins, 1991; Hall,1992T- Mas Beixemos estar. Pois, na segunda parte do artigo,esse argumento € sucedido por uma explicate detalhada epersuasiva de algumas das principais caracteristicas daquiloque e descrito por uma "variedade" de termos, tais como"capitalismo tardio, acumulacao e produfao flexivel, capita-lismo desorganizado e capitalismo global". -N

Isso inclui: a nova divisao internacional do trabalho. as \jTOva^t^c^oJogia^de^mfprma^ao global, um^de^sc^tramentonacional caialisn.._a^lia?aa,.o£erecida^e^_ , . . _

trans nacipnal, a transnacionalizagao da produ^ao, oapafecmiSo ^ do modp capitalista cle produ^ao;" "pela pTimeifavez"na historia do capitalismo" (p. 350), como uma "atistra^aoaiSenticjimente^global'1 , a fragmentacao cultiaral^e^o muTtTcul-turalismo, a rearticulagao das culturas nativas em uma narra-tiva capitalista (o exemplo dado e a revivifica^ao confucianaentre a elite capitalista emergente do Sudeste Asiatico), oenfraquecimento das fronteiras, a multiplicacao em sociedadesantes colonials das desigualdades associadas as diferencascoloniais, a "desorganizagao de um mundo concebido emtermos de tres mundos", o fluxo da cultura "ao mesmo tempohomogeneizador e heterogeneizador" (p. 353), uma moderni-dade que "nao e mais euro-americana somente'^ofmairdi

f.. ^ — 3 ' - ~_ — vcbntrole que nao podem ser impostas, mas tern que_sernegociadas, a"~reconstituicao de subjetividades nas fronteirasnacionais, e dai por diante ...

E uma lista impressionante e impressionantemente com-pleta. Ela aborda, de forma incontestavel em certos momentos,cada tema que fax do "pps^cojojnj^l" um rjaradigma teoricodistinto, e decisivamente marca o quao radical e inexora-velmente diferentes — isto e, o quao indubitavelmentePos-coloniais — sao o mundo e as relafoes ali descritas.E, para a surpresa do leitor, isto tambem e reconhecido:"O p6s-colonial representa uma resposta a uma necessidade

122 123

Page 65: Da Dispora - Stuart Hall

de superar a crise de co"produzidapela incapacidade das velhas categorias de explicaro mundo." (p. 353)- Algum critico "pos-colonial" ousariaa'isco73aT"deste julgamento?

Dois argumentos resultam desta segunda parte do ensaio.O primeiro deles e grave — de fato,(S criticihmais seria queos criticos e teoricos pos-coloniais precisam urgentgnienteencarar — e ela e colocada sucintamente par (DirlikT^j'E.notavel ... que uma consideracao do relacionamento entre

~ o pos^cbloniaTismo e o capitaUsmo global esteja ausente dostextos doslnHIeduajs^rj^colpniais," Nao vamos sofismar e

"cfizer ~alguns criticos pos-coloniais. Realmente, e notavel. Eisso tem prejudicado seriamente tudo de positive que o para-digma pos-colonial pode e tem a ambicao de alcancar. Essasduas metades do atual debate sobre a "modernidade taxdia"

>, — o p6s-colonial e a analise dos novos desenvolvimentos docapitaiismo_global — tem em geral prosseguido em relative

Tsolamento uma da outra e implicado um custo mutuo. Nao edificil compreender porque, embora Dirlik nao pareca inte-ressado em dar continuidade a essa importante questao (eleoferece uma solucao trivial para ela, o que^e.^iferente). Umadas razoes disso e que os discursos do("p6s^)emergiram etem sido articulados (embora silenciosamente) contra osefeitos praticos, politicos, historicos e teoricos do colapsode um certo tipo de marxismo economicista, teleologico e,no final, reducionista. O resultado do abandono desseeconomismo determinista nao tem sido formas alternativasde pensar as relacoes economicas e seus efeitos enquantocondifoes de existencia para outras prikicas, inseridas deforma "descentrada" ou deslocadas em nossos paradigmasexplanatorios, mas sim um macico, gigantesco e eloqiienterepudio. Como se, ja que o^conomico em seu sentjdomais amplo definitivamerite" ~nao "determina", como antes se^sperou7 o rrj^imento concreto da~rrr5TofTa^irem ultima

^Instarloa", entao elejiacugxistisseTEssa e uma falhade teori-'zacao"tab profunda e Centre poucas e% superficiais excecoes:ver Laclau, 1990 e tambem Barrett, 1991) tao impeditiva queela tem propiciado a continuidade ou o predominio de para-digmas muito mais fracos e menos ricos conceitualmente. (Acerta altura Dirlik faz a interessante observacao de que eleprefere "a abordagem do sistema mundial", muito embora,

124

como p pos-colonial, "esta localize discursivamente o TerceiroMundo" [p. 346]. Porem essa linha frutifera de discussao nao

e desenvolvida).Nao se pode simplesmente afirmar que as relacoes entre

esses paradigmas foram abandonadas. Em parte, trata-sede um efeito institucional — uma conseqiiencia inesperada,diriam alguns, do fato de que o "pos-colonial" tern^sidomelhor desenvolvido pelos academicos literarios, que tem'sido reiutantes em romper as barreiras disciplinares (e atepos-disciplinares) necessarias ao avanco do argumento.Deve-se tambem ao fato de haver alguma incompatibilidadeconceitual entre um certo tipo de teoria pos-fundacional e ainvestigate dessas complexas articulacoes. Mas isso naopode ser considerado como um abismo filosofico intrans-ponivel, especialmente porque, embora nao abordem aquestao do papel conceitual que a categoria "capitalismo"possa ter na "logica" p6s-fundacional, certas articuiacoes dessaordem sao, defato, implicitamente presumidas ou funcionamem silencio, nos pressupostos subjacentes a quase todotrabalho critico pos-colonial.

Portanto, Dirlik aponta, de forma convincente, uma serialacuna naepisteme pos-colonial. Concluir com as impli-cacoes futuras do paradigma pos-colonial dessa critica teriasido cumprir um objetivo muito importante, oportuno eestrategico. Fosse esta a conclusao de seu ensaio, seriapossivel ignorar a natureza curiosamente manca e interna-mente contraditoria de seu argumento (a segunda parte negamuito da substancia e todo o torn da primeira). Mas ele naopara ai. Sua conclusao segue uma outra via. Longe de apenas"representar uma resposta a uma genuina necessidade [teo-rica]", o autor conclui com a ideia de que o p6s^colonialismorepercute os problemas apresentados pelo capitalismo global,esta "emsintonia" com_asc[uest6es deste_e. consequentemente,serve a seus requisites ciil$M££Lis> Os criticos pos-coloniaisseriam, na verdade, porta-vozes inconscientes da nova ordemcapitalista global. Esta e a conclusao de um longo e detalhadoargumento, cujo reducionismo e assombroso (e, somos obri-gados a acrescentar, banal) cujo funcionalismo se acreditarianao mais existente no debate academico atual enquantoexplicacao para qualquer coisa, de tal forma que ressoa como

125

Page 66: Da Dispora - Stuart Hall

um eco de uma era distante e primeva. E ainda mais pertur-bador uma vez que uma linha de argumentacao muito seme-Ihante, oriunda de um posicionamento diametralmente oposto,pode ser encontrada na acusacao inexplicavelmente simplistade Robert Young em Colonial Desire [O desejo colonial (1995)de que os criticos pos-coloniais sao "cumplices" de uma teoriaracial vitoriana porqiie ambos utilizam o termo "hibridismo"em seu discurso!

Finalmente nos encontramos aqui entre a cruz e a espada.Sempre soubemos que o desmantelamento do paradigmacolonial faria emergir das profundezas estranhos demonios,e que esses monstros viriam arrastando todo tipo de materialsubterraneo. Contudo, as guinadas, saltos e inversoes naforma como o argumento tern sido conduzido nos devem alertarpara o sono da razao que vai alem da Razao, para a maneiracomo o desejo brinca com o poder e o saber, na perigosaaventura de pensar no limite ou alem do limite.

[HALL, S. When Was the Post-Colonial Thinking at the Limit.In: CHAMBERS, Iain; CURTI, Lidia (Org.). The Post-ColonialQuestion-. Common Skies, Divided Horizons. London: Routledge,1996. Tradufao de Adelania La Guardia Resende.]

BIBLIOGRAFIA

BARRETT, M. The Politics of Truth. Cambridge-. Polity, 1991.

BUTLER, J. Bodies that Matter. London: Routledge, 1993.

BHABHA, H. The Location of Culture. London: Routledge, 1994.[O local da cultura. Trad. Myriam Avila, Eliana Lourenco de LimaReis, Glaucia Renate Goncalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001].

CHAMBERS, I. Migrancy, Culture, Identity. London: Routledge, 1994.

DERRIDA, J. Positions, [s. n. t.] 1981.

126

DIRLIK, A. The Post-colonial Aura: Third World Criticism in the Ageof Global Capitalism. Critical Inquiry, Winter, 1994. [A aura pos-colonial na era do capitalismo global. Novos Estudos Cebrap, n. 49,

p. 7-32, 1997- (470)]

FOUCAULT, M. Nietzsche, Genealogy, History. In. BOUCHARD, D.(Ed.). Language, Counter Memory, Practice. Oxford: Blackwell, 1977.[In: Microfisica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 19791

FRANKENBERG, R.; MANI, I. Crosscurrents, Crosstalk: Race,"Postcoloniality" and the Politics of-Location, Cultural Studies, v. 7,

n. 2, 1993.

GILROY, P. The Black Atlantic: Modernity and Double Consciousness.London: Verso, 1993.

GRAMSCI, A. Quaderni III (1875). Citado por MOUFFE, C. Gramsciand Marxist Theory. London: Lawrence and Wishart, 1979-

HALL, S. The Hard Road to Renewal: Thatcherism and the Crisis of theLeft. London: Verso, 1988.

HALL, S. The Question of Cultural Identity. In: HALL, S. HELD, D.MCGREW (Ed.). Modernity and its Futures. Cambridge: Verso, 1992.

HULME, P. Including America. Ariel, v. 26, n. 1, 1995.

LACLAU, E. New Reflections on the Revolution of Our Time. London:Verso, 1990.

McCLINTOCK, A. The Myth of Progress: Pitfalls of the Term Post-colonialism. Social Text, 31/32,1992.

McCLINTOCK, A. The Return of Female Fetishism and the Fiction ofthe Phallus. New Formations, v. 19, Spring, 1993-

McCLINTOCK, A. Imperial Leather. London: Routledge, 1995-

MASSEY, D. Space, Place and Gender. Cambridge: Polity, 1994.

MIYOSHI, M. A Borderless World? From Colonialism to Transnationalism.Critical Inquiry, Summer, 1993.

127

Page 67: Da Dispora - Stuart Hall

PRAKASH, G. Post-colonial Criticism and Indian Historiography.Social Text, 31/32, 1992.

PRATT, M. L. Imperial Eyes. Travel writing and TransculturationLondon/New York: Routledge, 1992.

ROBINS, K. Tradition and Translation: National Cultures in a GlobalContext. In: CORNER,;.; HARVEY, S.J. (Ed.). Enterprise and HeritageLondon: [s.n.], 1991.

SHOHAT, E. Notes on the Postcolonial. Social Text, 31/32, 1992.

YOUNG, R, White Mythologies. London: Routledge, 1990.

YOUNG, R. Colonial Desire. London: Roudedge, 1995-

MARCOS PARA OS ESIUDOS CUL1URA1S

128

Page 68: Da Dispora - Stuart Hall

ESIUDOS CULTUREDOIS PARADIGMAS

No trabalho_Intelectual se"iio e crjtico nap existemJ!iniciosabsolutes" e poucas sao as continuidades inquebrantadas.Nao basta o interminavej desdobramento da tradicap, tao caroa histpria das ideias, nem tampouco o absolutismo da "rup-tura epistemologlca", pontuando o pensamento em suas partes"certas" e "falsas", outrora favorecido pelos althusserianos.Ao inves disso, o que se percebe e um desenvolvimentpdesordenado porem irregular. O que importa sao as/ rupturas}

"f^ignificatLYaa— em que velhas correntes depensamento saprompidas, velhalfconstelacoes de^Irjcj.de~velrios s a o reagrupados ap redor _de u j _prefnissas e temas. Mudancas em uma problematica trans- /j_ ' .

—forfnarfrsignificativamente a natureza das questoes propostas, ^,^. . , ———— -••....••IN < » . . . < . >. •**—i^— »••' —•• •• • [fJ V *"" ^

as formas cofno sao propostas e a maneira como podem ser /V' ° •-<--^_ ——- ' '•'- • •-—— — ' "™ -———"->- - . ^ -ilf'-f *

adequadamente respondidas. Tais rnudancas-de^perspectiya -^— 1<v r,^

reflefem"fiao"so~os""resultados do proprio trabalho intelectual, ^ I|F. ;mas tambem a maneira como os desenvolvimentos e asverdadeiras transformapoes historicas sao apropriados nopensamento e fornecem ao Pensamento, nao sua garantiade "corre^ao", mas suas orienta^oes fundamentals, suas con-digoes de existencia. E por causa dessa articulacao complexaentre pensamentpje reaiidajde hjstorjca, refletida nas cate-gorias socials do pensamento e na contmua dialetica entre"RP^e-Tl^.'^orihecimento", que tais rupturas sao dignasde registro.

Page 69: Da Dispora - Stuart Hall

CO bf-(ps EstudosOilnirajs)como prpblematica distinta. emerggm

de um momento desses,~nos meados da decada de_19Sfl.Certamentenao foi" a"'prlmeira vez que suas questoes carac-teristicas foram colocadas na mesa. Muito pelo contrario.Qs dois livros que ajudaram a marcar o novo terreno — Asutiliza$oes da cultura, de Hoggart, e Cultura e sociedade1780-1950, de Wflliams1 — sao amfeos, die maneiras distintas,trabalhos (em parte) de recupera^ao. O livro de Hoggart teyecomo referenda o "debate cultural" ha muito su^ntado_nasdiscussoes acerca da "sociedade de massa", bem como natraSi^ao do trabalho intelectual identificado com Leavis e arevista Scrutiny. C«/fMr^ejrprfe^rfe.recpjwtniiii_iinia longatradicao definida por Williams como aquela que, em resumo,cbrisiste"c!o "registro de um numero de importances e con-tinuas reacoes a ... mudancas em nossa vida social, econo-mica e politica" e que oferece "um tipo especial de mapa peloqual a natureza das mudancas pode ser expiorada". Os livrospareciam, inicjalmente. simples atuaU^a,cAes._djessa5_pr£jQcu:

P_ac_oes anteriores, com referenda ao mundojdo pos-guerra.Retrospectivamente, suas "rupturas" com as tradicoes depensamento em que estavam situados parecem tao ou maisimportantes do que sua continuidade com as mesmas. Asutilizacoes da cultura propos-se — muito no espirito da"critica pratica" — a ler a cultura da classe trabalhadora embusca de valores e significados incorporados em seus padroese estruturas: como se fossem certos tipos de "textos". Porem,a aplica^ao desse metodo a uma cultura viva e a rejeicao dostermos do debate cultural (polarizado em torno da distincaode alta/baixa cultura) foi um desvio radical. Cultura e socie-dade, num unico e mesmo movimento, constituiu uma tra-dicao (a tradicao de "cultura-e-sociedade"), definiu a sua

^irunTclade" (nao em termos de posifoes comuns, mas depreocupacoes caracteristicas e formas de expressao de suasindaga^oes). e fez uma contribujgao d|sjintajiiente_jpo_de;rn_a_aoassunto ao mesmo tempo em _gue escreYia seu epitafio^ Olivro de Williams que o sucedeu — The Long Revolution —indicou claramente que o modo de reflexao cultura-e-socie-^de^^_rjp^^ria__ser_ completado e desenvolvido a^partirdeoutro lugar — um tipo de analise stgnificativarnente diferente.ConTsulTtentativa de "teorizar" a partir de uma tradicao cujo

132

estilo de pensamento era decididamente empirico e particu-larista, mais a densidade experimental de seus conceitos eo esforco generalizante de sua argumentacao, The LongRevolution deve sua dificuldade de leitura, em parte, ao fatode ter a determinacao de mudar (o trabalho de Williams, ateo mais recente Politics and Letters e exemplar precisamentepor causa de seu desenvolvimentismo consistente). As partes"boas" e "ruins" dessa obra provem do seu status de "obra deruptura". O mesmo pode ser dito de A formacao da classeQperdriain^lesa, de E. P. Thompson,2.que pertence decisiva-mente a esse "momento", ainda que tenha surgido, cronolo-gicamente, um pouco mais tarde. Esse tambem foi um trabalhopensado dentro de certas tradicoes historicas especificas:__a_historiografia marxista inglesa e a historia economics e "dotrabaTHo^TMas, ao destacar questoes 5e~cultura',"c6nscignciae exgeriencia^e enfatizar o agenciamento, tambem rompeudecisivamente com uma certa"f67ma~ufe~evolucionisrno tecno-logico, com o economicismo reducionista-js_com o determi-nismo organizacional. Entre eles, esses^tres livroj^onslituirama cesura da qual — entre outras coisas —^emergiram os EstudosJ)Culturais.3 ~—— --

Eram, claro, textos seminais e de formacao. Nao eram,em caso algum, "livros-textos" para a fundapio de uma novasubdisciplina academica: nada poderia ter sido mais estranhoao seu impulse intrinseco. Quer fossem historicos ou contem-poraneos em seu foco, eles proprios constituiam respostasas pressoes imediatas do tempo e da sociedade em queforam escritos, ou eram focalizados ou organizados por taisrespostas. Eles nao apenas levaram a^'cultura1; a scrip,, comouma dimensao sem a qu^af^sJffa^^ormago^'Kis^oricas, pas-saclas^e~presentes) simplesmente nao poderiam ser pensadasde maneira adequada. Eram em si mesmos "culturais", nosenfflcTd&lffilturae sociedade. Eles forcaram seus leitoresa atentar para a tese de quef ^concentrgdas na^BalayjaJcultura!,existem questoes diretamente propgstas pelas grandes mu-dangas hist6ric^s_qu^^sjTnodifica^^ej.naJndjjs^m na demo-cracia e nas classes sociais representam de maneira propriae as quais a arte responde tambem, de forma semelhante'^^Esta era uma questao para os anos 60 e 70, bem como para osanos I860 e 1870. E talvez seja um ponto a notar que essalinha de pensamento coincidia mais ou menos com o que

133

Page 70: Da Dispora - Stuart Hall

0s

tem sido chamado de "agenda" da Nova Esquerda, & qua!esses escritores e seus textos, de uma forma ou de outra,pertenciam. Essa ligacao colocou a^politica do trabalhqjnte-lectual" bejn-Ccijgentro dos Estudos Culturais desde o inicio— uma preocupagao da qual, felizmente, eles nunca foramnem jamais poderao ser liberados. Num sentido profundo, o"acerto de contas" em Cultura e sociedade, a primeira partede The Long Revolution, certos aspectos particularmentedensos e concretes do estudojde Jioggart sobreji culturada clas.se trabalhadora e da recon strugap historica da for-macao da cultura de classe e das tradisoes populares doperiodo e nitre 1790/1830, feita por Thompson — em conjunto— constituiram a ruptura e definiram um novo espaco emque uma nova area de estudo e_pratica brotou, Em termos de

• \*-**-^~™*^^-~ — • ---- — ""^ — - — --" ' — - •*• -i"**^ - m*——*-*^^~' - "^

marcac.6es e gnfases intelectuais, esse foi — se e que algoassim pode ser verificado — o momento de "re-fundacao" dosEstudos Culturais. A institucionalizagao deles — primeiro,no centro em Birmingham, e depois, por meio de cursos epublicagoes provenientes de varias fontes e lugares, com suasperdas e ganhos caracteristicos, pertencem ao periodo dosanos 60 em diante.

i era o local de convergencia . Mas, que defi-nicoes desse concerto ceritral"ernergiram desse conjunto deobras? E, em torno de qual espaco foram unificadas as suaspreocupacoes e conceitos, ja que decisivamente essa linhade pensamento moldou os Estudos Culturais e representa atradicao autoctone ou "nativa" mais formativa? O fato e quenenhumadefinigao unica e nao problematica de cultura seencpjil£a_aa,.uL O_conceijj .— um local

fede interesses convergentes, em vez de uma ideia logica ouconceitualmente clara. Essa "riqueza" e uma area de con-tinua tensao e dificuldade no campo. Pode ser necessario,portanto, resumir brevemente as enfases e dimensoes carac-teristicas pelas quais o cg^ | chegou ao seu atual [1980]esta^odeB£ii^^ten^nia^^ (As caracteriza^oes que se seguemsao necessariamente grosseiras e simplificadas, sinteticas emvez de precisamente analiticas.). Somente duas problematicasprincipals sao discutidas.

Duas maneiras diferentes ddfconceituar a culturaNpodemser extraidas das varias e sugestivas forfnulacoes feitaspor Raymond Williams em The Long Revolution. A primeira

134

relaciona[cultura-a soma das^escngogsjdisponiveis pelas quaisas sociedades dao sentido^ refletem^j_suas_exp_erigngasCQmun|M Essa definic.ao recorre a enfase primitiva"sobre~as"ideias", mas submete-a a todo um trabalho de reformulacao.A concepcao de cultura e, em si mesma, socializada e demo-cratizada. Nao consiste mais na soma de o "melhor que foipensado e dito", considerado como os apices de uma civili-zagao plenamente realizada — aquele ideal deo qual, num sentido antigo, todos aspiravam. Mesmo— designada anteriormente como uma posicao de privilegio,uma pedra-de-toque dos mais altos valores da civilizafao— |e agora redefinida como apenas uma formajesrjecial_^leprocesso social geral: o dar e tomar significados e o lentodesenvolvimento dos significados comuns; isto e, uma cul-tura comum: a "cultura"^neste sen.tido^especial,__"e prdinari_a"j^(tomando emprestado uma das primeiras tentativas deWilliams de tornar sua posicao basica mais acessivel).'5 Seas descricoes mais sublimes e refinadas das obras literariastambem fazem "parte do processo geral que cria convenc.6ese instituicoes, pelas quais os significados a que se atribuivalor na comunidade sao compartilhados e ativados",5 entaonao existe nenhum modo pelo qual esse processo pode serdesvinculado, distinguido ou isolado de outras praticas queformam o processo historico:

•Ja que a nossa maneira de ver as coisas e literal me nte a nossa 1maneira de viver, o processo de comunica^ao, de fato, e o iprocesso de comunhao: o compartilhamento de significadoscomuns e, dai, os propositos e atividades comuns; a oferta,recepcao e comparacao de novos significados, que levam atensoes, ao cresctmento e a mudanca.6

Assim, de maneira alguma as descricoes literarias, entendidasdessa forma, podem ser isoladas e comparadas corn as outrascoisas.

Se a arte € parte da sociedade, nao existe unidade solida foradela, para a qua! nos concedemos prioridade pela forma denosso questionamento. A arte existe ai como uma atividade,juntamente com a producao, o comercio, a politica, a criacaode filhos. Para estudar as rela?6es adequadamente, precisamosestuda-las ativamente, vendo todas as atividades como formasparticulares e contemporaneas de energia humana.7

135

J

Page 71: Da Dispora - Stuart Hall

Se essa primeira enfasejeyanta e re-trabalha a ^_._ ^do_terjnc<^u]tura)com o dominio das "ideias". a segundaenfase: € jriais deliberadamente antropologica e enfaUza~o

se refere as praticas sociais. E a— "--- -- .,- 5sMjr~i"" ' "** • —l, "iL,

partir dessa segunda enfase que uma definicao de certo modosimplificada — ^a^ultura_ejjrn_mpdo dejvida_global" — ternsido abstrafda de forma um tanto pura. Williams relacionouesse aspecto do conceito ao uso mais documental do termo— isto e, descritivo ou mesmo etnografico. Mas a definicaoanterior me parece a mais central, pois nela o "modo de vida"esta_integrado. O ponto importance nessa discussao se apoianas relacoes aCivas e indissoluveis entre elementos e praticas

} sociais normalmente isoladas. E nesse contexto que a "teoriada cultura" e definida como "o estudo das relacoes ejitTg_elg-

-d.e.^ida_gJpJ3;al". A cultura^ naQ_tLurna.pratica; nem apenas a soma descritiva dos^Q^tyjnes e "cul-turas populares [folkways]" _da.s sociedades, como e]a

por todas as_praticas sociais _e constitui a soma dojjiter^rela-cionamento das mesmas. Desse modo, a questao do que e_

^como elsTe estudada se resolve por si mesmaj A cultura ees^e_qadTac^ de organizacap, essj_gj?orma^_£aj:afjer'5ricas_de_gj^giaJiumana_que4iQd£m.s_er descobertajuxtmqjeyeladoras

— "dentro de identidades e correspondenciast—- "" ~~ ~ *i$g8*&3?ss&5*£*~

ides^ge Ciposinesperadas",inespeHBbs"8 — dpr^ficas sociais. A analise da cultura e, portanto, "a tentativade~des coBrir a riatu reza da organizacao que forma o complexodesses relacionamentos". Comeca com "a descoberta depadroes caracteristicos". Iremos descobri-los nao na arte,producao, comercio, politics, criacao de filhos, tratados comoatividades isoladas, mas atraves do "estudo da organizacaogeral em um caso particular".9 Analiticamente, e necessarioestudar "as relacoes entre esses padroes". O propositp daanalisej entendej^cgjTjO^sjriter-re^acoes de todas essas pra-ticas e_^rj^roes,,sao_yiyidas-e-e.x^jenmejitj^as_^^em_urn_dadqi ^erlo.do:-essa e sua "estrutura de experiencia"[structure of feeling]. " ~~ "

E mais facil ver a que Williams estava chegando e por queele seguiu nesse caminho, se entendermos quais problemas

136

ele abordava e os percalcos que tentava evitar. Isso e particu-larmente necessario, pois The Lons Revolution (como muitosdos trabalhos de Williams) desenvolve um dialogo oculto,quase silencioso, com posicoes alternativas, que nem sem-pre sao tao claramente identificadas quanto se desejaria. Existeum claro engajamento j:om_as definigoes "i

de cultura ^"ideias", na tra-dicacMdeaJista, quanto a assimila^ao de culturaaTim^e«j;,,_cj4£_r^e3:al^^^

_tural". Mas ha tambem um engajamento mais extenso comcertas formas de marxismo, contra as quais conscientementese voltam as definicoes de Williams. Seu posicionamento sedirige contrariamente a operacao literal da metafora base/superestrutura, que no marxismo class ico conferia o dominio f/Jdas^ideias e significados as "sjarjerestruturas^T concebidas " r r

como meros reflexos determinados de maneira simples pelabase, e sem qualquer efetividade social propria. Quer dizer,o araumentgde Williams e dirifiido contra um

i-O

vulgar e um determinismp economico. Ele oferece, em seulugar, um interacionismo radical: a interacao mutua de todasas praticas, contornando o problema da determinacao. Asdistincoes entre as praticas sao superadas pela visao detodas elas como formas variantes de praxis — de uma ativi-dade e energia humanas genericas. Os padroes subjacentesque distinguem o complexo das praticas numa sociedade espe-cifica em determinado periodo sao "formas de organizacao"caracteristicas que embasam a todas e que, portanto, podemser tracadas em cada uma delas.

Var;as revisoes radicals dessa primeira postura tern ocor-rido: e cada qual tem contribuido muito para a redefinicaodaquilo que os Estudos Culturais sao ou deyerianx.sei^Jarecpnhecemos a natureza exemplaFdo^rjrQJeto .... de ! Willia ms .de _rep_ensar e rever consfantem£nte_aj;gumentos mais antigos— de continuar pensando. Contudo, somos surpreendidospor uma~Tiflnir33^c^nti^^ nessas revisoesSjejninais. Um desses momentos ~€ aquele em que^WuTiamsreconhece o trabalho de Lucien Goldmann e, atraves deste,do conjunto de pensadores marxistas que haviam dado atencaoparticular as formas superestruturais e cuja obra comecara,pela primeira vez, a aparecer em traducoes inglesas em meadosda decada de I960. E nitido o contraste entre essas tradicoes

137

Page 72: Da Dispora - Stuart Hall

marxistas alternativas que sustentaram autores como Goldmanne Lukacs, se comparado a posicao isolada de Williams e atradicao marxista empobrecida da qual ele se valera. Masos pontos de convergencia — tanto aquilo a que se opoemquanto aquilo a que se referem — sao identificados demaneiras que nao divergem inteiramente de seus argumentosanteriores. Aqui esta o ponto negative, que ele percebe comoa ligacao de seu trabalho com o de Goldmann:

Passei a crer que tinha que abandonar, ou pelo menos deixarde lado, aquilo que eu conhecia como tradicao marxista: atentativa de desenvolver uma teoria da totalidade social; vero estudo da cultura como o estudo das relacoes entre oselementos numa forma inteira de vida; encontrar meios deestudar a estrutura ... que pudessem manter contato comformas e obras de arte especificas e ilumina-las, mas tambemcom as formas e relacSes de uma vida social mais geral;substituir a formula da base e superestrutura pela ideia maisativa de urn campo de forcas mutuas senao irregularmentedeterminantes.10

E aqui o ponto positive — em que se marca a convergenciaentre a "estrutura de experiencia" [structure of feeling] deWilliams e o "estruturalismo genetico" de Goldmann;

Descobri em meu proprio trabalho que eu tlnha que desen-volver a ideia de uma estrutura de experiencia ... Mas aidescobri Goldmann partindo ... de um conceito de estruturaque continha em si mesmo uma relacao entre os fatos social eliterario. Essa relacao, insistia ele, nao era uma questao deconteudo, mas de estruturas mentais: "categorias que simulta-neamente organizam a consciencia empirica de um gruposocial especifico e o mundo imaginative criado pelo escritor".For definicao, essas estruturas nao sao individualmente criadas,mas sim coletivamente.11

A enfase dada all a interatividade das praticas e as totalidadessubjacentes, bem como as homologias entre elas, e caracte-ristica e significativa. E continua: "A correspondent emtermos de conteudo entre um escritor e seu mundo e menossignificante do que essa correspondent em termos de orga-nizacao, de estrutura."

138

Um segundo momento e o ponto emjque^WUliams real-mente leva em conta a critica de E. P. C[hompso^) sobre TheLong Revolution?2 segundo a qual nenhum "modo de virlaglobal" existe sejn^ua_dimensao de luta e confronto commodes de vida opostos, e tenta repensar as questoes-chave

^e^etermina^ao e de dominacao atraves do conceito 3e~rTege^~monia de Gramsci. Esse^ensaio^— "Base and Superstructure inMarxist Cultural Theory"13 — e seminal, especialmente por suaelaboragao sobre as praticas culturais dominantes, residuals eemergentes e seu retorno a problematica da determinacaocomo "limites e pressoes". Contudo", a enfase anterior voltacom forca: "nao podemos separar literatura e arte de outrostipos de praticas socials, de forma a sujeita-las a leis especi-ficas e distintas". E "nenhum modo de producao e, por conse-guinte, nenhuma sociedade dpminante ou ordem social e,portanto, nenhuma|cultura dominant^) de fato. esgota a pratica.

^aenergia e a intencao hunianas"7 E esta nota vai alem — narealidade, e radicalmente acenfuada — na mais recente esucinta defesa a sua posicao: Marxismo e literatura.14 Emoposigao a enfase estruturalista na especificidade e auto-nomia^das praticas e sua separacao analitica das sociedarieserrjJnstanciag_dis]mtas. a enfase de Williams recai sobre a"atividade constitutiva" em geral, sobre a "atividade humanasensual, enquanto pratica", da primeira "tese" de Marx sobreFeuerbach; sobre as diferentes praticas concebidas como"pratica indissoluvel em seu todo"; e sobre a totalidade.

Logo, ao contrario de um desenvolvimento no marxismo, naoe a base e a superestrutura que precisam ser estudadas, masprocesses reais especificos e indissoliiveis, dentro dos quaiso relacionamento decisive, de um ponto de vista marxista, eaquele expresso pela ideia complexa de determinacao l5

Em um dado nivel, pode-se dizer que o trabalho deXhnmps&n convergem em torno dos termos

da mesma problematica, atraves da operagao de uma teorUzacaojviolenta e esqueniaticamentejiicotomica. Q fundamentoorganizador da obra de Thompson — as classes enquantorelacoes, a luta popular, as formafoes historicas de consciencia,as culturas de classe em sua particularidade historica —e alheio ao modo mais reflexive e "generalizador" como

139

Page 73: Da Dispora - Stuart Hall

Williams tipicamente trabalha. E o dialogo entre eles comegacom um encontro brusco. A revisao de The Long Revolution,empreendida por Thompson, fez duras cobrancas a Williamsnor seu modo evolucionista de conceber a cultura como"uma forma inteira de vida"; por sua tendencia a absorveros conflitos entre as cuituras de classe aos termos de uma"conversacao" ampliada; por seu torn impessoal — acimadas classes concorrentes, por assim dizer; e pelo alcanceimperializante de seu conceito de "cultura" (que, de formaheterogenea, tudo abarca em sua orbita, pois tratava-se doestudo dos inter-relacionamentos das formas de energia eorganizacao subjacentes a todas as praticas. Mas nao era ai— perguntava Thompson — que a historia entrava?). Poucoa pouco, podemos ver como Williams persistentementerepensou os termos de seu paradigma original para levar emconta tais criticas — embora isso se realize (como ocorre taofrequentemente em Williams) obliquamente: pela via de umaapropriacao especifica de Gramsci, em vez de uma modifi-cacao mais direta.

Thompson tambem opera com uma distincao mais "classica"do que o faz Williams entre ser social e consciencia social(termos que prefere muito mais aos conhecidos "base e supe-restrutura"). Logo, onde Williams insiste na absorcao detodas as praticas a uma totalidade da "pratica real e indisso-luvel", Thompson lanca mao de uma distincao mais antigaentre o que e "cultura" e o que "nao e cultura". "Qualquerteoria da cultura deve incluir o conceito de interacao diale-tica entre cultura e algo que nao e cultura". Ainda assim,a definicao de cultura nao esta tao distante daquela deWilliams:

Devemos supor que a materia-prima da experiencia de vidase localiza em um polo, e todas as disciplinas e sistemashumanos infinitamente complexos, articulados e desarticulados,formalizados em instituicoes ou disperses em modos menosformais, os quais "lidam com", transmitem ou distorcem essasmaterias-primas, estariam situados em outro polo.16

De forma semelhante, a respeito do carater comum da praticaque subjaz a todas as praticas distintas, ele afirma: "E noprocesso ativo — que 6 ao mesmo tempo o processo pelo

qual os homens fazem sua historia — que insisto."17 E as duasposicoes se aproximam em torno — de novo — de distintospontos negatives e positives. Ne^a^tyjmj£nle^cQntra^a. meta-fora ''base/sup^exesuiuxuxa.1' e uma definicao reducionista oueconomicistade determinacao. Sobre a primeira: "A relac.aodialetica entre o ser social e a consciencia social — ouentre 'cultura' e ln«o-cuitura' — esta no amago de qualquercompreensao do processo historico dentro da tradicao mar-xista... A tradicao herda uma dialetica que e certa, mas ametafora mecanica especifica que a expressa esta errada.Derivada da engenharia civil, essa metafora ... deve, emqualquer caso, ser inadequada para descrever o fluxo doconflito, a dialetica de um processo social em mudanca...Todas as metaforas que saq_gejalmentg-apresentad^gjdm umatg^dgricj^^a__cond.u_2ir__a jtnente a modos_esqjje^naticj3.s._e,afasta^la_jd^_jnteracjip da consciencla-de-ser". E sobre oreducionismo: "O reducionismo e urrrHpso~na~16gica histo-rica pelo qual acontecimentos politicos e culturais sao 'expli-cados' efn termos das afiliagoes de classe dos seus atores...Mas a mediacao entre 'interesse' e 'crenga' nao passa pelo'complexo das superestruturas' de que fala Nairn, mas pelasproprias pessoas."18 E mais positivamente — uma simples afir-macao que pode ser considerada como definicao de quasetoda a obra historica de Thompson, retirada de Aformafaoda classe operdria inglesa, ate Whigs and Hunters, A miseriada teoria™ — e mais alem:

A sociedade capitalista fundou-se sobre formas de explorafSoque sao ao mesmo tempo economicas, morais e culturais.Tomemos a definifao essencial de relacionamento produtivo... se a invertermos ela se revelara ora sob um aspecto (otrabalho assalariado), ora sob outro (um ethos aquisitivo), orasob outro ainda (a alienacao dessas faculdades intelectuais comoaLgo nao necessario ao trabalhador em sua fun^ao produtiva.20

Aqui, entao, a despeito de varias diferencas importantes,esta o_esbcic^__de uma Hnha significativa de pensamento dos

<QEstudos_Culturaisj) dir-se-ia, fa paradigma^omlnante\ Ele seopoe ao papel resLdu^^_de_nierg_reflexo atribuido aoj^cul^tural". Em suas varias formas, ele conceitua a cultuj-a como

se entrelaj:a a todas as praticas sociais; e essas

140 141

Page 74: Da Dispora - Stuart Hall

praticas, por sua vez, como uma forma comum de atividadeJuimana: como praxis sensual TJumana, como a ativTcTarr^atraves da qual~homens e mulheres fazem a historia. Talparadigma se opoe ao esquema base-superestrutura deformulacao da relacao entre as forcas ideais e materials,especialmente onde a b^se_eude£ijiida-CQmo-jjetermiria$a opelo-"economico", em um sentido simples. Essa linha depensamento prefere a formulacao maisarjapla — a dialetica'_ ^ . J^^-_ A _ r_

J_ | i ———- .1

Centre o ser e a consciencia social: inseparaveis em seus polosdistintos (em algumas formulacoes alternatives^ a dialeticaentre "cultura" e "nao-cultura"). Ela define ^hu^oojnesmotemfjo^omo os sentidos e valores que nascem^entre_j^_classesegrupos sociais diferentes, comjjase em_s,iia.s relacoesecondicoes^lTtstoricas, rjej£s_c|uaJs-eie^JUdam_com suasconcU£oes_de_existencia e respondem a estas; e tambem comoas trad i goes e praticas vjyidas atraves das quais esses "enteji-dimentos" saQ_expresso.s._g nos quais estao incorporados.Williams junta esses dois aspectos — definicoes e modos devida — em torno do proprio conceito_de.cultura. Thompson1 1 -•n»BBH«aiissasisSSBiigS£HSS3^=s" *reune os dois elementos — consciencia e condicoes — emtorno do conceito de "experiencia". Ambas as posicoesenvolvem certas oscilacoes complicadas em torno dessas

alavras-chave. Wilhams^absorve tao compJetamente asMefinic6es^_cle_experiencia^) ao nosso s^rnodo_de_vida^) e

*$> amBosiem uma indissoluvel gratica^em-geral, £ealernaterial f

ITpontcrcle "pefclerde-vista qualque^cUsjy^aojentrg^" cultura^e"ariao-cultura''. Thompson, as vezes, utiliza "experiencia"no sentido mais comum de consciencia, como os meioscoletivos pelos quais os homens "lidam com, transmitemou distorcem" suas condicoes de vida, a materia-prima davida; as vezes como o dommio do "vivenciado", o meio-termo entre "condicoes" e "cultura"; e as vezes como as pro-prias condicoes objetivas — as quais sao contrapostos certos

/ modos particulares de consciencia. Mas, quaisquer que sejamos termos, ambas as posicoes tendem a ler as_estruturas dasrelacoes em termos de como estas sao "vividas" e "experi-mental"lasTA "estrutura de experiencia" [structure of feeling]williamsiana — com sua deliberada condensacao de ele-mentos aparentemente incompativeis — e algo caracteristico.Mas o mesmo € valido para Thompson, a despeito de seuentendimento muito mais historico do carater de gratuidade

142

e de estruturacao das relacoes e condicSes nas quaishomens e mulheres, de-^modo necessario e involuntario, seinsereni; e de sua atencaxS mais clara a "determinacao" exer-cida pelas relacoes de producao e de exploracao sob o capi-talismo. Isso ocorre como conseqiiencia de uma atribuigaotao central ao papel da experiencia e da consciencia culturalna analise. Atrofao da experiencia nesse paradigma e a enfasedada ao criativo e ao agenciamento historico constituem osdois elementos-chave no humanismo dessa posicao. Conse-quentemente, cada qualcprifere a "experiencia" uma posicaoautenticadora errrqualquer analise cultural. Ijm ultima aria-Use, trata-se de onde e como as pessoas experimentam suascondigoes^ de yida,L com^^^e£inem_e_a-^lj^_xg3pondeJB_g_

^quej_para Thompson, vai definir•arazao de cada modo deproclucaoser tambem uma cultura. e cada luta entre as classesser sempre uma luta entre modalidades culturais; e isto, paraWilliams, constitui aquilo que, em ultima instancia, a analisecultural deve oferecer. Na gexperiencia^)todas^s^rxaticas,jg i_e.njjgcruzam; dentro da^'cultura" todas as praticas interagem— ainda que_de-£cmna desigual e mutuamente determinante.Nesse sentido a totalidade cultural — do processo historico 'em seu conjunto — ultrapassa qualquer tentativa de mantera distincao entre as rnstancias e elementos. A verdadeiraconexao entre estes, sob certas condicoes historicas, deveser acompanhada pelo movimento totalizador "no pensa-mento" durante a analise. Tal percepcao estabelece paraambos os mais fortes protocolos contra qualquer forma deabstracao analitica que distinga as praticas ou que se proponhaa testar o "verdadeiro movimento historico" em toda a suaparticularidade e complexidade articulada por qualqueroperacao logica ou analitica de maior envergadura. Taisposicoes, especialmente em suas versoes historicas maisconcretas (Aformacao, O campo e a cidade) sao o contrarioda busca hegeliana das essencias subjacentes. Contudo, porsua tendencia a reduzir as praticas a praxis e descobrir"formas" comuns e homologas subjacentes as areas aparente-mente mais diferenciadas, seumovimentCLe "essencializante".Possuem uma forma especifica de compreender a totali^cle.— embora esta seja com um "t" minusculo, seja concreta ehistoricamente determinada, irregular em suas correspon-dencias. Essas posicoes a compreendem "expressivamente"

143

Page 75: Da Dispora - Stuart Hall

E uma vez que constantemente modulam a analise maistradicional na direcao do nivel_experiencial ou interpretamas outras estruturas e relates de cima para baixo, do pontode vista de como estas sao "vividas", essas posicoes saopropriamente (mesmo que nao adequada ou inteiramente)caracterizadas como "culturalistas" em sua enfase: mesmoquando todas as advertencias ou restricoes a "teorizacaodicotfimica" por demais rapida tenham sido feitas.21

A vertente^jcjjlturalista nos Estudos Culturais foi interrom-p|da_2ela_diegada dos estrutufafismos ap cenario. Possivel-mente mais diversfficatios~que"os~ciTlfuralismos, eles todaviacompartilham de certas orientacoes e posicoes que tornamsua designacao sob um unico titulo nao totalmente equivo-cada. Nota-se que, embora o paradigma culturalista possaser definido sem se recorrer a uma referenda conceitual aotermo "ideologia" (a palavra, e claro, aparece, mas nao e umconceito-chave), ajjjmejyerig^s^ejjr^^mente articujajdaj^jGaJXHm)^esse conceito: em concordanciacom sua linhagem mais impecavelmente marxista, "cultura"nao figura ai tao proeminentemente. Embora isso possa serverdadeiro para os estruturalistas marxistas, e, na melhordas hip6teses, menos da metade da verdade a respeito daempreitada estruturalista. Mas agora e um erro comum con-densar esse ultimo apenas em torno do impacto causadopor Akhusser e tudo o que se seguiu na onda de sua inter-vencao — onde a ideologia teve um papel seminal, mas modu-lado — e omitir a importancia de Levi-Strauss. Contudo, emtermos estritamente historicos, foram Levi-Strauss e a semio-tica inicial que operaram a primeira ruptura. E embora osestruturalismos marxistas os tenham suplantado, seu debito(freqiientemente rechacado ou degradado a notas de pe depagina, na busca por uma ortodoxia retrospectiva) para coma obra de Levi-Strauss_fqi e continua sendo enorme. Foi oestrujjjmlismo_jie|'Levi-Strauss\quiet em sua apropriacao do,p_aradi^ma linguistico, apos Saussure, ofereceujis "cienciashumanas da cultura" a promessa~3'e"um paradigma capaz detorna-las cientificas e rigorosas de uma forma inteiramente

-n_ov!;_E quando, na obra de Althusser, os temas marxistas"mais classicos foram recuperados, Marx continuou sendo "lido"— e reconstituido — pelos termos do paradigma lingiiistico.Em Lendo O Capital, por exemplo, argumenta-se que o modo

144

de produ^ao — cunhando a expressao — poderia ser melhorcompreendido como "estruturado como uma linguagem"(atraves da combinagao seletiva de elementos invariantes).A enfase aist6rica e sincronica, contrariamente as valoracoeshistoricas do "culturalismo", advinha de uma fonte semelhante.Assim tambem uma preocupagao com "o social, sui generis— usado nao como adjetivo, mas como substantive: um usoque Levi-Strauss derivou nao de Marx, mas de Durkheim(o Durkheim que analisou as categorias sociais de pensa-mento — por exemplo, em Formasprimitivas de classifica$do— em vez do Durkheim de Da divisdo do trabalbo social,que se tornou o pai fundador do funcionalismo estrutural

americano.).Por vezes, Levi-Strauss_t)rincou com certas formulacoes

marxistas. Assim, "o marxismo, senao o proprio Marx, comfreqiiencia excessivafjjsou uma logica que pressupunha queas praticassucedessem cUretamente a pjraxis. Sem questionara indubitavel primazia das infra-estruturas, creio que hasempre um mediador entre a praxis e as praticas, qual seja, oesquema conceitual cuja operacao concretiza como estru-turas a materia e a forma, ambas desprovidas de qualquerexistencia independente, isto e, faz delas entidades tantoempiricas quanto inteligiveis." Mas isso, para cunhar outrotermo, foi basicamente um "gesto". Esse estruturalismo compar-tilhou com o culturalismo a ruptura radical com os termosda metafora base/superestrutura, derivada de A ideologiaalema. E embora fosse "a essa teoria das superestrutruras,quase intocada por Marx" que Levi-Strauss aspirava a contri-buir, sua contribuicao significou uma ruptura radical em todoo seu termo de referenda, assim como fizeram definitiva eirrevogavelmente os culturalistas. Aqui — e devemos incluirAlthusser nessa caracterizacao — Umto os culturalistasquanto^s^st^lur^lista^s^t^bujram aos_domlnios^ a.te^ entaodefinidos como " superestruturais" tal especificidag^e_eficacia,,.taf^rlrnazia constitutiva, que os empurrou para alem dosterm^^e^r^ex^cia..da,"base.lfeJLsupete . LevPSTrausse Althusser eram tambem anti-reducionistas e antieconomi-cistas em suas formas de raciocinio, e atacaram criticamenteaquela causalidade transitiva que, por tanto tempo, havia sepassado como "marxismo classico".

145

Page 76: Da Dispora - Stuart Hall

TevkStrauss trabalhou consiste.nteme_n_te com o termo4j.?^^gc ' ™ ' * ' ~ "~"~ ~——-— --*. ,

3$- Ele considerou as "ideologias" algo de bem menorirnprtlncia: meras "racionalizacoes secundarias". ComoWilliams e Goldmann, trabalhou nao no nivel das corres-pondencias entre o conteudo de uma pratica, mas no nivel desuas formas e estruturas. Pore"m, a maneira como elas foramconceitualizadas era diferente do "culturalismo" de Williamsou do "estruturalismo genetico" de Goldmann. Essa diver-gencia pode ser identificada de ire's modos distintos. Prjmeiro,jle conceituou "cultura" como as^categorias^e^quadrQSjlej^fe-rencia lingiiisticos e de pensamento atraves dps^giiajs_a.s_dife-rentes socie^atieTTt^jficam^s.uas^cQJldidoes de existencia— sobretudo (ja que Levi-Strauss era antropologo), as relacoesentre os mundos humano enatural . Segundo, pensou emcomo essas categorias e referenciais mentais eram produzidose transformados, em grande parte a partir de uma analogiacom as maneiras como a propria linguagem — o principalmeio da "cultura" — operava. Identificou o que era especificoa elas e a sua operacao enquanto "producap de sentido":eram, sobretudo. praticas_sismficantes. Terceiro, depois de terflertado inicialmente com as categorias sociais do pensamentode Durkheim e Mauss, ele abandonou praticamente a questaoda relac.ao entre praticas significantes e nao-significantes —entre "cultura" e "nao-cultura", para usar outros termos —para dedicar-se as relacoes existentes no interior de praticassignificantes por meio das quais as categorias de sentido eramproduzidas. Isso deixou a questao da determinacao, da tota-lidade, em grande parte em suspenso. A logica causal dedeterminacao foi abandonada em favor da causalidade estru-turalista — uma logica do arranjo, das relacoes internas, daarticulacao das partes dentro de uma estrutura. Cada umdesses aspectos tambem esta positivamente presente na obrade Althusser e dos estruturalistas marxistas, mesmo quandoos termos de referenda haviam sido refundamentados na"imensa revolucao teorica" de Marx. Em uma das formulacoesseminais de Althusser sobre a ideologia — definida em temas,conceitos e representacoes atraves das quais os homense mulheres "vivem", numa relacao imaginaria, sua relacaocom suas condicoes reais de existencia —22 podemos ver oesqueleto dos "esquemas conceituais" de Levi-Strauss "entrea praxis e as praticas". As "ideologias" sao aqui concebidas

146

nao como conteudos e formas superficiais de ideias, mas comocategorias inconscientes pelas quais as condicoes sao repre-sentadas e vividas. Ja comentamos sobre a presenca ativa,no pensamento de Althusser, do paradigma lingiiistico — osegundo elemento identificado acima. E embora, no conceitode "sobredeterminacao" — uma de suas contribuicoesmais originais e fruttferas — Althusser tenha retornadoaos problemas das relacoes entre as praticas e a questao dadeterminacao (propondo, incidentalmente, uma reformulacaointeiramente nova e altamente sugestiva, que recebeu muitopouca atencjao subseqiiente), ele tendeu a reforcar a "auto-nomia relativa" das diferentes praticas e suas especificidadesinternas, condicoes e efeitos as custas de uma concepcao"expressiva" da totalidade, com suas homologias e corres-pondencias tipicas.

Alem dos universes intelectuais e conceituais totalmentedistintos dentro dos quais esses paradigmas alternatives sedesenvolveram, havia certos pontos onde, apesar de suassuperposigoes aparentes, o ajlturaiismoe o^ estmturalismo

_s_e cpntraslavam nitidamente. Podemos identificar essacontrap6si£ao em urn deseus pontos mais agudos, precisa-mente em torno do conceito de "experiencia" e no tocante aopapel que o termo exerceu em cada perspectiva1 Enquantono "culturalismo" a experiencia era o solo — o^terreno do"viyidol— em que interag^am_a c^i^j.CLao^eacpnsciencia,oestruturalfcmn insistia qite aj^ Opoderia s^r^fujidarnento de coisa ajguma, pois so se_poc]ia"viver^ e experimentar as proprias..c.Qndicoejj.^g?l?rQ^ atraves^de categc>rias, classifica^oes e quadrqs clej-eferencia dacultura. Essas categorias, contudo, nao surgiram a partirda experiencia ou nela: antes, a experiencia era um "efeito"dessas categorias. Os culturalistas haviam definido comocoletivas as formas de consciencia e cultura. Mas ficaramlonge da proposicao radical segundo a qual, em cultura elinguagem, o sujeito era "falado" pelas categorias da culturaem que pensava, em vez de "fala-las". Tais categorias naoeram, entretanto, somente coletivas, ao inves de individuals:eram, para os estruturalistas, estruturas inconscientes. E porisso que, embora Levi-Strauss falasse somente de cultura,seu conceito forneceu a base para a facil traducao para aestrutura conceitual da ideologia feita por Althusser:

Sistema Tntegradode Bibliotecas/UFES

147

Page 77: Da Dispora - Stuart Hall

Ideologia e na verdade um sistema de representacoes mas namaioria das vezes, essas representa^oes nao tern nada a'vecom a consciencia ... € como estruturas que elas se impoem aampla maioria dos homens, nao via consciencia .... e dentrodesse inconsciente ideologico que os homens conseguemalterar as experiencias vividas entre eles e o mundo e adquiremuma nova forma especifica de inconsciente, que se chamaconsciencia.^

uma fonte autenticadora, mas cgjnojjm efeitoj nao como umreflelfo"cIo~reaT7nias como uma "reiac.ao imaginaria". Faltavabem pouco — apenas o passo que separa A favor de Marx doensaio "Aparelhos ideologicos de Estado" — para o desen-volvimento de um relate de como essa "relacao imaginaria"servia nao meramente ao dommio de uma classe gover-nante sobre uma classe dominada, mas (pela reproducaodas relacoes de producao e a constitui£ao de uma forga detrabalho adequada a exploracao capitalista) a ampla repro-ducao do proprio modo de producao. Muitas das demaislinhas de divergencia entre os dois paradigmas fluem desteponto: a concepgao dos "homens" como portadores dasestruturas que os falam ou situam, em vez de agentes ativosna construcao de sua propria historia; a enfase sobre a"logica" estrutural, em vez da historica; a preocupacao com aconstitui^ao — em "tese" — de um discurso cientffico nao-ideologico; e dai o privilegio do trabalho conceitual e daTeoria como algo garantido; a remodelac.ao da historia comouma marcha de estruturas: ... [Ver A miseria da teoria] a"maquina" estruturalista...

Nao ha como seguir as varias ramificagoes que surgiramem um ou outro desses grandes paradigmas dos EstudosCulturais. Embora de nenhum modo deem conta de todasou mesmo de quase todas as estrategias adotadas, eles defi-niram as principals bases de desenvolvimento do campo. Osdebates seminais foram polarizados em torno de suas tema-cicas e alguns dos melhores trabalhos concretes surgiram dosesforc.os que se fizeram por operacionalizar um ou outroparadigma em problemas e materiais especificos. Dado oclima sectario e autocomplacente do trabalho intelectualcritico na Inglaterra, junto com sua marcante dependencia

e de se esperar que os argumentos e debates tenham

148

sido mais frequentemente polarizados nos seus extremes.Neles, tais argumentos e debates muitas vezes aparecemsomente como meros reflexes ou inversoes um do outro. Aqui,as principals apologias que viemos trabalhando — em consi-dera^ao a uma exposicao adequada — tornam-se uma prisaopara o pensamento.

Sem sugerir que haja qualquer sintese facil entre os dois,convem dizer neste ponto que nem o "culturdismo" nem o"estruturaligrjoo", em suas atuais manifestacoes, se adaptama tarefa de c o r s t r . u e t u d o u t u r a

Mesmoassim, algo importante emerge da comparacao rudimentarentre suas respectivas forc.as e limitacoes.

A grande vantagem dos estruralismos e a enfase dada as"condi^oes determinadas". Eles nos lembram de que, em qual-quer analise, a nao ser que se mantenha realmente a diale-tica entre as duas metades da proposi^ao segundo a qual "oshomens fazem a historia ... com base em condicoes que naoescolhem", o resultado sera inevitavelmente urn humanismoingenuo, com sua necessaria conseqiiencia: uma pratica poli-ticaPvoTuntarista e populista. Nao se deve permitir que o fatode os homens poderem se tornar conscientes de suas con-dicoes, se organizar para lutar contra elas e, ate mesmo,transforma-las — sem o que e impossfvel conceber, muito menospraticar, qualquer politica ativa — apague a consciencia deque, nas relacoes capitalistas, homens e mulheres sao colo-cados e posicionados em relacoes que os constituem comoagentes. "Pessimismo do intelecto e otimismo da vontade" eum ponto de partida melhor do que uma simples afirmagaoheroica. O estruturalismo nos possibilita comegar a pensar —como insistia Marx — as rela$ oes de uma estrutura em outrostermos que nao as reduzam as relacoes entre as "pessoas".Esse era o nivel de abstracao privilegiado por Marx: aqueleque Ihe permitiu romper com o ponto de partida obvio, masincorreto, da "economia politica" — os meros individuos.

Mas isso se Hga a uma segunda vantagem: o reconheci-mento pelo estruturalismo nao so da necessidade de abstracaocomo instrumento do pensamento pelo qual as "relates reais"sao apropriadas, mas tambem da presenca, na obra de Marx,de um movimento continuo e complexo entre diferentes nweis

149

Page 78: Da Dispora - Stuart Hall

de abstragao. Tambem e verdade, como os culturalistas argu-mentam, que, na realidade historica, as praticas nao apa-recem nitidamente separadas em suas respectivas instancias.Entretanto, para pensar ou analisar a complexidade do real,e necessaria a pratica do pensar e isso requer o uso do poderda abstracao e analise, a formacao de conceitos com as quaisse pode recortar a complexidade do real, com o proposito derevelar e trazer a luz as relacoes e estruturas que nao podemse fazer visiveis ao olhar nu e ingenuo, e que tambem naopodem se apresentar nem autenticar a si mesmas. "Na analisedas formas economicas, nao podemos recorrer nem ao micros-copic, nem aos reagentes quimicos. O poder da abstracao devesubstituf-los." De fato, o estruturalismo frequentemente levouessa proposicao ao extremo. Uma vez que o pensamento eimpossivel sem o "poder da abstracao", o estruturalismoconfunde isso, dando primazia absoluta a formacao deconceitos — e somente no nivel de abstrafao mais alto emais abstrato: a Teoria com "T" maiusculo, entao, se tornajuiz e juri. Mas isso significa, precisamente, perder de vista oinsight conquistado a partir da propria pratica de Marx. Por-que esta claro, por exemplo, em O capital, que o metodo —embora claramente tenha lugar "no pensamento" (e onde maisocorreria? perguntava Marx na Introducao de 1857)2^ — naose apoia sobre o simples exercicio da abstracao, mas sobre omovimento e as relacoes que o argumento constantementeestabelece entre os diferentes niveis de abstracao: em cadaum, as premissas que estao em jogo devem ser distinguidasdaquelas que — em considerable ao argumento — tern deser sustentadas permanentemente. O movimento em direcaoa um novo nivel de grandeza (para usar a metafora do micros-copic) requer a especificacao de outras condicoes de exis-tencia ainda nao disponiveis em um nivel anterior maisabstrato: desse modo, por sucessivas abstracoes de diferentesmagnitudes, mover-se em direcao a constituicao, a reprodufaodo "concrete no pensamento" como efeito de um certa formade pensar. Esse metodo nao e apresentado adequadamentenem no absolutismo da Pratica teorica do estruturalismo, nemna posicao de antiabstracionismo de Miseria da teoria (deE. P. Thompson), em direcao a qual o culturalismo parece tersido dirigido ou se dirigiu, como resposta. Mesmo assim, se

150

mostra intrinsecamente teorico e deveria se-lo. Aqui, a insis-tencia do estruturalismo de que o pensamento nao reflete arealidade, mas se articula a partir dela e dela se apropria, £um ponto de partida obrigatorio. Uma perlaboracao ade-quada das conseqiiencias desse argumento pode comecar aproduzir um metodo que nos livre das permanentes oscilacoesentre abstracao/antiabstracao e das faisas dicotomias entreTeoricismo versus Empirismo, que marcaram, bem como desfi-guraram, o encontro entre o culturalismo e o estruturalismoate agora.

O estruturalismo tern outra vantagem, na sua concepcaodo "todo". Embora o culturalismo sempre insista na particu-laridade radical de suas praticas, em certo sentido, seu modode conceituar a "totalidade" tem por tras algo da complexasimplicidade de uma totalidade expressiva. Sua complexi-dade e constituida pela fluidez com que certas praticas sesobrepoem: mas essa complexidade e redutivel conceitual-mente a "simplicidade" da praxis — a atividade humanaenquanto tal — em que as mesmas contradicoes constante-mente aparecem e de modo homologo se refletem em cadauma delas. O estruturalismo vai longe denials ao erigir a ma-quinaria da "Estrutura", com suas tendencias autogeradoras(uma "eternidade spinoziana", cuja funcao e somente a somade seus efeitos: um verdadeiro desvio estruturalista), equi-pada com suas instancias especificas, Mesmo assim, repre-senta um avanco em relacao ao culturalismo na concepcaoque este tem da necessaria complexidade da unidade de umaestrutura (sobredeterminacao e uma forma mais bem-suce-dida de pensar essa complexidade do que a combinatoriainvariante da causalidade estruturalista). Mais ainda, por suacapacidade conceitual de pensar uma unidade que seja cons-truida atraves das diferengas, e nao das homologias, entre aspraticas. Aqui de novo se logrou uma intuicao critica acercado metodo de Marx: podemos pensar nas varias passagenscomplexas da Introducao de 1857 aos Grundrisse, ondeMarx demonstra como e possivel pensar a unidade de umaformacao social como algo que se constroi a partir da dife-renga e nao da identidade. Obviamente, a enfase na diferencapode ter levado ou levou os estruturalismos a uma heteroge-neidade conceitual fundamental, em que todo sentido de

151

Page 79: Da Dispora - Stuart Hall

estrutura e totalidade se perde. Foucault e outros pos-althusserianos tomaram esse caminho tortuoso em direcaoa autonomia absoluta, nao a relativa, das praticas, atravesda postulate de sua necessaria heterogeneidade e da sua"nao-correspondencia necessaria". Mas a enfase na unidade-na-diferenca, na unidade complexa — a "unidade de multiplasdeterminates" que define o concrete em Marx — pode sertrabalhada numa outra e, em ultima instancia, mais frutiferadirecao: a problematica da autonomia relativa e da "sobrede-terminacao", e o estudo da articula$ao. De novo aqui, articu-lacao e algo que corre o risco de um alto formalismo. Maspossui a grande vantagem de nos possibilitar pensar comopraticas especificas (articuladas em torno de contradicoes quenao surgem da mesma forma, no momento e no mesmo ponto)podem todavia ser pensadas conjuntamente. O paradigmaestruturalista, se desenvolvido corretamente, nos permite,de fato, conceituar a especificidade de praticas diferentes(analiticamente diferenciadas e abstraidas), sem perder devista o conjunto por elas constituido. O culturalismo afirmaconstantemente a especificidade de praticas diferentes — a"cultura" nao deve ser absorvida pelo "economico": mas Ihefalta uma maneira adequada de estabelecer essa especifici-dade teoricamente.

A terceira vantagem que o estruturalismo exibe reside emseu descentramento da "experiencia" e seu trabalho originalde elaboracao da categoria negligenciada de "ideologia". Edificil conceber um pensamento em Estudos Culturais dentrode um paradigma marxista que seja inocente da categoria de"ideologia". E claro, o culturalismo constantemente se referea esse conceito: mas ele de fato nao se situa no centro de seuuniverse conceitual. O poder autenticador e a referenda da"experiencia" impoem uma barreira entre o culturalismo e umaconcepcao adequada de "ideologia". Contudo, sem ele, a efi-cacia da "cultura" para a reproducao de um modo especificode producao nao pode ser compreendida. E verdade que hauma tendencia marcante nas concepcoes mais recentes de"ideologia" de dar a ela uma leitura funcionalista — comoo cimento necessario da formacao social. A partir dessaposicao, e de fato impossivel — como o culturalismo afirmariacorretamente — conceber tanto as ideologias que nao sao,por definicao, "dominantes" ou a ideia de luta (o surgimento

152

desta no famoso artigo da AIE de Althusser foi — paracunhar ainda outro termo — basicamente "um gesto"). Con-tudo, tern sido feito um trabalho que sugere formas pelasquais o campo da ideologia pode ser adequadamenle conce-bido como um terreno de lutas (pela obra de Gramsci e, maisrecentemente, de Laclau)25 e estes tern referenciais estrutu-ralistas, em vez de culturalistas.

As vantagens do culturalismo podem ser derivadas dasdeficiencias da posicao estruturalista ja notadas acima e deseus silencios e ausencias estrategicas. Ele insistiu, correta-mente, no momento afirmativo de desenvolvimento da orga-nizacao e da luta consciente como elemento necessario aanalise da historia, da ideologia e da consciencia: contraria-mente ao seu persistente rebaixamento no paradigma estru-turalista. De novo, e Gramsci, em boa parte, que nos forneceum conjunto de categorias mais refinadas atraves das quaispodemos vincular as categorias Culturais em grande parte"inconscientes" e ja dadas do "senso comum" com a formacaode ideologias mais ativas e organicas, que sao capazes deintervir no piano do senso comum e das tradicoes popularese, atraves de tais intervencoes, organizar as massas de homense mulheres. Nesse sentido, o culturalismo restaura adequada-mente a dialetica existente entre o inconsciente das categoriasCulturais e o momento de organizacao consciente: ainda que,de maneira caractenstica, ele tenda a igualar a excessivaenfase do estruturalismo sobre as "conduces" com uma enfasedemasiado inclusiva sobre a "consciencia". Portanto, o cultu-ralismo n^o apenas recupera — como momento necessariode qualquer analise — o processo por meio do qual asclasses em si, definidas principalmente pela forma atravesda qual as relacoes economicas posicionam os "homens"como agentes, se tornam forcas politicas e historicas ativas— para-si — mas tambem requer que — contra seu propriobom senso antite6rico — ao ser adequadamente desenvol-vido, cada momento seja entendido em termos do nivel deabstracao em que a analise esta operando. Mais uma vez,Gramsci comeca a apontar o caminho entre essa falsa polari-zacao, em sua discussao da "passagem entre a estrutura e aesfera das superestruturas complexas", e suas diferentesformas e momentos.

153

Page 80: Da Dispora - Stuart Hall

Nos concentramos aqui, principalmente, na caracterizacaodaquilo que nos parece constituir os dois paradigmas seminaisem acao nos Estudos Culturais. Obviamente, eles nao sao osunices paradigmas ativos. Novos desenvolvimentos e linhasde pensamento nao estao adequadamente captados por seustermos. Entretanto, esses paradigmas podem, num certo sen-tido, ser empregados para medir aquilo que nos parece seras fraquezas radicals ou as deficiencias dos que se oferecemcomo pontos de convergencia alternativos. Aqui, brevemente,identificamos tres.

O primeiro e aqueie que sucede a Levi-Strauss. E umseguimento Idgico, mais do que temporal: a primeira semio-tica e os termos do paradigma linguistico, e o centramentosobre as "praticas significativas", movimentando-se atravesde conceitos psicanaliticos e Lacan ate um recentramentoradical de todo o terreno dos Estudos Culturais em torno dostermos "discurso" e "o sujeito". Uma forma de compreenderessa linha de pensamento e ve-!a como uma tentativa depreencher aquela lacuna no estruturalismo inicial (seja emsuas variantes marxistas ou nao-marxistas) onde, em discursosanteriores, era de se esperar que "o sujeito" e a subjetividadeapareceriam, mas nao o fizeram. Este e, precisamente, umdos pontos-chave onde o culturalismo faz sua critica acirradasobre os "processes sem sujeito" do estruturalismo. A dife-renga e que, enquanto o culturalismo corrigiria o hiperestru-turalismo dos modelos anteriores pela restaurac.ao do sujeitounificado (coletivo ou individual) da consciencia no centroda "Estrutura", a teoria do discurso, por intermedio dosconceitos freudianos do inconsciente e dos conceitos laca-nianos de como os sujeitos sao constituidos na linguagem(pela entrada no Simbolico e na Lei da Cultura), restaurao sujeito descentrado, o sujeito contraditorio, como umconjunto de posicoes na linguagem e no conhecimento, apartir do qual a cultura pode parecer enunciada. Essa abor-dagem identifica claramente uma lacuna, nao apenas noestruturalismo mas no proprio marxismo. O problema e quea maneira de conceitualizac.ao desse "sujeito" da cultura temum carater transistorico e "universal": ela aborda o sujeito-em-geral, nao os sujeitos sociais historicamente determi-nados, ou linguagens especificas socialmente determinadas.Assim, e incapaz, ate aqui, de movimentar suas proposic.6es

154

em geral ao nivel da analise historica concreta. A segundadificuldade e que os processes de contradicao e luta — alo-jados pelo primeiro estruturalismo inteiramente no nivel da"estrutura" — estao agora, gracas a uma daquelas persistentesinversoes — aiojados exclusivamente no nivel dos processespsicanaliticos inconscientes. Talvez, conforme um argumentocomum no culturalismo, o "subjetivo" seja um momento neces-sario de qualquer analise desse tipo. Mas isso e algo muitodiferente do desmantelamento do conjunto dos processessociais dos diversos modos de producao e formac.6es sociais,e sua reconstituigao exclusiva ao nivel de processes incons-cientes psicanaliticos. Embora um trabalho importante tenhasido feito dentro deste paradigma, tanto para defini-lo quantopara desenvolve-lo, suas alegacoes de ter substituido todosos termos dos paradigmas anteriores por um conjunto maisadequado de conceitos parecem desvairadamente ambiciosas.Suas pretensoes de haver integrado ao marxismo um materia-lismo mais adequado sao, basicamente, uma reivindicacaosemantica, em vez de conceitual.

Um segundo desenvolvimento e a tentativa de retorno aostermos de uma "economia politica" de cultura mais classica.Essa posi^ao argumenta que a concentrac.ao sobre os aspectosculturais e ideologicos tem sido exagerada. Ela restaura ostermos mais antigos da "base/superestrutura", encontrando,na determinacao em ultima instancia do cultural-ideologicopelo economico, aquela hierarquia de determinates queparece faltar a ambas as alternativas. Essa posicao insiste queos processes economicos e as estruturas de produgao culturalsao mais significantes do que seu aspecto cultural-ideologicoe que estes sao um tanto adequadamente apreendidos naterminologia mais classica do lucro, exploragao, mais-valia ea analise da cultura como mercadoria. Ela retem a nocao deideologia enquanto "falsa consciencia".

Naturalmente, ha certa vantagem na afirmativa de que tantoo estruturalismo quanto o culturalismo, de formas distintas,negligenciaram a analise economica da producao culturale ideologica. Mesmo assim, com o retorno a esse terrenomais "classico", muitos problemas que o cercavam tambe'mreaparecem. A especificidade do efeito da dimensao culturale ideo!6gica rnais uma vez tende a desaparecer. Tende a

155

Page 81: Da Dispora - Stuart Hall

conceber o nivel economico nao apenas como uma expli-cacao "necessaria", mas "suficiente", dos efeitos culturaise ideo!6gicos. Seu foco sobre a analise da forma de merca-doria, semelhantemente, obscurece todas as distincoes cuida-dosamente estabelecidas entre as diferentes praticas, uma vezque sao os aspectos mais genericos da forma de mercadoriaque atraem a atencao. Portanto, suas deducoes se restringembasicamente ao nivel epocal de abstracao: as generalizacoessobre a forma de mercadoria se aplicam verdadeiramente atoda a era capitalista. Muito pouco dessa analise concreta econjuntural pode ser deduzido nesse alto nivel de abstracaoda "logica do capital". Ela tambe"m tende a seu proprio funcio-nalismo — um funcionalismo da "logica", e nao da "estrutura"ou da historia. Essa abordagem, tambem, possui discerni-mentos que valem a pena acompanhar. Mas ela sacrifica muitodaquilo que dolorosamente assegurou, sem ganho compensa-torio em sua capacidade explanativa.

A terceira posicao esta intimamente relacionada a iniciativaestruturalista, mas seguiu o caminho da "diferenca" ate" a hete-rogeneidade radical. A obra de Foucault — que atualmentegoza de um daqueles periodos de discipulado acritico peloqual os intelectuais britanicos reproduzem hoje sua depen-dencia das ideias francesas de ontem — tern surtido um efeitosoberbamente positive, sobretudo porque, ao suspender osproblemas quase insoluveis de determinacao, Foucaultpossibilitou um grato retorno a analise concreta de formacoesideologicas e discursivas especificas e aos locals de sua elabo-racao. Foucault e Gramsci, entre eles, sao responsaveis pormuitas das obras mais produtivas sobre analise concreta hojeem andamento na area; desta forma reforcando e — parado-xalmente — sustentando o sentido da instancia historicaconcreta que tem sido sempre um dos pontos fortes do cultu-ralismo. Mas, novamente, o exemplo de Foucauft e positivesomente se sua posicao epistemologica geral nao for engo-lida por inteiro. Pois, de fato, Foucault suspende tao resolu-tamente a crftica e adota um ceticismo tao extreme a respeitode qualquer determinacao ou relacionamento entre as praticas,a nao ser aquelas basicamente contingentes, que somos auto-rizados a ve-lo nao como um agnostico em relacao a essasquestoes, mas como alguem profundamente comprometido coma necessaria nao-correspondencia de todas as praticas umas

156

com as outras. De tal posicao, nem uma forma^ao social,nem o Estado, pode ser adequadamente pensado. E, de fato,Foucault constantemente cai no buraco que ele mesmo cavou.Pois quando — contrariamente as suas posicoes epistemo!6-gicas bem-definidas — ele se depara com certas "correspon-dencias" (por exemplo, o simples fato de que os momentosmais importantes de transicao que ele tracou em cada um deseus estudos — sobre a prisao, a sexualidade, a medicina, ohospicio, a linguagem e a economia politica — parecem todosconvergir exatamente em torno daquele ponto em que ocapitalismo industrial e a burguesia fazem seu rendez-voushistorico e decisive), Foucault cai num reducionismo vulgar,que desfigura inteiramente as posicoes sofisticadas que eleavancara alhures. Ele e bem capaz de conduzir, pela portados fundos, as classes que acabara de expulsar da frente.

Eu disse o suficiente para indicar que, na minha visao, e avertente dos Estudos Culturais que tentou pensar partindodos melhores elementos dos paradigmas culturalista e estru-turalista, atraves de alguns dos conceitos elaborados porGramsci, a que mais se aproxima das exigencias desse campode estudo. E a razao para tal deve agora ser obvia. Emboranem o culturalismo nem o estruturalismo bastem, como para-digmas auto-suficientes para o estudo, eles sao centrals parao campo, o que falta a todos os outros contendores, porque,entre si — em suas divergencias, assim como em suas conver-gencias — eles enfocam o que deve ser o problema centraldos Estudos Culturais. Eles nos devolvem constantementeao terreno marcado pela dupla de conceitos fortemente arti-culados, mas nao mutuamente excludentes, de cultura/ideo-logia. Juntos, eles propoem os problemas que advem depensar tanto a especificidade de praticas diferentes como asformas de unidade articulada que constituent. Fazem umconstante — embora fraco — retorno a metafora base/superes-trutura. Estao corretos ern afirmar que esta questao — queresume todos os problemas de uma determinacao nao-redu-tiva — e o cerne da questao; e que da solucao desse problemadepende a saida dos Estudos Culturais da oscilacao entreidealismo e reducionismo. Eles confrontam — mesmo emmodos radicalmente distintos — a dialetica entre condicoese consciencia. Em outro nivel, colocam a questao da relacaoentre a logica de pensar e a "logica" do processo historico.

157

Page 82: Da Dispora - Stuart Hall

Continuam a sustentar a promessa de uma teoria realmentematerialista da cultura. Em seus duradouros antagonismos,que se reforcam mutuamente, nao prometem uma sintesefacil. Entretanto, entre si, definem o espaco e os limites dentrodos quais essa sintese podera ser constituida. Nos EstudosCulturais, eles sao "o que ha".

[HALL, S. Cultural Studies: Two Paradigms. Media, Cultureand Society, n. 2, p. 57-72, 1980. Traducao de Ana CarolinaEscosteguy, Francisco Rudiger, Adelaine La Guardia Resende]

NOTAS

1 HOGGART, Richard. The Uses of Literacy. Londres: Chatto & Windus, 1957.[As tttilizacoes da cultura-. aspectos da vida cultural da classe trabalhadora.Lisboa: Presenfa, 19731; WILLIAMS, Raymond. Culture and Society 1780-195O. Londres: Chatto & Windus, 1958. [Cultura e sociedade 1780-1950.Sao Paulo: Nacional, 1969-1 No original do autor: WILLIAMS, R. Cultureand Society, 1780-1950. Harmondsworth: Penguin, 1963-

2 THOMPSON, E. P. The Making of the English Working Class. Londres:Victor Gollanz, 1963- [Aformacao da classe operdria inglesa. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1988.]

3 WILLIAMS, 1963= 16.

4 Ver WILLIAMS, R. Culture is Ordinary. Conviction, 1958.

'WILLIAMS, R. The Long Revolution. Harmondsworth: Penguin, 1965. p. 55-

6 WILLIAMS, 1965. p. 55.

7 WILLIAMS, 1965. p. 61.

8 WILLIAMS, 1965. p. 63.

9 WILLIAMS, 1965. p. 61.

10 WILLIAMS, R. Literature and Sociology: in memory of Lucien Goldmann.New Left Review, n. 67, p. 10, 1971.

11 WILLIAMS, 1971. p. 12.

12 THOMPSON, E. P. Reviews of Raymond Williams's The Long Revolution.New Left Review, n. 9-10, 1961.

158

13 WILLIAMS, Raymond. Base and Superstructure in Marxist Cultural Theory.

New Left Review, n. 82, 1973-14 WILLIAMS, Raymond. Marxism and Literature. Oxford: Oxford UniversityPress, 1977. \Metrxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979-1

15 WILLIAMS. Marxism and literature, p. 30-31, 82.

16 THOMPSON. New Left Review, 1961.

17 THOMPSON. New Left Review, p. 33-

18 THOMPSON, E. P. Peculiarities of the English. Socialist Register, p. 351-

352, 1965-

19 THOMPSON, E. P. The Poverty of Theory. London: Merlin, 1978. [A miseriada teoria ou um planetaria de erros. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.]

20 THOMPSON. The Poverty of Theory, p.356.

21 Ver, sobre "culturalismo", os dois artigos seminais de Richard Johnsonsobre a operacao do paradigma: Histories of Culture/Theories of Ideology.In: BARRETT, M.; CORRIGAN, P. et al. (Org.). Ideology and CulturalProduction. Londres: Croom Helm, 1979; e Three Problematics. In: CLARKE;CRITCHER; JOHNSON. Working Class Culture. Londres: Hutchinson/CCCS,1979- Sobre os perigos da "teorizacao dicotomica", ver a Introdu9ao,"Representation and Cultural Production". In: BARRETT, M, ; CORRIGAN, P.et al. (Org.). Ideology and Cultural Production. Londres: Croom Helm,

1979-

22 ALTHUSSER, L. Ideology and Ideological State Apparatuses. In: .Lenin and Philosophy, and other Essays. Londres: New Left Books, 1971.

23 ALTHUSSER, L. For Marx. Londres: Allen Lane, 1969. p- 233- [A favor deMarx. Rio de Janeiro: Zahar, 1979]-

24 MARX, K. Introducao a crltica da economia politka. In: . Contri-buicao a critica da economia politica. Sao Paulo: Martins Fontes, 1983.

25 LACLAU, E. Politics and Ideology in Marxist Theory. Londres: New Left

Books, 1977.

159

Page 83: Da Dispora - Stuart Hall

S G N I F I C A t J A O , R E P R E S E N T A f A O , IDEOIOGIAA L T H U S S E R E OS D E B A T E S POS-ESJRUMALISTAS

Este ensaio analisa a contribuicao de Althusserpara a re-conceituacao de ideologia. Em vezdeproceder a uma exegese detalhada, o ensaiofornece uma reflexdo geral sobre os ganhosteoricos advindos do rompimento de Althusser comas formulacoes marxistas cldssicas de ideologia.Argumenta-se que esses ganhos abriram umanova perspectiua dentro do marxismo, o quepossibilitou uma significativa revisao do pensa-mento sobre a ideologia.

Althusser me convenceu, e permaneco convencido, de queMarx conceitua o conjunto das relacoes que compoem a socie-dade — a "totalidade" de Marx — nao como uma estruturasimples, mas, sim, essencialmente complexa. Conseqiiente-mente, a relagao entre os niveis dentro dessa totalidade —digamos, o economico, o politico, o ideologico (como diriaAlthusser) — nao pode ser simples ou imediata. Assim, a ideiade inferir as contradicoes sociais nos distintos niveis dapratica social simplesmente em termos de um principlegovernante de organizacao social e economica (nos termosclassicos de Marx, o "modo de producao"), ou de interpretaros diferentes niveis de uma formacao social como umacorrespondencia especular entre praticas, em nada contribuinern tampouco constitui a forma pela qual Marx, afinal,concebeu a totalidade social. Evidentemente, uma formagaosocial nao apresenta uma estrutura complexa simplesmente

porque nela tudo interage com tudo — essa e a abordagemtradicional, socio!6gica e multifatorial, que nao contemprioridades determinantes. Uma formacao social e urna"estrutura em dominancia". Exibe certas tendencias distintas,um certo tipo de configuracao e uma estruturacao definida. Epor isso que o termo "estrutura" continua a ser importante.Contudo, trata-se de uma estrutura complexa em que e impos-sivel reduzir facilmente um nivel de pratica a outro. A reae.aocontra ambas essas tendencias ao reducionismo nas versoesclassicas da teoria marxista da ideologia tem ocorrido habastante tempo — na verdade, foram Marx e Engels quederam inicio a esse trabalho de revisao. Mas Althusser foia figura chave da teorizacao moderna sobre essa questao,que rompeu claramente com alguns dos velhos protocolos eforneceu uma alternativa convincente que se mantem emgeral dentro dos termos da problernatlca marxista. Essafoi uma grande realizacao teorica, embora hoje queirarnoscriticar e modificar os termos dessa facanha. Creio queAlthusser esta correto ainda ao argumentar que essa e amaneira como Marx teoriza a formacao social na "Introducaode 1857" aos Grundrisse (1953/1973), seu texto metodologicomais elaborado.

Outra contribuigao geral de Althusser foi que ele mepossibilitou viver na diferenca e com ela. Sua ruptura coma concepcao monistica do marxismo demandou a teorizacaoda diferen£a — o reconhecimento de que ha distintas contra-dicoes sociais cujas origens sao tambem diversas; que ascontradicoes que impulsionam os processes historicos nemsempre surgem no mesmo lugar, nem causam os mesmos efeitoshistoricos. Devemos pensar sobre a articulagao entre asdiversas contradicoes, sobre as distintas especificidades edurances pelas quais elas operam, sobre as diferentes moda-Hdades nas quais funcionam. Creio que Althusser esta corretoao apontar o habito inflexivelmente monistico da pratica demuitos dos mais eminentes marxistas que se dispoem, a bemda complexidade, a jogar com a diferenca, contanto que hajaa garantia de uma unidade mais adiante. Porem, avancossignificativos em relacao a essa teleologia dilatada podemser encontrados ja na "Introducao de 1857" aos Grundrisse,Nessa obra, Marx afirma, por exemplo, que todas as linguaspossuem, naturalmente, alguns elementos em comum. Caso

161

Page 84: Da Dispora - Stuart Hall

contrario nao poderiamos identifica-las como pertencentesao rnesmo fenomeno social. Mas ao dizermos isso, apenasexpressamos algo sobre a lingua em um nivel muito geral deabstrafao; o nivel da "linguagem em geral". Este e apenas oimcio da investigate. O problema teorico mais relevante ase pensar e a especificidade e a diferenca das linguas;examinar, em analises concretas, as muitas determinacoesdas formacoes linguisticas ou culturais que as diferenciamumas das outras. Um dos mais profundos insights criticosde Marx, uma de suas proposicoes epistemologicas maisnegligenciadas, que ate mesmo Althusser interpreta um tantoincorretamente, e a de que o pensamento critico se afasta daabstracao para o nivel do concreto-pensado, o qual resultade muitas determinacoes (ver Hall: "Notas sobre a 'Introducaode 1857'", 1974).

Entretanto, devo acrescentar imediatamente que Althussernos permite pensar a "diferenca" de uma forma especial e umtanto distinta das tradicoes subseqiient.es, que as vezes oreconhecem como seu criador. Se considerarmos a teoria dodiscurso,1 por exemplo — o pos-estruturalismo ou Foucault— veremos que ali, nao apenas o deslocamento da praticapara o discurso, mas tambem a forma como a enfase sobre adiferenca — sobre a pluralidade dos discursos, sobre operpetuo resvalar do significado, sobre o infinite deslizamentodo significante — ultrapassa hoje o ponto onde ela e capazde teorizar as irregularidades necessarias de uma unidadecomplexa ou mesmo a "unidade na diferenca" de uma estru-tura complexa. Creio que por esse motivo, sempre queFoucault se ve diante do risco de associar as coisas (tais comoos muitos deslocamentos epistemologicos tracados por ele,os quais fortuitamente coincident! com a passagem do ancienregime para o moderno na Franca), ele se apressa em nosgarantir que nada jamais se encaixa a coisa alguma. A enfasesempre recai sobre o continue resvalamento de qualquerconjuntura concebfvel. Creio que nao ha outra forma decompreender o eloqiiente silencio de Foucault sobre a questaodo Estado. Naturalmente, ele diria que sabe que o Estadoexiste: que intelectual frances nao o sabe? Mesmo assim, eleconsegue apenas postula-lo como um espaco abstrato evazio — o Estado como gulag — o outro ausente/presente

162

de uma nocao igualmente abstrata da Resist^ncia. Seu proto-colo revela "nao apenas o Estado, mas tambem as microfisicasdispersas do poder"; sua pratica privilegia continuamente esteultimo e ignora a existencia do poder de estado.

E claro que Foucault (1972/1980) esta correto ao afirmarque muitos marxistas concebem o Estado como um tipo deobjeto unico; isto e, simplesmente como a vontade unificadado comite da Classe Dominante, seja la onde for que ele estejase reunindo hoje. Desta concepcao deriva o necessario "empa-relhamento" de tudo. Concordo que nao se pode mais pensaro Estado desta forma. O Estado e uma formacao contradi-toria, o que signifies que ele possui distintos modos de acao,atua em diferentes locais: e pluricentrado e multidimen-sional. Exibe tenddncias bem distintas e dominantes, masnao apresenta a inscricao de um carater de classe unico. Poroutro lado, o Estado continua a ser um dos locais cruciais naformaclo social do capitalismo moderno, onde praticas poli-ticas de diversos tipos sao condensadas. Em parte, a funcaodo Estado consiste em unir ou articular em uma instanciacomplexa uma gama de discursos politicos e praticas sociaisque, em diferentes locais, se ocupam da transmissao etransformacao do poder — sendo que algumas dessas praticastern pouca relacao com o dommio politico em si e se preo-cupam com outros dominios articulados ao Estado, como porexemplo, a vida familiar, a sociedade civil, as relacoeseconomicas e de genero. O Estado e a instancia de atuacaode uma condensacao que permite a transformacao daqueleponto de intersecao das praticas distintas em uma praticasistematica de regulacao, de regra e norma, e de normali-zacao dentro da sociedade. O Estado condensa praticas sociaismuito distintas e as transforma em operacoes de controle edommio sobre classes especificas e outros grupos sociais.A maneira de chegar a essa concepcao e nao substituir adiferenfa pelo seu oposto especular, a unidade, mas repensarambas em termos de um novo conceito — a articulacao.2 Eeste justamente o passo que Foucault se recusa a dar.

Portanto, devemos caracterizar o avanco de Althusser naoapenas em termos de sua insistencia na "diferenca" — este eo grito de guerra da desconstrucao derridiana — mas emtermos da necessidade de se pensar a unidade com a diferenga;

163

Page 85: Da Dispora - Stuart Hall

a diferenca em uma unidade complexa, sem que isso impliqueo privilegio da diferenca em si. Se Derrida (1977) estivercorreto ao afirmar que ha um continuo deslizamento do signi-ficante, uma contmua "deferencia", e correto tambem afirmarque sem algumas "fixacoes" arbitrarias, ou o que estouchamando de "articulacao", nao existiria qualquer sentidoou significado. O que e a ideologia, senao precisamente atarefa de fixar significados atraves do estabelecimento, porselecao e combinacao, de uma cadeia de equivalencias? E porisso que, apesar de todas as suas falhas, quero apresentarnao o texto althusseriano protolacaniano, neofoucaultiano,pre-derridiano — "Aparelhos ideologicos de Estado" (Althusser,1970/1971) — e, sirn, o texto menos elaborado teoricamente,mas a meu ver o mais produtivo, o mais original, talvez porser mais experimental: AfavordeMarx(.Mthusser, 1965/1969);e especialmente o ensaio "Sobre a contradicao e a sobrede-terminacao" (p. 87-128), que comeca justamente a pensarsobre os tipos complexos de determinacao sem reducionismoa uma unidade simples. (Sempre prefer! A favor de Marxao texto mais completo e estruturalista de Lendo O capital[Althusser e Balibar, 1968/1970]: uma preferencia fundada naosomente em minha desconfianca de toda a maquinaria estru-turalista de causalidade inspirada em Spinoza que se faz ouvirneste ultimo texto; mas tambem ern meu preconceito contrao modismo intelectual de se pressupor que o "mais recente"e necessariamente "o melhor.") Nao me preocupo aqui como absolute rigor teorico de A favor de Marx: assumo orisco do ecletismo teorico ao afirmar que estou inclinado apreferir ser "correto porem nao rigoroso" a ser "rigoroso, masincorreto". Ao nos permitir pensar sobre os distintos niveis etipos de determinacao, A favor de Marx forneceu-nos aquiloque falta a Lendo O capital; a capacidade de teorizar sobreeventos historicos concretos, ou textos especificos (Marx eEngels. A ideologia alemd, 1970), ou formacoes ideologicasespecificas (o humanismo) como algo determinado por maisde uma estrutura (ou seja, pensar o processo de sobredeter-minacao). Creio que "contradicao" e "sobredeterminacao"sao conceitos teoricos muito ricos — um dos emprestimosmais felizes de Althusser a Freud e Marx; a meu ver, nao sepode dizer que sua riqueza foi exaurida pelas formas comoAlthusser os explorou.

164

A articulacao da diferen£a e da unidade envolve umaelaboracao distinta do conceito-chave marxista de determi-nacao. Algumas formulacoes classicas, como base/superes-trutura, que tern dominado as teorias marxistas da ideologia,representam formas de se pensar a determinacao essencial-mente baseadas na ideia de uma correspondencia necessariaentre um nivel e outro de uma formacao social. Havendo ounao identidade imediata, rnais cedo ou mais tarde as praticaspoliticas, legais e ideologicas — supoem essas teorias —irao se conformar e, portanto, estabelecerao uma correspon-dencia necessaria com aquilo que — erroneamente — deno-minamos "o economico". Ora, pelos padroes obrigatoriosatuais da teorizacao pos-estruturalista avancada, no recuo da"correspondencia necessaria", tern ocorrido o usual e impla-cavel deslize filosofico para o lado oposto; ou seja, a elisaopara algo que parece quase o mesmo, mas que e radicalmentediferente em sua essencia — a declara<;ao de que "nao hanecessariamente qualquer correspondencia". Paul Hirst, umdos mais sofisticados teoricos pos-marxistas, contribuiu, comseu consideravel peso intelectual e autoridade, para essedeslize prejudicial. "Nenhuma correspondencia necessaria-mente" expressa exatamente a ideia essencial a teoria dodiscurso — de que nada de fato se Uga a coisa alguma. Mesmoquando a analise de uma formacao discursiva especificarevela a constante superposicao ou o deslizamento de umconjunto de discursos em outro, tudo parece depender dareiteracao polemica do principio de que, necessariamente,nao ha qualquer correspondencia.

Nao posso aceitar essa simples inversao. Creio que o quedescobrimos e que nao ha correspondencia necessaria, o quee algo diferente; e essa formulacao representa uma terceiraposicao. Significa que nao ha lei que garanta que a ideologiade uma classe esteja gratuita e inequivocamente presente oucorresponda a posicao que essa classe ocupa nas relacoeseconomicas de producao capitalista. A alegacao da "naogarantia" — que rompe com a teleologia — tambem implicaque nao existe necessariamente uma nao-correspondencia.Isto e, nao existe qualquer garantia de que, sob quaisquercircunstancias, a Jdeologia e a classe nao possam se articularde forma alguma ou produzir uma forga social capaz deefetuar, por urn periodo, uma autoconsciente "unidade na

165

Page 86: Da Dispora - Stuart Hall

acao" em uma luta de classe. Urna posicao teorica fundadana abertura da pratica e da luta deve ter, como um de seuspossiveis resultados, uma articulacao em termos de efeitosque nao corresponda necessariamente a suas origens. Emtermos mais concretes: uma intervencao efetiva de forcassociais especificas, digamos, nos eventos da Russia em1917 nao requer que afirmemos que a revolucao russa foio produto de todo o proletariado russo, unido por tras deuma unica ideologia revolucionaria (o que claramente naofoi o caso); nem que o carater decisive da alianca (articu-lacao conjunta) dos trabalhadores, camponeses, soldados eintelectuais, que constituiam a base social daquela inter-vencao, foi garantido pelo lugar especifico e a posicao destessetores na estrutura social russa e pelas formas necessariasde consciencia revolucionaria a eles associadas. Contudo,como Lenin surpreendenternente observou, 1917 aconteceude fato quando, "como resultado de uma situacao historicaunica, correntes absolutamente dessemelhantes, interesses declasse absolutamente heterogeneos, conflitos polfticos esociais absolutamente contrdrios ... fundiram-se ... de formaespantosamente harmonica". O comentario de Althussersobre essa passagem em A favor de Marx nos alerta para ofato de que, para uma contradicao se tornar "ativa em seusentido mais forte e se tornar um principle de ruptura, devehaver um acumulo de circunstancias e correntes capazes dese 'fundir' em uma unidade de ruptura, sejam quais forem assuas origens e sentido" (Althusser, 1965/1969, p. 99). Ointuito de uma pratica politica teoricamente informada devecertamente ser o de provocar ou construir a articulacao entreas forgas sociais e economicas e aquelas formas de politicae ideologia que possam leva-las, na pratica, a intervir nahistoria de forma progressista — uma articulacao que deveser construida pela pratica, justamente porque nao e garantidapela forma como essas forcas se constituem a priori.

Isso faz com que o modelo fique ainda mais indetermi-nado, aberto e contingente do que propoe a posicao classica.Ele sugere que nao se pode "inferir" a ideologia de uma classe(ou mesmo de setores de uma classe) a partir de sua posigaooriginal na estrutura das relacoes socioeconomicas. Porem,ele se recusa a afirmar que e impossivel estabelecer articu-lacoes, atraves de uma pratica de desenvolvimento da luta,

166

entre classes ou fracoes de classes, ou mesmo entre outrostipos de movimentos sociais, com aquelas formas de politicae ideologia que as permitem se tornar historicamente eficazesenquanto agentes sociais coletivos. A principal inversaoteorica operada pela afirmativa "nenhuma correspondencianecessaria" e a de que essa determinacao e transferida dasorigens geneticas da classe ou de quaisquer outras forcassociais de uma estrutura para os efeitos ou resultados de umapratica. Portanto, concordo com aquelas partes em queAlthusser, a meu ver, retem a dupla articulacao entre "estru-tura" e "pratica", em vez da causalidade estruturalista deLendo O capital ou das passagens de abertura do PoliticalPower and Social Classes [Poder politico e classes sociais] dePoulantzas (1968/1975). Por "dupla articulacao" quero dizerque a estrutura — as condicoes dadas de existencia, a estru-tura das determinacoes em qualquer situacao — pode tambemser compreendida, de outra perspectiva, como simples resul-tado de praticas anteriores. Pode-se dizer que uma estruturae o resultado de praticas anteriormente estruturadas. Estas,portanto, constituem as "condicoes dadas", o ponto departida necessario, para novas geracoes de praticas. Emnenhum caso devera a "pratica" ser tratada como algo transpa-rentemente intencional: fazemos a historia, mas com base emcondicoes anteriores nao produzidas por nos rnesmos. Apratica e a forma como uma estrutura e ativamente reprodu-zida. Contudo, ambos os termos sao necessarios para que seevite o risco de tratar a historia como nada mais do que oproduto de uma maquina internamente estruturalista que seauto-impulsiona. A dicotomia estruturalista entre "estrutura"e "pratica" — como entre "sincronia" e "diacronia" — atendea um proposito analitico util, mas nao deve ser fetichizadaatraves de uma distingao rigida e mutuamente exclusiva.

Pensemos mais um pouco sobre a questao nao da necessi-dade, mas da possibilidade de efetuar articulagoes entre grupossociais, praticas politicas e formacoes ideologicas que possamcriar, como resultado, as rupturas historicas ou mudancas quenao mais vemos inscritas ou garantidas nas proprias estru-turas e leis do modo capitalista de producao. Isso nao deveser lido como um argumento de que nao ha tendencias queemergem do nosso posicionamento dentro das estruturas dasrelacoes sociais. Nao devemos fugir do reconhecimento da

167

Page 87: Da Dispora - Stuart Hall

relativa autonomia da pratica (no que diz respeito a seusefeitos) apenas para fetichizar a Pratica — um equfvoco come-tido por muitos dos maoistas pos-estruturalistas por um brevemomento, antes de se tornarem adeptos da "Nova Filosofia"da Direita Francesa em voga. As estruturas exibem ten-dencias — linhas de forca, aberturas ou fechamentos queconstrangem, modelam, canalizam e, nesse sentido, "deter-minam". Mas estas nao podem definir, no sentido de fixarabsolutamente ou garantir. As ideias que devem pensar naoestao irrevogavel ou indelevelmente inscritas nas pessoas;o senso politico que elas devem ter nao se encontra comoque inscrito em seus genes sociologicos. A questao nao e odesdobramento de alguma lei inevitavel, mas os elos quepodem ser estabelecidos, mesmo que nao necessariamente.Nao ha qualquer garantia de que as classes aparecerao emseus lugares politicos determinados, como Poulantzas des-creveu tao vividamente, com seus numeros de registro nascostas. Ao desenvolver praticas que articulem diferencas emuma vontade coletiva ou ao gerar discursos que condensemuma gama de conotacoes, as condicoes dispersas da praticados diferentes grupos sociais podem ser efetivamente aproxi-madas, de modo a transformar essas forcas sociais nao em umasimples classe "em si mesma", definida por outras relacoes sobreas quais ela nao tern controle, mas tambem em uma classecapaz de interferir enquanto forca historica, uma classe "porsi mesma" capaz de estabelecer novos projetos coletivos.

Estes me parecem ser hoje os avancos produtivos inaugura-dos por Althusser. Considero essa inversao de conceitosbasicos algo de mais valor que muitos outros aspectos daobra de Althusser, que, ao surgirem, fascinaram seus disci-pulos. Por exemplo, a questao de os tracos implicitos dopensamento estruturalista em Marx poderem ser sistemati-camente transformados em um estruturalisrno maduro atravesda aplicacao habilidosa de uma combinatoria estruturalistado tipo levi-straussiano — a problematica de Lendo O capital;ou a tentativa mais claramente idealista de isoiar uma "pra-tica teorica" autonoma; ou a desastrosa fusao do histori-cismo com "o historico", que permitiu uma avalanche deespeculacoes teoricas anti-historicas por seus epigonos; oua malfadada aventura de substituir Spinoza pelo fantasmade Hegel na maquina marxista. A principal falha na diatribe

168

antialthusseriana de E. P. Thompson (1978), The Poverty ofTheory [A pobreza da teoria} nao e a catalogacao destes e deoutros erros fundamentals de direcao no projeto de Althusser— que Thompson nao foi o primeiro a apontar — mas a inabi-lidade de reconhecer, ao mesmo tempo, que avancos realsestavam sendo alcancados pela obra de Althusser. Isso levoua uma avaliacao nao dialetica do autor e, incidentalmente,do trabalho teorico em geral. Dai a necessidade de afirmarmosaqui simplesmente aquilo que, apesar de suas muitas fragili-dades, Althusser realizou, e que estabelece um limiar atrasdo qual nao podemos ficar. Depois de "Contradicao e sobre-determinacao", o debate sobre a formacao social e a determi-nacao no marxismo nunca sera o mesmo. Isso constitui, porsi so, "uma enorme revolucao teorica".

IDEOLOGIA

Voltemo-nos agora para a questao especifica da ideologia.A critica da ideologia feita por Althusser segue muitas daslinhas de sua critica as posicoes gerais da problematicamarxista classica acima esbocada. Isso quer dizer que ele seopos ao reducionismo de classe na ideologia — a ideia deque ha alguma garantia de que a posicao ideologica deuma classe social sempre corresponded a sua posicao nasrelacoes sociais de producao. Althusser critica aqui uma ideiamuito importante que derivou da obra The German Ideology[A ideologia alemd] (Marx e Engels, 1970) — um texto fun-dador da teoria marxista classica da ideologia, a saber: queas ideias dominantes sempre correspondent as posicoes daclasse dominante; que a classe dominante em geral tern suapropria mentalidade, localizada em uma ideologia particular.A dificuldade e que isso nao nos permite compreenderporque todas as classes dominantes que conhecemos ternavancado em situacoes historicas concretas, atraves de umavariedade de ideologias, ou pela troca constante de ideologias.Tampouco podemos compreender porque ocorrem lutasinternas em todas as grandes formacoes politicas, em tornodas "ideias" apropriadas pelas quais os interesses da classedominante deverao ser garantidos. Nem mesmo sabemosporque, ate certo ponto em muitas formacoes sociohistoricas,

169

Page 88: Da Dispora - Stuart Hall

as classes dominadas tern utilizado "ideias dominances" parainterpretar e definir seus interesses. Descrever tudo isso simples-mente como "a ideologia dominance", que se reproduz deforma nao problematica e tern continuado a avancar desdeo surgimento do livre mercado, 6 uma forma injustificavel deforc.ar a ideia de uma identidade empirica entre a classe e aideologia, que a analise historica concreta nega.

O segundo alvo da critica de Althusser e a noe.ao da "falsaconsciencia" que, segundo ele, pressupoe a existencia de umaunica e verdadeira ideologia para cada classe. Em seguida,compara sua nao manifestacao a um biombo que se interpoeentre os sujeitos e as relacoes verdadeiras nas quais elesse localizam, impedindo-os de reconhecer as ideias quedeveriam ter, A nocao da "falsa consciencia", diz Althussercorretamente, esta fundada em uma relacao empirica com oconhecimento. Ela supoe que as relagoes sociais fornecamseu proprio conhecimento sem ambigiiidade aos sujeitospensantes e perceptivos; que haja uma relac.ao transparenceentre as situacoes nas quais os sujeitos se situam e comoestes passam a (re)conhece-Ias. Conseqiientemente, o conhe-cimento verdadeiro deve estar sujeito a um tipo de mascara-menCo, cuja origem e muito dificil de identificar, mas queimpede o "reconhecimento do real". Nessa concepc,ao, saosempre os outros, nunca nos mesmos, que incorrem na falsaconsciencia, que sao enfeitic.ados pela ideologia dominante,que sao os "bobos" da historia.

A terceira critica de Althusser se desenvolve a partir desuas concepfoes de teoria. Ele insiste que o conhecimentodeve ser produzido como consequencia de uma pratica espe-cifica. O conhecimento, seja ele ideologico ou cientifico, eproduto da pratica. Nao o reflexo do real no discurso ou nalinguagem. As relagoes sociais tern que ser "representadas nafala e na linguagem" para adquirir significado. O significadoe produzido como resultado do trabalho ideologico ou teo-rico. Nao e simplesmente o resuICado de uma epistemologiaempiricista.

Consequentemente, Althusser pretende pensar a especifi-cidade das praticas ideologicas ou sua diferenga a partir deoutras praticas sociais. Tambem pretende pensar "a complexaunidade" que articula o nfvel da pratica ideologica a outras

170

instancias de uma formacao social. E assim, usando a criticadas concepgoes cradicionais de ideologia com as quais sedeparou, propos-se a oferecer algumas alternativas. Exami-nemos, pois, brevemence o que significam essas alcernativaspara Althusser.

"APARELHOS IDEOL6GICOS DE ESTADO"

A alternatlva familiar a todos e apresentada no ensaio"Aparelhos ideologicos de Estado". Algumas proposigoesnesse ensaio causaram profundo impacto e influenciaramsobremaneira os debates futures. Em primeiro lugar, Althusserprocura pensar a relacao entre ideologia e outras praticassociais em termos do conceito de reproducao. Qual e a funcaoda ideologia? E reproduzir as relacoes sociais de producao.As redoes sociais de producao sao necessarias a existenciamaterial de qualquer formac.ao social ou modo de producao.Mas os elementos ou os agentes de um modo de produc.ao,especialmente no que diz respeito ao facor critico do trabalhodestes, tern que ser continuamente produzidos e reprodu-zidos. Althusser argumenta que, cada vez mais nas formafoessociais capitalistas, o trabalho nao e reproduzido dentro dasproprias relagoes sociais de produgao, mas fora delas. Certa-mente, para ele nao se trata apenas de uma reprodueao bio-logica ou tecnica, mas tambem de uma reprodufao social ecultural. E produzido no dominio da superestrutura: eminstituicoes como a familia e a Igreja. Requer instituicoesculturais como a midia, os sindicatos, os partidos politicosetc., que nao estao diretamente ligados a producao em si,mas que exercem a fungao crucial de "cultivar" um certo tipode trabalho moral ou culcural — aquilo que o modo capita-lista .moderno de produc. ao requer. As escolas, universidades,escolas profissionalizant.es e centres de pesquisa reproduzema cornpetencia tecnica do trabalho exigida pelos sistemascapitalistas avangados de produ^ao. Contudo, Althusserassinala que uma forga de trabalho tecnicamente competente,mas politicamente insubordinada, nao representa uma forcade trabalho para o capital. Porcanto, a tarefa mais importantee cultivar aquele tipo de Crabalho que e capaz e disposto,moral e politicamente, a se subordinar a disciplina, a logica,

171

Page 89: Da Dispora - Stuart Hall

a cultura e a coercao do modo econornico de producao dodesenvolvimento capitalists, seja qual for o estagio a que eletenha chegado; ou seja, o trabalho que pode ser sujeitado aosistema dominante ad infinitum. Consequentemente, o quea ideologia faz, atraves dos diversos aparelhos ideologicos,e reproduzir as relacoes socials de producao neste sentidomais amplo. Esta e a primeira formulacao de Althusser.

Certamente, a reproducao neste sentido e um termoclassico, que pode ser encontrado em Marx. Althusser naoprecisa ir alem do Capital(Marx, 1970) para descobri-lo, muitoembora se deva dizer que ele confere ao termo uma definicaobem restritiva. Althusser se refere somente a reproducao daforca de trabalho, enquanto em Marx a reproducao e umconceito muito mais amplo, que inclui a reproduce dasrelacoes socials de posse e exploracao, e ate mesmo doproprio modo de producao. Isso e bem tipico de Althusser— ao "meter a mao" na algibeira marxista sempre saca umtermo que possui ampla ressonancia marxista, frequentementeconferindo a este uma torcao limitadora que Ihe e muitopropria. Assim, Althusser constantemente "reforca" o moldeestruturalista do pensamento de Marx.

Ha um problema neste posicionamento. A ideologia nesseensaio parece ser, principalmente, aquela da classe dominante.Se existe uma ideologia das classes dominadas, esta pareceestar perfeitamente adaptada aos interesses e funcoes da classedominante no modo capitalista de producao. Neste ponto, oestruturalismo althusseriano torna-se vulneravel a acusacao,que tem sido dirigida contra ele, de um sorrateiro funciona-lismo marxista. A ideologia parece exercer a funcao que delase demanda (qual seja, reproduzir a dominancia da ideologiadominante), exerce-la com eficacia e continuar assim, semencontrar quaisquer "contra-tendencias" (este e um segundoconceito a ser encontrado em Marx sempre que ele discutea reproducao, sendo justamente o conceito que distinguea analise no Capital de um funcionalismo). Quando sequestiona sobre o campo contraditorio da ideologia, sobrecomo a ideologia das classes dominadas e produzida ereproduzida, sobre as ideologias de resistencia, de exclusao,de desvio etc., nao ha respostas nesse ensaio. Tampouco hauma explicacao para o fato de a ideologia, tao efetivamentecosturada a formagao social na narrativa de Althusser,

172

produzir seu oposto ou sua contradicao. Porem, uma ideiade reproducao ajustada ao capital somente de forma fun-cional, e que nao tenha tendencias de compensacao, nao sedepare com contradi^oes, nem constitua local da luta declasses, e inteiramente estranha a concepgao de reproducaoem Marx.

A segunda proposicao influente em "Aparelhos ideolo-gicos de Estado" e a insistencia de que a ideologia e umapratica. Isto e, surge em praticas localizadas dentro dosrituals dos aparelhos, instituicoes sociais ou organizacoesespecificas. Althusser distingue aqui entre aparelhos repres-sivos de Estado, como a policia e o exercito, e aparelhosideologicos de Estado, como as igrejas, os sindicatos e amidia, os quais nao sao diretamente organizados pelo Estado.A enfase nas "praticas e rituais" e inteiramente bem-vinda,especialmente se nao interpretada de forma muito rigorosaou polemica. As ideologias constituem estruturas de pensa-mento e avaliagao do mundo — as "ideias" que as pessoasutilizam para compreender como o mundo social funciona,qual o seu lugar nele e o que devem fazer. Mas o problemapara uma teoria materialista ou nao-idealista e como lidarcom as ideias, que sao eventos mentals e, portanto, comoMarx afirma, so podem ocorrer "no pensamento, na cabega"(onde mais?) de uma forma materialista nao-idealista e nao-vulgar. A enfase de Althusser aqui e util — livra-nos de umdilema filosofico, tendo como virtude adicional o fato deestar correta. Ele enfatiza o lugar de onde as ideias surgem,onde os eventos mentais sao registrados ou concretizadosenquanto fenomenos sociais. Trata-se, naturalmente, dalinguagem (compreendida no sentido de praticas significa-tivas que envolvem o uso de signos; no dominio semiotico, odominio do significado e da representacao). Igualmenteimportante e o lugar dos rituais e praticas de acao ou ocomportamento social, nos quais as ideologias se imprimemou se Inscrevem. A linguagem e o comportamento sao os meiospelos quais se da o registro material da ideologia, a modali-dade de seu funcionamento. Esses rituais e praticas sempreocorrem em locais sociais, associados a aparelhos sociais.E por isso que devemos analisar ou desconstruir a linguageme o comportamento para decifrar os padroes de pensamentoideologico all inscritos.

173

Page 90: Da Dispora - Stuart Hall

Esse relevante avarice- em nossa forma de pensar a ideo-logia tern sido por vezes obscurecido por teoricos que argu-mentam que as ideologias nao sao "ideias", mas praticas, e 6isto que garante o materialismo da teoria da ideologia. Naoconcordo com tal enfase. A meu verf ela padece de uma"concretude mal aplicada". O materialismo do marxismo naopode se apoiar sobre o argumento de que ele abole o caratermental — muito menos os efeitos concretes — dos eventosmentals (ou seja, o pensamento), pois este e, precisamente,o equfvoco daquilo que Marx chamou de materialismo meca-nico ou unilateral (nas "Theses on Feuerbach", Marx, 1963)[Teses sobre Feuerbach]. O materialismo marxista deve seapoiar sobre as formas materials nas quais o pensamento semanifesta e sobre o fato de que ele surte efeitos reais ematerials. De qualquer forma, esta e a maneira como entendoa tao famosa assercao de Althusser de que a existencia daideologia e material "pois esta inscrita em praticas". Um certoprejuizo foi causado pela formulacao excessivamente drama-tica ou condensada de Althusser, ao final desta parte de seuargumento — que afirma, de forma singular: "Desaparecer: otermo ideias". Althusser contribuiu muito, mas, no meuentender, nao aboliu a existencia das ideias e do pensamento,por mais conveniente e tranquilizador que isso pudesseparecer. O que ele demonstrou foi que as ideias possuemuma existencia material. Como ele proprio afirma, "as ideiasde um ser humano existem em suss acoes" e as acoes estao"inseridas em praticas governadas por rituais nos quais essaspraticas se inscrevem no amago da existencia material de umaparelho ideologico", o que e algo diferente (Althusser, 1970/1971, p. 158).

Entretanto, a nomenclatura de Althusser apresenta seriosproblemas. O ensaio "Aparelhos ideo!6gicos de Estado",novamente, pressupoe, de forma nao problematica, umaidentidade entre as varias partes "autonomas" da sociedadecivil e do Estado. Em contrapartida, essa articulacao estano centro do problerna da hegemonia em Gramsci (1971).Gramsci tern dificuldades em estabelecer a fronteira entreEstado e sociedade civil, pois situa-la nao e algo simples ouincontroverso. Uma questao crucial nas democracias liberalsdesenvolvidas e precisamente a forma como a ideologia e

174

reproduzida nas chamadas instituicoes privadas da sociedadecivil — o teatro do consentimento — aparentemente fora daesfera direta de acao do proprio Estado. Se tudo esta, maisou menos, sob a supervisao do Estado, e bem facil perceberporque a unica ideologia que se reproduz e a dominante.Mas a questao bem mais pertinente e dificil de saber e comoa sociedade permite que a liberdade relativa das instituicoescivis opere no campo ideologico, dia apos dia, sem a direcaoou sob imposicao do Estado; e porque o "jogo livre" dasociedade civil, por um processo reprodutivo muito complexo,reconstitui consistentemente a ideologia como "uma estru-tura em dominancia". Este e um problerna bem mais dificilde explicar, que a ideia do "aparelho ideologico de Estado"deixa de considerar. Repito, e um fechamento amplamente"funcionalista", que pressupoe uma necessaria corresponded-cia funcional entre as exigencias do modo de producao e asfuncoes da ideologia.

Afinal, nas sociedades democraticas, nao e uma ilusaoafirmar que e impossivel explicar adequadamente as tendenciasestruturadas da midia como determinacoes do Estado sobreo que publicar ou permitir na televisao. Mas como e que umnumero tao grande de jornalistas, que consultam somente sua"liberdade" de publicar e o resto que se dane, tende a repro-duzir, tao espontaneamente, explicacoes de mundo construi-das dentro de categorias ideologicas essencialmente identicas?Como e que estas sao conduzidas, continuamente, a um reper-torio tao limitado dentro do campo ideologico? Mesmo osjornalistas que seguem a tradicao da denuncia da corrupcao,frequentemente parecem se inscrever em uma ideologia aqual nao aderem conscientemente e que, em vez disso, "osescreve".

Este e o aspecto da ideologia sob o regime capitalistaliberal que mais necessita de uma explicacao. E e por issoque, quando dizem "E claro que esta sociedade e livre; amidia atua com liberdade", nao faz sentido responder "Nao,eles so atuam atraves da coercao do Estado." Quern derafosse assim! Teriamos apenas que trocar quatro ou cinco deseus controladores-chave por alguns dos nossos. Na verdade,a reproducao ideologica nao se explica melhor pelas incli-nacoes dos individuos ou pela coercao explicita (controle

175

Page 91: Da Dispora - Stuart Hall

social), assim corno nao se pode explicar a reproducao econo-mica pela forca direta. Ambas as explicates — e elas saoanalogas — devem comecar por onde O Capital comeea:analisando como a "liberdade espontanea" dos circuitosrealmente funciona. Este e um problema que a nomenclaturado "aparelho ideologico de Estado" simplesmente deixa delevar em conta. Althusser se recusa a distinguir entre Estado esociedade civil (pelas mesmas razoes que mais tarde Poulantzas[1968/1975] espuriamente sustentou — ou seja, de que essadistincao pertencia apenas a "ideologia burguesa")- Suanomenclatura nao faz jus aquilo que Gramsci chamaria deimensas complexidades da sociedade nas formacoes sociaismodernas — "as trincheiras e fortlficacoes da sociedade civil".Nem interpreta a complexidade dos processos pelos quais ocapitalismo deve funcionar para ordenar e organizar umasociedade civil que nao esta, tecnicamente, sob seu controleimediato. Estas sao questoes relevantes ao campo da ideo-logia e da cultura que a formulacao "aparelhos ideologicosde Estado" nos encoraja a evitar.

A terceira das proposicoes de Althusser 6 a sua afirmacaode que a ideologia existe somente ern virtude da categoriaconstitutiva do "sujeito". Ha uma historia longa e complicadaaqui. Contudo, posso abordar apenas uma parte dela. Jaafirrnei anteriormente que Lendo O capital e muito semelhantea Levi-Strauss e outros estruturalistas nao marxistas em suaforma de argumentacao. Como Levi-Strauss (1958/1972),Althusser trata as relacoes sociais como processos semsujeito. Semelhantemente, quando insiste que as classes saosimplesmente "portadoras e suportes" das relacoes economico-sociais, Althusser, como Levi-Strauss, utiliza uma concepcaosaussuriana de linguagem, aplicada ao dominio da praticaem geral, para deslocar o tradicional agente/sujeito da episte-mologia classica ocidental. A posicao de Althusser aqui seaproxima bastante da nocao de que a linguagem nos fala,como o mito "fala" o produtor do mito. Isso abole o problemada identificac/ao subjetiva e de como os individuos ou gruposse tornam enunciadores de ideologias. Porem, ao desenvolversua teoria da ideologia, Althusser se afasta da ideia de que aideologia e simplesmente um processo sem sujeito. Ele parecelevar em considerac.ao a critica de que este dominio do sujeitoe da subjetividade nao pode ser deixado simplesmente como

176

um lugar vazio. O "descentramento do sujeito", que e umdos principals projetos do estruturalismo, ainda deixa semsolucao o problema da subjetivacao e da incorporate subje-tiva da ideologia. Ha ainda os processos do efeito subjetivoa serem explicados. Como e que os individuos concretestomam seus lugares dentro de ideologias especificas se naotemos nocao do que e o sujeito ou a subjetividade? Por outrolado, temos que repensar essa questao distintamente datradicao da filosofia empiricista. Esse e o inicio de um longodesenvolvimento, que no "Aparelhos ideologicos de Estado"comeca com a insistencia de Althusser de que toda ideologiafunciona atraves da categoria de sujeito e e somente na ideo-logia e em funcao desta que o sujeito existe.

Esse "sujeito" nao pode ser confundido com o individuohistoricamente vivido. E uma categoria, a posicao em que osujeito — o eu das afirmativas ideologicas — e constituido.Os proprios discursos ideologicos nos constituem enquantosujeitos para o discurso. Althusser explica como isso funcio-na atraves do conceito de "interpelacao", tornado de empres-timo a Lacan (1966/1977). Este sugere que somos chamadosou convocados pelas ideologias que nos recrutam como seus"autores", seu sujeito essencial. Somos constituidos pelosprocessos inconscientes da ideologia, naquela posicao dereconhecimento ou fixacao entre nos mesmos e a cadeia designificados sem a qual nenhum significado ideologico seriapossivel. E justamente a partir dessa virada no argumentoque uma longa trilha se abre para dentro da psicanalise edo pos-estruturalismo (finalmente abandonando a proble-matica marxista).

Ha algo profundamente relevante e, ao mesmo tempo,seriamente lamentavel a respeito da forma do ensaio "Apa-relhos ideologicos de Estado". Trata-se exatamente de suadupl.a estrutura. A Parte I trata da ideologia e da reprodugaodas relacoes sociais de producao. A Parte II estuda a consti-tuicao dos sujeitos e como as ideologias nos interpelam nodominio do Imaginario. Ao tratar esses dois aspectos em doiscompartimentos distintos, ocorre um deslocamento fatal.O que em principle foi concebido como um elemento criticodentro da teoria geral da ideologia — a teoria do sujeito —passa a ser, metonimicamente, o todo da propria teoria. Assofisticadas teorias que eventualmente se desenvolveram

177

Page 92: Da Dispora - Stuart Hall

tratam todas elas desta segunda questao. Como sao consti-tuidos os sujeitos em relacao aos distintos discursos? Qualo papel dos processes inconscientes na criacao desses posi-cionamentos? Este e o objeto da teoria do discurso e dapsicanalise de influencia lingulstica. Pode-se inquirir sobreas conduces de enunciagao em uma formacao discursivaparticular. Esta e a problematica de Foucault. Ou pode-seinvestigar ainda os processes inconscientes pelos quais osproprios sujeitos e a subjetividade sao constituidos. Esta ea problematica de Lacan. Assim, tern havido teorizacoesdiversas sobre a segunda parte do ensaio "Aparelhos ideo-logicos de Estado". Mas nada sobre a primeira parte. Finito!A investigacao simplesmente termina com as formulacoesinadequadas de Althusser sobre a reprodugao das relagoessociais de producao. Os dois lados da dificil questao daideologia sao fraturados naquele ensaio e desde entao ternsido consignados a dois polos. A questao da reproducao foiatribulda ao polo (masculino) marxista, enquanto a questaoda subjetividade, ao polo (feminista) da psicanalise. Desdeentao, nunca mais se encontraram. Este ultimo polo e consti-tuido e compreendido como uma questao "interna" daspessoas, que "diz respeito" a psicanalise, a subjetividade e asexualidade. E dessa forma e nesse ponto que a ligac.ao como feminismo tem sido cada vez mais teorizada. Ja o primeiro"diz respeito" as relacoes sociais, a producao e ao que ha demais concrete nos sistemas produtivos; o marxismo e osdiscursos reducionistas de classe "dizem respeito" a isso. Asconsequencias dessa bifurcacao do projeto teorico tem sidodesastrosas, causando subseqiientes irregularidades nodesenvolvimento da ideologia, sem falar em seus efeitospoliticos prejudiciais.

A IDEOLOGIA EM A FA VOR DEMARX

Em vez de seguir qualquer um dos dois caminhos, pretendodeixar o impasse por um momento e observar alguns pontosde partida alternativos em Althusser, a partir dos quais, creio,avan^os ainda podem ser alcancados. Bern antes de atingir aposicao "avancada" do ensaio "Aparelhos ideologicos de

178

Estado", em uma pequena parte de A favor de Marx (196571969, p. 231-236), Althusser faz algumas afirmacoes simplessobre a ideologia, que merecem ser repetidas e pensadas.E ali que ele define as ideologias como (parafraseando)sistemas de representacao — compostos de conceitos, ideias,mitos ou imagens — nos quais os homens e as mulheres (acres-cimo meu) vivem suas relacoes imaginarias com as reaisconduces de existencia. Vale a pena examinar em detalheesta afirmativa.

A designacao das ideologias como "sistemas de represen-tacao" reconhece seu carater essencialmente discursive esemiotico. Os sistemas de representacao sao os sistemas designificado pelos quais nos representamos o mundo para nosmesmos e os outros. Reconhece que o conhecimento ideolo-gico resulta de praticas especificas — as praticas envolvidasna producao do significado. Uma vez que nao ha praticassociais fora do dommio do significado (semiotico) seraotodas as praticas simplesmente discursos?

Neste ponto devemos tratar a questao com muito cuidado.Estamos na presenga de outro termo suprimido ou de ummeio-campo excluido. Althusser nos lembra que as ideias naoflutuam simplesmente no espaco vazio. Sabemos que elasestao la porque elas se materializam nas praticas sociais eas permeiam. Neste sentido, o social nunca esta fora dosemiotico. Cada pratica social e constituida na interagaoentre significado e representacao e pode, ela mesma, serrepresentada. Em outras palavras, nao existe pratica socialfora da ideologia. Entretanto, isso nao significa que, porquetodas as praticas sociais se situam no discursivo, nao ha nadana pratica social alem do discurso. Sei o que implica descre-ver como praticas processes sobre os quais sempre falamosem termos de ideias. As "praticas" parecem concretas. Elasocorrem em determinados locals e aparelhos — como assalas de aula, as igrejas, os auditories, as fabricas, as escolase as familias. E essa concretude nos permite afirmar que elassao "materials". Contudo, diferencas podem ser observadasentre os tipos de praticas. Vou sugerir uma delas. Se alguemesta engajado em parte de um processo de trabalho capita-lista moderno, esse alguem emprega, em combinacao comcertos meios de producao, sua forca de trabalho — compradapor um determinado preco — para transformar materia-prima

179

Page 93: Da Dispora - Stuart Hall

em produto ou mercadoria. Esta e a definicao de pratica — a

pratica do trabalho. Ela se situa fora do significado e dodiscurso? Certamente que nao. Como poderia um grandenumero de pessoas aprender aquela pratica ou juntar suaforca de trabalho na divisao do trabalho com os outros, diaapos dia, se o trabalho nao estivesse inserido no domfnio darepresentacao e do significado? Essa pratica de transfor-macao nao e, entao, nada mais que discurso? Claro que nao.Nao se pode afirmar que todas as praticas nao sao nada maisque ideologias so porque elas se situam na ideologia ou aideologia esta inscrita nelas. Ha uma especificidade aquelaspraticas cujo principal objetivo e produzir representacoesideologicas. Elas diferern de outras praticas que — de formainteligivel e significativa — produzem outras mercadorias.As pessoas que trabalham na midia produzem, reproduzem etransformam o proprio campo da representacao ideologica.Sua relacao com a ideologia difere em geral de outras em queos individuos produzem e reproduzem o mundo das merca-dorias materiais — que estao tambem inscritas pela ideo-logia. Barthes observou no passado que todas as coisas saotarnbem significances. Este segundo tipo de pratica opera naideologia, mas nao e ideologico em termos da especificidadede seu objeto.

Quero conservar a nocao de que as ideologias sao sistemasde representacao materializados em praticas, mas nao querofedchizar a "pratica". Frequentemente, neste nivel da teori-zacao, o argumento tende a identificar a pratica social com odiscurso social. Enquanto a enfase sobre o discurso estacorreta ao apontar a importancia do significado e da repre-sentacao, ela tem sido conduzida ao lado absolutamenteoposto, que nos permitira tratar toda pratica como se naohouvesse nada mais que a ideologia. Isso e simplesmenteuma inversao.

Observe-se que Althusser menciona "sistemas", nao "sis-tema". O importante sobre os sistemas de representacao eque eles nao sao unicos. Existem diversos deles em qualquerforrnacao social. Eles sao plurais. As ideologias nao operamatraves de ideias isoladas; mas em cadeias discursivas,agrupamentos, campos semanticos e formacoes discursivas.Ao ingressarmos em um campo ideologico e escolhermos

180

qualquer ideia ou representacao nodal, imediatamente acio-namos uma cadeia inteira de associates conotativas. Asrepresentacoes ideologicas conotam — convocam — umasas outras. Assim, uma variedade de sistemas ideologicos oulogicas distintas esta disponivel em qualquer forrnacao social.A nocao de uma ideologia dominante ou de uma ideologiasubordinada e uma forma inadequada de se representar acomplexa interacao dos distintos discursos ideologicos eformagoes em qualquer sociedade desenvolvida moderna.Tampouco e o terreno da ideologia constituido como um campode cadeias discursivas mutuamente exclusivas e internamenteauto-sustentaveis. Elas se contestam umas as outras geral-mente a partir de um repertorio comum e compartilhado deconceitos, rearticulando e desarticulando esses conceitosdentro de sistemas de diferenca ou equivalencia.

Tomemos a proxima parte da definicao de ideologiade Althusser — os sistemas de representacao nos quaisos homens e mulheres vivem. Althusser coloca viver entreaspas, pois para ele nao se trata de vida genetica ou estrita-mente biol6gica, mas a vida da experiencia, dentro da cultura,do significado e da representacao. Nao e possivel por urn fima ideologia e simplesmente viver o real. Sempre necessitamosde sistemas para representar o que o real significa para nose os outros. O segundo ponto importante sobre o "viver" eque precisamos compreende-lo de forma ampla. Por "viver"Althusser quis dizer que os seres humanos utilizam umavariedade de sistemas de representacao para experimentar,interpretar e "dar sentido" as condicoes de sua existencia.Consequentemente, a ideologia sempre pode definir um mes-mo objeto ou condicao objetiva no mundo real de maneirasdistintas. Nao existe "correspondencia necessaria" entre ascondicoes de uma relacao ou pratica social e as varias formaspelas quais estas podem ser representadas. Nao sucede daique, porque nao podemos conhecer ou experimentar umarelacao social que nao esteja "inserida na ideologia", elanao exista fora do aparato da representacao, como supoemalguns neokantianos da teoria do discurso: urn ponto jabem esclarecido por Marx na "Introducao de 1857", mas extre-mamente mal-interpretado pelo proprio Althusser.

Talvez a implicacao mais subversiva do termo "viver" sejaque ele conota o dominio da experiencia. E dentro dos

181

Page 94: Da Dispora - Stuart Hall

sistemas de representacao da cultura e atraves deles que nos"experimentamos o mundo": a experiencia e o produto denossos codigos de inteligibilidade, de nossos esquemas deinterpretacao. Conseqiientemente, nao ha experiencia fora dascategorias de representacao ou da ideologia. A nocao deque nossas cabe£as estao lotadas de ide"ias falsas que, entre-tanto, podem ser totalmente dissipadas quando nos abrimospara o "real" como um momento de absoluta autenticacao eprovavelmente a concepcao mais ideologica de todas. Este eexatamente o momento do "reconhecimento" em que desapa-rece o fato de o significado depender da intervencao dossistemas de representacao e nos parecemos seguros numaatitude naturalista. E um momento de extreme fechamentoideologico. Aqui estamos sujeitos a influencia da mais ideo-logica das estruturas — o senso comum, o regime do "tomarpor certo". Quando perdemos de vista o fato de que o sentidoe uma produgao de nossos sistemas de representacao, caimosnao na Natureza, mas na ilusao naturalista: o cume (ou aprofundidade) da ideologia. Consequentemente, ao contras-tarmos a ideologia com a experiencia, ou a ilusao com averdade autentica, deixamos de reconhecer que e impossivelexperimentar as "relacoes reais" de uma sociedade fora desuas categorias culturais ou ideo!6gicas. Nao se quer dizercom isso que todo conhecimento e simplesmente o produtoda nossa vontade de poder; certas categorias ideologicaspodem nos fornecer um conhecimento mais profundo ou ade-quado de determinadas relacoes do que outras.

Uma vez que nao existe uma relacao direta entre as condicoesde existencia social que vivemos e a forma como as experi-mentamos, torna-se necessario para Althusser denominar asrelacoes como "imaginarias". Ou seja, elas nao devem de formaalguma ser confundidas com o real. Somente mais adiante, emsua obra, e que este dominio se torna "o Imaginario" numsentido propriamente lacaniano.3 Pode ser que Lacan esti-vesse em sua mente desde o inicio do ensaio, mas ele nao sepreocupa all em afirmar que o conhecimento e a experienciaso sao posslveis gracas ao processo psicanalitico especificoque Lacan postulou. A ideologia e descrita como imaginariasimplesmente para que se possa distingui-la da nogao de queas "relacoes reais" declaram seus proprios significados deforma nao ambigud.

182

Finalmente, consideremos o uso que Althusser faz destaexpressao: "as reais condicoes de existencia" — escandaloso(dentro da teoria cultural contemporanea), porque aquiAlthusser se compromete com a ideia de que as relacoessociais de fato existem fora de suas experiencias ou repre-sentacoes ideologicas. As relacoes sociais de fato existem.Nascemos no meio delas. Existem independentemente danossa vontade. Sao reais em sua estrutura e tendencia. Naopodemos desenvolver uma pratica social sem representaressas condicoes para nos mesmos de uma forma ou de outra,mas as representacoes nao esgotam seu efeito. As relacoessociais existem, independentes da mente e do pensamento.Contudo, podem ser concebidas apenas no pensamento, nacabeca. E assim que Marx (1953/1973) tratou a questao na"Introducao de 1857" aos Grundrisse. E importante o fato deque Althusser afirma o carater objetivo das relacoes reais queconstituem os modos de producao nas formacdes sociais,embora sua obra posterior tenha fornecido o fundamento parauma teorizacao bem distinta. Aqui Althusser tende mais parauma posicao filosofica "realista" do que em suas manifes-tacoes kantianas ou spinozianas posteriores.

Pretendo agora ultrapassar a frase especifica que venhoexplicando, a fim de expandir duas ou tres outras ideias geraisassociadas a essa formulacao. Althusser afirma que essessistemas de representacao estao fundados essencialmenteem estruturas inconscientes. No ensaio anterior, ele parececonceber a natureza inconsciente da ideologia de formassemelhantes aquelas usadas por Levi-Strauss ao definir oscodigos de um mito como sendo inconscientes — em termosde suas regras e categorias. Nos mesmos nao temos cons-ciencia das regras e sistemas de classificacao de uma ideo-logia quando produzimos uma enunciacao ideologica qualquer.Contudo, como as normas da linguagem, elas sao abertasa inspecao racional e a analise pelos modos de interrupcaoe desconstrucao, o que pode revelar um discurso ate seusfundamentos e nos permitir observar as categorias que ogeraram. Conhecemos a letra da musica "Rule Britannia", massomos "inconscientes" a respeito de sua estrutura profunda[A musica, de 1875, e um hino ao imperialismo britanico.Seu refrao diz: Rule, Britannia! Britannia rules the waves! /Britons never shall be slaves. (Reine, Britannia! Britannia

183

Page 95: Da Dispora - Stuart Hall

reina sobre as ondas / Britanicos nunca serao escravos). N.da T.J — as nocoes de nacao, as grandes fatias da historiaimperialista, os pressupostos sobre o dominio global e asupremacia, o Outro necessario a subordinacao dos outrospovos — ricamente condensados em suas simples ressonanciascomemorativas. Essas cadeias de conotacao nao estao abertas(nem se sujeitam) a rnudanca e reformulacao no nivel cons-ciente. Conclui-se entao que elas sao o produto de processese mecanismos inconscientes num sentido psicanalitico?

Isso nos remete de volta a questao de como os sujeitos sereconhecem na ideologia. Como o relacionamento entre ossujeitos individuais e os posicionamentos de um discursoideologico especifico sao construidos? E possivel que algunsdos posicionamentos basicos dos individuos na linguagem,assim como certas posicoes primarias no campo ideologico,sejam constituidos atraves de processos inconscientes, numsentido psicanalitico, em seus estagios iniciais de formacao.Esses processos poderiam entao orientar profundamenteas formas pelas quais nos nos situarnos mais tarde nos dis-cursos ideologicos. E bem claro que esses processos de fatooperam na primeira infancia, tornando possivel a formacaode relacoes com os outros e o mundo exterior. Sao inextri-cavelmente amarrados — por exempio — a natureza e aodesenvolvimento sobretudo das identidades sexuais, Poroutro lado, nao esta de forma alguma comprovado que apenasestes posicionamentos constituam os mecanismos pelos quaistodos os individuos se localizam na ideologia. Nao estamosinteiramente costurados as nossas relacoes com o complexocampo dos discursos ideologicos historicamente situadosnaquele dado momento, quando vivemos a "transicao daexistencia biologica para a existencia humana" (Althusser,"Freud e Lacan", 1970/1971, p. 93). Permanecemos abertospara sermos posicionados e situados de formas distintas, emmomentos diferentes de nossa existencia.

Alguns afirmam que esses posicionamentos posterioressimplesmente recapitulam as posicoes primarias que estaoestabelecidas na resolucao do complexo de Edipo. Parecemais exato afirmar que os sujeitos nao sao posicionados emrelacao ao campo das ideologias exclusivamente pela reso-lucao de processos infantis inconscientes. Tambem saoposicionados pelas formacoes discursivas de formacoes

184

sociais especificas. Situam-se distintamente em relagao a gamade locals sociais. Parece-me erroneo supor que o processoque permite ao individuo falar ou rnesmo enunciar — aHnguagem — e o mesmo que permite ao individuo enunciara si mesmo, atraves de urna variedade de sistemas represen-tacionais especificos em determinadas sociedades, como umser que possui genero, raca, e socialmente sexuado etc, Osmecanismos universais de interpelagao podem fornecer ascondicdes gerais necessarias a linguagem. Porem, trata-se demera especulacao afirmar que eles fornecem as condigoesconcretas e suficientes a enunciagao de ideologias histori-camente especificas e diferenciadas. A teoria do discursoinsiste unilateralmente que uma explicacao da subjetividadeem termos dos processos inconscientes lacanianos constitui,por si mesma, toda a teoria da ideologia. Certamente, ateoria da ideologia deve desenvolver uma teoria dos sujeitose da subjetividade, como nao fizeram as primeiras teoriasmarxistas. Ela deve exphcar o reconhecimento do eu dentrodo discurso ideologico, aquilo que permite aos mdivlduosse reconhecerem no discurso e expressa-lo espontaneamentecomo seus autores. Mas isso nao e a mesma coisa que tomaro esquema freudiano, relido sob a perspectiva linguisticade Lacan, como uma teoria adequada da ideologia nasformacoes sociais.

O proprio Althusser parece anteriormente (em seu ensaio"Freud e Lacan", escrito em 1964 e publicado em Althusser,1970/1971) reconhecer a natureza necessariamente provi-soria e especulativa das proposicoes de Lacan. Ele repetiua sucessao de "identidades" que sustenta o argumento deLacan — a transicao da existencia biologica para a humanase assemelha a Lei da Ordem, que e a mesma da Lei daCultura, que "se confunde em sua essencia formal com aordem da linguagem" (p. 193)- Contudo, em urna nota de pede pagina, ele extra! a natureza puramente formal dessashomologias:

Formalmente: pois a Lei da Cultura que e introduzida primeira-mente como linguagem,.. nao e exaurida pela linguagem; seuconteudo sao as verdadeiras estruturas de parentesco e asformacoes ideologicas especificas nas quais as pessoas inscritasnessas estruturas vivenciam sua fun^ao. Nao basta saber que

185

Page 96: Da Dispora - Stuart Hall

0 ^

O

-§ § o

^ «

s: s 2-t

C

§5

2 I•0rtu<U00

^ g"«

<u5 u^

3

3

<ra s*,.u.§ eQOOJ

)w ?

« *-•

rt C

ia

_9

S ^

-S o^3

ti o<u

>" o

Iso" T3

33

u,

•u" S

c3 S

r9 3

CJ rt

3lsa

§^

rtOrtUi

turt'ci-i(U

2 <!OJ

.

.SS"1^ I'8 -2« 84>

J£,

"o ^^

5s

rt O

OJ

U

D

OJ-o -o1 o

(1J T3

>

C2

<D

•— «

rt

^

II

e 8">

O

> -o

^ rt

^

ti"2

SC3

^0 U

- u

rt C

U

D

I

S

§ -^ s-<«n

4-1

^

CA^

C0u

gnificadoaioria do

de,o

aa w

=;

N

OJ3 u

T)

O£ a^ S3 ^

^=^

Ort

uS

O

fjr^

"U

rt ,-

U.

G(U

-

13 2

>

wv?

2^C

u,

i^, ^

U.

r-

oj S

c 'S

S 2ti

°S "^

Srt

CX

s a3O

J3

U

6^

2 >

- 1* OJ

rt "O

u

«i t!

"O

rt

O

u o

<° 00

rt 5J

t> C

S

o« 'S

T3

=

5 2

C/} T

3.

V11>a ai »G

ui

0 rt

u

73at

rtC

^3

aj ~n

oo

g

d 3

> -a&. B

ao, senao na realidade. Minha famifinas distincoes classificatorias e

«"

u,

15«

E

s S?l

en

VP<U

a> ">

20

1

-3

«

qj «

-2 T3

QJv

rt

w£ - O

T3 <u

"*-0

>

<Uw rt

>

'£ rt

CZ

0

acsas

em sua aspizava muito es .2

O

0^

'S

. u

OJ 'C

w

"T

3

u

<U

o = 1g «"°s $

a

s S

|^1

J? ""

e>

«

cg •«

o

i s«DO

g

1>

u rt

S u s

a* « rt

_

U"

>O

« «

rt U

i V

H 1 e«a^«If.-^

rt

O «

(rt >-

3 rt

a1 a

o Sa >o>

oa "o«> s

• «

2

e §•

mpesmente

^2rt 8

.y ^00

D'O

T3

"3

OU

rt

2 a^

§r-

rt

§ .aU

i U

-

as« —

U

OJ

pessoa "de co

a familia ocidental e patriarcal e exbgama... devemos tambemcompreender as formacoes ideologicas que governam a pater-nidade, a maternidade, a vida conjugal e a infancia... Uma fartapesquisa sobre essas formacoes ideologicas precisa ser reali-zada. Esta e uma tarefa para o materialismo historico. (p. 211)

Porem, nas formulacoes posteriores (e mais ainda nodiluvio lacaniano que se seguiu) esse tipo de cuidado foiabandonado em uma verdadeira profusao de afirmacao. Numdeslize familiar, a afirmativa de que "o inconsciente e estru-turado como uma linguagem" torna-se "o inconsciente e omesmo que o acesso a linguagem, a cultura, a identidadesexual, a ideologia, e assim por diante".

0)"aa05WaaArtaa3U

i0)03(Uu,

Su>N"Sc4-1

<U3crO

e mais produtiva de se comecar a pensar a ideologia, quetambem percebo na obra de Althusser, embora nao em suaparte mais famosa. Reconhecendo que, nessas questoes —embora nosso aparato conceitual seja extremamente sofisti-cado e "avancado", estamos ainda no inicio de uma longa edificil Jornada, em termos de uma genuina compreensao, depesquisa substancial e de um progresso para o conhecimentorealmente "aberto" (ou seja, cientifico). No que diz respeito aessa "longa marcha", A favor de Marx antecede os voos daimaginacao e ocasionalmente, da fantasia que se apossam doensaio "Aparelhos ideologicos de Estado". Contudo, este textonao deve ser abandonado por esta razao apenas. "Contra-dicao e sobredeterminacao" contem uma ideia mais rica dedeterminacao do que Lendo O capital embora nao seja taorigorosamente teorizada. A favor de Marx traz uma nocao deideologia mais completa do que "Aparelhos ideologicos deEstado", embora nao seja tao abrangente.

LENDO UM CAMPO IDEOLCGICO

Quero tomar um breve exemplo pessoal para ilustrar comoalguns de meus comentarios sobre o conceito geral de ideo-logia de Althusser nos permitem pensar certas formacoesideologicas. Quero refletir sobre um complexo particular dediscursos que implicam as ideologias de identidade, lugar,

o o

V-,

U.

00 00

dj <u

a &o -So

3O

-Q

Ul

\pj

a o4>

>

1 -§

rt O

at

-- -a

-10 §g o

£4 ^^

Ui

i2

w<U

3

'£ ®*

Page 97: Da Dispora - Stuart Hall

porque, na percepgao destes, eu era, para todos os efeitos,"negro"! Em suma, o mesmo termo carregava conotacoesbem distintas porque operava em diferentes "sistemas dediferengas e equivalencias". E a posi^ao dentro das distintascadeias de significantes que "significa", e nao a correspon-dencia fixa, literal entre um termo isolado e uma posicaoqualquer denotada no espectro de cor.

O sistema caribenho era organizado pelas finas estruturasde classificacao dos discursos colonials de raca, organizadasem uma escala ascendente ate o termo maximo "branco" —este ultimo sempre fora do alcance, o termo impossivel,"ausente", cuja presenca-ausencia estruturava toda a cadeia.Na luta ferrenha por um lugar e uma posicao, que caracterizaas sociedades dependentes, cada grau da escala possui umaprofunda importancia. Em contrapartida, o sistema ingles eraorganizado em torno de uma dicotomia mais simples, maisapropriada a ordem colonizadora: "branco/nao-branco".O significado nao e um reflexo transparente do mundo nalinguagem, mas surge das diferencas entre os termos e cate-gorias, os sistemas de referencia, que classificam o mundo efazem com que ele seja apropriado desta forma pelo pensa-mento social e o senso comum.

Enquanto individuo vivo e concrete, sou mesmo qualqueruma dessas interpelacoes? Alguma delas me esgota? Naverdade, eu nao "sou" nem uma nem outra dessas formas deme representar, embora tenha sido todas elas em epocasdiferentes e ainda seja algumas delas, ate certo ponto'.Porem, nao existe um "eu" essencial, unitario — apenas osujeito fragmentario e contraditorio que me torno. Temposdepois me deparei novamente com o termo "de cor", como seeu estivesse do outro lado, alem dele. Tentei ensinar a meufilho que ele era "negro" [black] quando este estava apren-dendo o espectro de cores e ele dizia para mim que era"marrom". Obviamente, ele era ambos.

Certamente, sou das Indias Ocidentais — embora tenhavivido minha vida adulta na Inglaterra. De fato, a relacao entreos termos "West Indian" e "imigrante" e complexa demaispara mini. Nos anos 50, ambos eram equivalentes. Hoje otermo "West Indian" e muito romantico. Conota reggae, cubalibre, oculos escuros, mangas, e toda aquela salada de fruta

188

tropical enlatada que cai dos coqueiros. Esse e um "eu" ideali-zado (gostaria de me sentir assim mais vezesX "Imigrante"eu tambem conheco bem. Nao ha nada de romantico notermo. Coloca a pessoa inequivocamente como aquele quepertence a outro lugar. "E quando e que voce volta para casa?"Faz parte da "cunha estrangeira" da Sra. Thatcher. De fato,so bem tarde na vida vim a entender como esse termo meposicionava — e o tratamento naquela ocasiao veio de umadirecao bem inesperada. Foi quando minha mae me disse,durante uma breve visita a minha terra: "Espero que eles lanao te confundam com um desses imigrantes!" O choque doreconhecimento. Tambem fui as vezes "falado" por aqueleoutro termo ausente, nao dito, aquele que nunca esta la, otermo "americano", sem a dignidade sequer de um "N" maius-culo. O "silencio" em torno do termo era provavelmente omais eloqiiente de todos. Termos positivamente marcados"significam" por causa de sua posicao em relacao aquilo queesta ausente, nao marcado, nao dito, ou que e irnpronun-ciavel. O significado e relacional dentro de um sistema ideo-logico de presencas e ausencias. "Fort, da."

Althusser, em uma controvertida passagem do "Aparelhosideologicos de Estado", afirma que somos "ja e sernpre"sujeitos. Na verdade, Hirst e outros contestam isto. Se fos-sernos "ja e sempre" sujeitos, teriamos que nascer com aestrutura de reconhecimento e os meios de nos posicionarmosna linguagem ja prontos. Enquanto Lacan, a quern Althussere outros recorrem, usa Freud e Saussure para fornecer umaexplicacao de como essa estrutura de reconhecimento eformada (atraves da fase do espelho e das resolucoes docomplexo de Edipo etc.). Contudo, deixemos de lado por ummomento essa objecao, ja que uma verdade maior sobre aideologia esta implicita naquilo que Althusser afirma. Nosexperimentamos a ideologia como se ela emanasse livre eespontaneamente de dentro de nos, como se fossemos seussujeitos livres, "funcionando por conta pr6pria". Na verdade,somos falados ou falam por nos, nos discursos ideologicosque nos aguardam desde o nosso nascimento, dentro dosquais nascemos e encontramos nosso lugar. Conforme aleitura que Althusser fez de Lacan, o recem-nascido queainda deve adquirir os meios de se situar dentro da Lei daCultura ja esta sendo esperado, nomeado e posicionado

189

Page 98: Da Dispora - Stuart Hall

antecipadamente "pelas formas de ideologia (paterna/materna/conjugal/fraterna)".

Essa observacao me recorda uma experiencia de infanciasemelhante. Trata-se de uma historia frequentemente recon-tada em minha familia — sempre motive de risos, embora eununca tenha visto graca nela; faz parte do folclore familiar —de quando minha mae me trouxe do hospital depois quenasci. Minha irma olhou para o berco e disse: "Onde vocearranjou esse bebe coolie?" Os coolies na Jamaica sao osindianos, descendentes dos trabalhadores trazidos comosemi-escravos ao pais apos a Abolicao para substituiremos escravos nas plantacoes. Coolie denota, se e que e possivel,um grau abaixo de "negro" no discurso da raca. Esta foi aforma que minha irma encontrou de dizer que eu tinha saidobem mais escuro do que a media em nossa familia, o quepode acontecer nas melhores famflias miscigenadas. Nem seimais se isso aconteceu mesmo ou se foi uma historia fabri-cada por minha familia ou talvez se fui eu quern a inventou eagora me esqueci quando ou por que. Mas me senti, naquelaepoca como agora, convocado ao meu "lugar" por aquelahistoria. A partir de entao, meu lugar nesse sistema de refe-renda tornou-se problematico. Isso pode ajudar a explicarporque e como eu eventualmente me tornei aquilo pelo qualfui nomeado pela primeira vez: o coolie de minha familia,aquele que nao se ajustou, o estrangeiro, aquele que ficavana rua em ma companhia e cresceu com aquelas ideias malucasna cabeca. O Outro.

Que contradicdo gera um campo ideologico desse tipo?Seria "a contradicao principal entre capital e trabalho?" Essacadeia de significantes foi obviamente inaugurada em ummomento historico especifico — o momento da escravatura.Nao e eterna, nem universal. Foi a forma pela qual se tentoucompreender a insercao dos povos escravizados dos reinosda costa oeste da Africa nas relacoes sociais de producao dotrabalho forcado no Novo Mundo. Deixemos de lado, por ummomento, a questao controvertida do modo de producaonas sociedades escravocratas ser "capitalista" ou "pre-capi-talista", ou uma articulacao de ambos dentro do mercadoglobal. Nos estagios iniciais de desenvolvimento, para todosos efeitos praticos, os sistemas racial e de classe se sobre-punham um ao outro. Eram sistemas de equivalencia. As

190

categorias raciais e etnicas continuam a ser hoje as formaspelas quais as estruturas de dominacao e exploracao sao"vividas". Neste sentido, esses discursos tern mesmo a funcaode "reproduzir as relacoes sociais de producao". Entretanto,nas sociedades caribenhas contemporaneas, os dois sistemasnao correspondent um ao outro perfeitamente. Ha "negro" notopo da escala tambem, alguns deles exploradores de mao-de-obra negra, e outros que sao amigos de Washington. Nemo mundo se divide nitidamente entre suas categorias sociais/naturais, nem as categorias ideologicas necessariamenteproduzem seus modos "apropriados" de consciencia. Portanto,somos obrigados a dizer que ha um conjunto complexo dearticulacoes entre os dois sistemas de discurso. A relacao deequivalencia entre eles nao e fixa, mas tem se alterado histo-ricamente. Tampouco e "determinada" por uma causa unica,mas resulta de uma "sobre-determinacao".

Portanto, esses discursos claramente constroem a socie-dade jamaicana como um campo de diferenca social organi-zado em torno de categorias de raca, cor e etnia. A ideologiaaqui exerce a funcao de estabelecer, para uma populacao,classificacoes especificas organizadas em torno dessas cate-gorias. Na articulacao entre os discursos de classe e raca-cor-etnia (e o deslocamento efetuado entre elas que possibi-lita isso), este ultimo e constituido como o "discurso domi-nante", as categorias pelas quais as formas predominantes deconsciencia sao geradas, o terreno dentro do qual os sereshumanos "se movem, adquirem consciencia de sua posicao,lutam etc." (Gramsci, 1971, p. 377), os sistemas de represen-tacao pelos quais as pessoas "vivem a relacao imaginaria comsuas reals condicoes de existencia" (Althusser, 1965/1969,p. 233). Esta analise nao e academica ou util apenas porsuas distincoes teoricas e analiticas. A sobredeterminacaode classe e raca traz as mais profundas conseqiiencias —algumas delas altamente contraditorias — para a politica daJamaica e dos negros jamaicanos em qualquer lugar.

E possivel, entao, examinar o campo das relacoes sociais,na Jamaica e na Gra-Bretanha, em termos de um campo inter-discursivo gerado por pelo menos tres contradicoes (classe,raca e genero), cada qual com uma historia diferente, um mododistinto de operacao; cada uma divide e classifica o mundode formas diferentes. Seria entao necessario, em qualquer

191

Page 99: Da Dispora - Stuart Hall

formacao social especifica, analisar como a classe, a raca e oeenero sao articulados um com o outro para estabelecerposicoes sociais condensadas. As posicoes socials, pode-sedizer, sao aqui sujeitas a uma "dupla articulacao". Sao, pordefinicao, sobredeterminadas. Observar a superposicao oua "unidade" (fusao) entre elas, isto e, as formas pelas quaisconotam ou convocam umas as outras ao articularem as dife-rencas no campo ideologico, nao previne os efeitos especi-ficos de cada estrutura. Podemos pensar em situacoes politicasnas quais as aliancas poderiam correr de diferentes formas,dependendo de quais das articulacoes em jogo se tornariamdominantes entao.

Pensemos agora no termo "negro" dentro de um camposemantico ou uma formacao ideologica particular, em vez deum termo isolado: dentro de sua cadeia de conotacoes. Dareiapenas dois exemplos. O primeiro e a cadeia — negro-preguicoso-invejoso-traicoeiro etc. que flui da identificacaode "negro" em um momento historico especifico: a epoca daescravidao. Isso nos alerta para o fato de que, embora adistincao "negro/branco" articulada por essa cadeia nao sejadada simplesmente pela contradicao do capital-trabalho, asrelacoes sociais caracteristicas daquele momento historicoespecifico constituem seu referente nesta formacao discursivaespecifica. No caso do Caribe, "negro" e suas conotacoes saouma forma de representar como as pessoas de carater etnicodistinto foram inseridas nas relacoes sociais de producao.Mas essa cadeia de conotacoes certamente nao e a unica.Uma outra, inteiramente diferente, e gerada dentro dos pode-rosos discursos religiosos que tanto tern varrido o Caribe: aassociacao da luz com Deus e o espirito, e da Escuridao ou"negrume" com o Inferno, o Diabo, o pecado e a condenacao.Quando eu era crianca e era levado a igreja por urna dasminhas avos, pensava que o apelo do pastor negro ao TodoPoderoso, "Senhor, ilumine nossa escuridao", fosse um pedidobem especifico por um pouco de assistencia divina pessoal.

192

A LUTA IDEOLOGICA

E importante examinar o campo semantico dentro do qua!qualquer cadeia ideologica ganha significado. Marx noslembra que as ideias do passado sobrecarregam as mentesdos vivos como um pesadelo. O momento da formacaohistorica e critico para qualquer campo semantico. Essaszonas semanticas adquirem forma em certos periodos histo-ricos: por exemplo, a formacao do individualismo burguesnos seculos dezessete e dezoito na Inglaterra. Elas deixamtraces de suas vinculacoes, bem depois do desaparecimentodas relacoes sociais as quais elas se referiam. Esses tracospodem ser reativados num estagio posterior, ate mesmoquando os discursos ja tiverem se fragmentado em ideologiasorganicas e coerentes. O senso comum contem aquilo queGramsci denominou tracos de uma ideologia "sem inven-tario". Tomemos como exemplo o traco do pensamento reli-gioso em um mundo que se ere secular e que, portanto,investe de ideias seculares o "sagrado". Embora a logica dainterpretacao religiosa dos termos tenha sido rompida, orepertorio religioso continua a se arrastar atraves da historia,sendo util em uma variedade de novos contextos historicos,reforcando e fundamentando ideias aparentemente mais"modernas".

Nesse contexto, podemos localizar a possibilidade da lutaideologica. Uma cadeia ideologica particular se torna umlocal de luta nao apenas quando as pessoas tentam desloca-la,rompe-la ou contesta-la, suplantando-a por um conjunto intei-ramente novo de termos, mas tambem quando interrompemo campo ideologico e tentam transformar seus significados pelamodificacao ou rearticulacao de suas associacoes, passando,por exemplo, do negative para o positive. Freqiientemente,a luta ideologica consiste na tentativa de obter um novoconjunto de significados para um termo ou categoria ja exis-tente, de desarticula-lo de seu lugar na estrutura significativa.Por exemplo, e justamente por conotar aquilo que e maisdesprezado, despossuido, ignorante, incivilizado, inculto,maquinador e incompetente que o termo "negro" pode sercontestado, transformado e investido de um valor ideologicopositive. O conceito de "negro" nao e propriedade exclusiva

193

Page 100: Da Dispora - Stuart Hall

de qualquer grupo social especifico ou discurso isolado.Usando a terminologia de Laclau (1977) e de Laclau e Mouffe(1984), o termo, apesar de suas poderosas ressonancias, naopossui um "pertencimento de classe" obrigatorio. No passadofoi profundamente inserido nos discursos de distinc.ao e abusoraciais. For muito tempo esteve aparentemente preso aosdiscursos e praticas de explorae.ao social e economica. Noperiodo da historia jamaicana, quando a burguesia nacionalquis se juntar as massas na luta pela independencia politicaformal do poder colonizador — uma luta na qual a burguesialocal, nao as massas, emergiu como a principal forca social —o "negro" era uma especie de disfarce. Na revolugao culturalque varreu a Jamaica no final dos anos 60 e 70, quando pelaprimeira vez o povo reconheceu e aceitou sua heranga negra-africana-escrava-negra, e o centro de gravidade da sociedadese deslocou para as "raizes", para a vida e a experienciacomum das sub-classes negras urbanas e rurais como repre-sentantes da essencia cultural de "Jamaican-idade" (esse e omomento da radicalizacao politica, da mobilizacao emmassa, da solidariedade com as lutas dos negros por liber-dade em outros lugares, dos "irmaos de alma" e do "Sour,bem como do reggae, de Bob Marley e da religiao rastafari),"negro" foi reconstituido como seu oposto. Tornou-se o sitioda construcao de uma "unidade", do reconhecimento positiveda "experiencia negra": o momento da constituicao de umnovo sujeito coletivo — as "massas negras em luta". Essatransforma^ao no significado, posicao e referenda de "negro"nao seguiu, nem refletiu, a revolucao cultural negra naJamaica naquele periodo. Foi uma das formas pelas quaisaqueles novos sujeitos foram constituidos. O povo — os indi-viduos concretos — sempre esteve presente. Mas, enquantosujeitos-em-luta por um novo tempo na historia, eles surgiampela primeira vez. A ideologia, atraves de uma categoria antiga,foi constitutiva de sua formagao em oposic.ao.

Portanto, a palavra em si nao possui uma conotacao declasse especifica, embora sua historia seja longa e nem taofacilmente desmontavel. Enquanto os movimentos sociais or-ganizam lutas em torno de um programa especifico, os signi-ficados que parecem ter sido fixados para sempre comec.am aperder suas ancoragens. Em suma, o significado do conceito

194

mudou como resultado da luta em torno das cadeias de cono-tacao e das praticas sociais que possibilitaram o racismoatraves da construcao negativa dos "negros". Ao invadir oamago da definicao negativa, o movimento negro tentou"roubar o fogo" do proprio termo. Porque "negro" antessignificava tudo que devia ser menos respeitado, agora podeser afirmado como "Undo", a base de nossa identidade socialpositiva, que requer e engendra respeito entre nos. "Negro",portanto, existe ideologicamente somente em relacao acontestacao em torno dessas cadeias de significado e asforc.as sociais envolvidas nessa contestac.ao.

Eu poderia ter tornado qualquer conceito-chave, categoriaou imagem em torno da qual os grupos tern se organizado emobilizado ou em torno do qual as praticas sociais emer-gentes tern se desenvolvido. Mas quis tomar um termo cujaressonancia afeta uma sociedade inteira, em funcao do qua!toda a direc.ao da luta social e do movimento politico semodificou na historia do nosso proprio tempo. Dessa forma,pretendi sugerir que a concepcao nao reducionista dessetermo, dentro da teoria da ideologia, pode abrir campo paraalgo mais do que a troca idealista dos significados "bom" ou"mau" ou a luta que acontece apenas no discurso, que se fixapermanentemente pela forma como os processes inconscientesespecificos sao resolvidos na infancia. O campo do ideolo-gico possui seus proprios mecanismos; e um campo "relati-vamente autonomo" de constituicao, controle e luta social.Nao e independente, nem esta livre dos determinismos. Masnao e redutivel a simples determinacao de qualquer um dosoutros niveis de formacao social em que a distingao entrenegro e branco se tornou politicamente pertinente e atravesda qual toda a "inconsciencia" racial foi articulada. Esse pro-cesso tern consequencias e implicacoes concretas na maneiracomo a formac.ao social como um todo se reproduz ideologi-camente. A luta em torno de "negro", caso esta se torne forteo suficiente, pode impedir a sociedade de se reproduzir funcio-nalmente, daquela forma antiga. A propria reproduce socialse torna um processo contestado.

Ao contrario da enfase no argumento de Althusser, a ideo-logia nao possui apenas a func.ao de "reproduzir as relac.6essociais de producao". A ideologia tambem estabelece limites

195

Page 101: Da Dispora - Stuart Hall

para que uma sociedade-em-dominancia possa se reproduzirde forma facil, tranquila e funcional. A ideia de que as ideo-logias estao ja e sempre inscritas nao nos permite pensaradequadamente sobre as mudancas de enfase na linguageme na ideologia, o que e um processo constante e sern fim — oque Volochmov (1930/1973) denominou "a plurivalencia dosigno ideologico" ou a "luta de classe na linguagem".

[HALL, S. Signification, Representation, Ideology: Althusser andthe Post-Struturalist Debates. Critical Studies in Mass Commu-nication, v. 2, n. 2, p. 91-114, June 1985. Traducao de AdelaineLa Guardia Resende.]

NOTAS

1 O termo gerai "teoria do discurso" se refere a uma gama de desenvolvi-mentos teoricos relacionados e recentes na linguistica e na semiotica, bemcomo na teoria psicanalitica, que sucedeu a "ruptura" operada pela teoriaestruturalisca nos anos 70, com a obra de Bardies e Althusser. Alguns exemplosna Gra-Bretanha seriam o trabalho recente sobre o cinema e o discurso emScreen, escritos critico-tedricos influenciados por Lacan e Foucault, e odesconstrucionismo pos-Derrida. Nos Estados Unidos, muitas dessas tendenciaspoderiam ser agora incluidas sob o titulo de "pos-modernismo".

2 Pelo termo "articulacao" quero dizer uma conexio ou vmculo que nao enecessariamente dada em todos os casos, como uma lei ou fato da vida, masalgo que requer condicoes particulares para sua emergencia, algo que deveser positivamente sustentado por processes especificos, que nao e "eterno"mas que se renova constantemente, que pode, sob cerias circunstancias,desaparecer ou ser derrubado, levando a dissolucao de antigos vfnculos e anovas conexoes — re-articulacoes. E importance ainda que uma articulacaoentre praticas distintas nao significa que estas se tornam identicas ou queuma se dissolve na outra. Cada qual retem suas determtnacoes distintas, bemcorno suas condicoes de existencia. Contudo, uma vez feita a articulacao,as duas praticas podem funcionar em conjunto, nao como uma "identidadeimediata" (na linguagem utilizacla por Marx na "Introducao de 1857"), mascomo "distincoes dentro de uma unidade".

3 Em Lacan (1966/1977), o "Imaginario" sinaliza um relacionamento deplenitude com a imagem. Opoe-se ao "Real" e ao "Simbolico".

196

BIBLIOGRAFIA

ALTHUSSER, L. For Marx. Tradu^ao de B. Brewster. London: PenguinPress, 1969. (Originalmente publicado em 1965). [A favor de MarxTradugao de Dirceu Lindoso. Rio de Janeiro: Zahar, 19791

ALTHUSSER, L. Lenin and Philosophy and Other Essays. Tradu^ao deB. Brewster. London: New Left, 1971. (Originalmente publicado em1970.)

ALTHUSSER, L.; BALIBAR, E. Reading Capital Traducao de B. Brewster.London: New Left, 1970. (Originalmente publicado em 1968.)

DERRIDA, J. OfGrammatology. Traducao de G. C. Spivak. Baltimore:Johns Hopkins UP, 1977.

FOUCAULT, M. Power/knowledge-. Selected Interviews and OtherWritings 1972-1977. Organizacao e traducao de C. Gordon, I. Marshall,J. Mepham, K. Soper. New York: Pantheon, 1980. (Originalmentepublicado em 1972).

GRAMSCI, A. Selections from the Prison Notebooks. Traducao de Q.Hoare e G. Nowell-Smith. New York: International, 1971.

HALL, S; SLACK, W. J.; GROSSBERG, L. Cultural Studies. London:Macmillan. (Em vias de publicacao).

HALL, S. Marx's Notes on Method: A 'Reading' of the '1857 Introduction'.Working Papers in Cultural Studies, v. 6, p. 132-170, 1974,

LACAN, J. Ecrits: a selection. Traducao de A. Sheridan. New York:International, 1977. (Originalmente publicado em 1966.)

LACLAU, E. Politics and Ideology in Marxist Theory, London: NewLeft, 1977-

LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemony and Socialist Strategy. London:New Left, 1985.

LEVI-STRAUSS, C. Structural Anthropology. Traducao de C. Jacobson eB. G. Schoepf. London: Penguin, 1972. (Originalmente publicado em1958.)

197

Page 102: Da Dispora - Stuart Hall

MARX, K. Early Writings. Tradupao T. B. Bottomore. London: C. A.

Watts, 1963.

MARX, K. Capital. London: Lawrence and Wishart, 1970, v. 3.

MARX, K. Grundrisse. Traducao de M. Nichoiaus. London: Penguin,

1973-

MARX, K; ENGELS, F. The German Ideology. London: Lawrence andWishart, 1970.

POULANTZAS, N. Political Power and Social Classes. Traducao de T.O'Hagan. London: New Left, 1975. [1968].

VOLOCHINOV, V. N. Marxism and the Philosophy of LanguageTraducao de I. Matejka e I. R. Tutunik. New York: Seminar, 1973.[1930]. [Marxismoeafilosofia da linguagem. Sao Paulo: Hucitec, 1981].

198

ESTUDOS CUME S E U L E G A D O J E O R I C O

O tituio "Estudos culturais e seu legado teorico" implicaque se olhe para o passado, de forma a poder consultar-se epensar-se o presente e o futuro dos estudos culturais emretrospectiva. Parece mesmo ser necessario fazer-se algumtrabalho genealogico e arqueologico ncs arquivos. Ora, mee extremamente dificil lidar corn a questao dos arquivos, pois,no que toca aos^jujos^ujturals) sinto-me comojom tableauvivant, um espirito do passado ressuscitado, outorgando-sea si propricTa autoridaBe^3e urna orieem. No final das contas,± *~ . , , ._ . ^ -1—-.-i-iiQ- •——"• '

os estudos culturais nao emergiram em algum lugar naquelemomento em que conheci Raymond Williams, ou na trocade olhares entre eu e Richard Hoggart? Os estudos culturaisteriam nascido nesse momento, saindo prontos da nossacabeca, ja em estado adulto! Quero falar do passado, mascertamente nao dessa forma. Nao gostaria de me referir aosestudos culturais britanicos (que, de qualquer modo, e umsignificante com o qual me sinto pouco a vontade) de umaforma patriarcal, como guardiao da consciencia dos estudosculturais, esperando escolta-los de volta aos parametros desua verdadeira essencia. Em outras palavras, quero esquivar-me dos numerosos fardos de representacao que as pessoasgeralmente carregam consigo — carrego pelo menos tres:espera-se que eu fale por todos os individuos de raca negrasobre todas as questoes teoricas, cnticas etc., como tambemse espera, as vezes, que eu represente quer a politica britanica,

Page 103: Da Dispora - Stuart Hall

X\

quer os estudos culturais. Chama-se a isto o fardo do hornemnegro, e gostaria de poder escapar-me dele neste momento.

Paradoxalmente, o meu objetivo acarreta uma visao auto-biografica. Pensa-se a autobiografia habitualmente como algorevestido da autoridade da autenticidade. Contudo, terei quefalar de um ponto de vista autobiografico, se quiser fugir deter a ultima palavra no assunto. Vou falar da minha perspec-tiva sobre certos mementos e legados teoricos nos estudosculturais, nao por esta constituir uma verdade, nem porrepresentar a unica forma de se contar a hist6ria. Eu proprioja a contei, em vezes anteriores, de multiplas formas alterna-tivas; e tenciono voltar a conta-la de forma diferente. Masneste exato momento, para a presente conjetura, desejariatomar uma posicao em relacao a grande narrativa dos estudosculturais, com o fim de incentivar reflexoes sobre os estudoscuIturais^ oinc^pra^aj sobre o nosso posicionamento insti-tucional e sobre o seu projeto. Quero faze-lo ao referir-me aalguns legados ou momentos teoricos, mas de uma maneiramuito particular. Este ensaio nao consiste nurn comentariosobre o exito ou utilidade de posicionamentos teoricosdistintos nos estudos culturais (deixo esse objetivo paraoutra ocasiao). Consiste, antes, numa tentativa de transmitira minha impressao de certos momentos nos estudos culturais,e a partir dai, de marcar algumas posicoes relativamente aquestao geral do relacionamento entre a teoria e a politica.

_Os ^sludQS_c_uIturaig sjjD_urna^Jbrfnacao discursiva, nosentido. iltiano do termcx Apesar de~liTguris def~nostermos estado presentes quando os estudos culturais assu-miram esse nome, eles nao tern uma origem simples. Muitodo trabalho do qual os estudos culturais surgiram ja seencontrava presente, a meu ver, na obra de outros autores.Raymond Williams partilha da mesma opiniao, e traca, noensaio intitulado "The Future of Cultural Studies" (1989), asraizes dos estudos culturais nos primordios do movimentopara a educacao dos adultos. "A relacao^ntre jjrnjgroieto e

decisiva", escreve, por estes ultimo^-:6nsistirem em "diferentes modos de materializar... e subse-qiientemente de descrever uma disposicao comum de energiae direcao". O s e s t u d o_s_ c ' u It ur ai_s^ jiba r^cjjT^_d|sjguj^c^ m ul-!J£lj^.j2ejT^^mQ_aujr^^endem um conjumo^de formacoes, com as suas clifeTelTtes

200

conjunturas e momentos no passado. Gostaria de insistirna variedade de~trafealrTos Tfiefentes' aos estudos culturais.Consistindo sempre num conjunto de formacoes instaveis,encontravam-se "centrados" apenas entre aspas, de um modopart icular que tentarei definir em seguida.^Os estudosculturais_tiyeram_urna_grande dlversidade de traietoriasL muitosseguiram e seguem percursos distintos no seu interior; foramconstruidos por um numero de metodologias e posiciona-mentos teoricos diferentes, todos em contencao uns com osoutros. O trabalho teorico do Centre for Contemporary ICultural Studies era mais apropriadamente chamado de \"ruido teorico", sendo acompanhado por uma quantidade /razoavel de sentimentos negatives, discussoes, ansiedades \instaveis, e silencios irados. ~s

Ora, sera que isto significa que os estudos culturais naoconstituem urna area de regulamentacao disciplinar, ou seja,que vale qualquer tipo de acao desde que o autor opte por sedenominar ou se posicionar dentro do seu projeto e pratica?Tarnbem nao me agrada esta formulacao^ Apesar -_do j^rojelados estudos cujniiais..s£-cacaci££i2aj pela(a^ertur^jiaD_ s.e.

reduzlr a um plural ism c^ s^irnpjis^a. Sim, recusa-se aser uma grande narrativa ou um meta-discurso de qualquerespecie. Sim, consiste num projeto aberto ao desconhecido,ao que nao se consegue ainda nome]ar7~Todavia, demonstravontacle ern~conectar-se; tern interesse em suas escolhas. Eimportante chegar-se a uma definicao dos estudos culturais;nao podem consistir apenas em qualquer reivindicacao quemarcha sob uma bandeira particular. E uma imciatiya ouproieto serio)_g_au^j^e^nscj^e^jTg_aspecto "politico" dosestudos cultaraLs. Nao que uma dada politica se encontreinscrita, a priori, nos estudos culturais. No entanto, algo estaem jogo nos estudos culturais de uma forma que, acho eespero, nao e exatamente o caso em muitas outras importantespraticas criticas e intelectuais. Registra-se aqui uma tensaoentre a recusa de se fechar o campo, de policia-lo e, ao mesmotempo, uma determinac.ao de se definirem posicionamentosa favor de certos interesses e de defende-los. Essa e a tensao— a abordagem dialogica a teoria — que quero tratar devarias formas ao longo do presente ensaio. Se bem que naoacredite no fechamento do conhecimento, considero que apolitica nao e possivel sem o que denominei de "clausura

201

/}'

Page 104: Da Dispora - Stuart Hall

arbitraria"; sem ocomo clausura arbitraria. Em outras palavras, nao entendo

^ufna-pi=afica^ue*terua~"fazer uma diferenca no mundo que naotenha alguns pontos de diferenca ou distincao a definir edefender. Trapse de^osicjpnaingntos, apes2tr_de_estes.ultimos nao serem nem finais nem absolutos. Nao podemser traduzidos intactos de uma conjuntura para outra; naose pode esperar que se mantenham no mesmo lugar. Querovoltar aquele momento em que se definiam os interessesdos estudos culturais, aqueles mementos em que os posicio-namentos comecavam a ter um peso.

Esta e uma forma de focar a questao da "mundanidade"dos estudos culturais, para usar um termo de Edward Said.Nao fico, aqui, com as conotacoes seculares da metafora damundanidade, mas antes com a mundanidade dos estudosculturais. Falo da "sujeira" do jogo semiotico, se me permitema expressao. EstotTtentandQ devolYer o proieto dos estudosculturais do ar Iimr^dp_do__significado, da textuaiidade e dateoria, para algo sujo, bem mais_embaixo. Isso envolve odificil exercicio de examinar algumas das "viradas" ou conjun-turas teoricas mais cruciais nos estudos culturais.

O primeiro traco que quero desconstruir esta relacionadoa ideia de que os estudos_cjjkurais_britariicos se definem porterem se tornado, a certa altura, uma pratica critica marxista.O que significa exatamente esta designacao dos estudosculturais como teoria critica marxista? Como podemos pensaros estudos culturais naquele momento? De que momentoestamos falando? Quais as implicacoes para os legadosteoricos, traces e seqiielas do marxismo nos estudos cul-turais? Ha diversas formas de se contar a historia, e lembrem-sede que nao proponho esta versao como a unica narrativapossivel. Contudo, vou apresenta-la de um modo que tal-vez os surpreenda.

f Entrei nos estudos culturais pela Nova Esquerda, e elaI sempre considerou o marxismo como problema, dificuldade,

perigo, e nao como solucao. Por que? Nada teve a ver com/ questoes teoricas enquanto tais, ou em isolamento, mas com

/ o fato de que a minha formacao politica, bem como a daNova Esquerda, ocorreram num momento historicamentemuito semelhante ao atual — um fato que me surpreende

202

ter passado desapercebido por tanta gente — , o momenio°e fato,

a primeira Nova Esquerda britanica emergiu em 1956 nomomento do desmantelamento de todo um projeto histo-rico-politico. Neste sentido, entrei no marxismo de costas:como se fosse contra os tanques sovieticos em Budapeste.Com estas palavras, nao estou negando que tanto eu quantoos estudos culturais fomos, desde o inicio, fortemente influen-ciados pelas questoes que o marxismo, como projeto poli-tico, colocou na agenda: o "pocier, a extensao global e ascapacidades de realizacao historica do capital; a questao declasse social; os relacionamentos complexes entre o poder— termo esse que e mais facil integrar aos discursos sobrecultura do que "exploracao" — , e a exploracao; a questao deuma teoria geral que poderia ligar, sob uma reflexao critica,os dominios distintos da vidaf a politica e a teoria, a teoria ea pratica, questoes economicas, politicas, ideologicas, eassim por diante; a propria nocao de conhecimento critico ea sua producao como pratica. Tais questoes cruciais referem-seao que significava trabalhar na vizinhanca do marxismo,sobre o marxismo, contra o marxismo, com ele e para tentardesenvolve-lo.

Em nenhum momento os_estudos_culturais-eL-Q marxismose encaixaram perfeitamente, em terrnos teoricos. Desde oinicio (permitam-me que me expresse assim por agora), japairava no ar a sempre pertinente questao das grandes insu-ficiencias, teoricas e politicas, dos silencios retumbantes, dasgrandes evasoes do marxismo — as coisas de que Marx naofalava nem parecia compreender, que eram o nosso objetoprivilegiado de estudo: cultura, ideologia, linguagern, osimbolico. Pelo contrario, os elementos que aprisionavam omarxismo como forma de pensamento, como atividade depratica critica, encontravam-se, ja e desde sempre, presentes— a ortodoxia, o carater doutrinario, o determinismo, oreducionismo, a imutavel lei da historia, o seu estatuto comometanarrativa. Isto e, o encontro entre os estudos culturaisbritanicos e o marxismo tern primeiro que ser compreendidocomo o envolvimento com um problema — nao com umateoria, nem mesmo com uma problematica. Comeca, e desen-volve-se, por meio de uma critica de um certo reducionismo

203

Page 105: Da Dispora - Stuart Hall

NJ-

e economicismo, que creio nao ser.extrmseco, mas mtnnsecoao marxismo; a contestacao do modelo de base e superestru-tura atraves do qual ambos os marxismos, o sofisticado e ovulgar, tentaram pensar o relacionamento entre sociedade,economia e cultura. Encontrava-se localizado e situado nacontesta^ao necessaria e prolongada, e por enquanto inter-minavel, da questao da falsa consciencia. Exigia, no meu caso,uma ainda incompleta contestacao do profundo eurocen-trisrno da teoria marxista. Quero precisar este ultimo aspecto.Nao se trata apenas do local de nascenca de Marx, nem dostemas de que falava, mas antes do modelo situado no amagodas partes mais desenvolvidas da teoria marxista, quesugeriam a evolucao organica do capitalismo a partir das suasproprias transformagoes. Mas eu era oriundo de uma socie-dade onde o profundo tegumento da sociedade, economia ecultura capitalistas tinha sido imposto pela conquista e pelacolonizac.ao. Esta nao e uma critica vulgar, mas sirn teorica.Nao responsabilizo Marx por ter nascido onde nasceu; apenasquestiono a teoria destinada a apoiar o modelo em torno doqual se encontra articulada: o seu Eurocentrismo.

Quero sugerir uma metafora diferente para o trabalhoteorico: uma metafora de luta, de combate com os anjos.A^nica_teoria que vale a penaretere^aquela^que voce ternde contestar. nao a que voceDesejaria dizer aigo^rnaisTdiante sobre a surpreendentefluencia teorica dos estudos culturais contemporaneos.Contudo, a minha propria experiencia com a teoria — e omarxismo e urn exemplo paradigmatico — consiste numcombate com os anjos — uma metafora que voces podeminterpretar o mais literalmente possivel. Lembro-me de terlutado com^Althusser. Lembro-me de, ao ver a ideia_de^rjraticate6rica" em Lendo O Capital, pensar, "ja li o suficiente". Disse amirn mesmo: nao cederei uni milimetro a esta traduc.ao pos-estruturalista malfeita do marxismo classico, a nao ser queela me consiga veneer, a nao ser que me consiga derrotar noespirito. Tera_que caminhar sobre o mejj_jca,daver para meconvencer. Declarei-lhe guerra, ate a morte. Umartigo longoalgo prolixo (Hall, 1974) que se debruca sobre a Introducao,escrita por Marx em 1857, aos Grundrisse, no qual procureidefinir a diferenca entre o estruturalismo da epistemologiamarxista por urn lado, e o da althusseriana por outro, foi

204

apenas o inicio deste longo envolvimento. E esta nao eapenas uma questao pessoal. No_Cejiir^qr_ComejTiporaryJiiltur^JJStjxdi.eaj durante cinco ou seis anos, muito depoisda moda antite6rica ou da resistencia a teoria nos estudosculturais ter sido superada, decidimos, de uma forma muitoantibritanica, mergulhar na teoria: demos a volta em todo opensamento europeu, para nao fazermos uma simples capi-tulacao ao Zeitgeist, tornando-nos marxistas. Lemos o idea-_

alemao, lemos Weber ao avesso, lemos_g_id_ealisnio_ s i r g - i t i c a ideaiista~ae arte^ Qa escrevi a

respeito nos artigos intituTaHos^O interior da ciencia: ideo-logia e a sociologia do conhecimento" (1980a) e "CulturalStudies and the Centre: Some Problems and Problematics"(1980b).)

Assim, ajio£ao_de que o marxismo e os estudos £ulturais Iencaixaram um no olTtToT^econnecehdo uma afinidade /

~TTrie"crrata eh'tre"si e^danclo as maos em algum momento de/v

sintese hegeliana ou teleologica — consistindo este no\ ' ffajmomento fundadgx.dos- estudos.,culturais,rrr.^.staJ.Qtairnente /errada. Nao podia ser mais diferente do que isso. E quandofjeventualmente, na decada de 70, os estudos culturais brita-nicos avancaram — de formas muito distintas, convenhamos— dentro da problematica do marxismo, deveria entender-seo terrno "problematica" num sentido genuino, nao apenas numsentido formalista-teorico: como problema, incidindo tantosobre a luta contra os constrangimentos e limites daquelemodelo quanto sobre as questoes necessarias que o mar-xismo nos exigia responder. E quando, por fim, no meupropj-krtntbalho, procurei aprender com os avancos teoricos

trabalhar com eles, foi apenas porque certasestrategias de evasao teriam obrigado a obra de Gramsci, dediversas formas, a responder ao que apenas posso chamar(eis outra metafora para o trabalho teorico) os enigmasda teoria — aquilo que a teoria marxista nao conseguiaresponder, oiT^a^^oVassuntos relatives ao mujidg^moderno

^descobertos poj^^rams^Fque~"perm"aneciam sem solucao"^erTtTo~do"~quadr6 conceitual da grande teoria, o marxismo,no qual continuou a trabalhar. A certa altura, as questoesque ainda queria abordar eram-me inacessiveis, excetoatraves de um desvio gramsciano. Nao por que Gramsci asresolveu, mas porque pelo menos as abordou. Nao desejana

205

Page 106: Da Dispora - Stuart Hall

A

aqui apresentar a minha opiniao pessoal sobre o que osestudos culturais no coni&xto_britanico teriam, num dadoperiodo, aprendido conVGramsc;!:

sobre a natureza da propria culjura, sobr1 , obre-aJm^ojtancia^jia^e^fiecificidade histo-

li^^ da

de classe apjenas^se^sej^corre a nocao deslocad^de con juntoe de bjocos. Esses sao os ganhos decorrentes de um desviovia Gramsci, mas minha intengao nao e de falar deles. SobreGramsci, neste contexto, quero dizer que, enquanto elepertencia ou pertence a problematica do marxismo, a suaimportancia para aquele momento dos estudos culturaisbritanicos consiste precisamente em quanto ele deslocouradicalmente algumasdas herangas marxistas nos estudos

jcuTTurais. O car ate r radical do "deslocamentc^gfarnsciaiio doTrrarxismo ainda nao foi compreendido, e provavelmente nuncasera levado em conta, agora que estamos entrando na era dopos-marxismo. E esta a natureza do movimento da historia edo modismo intelectual. Contudo, Gramsci contribuiu comalgo mais para os estudos culturais, e gostaria de apro-fundar-me um pouco nesse tema, pois essa contribuicaoenvolve o que chamo da necessidade de reflexao sobre anossa posic.ao institucional e a nossa pratica intelectual.

Assim como fizeram outras pessoas ligadas aos estudosculturais e especialmente no Centro, tentel descrever o quepensavamos estar fazendo com o tipo de trabalho intelectualali estabelecido. Devo admitir que, apesar de ter lido cliversosregistros mais sofisticados e elaj3j3ra4oA-&-£l£Jjrarnsd aindame parece ser o quejnais se_aproxima daquilo queprocura-

jvamos fazer. Certamente, sua frase "a procni^ao^elrTtelectuaisorganicos" se revela problematica. Mas para mim nao haduvida de que buscavamos umaprJ^ca^jislitucionaLjiosestudos culturais u^ l Ide^5e~roz l iLum intelectual orga-

sabiamos previamente o que isso significaria,no contexto britanico dos anos 70, e nao tfnhamos certezade que reconheceriamos essa figura, caso conseguissemosproduzi-la. A dificuldade inerente ao conceito de intelectualorganico e que o mesmo consiste no aparente alinhamentodos intelectuais com um movimento historico emergente enao conseguiamos perceber entao, como nao vislumbramos

206

agora, onde se encontrava esse movimento. Eramos interde refe-

..rencia: intelectuais organicos com uma nostalgia ou vontadeou esperanca (para usar uma frase de Gramsci de outrocontexto) que a dada altura o trabalho intelectual nos prepa-rasse para esse tipo de relacionamento, se tal conjunturaalguma vez viesse a surgir. Mais sinceramente, estavamosprontos a imaginar ou imitar ou simular um tal relaciona-mento na sua ausencia: "pessimismo do intelecto, otimismoda vontade".

Mas acho de extrema importancia o fato de o pensamentogramsciano em torno destas questoes captar aquilo que noseramos. Porque um segundo aspecto da defini^ao de Gramscido trabalho intelectual — definicao essa que penso ter estadosempre proxima da nocjlo dos estudos culturais como projeto— foi a sua exigencia de que o "intelectual organico" traba-Ihasse simultaneamente em duas frentes. For um lado, tmhamosque estar na vanguarda do trabalho teoricg Intelectual, "'Pols',segundo Gramsci, e dever dos intelectuais organicos terconhecimentos superiores ^oj^dg^jntelectuais tra.dicionai&conhecimentos verdadeiros, nao apenas fingir que se sabef //nao apenas ter a fa. cil i clacle '"do "c ofTrTeTimenf :o i , mas' cgnrTeceF b em e pjiQ£Lin£La^gat&. O conhecimento para o marxismo etao freqiientemente puro reconhecimento — mais uma repro-du?ao daquilo que sempre soubemos! Se jogarem o jogo dahegemonia terao que ser mais espertos do que "eles". Assim,nao ha limites jeoricos dos_qu_ais_QS-es.tudos culturais possamrecuar. Contudo, o segundo aspecto e igualmente crucial:j>intejectual organico nao pode subtrair-se dalidade da transmissao dessas idei_as. desse conhecimento,atraves da fungjo intelectuaL aos^cjue naos0nalmente7classe intelectual. E a nao ser que essas duasfrentes estejam operando simultaneamente, ou pelo menos anao ser que essas duas ambicoes fa^am parte do projeto dosestudos culturais, qualquer avanc.o teorico nunca sera acom-panhado por um envolvimento no nivel do projeto politico.

Preocupa-me muito que decodifiquem o meu discursocomo sendo antiteorico. Nao e antiteoria, mas tern a ver comas condigoes e os problemas inerentes ao desenvolvimentodo trabalho intelectual e teorico como pratica politica.

207

Page 107: Da Dispora - Stuart Hall

A opcao de viver com as tensoes entre estas duas exigencias,sem procurar resolve-las, e um caminho um tanto diffcil.r,ramsci rLunca-pediu^gue as res^lvessemosjmas deu-nos urp_exemplo prStico de^jcpmo-con-viv.er-Com-,elas^ Nunca produ-

"zirh o s^mfelectu a is organicos (antes tivessemos) no Centre.Nunca nos ligamos a esse movimento historico em ascen-dencia; o nosso ejcexcicicLfQi...mgtaf6rico. Contudo, as_meta-foras sag__coisas_sj£rias. A^t^m^aj^rs^ica^ Estou tentandore-descrever os estudos culturais como trabalho teorico quetera que continuar a conviver com essa tensao.

Queria ainda falar de dois outros mementos teoricosnos estudos culturais que interromperam a ja-interrompidahistoria da sua formacao. Alguns desses acontecimentossurgiram quase que da estratosfera: nao se engendraram nointerior, nao faziam parte de um desenvolvimento interno geralda teoria da cultura. O chamado desenvolvimento dos estudos^ultujais. foi, incontayeis ve^zes, interrompidopor rompi-mentos, verdadeiras rupturas, defor£as_ejfteriores; como sese tratasse da interrupcao por novas ideias que descentraramo que parecia ser uma pratica acumuiada de trabalho. Haassim outra metafora para o trabalho teorico: o trabalhoteorico como interrupcao. —__

Ocorreram pelomenoaJduas interrupcoesNio trabalho do•"- —- _-.---'"*-—^"~— ~~~——-*' \^^ ./

^Centre for Ccmiemporary Cutrufal^STucliesT) a primeira em-~- —-^--^-=F^rz;ir^£L--——J— — ——; —-1 l

torno doQreminisrngye a segunda incidindo sobre questoes deracjpEste ensaio nao consiste numa tentativa de resumir osavancos e consequencias teoricos e politicos da intervencaofeminista para os estudos culturais britanicos; esse objetivoficara para outro dia, outro lugar. Contudo, tambem naoquero deixar de invocar aquele momento de um modo vagoe casual, A intervencao do feminismo foi especlfica e deci-s|va_para os estudos HHu^aiT^bem cpmo^rjara muitos outrosprojetos teoricos). Introduziu umaVrupturaj Reorganizou ocampo de maneiras bastante concretas. Primeiro, a propo-sicao da questaQ^dD^pessoal_cpmo politico — e suas conse-quencias para a mudanca do objeto de estudo nos estudosculturais — foi completamente revolucionario em termos teo-ricos e praticos. Segundo, a expansao radical da nncaojjepoder, que ate entao tinha sido fortemente desenvolvidadentro do arcabouco da nocao do publico, do dominiopublico, com o resultado de que o termo poder— tao central

208

para a problematica anterior da hegemonia — nao pode serutilizado da mesma maneira. Terceiro, a centralidade dasquestoes de genero e sexualidade para a compreensao do

~proprio poder. Quarto, a aEertura dejrnuitas questoes quejulgavamos ter abolido em torno da area perigosa do subje-tivo e do sujeito, colocando essas questoes no centre dosestudos culturais como pratica teorica. Quinto, a_reabertucada "fronteira fechada" entre a teoria social e a teoria doInconsciente — a psicanalise. E dificil descrever a irnportanciada abertura desse novo continente nos estudos culturais, defi-nida pelo relacionamento — ou antes, aquilo que JacquelineRose chamou de "relacoes instaveis" — entre o feminismo, apsicanalise e os estudos culturais. " ~~

Sabe-se que aconteceu, mas nao se sabe quando nem ondese deu o primeiro arrombamento do feminismo. UsojajnetsUfora deliberadamente; chegou como um ladrao a noite, inva-

inconveniente, aproveitouO titulo do

a

volume ernque este ataque de surpresa primeiro se realizou— Women Take /sswe* — e ilustrativo: pois as mulheres nao.so tomaram conta do livro publicado naquele ano, comotambem iniciaram uma querela. Mas quero Ihes dizer algomais sobre o que aconteceu. Dada a irnportancia crescentedo trabalho intelectual feminista, beni como dos primordiosdo movimento feminista no inicio da decada de 70, muitos denos no Centre — najnaipria homens, e claro — pgngamps

duzjij£a^. E tentamos realmente atrai-lo,

importa-lo, fazendo boas propostas a intelectuais ferninistasde peso. Como seria de esperar, muitas das mulheres nosestudos culturais nao estavam interessadas neste projeto"magnanimo". Abnarnos a porta aos estudos feministas, comobons homens transformados. E, mesmo assim, quando ofeminismo arrombou a janela, tqdasjis resistencias, por mais

Jnsusgeitas que fossem,_yieram a tona — o poder patriarcalplenamente instalado, que acreditara ter-se desautorizado asi proprio. Aqui nao ha lideres, diziamos naqueles tempos;estamos todos, estudantes e corpo docente, unidos na apren-dizagem da pratica dos estudos culturais. Todo mundo e

TTvre~para decidir o que bementende7~etc7T:, todavia, quandose chegava a questao da leitura curricular... Foi precisamente

209

Page 108: Da Dispora - Stuart Hall

ai que descobri a natureza sexuada do poder. Muito, masmuito tempo depois de conseguir pronunciar essas palavras,confrontei-me com a realidade do profundo discernimentofoucaultiano quanto a reciprocidade individual do conheci-mento e do poder. Falar de abrir mao do poder e uma expe-

C riencia radicalmente diferente de ser silenciado. Eis aqui outraforma de pensar, outra metafora para a teoria: o modo cornoo feminismo rompeji_e_Jiite«^npeu os estudos culturais.

Ha ainda a (questao raciaj^lp^e^jiidg^cuUurais^ Ja mereferi as fontes extrinsecas importantes na formacao dosestudos culturais — por exemplo, aquilo que chamei omomento da Nova Esquerda, e a sua querela inicial com omarxismo. Contudo, esta foi uma conjuntura profundamentebritanica ou inglesa. Com efeito, fazer com que os estudosculturais colocassem na sua agenda as questoes criticas deraca, a politica racial, a resistencia ao racismo, questoescriticas da politica cultural, consistiu numa ferrenha lutateorica, uma luta da qual, curiosamente, Poli£ingJ33e Crisisfoi o primeiro exemplo, ja muito tardio. Representou umavirada decisiva no meu proprio trabalho intelectual e teorico,bem como no do Centre. Mais uma vez, foi apenas o resul-tado de um longo, aigo amargo — certamente amargamentecontestado — combate interno contra um silencio retumbante,mas inconsciente. Um combate que continuou no que desdeentao se tornou conhecido, apenas na historia reescrita, comoum dos grandes livros seminais do Centre for ContemporaryCultural Studies, The Empire Strikes Back. Na verdade, PaulGilroy e o grupo de pessoas que produziram o livro tiveramimensa dificuldade em criar o espaco teorico e politiconecessario no Centro, espaco que Ihes permitisse debrucar-sesobre o projeto.

Queria reter a nocao, implicita em ambos os exemplos, deque os jnp_vimentos_provocam moment os teoricos. E asconjunturas historicas insistem nas teorias: sao momentosreais na evolucao da teoria. Mas aqui tenho que parar erefazer meu caminho, porque acho que voces podem tervoltado a, ouvir, naquilo que eu estou dizendo, uma invo-cacao a um populismo antiteorico simplista, que nao respeitanem reconhece a importancia crucial, a cada instante, dosacontecimentos que tento recontar, do que poderia chamarde demora necessaria ou desvio atraves da teoria. Desejaria

210

falar desse "desvio necessario" por um momento. O quedescentrou e deslocou o caminho estabelecido do Centrefor Contemporary Cultural Studies e, ate certo ponto, dosestudos culturais britanicos em geral, e o que se chama asvezes de rviraHalinguistica!> a descoberta da discursividacje,datextua lidade. Tambem houve baixas no Centro em tornodestes termos. Travou-se uma luta com eles, exatamente damesma forma que tentei descrever anteriormente. Mas osganhos decorrentes do envolvimento com esses conceitossao decisivos para compreender como a teoria veio a serdesenvolvida nesse trabalho. Contudo, a meu ver, estascontrapartidas teoricas nunca poderao constituir um momentode auto-suficiencia.

De novo, nao ha aqui espaco para fazer mais do queelencar os progresses teoricos decorrentes dos encontros comtrabalhoj^strutitralisja, semiotico e pos^estruturalista,: aimportancia crucial da linguagem e da metafora linguisticapara qualquer estudo da cultura; a expansao da nocao dotexto e da textualidade, quer como fonte de significado, quercomo aquilo que escapa e adia o significado; o reconheci-mento da heterogeneidade e da multiplicidade dos signifi-cados, do esforco envolvido no encerramento arbitrario dasemiose infinita para alem do significado; o reconhecimentoda textualidade e do poder cultural, da propria represen-tacao, como local de poder e de regulamentacao; do simbo-lico como fonte de identidade. Sao enormes avancos teoricos,apesar de que, claro, sempre se atentara as questoes dalinguagem (muito antes da revolucao semiotica, o trabalhode Raymond Williams desempenhou aqui um papel central).No entanto, a reconfiguracae-da^teoria, que resultou em terde se pensar questoes davcultura. atraves das metaforas^ialinguagem e da textualidade, representa um ponto para alem"a^^u^ros^stu^Hs^uIujrais tern agora que necessariamentese localizar. A metafora do discursivo, da textualidade,representa um adiamento necessario, um deslocamento, queacredito estar sempre implicito no conceito da cultura. Se vocespesquisam sobre a cultura, ou se tentaram fazer pesquisa emoutras areas verdadeiramente importantes e, nao obstante,se_encontraram reconduzidos a cultura, se acontecer que a

arrebate a alma, tern de reconhecer que irao[pre trabalhar numa area de dgsjecacosnto. Ha sempre

211

Page 109: Da Dispora - Stuart Hall

/

.\

algo descentrado no meio cultural [the medium of culture},na linguagem, na textualidade, na significacao; ha algo queconstantemente escapa e foge a tentativa de ligacao, direta eimediata, com outras estruturas. E ainda, simultaneamente, asombra, a estampa, o vestigio daquelas outras formac_6es, daintertextualidade dos textos em suas posicoes institucionais,dos textos como fontes de poder, da textualidade como localde representacao e de resistencia, nenhuma destas questoespodera jarnais ser apagada dos estudos culturais.

A questao e, o que acontece quando uma area — quetenho procurado descrever de forma muito pontual, dispersae interrupta, como algo que muda constantemente de direcao,e que e definida como projeto politico — tenta desenvolver-secomo uma especie de intervencao teorica coerente? Ou, parainverter a questao, o que acontece quando um projeto acade-mico e teorico tenta envolver-se em pedagogias que se apoiamno envolvimento ativo de individuos e grupos, ou quandotenta fazer uma diferenca no mundo institucional onde seencontra? Estas sao questoes extremamente complicadas deresolver, pois solicitam que digamos "sim" e "nao" ao mesmotempo, Pede-se que assumamos que a cultura ira sempretrabalhar atraves das suas textualidades — e, simultaneamente,essa textualidade nunca e suficiente. Mas nunca suficienteem relacao a que? Nunca suficiente para que? Torna-se difici-limo responder a tal questao, pois, filosoficamente, nuncafoi possivel no campo teorico dos estudos culturais — sejaeste concebido em termos de textos e contextos, de intertex-tualidade, ou de formacoes historicas nas quais as praticasculturais se encontram arraigadas — dar contjL teoricamejiLe

jiasj-elacoes da cultura e dos seus ereitosT Contudo, queriaenfatizaF^u^Terltfuanfo^os esfucToTculEirais nao aprenderema viver com esta tensao, que todas as praticas teoricas tern deassumir — uma tensao que Said descreve como o estudodo texto nas suas afiliacoes com "instituicoes, gabinetes,agendas, classes, academias, corporacoes, grupos, partidosideologicamente definidos, profissoes, nacoes, racas e generos"—, terao renunciado a sua vocacao "mundana". Isto e, amenos^que^ e ate que se respeite o deslocamento necessarioda cultura, .sem todayia deixar de no's irritarmos com o seu

Jracasso em reconciliar-se com putras^qugigoes importjantesZlcom outras questoes que nao podem nem nuncapoderao ser

212

abrangida^r^a^textualidade critica nas suas

^elaboragoes. osTe^cao, contmuarao incompletos. S^voce"ggsa tensSo, podera^rxoctoZiT^furiO_tr^_balho intelectual, rnastera perdida a pratica intelectual. fomojjolitica,. Ofereco-lhes

Tslio~n"Io por acTtaTqu^os estudos culturais devam ser assim,nem porque o Centre conseguiu faze-lo bem, mas simples-mente porque penso que, em geral, isso define os(jstudos^

'c3a]tjajZisIc5mQ_rjiroieu^5 Seja no contexto britanico, seja noamericano, os estudos culturais tern chamado a atencao naoapenas devido ao seu desenvolvimento interno teorico porvezes estonteante, mas por manter^queslQ£S_ppliticas e teoricasrjurnate^ao_,riao-^solS3a^i^e^^ajl£nte. Os estudos culturaispermitem que essas questoes se irritem, se perturbem ese incomodem reciprocamente, sem insistir numa clausura^teorica final. ^

Tenho falado principalmente em termos de historia previa.No entanto, as discussoes em torno da AIDS me lembramfortemente essa tensao. A AIDS e uma das questoes que nosdefronta com a nossa incapacidade, enquanto intelectuaiscriticos, de produzir efeitos reais no mundo em que vivemos.E, mesmo assim, ela tern sido frequentemente representadade formas contra ditorias. Diante da urgencia das pessoas queestao morrendo, qual, em nome de Deus, e o prqposito dos

' T ' ' .•O- ^ h^T —. +, . , , _^_^^ - ^

estudos culturais? Qual o sentido do estudo das represen-tacoes, se nao oferece resposta a alguem que pergunta se,caso tome a medicacao indicada, ira morrer dois dias depoisou uns meses antes do previsto? Nessas alturas, penso quequalquer pessoa que se envoly^_^ejiajn£at£_nos^esiudo^"cultura^cqmo prltica intelectuarhdeve-senth^ n§_£ele,_suatransilQri_eda_d^^j_5jj^'n^ul?sl^^ o pouco que con-_segue registrar, o pouco que alcangamos mudar ou incentivarj^glgr^^oce nao sente isso como uma tensao no trabafhoquej?roduz e jorque a Ig^Biinifflxgurem' paz. Por outrolado, nao concordo, no final das contas, com a forma como odilema nos tem sido frequentemente apresentado, poisconsiste efetivamente numa questao mais compfexa e deslo-cada do que a mera ocorrencia de mortes la fora. A questaoda AIDS e uma area extremamente importante de luta ede contestacao. Alem das pessoas que sabemos que estaomorrendo, ou que morreram, ou que vao morrer, ha uma

213

C/l

^(2-4

^jA~fa

TiO

Page 110: Da Dispora - Stuart Hall

parcela numerosa de pessoas que estao morrendo, das quaisninguem fala. Como podemos negar que a questao da AIDSesta relacionada com a representacao de certas pessoas emdetrimento de outras? A AIDS e o local onde o avan^o dapolitica sexual esta sendo revertido. E um local no qual naoso pessoas vao morrer, mas tambem o desejo e o prazer, secertas metaforas nao sobreviverem, ou caso sobrevivam deforma errada. A nao ser que operemos dentro dessa tensao,nunca saberemos do que os estudos culturais sao, nao saoou nunca serao capazes; mas igualmente, nao se sabera oque preclsam fazer e o que so os estudos culturais tern acapacidade privilegiada de realizar. Tern que analisar certosaspectoj>jia_jialui£za-constitutiva e politica da propria repre-sentacao, das suas complexidades, dos ereItos~daTihguagem,da textualidade como local de vida e morte. Sao estes ostemas que os estudos culturais podem focar.

Usei este exemplo, nao por ser perfeito, mas especifico,por ter um significado concrete, porque nos desafia na suacomplexidade e, portanto, tern o que ensinar sobre o futuredo trabalho teorico serio. Preserva a natureza essencial dotrabalho intelectual e da reflexao critica, a irredutibilidadedos discernimentos que a teoria pode trazer a pratica poli-tica, discernimentos que nao se alcancam de outra forma.E, ao mesmo tempo, prende-nos a modestia necessaria dateoria, a modestia necessaria dos estudos culturais comoprojeto intelectual.

Queria terminar de duas maneiras. Primeiro, vou abordaro problema da institucionaiizacao 'oTesjudos_cultuf^is~5ritanicos por um lado, e os americanospor ou£r.o..E depois, apoiaTi'do::rrre~imTTiTefafoms do trabalhoteorico que tentejjjtnggr (sem, espero, reivindicar autoridadeou autenticidade, mas, antes, de forma inevitavelmente pole-mica, estrategica e politica), focjj_a_d£fiuiclo possivel docampo

Nao sei o que dizer acerca dos estudos culturais ameri-canos. Fico completamente pasmado com eles. Penso nas lutastravadas, num contexto britanico, para fazer com que osestudos culturais fossem aceitos pela instituisao, para arranjar,com imensa dificuldade e altamente disfarcados, tres ou quatroempregos, comparado com a rapida institucionaiizacao que esta

214

ocorrendo nos Estados Unidos. A comparacao nao e ape-nas valida para os estudos culturais. Se pensarem no im-portante trabalho que tern sido feito em materia de histo-ria e teoria ferninistas na Inglaterra e se perguntarem quantasdessas mulheres exerceram ou poderao vir a exercer a ativi-dade de professoras universitarias em tempo integral duran-te suas vidas, comeca-se a compreender o sentido da margi-nalidade. Assim, a enorme explosa(Xjlos-eslu.das culturaisnos Estados Unidos, sua rapida profissionalizacao e institu-cionalizagao, nao constituem um momentoque qualquer umde nos que tentou estabelecer urn^Centro marginalizado numauniversida.de como Birmingham poderia^jimpjesmente, lamen-tar. Contudo, devo dizer, enfaticamente, que me faz lembrar

Ifforma como, na Inglaterra, encaramos sempre a institucio-nalizagao como um momen^^pj^furidamente perigos^~Te-nho dito que os perigos nao constituem lugares^dos qu^is_se (pode^fugir, mas_lugare^^a£a__gjidesevai: Portanto, queria \apenas que soubessem que minha opiniao pessoal e que aexplosao dos estudos cuiturais, juntamente com outras for-mas de teoria critica na academia, representa um momento deperigo extraordinario. Por que? Bern, seria excessivamentevulgar falar de coisas como o numero de empregos e a quan-tidade de dinheiro disponiveis, e da pressao que estes doisfatores exercem sobre as pessoas para que produzam aquiloque julgam ser trabalho politico e intelectual de naturezacritica, enquanto se sentem controlados por questoes decarreira, de publicacao e aftns. Deixem-me, em vez disso,voltar ao aspecto que mencionei anteriormente: a minhasurpresa diante da fluencia teorica dos estudos culturais nosEstados Unidos.

A questao da fluencia teorica constitui uma metafora dificile provocadora, e queria dizer uma palavra sobre isto. Haalgum tempo, oihando para o que so se pode charnar dediluvio desconstrutivo (em oposicao a virada desconstru-tiva) que atingiu os estudos literarios norte-americanos, nasua vertente formalista, tentei distinguir o trabalho teorico eintelectual extremamente importante que esta corrente U'nhapossibilitado nos estudos culturais, da mera repeticao, umtipo de mimica e de ventriloquismo, que passa as vezes porexercicio intelectual serio. O meu medo naquele momento.

215

Page 111: Da Dispora - Stuart Hall

era de que, se os estudos culturais ganhassern uma institucio-nalizacao equivalents, no mesmo contexto americano, iriam,de forma semelhante, formalizar as questoes criticas dopoder, historia e politica ate acabar com elas. Paradoxalmente,o que quero dizer com fluencia teorica e exatamente o oposto.Atualmente nao ha momento algum, nos estudos culturais

^,-aj-nerica nc>s , onde nao se possa, extensiva e interminavel-mente, teorizar o poder — politica, raca, classe e genero,subjugacao, dominacao, exclusao, marginalidade, alteridadeetc. Nao ha praticamente mais nada nos estudos culturais quenao tenha sido teorizado dessa maneira. E ainda persiste aduvida sobre se esta textualizacao esmagadora dos propriosdiscursos dos estudos culturais constitui, por uma razao ououtra, o poder e a politica como questoes exclusivamente detextualidade e de Hnguagem. Isso nao auer dizer que eudeixe de considerar as questoes do(poder e do i£>olitia) como

(jM tendo de estar, e estando, inseridas erirrepresentacoes, quesao semrjigjquestgesdiscursivas. Contudo, haforrnas~"ge^cgns-

Jituir o pc^er comoo grosseiro exercicio e as ligacoes dopocTer e da culturacompletamente privados de significacao. E este o momentoque considero perigoso na institucionalizacao dos estudosculturais no altamente rarefeito, enormemente elaborado ebem-financiado mundo profissional da vida academica norte-americana. Nao tem nada a ver com o fato de que os estudosculturais americanos tentem assemelhar-se aos estudos cul-turais britanicos, causa essa que julgo ser inteiramente falsae vazia. Tenho tentado, especificamente, nao falar do passadocomo uma tentativa de policiar o presente e o future. Masgostaria, finalmente, de extrair da narrativa que construi dopassado algumas diretrizes para o meu proprio trabalho, etalvez para o de voces.

Volto a seriedade tremenda do trabalho intelectual. E um( assunto tremendamente se>io. Volto as distmcoes criticas entre1\o trabalho intelectual e o trabalho academico: sobrepoem-sef

itocam-se, nutrem-se um ao outro, fornecem os meios para sev/fazer um ao outro. Contudo, nao sao a mesma coisa. Volto a

dificuldade de instituir uma pratica cultural e critica genuina,que tenha como objetivo a producao de um tipo de trabalhopolitico-intelectual organico, que nao tente inscrever-se numame ta narrativa englobante de conhecimentos acabados, dentro

216

de instituicoes. Volto a teoria e a politica, a politica dateoria. Nao a teoria como vontade de verdade, mas a teoria,

localizadoscomoe conjunturais, que tem de ser djebatidosjde jJ£n_rnodo dialo-"gico. MasTanrtJ^iircorncrpratica que pensa sempre a suatnfervencao num mundo em que faria alguma diferenca, emque surtiria algum efeito. Enfim, uma pratica que entendea necessidade da modestia intelectual. Acredito haver todaa diferenca no mundo entre a compreensao da politica dotrabalho intelectual e a substituicao da politica pelo trabaihointelectual.

[HALL, S. Cultural Studies and its Theoretical Legacies. In:GROSSBERG, Lawrence et al. (Org.). Cultural Studies. NewYork: Routledge, 1992. p. 277-286. Traducao de ClaudiaAlvares, publicada na Revista de Comunicafdo e LinguagensLisboa, Relogio d'Agua, n. 28, out. 2000. Revista e adaptadaao uso brasileiro da lingua portuguesa.]

NOTA

• "Women Take Issue" consiste, em ingles, num trocadilho linguistico tendoum duplo signiflcadp: por um lado, ''issue" significa nurnero ou edicao,insinuando-se assim que as mulheres tomaram posse da publica^ao daquelarevista academica; por outro lado, "j^ake issue" quer dizer discordar, suge-rindo-se desta forma que as intelectuaisreministas introduziram vozesdiscordantes nos cultural studie.s.^N. T.).

BIBLIOGRAFIA

CENTRE for Contemporary Cultural Studies. (1982) The Empire StrikesBack. London: Hutchinson.

CCCS - Women's Studies Group. (1978) Women Take Issue. London:Hutchinson.

HALL, S. (1974). Marx's Notes on Method: A Reading of the '1857Introduction'. Working Papers in Cultural Studies 6, 132-171.

217

Page 112: Da Dispora - Stuart Hall

HALL, S. (19SOa). The Hinterland of Science. In: CENTRE forContemporary Cultural Studies (Org.). On Ideology. London:Hutchinson, 1980. [O Interior da Ciencia: ideologia e a sociologia doconhecimento. In: Da ideologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980.]

HALL, S. (1980b). Cultural Studies: Some Problematics and Problems.In: HALL, S. et al. (Org.). Culture, Media, Language. London: Hutchinson/CCCS, p. 15-47.

HALL, S.; CRITCHER, C.; JEFFERSON, T.; CLARKE, J.; ROBERTS, B.Policing the Crisis: "Mugging", the State and Law and Order. London:Hutchinson, 1978.

WILLIAMS, R. The Politics of 'Modernism. London: Verso, 1989.

218

P A R A A L L O N W H I T EMETAFORAS DE MNSFORMAfJAO

Transgressao. Talvez um dia ela pareca tao decisiva para anossa cultura, tao parte de seu solo quanto a experiencia

da contradi^ao foi no passado para o pensamento dialetico.A transgressao nao busca opor uma coisa a outra ... naotransforma o outro lado do espelho ... em uma extensaorutilante ... sua funfiio e medir a excessiva distancia que

ela inaugura no amago do limite e iracar a Hnhalampejante que faz com que o limite se erga.

(M. FOUCAULT. Prefacio a Transgressao. In:Linguagem, contramemoria, prdtica)

Existem muitos tipos de metaforas pelas quais pensamosa mudanca cultural. Essas metaforas tambem mudam. Aquelasque se apoderam de nossa imaginac.ao e, por algum tempo,governam nosso pensamento acerca dos cenarios e possibili-dades da transformagao cultural cedem lugar as novas meta-foras, que nos fazem pensar essas dificeis questoes emoutros termos. Este ensaio trata de uma mudanga desse tipo,que ocorreu na teoria critica nos ultimos anos.

As metaforas de transformacao devem fazer pelo rnenosduas coisas. Elas nos permitem imaginar o que aconteceriase os valores culturais predominantes fossem questionados etransformados, se as velhas hierarquias sociais fossemderrubadas, se os velhos padr6es e normas desaparecessemou fossem consumidos em um "festival de revoluc.ao", e novossignificados e valores, novas configuracoes socioculturais,comecassem a surgir. Contudo, tais metaforas devem possuir

Page 113: Da Dispora - Stuart Hall

tambem um valor analitico. Devem fornecer rneios depensarrnos as relates entre os dominios social e simboliconesse processo de transformacao, Essa questao de como"pensar", de forrna "nao-reducionista", as relacoes entre "osocial" e "o simbolico" mantem a questao paradigmatica dateoria da cultura — pelo menos em todas as teorias culturais(e nos teoricos) que nao se resignararn a um formalismoelegante e vazio.

As metaforas classicas de transformacao modelam-se pelo"momento revoluclonario". Termos como "festival de revo-lucao" pertencem a uma familia de metaforas extremamentesignificante historicamente para o imaginario radical. Essasmetaforas concebern o social, o simbolico ou o cultural comose fossem costurados um ao outro por uma correspondenciarudimentar; de tal forma que, quando as hierarquias sociaissao derrubadas, uma inversao dos valores e simbolos cul-turais tem que acontecer, mais cedo ou mais tarde. "As ideiasda classe dominante em todas as epocas sao as ideias domi-nances", escreveu Marx em uma passagem famosa (ou, quemsabe, infame): "...ou seja, a classe que constitui a forcamaterial dominante da sociedade e, ao mesrno tempo, suaforca intelectual dominante." A transformacao aqui e carac-teristicamente "pensada" em terrnos de uma inversao e umasubstituicao. Quando a classe que "nada tem a perder senaoseus grilhoes" derruba a classe "que monopoliza os meios devida material e mental", tambem derruba e substitui ideias evalores ern um surto de transvalorizacao cultural. Esta e airnagem do "mundo de cabe^a para baixo"; da "moral deles ea nossa" de Trotsky; das "visoes de mundo" mutuamenteexcludentes das culturas de classes antagonicas, tao teatral-mente contrapostas por criticos como Lukacs e Goldmann,que tem governado as metaforas classicas de transformacao.Essas formulacoes nos surpreendem hoje em dia por suasimplicidade brutal e por suas correspondents truncadas.Mesmo assim, ate recentemente, onde quer que as transfor-macoes socials, simbolicas ou culturais fossem pensadas ouimaginadas em conjunto, era em termos perseguidos por essametafora.

Ela nao inspira mais consentimento. A teoria cultural jasuperou decisivamente simplificacoes dramaticas e inversoesbinarias como essas. A questao e: que metaforas alternativas

220

temos para imaginar uma politica cultural? Uma vez que ostermos simplistas das metaforas classicas de transformacaoforam abandonados, tambem abandonamos a questao dorelacionamento entre o social e o simbolico, ou o "jogo"entre poder e cultura? Um dos textos mais desafiadores daatualidade a tratar essa questao, na esteira dos desenvolvi-mentos teorico-criticos recentes, e inteiramente familiarizadocom estes, e The Politics and Poetics of Transgression [Apolitica e a poetica da transgressao], de Peter Stallybrass eAllon White.1 Esse livro cativante e original explora a persis-tencia do "mapeamento" dos dominios cultural e social naEuropa em categorias simbolicas do tipo "alto" e "baixo".O livro contem um argumento ricamente desenvolvido sobrecomo "as forcas carnavalescas, lentamente suprimidas pelaselites burguesas em sua demorada retirada da cuftura popular,ressurgiram de forma deslocada e distorcida como objetos deaversao fobica e desejo reprimido tanto na literatura quantona psicopatologia". Trata ainda de como varies dominiossociais foram construidos como "baixos" e "repulsivos",2 coma emergencia de uma concepcao distintamente burguesa easseptica do eu na cultura pos-renascentista europeia. Naverdade, eu estava no meio da releitura do livro e meperguntando por que ele nao havia sido reconhecido comoo "texto de referenda" dos estudos culturais, quando fuiinformado sobre a morte prematura de um de seus autores,Allon White.

Varios colegas e amigos conheceram Allon White maisintimamente e trabalharam mais perto dele do que eu, e,portanto, estao em uma condicao muito melhor para falar daqualidade e importancia de sua contribuicao intelectual.Contudo, tive o prazer e o privilegio de conhece-lo no iniciode sua carreira. Depois de formar-se em Letras em Birmingham,ele passou algum tempo no Centro de Estudos Culturaisantes de ir fazer o doutorado em Cambridge, e foi duranteesse periodo no Centro que eu o conheci de fato. Ele seinteressava pela dialetica hegeliana, especialmente as famosaspassagens do senhor e escravo na Fenomenologia, e eu oauxiliei na orientacao de seu Mestrado — isto e, ate o pontoern que alguem o "orientou". Nenhum de nos era estudiosode Hegel ao certo; ele sabia perfeitamente bem o quepretendia descobrir e ja havia desenvolvido aquele trato

221

L

Page 114: Da Dispora - Stuart Hall

simpatico que guardava uma resolucao obstinada, queposteriormente compreendi como uma caracteristica do seutrabalho. Primeiro entao, aprendi a admirar e respeitar suagenerosa e ramificada inteligencia, seu rico senso de humor,a amplitude de suas leituras, a sutileza de sua sensibilidadecritica e sua apaixonada curiosidade intelectual.

Na ultima vez que nos encontramos, ele havia acabado dese recuperar de um novo surto de doenca. Contudo, pareciaparticularmente bem — exuberante, cheio de esperanca,transbordante de ideias. Sua energia emanava um ar "carna-valesco" em torno da mesa onde — de uma forma verdadei-ramente rabelaisiana — ele e um grupo de amigos faziamjuntos uma refeicao. Conversamos sobre varias coisas, inclu-sive a obra de Mikhail Bakhtin, que o havia influenciadotanto. Quando fui convidado a fazer a Primeira Palestra emMemoria de Allon White, organizada pela Universidade deSussex, quis de alguma forma juntar em torno da figura do"carnaval" esses dois momentos de sua carreira intelectual —seu engajamento nos estudos culturais e seu rico e complexoenvolvimento com a obra de Bakhtin — e refletir sobrealgumas relacoes surpreendentes entre ambos e ainda naomencionadas.

Presume-se que Bakhtin tenha causado um impacto maisprofundo sobre a teoria literaria do que sobre os estudosculturais. Em termos de influencia direta, esta opiniao prova-velmente esta correta. Contudo, as afinidades entre os estudosculturais e Bakhtin podem ser maiores do que muitos imagi-nam. De qualquer forma, minha intencao nao era tanto tracaras influencias teoricas diretas e, sim, as "afinidades eletivas"— especificamente, identificar um certo deslocamento teo-rico que ocorre mais ou menos ao mesmo tempo em varios,mas distintos, campos de trabalho relacionados, onde, emretrospecto, a obra de Bakhtin — ou melhor, a forma comoesta foi distintamente apropriada e retrabalhada — provouser de um valor decisive. Relendo A politico, e a poetica datransgressdo, de Allon White e seu amigo, interlocutor ecompanheiro de guerra, Peter Stallybrass, e refletindo sobreo dialogo crftico que os autores estabelecem ali com Freud eBakhtin sobre as "metaforas de transformacao" e a interacaoentre os limites e transgressoes nos processes culturais,

222

percebi varios pontos interessantes de convergencia entreos desdobramentos da teoria cultural que ocorriam conco-tnitantemente em dominios de estudo aparentemente incom-pativeis. A Primeira Palestra em Memoria de Allon White mepareceu uma boa oportunidade para refletir sobre eles. (Esteensaio e um resumo da palestra que apresentei na ocasiao.)

O livro de Stallybrass e White parte da observacao deCurtius, em European Literature and the Middle Ages [Aliteratura europeia e a Idade Media]? de que a divisao socialdos cidadaos em faixas de renda baseadas em calculos depropriedade fornecia a base para a classificacao do prestigioe posicao dos escritores literarios e de suas obras.

A classificac.ao dos generos literarios ou autores em umahierarquia analoga as classes sociais e um exemplo particular-mente claro de um processo cultural muito mais amplo ecomplexo pelo qual o corpo humano, as formas psiquicas,o espa?o geografico e a formagao social sao construidos dentrode hierarquias inter-relacionadas e dependentes do tipo alto e

Essa "modelacao" conjunta do social e do cultural, de acordocom classificacoes de "alto" e "baixo", passa por muitas permu-tacoes entre o primeiro momento em que Curtius a observanos tempos classicos tardios e o presente; mas certamente eainda um elemento ativo nos debates do seculo vinte sobreas ameacas a civilizacao e a "cultura minoritaria" represen-tadas pelas influencias aviltantes da cultura de massa mercan-tilizada, que fascinaram os Leavis e a revista Scrutiny, bemcomo no debate paralelo sobre a "cultura de massa", entre aEscola de Frankfurt e seus criticos americanos melioristas.5

De fato, uma variante desse debate ainda prospera naspaginas do New York Review of Books, do London Review ofBooks, e em outros locals do assim chamado debate sobre o"multiculturalismo" e a formacao do canone.

O que Stallybrass e White registram e o processo pelo qualessa pratica de classificacao cultural e constantementetranscodificada em uma variedade de dominios. O cerne deseu argumento e de que

223

Page 115: Da Dispora - Stuart Hall

as categories cultures do alto e baixo, do social e estetico ...e tambem aquelas do corpo fisico e do espaco geografico nuncasao inteiramente separaveis. A classificacao dos generos lite-rarios ou autores em uma hierarquia analoga as classes socialse" um exemplo particularmente claro de um processo culturalmuito mais amplo e complexo, pelo qual o corpo humane, asformas psiquicas, o espaco geografico e a forma9ao socialsao construidos dentro de hierarquias de "alto" e "baixo",inter-relacionadas e interdependentes. Este livro tenta mapearalgumas dessas hierarquias interligadas. Mais especificamente,atenta para a formacao dessas hierarquias e o processo peloqual o baixo perturba o alto.6

A nocao de Stallybrass e White de "transgressao" se fundana ideia de Bakhtin do "carnaval". "Em toda parte hoje nosestudos literarios e culturais vemos o 'carnaval' emergir comomodelo, ideal e categoria analitica."7 O carnaval e a metaforada suspensao e inversao temporaria e sancionada da ordem,um tempo em que o baixo se torna alto e o alto, baixo, omomento da reviravolta, do "mundo as avessas". O estudode Rabelais levou Bakhtin a considerar a existencia dopopular como um dominio e uma estetica totalmente alterna-tives. Com base em estudos sobre a importancia das feiras,das festas, do mardigras, e de outras festividades populares,Bakhtin utiliza o "carnaval" para sinalizar todas essas formas,tropos e efeitos nos quais as categorias simbolicas de hie-rarquia e valor sao invertidas. O "carnavalesco" inclui alinguagem do mercado — imprecacoes, profanacoes, jura-mentos e coloquialismos que estorvam a ordem privilegiadada enunciacao polida — os rituais, jogos e performances, nosquais as zonas genitais, os "estratos corporeos materialsinferiores" e tudo que Ihes pertence sao exaltados e asformas refinadas e formais de conduta e discurso, destro-nadas; formas festivas populares nas quais, por exemplo, orei ou o senhor de escravos e deposto e o bobo ou o escravo"governa" temporariamente; e outras ocasioes nas quais aimagem grotesca do corpo e de suas funcoes subverte osmodelos de decencia e os ideais classicos.

O "popular" de Bakhtin e caracterizado pelas praticas etropos da "combinacao dos contraries" — as "duplicidades"da linguagem, as coisas invertidas ou as avessas, a noiva"chorando de rir e rindo ate chorar", os jogos verbais e os

224

absurdos — que exploram aquilo que Bakhtin percebe comoa reversibilidade intrinseca de toda ordem simbolica. Aoescrever sobre aquilo que ele denomina "fala nao publi-cada" e outros jogos da falta consciente de 16gica, Bakhtin

observa que:

E como se as palavras fossem liberadas dos grilhoes do sentido,para desfrutar de um periodo de folga em completa liberdadee estabelecer relacionamentos incomuns [unusual umas comas outras. E verdade que nenhum elo consistente e formado namaioria das vezes, mas a breve coexistencia dessas palavras,expressoes e objetos fora de suas condicoes logicas usuaisexpoe sua ambivalencia inerente. Seus multiples significadose potencialidades, que nao se rnanifestariam em condifoesnormals, sao agora revelados."

Para Bakhtin, essa reviravolta na ordem simbolica da acesso aodominio do popular — o "de baixo", o "sub-mundo" e a"marcha dos deuses descoroados". O carnavalesco repre-senta tambem uma ligacao com novas fontes de energia, vidae vitalidade — nascimento, copula, abundancia, fertilidadee excesso. De fato, e este sentido de transbordamento daenergia libidinal associada ao momento do "carnaval" quefaz deste uma metafora poderosa da transformacao sociale simbolica.

Fredric Jameson, em O inconsciente politico, observa acoexistencia de duas versoes das metaforas de transformacao:

A irnagem do triunfo da coletividade e a imagem da liberacaoda "alma" ou do "corpo espiritual"; entre a visao de Saint-Simon de uma engenharia social e coletiva e a Utopia deFourier da gratificacao libidinal; entre a formulacao leninistanos anos 20 do comunismo como "Os sovietas mais a eletrifi-cacao" e certas celebracoes mais propriamente marcuseanasnos anos 60 de um 'corpo politico' instintivo".9

Bakhtin certamente pertence ao segundo campo. Jameson,de forma caracteristica, estabelece uma prioridade entreessas duas versoes: "O programa da revolucao libidinal epolitico somente ate o ponto em que ele pr6prio e uma figurada revolucao social." Nesse sentido, ao discutir Bakhtin dire-tamente, Jameson argumenta que a hermeneutica marxista

225

Page 116: Da Dispora - Stuart Hall

"que sera ... defendida enquanto algo equivalence a umaultima pre"-condic.ao semantica para a inteligibilidade dostextos literarios e culturais" — tera primazia sobre o "carna-valesco"; sendo esta uma instancia "local" daquela e o "dialo-aico" de Bakhtin assimilado aos termos classicos da dialeticao

hegeliana e da contradicao.10

Na verdade, o que e surpreendente e original a respeitodo "carnavalesco" de Bakhtin enquanto metafora da transfor-macao cultural e simbolica e que esta nao e simplesmenteuma metafora de inversao — que coloca o "baixo" no lugardo "alto", preservando a estrutura binaria de divisao entre osmesmos. No carnaval de Bakhtin, e precisamente a purezadessa distincao binaria que e transgredida. O baixo invade oalto, ofuscando a imposicao da ordem hierarquica; criando,nao simplesmente o triunfo de uma estetica sobre a outra,mas aquelas formas impuras e hibridas do "grotesco"; reve-lando a interdependencia do baixo com o alto e vice-versa, anatureza inextricavelmente mista e ambivalente de toda vidacultural, a reversibilidade das formas, srmbolos, linguagense significados culturais; expondo o exercicio arbitrario dopoder cultural, da simplificacao e da exclusao, que sao osmecanismos pelos quais se funda a construcao de cada limite,tradicao ou formacao canonica, e o funcionamento de cadaprinciple hierarquico de clausura cultural,

Esta me parece a mudanca crucial das "metaforas de transfor-macao" que Stallybrass e White expandem e desenvolvem emseu livro. Conforme esclarecem os autores, seu tema principale "a natureza contraditoria das hierarquias simbolicas".O baixo nao e mais a imagem refletida do alto, aquele queespera nos bastidores para substitui-lo, como nas metaforasclassicas da revolucao, mas uma outra figura, relacionada masdiferente, que tem assombrado e perseguido a metaforaparadigmatica do baixo enquanto "local de desejos confli-tuosos e representacoes mutuamente incompativeis".

Continuamente nos deparamos com a surpreendente ambiva-lencia das representacoes dos estratos inferiores (do corpo, daliteratura, da sociedade, do lugar) em que estes sao ao mesmotempo abominados e desejados. Repugnancia e fascinio sao ospolos gemeos de um processo no qual o imperative politico derejeitar e eliminar o "byixo" degradante se choca poderosa eimprevisivelmente contra o desejo pelo outro."

226

Aqui, em vez das alternancias e subordinates entre as duasmetaforas, estabelecidas por Jameson, observa-se aquilo queeste autor denomina "metafisica do desejo", em que a trans-gressao invade, subverte, e torna irremediavelmente complexesos termos binaries das metaforas mais classicas.

O que mais me chamou a atencao ao reler A politico, e apoetica da transgressdo e que esse processo de mudancaentre duas metaforas de transformacao relacionadas, mas cadavez mais distintas, nao e meramente um discernimento inter-pretative "local" desses dois autores, mas e algo sintomaticode uma transicao maior em nossa vida polftica e cultural, bemcomo no trabalho te6rico-critico das ultimas decadas. E aquique certas "afinidades eletivas" com o trabalho da teoriacultural no Centre de Estudos Culturais nos anos 70 come-e.aram a se insinuar.

A titulo de ilustracao, podemos tomar tres exemplos: oprimeiro deles provem dos debates que pertencem ao"momento fundador" (sic) dos estudos culturais; o segundodo trabalho com as subculturas jovens e o popular; o terceiro,da analise do discurso ideologico.

Nem sempre nos lembramos de que os estudos culturais"comecaram" em Birmingham com uma interrogacao sobre ascategorias de alto/baixo do debate cultural. Em pane, essestermos foram herdados da preocupacao de Leavis com odesaparecimento de uma cultura popular "viva" e organicano seculo dezoito e sua substituicao por uma "civilizacao demassa" degradada, que representava uma seria ameaca a"cultura minoritaria ou da minoria"; em parte provem tambemdo debate sobre "cultura de massa" entre os criticos culturaisconservadores e demoticos, de onde surgiram os chamados"estudos da midia".12 Na verdade, os estudos culturais sedefiniram criticamente em relacao aos termos de ambos osdebates. Rejeitou o programa cultural essencialmente elitista,no qual a critica da Scrutiny se fundava; e rejeitou os bina-rismos rigidos do debate em torno da "cultura de massa".13

Tentou desembaracar da pratica da classificacao cultural aquestao do valor cultural ou litefario intrinseco de textosparticulares — uma distincao elementar que, infelizmente,alguns dos colaboradores altamente sofisticados do debate

227

Page 117: Da Dispora - Stuart Hall

atual sobre o "canone" parecem incapazes de fazer. (A socio-logia as vezes merece a ma fama que tern; mas um pouco desofisticacao sociologica nao faria mal aqui e acola).

A analise de Raymond Williams do funcionamento da"tradic/ao seletiva" e sua posterior desconstru^ao da "litera-tura" em modos de escrita adquiriram um sentido subversiveno contexto do mesrno debate.u Para outros de n6s, foi acategoria do "popular" que efetivamente cortou o no gor-diano, nao atraves de uma celebracao populista acntica, taocomum em alguns circulos, mas por haver perturbado oscontornos estabelecidos e — precisamente — transgredidoas fronteiras da classificagao cultural. Desde o adventodo modernismo, e mesmo na era do "pos-modernismo", ternsido impossfvel manter o alto e o baixo cuidadosamentesegregados em seus proprios locals no esquema de classifi-cacao. Tentamos encontrar uma safda para o dilema binario,repensando o "popular" nao em termos de qualidades ouconteudos fixos, mas relacionalmente — como aquelas formase praticas exclufdas do "valorizado" ou do "canone", ouopostas a estes, pelo funcionamento das praticas simbolicasde exclusao e fechamento.15

Em 1975, o Centro publicou um volume de ensaios sobre"As subculturas jovens no pos-guerra britanico". Embora essevolume tenha se tornado bastante influente na area, deslan-chando um grande numero de estudos mais aprofundados,ele representa um comeco bastante precario. t citado aquinao para que se possa resgata-lo da relativa obscuridade,mas por causa daquilo que esse texto nos revela sobre aconcepipao das ideias de transgressao, inversao simbolica econtestae.ao cultural.

O titulo do livro era Resistance through Rituals [Resistenciaatraves de rituais]; a utilizagao de dois termos no titulo foideliberada.16 Por "resistencia" sinalizavam-se as formas dedesafiliacao (como os novos movimentos socials ligados ajuventude) que, de certa forma, representavam as ameae.ase negociacoes corn a ordem dominante, que nao poderiamser assimiladas pelas categorias tradicionais da luta revolu-cionaria de classes, Ja o termo "rituais" apontava para a di-mensao simbolica desses movimentos — a estiliza^ao dasacoes sociais, o "jogo" dos signos e simbolos, a "encenacao"

da resistencia e da repeticao nos teatros da vida cotidiana, o"efeito bricoleur" da dissociacao de fragmentos e emblemasde um discurso cultural e sua reassociacao em outro. Os rituaistambem sugeriam uma resposta para a questao, apresentadapor muitos criticos sociais convencionais, de haver ou naolimites embutidos em todas essas formas de resistencia —por causa de sua qualidade gestual, sua dissociacao dasagendas classicas de transformacao social, seu status — comose definiu na linguagem da epoca — de "solucoes magicas".Esta e uma questao seria — o proprio Bakhtin reconheceuque "nenhuma ligaclo consistente e estabelecida na maioriadas vezes" — mas esta forma de expressar a questao tambemrefletia a presence duradoura da crenca de que o simboliconao poderia ser outra coisa senao uma categoria de segundaordem, dependente.

No contexto da presente discussao, o que parece maissignificative e a forma como Resistance through Rituals sedistanciou ativamente das metaforas classicas da "luta revo-lucionaria" e das antinomias reforma/revolucao, ao ofereceruma definigao ampliada de ruptura social. No lugar das dico-tomias simples da "luta de classe", a obra inaugura a nocaogramsciana de "repertorios de resistencia" que, insiste-se ali,sempre foram historicamente especificos e conjunturalmentedefinidos. Tenta basear esses repertorios nao diretamente nobinarismo rigido dos classicos conflitos de classe, mas emuma analise do "equilibrio nas relacoes de forca" conformeGramsci desenvolve em sua analise da luta hegemonica.

Negocia^ao, resistencia, luta: as relacoes entre uma formacaocultural subordinada e uma dominante, onde quer que se loca-lizem nesse espectro, sao sempre intensamente ativas, sempreopostas num sentido estrutural (mesmo quando essa "opo-si^ao" for latente, ou experimentada simplesmente como oestado normal das coisas ...). Seu resultado nao e dado, masconstruido. A classe subordinada traz para esse "teatro de luta"um repertorio de estrategias e respostas — formas de lidar comsituacoes e resisti-Ias. Cada "estrategia" no repertorio mobilizacertos elementos materials, sociais [e simbolicos]: os constroicomo suportes para as diversas formas de vida das classes,[negocia] e resiste a continua subordinacao das mesmas. Nemtodas as estrategias tern o mesmo peso; nem todas sao poten-cialmente contra-hegemonicas.17

228 229

Page 118: Da Dispora - Stuart Hall

Este e urn estagio bem inicial da formulacao do problema,em que os traces de um "reducionismo de classe" aindapodem ser encontrados.18 Porem, o interesse maior recai sobrecomo as nocoes acerca de varias formas de resistencia substi-tuem a primazia da "Iuta de classes"; sobre o movimento emdirecao a uma forma menos determinista, mais conjunturalde compreender os "repert6rios de resistencia" e a centrali-dade conferida a dimensao simbolica. Gramsci representa amais significance influencia teorica sobre essas formulae/oes.Foi seu conceito do "nacional-popular" como terreno de Iutacultural e hegemonica "relativamente autonomo", pelo menosem relacao a outros tipos de Iuta social, que nos ajudou adeslocar os tra£os do reducionismo no argumento.

O terceiro exemplo vem da analise do discurso ideologico.Nos anos 70, no Centro de Estudos Culturais, houve grandeempenho no sentido de repensar e re-trabalhar as categoriasconceituais da ideologia, seus mecanismos e mapeamentosem varias areas distintas. Esse trabalho foi conduzido dentrode um espaco conceitual especifico, definido por diversoseixos teoricos: primeiro, pela ausencia radical de uma teoriaadequada ou de uma conceituac.ao de linguagem e do ideo-logico nos escritos de Marx e, particularmente, pela necessi-dade de transcender a metafora "base-superestrutura"; emsegundo lugar, em rela^ao as experiencias com o que se podedefinir amplamente como a "Escola Althusseriana", suprir aestruturacao teorica ausente; em terceiro lugar, frente as novasteorias da linguagem e a semi6tica, que haviam comecado atransformar o terreno da teoria cultural; em quarto lugar, pelasinadequacies das teorizac.6es disponiveis para se pensarem conjunto, de forma convincente ou concreta, as relagoesentre "o social" e o "simbolico".19

Gramsci foi igualmente importante neste sentido. Mas otexto-chave foi, sem duvida, Marxismo e filosofia da lin-guagem, de V. N. Volochinov, publicado em ingles pelaSeminar Press em 1973, que teve um impacto decisive eextenso sobre nosso trabalho.20 Primeiro, estabeleceu ocarater definitivamente discursive da ideologia. "O domlnioda ideologia coincide com o dominio dos signos", escreveuVolochinov. "Sao mutuamente correspondentes. Ali onde osigno se encontra, encontra-se tambem o ideologico. Tudoque e ideologico possui um valor semiotico."

Em segundo lugar, marcou uma ruptura decisiva nacorrespondent entre as classes e a ideia de "linguagensde classe", universes ideologicos ou, usando a linguagemde Lukacs, "visoes de mundo" separadas, autonomas e auto-suficientes.

A classe social e a comunidade semiotica nao se confundem.Pelo segundo termo entendemos a comunidade que utiliza umunico e mesmo codigo ideologico de comunicacao. Assim,classes socials diferentes servem-se de uma so e mesma lingua.Conseqtientemente, em todo signo ideologico confrontam-seindices de valor contraditorios. O signo se torna a arena ondese desenvolve a Iuta de classes.21

Em terceiro lugar, o texto antecipou o argumento chave deque, ja que diferentes indices de valor coincidem em um mesmosigno, a Iuta pelo significado nao se dava como a substituic.aode uma linguagem de classe auto-suficiente por outra, mascomo a desarticulae/ao e rearticula^ao dos diferentes indicesde valor ideologico dentro de um mesmo signo. Dai que osignificado nao pode ser fixado definitivamente, pois cadasigno ideologico, como observou Volochinov, e "pluriva-lente"; consequentemente, esse "jogo" discursive continue ouessa variacao de conteudo dentro da lingua constituia acondic.ao que possibilitava a contestacao ideologica. "O signo,se subtraido as tensoes da iuta social, se posto a margem daIuta de classes, ira infalivelmente debilitar-se, degenerar-se-a em alegoria, tornar-se-a objeto de estudo dos filologose nao sera mais um instrumento racional e vivo para a socie-dade."22 Outra forma de colocar a questao seria reconhecera infinita reversibilidade das "logicas" do discurso ideologico,que e governada muito mais pelas "leis" do deslocamento e dacondensagao, tipicas do trabalho do sonho de Freud, do quepela razao iluminista. "O signo ideologico vivo tern a face deJano"; e essa "dialetica interna do signo" esta presente nas"conduces habituais da vida social", sendo particularmenterelevantes "nas epocas de crise social e de comogao revolucio-naria".23

Em quarto lugar, Marxismo e filosofia da linguagem nosfez perceber com clareza que o que uma ideologia "faz", porassim dizer, nao e impor uma perspectiva de classe ja formada'

230 231

Page 119: Da Dispora - Stuart Hall

sobre outra, menos poderosa, mas intervir na fluidez ideolo-gica da linguagem, efetuar o "corte" da ideologia no "jogo"semiotico infinite da linguagem, definir os limites e aordem reguladora de uma "formacao discursiva", para tentar,arbitrariamente, fixar o fluxo da linguagem, estabiliza-la,congela-la, sutura-la em um significado univoco.

Aquilo mesmo que torna o signo ideologico vivo e dinamicofaz dele um instrumento de refracao e de deformafao do ser.A classe dominante tende a conferir ao signo ideologico umcarater intangivel e acima das diferencas de classe, a fim deabafar oil de ocultar a luta dos indices socials de valor que aise travam, a fim de tornar o signo monovalente.2'1

*Na visao de Volochinov, cada formacao linguistica consiste, defato, do "genero, registro, socioleto, dialeto e interanimacaodessas formas", usando a frase de Allon White.

Marxismo efilosofia da linguagem, portanto, exerceu umafuncao critica no deslocamento teorico geral daquilo quepoderia restar de um flerte com uma versao, mesmo quemodificada, da metafora da "base e superestrutura", para umaconcepcao do ideologico plenamente focado em discurso-e-poder.25 Entretanto, houve algo de enorme importancia nessetexto que nos nao chegamos a compreender na epoca. Defato, essas importantes formulacoes sobre a plurivalencia dosigno ideologico e a luta pela contestacao-e mudanca dossentidos — do sentido enquanto premio simbolico de todoantagonismo social — pertenciam a um contexto filosoficomais amplo e dele derivava seu poder teorico e metaforico.As prescricoes de Volochinov, que tendfamos a ler mais"tecnicamente", exigiam uma "leitura" intertextual — nocontexto de um modelo ou conjunto maior de metaforassobre a mudanca social: especificamente em relae.ao aoprin-cipio dialogico de Bakhtin e aos grandes temas do "carnaval".A explicacao de Volochmov contrapunha o exercicio dopoder cultural, atraves da imposicao da norma para congelare fixar a significacao linguistica, a constante erupcao denovos sentidos, a fluidez da heteroglossia, e a forma comoa instabilidade e a heterogeneidade inerentes ao conteudodeslocavam e desordenavam o carater aparentemente "pronto"da lingua. Porem, essa explicacao refletia, em miniatura,

232

o "carnaval" de Bakhtin, com sua imagem da cosmologiamedieval do mundo, ordenada em apice e base, alto e baixo,ao longo da linha vertical — "o carater vertical surpreenden-temente consistente que projeta tudo para cima e para forado movimento do tempo" — e de como este vem a ser confron-tado pelo impulse "para baixo" do popular, pelo avanco do"eixo horizontal do mundo", que nao apenas poe em jogo umoutro tempo e um outro espaco, mas relativiza aquilo que serepresentava a si mesmo como absolute e complete.

A razao peia qual deixamos de perceber essas reverbe-racoes metaforicas mais profundas no argumento textualde Volochinov foi que, embora soubessemos que ele haviasido membro do circulo de Bakhtin, na £poca nao compreen-diamos perfeitamente a complexidade da questao, aindanao resolvida satisfatoriamente, da autoria "real" de Marxismoefilosofia da linguagem. Teria o texto sido escrito por Volo-chinov, um linguista talentoso e inteiramente capaz deescreve-lo? Ou se trataria de uma escrita de Volochinov emco-autoria com Bakhtin? Ou — como muitos acreditam hojeem dja — seria um texto de Bakhtin publicado com o nomede Volochinov ou o texto de Bakhtin com acrescimos e retifi-cacoes de Volochinov? Atualmente, os criticos conhecem essacomplexa historia dos textos disputados de Bakhtin; docirculo de brilhantes intelectuais da Russia dos anos 20, quecolaboravam intimamente uns com os outros, questionavame debatiam questoes literarias, HnguTsticas e filosoficas emum periodo de intenso dialogo e discussao que se estendeupor muitos anos.26

Na realidade, a ironia nao terminou aqui. Pois Bakhtintinha um irmao, Nikolai, que havia sido seu alter ego najuventude, com quern ele compartilhara nao apenas variasideias, mas mantivera um forte relacionamento pessoal — "amesma inimizade tocara duas almas distintas, meu inimigo eirmao" — e de quem veio a se separar durante a Revolucao.Nikolai nao apenas se tornou membro do circulo de Wittgensteinem Cambridge, mas lecionou durante muitos anos na Univer-sidade de Birmingham (1939-1950). Seu interesse pela univer-sidade foi motivado pela amizade que mantinha com doisantigos professores de Cambridge que davam aulas la —George Thompson, o professor de linguas classicas e o pro-fessor de alemao, Roy Pascal, um grande amigo que foi,

233

Page 120: Da Dispora - Stuart Hall

inter alia, aliado e defensor do Centre de Estudos Culturaise que mais tarde fundou o Departamento de Linguistica

da universidade.27

Em seu livro, Mikhail Bakhtin, Clark e Holquist de-fendem firmemente a opiniao de que Bakhtin foi o autortanto de Marxismo e filosofia da linguagem quanto deFreudianismo: um esboco critico, ate entao atribuido tambema Volochmov; e isso foi confirmado por muitos membrosdo circulo, incluindo a viuva de Bakhtin. Contudo, comose sabe atualmente, ele se recusou a assinar o documentopreparado a seu pedido em 1975, onde esclarecia a questaoda autoria, e ja que todos os seus manuscritos e papeisforam totalmente destruidos, e possivel que o assunto jamaisseja esclarecido.28

O misterio da autoria tem seu lado profundamente serio,pois deve ser situado no contexto da ameaca ao trabalhointelectual nao ortodoxo, quando o obscurantismo stalinistase estabelecia, e do recuo de Bakhtin ao anonimato, queculminou em sua prisao e exilio por exercer atividades reli-giosas. Contudo, como sempre aconteceu com Bakhtin, esseaspecto tragico e "duplicado" por seu aspecto parodico ecarnavalesco; pois o episodic deve ser compreendido tambemno contexto do amor as brincadeiras, jogos, chistes verbais,destrezas e travessuras do circulo de Bakhtin e dos principlese teorias do "dialogico" e da heteroglossia que governavamtanto as especulacoes filosoficas quanto as trocas intelectuaisde seus membros. Pelo principio dialogico, o eu e constituidoapenas atraves de seu relacionamento com o outro; toda com-preensao e dialogica por natureza; "o significado pertence auma palavra em sua posicao entre os falantes, e a concor-dancia entre os colaboradores no relacionamento dialogicoe definida como uma "co-vocalizacao". Bakhtin havia medi-tado sobre a "questao da autoria", as relacoes mutantes entreo eu e o outro, o discurso indireto e a politica da cita^ao jaem um de seus primeiros textos, A forma arquitetonica daresponsabilidade, e estes continuaram a ser temas de seustrabalhos posteriores. O dialogismo, como observam Clark eHolquist, "celebra a alter-idade ... Enquanto o mundo neces-sita de minha alter-idzde para conferir-lhe sentido, eu neces-sito da autoridade dos outros para definir, ou ser autor dernim mesmo."29 Em retrospecto, teria sido surpreendente se a

autoria das ideias em Marxismo e filosofia da linguagem serevelasse como uma simples questao entre Bakhtin e suasco-vozes [co-voicers].

Na falta de um principio do dialogico em sua plenitude,nossa tendencia foi apropriar Volochinov mais restritamente— como base de uma revisao nao reducionista das relacoesentre a linguagem e a transformasao social. Imaginavamosesse exercicio como uma especie de recuperae.ao da perspec-tiva "dialetica". Como observamos, esse e tambem o contextoem que Fredric Jameson apropria e modula Bakhtin ao desen-volver uma hermeneutica marxista no Inconsciente politico.Em retrospecto, percebemos que isso subestima significati-vamente o que acontece na transformacao das metaforas da"dialetica do antagonismo de classe" para a "dialogica daplurivalencia". Essas duas logicas nao sao mutuamente exclu-sivas. Porem, nao estao sujeitas a subsumir, nem a substituir,uma a outra dessa forma. Onde, na visao classica, os termosda dialetica fundamentam a complexa substituigao das dis-tintas forgas sociais, fornecendo-lhe sua logica governante,sua metanarrativa, o dialogico enfatiza os termos variaveisdo antagonismo, a intersecc.ao de diferentes "valencias" nomesmo terreno discursive, em vez das "bifurcac.6es" da diale-tica. O dialogico expoe rigorosamente a falta de garantia deuma logica ou "lei" para o jogo da significacao, os posiciona-mentos infinitamente variaveis dos locais de enunciagao, emcontraste com as posic.6es "dadas" do antagonismo de classe,concebidas de forma classica. A noc.ao de articulacao/desar-ticulagao interrompe o maniqueismo ou a rigidez binaria dalogica da luta de classe, em sua concepcao classica, comofigura arquetipica da transformacao. O dialogico invade a ideiada reversibilidade, das mudancas historlcas que carregamos tra^os do passado indelevelmente inscritos no futuro, daruptura da novidade, sempre envolvida no retorno do arcaico.

Lembramo-nos aqui da revisao de Gramsci da natureza domomento revolucionario em sua forma generica a luz daexperiencia do cesarismo. A nao derrota B nem B derrota A,cada um com seu carater auto-suficiente de "forc.a generica-mente reacionaria e progressista". Em vez disso, ambos estaoenvolvidos, nos tempos modernos, naquilo que Gramscidenomina "dialetica (da) revolucao/restaura^ao".30 Aqui adestruigao tem que ser concebida nao de forma mecanica,

234 235

Page 121: Da Dispora - Stuart Hall

mas como um processo ativo: "destruicao/reconstrufao".Esses fundamentos paradoxais, que captam o relacionamentodialogico entre forcas antagonicas, prefigurarn a transicaohist6rica de Gramsci de uma "guerra de manobras" para uma"guerra de posicao" — outro deslocamento importante dasmetaforas de transformacao que causou irnpacto sobre ateorizacao critica ao mesmo tempo, e que apontava na mesmadirecao.

E dificil captar — exceto metaforicamente — em queconsiste esse deslocamento das metaforas de transformacao.Nao se trata da simples rejeicao de um tipo de metafora e suasubstituicao por outra "melhor" (ou seja, mais correta teorica-mente). E antes uma questao de ser surpreendido no meri-diano que divide duas variantes da mesma ideia; de estarsuspense entre duas metaforas — de abandonar uma semque se possa transcende-la, e de mover-se na direcao deoutra sem poder engloba-la inteiramente. O que esse desloca-mento para o "dialogico" parece envolver e a "espacializacao"dos momentos de confiito e antagonismo que ate aqui haviamsido captados por metaforas de condensacao. O dialogicoabriu mao de qualquer ideia pura de transcendencia. Em vezdisso, ele sugere que, em cada momento de inversao, ha sempreo retorno sub-repticio do traco do passado; em qualquerruptura estao os efeitos surpreendentes da reduplicacao,repeticao e ambivalencia. A insercao da ambivalencia e daambiguidade no "espaco" das metaforas condensadas deinversao e transcendencia e, a meu ver, o fio condutor paraos deslocamentos incompletos que parecem ocorrer nestemovimento dentro do discurso metaforico. Certamente, o"dialogico" nao refuta a ideia do antagonismo. Mas ele nosobriga sempre a pensar o antagonismo como algo mais oumenos do que o momento "puro"; redefinir o "carnavalesco"como uma economia do excesso, do excedente e da suple-mentaridade, por um lado, ou de subdeterminacao, ausenciae falta, por outro lado. Nenhuma das metaforas de transfor-macao que contem elementos do "festival dos oprimidos",do "mundo as avessas" em seu interior, quando redefinidasdentro da perspectiva do "dialogico", pode produzir umarepresentacao inteiramente adequada dos polos do antago-nismo que elas tentam englobar ou representar. Ha sempre

algo nao explicado, ou excedente. Como os sintomas e repre-sentacoes da vida psiquica, elas estao destinadas a ser sobreou subdeterminadas. A referenda ao modelo do "sintoma"nao e casual. Este argumento foi apresentado especialmenteem relacao a Bakhtin. Contudo, na obra de Stallybrass e White,como em outras, a figura de Freud e o discurso da psicanaliseforam elementos igualmente decisivos para essa mudanca.

Essas foram algumas das ideias incoerentemente expres-sadas e formuladas que comecaram, devagar e irregularmente,a transformar os termos teoricos e a forma das metaforas dotrabalho em estudos culturais durante os anos 70. A politico,e a poetica da transgressao, definitivamente uma obra dosanos 80, faz alguns avancos teoricos alem desses movimentostitubeantes. Mas me parece que vai na mesma direcao. Osparalelos e "afinidades eletivas" surgem fortemente quandoexaminamos como Stallybrass e White se propuseram are-trabalhar e expandir Bakhtin. Particularmente surpreen-dente e sua capacidade de trabalhar com a metafora do"carnaval" de Bakhtin e, ao mesmo tempo, aperfeicoa-la,explorando genuinamente suas ricas possibilidades conota-tivas, considerando com seriedade as criticas apresentadascontra ela (seu binarismo, seu "populismo utopico") e transfor-mando-a ao mesmo tempo. Esse e um trabalho teorico exemplarque precisa ser contrastado com os muitos exemplos atuaisque consistem principalmente de uma ventriloquia das "vozesde seus mestres". Consequentemente, os autores tern razaoao afirmar que "e somente pela completa mudanca nas basesdo debate, pela transformacao da "problematica do carnaval"que o "carnaval" podera ser visto simplesmente como "umainstancia de uma economia de transgressao generalizada eda recodificacao das relacoes do tipo alto/baixo em toda aestrutura social".31 E justamente o exito desses autores na suaelaboracao a partir do trabalho de Bakhtin, enquanto tentamevitar as Hmitacoes identificadas em sua obra, que nospermite perceber a relevancia da "intervencao na atual ondade estudos inspirados em Bakhtin", representada pela Politicae poetica da transgressao.

Em geral, as criticas a estrutura de binarias-e-inversoesdas metaforas classicas de transformacao sao seguidas peloseu abandono em favor de metaforas horizontals ou maislaterals — um movimento hoje tao em voga na teoria critica

236 237

Page 122: Da Dispora - Stuart Hall

que ja quase se tornou banal. Este e certamente o destine aque chegou a distincao do alto/baixo no debate sobre acultura. Colin McCabe, por exemplo, esta correto em seuensaio "Definindo a cultura popular" quando chama a atencaopara a importancia das "formas complexas pelas quais astradicoes e as tecnologias se combinam para produzir publicos"e quando argumenta que "a figuracao de diferentes publicos"recorta radicalmente ou desorganiza as posicoes dos campeoesda arte culta e da cultura popular igualmente.32 Ele tern razaoquando observa como a ideia do "nacional popular" deGramsci, que tanto contribuiu para o debate sobre o "popular"nos anos 70, transcende as formas de leitura da cultura dotipo classe-contra-classe, as quais, diz ele, enfraqueceram aesquerda europeia. E pode ter razao ainda quando afirmaque, mesmo assim, Gramsci estaria de certa forma aprisio-nado a teoria hegeliano-marxista da cultura da qual tentavaescapar. McCabe talvez esteja correto ainda ao descartar aalternativa (que eu apresentei em "Notas sobre a descons-trucao do 'popular'") de que, na sua opiniao, "o social eteorizado como terrenos sobrepostos de luta e a culturapopular e considerada simplesmente como uma forma deespecificar £reas de resistencia as formas ideologicas domi-nantes".33 Afirma o autor que, assim, "nao importa quantosmilhoes de mediacoes existam", reproduz-se a propria fraquezada posicao que se tenta reparar.3^

A unica alternativa, ao que parece, e abandona-la. "O queme parece positive no comprometimento com a culturapopular", argumenta ele, "e o elemento destinado a rompercom toda e qualquer formulacao que dependa de distincoesdo tipo alto/baixo, elite/massa".35 John Caughie, que adicio-na ao argumento de McCabe consideracoes relevantes como"a discriminate do prazer e uma compreensao dos comple-xos maquinas de desejo envolvidos na circulacao do popu-lar", chega a mesma conclusao em um ensaio posterior nomesmo volume.36

Pode-se responder apenas que depende do que se querdizer por abandona-la. Coloca-la "sob rasura", como diriaDerrida, sim. Abandona-la completamente, nao. Certamente,a distincao alto/baixo nao e — nem nunca foi — convincentenos ternios naturalistas e transistoricos pelos quais foi intro-duzida. Mas se a proposicao for de que, ao "abandona-la",

transcendemos o problema ao qual ela se referia — a persis-tente tendencia de que falam Stallybrass e White exibidapela cultura europeia de mapear "o corpo humano, as formaspsiquicas, o espaco geografico e a formacao social ... dentrode hierarquias interdependentes e inter-relacionadas de altoe baixo" — entao, deve-se duvidar dessa estrategia.

Stallybrass e White, de qualquer forma, nao tendem paraesse lado. Consideram, em vez disso, os processes de orde-nacao e classificae.ao que os eixos alto e baixo representamcomo processes culturais fundamentals, essenciais dentroda cultura europeia para a constituicao da identidade dequalquer dominio cultural. Os conceitos de ambivalencia,hibridismo, interdependencia que, conforme argumentamos,comecaram a perturbar e transgredir a estabilidade do orde-namento hierarquico binario do campo cultural em alto ebaixo, nao destroem aforca operational doprincipio hierar-quico da cultura, nao mais, pode-se dizer, que o fato de a"raca" nao ser uma categoria cientifica valida que "de formaalguma enfraquece sua eficacia simbolica e social".37 O alto eo baixo podem nao ter o status canonico que se reclama paraeles; mas eles continuam sendo fundamentais a organizacaoe regulacao das praticas culturais. "Desloca-los" nao significaabandona-los, mas mudar o foco da atencao teorica das cate-gorias "em si mesmas", enquanto repositories de valor cul-tural, para o proprio processo de classificacao cultural. Estese revela necessariamente arbitrdrio — como uma tentativatrans-codificada de um dominio ao outro, de fixar, estabilizare regular uma "cultura" em uma ordem hierarquica ascendente,utilizando toda a forca metaforica "de cima" e "de baixo".

A classificacao dos dommios culturais em distincoesaparentemente transcendentais e auto-suficientes de alto ebaixo e revelada, pela operacao do carnavalesco e pelastransgressoes do prazer, do jogo e do desejo, como um exer-cicio de regulacao cultural destinado a transformar as pra-ticas culturais em umaformafao que possa, entao, ser mantidaem uma forma binaria pelas estrategias do poder cultural.O fato de que o campo cultural nao pode ser estabilizadodessa forma nao impede o exercicio de se tentar construirfronteiras novamente em outro lugar, uma outra vez. As pra-ticas culturais nao se situam fora do jogo do poder. Uma dasformas pelas quais o poder opera na esfera aparentemente

238 239

Page 123: Da Dispora - Stuart Hall

descentrada da cultura e atraves da luta por seu aproveita-mento a fim de sobrepo-la, regular e cercar suas diversasformas e energias transgressivas dentro da estrutura e dalogica de um duplo normativo ou canonico. Como argumenteianteriormente,38 essa operacao cultural esta sempre ligada,de certa forma — e continua ligada, mesmo em nossa culturap6s-moderna rnais diversificada — aos mecanismos da hege-monia cultural.39 Sena extremamente ingenuo acredltar queas atuais controversias em torno do "multiculturalismo" e docanone — a forma contemporanea do debate cultural do alto/baixo — sao uma conversa desinteressada entre estudiosos,sem relacao com as questoes da autoridade cultural e acontencao do perigo transgressor do hibridismo social, etnico,de genero e sexual.

Este argumento e apresentado com grande clareza naconclusao de Stallybrass e White:

Neste livro fomos estimulados a refletir sobre um deslizamentonao percebido entre dois tipos distintos de "grotesco", ogrotesco do "Outro" do grupo ou do eu que se define; e ogrotesco enquanto fenomeno limitrofe da hibridizacao oumistura interna, na qual o eu e o outro sao enredados em umzona inclusiva, heterogenea e perigosamente instavel. O quecomeca como uma simples repulsa ou rejeicao da materiasimbolica estranha ao eu inaugura um processo de introjefao,cujos efeitos sao sempre complexes. Para que se possa entenderessa complexidade e essa dinamica interna das construcoes defronteiras necessarias a identidade coletiva, nao se deveconfundir as duas formas do grotesco. Caso isso aconteca,torna-se impossivel perceber que um mecanismo fundamentalde formacao de identidade produz o segundo, ou seja, ogrotesco hibrido no nivel do inconsciente politico, pelo proprioesforco de excluir o primeiro... O problema e que a exclusaonecessaria a formacao da identidade social no primeiro nivelconstitui simultaneamente uma produfao no nivel do Imagi-nario, e mais ainda, a producao de uma complexa fantasiahfbrida, que surge da propria tentativa de demarcar fronteiras,unir e purificar a coletividade social... Os processos gerais declassificacao que mais intimamente afetam a identidade dacoletividade sao indissociaveis do simbolico heterodoxo doImaginario- O inconsciente a essa altura e, necessariamenteum inconsciente politico, conforme afirma Jameson, pois aexclusao de outros grupos e classes socials na luta por umaauto-identidade categorica surge como um dialogismo especial,

240

um agon de vozes — as vezes at£ uma altercafao — dentrodo Imaginario compartilhado da classe em questao. O proprioimpulso de alcancar a singularidade da identidade coletivaproduz simultaneamente a heterogeneidade inconsciente, comsua variedade de figuras hibridas, soberanias competitivas edemandas exorbitantes.^

Aquilo que e socialmente periferico pode ser simbolica-rnente central.111 O movimento das metaforas binarias simplesde transformacao cultural e simbolica para as figuras maiscomplexas descritas acima representa uma "virada" absoluta-mente fundamental na teoria cultural, mapeavel em diversoscampos. Apolitica e apoetica da transgressdo representa umainstancia exemplar desse movimento geral. A contributede Allon White a ele, no periodo tragicamente breve de suavida produtiva como escritor, esta apenas comecando a serpropriamente compreendida.

[Texto de uma Conferencia (Memorial Lecture) realizadapor S. Hall na Universidade de Sussex. Impressa a partirde WHITE, A. Carnival, Hysteria and Writing {Carnaval, histeriaeescrital Oxford; Clarendon Press, 1993. Traducao de AdelaineLa Guardia Resende.J

NOTAS

1 STALLYBRASS, Peter; WHITE, Allon. The Politics and Poetics of Transgression.Ithaca, NY: Cornell, 1986.

2 Ibidem, contracapa.

3CURTIUS, E. R. European Literature and the Middle Ages . Londres: [s. n.],1979.

4 Ibidem, p. 2.

5 Ver por exemplo, LEA VIS, F. R. Mass Civilization, Minority Culture . Repu-blicado como apendice 3 em Education and the University, Londres: [s. n.],1948; LEA VIS, Q. D. Fiction and the Reading Public. Londres: [s. n.], 1932; eLEA VIS, F. R.; THOMPSON, Denys. Culture and environment. Londres: [s. n.],1933- Sobre o debate a respeito da cultura de massa, ver ADORNO, T. W.Television and the Patterns of Mass Culture; MacDONALD, Dwight. A Theory

241

Page 124: Da Dispora - Stuart Hall

of Mass Culture; e HOWE, Irving. Notes on Mass Culture, todos emROSENBERG, B-; WHITE, D. (Org.). Mass Culture. Glencoe: [s. n.], 1956.

6 STALLYBRASS; WHITE. The Politics and Poetics of Transgression, p. 2-3.

? Ibidem, p. 6.

8 BAKHTIN, Mikhail. Rabelais and his World [Rabelais e seu mundo].Bloomington: Indiana UP, 1984, p. 423.

5 JAMESON, Fredric. The Political Unconscious [O inconsciente politico}.London: [s. n.], 1981, p. 73-

10 Ibidem, p. 75.

11 STALLYBRASS; WHITE. The Politics and Poetics of Transgression, p. 5.

12 Para um resume que localiza as origens dos estudos da midia no debate da"cultura de massa", ver BRAMSON, Leon. The Political Context of Sociology.Princeton: [s. n.], 1961, cap. 6.

13 Sobre uma primeira tentativa de romper com esse dilema binario, ver HALL,S.; WHANNEL, P. The Popular ArtslArtespopulares}. London: Phanteon, 1964.

14 Ver inter alia em WILLIAMS, Raymond. The analysis of culture. In: TheLong Revolution. Harmondsworth: Penguin, 1965; e Marxism and Literature.Oxford: Oxford UP, 1977.

15 Esta e uma opiniao que apresentei no ensaio "Notas sobre a desconstruc.aodo 'popular'", em SAMUEL, Raphael (Org.). People's History and SocialTheory. Londres: Routtledge & Kegan Paul, 1981. A abordagem "relscional"a esse processo de classificagao cultural pode ser melhor compreendidaatraves de um exemplo. No seculo dezoito, o romance era consideraclouma forma inferior ou "vulgar". No seculo vinte, o romance do seculodezoito passou a ser o paradigma da literatura "seria". Contudo, novosromances continuaram a ser classificados de acordo com alguma distinc.aogenerica implicita de alto/baixo, se'rio/popular. Os conteudos dessas cate-gorias mudaram, mas a pratica de mapear a literatura dentro de um "sistemade diferencas" permanece. O que importa e como o "alto" e definido, emqualquer momento historico, em relacao ao "baixo", e nao essas categoriasfixas em termos de seus conteudos ou valores culturais transcendentais. Oproblema e rudimentar em rela9ao a estudos da "classificagao simbolica"como em LEVI-STRAUSS. Mythologies: The Origin of Table Manners, [s. n. t.];DOUGLAS, Mary, Purity and Danger. Londres: [s. n.], 1966; e TURNER, V.W. The ritual process. Ithaca, NY: Cornell, 1977, todos eles referidos porStallybrass e White em The Politics and Poetics of Transgression.

16 HALL, S.; JEFFERSON, T. (Org.). Resistance through Rituals. Londres:Hutchinson, 1976.

17 Ibidem, p. 44.

18 Rosalind Coward elaborou essa acusagao de "reducionismo de classe"em Class, "Culture" and the Social Formation. Screen, v. 18, n. 4, Winter,1977-1978.

242

19 Para uma explicate do trabalho na area nessa epoca, ver HALL, S.;HOBSON, D.; LOWE, A.; WILLIS, P, (Org.). Culture, Media, Language.Londres: Hutchinson, 1980.20 VOLOCHf NOV, V. N. Marxism and the Philosophy of Language. New York:[s. n.l, 1973. [Edic.ao brasileira: BAKHTIN, Mikhail (Volochmov). Marxismoefilosofia da linguagem. Traducao de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. SaoPaulo: HUCITEC, 1981. O trecho citado encontra-se na p. 32]

21 Marxism and the Philosophy of Language, p. 10, 23-

22 Ibidem, p. 23 [edifao brasileira p. 46].

23 Idem, [edicao brasileira p. 47].

M Idem.K Isso e reconhecido, por exemplo, em S. Hall. [O problema da ideologia: omarxismo sem garantias], neste volume.

26 Ver explicacao do circulo de Bakhtin em CLARK, K.; HOLQUIST, M.Mikhail Bakhtin. Cambridge, Mass.; [s. n.] , 1984.

27 Ver introdu^ao de A. Duncan Jones ao Lectures and Essays [Paleslras eensaios], de N. Bakhtin. Birmingham: [s. n.], 1963- A conexao de Birminghame descrita em CLARK; HOLQUIST. Mikhail Bakhtin. Isso mais a existencia deum arquivo de Bakhtin na biblioteca da universidade foram trazidos ao meuconhecimento, em principle, pelo Professor Peter Davidson. Sobre o relacio-namento dessas diversas figuras do circulo de Wittgenstein, ver EAGLETON, T.Wittgenstein's Friends. In: Against the Grain [Ao reves\. Londres: [s. n.], 1986.

28 Ver CLARK; HOLQUIST. Mikhail Bakhtin, cap. 10.

29 Ibidem, p. 65.

3U GRAMSCI, A. State and Civil Society. In: The Prison Notebooks. Londres:[s. n.], 1971, p. 219 et seq.

51 STALLYBRASS e WHITE. The Politics and Poetics of Transgression, p. 19.

32 McCABE, Colin. Defining Popular Culture. In: McCABE (Ed.). HighTheory/Low Culture. Manchester: [s. n.], 1986. p. 8.

33 Ibidem, p. 4.

** Idem. Contudo, "Notas sobre a desconstru9ao do 'popular'" nao e umensaio sobre o conceito de "media96es" e nem utiliza este conceito. Ver p.247-263 neste volume.

35 Defining Popular Culture, p. 8.

36 CAUGHIE, John. Popular Culture: Notes and Revisions [Cultura popular:notas e revisoesl. In: McCABE (Ed.). High Theory/Low Culture.

i7 Introducao em; DONALD, J.; RATTANSI, A. Race [Raca]. In: Culture andDifference. Londres: [s. n.], 1992. p. 3.

243

Page 125: Da Dispora - Stuart Hall

a" "Notas sobre a desconstrutao do 'popular'".

a9 O argumento em HALL, S. "Notas sobre a desconstrucao do 'popular'" e o deque considerar a classifica^ao da cultura em alto/baixo como algo relacionadoa Juta pela hegemonia nao requer nem a fetichizacao do conteudo de cadacategoria, nern um tipo de leitura da correspondencia de classe em termos deum relacionamento entre o social e o simbolico.

40 STALLYBRASS; WHITE. The Politics and Poetics of Transgression, p. 193-194.

41 Ibidem, p. 23; citado de BABCOCK, B. The Reversible World. Ithaca, NY:Cornell, 1978, p. 32.

T

CULTURA POPULAR E IDENTIDADE

244

Page 126: Da Dispora - Stuart Hall

N01AS SOBRE A DESCONSTRUtJAODO " P O P U L A R "

Em primeiro lugar, gostaria de dizer algo sobre as periodi-zacoes no estudo da cultura popular. Aiguns problemas dificeissao colocados pela periodizagao — nao a apresento aqui comouma homenagem aos historiadores. As grandes rupturas saoem grande parte descritivas? Elas surgem em geral de dentroda propria cultura popular ou de fatores externos que ainvadem? Com quais outros movimentos e periodizagoes a"cultura popular" estaria ligada de maneira mais esclarece-dora? Em seguida, gostaria de Ihes contar sobre as dificul-dades que tenho com o termo "popular". Tenho quase tantadificuldade com "popular" quanto tenho com "cultura". Quandocolocamos os dois termos juntos, as dificuldades podem setornar tremendas.

No decorrer da longa transigao para o capitalismo agrarioe, mais tarde, na formac.ao e no desenvolvimento do capita-lismo industrial, houve uma luta mais ou menos continua emtorno da cultura dos trabalhadores, das classes trabalha-doras e dos pobres. Este fato deve constituir o ponto departida para qualquer estudo, tanto da base da cultura popularquanto de suas transformac.6es. As mudangas no equilibrioe nas relacoes das forgas socials ao longo dessa historia serevelam, frequentemente, nas lutas em torno da cultura,tradigoes e formas de vida das classes populares. O capitaltinha interesse na cultura das classes populares porque aconstituicao de uma nova ordem social em torno do capital

Page 127: Da Dispora - Stuart Hall

exigia um processo mais ou menos continue, mesmo queintermitente, de reeducacao no sentido mais amplo. E atradicao popular constituia um dos principals locals deresistencia as maneiras pelas quais a "reforma" do povo erabuscada. E por isso que a cultura popular tem sido ha tantotempo associada as questoes da tradicao e das formas tradi-cionais de vida — e o motive por que seu "tradicionalismo"tem sido tao frequentemente mal interpretado como produtode um impulse meramente conservador, retrograde e anacro-nico. Luta e resistencia — mas tambem, naturalmente, apro-priacao e a%propriacao. Na realidade, o que vem ocorrendofrequentemente ao longo do tempo e a rapida destruicao deestilos especificos de vida e sua transformac,ao em algo novo.A "transformac.ao cultural" 6 um eufemismo para o processopelo qual algumas formas e praticas culturais sao expulsasdo centro da vida popular e ativamente marginalizadas. Emvez de simplesmente "cairem em desuso" atraves da LongaMarcha para a modernizac.ao, as coisas foram ativamentedescartadas, para que outras pudessem tomar seus lugares.Os magistrados e a policiamento evangelico ocupam oumereciam ocupar um lugar mais "honrado" na historia dacultura popular. Bern mais importante que a proibicao ou acondenacao e aquela figura sutil e escorregadia — a "reforma"(com todas as Implicates positivas e claras que ela carregahoje). De um jeito ou de outro, "o povo" e frequentemente oobjeto da "reforma": geralmente, para o seu proprio bem, elogico — "e na melhor das intencoes". Atualmente, compre-endemos a luta e a resistencia bem melhor do que a reforma ea transformafao. Contudo, as "transformacoes" situam-se nocentro do estudo da cultura popular. Quero dizer com isso,o trabalho ativo sobre as tradicoes e atividades existentese sua reconfiguracao, para que estas possam sair diferentes.Elas parecem "persistir"; contudo, de um perfodo a outro,acabam mantendo diferentes relacoes com as formas de vidados trabalhadores e com as definicoes que estes conferem asrelacoes estabelecidas uns com os outros, com seus "Outros" ecom suas proprias condicoes de vida. A transformacao e achave de um longo processo de "moralizacao" das classes traba-Ihadoras, de "desmoralizacao" dos pobres e de "reeducacao"do povo. A cultura popular nao e, num sentido "puro", nem

-.- * • __ _~—— '"™**-— —__,__. _._.. — • .J-~... ___ *

as tradic.6es popufares deresistencia a esses processes, nem

248

as formas que as sobrepOem. fi o terreno sobre o qual astransforrnaf'6'es"~sao operadas. ~ ~ • — -

"~~No estudo da cultura popular, devemos sempre comecarpor aqui: com o duplo interesse da cultura popular, o duplomovimento de center e resistir, que inevitavelrnente se situaem seu interior.

O estudo da cultura popular tem oscilado muito entre essesdois polos da dialetica da contencao/resistencia. Algumasinversoes surpreendentes e admiraveis tem ocorrido. Pensemna enorme revolucao na compreensao historica que ocorreuquando a historia da "sociedade refinada" e da aristocraciainglesa do seculo dezoito foi revirada pelo acrescimo dahistoria do povo turbulento e ingovernavel. As tradicoespopulares dos trabalhadores pobres, das classes popularese do "povao" do seculo dezoito parecem, hoje, formacoes quaseindependentes: toleradas em um estado de equilibrio perma-nentemente instavel, em tempos relativamente pacificos eprosperos; sujeitas a expedicoes e incursoes arbitrarias emtempos de panico e crise. Mas mesmo que formalmente essastenham sido as culturas da gente de "fora das muralhas",distante da sociedade politica e do triangulo do poder, elasnunca de fato estiveram fora do campo mais amplo das forcassocials e das relacoes culturais. Elas nao apenas pressio-navam constantemente a "sociedade"; mas estavam vincu-ladas a ela atraves de inumeras tradicoes e praticas. Porlinhas de "alianca" e por linhas de clivagem. A partir dessasbases culturais, frequentemente muito distantes das dispo-sicoes da lei, do poder e da autoridade, "o povo" constante-mente ameacava eclodir: e quando o fez, invadiu o palco dasrelacoes clientelistas e de poder com um clamor e um estam-pido ameacadores — com pifaros e tambores, com Ia9o eefigie, com manifesto e ritual — e frequentemente com umadisciplina ritual popular surpreendente. Contudo, sem nuncaromper os fios do paternalismo, da deferencia e do terrorque os aprisionava continua senao frouxamente. No seculoseguinte, nos locals onde as classes "trabalhadoras" e "peri-gosas" viviam sem o beneficio desta fina distin^ao que osreformadores ansiavam por estabelecer (tratava-se de umadistin^ao cultural, bem como moral e economica; e uma grandequantidade de legislacao e regulamentacao foi projetada para

249

Page 128: Da Dispora - Stuart Hall

operar diretamente sobre ela), algumas regioes preservarampor muito tempo urn carater de enclave virtualmente impene-travel. Foi necessario quase urn seculo para que os represen-tantes da "lei e da ordem" — a nova policia — conquistassemurn ponto minimo de apoio dentro delas. Ao mesmo tempo,a penetracao das culturas das massas trabalhadoras e dospobres urbanos foi mais profunda e mais continua — emais constantemente "educativa" e reformadora — naqueleperiodo do que em qualquer outro desde entao.

Um dos principals obstaculos que se interpoem a periodi-zacao da cultura popular e a profunda transformacao na culturadas classes populares que ocorre entre os anos de 1880e 1920. Ha historias inteiras a serem escritas sobre esseperiodo. Embora contenha provavelmente muitos detalhesincorretos, creio que o artigo de Gareth Stedman Jonessobre a "reformacao das classes trabalhadoras inglesas" chamaa atencao para algo fundamental e qualitativamente diferentenesse periodo, que se caracterizou por profundas mudancasestruturais. Quanto mais o observamos, mais convencidosnos tornamos de que em algum momento desse periodo seencontra a matriz dos fatores e problemas a partir dos quaisa nossa historia e nossos dilemas peculiares surgiram. Tudomudou — nao foi apenas uma mudanca nas relacoes deforca, mas uma reconstituicao do proprio terreno da luta poli-tica. Nao e por acaso que tantas das formas caracteristicasdaquilo que hoje consideramos como cultura popular "tradi-cional" emergiram sob sua forma especificamente moderna, oua partir dela, naquele periodo. O que se havia feito pelos anos1790 e 1840 e que se estava fazendo pelo seculo dezoitoprecisa ser feito radicalmente pelo periodo que poderiamoschamar hoje de crise "social imperialista".

O argumento geral apresentado anteriormente e verdadeiro,sem restricoes, para esse periodo, no que diz respeito acultura popular. Nao existe um estrato "autentico", auto-nomo e isolado de cultura da classe trabalhadora. A maioriadas formas de recreacao popular mais imediatas, por exemplo,estao saturadas de imperialismo popular. Poderiamos esperaroutra coisa? Como explicar e o quefazercom a ideia da culturade uma classe dominada que, apesar de suas complexasformacoes e diferenciacoes internas, manteve uma relacao

250

bem especifica com a grande reestruturacao do capital; quese relacionou de forma peculiar com o resto do mundo;um povo unido pelos mais complexes lacos a um conjuntovariavel de relacoes e condicoes materiais; que conseguiude alguma forma construir uma "cultura" que permaneceuintocada pela ideologia dominante mais poderosa — o impe-rialismo popular? Sobretudo por que essa ideologia, contra-riando seu nome, foi tao dirigida para o povo quanto o foipara a mudanca de posicao da Gra-Bretanha na expansaocapitalists mundial?

Pensemos, em relacao ao imperialismo popular, sobre ahistoria e as relacoes entre o povo e um dos principals meiosde expressao cultural: a imprensa. Voltando ao deslocamentoe a superposi£ao — podemos perceber como a imprensaliberal da classe media da metade do seculo dezenove foi cons-truida as custas da efetiva destruicao e marginalizacao daimprensa local radical da classe trabalhadora. Mas, alem desseprocesso, algo qualitativamente novo ocorre mais para ofinal do seculo dezenove e o comeco do seculo vinte nessaarea: a efetiva insercao em massa de uma audiencia desen-volvida e madura da classe trabalhadora num novo tipode imprensa comercial popular. As consequencias culturaisdisso foram profundas, embora a questao nao seja estrita-mente "cultural". Isso exigiu um reorganiza^ao geral da basede capital e da estrutura da industria cultural; o atrelamentoa uma nova tecnologia e a novos processes de trabalho; oestabelecimento de novas formas de distribuicao, queoperavam atraves dos novos mercados culturais de massa.Mas um dos seus efeitos principals foi a reconstituicao dasrelacoes politicas e culturais entre as classes dominantes edominadas: uma mudanca intimamente ligada a contencaoda democracia popular na qual "nosso estilo democratico devida" hoje parece tao firmemente baseado. Seus resultadossao palpaveis ainda hoje: uma imprensa popular, que quantomais se encolhe mais se torna estridente e virulenta; organi-zada pelo capital "para" as classes trabalhadoras; contudo,com raizes profundas e influentes na cultura e na linguagemdo "Joao ninguem", "da gente"; com poder suficiente pararepresentar para si mesma esta classe da forma mais tradi-cionalista. Esta e uma fatia da historia da "cultura popular"que vale a pena elucidar.

251

Page 129: Da Dispora - Stuart Hall

Naturalmente, nao se poderia come^ar a fazer isso semmencionar muitas das coisas que nao aparecem usualmentena discussao da "cultura". Trata-se da reconstruclo do capitale do aumento dos coletivismos, da formafao de um novo tipode estado "educative", assim como de uma nova recreacao,danca e musica popular. Como uma area de seria investigacaohistorica, o estudo da cultura popular e como o estudo dahistoria do trabalho e de suas instituicoes. Declarar um inte-resse nele e corrigir um grande desequilibrio, e apontar umasignificant^ omissao. Mas, no final, seus resultados sao maisreveladores quando vistos em relafao a uma historia geral,mais ampla.

Seleciono este periodo — entre 1880 e 1920 — porqueeste constitui um dos grandes testes para o interesse atual nacultura popular. Sem querer de forma alguma menosprezar oimportante trabalho historico ja realizado ou que ainda estapor se fazer sobre os periodos anteriores, creio que muitasdas dificuldades reais (teoricas e empiricas) so serao confron-tadas quando comecarmos a examinar mais de perto a culturapopular em um periodo que come?a a se parecer com onosso, que apresenta os mesmos tipos de problemas inter-pretativos, e que e informado pelas mesmas atitudes quetemos em relagao as questoes contemporaneas. Tenhorestricoes aquele tipo de interesse na "cultura popular"que se interrompe subita e repentinamente mais ou menosno momento do declinio do chartismo.1 Nao e por acaso quepoucos estao trabalhando com a cultura dos anos de 1930.Desconfio que haja algo estranhamente inconveniente, espe-cialmente para os socialistas, no nao surgimento de umacultura militante, radical e madura da classe trabalhadoranos anos 30, quando — para ser franco — a maioria de nosesperaria que isso acontecesse. Do ponto de vista de umacultura popular puramente "heroica" ou "autSnoma", os anosde 1930 sao um periodo um tanto improdutivq. Essa "esteri-lidade" — como a riqueza e a diversidade anteriormente inespe-radas — nao pode ser explicada a partir de dentro da culturapopular apenas.

Temos agora que comecar a falar nao somente das descon-tinuidades e das mudancas qualitative, mas tambem de umafratura muito forte, uma ruptura profunda, especialmente nacultura popular do periodo pos-guerra. Aqui nao se trata apenas

252

de uma mudanca nas relacoes culturais entre as classes, masdo novo relacionamento entre o povo e a concentracao eexpansao dos novos aparatos culturais. Seria possivel hojenos propormos a escrever a historia da cultura popular semlevar em consideracao a monopolizacao das industrias culturais,por tras de uma profunda revolucao tecnologica? (E logicoque nenhuma "revolucao tecnologica profunda" pode ser,em sentido algum, "puramente" tecnica.) Escrever a historiada cultura das classes populares exclusivamente a partirdo interior dessas classes, sem compreender como elasconstantemente sao mantidas em relacao as instituicoes daproducao cultural dominante, nao e viver no seculo vinte.Essa questao, no seculo vinte, e muito clara. Mas se aplicaigualmente bem para os seculos dezenove e dezoito.

Fiquemos por aqui, no que diz respeito a "alguns problemasde periodizacao".

Em seguida, quero falar um pouco sobre "popular". Otermo pode ter uma variedade de significados, nem todoseles uteis. Por exemplo, o significado que mais correspondeao senso comum: algp_e. "popular" porque as massas oescutam, compram, leem, consomern e parecem aprecia^loimensamente . Es^^eL£inic^cijC^r^e:cial u de "mercad"clcTTerrrio: aquela que deixa os socialistas de cabelo em pe.E corretamente associada a manipula^ao e ao aviltamentoda cultura do povo. De certa forma, este significado e exata-mente o contrario daquele que eu vinha utilizando anterior-mente. Mas mesmo que o termo seja insatisfatorio, tenho duasrestricoes a dispensa-lo completamente.

Primeiro, se e verdade que, no seculo vinte, um grandenumero de pessoas de fato consome e ate aprecia os produtosculturais da nossa moderna industria cultural, entao conclui-seque um numero muito substancial de trabalhadores deve estarinclufdo entre os receptores desses produtos. Ora, se as formase relacoes das quais depende a participacao nesse tipo decultura comercialmente fornecida sao puramente manipu-laveis e aviltantes, entao as pessoas que consornem e apreciamesses produtos devem ser, elas proprias, aviltadas por essasatividades ou viver em um permanente estado de "falsa cons-ciencia". Devem ser uns "tolos culturais" que nao sabem queestao sendo nutridos por um tipo atualizado de opio do povo.

253

Page 130: Da Dispora - Stuart Hall

Esse julgamento nos fa2 sentir bem, decentes e satisfeitos pordenunciarmos os agentes da manipulacao e da decepfao emmassa — as industrias culturais capitalistas. Mas nao sei seessa visao poder£ perdurar por muito tempo como umaexplicagao adequada dos relacionamentos culturais; e muitomenos como uma perspectiva socialista da cultura e da natu-reza da classe trabalhadora. Em ultima analise, a ideia dopovo como uma forca minima e puramente passiva constituiuma perspectiva profundamente anti-socialista.

Em segundo lugar, e possivel resolver a questao semdeixar de atentar para o aspecto manipulador de grande parteda cultura comercial popular? Existem inumeros meios de sefazer isso, adotados por criticos radicals e teoricos da culturapopular, que considero altamente questionaveis. Faz-se acontraposicao dessa cultura com outra cultura "alternativa",Integra, a autentica "cultura popular", e sugere-se que a"verdadeira" classe trabalhadora (seja la o que isso for) naoe enganada pelos substitutes comerciais. Esta e uma alterna-tiva heroica, mas nao muito convincente. Seu problema basicoe que ela ignora as relacoes absolutamente essenciais dopoder cultural — de dominacao e subordinacao — que e umaspecto intrinseco das relacoes culturais. Quero afirmar ocontrario, que nao existejjma "cultura^ popular" Integra,autentica e autonoma, situada fora do campo de forca dasrela^Se^r^^^c^er~e^e~dorruhacao culturais. Em segundolugar, essa alternativa subestima em muito o poder da insercaocultural. Este e um ponto delicado, pois ao ser apresentadoabre-se a acusacao de que se esta apoiando a tese da implan-tacao cultural. O estudo da cultura popular fica se deslo-cando entre esses dois polos inaceitaveis: da "autonomia"pura ou do total encapsulamento.

De fato, nao acho correto, nem vejo necessidade de apoiarqualquer um destes. Ja que as pessoas comuns nao sao unstolos culturais, elas sao perfeitamente capazes de reconhecercomo as realidades da vida da classe trabalhadora sao reor-ganizadas, reconstruidas e remodeladas pela maneira comosao representadas (isto e, reapresentadas) em, digamos,Coronation Street? As industrias culturais tern de fato o poderdejretrabalhar e remodelar constantemente aquilo que repre-sentam;_e, pela repeticao e selecao, impor e implantar tais

254

cteHni£oes_de nos_ mesmos de forma a ajusta-las mais facil-mente as describes" da cultura dominante ou preferential. EisscTque'^aT'concentracao do poder cultural — os meios defazer cultura nas maos de poucos — realmente significa,Essas definicoes nao tern o poder de encampar nossas mentes;elas nao atuam sobre nos como se fossemos uma tela embranco. Contudo, elas invadem e retrabalham as contradicoesinternas dos sentimentos e percepcoes das classes domi-nadas; elas, sim, encontram ou abrem um espaco de reco-nhecimento naqueles que a elas respondem. A domina9aocultural tern efeitos concretes — mesmo que estes nao sejamtodo-poderosos ou todo-abrangentes. Afirmar que essasformas impostas nao nos influenciam equivale a dizer que acultura do povo pode existir como um enclave isolado, forado circuito de distribuicao do poder cultural e das relacoesde forca cultural. Nao acredito nisso. Creio que ha uma lutacontinua e necessariamente irregular e desigual, por parte dacultura dominante, no sentido de desorganizar e reorganizarconstantemente a cultura popular; para cerca-la e confinarsuas definicoes e formas dentro de uma gama mais abrangentede formas dominantes. y.l.pontos de resistencia e tambemmomentos de superacao. Esta e a dialetica_ ja. luta cultural.Pja atualidade, essa^luta~e'ToTUinu£re^ocorre nas linhas com-plexas da resistencia e da aceitacjxi^da recusa e da~ca-pltu-la^ao, que transformam o campo da cultura em uma especiede^ampo de batalha permanente, onde nao se obtem vitoriasdefinitivas, mas onde ha sempre posicoes estrategicas aserem conquistadas ou perdidas.

Esta primeira definicao, portanto, nao serve aos nossospropositos, mas pode nos fazer pensar mais profundamentesobre a complexidade das relacoes culturais, sobre a reali-dade do poder cultural e a natureza da implantacao cultural.Se-^s.Jormas de cultura j)pj5ja]ar_comercial disppnibilizadasnao_ sao puramente manipuladoras, e porque, junto com,.ofalsq apelo, a reducao de perspectiva, a trivializag,a.Q__e__p.curto-circuito, ha tambem elementos de reconhecimento_eidentificacao, algo que se assemelha a uma recriacao deexperiencias e atitudes reconheciveis, as quais as pessoastespondem. p perigo surge porque tendemos a pej^sjir,_as

formas culturais como algo inteiro_e co,erente:-ou-inteiramentecorrciffipTdas ou inteiramente autenticas, enquanto que elas

255

Page 131: Da Dispora - Stuart Hall

sao profundamente contradicddas, jogam-com asienT^pe*cia"l^tfando funcionam.no dorninio doA linguagern do jornal Daily Mirror nao e nem uma construcaopura do linguajar de Fleet Street, nem e a linguagem que osleitores trabalhadores realmente falam. E uma especie alta-mente complexa de ventriloquismo linguistico, em que abrutalidade degradante do jornalismo popular e habilmentecombinada e entretecida a alguns dos elementos da objetivi-dade e da peculiaridade vivida da linguagem da classe traba-Ihadora. Ele nao conseguiria sobreviver sem preservar umpouco de suas raizes vernaculas — no "popular". Ele naoiria longe se nao fosse capaz de remodelar os elementospopulares em uma especie de populismo demotico enlatadoe neutralizado.

A segunda definicao do "popular" e mais facil de se aceitar.E mais descritiva. A cultura popular e todas essas coisas que"o,ppvo" faz ouj£Z^Esl:a"inriLp^ definicao"antropologica" do termo: a cultura, os valores, os costumese mentalidades [folkways] do "povo". Aquilo que define seu"modo caracteristico de vida". Tenho duas dificuldades comesta definicao tambe'm.

Primeiro, desconfio que ela seja por demais descritiva. Issoe dizer pouco. Na verdade, ela e baseada em um inventarioque se expande infinitamente. Quase tudo que "o povo"- jafez pode ser incluido na lista. Criar pombos ou colecionarselos, patos voadores na parede e anoes no jardim. Oproblema e distinguir essa lista infinita, de uma forma quenao seja descritiva, daquilo que_ a cultura popular nao e.

Mas a segunda dificuldade e mais importante — e se rela-ciona a um argumento apresentado anteriormente. Naopodemos simplesmente juntar em uma unica categoria todasas coisas que "o povo" faz, sem observar que a verdadeiradistincao analitica nao surge da lista — uma categoria inertede coisas ou atividades — mas da oposicao chave: pertence/nao pertence ao povo. Em outras paiavras, o priactpio estru--turad0r_do™p,o.pjjlaj±^n^^e_s,ejitido sao as tensoes e opo-sigoes entre aquilo. .que pertence ao dorninio centrafdTeliteou^da-cultur-a-domina^jie, e j:-Qpo^lc^u^j:o^siajiterr^ite jestrutura_o.domimo,da_,culturana.xategoria dp "popular" e doJlnao:r3ppjjlar". Mas essas

256

oposicoes nao podem ser construidas de forma puramentedescritiva, pois, de tempos em tempos, os conteudos de cadacategoria mudam. O valor cultural das formas populares epromovido, sobe na escala cultural — e elas passam para olado oposto. Outras coisas deixam de ter um alto valor culturale sao apropriadas pelo popular, sendo transformadas nesseprocesso. O principle estruturador nao consiste dos conteudosde cada categoria — os quais, insisto, se alterarao de umaepoca a outra. Mas consiste das forcas e relacoes que sustentama distincao e a diferenca; ern linhas gerais, entre aquiloque, em qualquer epoca, conta como uma atividade ou formacultural da elite e o que nao conta. Essas categorias perma-neceni, embora os inventories variem. Alem do mais, enecessario todo um conjunto de instituicoes e processes insti-tucionais para sustenta-las — e para apontar continuamentea diferenca entre elas. A escola e o sistema educacional saoexemplos de instituigoes que distinguem a parte valorizadada cultura, a heranca cultural, a historia a ser transmitida, daparte "sem valor". O. aparato academico e literario e outroque distingue certos tipos valorizados de conhecimento deoutrosTp ~qu~e~im"pbrta entao nao e o mero inventario descri-tivo — que pode ter o efeito negative de congelar a culturapopular em um molde descritivo atemporal, mas as relacoesde poder que constantemente pontuam e dividem o dominioda cultura em suas categorias preferenciais e residuals.

Portanto, opto por uma terceira definicao para o termo"popular", embora esta seja um tanto incomoda. Essa defi-ni^aa^onsidera, em qualquer epoca, as formas e atividadeswjas raizes\se situam nas cbndicoes sociais e materials declaSses-es-pexificas; que estiveram incorporadas nas tradifoese praticas populares. Neste sentido, a definicao retem aquiloque a definicao descritiva tern de valor. Mas vai alem, insis-tindo que o essencial em uma 4gjjsl£ao de culturajjpjjularsao as jela.coes |ije_c^l^icam j_^ujtura_gopular" em umatensao^c.ontlnua (de relacionamento. innuencj^e_jtntago-njs mo) com a,cu Itura dominante. Trata-se de uma concep.ca,ode .cultura ..qiae se pplariza em torno dessa dial etica jp u Ituial-Considera o dorninio das formas'e atividades culturais comoum campo sempre variavel. Em seguida, atenta para asrelacoes que continuamente estruturam esse campo emformafoes dominantes e subordinadas. Observa o processo

257

Page 132: Da Dispora - Stuart Hall

pelo qual essas relates de dominio e subordinate) sao arti-culadas. Trata-as como um processo: o processo pelo qualalgumas coisas sao ativamente preferidas para que outraspossam ser destronadas. Em seu centra estao as relacoes deforca mutaveis e irregulares que defmem o campo da cultura— isto e, a questao da luta cultural e suas muitas formas.Seu principal foco de atencao e a relacao entre a cultura eas questoes de hegemonia.

Nossa preocupacao, nessa definicao, nao e com a questaoda "autenticidade" ou da integridade organica da culturapopular. Na verdade, a definicao reconhece que quase todasas formas culturais serao contraditorias neste sentido, com-postas de elementos antagonicos e instaveis. O significadode uma forma cultural e seu lugar ou posicao no campocultural nao esta inscrito no interior de sua forma. Nem sepode garantir para sempre sua posicao. O simbolo radical ouslogan deste ano sera neutralizado pela moda do ano quevem; no ano seguinte, ele sera objeto de uma profundanostalgia cultural. O rebelde cantor de musica folk amanhaestara na capa da revista do jornal dominical, The Observer.O significado de um simbolo cultural e atribuido em partepelo campo social ao qual esta incorporado, pelas praticasas quais se articula e e chamado a ressoar. O que importanao sao os objetos culturais intnnseca ou historicamentedeterminados, mas o estado do jogo das relacoes culturais:cruamente falando e de uma forma bem simplificada, o queconta e a luta de classes na cultura ou em torno dela.

Quase todo inventario fixo nos enganara. O romance euma "forma" burguesa? A resposta so pode ser historicamenteprovisoria: quando? Quais romances? Para quern? Sob quaiscondicoes?

Aquilo que o grande teorico marxista da linguagem, queutillzou o nome Volochinov, disse uma vez sobre o signo —o elemento chave de todas as praticas significativas — valetambem para as formas culturais:

Classe social e comunidade semiotica nao se confundem. Pelosegundo termo entendemos a comunidade que utiliza um unico'e mesmo codigo ideologico de comunicacao. Assim, classessociais diferentes servem-se de uma so e mesma lingua. Conse-quentemente, em todo signo ideologico confrontam-se indices

258

de valor contraditorios. O signo se torna a arena onde sedesenvolve a luta de classes... Na verdade, e este entrecruza-mento dos indices de valor que torna o signo vivo e move!,capaz de evoluir. O signo, se subtraido as tensoes da luta social,se posto a margem da luta de classes, ira infalivelmente debi-litar-se, degenerar-se-a em alegoria e tornar-se-a objeto de estudodos filologos ... A classe dominante tende a conferir ao signoideologico um carater eterno e acima das diferencas de classe,a fim de abafar ou de ocultar a luta dos indices sociais devalor que ai se trava, a fim de tornar o signo monovalente. Narealidade, todo signo ideologico vivo tem, como Jano, duasfaces. Toda critica viva pode tornar-se elogio, toda verdadeviva nao pode deixar de parecer para alguns a maior dasmentiras. Esta dialetica interna do signo nao se revela inteira-mente a nao ser nas epocas de crise social e de comocaorevolucionaria.3

Naturalmente, a luta cultural assume diversas formas: incor-poracao, distorcao, resistencia, negociacao, recuperacao.Raymond Williams prestou-nos um grande service ao delinearalguns desses processes, atraves de sua distincao entre osmomentos emergentes, residuals e incorporados. Precisamosexpandir e desenvolver esse esquema rudimentar. O impor-tante e observa-lo dinamicamente: como um processo histo-rico. As forcas emergentes ressurgem sob velhos disfarceshistoricos; as forcas emergentes, apontando para o future,perdem sua forca de antecipacao e se voltam somente para opassado; as rupturas culturais de hoje podem ser recuperadascomo suporte para o sistema de valores e os significadosdominantes de amanha. A luta continua: mas quase nuncaocorre no mesmo lugar ou em torno do mesmo significado ouvalor. Parece-me que o processo cultural — o poder cultural— em nossa sociedade depende, em primeira instancia, dessadelimitacao, sempre em cada epoca num local diferente, entreaquilo que deve ser incorporado a "grande tradicao" e o quenao deve. As instituigoes culturais e educaclonais, junto comas coisas positivas que fazem, tambem ajudam a disciplinar epoliciar essa fronteira.

Isso nos deve fazer pensar novamente sobre aquele termotrai^oeiro da cultura popular: "tradicao". A tradicao e umelemento vital da cultura, mas ela tern pouco a ver com amera persistencia das velhas formas. Esta muito mais relacio-nada as formas de associacao e articulacao dos elementos.

259

Page 133: Da Dispora - Stuart Hall

Esses arranjos em urna cultura nacional-popular nao possuemuma posicao fixa ou determinada, e certamente nenhum signi-ficado que possa ser arrastado, por assim dizer, no fluxo datradicao historica, de forma inalteravel. Os elementos da"tradicao" nao so podem ser reorganizados para se articular adiferentes praticas e posicoes e adquirir um novo significadoe relevancia. Com frequencia, tambern, a luta cultural surgemais intensamente naquele ponto onde tradigoes distintase antagonicas se encontram ou se cruzam. Elas procuramdestacar uma forma cultural de sua insercao em uma tradicao,conferindo-lhe uma nova ressonanda ou Valencia cultural.As tradicoes nao se fixam para sernpre: certamente nao emtermos de uma posicao universal em relacao a uma unicaclasse. As culturas, concebidas nao como "formas de vida",mas como "formas de luta" constantemente se entrecruzam:as lutas culturais relevances surgem nos pontos de inter-sec^ao. Pensernos nas formas pelas quais, no seculo dezoito,uma certa linguagem da legalidade, do constitucionalismo edos "direitos" se tornou um campo de guerra, no ponto deinterseccao entre duas tradicoes distintas: entre a "tradicao"do "terror e majestade" da pequena nobreza e as tradicoes dajustica popular. Gramsci, tentando apresentar uma respostaa seu proprio questionamento acerca de como uma nova"vontade coletiva" surge e uma cultura nacional-popular etransformada, observou que

o que importa e a critica a qual os primeiros representantesda nova fase historica submetem esse complexo ideologico.A critica possibility um processo de diferenciacao e mudancano peso relative que os elementos das velhas ideologiaspossuiam. O que antes era secundario e subordinado, ateacidental, e agora considerado primario — torna-se o nucleode um novo complexo ideologico e teorico. A antiga vontadecoletiva se dissolve em seus elementos contmditorios, ja queos subordinados se desenvolvem socialmente-

Esse e o terreno da cultura nacional-popular e da tradicao,concebido enquanto campo de batalha.

Isso nos alerta contra as abordagens auto-suficientes dacultura popular que, valorizando a "tradicao" pela tradicao, etratando-a de uma maneira nao historica, analisam as formasculturais populares como se estas contivessem, desde o

260

momento de sua origem, um significado ou valor fixo e inalte-ravel. A relacao entre a posicao historica e o valor estetico euma questao dificil e importante na cultura popular. Mas atentativa de elaborar uma estetica popular universal, fundadano momento de origem das formas e praticas culturais, e quasesempre profundamente equivocada. O que poderia ser maisecletico e aleatorio do que aquela juncao de simbolos mortose quinquilharias, roubados dos toucadores de ontem, comos quais, justo agora, muitos jovens escolherri se enfeitar?Esses simbolos e pedacinhos recolhidos la e ca sao profun-damente ambiguos. Milhares de causas culturais perdidaspoderiam ser invocadas atraves deles. De vez em quando, nomeio dessas bugigangas, encontramos um signo que, acimade qualquer outro, deveria ser para sempre fixado — solidifi-cado — em seu significado ou conotacao cultural: a swastika.No entanto, la esta ele pendendo, meio — mas nao inteira-mente — separado de sua profunda referenda cultural nahistoria do seculo vinte. Que sentido tern? O que esta signifi-cando? Seu significado e rico, ricamente ambiguo: certamenteinstavel. Esse signo horripilante pode delimitar uma gama designificados, mas nao carrega dentro de si a garantia de umsignificado unico. As ruas estao cheias de garotos que naosao "fascistas" so porque usam uma swastika na corrente.Por outro lado, pode ser que eles ate sejam... Em ultimainstancia, na politica da cultura jovem, o significado destesigno dependera muito menos do simbolisrno cultural intrin-seco da coisa em si do que do equilibrio de forcas entre,digamos, a Frente Nacional e a Liga Anti-Nazista ou entre oWhite Rock e o Two Tone Sound.

Nao ha garantia intrinseca ao signo ou a forma cultural.Tampouco ha garantia de que, so porque esteve ligado aalguma luta relevante, ele sera sempre a expressao viva deuma classe, de tal forma que, toda vez que Ihe dermos a chance,ele "falara a lingua do socialismo". Se as expressoes culturaissao associadas ao socialismo, e porque estas foram associadasa praticas, a formas e organizacoes de uma luta viva, queconseguiu apropriar aqueles simbolos e conferir-lhes umaconotacao socialista. As condicoes de uma classe nao seencontram permanentemente inscritas na cultura, antes queessa luta comece. A luta consiste do sucesso ou fracasso emdar ao "cultural" um indice de valor socialista.

261

Page 134: Da Dispora - Stuart Hall

O termo "popular" guarda relacoes muito complexas como termo "classe". Sabemos disso, mas sempre fazemos opossivel para nos esquecermos. Falamos de formas especf-ficas de cultura das classes trabalhadoras, mas utilizamos otermo mais inclusive, "cultura popular" para nos referirmosao campo geral de investigacao. E obvio que o que digo aquifaria pouco sentido sem uma referenda a uma perspectiva declasse ou a luta de classe. Mas tambem e obvio que nao existeuma relagao direta entre uma classe e uma forma ou praticacultural particular. Os termos "classe" e "popular" estao profun-damente relacionados entre si, mas nao sao absolutamenteintercambiaveis. A razao disso e evidence. JJjaojxisten^cul-.turas" inteiramente isolada;s e_paradigma.tj£amente fixadas,numa relacao d^de^rn^nisjnojiisiorico, a .classes "inteiras"— embora^existamJormagoes.culturais de. classe hem distintase.yariaveis. As culturas de classe tendem a se entrecruzar e ase sobrepor num mesmo campo de luta. O termo "popular"indica esse relacionamento urn tanto deslocado entre acultura e as classes. Mais precisamente, refere-se a aliancade classes e forcas que constituem as "classes populares". Acultura dos oprimidos, das classes excluidas: esta e a area aqual o termo "popular" nos remete. E o lado oposto a isto —o lado do poder cultural de decidir o que pertence e o quenao pertence — nao e, por definic.ao, outra classe "inteira",mas aquela outra alianca de classes, estratos e forcas sociaisque constituem o que nao e "o povo" ou as "classes populares":a cultura do bloco de poder.

O povo versus o bloco do poder: isto, em vez de "classecontra classe", e a linha central da contradic.ao que polarizao terreno da cultura. A cultura popular, especialmente, eorganizada em torno da contradicao: as forcas popularesversus o bloco do poder. Isto confere ao terreno da lutacultural sua propria especificidade. Mas o termo "popular"— e ate mesmo o sujeito coletivo ao qual ele deve se referir— "o povo" — e altamente problematico. O termo se tornaproblematico, digamos, pela capacidade da Sra. Thatcher depronunciar uma frase do tipo: "Temos que limitar o pqderdos sindicatos, porque e isso que o povo quer." Isso mesugere que, assim como nao ha um conteudo fixo para a cate-goria da "cultura popular", nao ha um sujeito determinado aoqual se pode atrela-la — "o povo". "O povo" nem sempre esta

262

la, onde sempre esteve, com sua cultura intocada, suas liber-dades e instintos intactos, ainda lutando contra o jugo nor-mando ou coisa assim; como se, caso pudessemos "descobri-lo"e traze-lo de volta a cena, ele pudesse estar de prontidao nolugar certo e ser computado. A capacidade de constituirclasses e individuos enquanto forca popular — esta e a natu-reza da luta politica e cultural: transformar as classes divididase os povos isolados — divididos e separados pela cultura eoutros fatores — emjama-forca^cultural popular-democratica.

E certo que outras forcas tambem tern interesse em definir"o povo" de outra forma: "o povo" que precisa ser mais disci-plinado, melhor governado, mais efetivamente policiado, cujaforma de vida precisa ser protegida das "culturas estran-geiras", e dai por diante. Existe um pouco dessas duas alter-nativas dentro de cada um de nos. As vezes, podemos serconstituidos como uma forc,a contra o bloco de poder: esta ea abertura historica pela qual se pode construir uma culturagenuinamente popular. Mas, em nossa sociedade, se naosomos constituidos assim, seremos constituidos como ooposto disto: uma forca populista eficaz, que diz "sim" parao poder, A cultura popular e um dos locals onde a luta afavor ou contra a cultura dos poderosos e engajada; e tambemo premio a ser conquistado ou perdido nessa luta. E a arenado consentimento e da resistencia. Nao e a esfera onde osocialismo ou uma cultura socialista — ja formada — podesimplesmente ser "expressa". Mas e um dos locals onde osocialismo pode ser constituido. E por isso que a culturapopular importa. No mais, para falar a verdade, eu nao ligo aminima para ela.

[In: SAMUEL, Raphael (Ed.). People's History and SocialistTheory. London: Routledge and Kegan Paul, 1981.Tradu^ao de Adelaine La Guardia Resende]

263

Page 135: Da Dispora - Stuart Hall

NOTAS

Movimento pela reforma social, politica e democratica, ocorrido na Ingla-terra entre 1838 e 1848, cujos principles foram estabelecidos na Carta Patentedo Povo e cujos participantes eram mojoritariamente trabalhadores. (N. da T.)

2 Coronation Street- telenovela de grande popularidade, exibida pela redeBBC ha anos na Inglaterra. (N. da T.)

3 VOLOCHINOV, A. Marxism and the Philosophy of Language [Marxismo efilosofta da linguagem]. New York: [s.n.], 1977.

BIBLIOGRAFIA

BAILEY, Peter. Leisure and Class in Victorian England -1830-1885.Londres: [s.n.], 1978.

HAIL, Stuart; WHANNEL, Paddy. The Popular Arts. Londres: Phanteon,1964.

JOHNSON, Richard, Three Problematics: Elements of a Theory ofWorking-class Culture. In: CLARKEJ.; CRITCHER, C.JOHNSON,R. (Org.). Working-Class Culture: Studies in History and Theory.Londres: [s.n.], 1979-

MALCOLMSON, R. W. Popular Recreation in English Society - 1700-1850. Cambridge: [s.n.], 1973.

NOWELL-SMITH, G. Gramsci and the National-popular. ScreenEducation, Spring, 1977-

STEDMAN JONES, G. Working-class Culture and Working-class Politicsin London - 1870-1890. Journal of Social History, Summer, 1974.

THOMPSON, E. P. Patrician Society, Plebeian Culture. Journal ofSocial History, Summer, 1974.

WILLIAMS, Raymond. Radical or Popular. In: CURRAN, James .(Org.).ThePress WeDeserve. Londres: [s,n.], 1970.

264

0 PROBLEM DA I D E O I O G I A0 M A R X I S M O SEM GARAN1IAS

Nas duas ultimas decadas, a teoria marxista tern passadopor um revival surpreendente, porem assimetrico e irregular.For um lado, tern constituido o polo principal da oposicao aopensamento social "burgues". Por outro lado, muitos jovensintelectuais atravessam o revivals, apos um curto e capitosoaprendizado, saem direto pelo outro lado. "Acertam suascontas" com o marxismo e seguem por outros campos epastagens intelectuais: mas nem tanto. O pos-marxismocontinua sendo uma das maiores e mais vigorosas escolasteoricas da atualidade. Os pos-marxistas utilizam os conceitosmarxistas e, ao mesmo tempo, demonstram a inadequacaodestes. Aparentemente, eles continuam sentados sobre osombros das proprias teorias que acabaram de destruir emdefinitive. Se o marxismo nao existisse, o "pos-marxismo" teriaque inventa-lo, somente para que os "desconstrucionistas",ao desconstrui-lo de novo, tivessem algo mais a fazer. Tudoisso tem garantido ao marxismo uma curiosa qualidade devida-apos-a-morte. Esta sempre sendo "transcendido" e "preser-vado". Nao ha local mais instrutivo para se observar esseprocesso do que o da propria ideologia.

Nao pretendo tracar novamente as reviravoltas dessasrecentes disputas, nem tentar rever a teorizacao intrincadaque as acompanhou. Em vez disso, pretendo situar os debatessobre a ideologia no contexto maior da teoria marxista comoum todo. Pretendo tambem postula-lo como um problema geral

Page 136: Da Dispora - Stuart Hall

. um problema teorico, por ser tambem um problema politicoe estrategico. Meu objetivo e identificar as fragilidades e limi-tacoes mais marcantes das formulacoes marxistas classicassobre a ideologia; e avaliar o que se ganhou, o que mereceser descartado e o que precisa ser retido — e talvez repensado— a luz dessas criticas.

Primeiramente, contudo, gostaria de indagar por que oproblema da ideologia ocupou um lugar tao proeminente nointerior do debate marxista nos ultimos anos. Perry Anderson(1976), em seu magistral giro pela cena intelectual marxistana Europa Ocidental, observou uma intensa preocupacao comos problemas relatives a filosofia, a epistemologia, a ideo-logia e as superestruturas. O autor considerou isso uma claradeformacao no desenvolvimento do pensamento marxista.Em sua opiniao, o privilegio dessas questoes no marxismorefletia o isolamento geral dos intelectuais marxistas daEuropa Ocidental dos imperatives da organizacao e lutapolitica em massa; seu divorcio das "tensoes reguladoras deum relacionamento direto e ativo com a audiencia proletaria";seu distanciamento da "pratica popular" e sua persistentesujeicao ao dommio do pensamento burgues. Segundo oautor, isso provocou um descompromisso geral com ostemas e problemas classicos propostos por Marx em sua fasemadura ou pelo proprio marxismo. A preocupagao excessivacom o ideologico poderia ser tomada como uma demons-tragao clara disso.

Ha muito que se dizer sobre esse argumento — comopoderao comprovar aqueles que sobreviveram a avalancheteoricista no "marxismo ocidental" dos ultimos anos. As enfasesno "marxismo ocidental" podem muito bem explicar como oproblema da ideologia foi construfdo, como o debate foiconduzido e o quanta ele foi abstraido para os altos dominiesda teoria especulativa. Mas creio que devemos rejeitar qualquerconclusao de que, nao fossem as distorcoes produzidas pelo"marxismo ocidental", a teoria marxista poderia ter prosse-guido confortavelmente em seu caminho predeterminado,seguindo a agenda estabelecida: deixando o problema daideologia em seu lugar subordinado ou de segunda ordem.A visibilidade adquirida pela ideologia tern uma razao mais.objetiva. Em primeiro lugar, os desenvolvimentos concretesdos meios pelos quais a consciencia de massa e moldada

266

e transformada — o crescimento macico das "industriasculturais". Em segundo lugar, as preocupantes questoes do"consentimento" das massas trabalhadoras ao sistema, nassociedades capitalistas avancadas da Europa e, portanto, suaestabilizacao parcial, contrariando todas as expectativas. O"consentimento" nao e mantido apenas atraves de meca-nismos ideologicos. Mas ambos nao podem ser separadosum do outro. Isso tambem reflete certas fragilidades reais dasformulacoes originais do marxismo sobre a ideologia, o quelanca uma luz sobre algumas das questoes mais criticas daestrategia politica e das politicas do movimento socialista nassociedades capitalistas avancadas.

Revendo brevemente algumas dessas questoes, querodestacar nao a teoria, mas o problema da ideologia. O pro-blema da ideologia e fornecer uma interpreta^ao, dentro deuma teoria materialista, de como as ideias sociais surgem.Precisamos compreender sua funcao em uma formacao socialparticular, para informar a luta pela mudan^a da sociedade eabrir caminho para sua transformacao socialista. Por ideo-logia eu compreendo os referenciais mentals — linguagens,conceitos, categorias, conjunto de imagens do pensamento esistemas de representacao — que as diferentes classes egrupos sociais empregam para dar sentido, definir, decifrar etornar inteligivel a forma como a sociedade funciona.

O problema da ideologia, portanto, concerne as formas pelasquais ideias diferentes tomam conta das mentes das massas e,por esse intermedio, se tornam uma "forca material". Nessaperspectiva mais politizada, a teoria da ideologia nos ajudaa analisar como um conjunto particular de ideias passa adominar o pensamento social de um bloco historico, nosentido de Gramsci; e, assim, nos ajuda a unir esse bloco apartir de dentro, manter seu dommio e lideranca sobre asociedade como um todo. Esta relacionada principalmentecom os conceitos e linguagens do pensamento pratico queestabilizam uma forma particular de poder e dominacao;ou que reconciliam e acomodam as massas em seu lugarsubordinado na formacao social. Esta relacionada aindaaos processes pelos quais as novas formas de consciencia e asnovas concepcoes de mundo emergem, capazes de conduziras massas em uma acao historica contra o sistema dominante.Todas essas questoes estao em jogo em uma gama de lutas

267

Page 137: Da Dispora - Stuart Hall

sociais. £ para explica-las, a fim de que possamos melhorcompreender e dominar o terrene da luta ideologica, quenecessitamos nao apenas de uma teoria, mas de uma teoriaadequada as complexidades daquilo que estarnos tentandoexplicar.

Uma teoria dessas nao existe pronta para o consumo naobra de Marx e Engels. Marx nao desenvolveu qualquer expli-cacao geral sobre o funcionamento das ide"ias sociais, queseja comparavel a sua obra historico-teorica sobre as formase relacoes economicas do modo capitalista de producao. Seuscomentarios nessa area nunca pretenderam alcancar o statusde "lei". O problema da ideologia para o marxismo podeter comecado quando, equivocadamente, esses comentariosforam considerados teorizacoes completas. Na verdade, asteorizacoes de Marx acerca desse assunto se fizeram muitomais em carater ad hoc. Consequentemente, ha graves oscilacoesno uso do termo em Marx. Em nossa epoca — como podeser comprovado pela definicao acima — o termo "ideologia"adquiriu um sentido mais amplo, descritivo e menos siste-matico do que nos textos marxistas classicos. Hoje e utilizadopara denominar todas as formas organizadas de pensamentosocial. Isso abre espaco para "distorcoes" de grau e natureza.Certamente, o termo se refere ao dominio do pensamentopratico e logico (a forma, afinal, pela qual a maioria dasideias pode se prender nas mentes das massas e leva-las aagir), e nao simplesmente a "sistemas de pensamento" bem-elaborados e internamente consistentes. Quero dizer com issotanto os conhecimentos praticos quanto os teoricos que nospossibilitam "fazer uma ideia" da sociedade, em cujas cate-gorias e discursos "vivenciamos" e "experimentamos" nossoposicionamento objetivo nas relacoes sociais.

Em muitas ocasioes, Marx utilizou o termo "ideologia"dessa forma. Portanto, seu uso com esse significado e defato sancionado por sua obra. Assim, por exemplo, ele men-ciona em uma passagem celebre as "formas ideologicas pelasquais os homens se tornam conscientes ... do conflito e oenfrentam" (Marx, 1970, p. 21). No Capital, em seus apartes,ele frequentemente aborda a questao da "consciencia coti-diana" do empresario ou do "senso comum" do capitalismo.'Isso significa as formas de pensamento espontaneo dentro

268

das quais o capitalista representa para si mesmo o funciona-mento do sistema capitalista e "vivencia" (isto e, experimentagenuinamente) suas relacoes praticas com o mesmo. De fato,ha alguns indicios ai sobre os usos subsequentes do termoque muitos acreditam nao serem autorizados pela obra deMarx. Por exemplo, as formas espontaneas de "conscienciapratica burguesa" sao reais, mas nao podem ser formasadequadas de pensamento, ja que ha aspectos do sistemacapitalista — a geracao de mais-valia, por exemplo — quesimplesmente nao podem ser "pensados" ou explicados pelouso dessas categorias vulgares. Tampouco podem ser consi-derados falsos em sentido algum, ja que esses individuos bur-gueses praticos parecem suficientemente capazes de obterlucros, trabalhar o sistema, sustentar suas relacoes, exploraro trabalho, sem o beneficio de uma compreensao mais sofis-ticada ou "verdadeira" daquilo em que estao envolvidos.Tomando outro exemplo, e razoavel deduzir, a partir daspalavras de Marx, que os mesmos conjuntos de relacoes —ou o circuito capitalista — podem ser representados deformas muito diferentes ou (como a escola moderna diria)representados dentro de distintos sistemas discursivos.

Nomeando apenas tres deles, ha o discurso do "sensocomum burgues"; as teorias sofisticadas dos economistaspoliticos classicos, como Ricardo, com quern Marx aprendeutanto; e, naturalmente, o proprio discurso teorico de Marx —o discurso do proprio Capital

Assim que nos afastamos de uma leitura religiosa oudoutrinaria de Marx, as aberturas entre os varies usos clas-sicos do termo e suas rnais recentes elaboracoes nao sao taofechados como nos fazem crer as atuais polemicas teoricistas.

Contudo, Marx definitivamente empregou com freqiienciao termo "ideologia" para se referir especificamente as mani-festacoes do pensamento burgues e, sobretudo, as caracte-risticas negativas e distorcidas deste. Tendeu a utiliza-loainda — por exemplo em A ideologia alema, a obra conjuntade Marx e Engels — na contestacao de ideias consideradaspor ele erroneas: sempre sistematicas e bem-informadas (o quehoje chamariamos de "ideologias teoricas" ou, como Gramsci,de "filosofias"; em oposicao as categorias da conscienciapratica, ou o que Gramsci denominou "senso comum")-

269

Page 138: Da Dispora - Stuart Hall

Marx empregou o termo como instrumento teorico contraos misterios especulativos do hegelianismo; contra a religiaoe a critica da religiao; contra a filosofia idealista e a economiapolitica do tipo vulgar e degenerado. Em A ideologia alemae A pobreza da filosofia, Marx e Engels combateram ideiasburguesas. Contestaram a filosofia antimaterialista que funda-mentava a predominancia dessas ideias. Simplificaram muitasde suas formulacoes a fim de expressar seu ponto polemico.Os problemas que isso gerou se devem, em parte, ao trata-mento dessas inversoes polemicas como base para a tarefa deproduzir uma teorizacao geral positiva.

Dentro desse contexto amplo de utilizacao do termo, Marxpropds certas teses mais elaboradas, que constituiriam a baseda teoria em sua "forma classica". Primeiro, a premissa mate-rialista: as ideias surgem das condicoes materiais e refletemas circunstancias nas quais foram geradas. Elas expressam asrelacoes sociais e suas contradicoes no pensamento. A nocaode que as ideias constituent o motor da historia ou avancamindependentemente das relacoes materiais, gerando seusproprios efeitos, e, especificamente, o que se declara espe-culativo e ilusorio na ideologia burguesa. Em segundo lugar,a tese do determinismo: as ideias sao apenas efeitos depen-dentes de um nivel determinante maior na formagao social —o economico, em ultima instancia. Portanto, as transfor-macoes no nivel economico se expressam, mais cedo ou maistarde, como modificacoes no nivel das ideias. Em terceirolugar, as correspondencias fixas entre dominancia na esferasocioeconomica e no ideologico; as ideias "dominances" saoaquelas da "classe dominante" — a posicao de classe fornecea ligacao e garante a correspondencia com as ideias.

A critica da teoria classica tern sido dirigida precisamentea essas proposicoes. Dizer que as ideias sao "meros reflexes"estabelece seu materialismo, porem as deixa sem efeito espe-cifico; um dominio de pura dependencia. Afirmar que as ideiassao determinadas "em ultima instancia" pelo economico etomar o caminho do reducionismo economico. Em ultimaanalise, as ideias podem ser reduzidas a essencia de suaverdade — seu conteudo economico. O unico ponto deparada antes desse reducionismo final aparece na tentativade posterga-lo um pouco e preservar algum espaco de ma-nobra, aumentando o numero de "mediacoes". Dizer que o

270

dominio de uma classe garante o predominio de certas ideiase dar aquela classe a posse absoluta das ideias; e tambemdefinir as formas particulares de consciencia como algo espe-cifico a uma classe.

Deve-se observar que, embora estejam diretamente diri-gidas contra as formulacoes que concernem ao problema daideologia, essas criticas de fato recapitulam a substancia deuma critica mais geral e ampla contra o proprio marxismo:seu rigido determinismo estrutural, seu duplo reducionismo— economico e de classe, bem como sua forma de concebera propria formacao social. O modelo de ideologia de Marxtern sido criticado por nao conceber a formacao social comoalgo complexo, composto de varias praticas, mas como algosimples ou (como Althusser denominou em A favor de Marxe em Lendo O capital) uma estrutura "expressiva". Althusserquis dizer com isso que uma pratica — "o economico" —determina de forma direta todas as outras e cada efeito esimples e simultaneamente reproduzido em todos os demaisniveis (ou seja, e "expresso").

Todos os que conhecem a literatura e os debates facilmenteidentificarao as linhas principais das revisoes mais especi-ficas langadas, de diferentes lados, contra essas posicoes.Elas comecam negando que nos comentarios de Engels sobre"o que Marx pensava" (especificamente nas ultimas cartas)haja correspondencias tao simples ou que as "superestru-turas" sejam totalmente incapazes de produzir efeitos especT-ficos. Esses comentarios de Engels sao extremamente frutiferos,sugestivos e gerativos. Fornecem nao uma solucao para o pro-blema da ideologia, mas o ponto de partida para toda reflexaoseria sobre o problema. Segundo Engels, essas simplificacoesse desenvolveram porque Marx contestava o idealismo espe-culativo de sua epoca. Eram distorcoes unilaterais, exagerostipicos da polemica. As criticas conduziram, atraves dosesforcos ricamente ornamentados de teoricos marxistas comoLukacs, a aderencia polemica a severa ortodoxia de um tipoparticular de leitura "hegeliana" de Marx, enquanto na praticase introduziu uma gama de "fatores mediadores e intermedi-aries" que atenuaram e deslocaram o impulse reducionista eeconomicista implicito em algumas das formulacoes originalsde Marx. Entre os criticos esta Gramsci — de outra perspec-tiva —, cuja contribuicao sera discutida mais adiante. Elas

271

Page 139: Da Dispora - Stuart Hall

culminam nas intervencoes teoricas altamente sofisticadas deAlthusser e dos althusserianos: sua contestacao do reducio-nismo economico e de classe e da abordagem da "totalidadeexpressiva".

As revisoes de Althusser (em A favor de Marx e, especial-mente, no capitulo intitulado "Aparelhos ideologicos deEstado" de Lenin, filosofia e outros ensaios) produziram umaguinada decisiva na abordagem das "ideias distorcidas" e da"falsa consciencia" na ideologia. Abriram a porta para umaconcepcao mais lingiiistica ou "discursiva" desta ideologia.Colocou na agenda toda a questao negligenciada de como aideologia e internalizada, como passamos a falar de maneira"espontanea", dentro dos limites das categorias de pensa-mento que existem fora de n6s e que podem ser entendidasmais precisamente como aquelas que "nos pensam". (Estee o problema da interpelacao dos sujeitos no centro dodiscurso ideologico. Subsequentemente isso trouxe para omarxismo as interpretacoes psicanaliticas de como os indi-vfduos ingressam nas categorias ideologicas de linguagem).Ao insistir (por exemplo, em "Aparelhos ideologicos deEstado") na fungao da ideologia na reproducao das relacoessociais de producao (em seus Ensaios de auto-critica) esobre a utilidade da rnetafora base-superestrutura, Althussertentava um reagrupamento de ultima hora no terreno mar-xista classico.

Contudo, sua primeira revisao foi "funcionalista" demais.Se a funcao da ideologia 6 "reproduzir" as relacoes sociaiscapitalistas de acordo com as "demandas" do sistema, comoexplicar as ideias subversivas e a luta ideologica? Ja a segundae por demais "ortodoxa". Foi Althusser quem deslocou radi-calmente a rnetafora "base/superestrutura"! Na verdade, asportas abertas por ele constituiram os pontos de saida pelosquais muitos abandonaram definitivamente a problematica daideologia na teoria marxista classica. Renunciaram nao apenasa forma particular de Marx, em A ideologia alema, de empa-relhar "ciasse dominante com ideias dominantes", mas tambemas proprias preocupacoes com a estruturacao classista das ideo-logias e seu papel na geracao e manutencao da hegemonia.

Em vez disso, as teorias psicanaliticas e as teorias dodiscurso, inicialmente concebidas como suportes teoricos

ao trabalho critico de revisao e desenvolvimento da teoria,forneceram as categorias que substituiriam aquelas do pri-meiro paradigma. Assim, os vazios e as lacunas reals doimpulse "objetivo" da teoria marxista, em torno das modali-dades de consciencia e da "subjetivacao" das ideologias, queo uso de Althusser dos termos "interpelacao" (emprestado deFreud) e "posicionamento" (emprestado de Lacan) pretendiaabordar, tornaram-se em si mesmos o objeto exclusive doexercicio. O unico problema da ideologia passou a ser comoos sujeitos ideologicos eram formados atraves de processespsicanaliticos. As tensoes teoricas foram entao liberadas.Este e o longo declive do trabalho "revisionista" sobre aideologia, que em ultima instancia conduz (em Foucault) aabolicao total da categoria "ideologia". Contudo, seus teoricosaltamente sofisticados, por razoes bem obscuras, continuama insistir na ideia de que suas teorias sao "realmente" mate-rialistas, politicas, historicas e assim por diante, como se esti-vessem assombrados pelos ruidos ainda produzidos pelofantasma de Marx na maquina teorica.

Recapitulei esta historia de forma extremamente breve,pois nao pretendo entrar nos detalhes de suas conjecturas erefutacoes. Em vez disso, quero pegar o fio da meada, reco-nhecendo sua forca e poder de conviccao ao pelo menosmodificar substancialmente as proposicoes classicas sobrea ideologia, e, a luz das mesmas, reexaminar algumas dasprimeiras formulacoes de Marx, bem como considerar seestas podem ser remodeladas e desenvolvidas sob a luz dascriticas apresentadas — como a maioria das boas teoriasdevem ser capazes de fazer — sem perder certas qualidadese discernimentos (ou o que se costumava chamar de "mioloracional") que estas possuiam inicialmente. Em termosgerais, isso se da porque — conforme espero demonstrar —reconheco a imensa forga de muitas das criticas. Porem, naoestou convencido de que elas abolem inteiramente cadadiscernimento util, cada ponto de partida essencial, em urnateoria materialista da ideologia. Se, de acordo com o canoneda moda, tudo que resta, a luz das criticas devastadoramenteavancadas, inteligentes e convincentes, e o trabalho daperpetua "desconstrucao", este ensaio e dedicado aquelatarefazinha modesta de "reconstrucao" — esperando nao serdesfigurado demais pela ortodoxia ritual.

272 273

Page 140: Da Dispora - Stuart Hall

Tomemos, por exemplo, o terreno extremamente movedi^odas "distorcoes" da ideologia e a questao da "falsa consciencia".Hoje nao e tao dificil perceber por que essas formulacoeslancaram a critica contra Marx. As "distorcoes" abrem imedia-tamente a questao da razao de algumas pessoas — aquelasque vivenciam suas relacoes com suas conduces de existenciaatraves das categorias de uma ideologia distorcida — naoserem capazes de reconhecer essa distorcao, enquanto nos,corn nossa sabedoria superior ou armados de conceitosadequadamente formados, o somos. Serao as "distorcoes"meras falsidades? Sao falsificacoes deliberadamente patro-cinadas? Se forem, por quern entao? A ideologia realmentefunciona como uma propaganda consciente de classe? E sea ideologia for o produto da funcao da "estrutura", e nao deum grupo de conspiradores, de que forma uma estruturaeconomica gera um conjunto garantido de efeitos ideo!6gicos?Da maneira como se encontram, os termos nao sao esclarece-dores. Eles fazem com que as massas e os capitalistas parecamter um juizo fraco. Tambem implicam uma visao peculiar decomo as formas alternativas de consciencia sao geradas. Podese supor que estas surgem quando as escamas caem dos olhosdo povo ou quando este acorda, como se desperto de umsonho e, de repente, deparando-se com a luz, ve, atraves datransparencia das coisas, sua verdade essencial, seus pro-cessos estruturais ocultos. Este e um relato do desenvolvimentoda consciencia de classe dos trabalhadores baseado no modelosurpreendente de Sao Paulo na estrada de Damasco.

Facamos um pequeno trabalho de escavacao propria. Marxnao supos — so porque Hegel era o supra-sumo do pensa-mento especulativo burgues e porque os "hegelianos" vulga-rizavam e sublimavam seu pensamento — que Hegel deixariade ser um pensador consideravel, alguem com quem muitose aprenderia. Muito mais entao no caso da economia poli-tica classica, de Smith a Ricardo, em que as distincoes entreos diferentes niveis de uma formacao ideologica sao impor-tantes. Existe a economia politlca classica que Marx denomina"cientifica"; seus popularizadores se engajavam na "meraapologetica"; ha tambem a "consciencia cotidiana", na qualos empreendedores calculam suas chances de acordo com asideias avancadas de Ricardo ou Adam Smith sobre o assunto,mas inteiramente inconscientes destas (ate o aparecimento

274

do thatcherismo). Bern mais instrutiva e a insistencia de Marxde que (a) a economia politica classica era um corpo de tra-balho cientifico substancial e poderoso que, (b) entretanto,continha um limite ideologico essencial, uma distorcao. Essadistorc.ao, segundo Marx, nao se devia a erros tecnicos oulacunas de argumentacao, mas a uma interdicao mais ampla.Especificamente, as caracteristicas distorcidas ou ideologicasadvinham do fato de que elas pressupunham as categorias daeconomia politica burguesa como fundacoes de todo calculoeconomico, recusando-se a ver a determinacao historica de suasorigens e premissas; e, na outra ponta, advinham do pressu-posto de que, com a produgao capitalista, o desenvolvimentoeconomico havia chegado nao apenas ao seu mais alto pontonaquele momento (Marx concordava com isso), mas tambema seu apogeu e conclusao final. Nao poderia haver qualqueroutra forma de relacao economica depois dele. Suas formas erelacoes continuariam para sempre. As distorcoes no interiorda ideologia teorica burguesa em sua versao mais "cientifica"eram, contudo, reals e substanciais. Elas nao destruiammuitos aspectos de sua validade — portanto, esta nao era"falsa" apenas por estar confinada aos limites e horizontesdo pensamento burgues. Por outro lado, as distorc,6es limi-tavam sua validade cientifica; sua capacidade de ir alem decertos pontos, sua habilidade de resolver suas proprias contra-dicoes internas, seu poder de pensar fora dos limites dasrelacoes socials refletidas nela.

Essa relacao de Marx com os econornistas politicos classicosrepresenta uma forma bem mais complexa de postular a relacaoentre "verdade" e "falsidade" dentro do chamado pensamentocientifico do que podem supor os criticos de Marx. Na ver-dade, os criticos, em sua busca por um maior vigor teorico,uma divisao absoluta entre "ciencia" e "ideologia" e uma rup-tura epistemologica clara entre ideias "burguesas" e "nao-bur-guesas", contribulram em muito para simplificar as relacoesque Marx nao tanto afirmou quanto estabeleceu na pratica(isto e, em termos de como ele realmente utilizou a economiapolitica classica como suporte e como adversario). Podemosrenomear as "distorcoes" das quais Marx acusou a economiapolitica, para nos lembrarmos mais tarde de sua aplica^aogeral. Marx denominou-as eternaliza$5es de relacoes que, na

275

Page 141: Da Dispora - Stuart Hall

verdade, s^o historicamente especfficas; e efeito de natura-liza$ao — tratar o que e produto de um desenvolvimentohistorico especifico como algo universalmente v&lido e naoresultante de processes historicos mas, por assim dizer, dapropria Natureza.

Podemos considerar um dos pontos mais controvertidos —a "falsidade" ou as distorcoes da ideologia — a partir de outroangulo. Sabe-se que Marx atribuia as origens das categoriasespontaneas do pensamento burgues comum as "formassuperficiais" do circuito capitalista. Ele identificou especifica-mente a importancia do mercado e das trocas de mercado, ondeas coisas sao negociadas e os lucros obtidos. Essa abordagem,como Marx afirmou, deixava de lado o dominio critico — o"esconderijo" — da propria producao capitalista. Algumas desuas formulacoes mais importantes decorrem desse argumento.

Em suma, o argumento e o seguinte. As trocas de mercadosao o que parece governar e regular os processes econo-micos no capitalismo. As relacoes de mercado sao sustentadaspor uma variedade de elementos e estes aparecem (estaorepresentados) em cada discurso que tenta explicar o circuitocapitalista sob essa perspectiva. O mercado aproxima, sob asmesmas condicoes de troca, consumidores e produtores quenao se conhecem — e nem precisam se conhecer, gracas a"mao oculta" do mercado. Semeihantemente, o mercado detrabalbo aproxima aqueles que tern algo a vender (forca detrabalho) e aqueles que tern como pagar (salaries): um "precojusto" e acordado. Uma vez que o mercado funciona comose "por um passe de magica", harmonizando as necessidadese sua satisfacao "cegamente", nao ha nele coercao. Podemos"escolher" comprar e vender ou nao (e, supostamente, assumiras consequencias; embora esta parte nao esteja tao bemrepresentada nos discursos do mercado, que elaborammais sobre o lado positivo das consequencias do merca-do-escolha do que sobre o lado negativo destas). Nem ovendedor nem o comprador precisa ser impelido pela boavontade ou pelo amor ao proximo ou pela solidariedade paraalcancar o sucesso no jogo do mercado. Na verdade, o mer-cado funciona melhor se cada parte da transacao consultarexclusivamente seu pr6prio interesse. O sistema e impulsio-nado pelos imperatives concretes e praticos do auto-inte-resse. Entretanto, uma certa satisfacao e alcancada no todo.

276

O capitalista contrata o service e obtem seu lucro; o proprie-tario de bens im6veis cede sua propriedade e ganha oaluguel; a trabalhadora recebe seu salario e entao podecomprar os bens de que necessita.

Ora, as trocas de mercado tambem "aparecem" num sentidobem diferente. Sao a parte do circuito capitalista que todospodem ferclaramente, o "pedaco" por que passamos diaria-mente. Sem vender e comprar, numa economia monetaria,todos nos estarfamos condenados fisica e socialmente. Se naoestivessemos profundamente envolvidos em outros aspectosdo processo capitalista nao saberiamos quase nada sobre asoutras partes do circuito necessarias a valorizacao do capi-tal, a reproducao e expansao de todo o processo. Mesmo as-sim, se as mercadorias nao forem produzidas, nada haverapara vender; e — Marx afirmou, de qualquer forma — emprimeiro lugar, e na propria producao que o trabalho e ex-plorado. Enquanto o tipo de "exploracao" que a ideologia demercado consegue ver e compreender e a especulagao — ti-rando uma margem de lucro excessiva do preco de mercado.Portanto, o mercado e a parte do sistema que encontramos eexperimentamos universalmente. E a parte obvia e visivel: aparte que constantemente aparece,

Ora, se extrapolarmos este conjunto gerativo de categorias,baseado nas trocas de mercado, e possivel estende-lo aoutras esferas da vida social e ve-las tambem constituidasem moldes semelhantes. E e isto justamente o que Marx, emuma passagem famosa, sugere que aconteca:

A esfera que estamos abandonando, no interior de cujas fron-teiras o poder de compra e venda da for<;a de trabalho acon-tece, e na verdade o proprio Eden dos direitos inalienaveis dohomem. La somenie governam a Liberdade, a Igualdade, aPropriedade e Bentham. Liberdade, pois tanto o vendedorquanto o comprador de um bem, digamos de uma for^a detrabalho, sao constrangidos apenas por seu proprio livrearbitrio. Eles firmam contrato um com o outro como agenteslivres, e seu acordo e a forma pela qual ambos dao expressaoverbal a sua vontade comum. Igualdade, porque cada ummantem relagao com o outro como um simples proprietariode mercadorias, e trocam equivalencias. Propriedade, porquecada qual dispde apenas daquilo que Ihe pertence. E Bentham,

277

Page 142: Da Dispora - Stuart Hall

porque cada um cuida de si. A unica forca que os une e oscoloca em relafSo um com o outro e o egoismo, o lucro e osinteresses particulares de cada um. (Marx, 1967, p. 176)

Em suma, nossas ideias de "Liberdade", "Igualdade","Propriedade" e "Bentham" (isto e, de individualismo) — osprinciples ideologicos do lexico burgues e os temas-chavepoliticos que, em nossa epoca, tern retornado com toda forcaao cenario ideologico sob os auspicios da Sra. Thatcher e doneoliberalismo — podem se originar das categorias que uu'li-zamos em nosso pensamento pratico comum sobre a econo-mia de mercado. E assim que surge, da experiencia diaria emundana, as poderosas categorias do pensamento burgues,seja filosofico, social, politico ou legal.

Este e um locus classicus critico do debate; dele Marxinferiu varias das teses que viriam a compor o territoriocontestado da teoria da ideologia. Primeiro, ele estabeleceu,como fonte de "ideias", um ponto ou momento particular docircuito economico do capital. Segundo, ele demonstrou comoa traducao das categorias economicas para as ideologicas podeser efetuada; do "mercado de trocas de equivalentes" asnocoes burguesas de "Liberdade" e "Igualdade"; do fato deque cada um deve possuir os meios de troca ate as categoriaslegais dos direitos a propriedade. Terceiro, ele define de umaforma mais precisa o que significa "distorclo". Pois essa"decolagem" do ponto de troca do recircuito do capital e umprocesso ideologico. Este "obscurece, esconde, oculta" — ostermos estao todos no texto — outro conjunto de relacoes:as relacoes que nao aparecem na superficie, mas que estaoocultas no "esconderijo" da produ^ao (onde a propriedade,a posse, a exploracao do trabalho assalariado e as expro-priacoes da mais-valia ocorrem). As categorias ideologicas"escondem" essa realidade subjacente e as substituem pelas"verdades" das relacoes de mercado. De varias maneiras,portanto, o texto contem todos os pecados capitais da clas-sica teoria marxista da ideologia reunidos em um so: o redu-cionismo economico, uma correspondencia simples demaisentre o economico e o politico ideologico; as distincoesentre verdadeiro e falso, real e distorcao, "verdadeira" cons-ciencia e falsa consciencia.

278

Entretanto, parece-me possivel tambem "reler" a passagemdo ponto de vista das varias criticas conternporaneas, de talforma a (a) preservar muitos dos profundos insights do ori-ginal e, ao mesmo tempo, (b) expandi-lo, utilizando algumasdas teorias da ideologia desenvolvidas mais recentemente.

A producao capitalista e definida nos termos de Marx comoum circuito. Esse circuito explica nao apenas a producao eo consume, mas tambem a reproducao — ou seja, como ascondigoes que mantem o circuito em movimento sao susten-tadas. Cada momento e vital para a geracao e a realizacao dovalor. Cada momento estabelece determinadas condicoes parao outro — isto e, cada um e dependente do outro ou o deter-mina. Assim, se alguma parte do que foi realizado atraves davenda nao for paga enquanto salario pelo trabalho, este naopode se reproduzir, fisica ou socialmente, para trabalhare comprar de novo, outro dia. Essa "producao" dependetambem do "consume", muito embora em sua analise Marxtenha insistido no valor analitico anterior a ser concedidoas relacoes de producao. (For si so isso trouxe graves conse-quencias, ja que levou os marxistas a priorizar a "producao" ea debater como se os mementos de "consume e troca" naotivessem qualquer valor ou importancia para a teoria — umaleitura produtivista unilateral e fatal.)

Ora, esse circuito pode ser interpretado, ideologicamente,de varias maneiras. Os teoricos modernos da ideologia insis-tem nisso, contrapondo a concepcao vulgar de ideologiafundada em uma relacao fixa e inalteravel entre o economicoe como este e "expresso" ou representado nas ideias. Oscriticos modernos tendem a romper com a simples nocaode determinacao economica sobre a ideologia atraves doemprestimo que fazem aos trabalhos recentes que tratam danatureza da linguagem e do discurso. A linguagem e o meiopor excelencia atraves do qual as coisas sao "representadas"no pensamento, sendo, portanto, o meio no qual a ideologiae gerada e transformada. Porem, na linguagem, a mesmarelacao social pode ser distintamente representada e infe-rida. E isso ocorre, diriam eles, porque a linguagem, pornatureza, nao e fixada a seus referentes em uma relacao deum por um, mas e "multireferencial": pode construir dife-rentes significados em torno do que aparenta ser a mesmarelacao social ou fenomeno.

279

Page 143: Da Dispora - Stuart Hall

Pode ou nao acontecer que, na passagem ora em discussao,Marx esteja explorando o relacionamento fixo, determinadoe inalteravel entre as trocas de mercado e as formas de apro-priaeao destas no pensamento. Mas, pelo que afirmei, pode-severificar que nao creio que este seja o caso. A meu ver, o"mercado" significa uma coisa na economia politica burguesacomum e na consciencia espontanea dos homens praticosburgueses, e outra na analise economics marxista. Portanto,meu argumento seria de que, implicitamente, Marx estariadizendo que, num mundo onde os mercados existem e astrocas de mercado dominam a vida economica, seria estranhose nao houvesse sequer uma categoria que nos permitissepensar, falar e agir em relacao a ela. Neste sentido, todasas categorias — burguesas ou marxistas — expressam asrelac.6es socials em geral. Mas creio que tambem se concluido argumento que as relacoes de mercado nern sempre saorepresentadas pelas mesmas categorias de pensamento.

Nao existe uma relacao fixa e inalteravel entre aquilo queo mercado e e como ele e construido dentro de um referencialexplanatorio ou ideologico. Poderiamos ate mesmo afirmarque um dos propositos do Capital e justamente deslocar odiscurso da economia politica burguesa — o discurso quemais obvia e frequentemente entende o mercado — e subs-titui-lo por outro, em que o mercado se encaixa ao esquemamarxista. Portanto, se esse argumento nao se aplica dema-siado literalmente, os dois tipos de abordagem para a com-preensao da ideologia nao sao inteiramente contraditorios.

O que dizer, entao, das "distorcoes" da economia politicaburguesa enquanto ideologia? Uma das formas seria pensarque, ja que Marx a ve como "distorcida", ela deve ser falsa.Aqueles que vivem sua relagao com a vida economica exclusi-vamente em termos das categorias de pensamento e expe-riencia incorrem, por definicao, na "falsa consciencia". Nova-mente, devemos ser cautelosos em aceitar argumentos faceis.Por exemplo, Marx opera uma distincao importante entre asversoes "vulgares" da economia politica e as versoes maisavancadas, como a de Ricardo, que, como ele afirma, "temvalor cientifico". Porem, o que ele quer dizer com "false" e"distorcido" neste contexto?

280

Nao se trata de afirmar que o "mercado" nao existe. Naverdade, ele e demasiadamente real. De uma certa perspec-tiva, constitui o proprio sangue do capitalismo. Sem ele, ocapitalismo jamais teria rompido com as estruturas do feuda-lismo; e sem o seu prosseguimento incessante, os circuitosdo capital seriam interrompidos brusca e desastrosamente.Creio que esses termos podem ser compreendidos somenteatraves da explicacao de um circuito economico, que consistede varios momentos interconectados, do ponto de vista deapenas um desses momentos. Se, nessa explicagao, privile-giarmos somente um momento, e nao explicarmos o todo ouo conjunto diferenciado do qual ele faz parte, ou se utili-zarmos categorias de pensamento apropriadas unicamentepara aquele momento e, assim, explicarmos o processo inteiro,entao corremos o risco de fornecer aquilo que Marx teriachamado (seguindo Hegel) de um relate "unilateral".

Explicates unilaterais sao sempre distorc.oes. Nao quesejam mentiras sobre o sistema, mas no sentido de queuma "meia verdade" nao pode ser a verdade inteira de coisaalguma. Com tais ideias, so se representa a parte pelo todo.Dessa forma, sempre se produzira uma explicagao apenasparcialmente adequada — e, nesse sentido, falsa. Igual-mente, se utilizamos apenas "categorias e conceitos de mer-cado" para compreender o circuito capitalista como umtodo, varios outros aspectos nao serao contemplados. Nestesentido, as categorias das trocas de mercado obscurecemnossa compreensao do processo capitalista: ou seja, naonos permitem ver ou forrnular outros aspectos invisiveis.

Estaria vivendo em "falsa consciencia" o trabalhador ou atrabalhadora cuja relacao com os circuitos de produc.ao capi-talista se expressa exclusivamente atraves de categorias como"prego justo" e "salario justo"? Sim, se com isso compreen-demos que ha algo em sua situacao que ela nao e capaz decompreender atraves das categorias que utiliza; algo sobreo processo como um todo que se encontra sistematicamenteoculto, porque os conceitos disponiveis permitem a com-preensao de apenas um dos varios momentos. Nao, se comisso compreendemos que ela esta completamente iludidasobre o que ocorre no capitalismo.

281

Page 144: Da Dispora - Stuart Hall

A falsidade surge, portanto, nao do fato de que o mercado£ uma ilusao, um engodo, um truque, mas somente no sen-tido de que ele constitui uma explicacao insuftciente de umprocesso. Esta substitui parte do processo pelo todo — umprocedimento que, na linguistica, e conhecido como "meto-m'mia" e, na antropologia, na psicanalise e (num sentidoespecial) na obra de Marx, denomina-se fetichismo. Osoutros momentos "perdidos" do circuito sao, contudo,inconscientes, nao no sentido freudiano, de terem sido repri-midos da consciencia, mas no sentido de que sao invisiveis,dados os conceitos e categorias que estamos utilizando.

Isso facilita a explicacao da terminologia extremamentecomplexa do Capital sobre o que "aparece na superficie" (algoa que se refere ali como "meramente fenomenal"; isto e, naomuito importante, nao aquilo que realmente importa) e o que"jaz oculto" e esta incrustado na estrutura, nao na superficie.Contudo, e crucial perceber que — como esclarece o exemplodas trocas de mercado/produe.ao — a "superficie" e o "feno-menal" nao significam falso ou ilusorio, no sentido comumdessas palavras. O mercado nao 6 nem mais nem menos "real"do que os outros aspectos — a producao por exemplo. Nostermos de Marx, a producao esta apenas onde se deve iniciara analise do circuito: "a acao pela qual todo o processopercorre de novo seu circuito" (Marx, 1971). Mas a producaonao € independente do circuito, ja que os lucros obtidos e otrabalho contratado no mercado devem fluir de volta paraa producao. Portanto, o "real" expressa apenas uma certaprimazia teorica que a analise marxista confere a producao.Em qualquer outro sentido, as trocas de mercado constituemtanto um processo material real e uma exigencia absoluta-mente "real" do sistema quanto qualquer outra parte: saotodos "momentos de um so processo" (Marx, 1971).

Ha ainda o problema dos termos "aparencia" e "super-ficie". As aparencias podem conotar algo que e "falso": asformas superficiais parecem nao ter a profundidade das"estruturas profundas". Essas conota^oes linguisticas terno efeito infeliz de nos fazer classificar os diferentes momentosem func.ao de serem eles mais ou menos reais ou impor-tantes. De outra perspectiva, o que est£ na superficie, o queaparece constantemente, e aquilo que sempre vemos, o queencontramos diariamente, o que tomamos por certo, como

282

a forma manifesta e obvia do processo. Portanto, nao esurpreendente que passemos espontaneamente a pensarno sistema capitalista em termos dos elementos dele queconstantemente nos engajam e que, de forma t&o manifesta,anunciam sua presenca. Que importancia tern o conceitode "mao-de-obra excedente" diante do salario no bolso, aseconomias no banco, as moedinhas na fenda da maquina ouo dinheiro na gaveta do caixa? Mesmo o economista do seculodezenove, Nassau Senior, jamais conseguiu apontar quandoo trabalhador teria trabalhado para o excedente e nao pararepor sua propria subsistencia.

Em um mundo saturado pela troca monetaria e completa-mente mediado pelo dinheiro, a experiencia do "mercado" ea experiencia mais imediata, diaria e universal do sistemaeconomico para todos. Nao e de surpreender, portanto, queo mercado seja algo gratuito para nos, que nao questio-nemos aquilo que o viabiliza, funda ou pressupoe. Nao e desurpreender tampouco que as massas trabalhadoras naopossuam os conceitos que Ihes possibilitem intervir no pro-cesso, estruturar um novo conjunto de questionamentos,trazer a luz ou revelar aquilo que a esmagadora realidade domercado constantemente torna invisivel. E obvia a razaoporque devemos gerar, a partir dessas categorias funda-mentals para as quais encontramos palavras cornuns, frasese expressoes idiomaticas da consciencia pratica, o modelode novas relac.6es socials e politicas. Afinal, elas tambempertencem ao mesmo sistema e parecem funcionar de acordocom seus protocolos. Dessa forma, percebemos na "Hvreescolha" do mercado o simbolo material de liberdades maisabstratas; ou na competitividade egocentrica [self-interest] eintrinseca do lucro de mercado a "representacao" de algonatural, normal e universal na propria natureza humana.

Tentarei agora elaborar algumas conclusoes da "releitura"que ofereci sobre o significado do texto de Marx, a luz dascriticas e teorias mais recentes e avancadas.

A analise nao se organiza mais em torno da distinc.aoentre o "falso" e o "verdadeiro". O obscurecimento ou amistificagao dos efeitos da ideologia nao e mais visto comoproduto de um truque ou ilusao magica. Tampouco se podeatribui-los a falsa consciencia, na qual nossos pobres,

283

Page 145: Da Dispora - Stuart Hall

ignorantes e nao-teoricos proletaries estao irrevogavelrnenteimersos. As relacoes nas quais as pessoas existem sao as"relacoes reals" que as categorias e conceitos por elas utili-zados as permitem apreender e articular em seu pensamento.Porem — e aqui podemos estar em um caminho contrario aenfase a qual o "materialismo" e geralmente associado — aspropnas relae.6es economicas nao podern prescrever uma for-ma unica, fixa e inalteravel de conceber essas relacoes. Estaspodem vir "expressas" no interior de distintos discursos ideo-logicos. Alem do mais, esses discursos podem empregar omodelo conceitual e transpo-lo para outros dominios maisestritamente "ideologicos". For exemplo, podem elaborar umdiscurso — como o monetarismo dos ultimos dias — quededuz o grande valor da "Liberdade" da liberdade de coa^aoque leva homens e mulheres todos os dias para o mercadode trabalho. Tambe~m evitamos a distincao entre "falso" e"verdadeiro", substituindo-a por termos mais precisos: como"parcial" e "adequado" ou "unilateral" ou "em sua totalidadediferenciada". Afirmar que um discurso teorico permite aapreensao adequada de uma relacao concreta "no pensa-mento" e o mesmo que dizer que o discurso nos permiteuma apreensao rnais completa de todas as relagoes que com-poem aquela relac.ao e das muitas determinagoes que definemsuas condie.6es de existencia. Significa que nossa apreensaoe concreta e integral, nao uma abstracao rasa ou unilateral.As explicates unilaterais sao sempre parciais, do tipo "partepelo todo" e nos permitem abstrair apenas um elemento(o mercado, por exemplo), afirmando que sao inadequadasprecisamente por isso. Somente por essa razao, elas podemser consideradas "falsas". Contudo, estritamente falando, otermo e enganador se temos em mente uma distingao simples,do tipo tudo ou nada, entre o falso e o verdadeiro, ou entreciencia e ideologia. Felizmente ou nao, as explicates sociaisraramente se encaixam nessas classifica^oes.

Em nossa "releitura" admitimos uma variedade de propo-sigoes secundarias, derivadas de teorizafoes mais recentessobre "ideologia", num esforgo de verificar o quao incompa-tiveis elas sao com as formulacoes de Marx. Como se veri-ficou, a explicafao relaciona os conceitos, as ideias, a termi-nologia, as categorias, talvez tambem as imagens e simbolos(dinheiro, o pagamento salarial periodico, a liberdade) que

284

nos permitem apreender no pensamento algum aspecto doprocesso social. Estes nos permitem representar para nosrnesmos e os outros como o sistema funciona e por que o fazdessa maneira.

O mesmo processo — produgao e troca capitalista — podeser expresso por uma estrutura ideologica distinta, pelo usode diferentes "sistemas de representacao". Existe o discursodo "mercado", o discurso da "producao", o discurso dos"circuitos": cada um produz uma definie.ao distinta do sistema.Cada um nos localiza distintamente — como trabalhador,capitalista, trabalhador assalariado, os escravos do salario,produtor, consumidor etc. Assim, cada um nos situa comoatores sociais e como membros de um grupo social em urnarelacao particular com o processo e prescreve para nos certasidentidades sociais. Em outras palavras, as categorias ideolo-gicas em uso nos posicionam em relafao ao relato do pro-cesso conforme este e retratado no discurso. O trabalhadorque associa sua condi^ao de existencia no sistema capitalistaa de um "consumidor" — que ingressa no sistema por essaporta — participa do processo por meio de uma pratica dife-rente daquele que esta inscrito no sistema como "traba-lhador qualificado" — ou nao inscrito nele, como, por exemplo,a "dona de casa". Todas essas inscribes produzem efeitosreais. Produzem uma diferenga material, ja que a forma comoagimos em certas situacoes depende de nossas definicoesda situacao.

Creio que um tipo semelhante de "releitura" pode ser feitaem relac/ao a outro conjunto de proposic.6es sobre a ideologia,que nos ultimos anos tem sido vigorosamente contestado, asaber, a determinagao de classe das ideias e as correspon-dencias diretas entre "ideias dominantes" e "classes domi-nantes". Laclau (1977) demonstrou decisivamente a naturezainsustentavel da proposigao de que as classes, como tais, saoos sujeitos de ideologias de classe fixas e atribuidas. O autordemoliu a proposic.ao de que ideias e conceitos particulares"pertencem" exclusivamente a um tipo particular de classe.Demonstra, com efeito, o fracasso de qualquer forma^aosocial em corresponder a esse quadro de atribuic.ao de ideo-logias de classe. Argumenta, de maneira convincente, que alogica de se pensar que as ideias particulares estao perma-nentemente fixas a uma classe particular e antitetica ao que

285

Page 146: Da Dispora - Stuart Hall

conhecemos sobre a propria natureza da linguagem e dodiscurso. As ideias e conceitos nao ocorrem, nem na linguagemnem no pensamento, daquela forma unica e isolada, com seusconteudos e referencias irrevogavelmente fixos. A linguagem,em seu sentido mais amplo, e o veiculo do raciocinio pratico,do calculo e da consciencia, por causa das formas pelas quaiscertos significados e referencias tern sido historicamenteconfirmados. Mas seu poder de convencimento depende da"logica" que conecta uma proposigao a outra na cadeia designificados; onde as conotacoes sociais e o significadohistorico estao condensados e reverberam um no outro. Alemdo mais, essas cadeias nao estao permanentemente seguras,seja em seus sistemas internes de significado, seja em termosdas classes sociais e grupos as quais "pertencem". Se assimnao fosse, a ideia de luta ideologica e de transformac.6esda consciencia — questoes centrais a politica de qualquerprojeto marxista — seria uma fraude, a danc.a de figurasretoricas mortas.

Uma vez que a linguagem, enquanto meio do pensa-mento e do calculo ideologico, e "polivalente", como afirmouVolochlnov, o campo do ideologico e sempre o campo das"enfases interseccionadas" e da "mterseccjio de interessessociais distintaniente orientados":

Assim, classes sociais diferentes servem-se de uma so e mesmalingua. Consequentemente, em todo signo ideologico con-frontam-se indices de valor contraditorios. O signo se torna aarena onde se desenvolve a luta de classes ... O signo, se sub-traido as tensoes da luta social, se posto a margem da luta declasses, ini infalivelmente debilitar-se, degenerar-se-a em ale-goria, tornar-se-a objeto de estudo dos filologos e nao sera maisinstrumento racional e vivo para a sociedade. (Volochinov, 1973,p. 23) led. bras. p. 46]

Essa abordagem substitui a noc,ao de significados ideolo-gicos fixos e ideologias de classe por conceitos de terrenosde lutas ideologicas e a tarefa de transformac.ao ideologica. Eo movimento para alem de uma teoria geral e abstrata daideologia, em direcao a analise mais concreta de como, emdeterminadas situacoes historicas, as ideias "organizam asmassas humanas e criam o terreno sobre o qual os homensse movem, adquirem consciencia de sua posicao, Iutam etc.",

286

que faz de Gramsci — cuja citacao e apresentada anteriormente(1971) — uma figura de importancia seminal no desenvolvi-niento do pensamento marxista no ambito do ideologico.

Uma das conseqiiencias desse tipo de trabalho revisionistatem sido a destruic.ao completa do problema da estruturagaoclassista da ideologia e as formas pelas quais a ideologiaintervem nas lutas sociais. Freqiientemente, essa abordagemsubstitui as nocoes inadequadas de ideologia atribuidas embloco as classes por uma nocao "discursiva" igualmente insa-tisfatoria, que implica uma flutuagao totalmente livre de todosos elementos e discursos ideologicos. A imagem dos grandes eimutaveis batalhoes de classe carregando a pesada bagagemideologica que Ihes e atribuida, no campo de luta, com seusnumeros de registro ideologico nas costas, como se referiuPoulantzas no passado, e substituida aqui pela infinidade desutis variacoes pelas quais os elementos de um discursoparecem combinar e recombinar espontaneamente uns comos outros, sem quaisquer restrigoes materiais a nao ser aquelasfornecidas pelas proprias operates discursivas.

Ora, e perfeitamente correto afirmar que o conceito de"democracia" nao possui um significado totalmente fixo, quepode ser atribuido exclusivamente ao discurso das formasburguesas de representagao politica. "Democracia" no discursodo "Ocidente Livre" nao carrega o mesmo significado quepossui quando nos referimos a luta "popular-democratica" ouao aprofundamento do conteiido dernocratico da vida poli-tica. Nao podemos permitir que o termo seja inteiramenteexpropriado como discurso de direita. Em vez disso, preci-samos desenvolver uma contestacao estrategica em torno doproprio conceito. Naturalmente, isso nao e uma operagaomeramente "discursiva". Simbolos e slogans poderosos dessetipo, portadores de uma forte carga politica positiva, naobalancam de um lado para o outro da linguagem ou da repre-sentac,ao ideologica. A expropriacao do conceito tem que sercontestada atraves do desenvolvimento de uma serie depolemicas, por intermedio de formas particulares de lutaideologica: para destacar um significado deste conceito dodominio da consciencia publica e suplanta-lo dentro da logicade outro discurso politico. Gramsci afirmou precisamente quea luta ideologica nao acontece pelo deslocamento integral de

287

Page 147: Da Dispora - Stuart Hall

um modo de pensamento de classe em favor de um sistemainteiramente pronto de ideias:

O que importa e a critica a qual esse complexo ideoltfgico serasujeitado pelos primeiros representantes da nova fase histo-rica. Essa critica possibilita um processo de diferenciacao emudanca no peso relative que os elementos ideologicos ante-riores possmam. O que antes era secundario e subordinado,ou mesmo incidental, agora 6 considerado primario — torna-seo nticleo de um novo complexo ideologico e teorico. O antigocoletivo dissolve-se em seus elementos contraditorios, ja queos subordinados se desenvolvem socialmente etc. (Gramsci,1971, p. 195)

Em suma, sua concepcao de luta ideologica e de uma "guerrade posicoes". Significa ainda articular diferentes concepcoesde "democracia" dentro de toda uma cadeia de ideias asso-ciadas. E significa articular esse processo de desconstrucao ereconstrucao ideologica a um conjunto de posicoes politicasorganizadas e a um conjunto particular de forgas sociais. Asideologias nao se tornam efetivas enquanto forca materialpor emanarem das necessidades de classes sociais inteira-mente formadas. Mas o reverse tambem e verdadeiro —embora o relacionamento entre as ideias e as forcas sociaisseja invertido. Nenhuma concepcao ideologica podera setornar materialmente efetiva ate que possa ser articuladaao campo das forcas politicas e sociais e as lutas entre asdistintas forcas em jogo.

Nao se trata necessariamente de um materialismo vulgarafirmar que, embora nao possamos atribuir as ideias a posicaode classe em certas combinacoes fixas, as ideias surgem dascondicoes materials nas quais os grupos e classes sociaisexistem e podem refleti-las. Neste sentido — ou seja, historica-mente — pode haver certos alinhamentos tendenciais —entre, digamos, aqueles que estabelecem relacoes de pequenocomerciante com os processes de desenvolvimento capitalistamodernos e o fato de que podem, portanto, estar predispostosa imaginar que toda a economia avan^ada do capitalismo podeser conceituada nos termos de um pequeno comercio, Creioque isso e o que Marx tinha em mente ao afirmar no Dezoitobrumdrio nao ser necessario que as pessoas ganhassem a vida

288

como membros da velha pequena burguesia para serem atra-Idas pelas ideias da pequena burguesia. Contudo, sugereele havia alguma relacao ou tendencia entre a posicao obje-tiva daquela classe e os limites e horizontes de pensamentoaos quais ela podia ser "espontaneamente" atraida. Tratava-se de um julgamento sobre as "formas de pensamento carac-teristicas" que serviriam como "tipo ideal" de certas posicoesna estrutura social. Definitivamente nao se tratava de umasimples equacao na realidade historica entre a posicao declasse e as ideias. O argumento sobre "as relacoes historicastendenciais" e de que nao ha nada inevitavel, necessario oufixo nelas. As linhas de forca tendenciais definem apenas oque ja esta dado, no terreno historico.

Essas definem como o terreno foi estruturado histori-camente. Assim, e perfeitamente possivel para a ideia de"naclo" receber um significado e uma conotacao progres-sistas, ao encarnar uma vontade nacional popular coletiva,conforme argumentou Gramsci. Contudo, numa sociedadecomo a Gra-Bretanha, a ideia de "nacao" tem sido consisten-temente articulada na direcao politica da direita. Ideias de"identidade nacional" e "grandeza nacional" estao intimamenteatreladas a supremacia imperial, marcadas por conotacoesracistas e sustentadas por uma historia de quatro seculos decolonizacao, supremacia no mercado mundial, expansaoimperial e dominio global dos povos natives. Portanto, e bemmais dificil atribuir a Gra-Bretanha uma referenda socialmenteradical ou democratica. Essas associacoes nao permanecempara sernpre. Mas e dificil romper com elas, pois o terrenoideologico dessa formacao social particular foi poderosamenteestruturado por sua historia anterior. Essas conexoes histo-ricas definem as formas pelas quais o dominio ideologico deuma sociedade particular foi mapeado. Sao estes os "tracos"que Gramsci (1971) menciona: os "depositos estratificadosda filosofia popular" (p. 324), que nao possui mais inven-tario, mas que estabelecem e definem os campos nos quaisa luta ideologica podera ocorrer.

Gramsci sugere que este foi, acima de tudo, o dominiodo "senso comum": uma forma historica, nao natural, uni-versal ou espontanea de pensamento popular, necessaria-mente "fragmentaria, desconexa e episodica". O "sujeito" do

289

Page 148: Da Dispora - Stuart Hall

senso comum e composto de todas as formacoes ideoloe•"•^nfr^Hirnrias:

;icas

Contem elementos e principles da Idade da Pedra de umaciencia mais avan?ada, preconceitos de todas as fases passadasda historia no nivel local e intui^des de uma filosofia futuraque serao aquelas de uma ra^a humana unida em todo omundo. (Gramsci, p. 324)

Ainda assim, uma vez que essa rede de traces preexistentese de elementos do senso comum constituem o dominio dopensamento pratico das massas, Gramsci insistiu que eraprecisamente nesse terreno que a luta ideologica ocorria commais freqiiencia. O "senso comum" tornou-se uma das razoespelas quais a luta ideologica e conduzida. Em ultima instancia,"a relacao entre o senso comum e o nivel superior da filosofiae garantida pela 'politica'..." (Gramsci, p. 331).

As ideias so se tornam efetivas se, ao final, elas se juntarema uma constelacao particular de forcas sociais. Neste sentido,a luta ideologica faz parte de uma luta social geral por con-trole e lideranca — em suma, pela hegemonia. Porem, a"hegemonia", no sentido de Gramsci, requer nao a simplesascensao de uma classe ao poder, com sua "filosofia" inteira-mente formada, mas o processo pelo qual um bloco historicode forc.as sociais e construido e sua ascendencia obtida.Portanto, a melhor forma de se conceber a relacjio entre"ideias dominantes" e "classes dominantes" e em termos dosprocesses de "dominae.ao hegemonica".

Por outro lado, abandonar a questao ou o problema do"governo" — da hegemonia, da dominacao e da autoridade— apenas porque este foi originalmente postulado de ma-neira insatisfatoria — em nada adianta. A predominancia dasideias dominantes nao e garantida pelo fato de estas estarematreladas as classes dominantes. O processo de luta ideolo-gica procura antes alcancar a efetiva ligacao das ideias domi-nantes ao bloco historico que detem o poder hegemonico emum dado periodo. Esse processo e o objeto do exercicio, naoa encenagao de um roteiro ja escrito ou concluido.

Embora o argumento tenha sido dirigido ao problema daideologia, ficara claro que ele repercute sobre o desenvolvi-mento da teoria marxista como um todo. A questao geral aqui

290

e" uma concepsao particular de "teoria": a teoria como o esta-belecimento de um conjunto de garantias. O que esta em jogotambem e uma definicao particular de "determinacao". Picaclaro pela "leitura" anteriormente apresentada que o aspectoeconomico dos processes de produgao capitalista tem efeitosrealmente limitadores para as categorias nas quais os circuitosde produgao sao pensados ideologicamente, e vice-versa. Oeconomico fornece o repertorio de categorias que serao utili-zadas no pensamento. O que o economico nao pode fazer e(a) fornecer os conteudos particulares dos pensamentos dasclasses ou grupos sociais em qualquer tempo especifico; ou(b) fixar ou garantir para sempre quais ideias serao utili-zadas por quais classes. A determinacao do economico sobreo ideologico pode, portanto, acontecer apenas em termos doestabelecimento anterior de limites que definam o terrenodas operacoes, estabelecendo a "materia-prima" do pensa-mento. As circunstancias materiais sao a rede de restricoesdas "condic.6es de existencia" do pensamento pratico e docalculo sobre a sociedade.

Esta e uma concepgao distinta de "determinac.ao" daquelanormalmente implicita no sentido corrente de "determinismoeconomico" ou na totalidade expressiva como forma de seconceberem as relagoes entre as diferentes praticas em umaformac.ao social. As relacoes entre esses diferentes niveis sao,de fato, determinadas; isto e, mutuamente deterrninadas.A estrutura das praticas sociais — o conjunto — nao e osci-lante nem imaterial. Tampouco e uma estrutura transitiva, cujainteligibilidade se situa exclusivamente em uma transmissaode mao unica dos efeitos da base para cima. O economiconao pode produzir um fechamento final do dominio da ideo-logia, no sentido estrito de sempre garantir um resultado.Nem sempre pode assegurar um conjunto particular decorrespondencias ou fornecer modos particulares de racio-cinio a classes especificas, de acordo com seu lugar no sistema.A razao disso e que (a) as categorias ideologicas sao desen-volvidas, geradas e transformadas de acordo com suas propriasleis de desenvolvimento e evolugao, embora elas sejam geradasapartirde materiais especificos; e tambem (b) da necessaria'abertura" do desenvolvimento historico a pratica e luta. Temosque reconhecer a indeterminacao real do politico — o nivel

291

Page 149: Da Dispora - Stuart Hall

que condensa todos os outros mveis da pratica e garanteseu funcionamento em um sistema especifico de poder.

A abertura relativa ou a indeterminacao relativa e neces-saria ao proprio niarxismo enquanto teoria. O que e "cienti-fico" a respeito da teoria politica marxista e que ela buscacompreender os limites da agao politica estabelecidos peloterreno no qual ela opera. Esse terreno e definido nao pelasforc.as que podemos prever com a certeza da ciencia natural,mas pelo equilibrio existente entre as forcas sociais, a natu-reza especifica da conjuntura concreta. E "cientifica" porquecompreende a si mesma como determinada e porque buscadesenvolver uma pratica teoricamente informada. Mas naoe "cientifica" no sentido de que os resultados politicos eas conseqiiencias da conduc.ao das lutas politicas estejamescritos nas estrelas economicas.

Compreender a "determinacao" em termos do estabeleci-mento de limites e parametros, da definicao de espacos deoperacao, das conduces concretas de existencia, do carater"ja dado" das pr£ticas sociais, em vez da previsibilidadeabsoluta de resultados especificos, e a unica base de um"marxismo sem garantias finais". Ela estabelece o horizonteaberto da teoria marxista — determinac.ao sem fechamentosgarantidos. O paradigma de sistemas de pensamento perfei-tamente fechados e previsiveis nao passa de religiao ou astro-logia, nao e ciencia. Seria preferivel, sob essa perspectiva,pensar o "materialismo" da teoria marxista em termos da"determinacao pelo economico emprimeira instancia", ja queo marxismo certamente esta correto ao insistir, contra todosos idealismos, que nenhuma pratica social ou conjunto derelacoes esta livre dos efeitos determinantes das relacoesconcretas nas quais estao situados. Contudo, "a determi-nacao em ultima instancia" tern sido por muito tempo o repo-sitorio do sonho perdido ou da ilusao da certeza teorica.E isso tern sido adquirido a um custo consideravel, ja quea certeza estimula a ortodoxia, os rituals petrificados e aentoacao de verdades ja testemunhadas, e todos os outrosatributos de uma teoria incapaz de produzir novos discerni-mentos. Representa o fim do processo de teorizagao, dodesenvolvimento e da refinac.ao de novos conceitos e expli-ca^oes que, por si so, sinalizam um corpo vivo de pensamento,

292

ainda capaz de engajar-se e apreender algo da verdade sobreas novas realidades hist6ricas.

[In: MATTHEWS, B. (Ed.). Marx: 100 Years On. London:Lawrence & Wishart, 1983- p. 57-84. Tradu^ao de AdelaineLa Guardia Resende]

BIBLIOGRAFIA

ALTHUSSER, L. ForMarx. London: Allen Lane, 1969- [A favor de Marx.Rio de Janeiro: Zahar, 1971.]

ALTHUSSER, L. Lenin and Philosophy. London: New Left Books, 1971.

ALTHUSSER, L. Essays in Self-Criticism. London: New Left Books, 1976.

ALTHUSSER, L.; BALIBAR, E. Reading Capital. London: New Left Books,1970.

ANDERSON, P- Considerations on Western Marxism. London: NewLeft Books, 1976.

GRAMSCI, A. Selections from the Prison Notebooks. New York:International Publishers, 1971.

LACLAU, E. Politics and Ideology in Marxist Theory. London: New LeftBooks, 1977.

MARX, K. Capital. New York: International Publishers, 1967. v. 1.

MARX, K. A Contribution to the Critique of Political Economy. NewYork: International Publishers, 1970.

MARX, K. Grundisse. New York: Harper & Row, 1971.

VOLOCHINOV, V. Marxism and the Philosophy of Language. NewYork: Seminar Press, 1973. [Marxismo efilosofia da linguagem. SaoPaulo: Hucitec, 1981.]

293

Page 150: Da Dispora - Stuart Hall

A RELEYklA DE GRAMSC PARA 0E S T U D O DE RA?A E E T N I C I D A D E

O objetivo desta coletanea1 e facilitar "o exame maissofisticado do fenomeno ainda pouco elucidado do racismoe investigar a eficacia das formulacoes teoricas, dos para-digmas e esquemas interpretativos das ciencias humanas esociais ... que dizem respeito a intolerancia e ao racismo ea complexidade dos problemas que estes implicam". Essarubrica geral me permite situar mais especificamente a contri-buicao que o estudo da obra de Gramsci pode dar a essainiciativa mais ampla. A meu ver, a obra de Gramsci naoconstitui uma ciencia social geral, que pode ser aplicada aanalise comparativa dos fenomenos sociais em uma amplagama de sociedades historicas. Sua contribuicao tern umpotencial mais limitado. Mesmo assim, ela continua a ter umarelevancia seminal. Sua obra e, precisamente, de um tipo"sofisticado". Gramsci trabalha, em geral, dentro do paradigmamarxista. Contudo, ele revisou, renovou e sofisticou ampla-mente muitos dos aspectos dessa estrutura teorica para torna-lamais pertinente as relacoes sociais contemporaneas no seculovinte. Portanto, sua obra tem uma implicacao direta sobre aquestao da "suficiencia" das teorias sociais atuais, ja que suamaior contribuicao teorica se situa precisamente na direcaoem que "torna mais complexas as teorias e problemasatuais". Esses pontos requerem maior esclarecimento antesque um resumo substancial e uma analise da contribuicaoteorica de Gramsci possam ser oferecidos.

Gramsci nao foi um "teorico geral". De fato, ele nuncatrabalhou como professor nem como pesquisador teorico.Do inicio ao fim, foi e permaneceu um intelectual politico eum ativista socialista da cena politica italiana. Seus escritos"teoricos" se desenvolveram desse engajamento mais orga-nico com sua propria sociedade e epoca e sempre na intencaonao de servir a um objetivo academico abstrato, mas de"informar a pratica politica". Portanto, e essencial que naose confunda o nivel de aplicacao no qual os conceitos deGramsci operam. Ele se via atuando, principalmente, dentrodos parametros mais amplos do materialismo historico,conforme esbocados na tradicao dos estudos marxistas defi-nidos na obra de Marx e Engels e, nas primeiras decadas doseculo vinte, por representantes como Lenin, Rosa Luxem-burgo, Trotsky, Labriola, Togliatti etc. (Cito estes nomes paraindicar o campo de referencia de Gramsci dentro do pensa-mento marxista, nao sua posicao exata em relacao a essaspessoas especificas — o que seria uma questao mais compli-cada.) Isso significa que sua contribuicao teorica deve sersempre lida com a percepgao de que ela opera, em geral,dentro do terreno marxista. Em outras palavras, o marxismofornece os limites gerais dentro dos quais os desenvolvi-mentos, refinamentos, revisoes, avancos, ideias posteriores,novos conceitos e formulacoes originals de Gramsci operam.Contudo, ele nunca foi um "marxista" no sentido doutrinario,ortodoxo ou "religiose". Ele sabia que a estrutura geral dateoria de Marx tinha que ser constantemente desenvolvidateoricamente; aplicada a novas condicoes historicas; relacio-nada aos desenvolvimentos sociais que Marx e Engels naopuderam prever; expandida e refinada pela adicao de novosconceitos.

Desta forma, a obra de Gramsci nao representa nem uma"nota de rodape" do edificio ja concluido do marxismo orto-doxo, nem uma evocacao ritual da uma ortodoxia que ecircular, que produz "verdades" ja bem conhecidas. Gramscipratica um marxismo genuinamente "aberto", que expandemuitos dos insights da teoria marxista na direcao de novasquestoes e condicoes. Sobretudo, sua obra coloca em funcio-narnento conceitos que o marxismo classico nao forneceu,

sem os quais a teoria marxista nao conseguiria explicar

295

Page 151: Da Dispora - Stuart Hall

adequadamente os complexes fenomenos sociais que encon-tramos no mundo moderno. E essencial que esses pontossejam compreendidos, para que possamos situar a obra deGramsci no contexto das formulacoes teoricas, paradigmas eesquemas interpretativos das ciencias sociais e humanas naatualidade.

A obra de Gramsci nao e uma obra geral das cienciassociais, como e, por exemplo, a obra de "pais fundadores",como Max Weber ou Emile Durkheim. Em parte alguma elaaparece desta forma geral e sintetizada. O corpo principaldas ideias de Gramsci esta espalhado em seus ensaiosocasionais e escritos polemicos — ele foi um jornalistapolitico ativo e produtivo — e, obviamente, em seus Cadernosda prisao, que ele escreveu sem o beneficio do acesso asbibliotecas ou de outros livros de referenda, durante suasferias forcadas na prisao de Mussolini em Turim, depoisde sua prisao (1928-1933), ou na Clinica Formal (1934-1935), apos sua libertacao, mas quando ja estava doenteem estagio terminal. Esse corpus fragmentario, que incluios Cadernos {Quaderni del carcere) podem ser encontradoshoje no Institute Gramsci, em Roma, onde uma edicaocritica definitiva ainda esta por ser concluida.2

Os escritos nao estao apenas disperses; sao em geralfragmentirios na forma, textos inconsistentes e "inacabados".Gramsci sempre escrevia — como e o caso dos Cadernos daprisao — sob as condicoes mais desfavoriiveis; por exemplo,sob o olhar atento do censor da prisao ou sem quaisqueroutros livros que pudessem refrescar sua memoria. Dadasessas circunstancias, os Cadernos representam uma proezaintelectual surpreendente. Contudo, os "custos" de ter queproduzi-los dessa forma, de nunca poder voltar a eles comtempo para uma reflexao critica, foram consideraveis. OsCadernos sao o que dizem: Notas — menores ou maisamplas; nao elaboradas em um discurso consistence ou emum texto coerente. Alguns de seus argumentos mais com-plexes encontram-se deslocados do corpo principal do texto,em longas notas de pe de pagina. Algumas passagens foramreformuladas, mas ha pouca orientacao sobre qual dasversoes Gramsci considerou a mais "definitiva".

296

Como se nao bastassem as dificuldades representadasnor sua "fragmentariedade", a obra de Gramsci pode parecer"fragmentaria" por uma segunda razao, mais profunda. Eleconstantemente utilizava a teoria para iluminar fatos histo-ricos ou questoes politicas concretas; ou pensava conceitosamplos em termos de sua aplicacao a situacoes concretas eespecificas. Consequentemente, a obra de Gramsci parecepor demais concreta e historicamente especifica, fimitadademais a suas referencias, uma analise por demais descritiva,excessivamente limitada pelo tempo e pelo contexto. Suasideias e formulacoes mais elucidativas sao do tipo conjunturais.Para que se possa generaliza-las, e necessario desenterra-lasdelicadamente de seu solo concreto e de sua especificidadehistorica e transplanta-las para um novo terreno, com muitocuidado e paciencia.

Alguns criticos supoem que os conceitos de Gramscioperam nesse nivel de concretude somente porque ele naoteve tempo, nem disposicao, para eleva-los a um nivel maisalto de generalidade conceitual — o nivel supremo onde"as ideias teoricas" supostamente funcionam. Assim, tantoAlthusser quanto Poulantzas se propuseram, em epocasdistintas, a "teorizar" os textos insuficientemente elaboradosde Gramsci. Essa visao me parece equivocada. Aqui e essen-cial que se saiba que, do ponto de vista epistemologico, osconceitos podem operar em niveis de abstragao muitodistintos e sao conscientemente produzidos para atuar assim.O importante e nao confundir um nivel de abstracao poroutro. Expomo-nos a um grave erro quando tentamos inter-pretar conceitos destinados a funcionar em um alto nivel deabstracao, como se eles pudessem automaticamente produziros mesmos efeitos teoricos se traduzidos em outro nivel deoperacao mais concreto, "mais baixo". Em geral, Gramsciprojetou seus conceitos para operarem em niveis mais baixosde concretude historica. Ele nao visou um nivel "mais alto" —e errou seu alvo teorico! Temos, sim, que compreender essenivel concreto de descricao historica nos termos da relacaode Gramsci com o marxismo.

Gramsci sempre foi um "marxista", como mencionei, nosentido de que ele desenvolveu suas ideias dentro do quadro

da teoria de Marx; isto e, sem questionar conceitos

297

Page 152: Da Dispora - Stuart Hall

como "o modo capitalista de producao", "as forcas e relacoesde producao" etc. Esses conceitos foram cunhados por Marxno nivel mais geral de abstracao. Isso quer dizer que saoconceitos que nos permitem compreender os processesamplos que organizam e estruturam o modo capitalista deproducao, quando este e reduzido a seus elementos essenciaisou e visto em qualquer estagio ou momento de seu desen-volvimento historico. Os conceitos sao "epocais" em seualcance e referenda. Contudo, Gramsci compreendeu que,quando esses conceitos tiverem que ser aplicados a estagiosespecificos do desenvolvimento do capitalismo, o teoricodevera descer de um nivel de "modo de producao" paraoutro nivel de aplicacao, mais baixo e mais concreto. Essemovimento requer nao somente uma especificacao historicacuidadosa, mas tambem — como o proprio Marx argumentou— a aplicacao de novos conceitos e niveis posteriores dedeterminacao, alem daqueles que dizem respeito as relacoesde exploracao simples entre o capital e o trabalho, uma vezque estes servem para especificar "o modo capitalista"somente no nivel mais alto de referenda. O proprio Marx,em seu texto metodologico mais elaborado (a "Introducao"de 1857 aos Grundrisse), imaginou a "producao do concretono pensamento" como algo que ocorre atraves de uma sucessaode aproximacoes analiticas, cada qual adicionando outrosniveis de determinacao aos conceitos necessariamente basicose abstratos formados no nivel maximo de abstracao analitica.Marx afirmou que poderiamos apenas "pensar o concreto"atraves desses niveis sucessivos de abstracao. Isto porque oconcreto, na realidade, consistia de "muitas determinacoes"— das quais, naturalmente, os niveis de abstracao que utili-zamos para pensa-lo devem se aproximar. (Sobre questoesda epistemologia marxista, ver S. Hall. "Marx's Notes ofMethod" [Anotacoes de Marx sobre o metodo], WorkingPapers in Cultural Studies, v. 6, 1977.)

Por essa razao, ao deixar o terreno geral dos conceitosmaduros de Marx (como esbocados, por exemplo, noCapital) para as conjunturas historicas especificas, Gramsciainda consegue permanecer "dentro" do campo de referendadesses conceitos. Mas quando discute em detalhe, digamos, asituacao politica italiana nos anos 30 ou as mudancas na

298

complexidade das democracias de classe do "Ocidente" aposo imperialismo e o advento da democracia de massa, ou asdiferencas especificas entre as formacoes sociais "orientals" e"ocidentais" na Europaf ou o tipo de politica capaz de resistiras forcas emergentes do fascismo, ou as novas formas depolitica acionadas pelos desenvolvimentos do modernoestado capitalista, Gramsci compreende a necessidade deadaptar, desenvolver e suplementar os conceitos de Marxatraves de outros conceitos, mais novos e originals. Primeira-mente, porque Marx concentrou-se no desenvolvimento desuas ideias no nivel mais alto de aplicacao (como no Capital),em vez de escolher um nivel historico mais concreto (porexemplo, nao ha uma analise verdadeira em Marx das estru-turas especificas do estado britanico no seculo dezenove,embora haja varies insights sugestivos sobre isso). Em segundolugar, porque as condicoes historicas para as quais Gramsciescrevia nao eram as mesmas daquelas nas quais ou para asquais Marx e Engels haviam escrito (Gramsci tinha umapercepcao aguda das condicoes historicas da producao teo-rica). Terceiro, porque Gramsci sentiu a necessidade de ela-borar novas conceituacoes precisamente nos niveis em que otrabalho teorico de Marx se encontrava mais esquematico eincomplete; isto e, no nivel da analise das conjunturas histo-ricas ou dos aspectos politicos e ideologicos especificos —as dimensoes tao freqiientemente ignoradas na analise dasformacoes sociais do marxismo classico.

Esses pontos nos auxiliam nao somente a "estabelecer"Gramsci na tradigao marxista, mas a tornar explicito o nivelno qual sua obra opera positivamente, bem como os niveisde ampliacao exigidos por esses deslocamentos. A obra deGramsci e mais apropriada a geracao de novos conceitos,ideias e paradigmas relatives a analise dos aspectos politicose ideologicos das formacoes sociais no periodo pos-1870.Nao que ele tenha alguma vez se esquecido ou ignorado oelemento critico das bases economicas da sociedade e suasrelacoes. Mas poucas foram as suas formulacoes originaisneste nivel de analise. Contudo, nas areas geralmente igno-radas da analise de conjuntura, da politica, da ideologia edo estado, do tipo de regime politico, a importancia dasquestoes culturais e nacionais-populares e a funcao da socie-dade civil no equilibria- inconstante das relacoes entre as

299

Page 153: Da Dispora - Stuart Hall

forcas socials da sociedade — sobre essas questoes, Gramscitern uma contribuicao enorme a oferecer. Ele e um dosprimeiros "tedricos marxistas" das condicoes historicas quedominaram a segunda metade do seculo vinte.

Contudo, especificamente em relacao ao racismo, suacontribuicao original nao pode ser transferida por atacado docontexto de sua obra. Gramsci nao escreveu sobre raca, etniaou racismo, em termos dos sigmficados ou das manifestacoescontemporaneas destes. Nem analisou em profundidade aexperiencia colonial ou o imperialismo, de onde se desenvol-veram tantas das caracteristicas e relacionamentos "racistas"do mundo moderno. Sua principal preocupacao foi com seupais, a Italia; e depois disso, os problemas da construcaosocialists na Europa Ocidental e Oriental, o fracasso dasrevolucoes nas sociedades capitalistas desenvolvidas do "Oci-dente"; a ameaca do surgimento do fascismo no periodoentre as guerras, a funcao do partido na construcao da hege-monia. Superficialmente, tudo isso pode sugerir que Gramscipertence aquele grupo distante dos chamados "marxistasocidentais" com quern Perry Anderson se identificava e que,por causa de suas preocupacoes com as sociedades maisavancadas, tern pouca relevancia para a cornpreensao dosproblemas que surgiram principalmente no mundo naoeuropeu ou nas relacoes de "desenvolvimento desigual"envolvendo as nacoes imperiais do "centro" capitalista e associedades colonizadas e englobadas da periferia.

Ler Gramsci desta forma seria, em minha opiniao, incorrerno erro da leitura literal (embora, com alguma qualificacao,seja assim que Anderson o le). Na verdade, ainda que Gramscinao escreva sobre o racismo e nao aborde especificamenteesses problemas, seus conceitos podem ser uteis a nossatentativa de pensar a suficiencia dos paradigmas da teoriasocial nessas areas. Alem do mais, sua propria experiencia eformacao, assim como suas preocupacoes intelectuais, naoestavam tao distantes dessas questoes, como sugeriria umprimeiro olhar.

Gramsci nasceu na Sardenha em 1891. A Sardenha viviauma relacao "colonial" com a Italia continental. Seu primeirocontato com as ideias radicals socialistas foi no contexto docrescimento do nacionalismo sardo, brutalmente reprimido

300

pelas tropas do continente. Embora tenha abandonado o"nacionalismo" apos ir para Turim e se envolver com ornovimento da classe trabalhadora naquele local, Gramscinunca deixou de se preocupar com os problemas do campe-sinato e da dialetica complexa dos fatores regionais e declasse, que ele vivenciou em sua primeira fase (ver G. NowellSmith e Quentin Hoare, "Introducao" aos Cademos daprisao,1971). Gramsci tinha plena consciencia da grande linha divi-soria que separava o "Norte", modernizador e industrial, daItalia do "Sul", rural, subdesenvolvida e dependente. Elecontribuiu amplamente para o debate sobre aquilo que veioa ser conhecido como "a questao do Sul". Na epoca de suachegada a Turim em 1911, Gramsci quase adotou a chamada"posicao sulista". Por toda a sua vida conservou um interessenas relacoes de dependencia e irregularidade que ligavam o"Norte" ao "Sul"; e nas relacoes complexas entre a cidade e ocampo, os camponeses e o proletariado, a dependencia e amodernizacao, as estruturas sociais feudais e as industrials.Ele tinha plena consciencia do quanto as linhas divisoriasditadas pelos relacionamentos de classe eram perpassadaspelas diferencas regionais, culturais e nacionais; tambem,pelas diferencas nos compasses do desenvolvimento histo-rico regional ou nacional. Quando em 1923, Gramsci, umdos fundadores do Partido Comunista Italiano, propos otitulo Unitd para o jornal oficial do partido, ele apresentousuas razoes: "porque ... nos devemos dar uma importanciaespecial a questao do Sul". Nos dias que antecederam e suce-deram a Primeira Guerra Mundial, ele se envolveu com cadaaspecto da vida politica da classe trabalhadora de Turim.Essa experiencia garantiu-lhe um conhecimento intimo deum dos estratos mais desenvolvidos da classe proletaria"industrial" na Europa. Ele construiu uma carreira consistentee ativa dentro desse setor avancado da classe trabalhadoramoderna — primeiramente, como jornalista politico, traba-Ihando na equipe do jornal semanal do Partido Socialista, //Grido Del Popolo-, depois, durante uma onda de inquietacaoem Turim (os chamados "Anos Vermelhos"), de ocupacoesde fabricas e conselhos trabalhistas; e finalmente, quando foieditor do jornal, Ordine Nuovo, ate a fundacao do PartidoComunista Italiano. Contudo, ele continuou a refletir, durantetodo o tempo, sobre as estrategias e formas de organizacao

301

Page 154: Da Dispora - Stuart Hall

e acao politica que poderiam untr tipos concretamentedistintos de luta. Ele se preocupava com a questao de quaisbases poderiam ser encontradas nas complexas aliancas erelates entre os diferentes estratos sociais para a fundacaode um estado italiano especificamente moderno. A preocu-pacao com a questao da especificidade regional, as aliancassociais e as fundacoes sociais do estado, tambem se ligadiretamente ao trabalho de Gramsci com o que poderiamospensar hoje como a questao "Norte/Sul" ou "Oriente/Ocidente".

No inicio dos anos 20, Gramsci dedicou-se a dificil tarefade tentar conceber novas formas de "partido" politico e aquestao da distincao de uma via de desenvolvimento especi-fico para as condicoes nationals italianas, opondo-se aoimpulso homogeneizador do Comite Interne Sovietico. Tudoisso levou a grande contribuicao que o Partido ComunistaItaliano prestou a teorizacao das condicoes da "especifici-dade nacional" em relacao aos diversos desenvolvimentoshistoricos concretes das distintas sociedades no Ocidente eno Oriente. No final dos anos 20, contudo, as preocupacoesde Gramsci, em sua maioria, se davam em torno da crescenteameaca do fascismo, ate que ele foi preso e confinado pelasforcas de Mussolini em 1929- (Para estes e outros detalhesbiograficos, ver a excelente "Introducao" de G. Nowell Smithe Q. Hoare aos Cadernos da prisdo, 1971.)

Portanto, embora Gramsci nao tenha escrito diretamentesobre os problemas do racismo, os temas recorrentes de suaobra fornecem linhas teoricas e intelectuais de ligacao maisprofundas com essas questoes contemporaneas do quepoderia sugerir um breve olhar sobre seus escritos.

II

Pretendo voltar-me agora para essas ligacoes mais profundase seu impacto fecundante sobre a busca de teorias maisadequadas nessa area. Tentarei elucidar algumas dessasconcepcoes-chave da obra de Gramsci que apontam nessadirecao.

302

Comeco por uma questao que, de certa forma, para aquelesque estudam cronologicamente a obra de Gramsci, surge maisno final de sua vida: a questao de seu ataque rigoroso a todosos vestigios de um "economismo" e "reducionismo" dentrodo marxismo classico. Por "economismo" nao quero dizer —como espero ja haver esclarecido — ignorar a poderosafuncao que as fundacoes economicas de uma ordem socialou as relacoes economicas dominantes de uma sociedadeexercem na forma e estruturacao de todo o edificio da vidasocial. Mas quero dizer, uma abordagem teorica especificaque tenda a ler as fundacoes economicas da sociedade comoa unica estrutura determinante. Essa abordagem ve as outrasdimensoes da formacao social simplesmente como reflexesdo "economico" em outro nivel de articulacao, sem qualqueroutra forca estruturadora ou determinante em si mesmas.Em termos claros, a abordagem reduz toda a formacao socialno nivel do economico, e concebe todos os outros tipos derelacao social como algo direta e imediatamente "corres-pondente" ao economico. Isso reduz a formulacao um tantoproblematica de Marx — o economico enquanto "deterr&i-nante em ultima instancia" — ao principle reducionista deque o economico determina, de uma forma imediata, da pri-meira ate a ultima instancia. Nesse sentido o "economismo" eum reducionismo tedrico. Ele simplifica a estrutura dasformacoes sociais, reduzindo sua complexidade de articulacaovertical e horizontal a uma unica linha de determinacao.Simplifica o proprio conceito de "determinacao" (que emMarx e uma ideia bastante complexa) em outro cuja funcaoe mecanicista. Nivela todas as mediacoes entre os diferentesniveis de uma sociedade. Representa as formacoes sociais— nas palavras de Althusser — como uma "simples totali-dade expressiva", na qual cada nivel de articulacao corres-ponde aos demais, sendo esta, do inicio ao fim, estrutural-mente transparente. Nao hesito em dizer que isto representaum embrutecimento e uma simplificacao da obra de Marx —o tipo de simplificacao e de reducionismo que o levou, emdesespero, a afirmar certa vez que "se isso for marxismo,entao eu nao sou marxista". Contudo, ha por certo algunsindicadores nessa direcao na obra de Marx. Essa abordagemcorresponde bastante & versao ortodoxa do marxismo que foi

303

Page 155: Da Dispora - Stuart Hall

canonizada na £poca da Segunda Internacional e que freqiien-temente, nos dias de hoje, e introduzida como sendo a puradoutrina do "marxisrno classico". Tal concepcao de formacaosocial e dos relacionamentos entre seus distintos niveis dearticulacao — deve ficar claro — nao deixa praticamentenenhum espaco teorico para se conceberem as dimensoespoliticas e ideologicas, muito menos outros tipos de diferen-ciacao social, tais como as divisoes sociais e as contradicoesque surgem em torno de raca, etnia, nacionalidade e genero.

Desde o inicio, Gramsci se opos a esse tipo de econo-mismo, e, ao final de sua vida, desenvolveu uma polemicateorica consistente contra essa canonizac/ao dentro da tra-dicao marxista classica. Dois exemplos distintos em sua obradevem ser suficientes para ilustrar esse ponto. Em seu ensaiosobre "O principe moderno", Gramsci discute como se analisauma conjuntura historica especifica. Ele substitui a abordagemreducionista que "interpretaria" os desenvolvimentos poli-ticos e ideologicos a partir de suas determinancies economicaspor um tipo de analise bem mais complexa e diferenciada.Baseia-se nao em uma "determinacao de mao unica", mas naanalise das "relacoes de forca" e busca diferenciar (em vez defundir como identicos) os "varios momentos ou niveis" dodesenvolvimento de tal conjuntura. (Cadernos da prisdo,p. 180-181, daqui em diante, CP.) Ele iocaliza essa tarefaanalftica em termos daquilo que ele denomina "a passagemdecisiva da estrutura para as esferas das complexas supe-restruturas". Desta forma, volta-se decisivamente contra qual-quer tendencia a reduzir a esfera das superestruturas politicase ideo!6gicas a estrutura ou a "base" economica. Compreendeisso como o local mais critico na Juta contra o reducionismo."E o problema das relacoes entre a estrutura e a superestrutu-ra que deve ser adequadamente postulado, para que as forcasativas na historia de um periodo especifico sejam correta-mente analisadas e as relacoes entre elas compreendidas."(CP, p. 177). O economismo, acrescenta ele, e uma formateoricamente inadequada de postular esse conjunto critico derelacionamentos. Entre outras coisas, tende a substituir a ana-lise baseada em "interesses imediatos de classe" (sob a formado questionamento: "Quern lucra diretamente com isto?") poruma analise mais complete e mais estruturada das "formacoes

304

da classe economica ... com todas as suas relacoes intrin-secas" (CP, p- 163). Ele sugere que se exclua a hipotese denue "as crises economicas imediatas, por si mesmas, produzameventos historicos fundamentals" (grifo meu). Isso quer dizernue o economico nao exerce nenhum papel no desdobra-mento das crises historicas? De forma alguma. Mas sua fun^ao£ "criar um terreno mais favoravel a disseminacao de certosmodos de pensamento e certas formas de postular e resolverquestoes que envolvam todo o desenvolvimento subsequenteda vida nacional" (CP, p. 184). Em suma, so se conduz umtipo adequado de analise, arraigado na "passagem" irreversivele decisiva entre a estrutura e a superestrutura, quando sedemonstra como "as crises economicas objetivas" de fato setomam crises de estado e da sociedade, causadas pelas relacoesinstaveis no equilibrio das forcas sociais, e como germinamsob a forma de lutas etico-politicas e de ideologias politicascompletas, influenciando a concepcao de mundo das massas.

O tipo de infalibilidade imediata que o reducionismo eco-nomico traz como conseqiiencia, argumenta Gramsci, "e depouco valor". Alem de nao possuir relevancia teorica, ternimplicacoes politicas ou eficacia pratica minimas. "Em geral,produz nada mais que sermoes moralisticos e interminaveisquestoes de personalidade" (CP, p. 166). Trata-se de umaconcepgao baseada na "conviccao ferrea de que existem leisobjetivas de desenvolvimento historico semelhantes a leinatural, junto com a crenca em uma teleologia predeterminada,como a da religiao". Nao ha alternativa para esse colapso —que, afirma Gramsci, tern sido incorretamente identificadocom o materialismo historico — a nao ser "a concreta propo-sicao do problema da hegemonia".

Pode-se perceber, do impulse geral desse argumento, quemuitos dos conceitos-chave de Gramsci (por exemplo, oconceito de hegemonia) e abordagens caracteristicas (a abor-dagem pela analise das "relacoes de forcas sociais", porexemplo) eram conscientemente compreendidos como umabarreira contra a tendencia ao reducionismo economico emalgumas versoes do marxismo. Ele juntou a essa critica do'economismo" as tendencias relacionadas ao positivismo, aoempirismo, ao "cientificismo" e ao objetivismo dentro do

305

Page 156: Da Dispora - Stuart Hall

Isso fica bem mais evidence no texto "Os problemas domarxismo", explicitamente escrito como uma critica do"materialismo vulgar" implicito na Teoria do materialismohistorico: um manual de sociologia popular, de Bukharin.Publicado em Moscou em 1921, esse texto passou por muitasreedicoes e era sempre citado como um exemplo de marxismo"ortodoxo" (embora Lenin tenha observado que, infelizmente,Bukharin era "ignorante a respeito da dialetica"). Nas "Notascriticas sobre uma tentativa de sociologia popular", que formaa segunda parte do ensaio "Os problemas do marxismo",Gramsci faz um ataque consistent^ as epistemologias doeconomismo, do positivismo e da falsa busca por garantiascientlficas. Para ele, elas foram falsamente forjadas no modelopositivista de que as leis da sociedade e do desenvolvimentohistorico humano podem ser inferidas diretamente daquiloque os cientistas sociais conceberam (falsaraente, como sabe-mos agora) como a "objetividade" das leis que governamo mundo natural cientifico. Termos como "regularidade","necessidade", "Lei", "determinacao", afirma ele, nao devemser considerados "como uma derivacao da ciencia natural,mas como uma elaboracao dos conceitos originados no terrenoda economia politica". Assim, "o mercado determinado" deverealmente significar "uma determinada relacao das forcassociais em uma estrutura especifica do aparato produtivo",sendo este relacionamento garantido (isto e, feito permanen-temente) por uma "determinada superestrutura politica, morale juridica". O movimento da formulacao de Gramsci, queparte de uma formula positivista analiticamente reduzidapara uma concepcao mais rica e complexa, estruturada naciencia social, e lucido o suficiente para livrar-se dessa substi-tuicao. Tal concepcao fundamenta o argumento resumido deGramsci de que:

A alegacao apresentada como um postulado essencial domaterialismo historico de que cada flutuacao da politica e daideologia pode ser apresentada e exposta como uma expressaoimediata da estrutura (isto &, da base economica) deve sercontestada, em tese, como um infantilismo primitivo e comba-tida na pratica pelo testemunho autentico de Marx, autor deobras concretas, pofiticas e historicas.

306

Essa mudanca de direcao, que Gramsci se esforcou emproduzir dentro do terreno do marxismo, foi alcancada combastante autoconsciencia — sendo decisiva para todo oimpulse de seu pensamento posterior. Sem esse ponto departida teorico, o relacionamento complicado de Gramscicom a tradicao dos estudos marxistas nao pode ser propria-mente definido.

Se Gramsci renunciou ao simplismo do reducionismo, comoentao ele elaborou uma analise mais adequada da formacaosocial? Aqui talvez sejamos auxiliados por um breve desvio,se nos movimentarmos com atencao. Althusser (que foiprofundamente influenciado por Gramsci) e seus colegasfazem uma distincao em Lendo O capital^ entre "modo deproducao" — que se refere as formas basicas de relacaoeconomica que caracterizam uma sociedade, mas que saouma abstracao analitica, ja que nenhuma sociedade podefuncionar apenas com sua economia — e aquilo que elesdenominam "formacao social". Por este termo eles pretendiaminvocar a ideia de que as sociedades sao totalidades comple-xamente estruturadas, com nlveis de articulacao (as instanciaseconomicas, politicas e ideologicas) combinados distintamente;cada combinacao originando uma nova configuracao de forcassociais e dai levando a um tipo distinto de desenvolvimentosocial. Os autores de Lendo O capital viam como caracteris-tica distintiva de uma "formacao social" o fato de que, nela,mais de um modo de producao poderia se associar Emboraisso seja verdade e possa ter conseqiiencias importantes(especialmente para as sociedades pos-coloniais, o que trata-remos mais adiante) este nao e, a meu ver, o ponto maisimportante da distincao entre os dois termos. Nas "formatessociais" lida-se com as sociedades complexamente estrutu-radas, compostas de relates economicas, politicas e ideolo-gicas, cujos niveis de articulacao nao se correspondemsimplesmente ou "refletem" uns aos outros, mas sao — nafeliz metafora de Althusser — "sobredeterminantes" entre si.4

E essa estruturacao complexa dos niveis de articulacao, enao simplesmente a existencia de mais de um modo deProducao, que constitui a diferenca entre o conceito de "modode producao" e a nocao necessariamente mais concreta ehistoricamente especifica de "formacao social".

307

Page 157: Da Dispora - Stuart Hall

Este ultimo e o conceito a que o proprio Gramsci se referia.E isso que ele quis dizer ao afirmar que o relacionamentoentre "estrutura" e "superestruturas", ou a "passagem" de qual-quer movimento historico organico por toda a formacao social,desde a "base" economica ate a esfera das relacdes etico-politicas, situava-se no amago de qualquer analise nao-redu-cionista ou economicista. Propor e resolver essa questaoera conduzir uma analise propriamente fundada sobre acompreensao dos relacionamentos complexos de sobrede-terminacao entre as distintas praticas sociais de qualquerformacao social.

E este protocolo que Gramsci seguiu quando, em "O prin-cipe moderno", esbocou sua forma caracteristica de "analisarsituacoes". Os detalhes sao complexos e suas sutilezas naopodem ser preenchidas aqui, mas vale a pena estabeleceros contornos gerais, mesmo que para propiciar uma com-paragao com uma abordagem mais "economicista" ou redu-cionista. Ele considerou esta uma "exposicao elementar daciencia e da arte politica — compreendida como um corpode regras praticas de pesquisa e de observances detalhadas,que servem para despertar o interesse na realidade efetiva epara estimular discernimentos politicos mais rigorosos evigorosos" — uma discussao, acrescentava ele, que deve terum carater estrategico

Primeiramente, argumentava ele, deve-se compreender aestrutura fundamental — as relacoes objetivas — dentro dasociedade ou "o grau de desenvolvimento das forcas produ-tivas", pois estas estabelecem as condicoes e os limites maisbasicos para toda a forma de desenvolvimento historico.Daqui emergem algumas das principals tendencias que podemser favoraveis a esta ou aquela linha de desenvolvimento. Oerro do reducionismo e entao traduzir essas tendencias elimites imediatamente em termos de efeitos politicos e ideolo-gicos absolutamente determinados; ou, entao, abstrai-los emtermos de alguma "lei ferrea da necessidade". De fato, elestraduzem e determinam apenas na medida em que definem oterreno sobre o qual as forcas historicas se movem — elesdefinem o horizonte de possibilidades. Mas nao podem, nemem primeira nem em ultima instancia, determinar inteiramenteo conteudo das lutas politicas e economicas, muito menosfixar objetivamente ou garantir os resultados dessas lutas.

308

O proximo passo na analise e distinguir entre os movimentoshistoricos "organicos", destinados a penetrar a sociedadeprofundamente e ter uma longa duracao, e os "movimentosmais ocasionais, imediatos, quase acidentais". Sobre isso,Gramsci nos lembra que a "crise", se for organica, podedurar decadas. Nao e um fenomeno estatico, mas e algo mar-cado por constantes movimentos, polemicas, contestacoes etc.que representam uma tentativa, empreendida por diversoslados, de superar ou resolver a crise e faze-lo em termos quefavorecam sua hegemonia a longo prazo. O risco teorico,Gramsci afirma, esta em "apresentar causas como algo queopera imediatamente, quando de fato so operam indireta-mente, ou em afirmar que as causas imediatas sao as unicaseficazes". O primeiro leva a um excesso de economismo; osegundo a um excesso de ideologismo. (Gramsci preocu-pava-se, especialmente nos momentos de derrota, com aoscilacao fatal entre esses dois extremos, que na realidadesao a imagem invertida um do outro). Longe de haver qual-quer garantia de que alguma lei da necessidade inevitavel-mente convertera as causas economicas em efeitos politicosimediatos, Gramsci insistia que a analise so prospera e setorna "verdadeira" se essas causas subjacentes se tornaremuma nova realidade. A substituicao de um tempo condicionalpor uma certeza positivista e crucial.

Em seguida, Gramsci insistia no fato de que a duracao e acomplexidade das crises nao podem ser mecanicamente pre-vistas, mas que estas se desenvolvem por periodos historicosmais longos; movem-se entre periodos de relativa "estabili-dade" e periodos de mudanca rapida e convulsiva. Conse-quentemente, a periodiza$ao se torna um aspecto-chave daanalise. Ela se compara a preocupa^ao anterior com a espe-cificidade historica. "E precisamente o estudo desses 'intervales'variados de freqiiencia que nos possibilita reconstruir asrelacoes, por um lado, entre a estrutura e a superestrutura e,por outro, entre o desenvolvimento de um movimento organicoe o movimento conjuntural em uma estrutura." Nao ha nadade mecanico ou prescritivo, para Gramsci, nesse "estudo".

Havendo estabelecido dessa forma a base de uma estruturadinamica de analise historica, Gramsci volta-se para a analisedos movimentos das forcas historicas — as "relacoes de

309

Page 158: Da Dispora - Stuart Hall

forca" — que constituent o terreno concrete da luta e dodesenvolvimento politico e social. Aqui ele introduz a ideiafundamental de que o que se busca nao e a vitoria absolutade um lado sobre o outro, nem a total incorporacao de umconjunto de forcas em outra. fi, antes, a analise de umaquestao relacional — isto e, uma questao a ser resolvida emtermos de relacao, utilizando-se a id£ia de "equilibrio instavel"ou "o processo continue de formacao e de superacao deequilibrios instaveis". A questao crucial sao "as relacoes deforcas favordveis ou desfavordveis a esta ou aquela ten-dencia" (italico meu). A enfase sobre as "relacoes" e o"equilibrio instavel" nos alerta para o fato de que as forcassociais suplantadas em qualquer periodo historico particularnao desaparecem do terreno da luta; nem a luta em taiscircunstancias e suspensa. Por exemplo, a ideia da vitoria"absoluta" e total da burguesia sobre as classes trabalhadorasou a total incorporacao da classe trabalhadora ao projetoburgues e totalmente estranha a definicao de hegemonia deGramsci — embora ambas sejam frequentemente confun-didas nos comentarios academicos. E sempre a tendenciado equilibrio nas relacoes de forca o que importa.

Em seguida, Gramsci diferencia as "relacoes de forca"em seus distintos momentos. Ele pressupoe que nenhumaevolufdo teleologica exista necessariamente entre essesmomentos. O primeiro tern a ver com a analise das condicoesobjetivas que situam e posicionam as distintas forcas sociais.O segundo relaciona-se aos momentos politicos — o "graude homogeneidade, autoconsciencia e organizacao alcan-cado pelas varias classes sociais" (CP, p. 181). O importanteaqui e que a chamada "unidade de classe" nunca e pressu-posta, a priori. Compreende-se que as classes, ao mesmotempo em que compartilham certas condicoes comuns de exis-tencia, tambem sao perpassadas por conflitos de interesses,historicamente segmentadas e fragmentadas no curso realda formacao historica. Assim a "unidade" das classes e algonecessariamente complexo e deve ser produzida — cons-truida, criada — como resultado de praticas economicas,politicas e ideo!6gicas especificas. Nunca deve ser tomadacomo algo automatic© ou "ja dado". Junto com essa histori-zacao radical da concepcao automatica das classes, alojada

310

no cerne do marxismo fundamentalista, Gramsci produzoutras elaboracoes sobre a distincao de Marx entre "a classeem si" e "a classe por si". Ele observa os diferentes estagiosnos quais a consciencia, a organizacao e a unidade de classe

sob condicoes favoraveis — podem se desenvolver. Ha oestagio do "corporativismo economico", em que os grupos

rofissionais ou ocupacionais reconhecem seus interessesbasicos comuns, mas nao tern consciencia das solidariedadesde classe mais amplas. Depois ha o momento do "corporati-vismo de classe", em que a solidariedade de interesses declasse se desenvolve, mas somente no campo economico.Finalmente, ha o momento da "hegemonia", que transcende olimite corporative da solidariedade economica pura, englobaos interesses de outros grupos subordinados, e comeca a "sepropagar pela sociedade", promovendo a unidade intelectual,moral, economica e politica e "propondo tambem as questoesem torno das quais as lutas acontecem ... criando, dessaforma, a hegemonia de um grupo social principal sobre umaserie de grupos subordinados". E esse processo de coorde-nacao dos interesses de um grupo dominante aos interessesgerais dos outros grupos e a vida do estado como um todoque constitui a "hegemonia" de um bloco historico particular(CP, p. 182). E somente em momentos como esse da unidadedo "nacional popular" que a formacao daquilo que ele deno-mina "vontade coletiva" se torna possivel.

Gramsci nos alerta, contudo, que mesmo esse grau extra-ordinario de unidade organica nao garante o resultado daslutas especificas, que podem ser perdidas ou ganhas depen-dendo do resultado da questao tatica decisiva das relacoesde forca militares e politico-militares. Entretanto, ele insisteque "a politica deve ter prioridade sobre o aspecto militar esomente ela cria as possibilidades de manobra e movimento"CGP, -P- 232).

Tres pontos devem ser particularmente observados afespeito dessa formulacao. Primeiramente, "hegemonia" e ummomento" historicamente muito especifico e temporario da

v^da de uma sociedade. Rararnente esse tipo de unidade podes^r alcancado, permitindo a sociedade estabelecer para simesma uma agenda historica inteiramente nova, sob a lide-ranca de uma formacao especifica ou de uma constelacao de

311

Page 159: Da Dispora - Stuart Hall

forcas sociais. Tais periodos de "estabilidade" talvez naodurem para sempre. Nao ha nada de automatico neles. Ternque ser ativamente construidos e positivamente mantidos. Ascrises marcam o inicio de sua desintegracao. Em segundolugar, devemos observar o carater multidimensional queenvolve diversas arenas da hegemonia. Ela nao pode ser cons-truida ou sustentada sobre uma unica frente de luta (porexemplo, a economica). Ela represents o grau de autoridadeexercido de uma s6 vez sobre uma serie de "posicoes". Odorrrinio nao 6 simplesmente imposto, nem possui um caraterdominador. Efetivamente, resulta da conquista de um grausubstancial de consentimento popular. Representa, portanto,o estabelecimento de uma enorme capacidade de autoridadesocial e moral, nao dirigida simplesmente aos partidarios ime-diatos, mas a sociedade como um todo. Ii essa "autoridade"bem como o alcance e a diversidade dos locals sobre os quaisa "lideranca" e exercida que possibilitam a "propagacao"temporaria de uma vontade coletiva intelectual, moral, poll-tica e economica na sociedade- Em terceiro lugar, o que"lidera" em um periodo de hegemonia nao 6 mais a "classedominante" da linguagem tradicional, mas um bloco histo-rico. Esse termo se refere decisivamente a "classe" como umnivel determinante da analise; mas nao traduz todas as classesdiretamente sobre o palco politico-ideologico como atoreshistoricos unificados. Os "elementos de lideranca" em umbloco historico podem ser apenas uma fracao da classeeconomica dominante — por exemplo, o capital financeiro,em vez do capital industrial; o capital nacional, em vez docapital internacional. Junto com estes, dentro do "bloco",estarao os estratos das classes subalternas e dominadas queforam conquistados atraves de concessoes e compromissosespecificos e que formam parte da constelacao social, masocupando uma funcao subordinada. A "conquista" dessessetores resulta de "aliancas universalizantes e expansivas" queconsolidam o bloco historico sob uma lideranca particular.Cada formacao hegemonica tera, portanto, sua propria confi-guracao e composicao social. Esta e uma forma inteiramentedistinta de conceber aquilo que frequentemente e referido, deforma vaga e incorreta, como "a classe dominante".

Naturalmente, Gramsci nao criou o termo hegemoniaLenin utilizou-o em um sentido analftico para se referir a

312

lideranca que o proletariado russo deveria estabelecer sobreos camponeses nas lutas pela fundacao de um estado socia-lista. Isto e algo interessante. Uma das questoes-chavenropostas pelo estudo das sociedades em desenvolvimento,ou seja, aquelas que nao passaram pelo caminho "classico"de desenvolvimento para o capitalismo, que Marx tomou comocaso paradigmatico no Capital (ou seja, o exemplo ingles), ea questao do equilibrio e das relacoes entre as classes sociaisna luta pelo desenvolvimento nacional e economico; e, alemdisso, a relativa insignificancia do proletariado industrial,definido de forma estreita, em sociedades caracterizadas porum nivel relativamente baixo de desenvolvimento industrial,e, acima de tudo, ate que ponto a classe camponesa pode serum elemento de lideranga nas lutas que fundam o estadonacional e mesmo, em alguns casos (a China e um exemplonotorio, mas Cuba e Vietna sao tambem exemplos significa-tivos), a classe revolucionaria dirigente. Foi nesse tipo decontexto que Gramsci empregou pela primeira vez o termohegemonia. Em suas "Notas sobre a questao do Sul" de 1920,ele afirma que o proletariado na Italia so poderia se tornar aclasse "dirigente" se "conseguisse criar um sistema de aliancasque permitisse a ele mobilizar a maioria da populacao traba-lhadora contra o capitalismo e o estado burgues ... [o quel e omesmo que dizer, se ele conseguisse obter o amplo consenti-mento das massas camponesas".

Na verdade, esta ja e uma formulacao teoricamente rica ecomplexa. Implica que a forca social e politica que se tornadecisiva em um momento de crise organica nao sera compostapor uma classe unica e homogenea, mas tera uma compo-sic.ao social complexa. Em segundo lugar, fica implicito quesua base de unidade nao sera automatica, dada a sua posicaono modo de produgao economico, mas tera que ser um"sistema de aliancas". Em terceiro lugar, embora essa forcapolitica e social tenha raizes na divisao essencial das classesna sociedade, as formas concretas de luta politica deveraopossuir um carater social mais amplo — que nao divida asociedade simplesmente em "classe contra classe", mas que apolarize [p. 425 do original] em uma frente mais ampla deantagonismo ("a maioria da populacao trabalhadora"): porexemplo, entre todas as classes populares, de um lado, e as

313

Page 160: Da Dispora - Stuart Hall

que representam os interesses do capital e o bloco do poderem torno do Esfcido, de outro. De fato, nas lutas nacionaise etnicas do mundo moderno, o campo concreto de lutafreqiientemente se polariza dessa forma, mais complexa ediferenciada. A dificuldade e que ela continua a ser descrita,teoricamente, em termos que reduzem a complexidade desua composicao social verdadeira aos termos descritivos maissimples de uma luta entre dois blocos de classe, aparente-mente simples e homogeneos. Alem disso, a reconceituacaode Gramsci coloca definitivamente na agenda certas questoesestrategicas criticas, como as condicoes nas quais uma classecomo a camponesa poderia veneer uma luta nacional, naopela coercao, mas pela "conquista do consentimento".

No decorrer de seus ultimos escritos, Gramsci continuoua expandir ainda mais essa concepcao de hegemonia baseadaessencialmente na "alianca de classe". Primeiramente, a "hege-monia" se torna um termo geral, que pode ser aplicado asaliancas de todas as classes; aplicado analiticamente asformacoes de todos os blocos de lideranca historica, naosomente a estrategia do proletariado. Dessa forma, ele con-verte o conceito em um termo analitico mais gerai. Sua aplica-bilidade nessa forma mais geral e obvia. For exemplo, aforma como na Africa do Sul o estado e sustentado por aliancasentre os interesses da classe branca governante e os interessesdos trabalhadores brancos contra os negros; ou a importanciana politica sul-africana das tentativas de "conquistar o consen-timento" de certas classes e grupos subalternos — por exemplo,as camadas de cor ou os negros "tribais" — a fim de forjaraliancas contra as massas de negros rurais e industrials; ou ocanater de classe "misturada" das lutas pela independencianacional em sociedades pos-coloniais em desenvolvimento— essas e diversas outras situacoes historicas sao significativa-mente esclarecidas pelo desenvolvimento desse conceito.

O segundo desenvolvimento e a diferenca que Gramsciarticula entre uma classe que "domina" e outra que "dirige".Dominio e coercao podem manter a autoridade de uma classeespecifica sobre a sociedade. Mas seu "alcance" 6 limitado.Ela precisa recorrer continuamente aos meios coercitivos, emvez de conquistar apoio. Por essa razao, ela nao e capaz depromover a participacao positiva dos distintos setores da

314

sociedade em um projeto historico de transformacao do estadoou de renovacao da sociedade. A "direcao", por outro lado,tarnbem possui seu aspecto "coercitivo". Porem, ela e "condu-zida" pela conquista do consentimento, pela consideracaodos interesses dos subordinados, e pela tentativa de se tornarpopular. Para Gramsci nao existe um caso de coercao/consen-timento puro — somente diferentes combinacoes das duasdimensoes. A hegemonia nao e exercida nos campos eco-nomico e administrativo apenas, mas engloba os dominioscriticos da lideranca cultural, moral, etica e intelectual. Esomente sob essas condicoes que um "projeto" historico delongo prazo — por exemplo, de modernizar a sociedade, deaumentar todo o nivel de desempenho da sociedade ou detransformar a base da politica nacional — pode ser efetiva-mente colocado na agenda historica. Pode-se perceber comisso que o conceito de "hegemonia" e expandido em Gramscipelo uso estrategico de uma serie de distincoes: por exemplo,aquelas entre dominacao/dire^ao, coercao/consentimento,economico-corporati vista/moral e intelectual.

Essa expansao e sustentada por outra distincao, baseada emuma das teses historicas fundamentais de Gramsci. Trata-se dadistincao entre estado e sociedade civil. Em seu ensaio "Estadoe sociedade civil", Gramsci elaborou essa distincao de diversasformas. Primeiramente, ele distingue entre dois tipos de luta— a "guerra de manobras", em que tudo se condensa emuma unica frente e um unico momento de luta e ha umaunica ruptura estrategica nas "defesas do inimigo" que, umavez alcancada, possibilita as novas forgas "invadir e obteruma vitoria (estrategica) definitiva". Em segundo lugar, existea "guerra de posicoes", que deve ser conduzida de formademorada, envolvendo varias frentes de luta; onde raramentese consegue abrir um unico caminho que garanta a vitoriadefinitiva na guerra — "num piscar de olhos", como diriaGramsci (CP, p. 233)- O que realmente conta em uma guerrade posicoes nao sao as "trincheiras da linha de frente" doinimigo (para conu'nuar usando a metafora militar), mas "todoo sistema organizacional e industrial do territorio que seestende por tras do exercito em campo" — isto e, toda aestrutura da sociedade, inclusive as estruturas e instituicoesda sociedade civil. Gramsci considerou "1917" como, talvez,

315

Page 161: Da Dispora - Stuart Hall

o ultimo exemplo de estrategia vitoriosa de uma "guerra demanobras": constituiu "uma virada decisiva na historia da artee da. ciencia politica".

Isso juntou-se a uma segunda distincao — entre "Oriente"e "Ocidente". Para Gramsci, estas constituem metaforas dadistincao entre Europa Ocidental e Oriental, e entre o modeloda revolucao russa e as formas de luta politica apropriadasao terreno bem mais arduo das democracias liberals indus-trializadas do "Ocidente". Aqui, Gramsci aborda o tema cri-tico, evitado por tanto tempo por muitos dos estudiososmarxistas, da inexistencia no "Ocidente" de condicoes poli-ticas capazes de se igualar ou corresponder aquelas quepossibilitaram os eventos de 1917 na Russia — urn temacentral, ja que, apesar dessas diferencas radicais (e conse-quentemente, da derrota das revolucoes proletarias do tipoclassico no "Ocidente"), os marxistas permanecem obce-cados pelo modelo de revolucao e politica do "Palacio deInverno". Portanto, Gramsci estabelece uma distincao analiticaimportante entre a Russia pre-revolucionaria, com sua moder-nizacao longamente protelada, sua burocracia e seus aparatosde estado hipertrofiados, sua sociedade civil relativamentesubdesenvolvida e seu baixo nivel de desenvolvimento capi-talista; e, por outro lado, "o Ocidente", com suas formas dedemocracia de massa, sua complexa sociedade civil, e aconsolidacao do consentimento das massas, atrave~s da demo-cracia politica, em uma base de estado mais consensual:

Na Russia, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva einconsistente; no Ocidente, havia uma relacao adequadaentre o Estado e a sociedade civil, e quando o Estado tremia,a forte estrutura da sociedade civil se revelava imediatamente.O Estado era apenas uma vala externa, atras da qual se erigiaum poderoso sistema de fortalezas e barricadas; mais ou menosnumerosas entre um estado e outro ... o que precisamentenecessitava de um reconhecimento acurado de cada pals. (CPp. 237-238)

Gramsci nao apenas aponta uma diferenca de especifici-dade historica. Ele descreve tambe~m uma transigao historica.Como esclarece o ensaio "Estado e sociedade civil", e evidenteque ele preve a substituifao da "guerra de posicoes" pela

316

"guerra de manobras", na medida em que, de um pais aooutro, o "Ocidente" se torna cada vez mais um campo poli-tico moderno. (Aqui o "Ocidente" deixa de ser uma identifi-cacao puramente geografica e passa a representar um novoterreno da politica, criado por formas emergentes de estado esociedade civil e relacoes novas e mais complexas entre eles.)Nessas sociedades mais avancadas, "onde a sociedade civiltornou-se uma estrutura muito complexa ... resistente as'incursoes' catastroficas dos elementos economicos imediatos... as superestruturas da sociedade civil sao como os sistemasde trincheiras das guerras modernas". Um tipo distinto deestrategia politica e apropriado a esse novo terreno. "A guerrade manobras [e] reduzida a uma funcao mais tatica do queestrate~gica", ultrapassando-se o "ataque frontal" para se chegara uma "guerra de posicoes" que requer "uma concentracaode hegemonia sem precedentes" e e "concentrada, ardua edemanda uma capacidade excepcional de paciencia e dacriatividade", pois uma vez ganha, ela e "definitiva" (.CP,p. 238-239).

Gramsci baseia historicamente essa "transicao de umaforma de politica para a outra". Ela ocorre no "Ocidente"apos 1870 e se identifica com a "expansao colonial da Europa",com a emergencia da democracia de massa moderna, com amaior complexidade de funcao e organizacao do estado euma elaboracao inedita das estruturas e processes de "hege-monia civil". O que Gramsci aponta aqui e, em parte, a diver-sificacao dos antagonismos sociais, a "dispersao" do poder,que ocorre nas sociedades em que a hegemonia nao sesustenta exclusivamente sobre a instrumentalidade impostado estado, mas se funda nas relacoes e instituicoes da socie-dade civil. Nessas sociedades, as associacoes voluntarias,as relacoes e instituicoes da sociedade civil — educacao,familia, igrejas e vida religiosa, organizacoes culturais, aschamadas relacoes privadas, as identidades de genero, sexo eetnia etc. — se tornam, efetivamente, "para a arte da politica... as 'trincheiras' e fortificacoes permanentes do front emuma guerra de posicoes: elas tornam meramente 'parciais' oselementos que antes eram 'o todo' da guerra" (CP, p. 243).

Subjacente a tudo isso existe, portanto, um esforco maisprofundo de redefinicao teorica. Gramsci transforma progres-sivamente a definicao limitada do estado, caracteristica de

317

Page 162: Da Dispora - Stuart Hall

algumas versoes do marxismo, que o concebem como algoessencialmente redutivel ao instrumento coercitivo da classedominante, cujo carater exclusive de classe so pode ser trans-formado ao ser "esmagado" de um unico golpe. Aos poucosGramsci vai enfatizando nao apenas a complexidade daformacao da sociedade civil moderna, mas tambem o paralelodesenvolvimento da complexidade do estado moderno. OEstado nao e mais concebido simplesmente como um aparatoadministrativo ou coercitivo — e tambem "educative e for-mador". £ o ponto a partir do qual a hegemonia da sociedadecomo um todo e exercida em ultima instancia (embora naoseja o unico local onde a hegemonia e construida). E o pontode condensa£ao — nao porque todas as formas de dominiocoercitivo se irradiem necessariamente de seus aparatos, masporque, em sua estrutura contraditoria, ele condensa umavariedade de relacoes e praticas, formando um "sistema deregras" definido. For essa razao, ele e o sitio de conformacao(isto e, arregimentacao) ou "adaptacao da civilizacao e damoralidade das massas mais amplas as necessidades do desen-volvimento continuo do aparato economico de producao".

Portanto, argumenta ele, cada estado "e etico na medidaem que uma de suas funcoes principais e elevar a grandemassa da populacao a um nivel (ou tipo) cultural e moral queatenda as necessidades de desenvolvimento das forcas produ-tivas e, dai, aos interesses da classe dominante" (6P, p. 258).Observe-se como aqui Gramsci preve novas dimensoes depoder e politica, novas areas de antagonismo e luta — aetica, a cultural, a moral. Em ultima instancia, ele retornatambem as questoes mais "tradicionais" — "as necessidadesde desenvolvimento das forcas produtivas", "os interesses daclasse dominante"; mas nao de uma forma imediata ou redu-tiva. Estes so podem ser abordados indiretamente, atraves deuma serie de deslocamentos e intermediacoes; isto e, atravesda passagem irreversivel "da estrutura para a esfera maiscomplexa das superestruturas...".

E no interior desse quadro que Gramsci elabora sua novaconcepcao de Estado. O Estado moderno exercita a liderancamoral e educativa — ele "planeja, estimula, incita, solicita epune". E o local onde os blocos de forcas sociais que odominam nao apenas justificam e mantem seu dominio, mas

318

conquistam pela lideranca e autoridade o consentirnentoativo daqueles sobre os quais ele governa. Assim, o Estadoexerce uma funcao central na construcao da hegemonia.Nessa leitura, ele se torna nao uma coisa a ser apoderada,derrubada ou "esmagada" de um unico golpe, mas umaformafao complexa nas sociedades modernas, que deve setornar o foco de uma variedade de estrategias e lutas, pois euma arena de distintas contestacoes sociais.

A essa altura deve-se ter uma ideia mais clara de comoessas distincoes e desenvolvimentos no pensamento deGramsci nutrem e enriquecem o conceito basico de "hege-monia". As formulacoes de Gramsci sobre o estado e a socie-dade civil variam dentro de sua obra e tern causado uma certaconfusao (Ver Perry Anderson. "As antinomias de AntonioGramsci").5 Mas ha pouca duvida sobre o impulso subjacentede seu pensamento acerca dessa questao. Ele aponta irrevo-gavelmente para a crescente complexidade das relacoes nassociedades modernas entre o estado e a sociedade civil.Juntos, eles formam um "sistema" complexo que deve serobjeto de estrategias politicas variadas, conduzidas em diversasfrentes simultaneamente. A utilizacao desse conceito de Estadotransforma totalmente, por exemplo, grande parte da litera-tura sobre o chamado "estado pos-colonial", que tern semprepressuposto um modelo de poder de Estado instrumental,simples e dominador.

Nesse contexto, a distincao "Ocidente/Oriente" de Gramscinao deve ser interpretada literalmente. Muitas das chamadassociedades "em desenvolvimento" ja possuem regimes politicosdemocraticos complexos (ou seja, nos termos de Gramsci,elas pertencem ao "Ocidente"). Em outras sociedades, o Estadoabsorveu algumas das responsabilidades mais amplas pelaeducacao e um papel de "direcao" que, nas democraciasliberais industrializadas do Ocidente, cabem a sociedadecivil. A questao, portanto, e nao aplicar literalmente ou meca-nicamente a distincao de Gramsci, mas utilizar seus insightspara esclarecer as complexidades instaveis dos relacionamentosentre Estado/sociedade civil no mundo moderno e a mudancadecisiva do carater predominante das lutas politicas estrate-gicas — que essencialmente incluem tanto a sociedade civilcomo o estado, enquanto arenas integrals de luta — causadas

319

Page 163: Da Dispora - Stuart Hall

por essa transformacao hist6rica. Em um dado momento(e estendendo consideravelmente as definicoes), Gramsciargumenta que uma concepcao ampliada do Estado deveenglobar "a sociedade politica e a sociedade civil" ou "ahegemonia protegida pela courac.a da coercao" (CPt p. 263).Ele atenta particularmente para as formas como essas dis-tincoes sao articuladas nas distintas sociedades — por exemplo,dentro da "divisao dos poderes" caracteristica dos Estadosdemocraticos parlamentares liberals em contraste com asesferas fundidas dos estados fascistas. Em outro ponto, eleinsiste nas funcoes eticas e culturais do Estado — elevar "asgrandes massas populacionais a um nivel moral e culturalespecifico"; ou nas "func.6es educativas de instituicoes cri-ticas como a escola (uma "funcao educativa positiva") ou dostribunals (uma "funcao educativa negativa e repressora"). Taisenfases incluem na conceituacao tradicional de estado e poli-tica uma diversidade de novas instituicoes e arenas de luta.Elas as constituent como centres estrategicos e especificos deluta. Conseqiientemente, tem-se a multiplica^ao e a prolife-racao das varias frentes politicas e a diferenciacao dos tiposde antagonismo social. As frentes de luta sao os varies locaisde antagonismo politico e social, e constituem os objetos dapolitica moderna, quando esta e compreendida como um tipode "guerra de posicoes". A enfase tradicional — na qual aslutas, por exemplo, em torno das politicas educacionais,culturais ou sexuais, das instituicoes da sociedade civil, comoa familia, as organizacoes sociais tradicionais, as instituicoesculturais e etnicas e etc., sao todas elas subordinadas e redu-zidas a uma luta industrial, concentrada em torno do local detrabalho, e a uma simples escolha entre as formas de politicasindical e insurgente ou parlamentar — e aqui questionadae decisivamente derrubada. O impacto sobre a propriaconcepcao de politica e quase eletrizante.

Entre os muitos outros topicos interessantes ou temas naobra de Gramsci que poderiamos considerar, escolho, final-mente, seu trabalho seminal sobre a ideologia, a cultura, afuncao do intelectual e o carater daquilo que ele denomina"nacional-popular". Gramsci adota aquilo que a primeiravista pode parecer uma definigao um tanto tradicional deideologia, uma "concepcao de mundo, qualquer filosofia, que

320

se torne um movimento cultural, uma 'religiao', uma 'fe', queproduza um tipo de atividade ou vontade pratica na qual estacontida uma filosofia enquanto 'premissa' teorica." "Pode-sedizer", acrescenta ele, "ideologia ... sob a condicao de que apalavra seja usada no melhor sentido de uma concepcao demundo que se manifesta implicitamente na arte, na lei, naatividade economica e em todas as manifestacoes da vidaindividual e coletiva." Isto e seguido por uma clara tentativade formular o problema abordado pela ideologia em termosde sua funcao social: "O problema e preservar a unidadeideologica de todo o bloco social que aquela ideologia aglu-tina e unifica." (CP, p. 328). Essa definicao nao e tao simplesquanto parece, pois ela pressupoe o elo essencial entre onucleo filosofico ou premissa no centre de qualquer ideo-logia ou concepcao de mundo e a necessaria elaboracaodaquela concepgao em formas praticas e populares de cons-ciencia, que afetam as massas da sociedade, sob a forma deum movimento cultural, uma tendencia politica, uma fe oureligiao. Gramsci nunca se preocupa apenas com a essenciafilosofica de uma ideologia; ele sempre aborda as ideologiasorgdnicas, que sao organicas porque tocam o senso praticocomum e cotidiano e "organizam as massas e criam o terrenosobre o qual os homens se movem, adquirem consciencia desua posicao, luta etc."

Esta e a base da distincao critica de Gramsci entre "filo-sofia" e "senso comum". A ideologia e composta de dois"niveis" distintos. A coerencia de uma ideologia depende desua elaboracao filosofica especializada. Mas essa coerenciaformal nao pode garantir sua eficacia historica organica. Issoso pode ser alcangado quando e onde as correntes filosoficasentram, modificam e transformam a consciencia pratica coti-diana ou o pensamento popular das massas. Isto e o que elechama de "senso comum". O "senso comum" nao e coerente:e geralmente "desarticulado e episodico", fragmentario econtraditorio. Nele os traces e "depositos estratificados" desistemas filosoficos mais coerentes se sedimentam com otempo sem deixar qualquer inventario claro. Ele se representacomo "a sabedoria tradicional ou a verdade dos seculos", masde fato, nada mais e que o produto da historia, "parte doprocesso historico". Por que entao o senso comum e tao

321

Page 164: Da Dispora - Stuart Hall

importante? Porque constitui o terreno das concepcoes ecategorias sobre o qual a consciencia pratica das massasrealmente se forma. £ o terreno ja formado e nao questionadosobre o qual as ideologias e filosofias mais coerentes devemdisputar o domfnio; o solo que novas concepcoes de mundodevem considerar, contestar e transformar, para moldaremas concepcoes de mundo das massas e, dessa forma, setornarem historicamente efetivas:

Cada corrente historica deixa para tras um sedimento de"senso comum"; este e o documento de sua eficacia hist6rica.O senso comum nao e rigido ou imovel, mas se transformacontinuamente, se enriquece com ideias cientificas e opinioesfiloscjficas que se infiltram na vida comum. O senso comumcria o folclore do futuro, que e uma fase relativamente rigidado conhecimento popular num dado local e tempo (CP, p. 362,nota 5)

O que distingue o tratamento dado por Gramsci a ideologiae a preocupacao que estrutura o pensamento popular. Assim,ele insiste que todos somos filosofos ou intelectuais, na medidaem que pensamos, pois todo pensamento, acao e linguagemsao reflexives, contem uma linha consciente de conduta morale, dessa forma, incluem uma concepcao particular de mundo(embora nem todos exercam a funcao especializada do"intelectual").

Alem disso, uma classe sempre tera sua propria com-preensao espontanea, instintiva, vivida, porem nao coerenteou filosoficamente elaborada, de suas condicoes de vida edos limites e formas de exploracao aos quais ela t comumentesubmetida. Gramsci descreveu isto como o seu "bom senso".Mas e sempre necessario um trabalho ulterior de educacaopolitica e politico-cultural para renovar e esclarecer essasconstrucoes do pensamento popular — "o senso comum" —em uma teoria politica ou corrente filosofica mais coerentes.Essa "elevacao do pensamento popular" e parte inerente doprocesso pelo qual a vontade coletiva e construida, e requerum amplo trabalho de organizacao intelectual — uma parteessencial de qualquer estrategia politica hegemonica. Ascrencas populares, a cultura de um povo — afirma Gramsci— nao sao arenas de luta que podem ser deixadas a propriamerce. Elas sao "elas mesmas forcas materiais" (C!P, p. 165).

322

Assim, e necessario que haja uma ampla luta cultural eideologica para efetuar a unidade intelectual e etica, essenciala hegemonia: uma luta que toma a forma de "uma luta dehegemonias politicas e de direcoes opostas, primeiro no campoetico e, depois, naquele da politica propriamente dita" (CP,p. 333)- Isso tem implicates diretas sobre o tipo de lutasocial que identificamos com os movimentos nacionais, anti-coloniais ou anti-racistas. Durante a aplicacao dessas ideias,Gramsci nunca se mostra ingenuamente "progressista" emsua abordagem. Por exemplo, ele reconhece, no caso italiano,a ausencia de uma cultura nacional genuinamente popularcapaz de fornecer a base para a formacao de uma vontadepopular coletiva. Muito do seu trabalho sobre a cultura, sobrea literatura popular e a religiao explora o terreno potenciale as tendencias na vida e sociedade italianas que podemfornecer a base de um desenvolvimento desse tipo. Ele docu-menta, por exemplo, no caso italiano, a capacidade que ocatolicismo popular tem de se tornar (e tem se tornado) umagenuina "forca popular", conferindo-lhe uma importancia unicana formacao das concepcoes tradicionais das classes popu-lares. Ele atribui isso a atencao escrupulosa do catolicismo aorganizacao das ideias — especialmente ao firmar a relacaoentre o pensamento filosofico ou doutrina e a vida popularou o senso comum. Gramsci rejeita qualquer nocao de que asideias se movimentam e as ideologias se desenvolvem espon-taneamente e sem direcao. Como todas as outras esferas davida civil, a religiao requer organizacao: ela possui seuslocais especificos de desenvolvimento, seus processes espe-cificos de transformacao, suas praticas especificas de luta. "Arelacao entre o senso comum e o nivel maximo da filosofia",afirma ele, "e garantida pela 'politica'." (CP, p. 331). As grandesagendas nesse processo sao, naturalmente, as instituicoesculturais, educacionais e religiosas, a familia e as associatesvoluritarias; mas tambem, os partidos politicos, que tambemsao centres de formacao ideologica e cultural. Os agentesprincipals sao os intelectuais que tem uma responsabilidadeespecial na circulacao e no desenvolvimento da cultura e daideologia, e que se alinham as disposicoes existentes dasforcas sociais e intelectuais (os intelectuais "tradicionais") ouse alinham as forcas populares emergentes e buscam elaborarnovas correntes de ideias (os intelectuais "organicos").

323

Page 165: Da Dispora - Stuart Hall

Gramsci discorre longamente sobre a funcao crucial, no casoitaliano, dos intelectuais tradicionais que se alinham aosempreendimentos classicos, academicos e eclesiasticos, e arelativa fraqueza do estrato intelectual mais emergente.

O pensamento de Gramsci a esse respeito engloba asformas novas e radicals de conceituar os sujeitos da ideo-logia, que se tornaram objeto de uma consideravel teorizacaona contemporaneidade. Ele recusa inteiramente qualquer ideiade um sujeito ideologico unificado e predeterminado — porexemplo, o proletario com seus pensamentos revolucionarios"corretos" ou os negros com sua consciencia geral anti-racista ja garantida. Reconhece a pluralidade dos eus e iden-tidades que compoem o chamado "sujeito" do pensamento.Argumenta que a natureza multifacetada da consciencia nao€ um fenomeno individual, mas coletivo, uma conseqiienciado relacionamento entre "o eu" e os discursos ideologicosque compoem o terreno cultural da sociedade. "A personali-dade e estranhamente composita", observa ele. Ela contem"elementos e principios da Idade da Pedra e principios deuma ciencia mais avancada, preconceitos de todas as fasespassadas da historia ... e intuicoes de uma filosofia futura..."(CP, p. 324). Gramsci chama a atencao para a contradicao naconsciencia entre a concepcao de mundo que se manifesta,mesmo que momentaneamente, na acao, e aquelas con-cepcoes que sao afirmadas verbalmente ou no pensamento.Essa concepcao complexa, fragmentaria e contraditoria deconsciencia representa um avanco consideravel da expli-cacao pela via da "falsa consciencia", mais tradicional nateorizacao marxista, mas que e uma explicacao que dependedo auto-engano e que ele corretamente considera comoinadequado. O ataque implicito de Gramsci a concepcaotradicional do sujeito ideologico de classe "ja dado" e unifi-cado, que se situa no centre de tanta teorizacao marxistatradicional sobre o assunto, se iguala, em importancia, aoefetivo desmonte do estado operado pelo proprio Gramsci,anteriormente comentado.

Ao reconhecer que as questoes ideologicas sao semprecoletivas e socials, e nao individuals, Gramsci explicitamentereconhece a necessaria complexidade e o carater interdiscur-sivo do campo ideologico. Nao existe qualquer "ideologia

324

dominante" unificada e coerente que permeie tudo. Gramscineste sentido nao corrobora aquilo que Abercrombie denomina"a tese da ideologia dominante".6 Ele nao propoe a ideia daincorporacao total de um grupo na ideologia de outro. Ainclusao de Gramsci na categoria de pensadores que defendemessa ideia me parece profundamente enganosa. "Varies sis-temas e correntes de pensamento filosofico coexistem." Oobjeto da analise nao e, portanto, o fluxo unico das "ideiasdominantes" no qua! tudo e todos tern que ser absorvidos,mas a analise da ideologia como um terreno diferenciado,das distintas correntes discursivas, de seus pontos de juncao eruptura e das relacoes de poder entre elas: em suma, umcomplexo ou conjunto ideologico ou formafao discursiva.A questao e "como essas correntes ideologicas sao difundidase por que, no processo de difusao, elas sao fraturadas emdeterminadas linhas e em certas direcoes?"

A meu ver, uma deducao logica dessa linha de argumen-tacao e que, embora o campo ideologico esteja sempre, naopiniao de Gramsci, articulado as posicoes sociais e poli-ticas, a forma e a estrutura dessas correntes ideologicas naorefletem, nao se encaixam, nem repetem precisamente a estru-tura de classe da sociedade. Tampouco podem ser elas redu-zidas a seu conteudo economico ou funcao. As ideias, eleargumenta, "tern um centre de formacao, de irradiacao, dedisseminacao, de persuasao..." (CP, p. 192). Elas nao "nascemespontaneamente" em cada cerebro individual. Seu caraternao e psicologico nem moralista, mas "estrutural e epistemo-logico". Elas se sustentam e se transformam em sua materiali-dade dentro das instituicoes da sociedade civil e do Estado.Consequentemente, as ideologias nao sao transformadas oualteradas pela substituicao de uma concepcao de mundointeira, ja formada, por outra, mas pela "renovacao critica deuma atividade ja existente". O carater mulu'enfatico e interdis-cursivo do campo ideologico e explicitamente reconhecidopor Gramsci quando, por exemplo, ele descreve como umavelha concepcao de mundo e gradualmente deslocada poroutro modo de pensamento e internamente retrabalhada etransformada:

325

Page 166: Da Dispora - Stuart Hall

O que importa e a critica a qual esse complexo ideologicoe submetido ... Isso possibilita o processo de diferenciac.aoe mudanca no peso relative que os elementos das velhas ideo-logias possuiam ... o que era antes secundario e subordinado... torna-se o nucleo de um novo complexo ideologico eteorico. O velho coletivo se dissolvera em seus elementoscontraditorios, uma vez que os subordinados se desenvolvemsocialmente.

Esta e uma forma inteiramente original e produtiva de seperceber o verdadeiro processo da luta ideologica. Nela, acultura e concebida como o terreno historicamente moldadosobre o qual todas as correntes filosoficas e teoricas operame com a qual elas devem chegar a um acordo. Ele chama aatencao para o carater determinado desse terreno e a comple-xidade dos processos de desconstrucao e reconstrucao, pelosquais os velhos alinhamentos sao derrubados e novos alinha-mentos podem ser efetuados entre os elementos dos distintosdiscursos entre as ideias e as forcas sociais. A mudanca ideo-logica e concebida nao em termos de substituicao ou impo-sicao, mas em termos da articulacao e desarticulacao das ideias.

Ill

Resta-nos, agora, esbocar algumas das formas pelas quaisessa perspectiva gramsciana poderia ser utilizada potencial-mente para transformar e retrabalhar algumas das teorias eparadigmas existentes na analise do racismo e de outrosfenomenos sociais relacionados. Quero enfatizar novamenteque nao se trata de uma simples transferencia das ideias deGramsci para essas questoes. E mais uma questao de projetaruma perspectiva teorica distinta sobre os problemas anali-ticos e teoricos fundamentals que definem o campo.

Primeiramente, gostaria de sublinhar a enfase sobre aespecificidade historica. Sem duvida, o racismo possui carac-teristicas gerais. Mas ainda mais significantes sao as formaspelas quais essas caracteristicas gerais sao modificadas etransformadas pela especificidade historica dos contextos eambientes nos quais elas se tornam ativas. Na analise das

326

formas historicas de racismo, seria melhor operar em umnivel mais concrete e historicizado de abstracao (isto e, nao oracismo em geral, mas os racismos). Mesmo no caso limitadoque eu conheco melhor (isto e, a Gra-Bretanha), eu diria quesao maiores e mais significativas as diferencas do que assemelhancas entre o racismo britanico no auge do periodoimperial e o racismo que caracteriza a formacao social brita-nica hoje, em um periodo de relativo declinio economico,quando o assunto e confrontado nao na situacao colonial,nias como parte de uma forca de trabalho nativa e um regimede acumulacao dentro da economia domestica. E precise muitopouco para que sejamos persuadidos a aceitar a opiniaoenganosa de que, por ser em toda parte considerado umapratica profundamente anti-humana e anti-social, o racismo eigual em todas as situacoes — seja em suas formas, suasrelacoes com as outras estruturas e processos ou em seusefeitos. Creio que Gramsci nos ajuda a interromper decisiva-mente essa homogeneizacao.

Em segundo lugar, algo relacionado. Eu chamaria a atencaopara a enfase, advinda da experiencia historica da Italia,que levou Gramsci a dar o devido peso as caracteristicasnacionais, como um nivel importante de determinacao, e asirregularidades regionais. Nao ha "lei de desenvolvimento"homogenea que afete da mesma forma cada faceta de umaformacao social. Precisamos compreender melhor as tensoese contradicoes geradas pelos compasses e direcoes irregu-lares do desenvolvimento historico. O racismo e as praticas eestruturas racistas ocorrem geralmente em alguns setores daformacao social, mas nem todos; seu impacto e penetrante,porem irregular; e a propria irregularidade desse impactopode ajudar a aprofundar e exacerbar os antagonismossetoriais contraditorios.

Em terceiro lugar, gostaria de sublinhar a abordagem naoredutiva das questoes que concernem aos inter-relaciona-mentos de classe e raca. Este provou ser um dos problemasteoricos mais dificeis e complexes de se abordar e quefreqiientemente tern conduzido a adocao de posicoes extremas.Ou se "privilegiam" os relacionamentos de classe subjacentes,enfatizando que todas as forfas de trabalho etnica ou racial-mente diferenciadas estao submetidas a mesma relacao de

327

Page 167: Da Dispora - Stuart Hall

exploracao no capital; ou se enfatiza a centralidade das cate-gorias e divisoes etnicas e raciais, em detrimento da estrutu-racao de classe fundamental a sociedade. Embora esses doisextremos parecam constituir polos opostos, de fatof elessao imagens em reflexo um do outro, no sentido de queambos se sentem compelidos a produzir um unico e exclu-sive principio determinante de articulacao — classe ou raca— mesmo que discordem sobre qual deles deveria receber osigno privilegiado. Creio que o fato de Gramsci adotar umaabordagem nao-redutiva para as questoes de classe, juntocom sua compreensao da conformacao profundamente histo-rica de qualquer formacao social especifica, ajuda a apontaro caminho para uma abordagem nao-reducionista da questaoda raca/classe.

Isso e enriquecido pela atencao que Gramsci dedica aquiloque poderiamos chamar de qualidade culturalmente especi-fica das formacoes de classe em qualquer sociedade histori-camente definida. Ele nunca incorre no erro de acreditar que,ja que a lei geral do valor tende a homogeneizar a forca detrabalho em toda a epoca capitalista, entao pode-se presumirque essa homogeneizacao exista em uma dada sociedade.De fato, creio que a abordagem de Gramsci nos conduza aquestioner a validade dessa lei geral em sua forma traditional,uma vez que, precisamente, ela nos encoraja a ignorar asformas pelas quais a lei do valor, que opera no global emoposicao a escala meramente domestica, funciona atraves dee por causa do carater culturalmente especifico da forca detrabalho, e nao — como a teoria classica nos faria supor —pela sistematica erosao daquelas distincoes como parte ine-vitavel de uma tendencia de epoca da historia mundial.Certamente, sempre que nos distanciamos do modelo "euro-centrico" de desenvolvimento capitalista (e mesmo dentrodesse modelo), o que realmente encontramos sao as diversasformas pelas quais o capital consegue preservar e adaptar asua trajetoria fundamental, controlar e explorar essas quali-dades particulares da forca de trabalho, incluindo-as emseus regimes. A estruturacao racial e etnica da forca detrabalho, como sua composicao de genero, pode inibir astendencias "globais" racionalmente concebidas do desenvolvi-mento capitalista. Contudo, essas distincoes tern sido mantidas,

e de fato desenvolvidas e refinadas, na expansao global domodo capitalista. Elas fornecem os meios de diferenciacao dasformas de exploracao dos distintos setores de uma forca detrabalho fraturada. Nesse contexto, seus efeitos economicos,politicos e sociais tem sido profundos. Conseguiriamos compre-ender melhor como o regime do capital funciona atraves dadiferenca e da diferenciacao, e nao atraves da semelhanca eda identidade, se levassemos mais seriamente em consideracaoa questao da composicao cultural, social, nacional, etnica ede genero das formas de trabalho historicamente distintas eespecificas. Embora nao seja um teorico geral do modo capi-talista, Gramsci nos aponta definitivamente nessa direcao.

Alem do mais, sua analise demonstra ainda como os modosde producao podem estar combinados dentro de uma mesmaformac.ao social; conduzindo nao apenas a especificidades eirregularidades regionais, mas a modos diferenciados deincorporar os chamados "setores retrogrados" dentro do regimesocial do capital (por exemplo, o sul da Italia dentro daformacao italiana; o sul "mediterraneo" dentro dos setoresmais avancados do "norte" da Europa industrial; as economias"camponesas" do interior da Asia e as sociedades latino-ame-ricanas a caminho de um desenvolvimento capitalista depen-dente; os "enclaves" coloniais dentro do desenvolvimento dosregimes capitalistas metropolitanos; historicamente, as socie-dades escravocratas como um aspecto integral do desenvolvi-mento capitalista primitive das potencias metropolitanas;as forcas de trabalho "migrantes" dentro dos mercados detrabalho nacionais; os "territories bantos" da Africa do Suldentro das chamadas economias capitalistas sofisticadas etc.).Teoricamente, o que precisa ser observado e a maneirapersistente pela qual essas formas diferenciadas de "incor-poragao" tem continuamente sido associadas ao surgimentode caracteristicas sociais racistas, etnicamente segmentadas eoutras semelhantes.

Em quarto lugar, ha a questao do carater nao homogeneodo "sujeito de classe". As abordagens que privilegiam a classe,ao contrario daquelas que se concentram sobre a estruturacaoracial das classes trabalhadoras ou dos camponeses, semprese apoiam sobre o pressuposto de que, devido ao modo deexploracao frente ao capital ser o mesmo, o "sujeito de

328 329

Page 168: Da Dispora - Stuart Hall

classe" de qualquer modo de exploracao deve ser o mesmonao apenas economicamente, mas tambem politica e ideologi-camente. Como demonstrei anteriormente, existe hoje motivopara se explicitar o sentido pelo qual se percebe como iden-tica a operacao dos modos de exploracao dos distintos setoresda forca de trabalho. Seja qual for o caso, a analise de Gramsci,que diferencia o processo conditional, os "momentos" e ocarater contingente da passagem de uma "classe em si" auma "classe por si" ou dos momentos do desenvolvimento"economico-corporativo" ao "hegemonico", problematizaradicalmente essas nocoes simplistas de unidade. Mesmo omomento "hegemonico" nao e mais concebido como ummomento de unidade simples, mas como um processo deunificacao (nunca totalmente alcancado), fundado nas aliancasestrategicas entre os setores, nao em sua identidade predeter-minada. Seu carater e dado pela hipotese fundadora de quenao ha identidade ou correspondencia automatica entre aspraticas economicas, politicas e ideologicas. Isso comeca aexplicar como a diferenca etnica e racial pode ser construfdacomo um conjunto de antagonismos economicos, polfticose ideologicos, dentro de uma classe que e submetida aformas mais ou menos semelhantes de exploracao, no quediz respeito a propriedade dos "meios de producao" e aexpropriacao dos mesmos. Esta ultima, que passou a seruma especie de talisma magico, ao diferenciar a definicaomarxista de classe dos modelos de estratificacao e definicaomais pluralisticos, tem ha muito ultrapassado sua utilidadeteorica quando vem explicar a dindmica historica concretae atual dentro ou entre os setores e segmentos de classes.

Em quinto lugar, ja me referi a falta de correspondencia,no modelo gramsciano, entre as dimensoes economica, poli-tica e ideologica. Mas gostaria agora de enfatizar as conse-qiiencias politicas dessa nao-correspondencia. Ela tem o efeitoteorico de nos forcar a abandonar as construcoes esque-maticas de como as classes deveriam se comportar politica-mente, num mvel ideal e abstrato, em vez do estudo concretede como elas defato se comportam, em condicoes historicasreais. Uma das conseqiiencias do velho modelo de corres-pondencia e que a analise das classes e de outras forcassociais enquanto forcas pollticas e o estudo do terreno da

330

propria politica tornaram-se uma atividade um tanto automa-tica, esquematica e residual, Naturalmente, se ha "correspon-dencia" e a "primazia" do economico sobre os outros fatoresdeterminantes, por que entao gastar tempo analisando oterreno da politica quando esta reflete, de forma deslocadae subordinada, as determinacoes do economico "em ultimainstancia"? Certamente Gramsci nao cogitaria sobre esse tipode reducionismo nem por um momento. Ele sabe que estaanalisando formacoes estruturalmente complexas, nao algosimples e transparente. Ele sabe que a politica possui suasproprias formas, compasses, trajetorias "relativamente auto-nomas", que precisam ser estudadas em seus propriostermos, com seus proprios conceitos distintivos, e com atencaosobre seus efeitos concretos e retroativos. Alem do mais,Gramsci utiliza alguns conceitos-chave que ajudam a dife-renciar teoricamente essa area, da qual os conceitos de hege-monia, bloco historico, "partido" em seu sentido mais amplo,revolucao passiva, transformismo, intelectuais tradicionais eorganicos e alianca estrategica constituem apenas o comecode uma gama distintiva e original. Resta demonstrar como oestudo da politica em situacoes racialmente estruturadas edominadas pode ser positivamente iluminado pela rigorosaaplica^ao desses conceitos formulados novamente.

Em sexto lugar, um argumento semelhante poderia serelaborado sobre o Estado. Em relacao as lutas de classeraciais e etnicas, o Estado tem sido constantemente definidode forma exclusivamente coercitiva, dominadora e conspira-toria. De novo, Gramsci rompe irrevogavelmente com todosos tres. Sua distincao entre dominacao e direcao, junto com opapel "educativo" do estado, seu carater "ideologico", suaposicao na construcao de estrategias hegemonicas — naoimporta o quao rudimentares sejam em sua formulacao ori-ginal — poderiam transformar o estudo tanto do estado emrelacao as praticas racistas quanto os fenomenos relacionadosao "estado pos-colonial". O uso sutil que Gramsci faz dadistincao entre Estado e sociedade civil — mesmo quandoesta flutua em sua obra — e uma ferramenta teorica extrema-mente flexivel, que pode conduzir os analistas de hoje aatentar bem mais seriamente para as instituicoes e processesda chamada "sociedade civil" em formacoes sociais racial-mente estruturadas. A educacao escolar, as organizacoes

331

Page 169: Da Dispora - Stuart Hall

culturais, a vida sexual e em familia, os padroes e modos deassociacao civil, as igrejas e religioes, as formas comunitariase organizacionais, as instituicoes etnicamente especificas, emuitos outros locals desse tipo exercem uma funcao vital naproducao, sustentacao e reproducao racialmente estruturadadas sociedades. Em qualquer analise de inspiracao gramsciana,eles deixariam de ser relegados a um piano superficial.

Em setimo lugar, e seguindo a mesma linha de pensa-mento, pode-se observar a centralidade que a analise deGramsci sempre confere ao fator cultural no desenvolvimentosocial. For cultura quero dizer o terreno das praticas, represen-taooes, linguagens e costumes concretos de qualquer socie-dade historicamente especifica. Tambem inclui as formascontraditorias do "senso comum" que se enraizam e ajudam amoldar a vida popular. Eu incluiria ainda toda a gama dequestoes distintivas que Gramsci associa ao termo "nacional-popular". Gramsci compreende que estes constituem o sitiocrucial da construcao de uma hegemonia popular. Sao refe-rencias-chave enquanto objetos da luta e da pratica polftica eideologica. Constituem uma fonte nacional de mudan^a, bemcomo uma barreira em potencial ao desenvolvimento de umanova vontade coletiva. For exemplo, Gramsci compreendeuperfeitamente bem como o catolicismo popular havia consti-tuido, nas condicoes especificas da Italia, uma alternativaformidavel ao desenvolvimento de uma cultura secular eprogressista do "nacional-popular"; como na Italia esse cato-licismo deveria ser engajado e nao simplesmente negadodiante de outras prioridades. Distintamente de muitos outros,ele compreendeu a funcao que o fascismo exercera na"hegemonizacao" do carater retrograde da cultura nacionalpopular italiana e na reconfiguracao desta em uma formacaonacional reacionaria, com uma base e um suporte genui-namente populares. Transferida para outras situac.6es seme-Ihantes, em que a raca e a etnia sempre carregaram pode-rosas conotagoes nacionais-populares ou culturais, a enfasede Gramsci demonstra ser imensamente esclarecedora.

Finalmente, eu citaria a obra de Gramsci no campo ideo-logico. E claro que o "racismo", se nao for um fenomenoexclusivamente ideologico, possui dimensoes criticas ideolo-gicas. Dai que a relativa crueza e o reducionismo das teorias

332

materialistas da ideologia provaram ser um obstaculo aotrabalho necessario de analise nessa area. Em especial, adimensao da analise tem sido reduzida por urna concepcaohomogenea e nao contraditoria de consciencia e ideologia, oque tem deixado a maioria dos criticos desamparadosquando obrigados a explicar, digamos, a aquisigao de ideo-logias racistas dentro da classe trabalhadora ou dentro deinstituic.6es como os sindicatos que, no nivel abstrato, deve-riam adotar posicoes anti-racistas. O fenomeno do "racismoda classe trabalhadora", embora de forma alguma o unicofator que requer uma explicacao, tem se mostrado extraordi-nariamente resistente a analise.

Toda a abordagem de Gramsci sobre a questao da formacaoe da transformacao do campo ideologico, da conscienciapopular e de seus processes de formac.ao atenua decisiva-mente esse problema, Ele demonstra que as ideologias subor-dinadas sao necessaria e inevitavelmente contraditorias: "Oselementos da Idade da Pedra e os principles de uma cienciamais avanfada, os preconceitos de todas as fases anterioresda historia ... e as intuicoes de uma filosofia futura..." Eledemonstra como o "eu", que escora essas formacoes ideolo-gicas, nao e um sujeito unificado, mas contraditorio, umaconstrucao social. Desta forma, ele nos ajuda a compreenderuma das caracteristicas mais comuns e menos explicadas do"racismo": a "submissao" das vitimas do racismo aos embustesdas proprias ideologias racistas que as aprisionam e definem.Ele demonstra ainda como elementos distintos e frequente-mente contraditorios podem se entrelacar e se integrar aosdistintos discursos ideologicos; mas tambem a natureza e ovalor da luta ideo!6gica que busca transformar as ideiaspopulares e o "senso comum" das massas. Tudo isso e deprofunda importancia para a analise das ideologias racistas epara a centralidade, dentro dela, da luta ideologica.

De todas essas formas — e, sem duvida, de outras formasque nao live tempo de desenvolver aqui — apesar de suaposicao aparentemente "eurocentrica" e de ser uma dasreferencias menos conhecidas e compreendidas, Gramscidemonstra ser, ao olhar mais atento, uma das fontes teoricasmais frutiferas de novas ideias, paradigmas e perspectivasnos estudos contemporaneos dos fenomenos socials racial-mente estruturados.

333

Page 170: Da Dispora - Stuart Hall

[HALL, S. Gramsci's Relevance for the Study of Race and Ethnicity.journal of Communication Inquiry, 10 (2), 5-27, 1986. Traducaode Adelaine La Guardia Resende]

NOTAS

Este ensaio foi originalmente apresentado no coloquio sobre "PerspectivasTeoricas na Analise do Racismo e da Etnicidade", organizado em 1985 pelaDivisao de Direitos Humanos e Paz da UNESCO em Paris. 1A etnicidade,analoga a etnia como a nacionalidade o e a nacao, e a condicao de perten-cimento a uma etnia. (N. T.)]

2 Alguns dentre os oito volumes da edi9ao critica preparada da obra sele-cionada ja foram publicados, sob diversos litulos, como Scriti, por Einaudi,em Turim. Em ingles, ha um numero de coletaneas de sua obra com titulosdiversos, incluindo a excelente edifao do Selections from the Prison Note-books [Coletanea dos cadernos daprisao], por G. Nowell Smith e Q. Hoare,New York: International Publications, 1971; London: Lawrence & Wishart.Os dois volumes da coletanea de Political Writings [Escritos politico^ 1910-1920, 1921-1926. New York: International Publications, 1977 e 1978; e amais recente. Selections from Cultural Writing. Cambridge: Harvard UP, 1985,editada por D. Forgacs e G. Nowell Smith. As referencias e citacoes nesteensaio foram retiradas das traducoes inglesas acima citadas.

3 ALTHUSSER, Louis; BALIBAR, Etienne. Reading Capital. London: New LeftBooks, 1970.

* ALTHUSSER, Louis. ForMarx. New York: Pantheon, 1969. [A favor de Marx,Rio de Janeiro: Zahar, 1979. Tradusao de Dirceu Lindoso.]

ANDERSON, Perry. The Antinomies of Antonio GramscL New Left Review,v. 100, 1977.

6 ABERCROMBIE, N. et al. The Dominant Ideology Thesis. Boston: Allen &Unwin, 1980.

QUE "NEGRO" E ESSE NA CULM N E G R A ?

Comedo com uma pergunta: que tipo de momento e estepara se colocar a questao da cuitura popular negra?" Essesmomentos sao sempre conjunturais. Eles tern sua especifici-dade historica; e embora sempre exibam semelhancas e conti-nuidades com outros momentos, eles nunca sao o mesmomomento. E a combina9ao do que e semelhante com o que ediferente define nao somente a especificidade do momento,mas tambem a especificidade da questao e, portanto, asestrategias das politicas culturais com as quais tentamosintervir na cuitura popular, bem como a forma e o estilo dateoria e critica cultural que precisam acompanhar essa combi-nacao. Em seu importante ensaio "The New Cultural Politicsof Difference",1 Cornel West propoe uma genealogia do que eeste momento, uma genealogia do presente que considerobrilhantemente sucinta e esclarecedora. Sua genealogia acom-panha, ate certo ponto, posicoes que tentei esbocar emum artigo de relativa notoriedade2 e, alem disso, inserede maneira util esse momento no contexto americano, rela-cionando-o tambem as tradicoes filosoficas cognitivas e inte-lectuais com as quais ele dialoga.

Segundo West, o momento, este momento, possui tresgrandes eixos. O primeiro e o deslocamento dos modeloseuropeus de alta cuitura, da Europa enquanto sujeito uni-versal da cuitura, e da propria cuitura, em sua antiga leituraarnoldiana, como o ultimo refugio de... quase disse, develhacos, mas nao vou dizer de quem. Pelo menos sabemosa quem essa leitura resistia — a cuitura contra os barbaros,

334

Page 171: Da Dispora - Stuart Hall

contra a ral£ que tentava forcar os portoes, enquanto a prosaeterna da anarquia fluia da pena de Arnold. O segundo eixoe o surgimento dos EUA como potencia mundial e, conse-quentemente, como centro de producao e circulacao globalde cultura. Esse surgimento e sifflultaneamente um desloca-mento e uma mudanca hegemonica na defini$ao de cultura— um movimento que vai da alta cultura a cultura popularamericana majoritaria e suas formas de cultura de massa,mediadas pela imagem e formas tecnologicas. O terceiro eixoe a descolonizacao do Terceiro Mundo, marcado culturalmentepela emergencia das sensibilidades descolonizadas. Euentendo a descolonizacao do Terceiro Mundo no sentido deFrantz Fanon: incluo at o impacto dos direitos civis e aslutas negras pela descolonizacao das mentes dos povos dadiaspora negra.

Gostaria de acrescentar algumas qualificacoes a esse quadrogeral, detalhes que, a meu ver, tornam o momento presenteum momento peculiar para se propor a questao da culturapopular negra. Primeiro, quero lembrar as ambiguidadesdaquele deslocamento da Europa para a America, uma vezque ele inclui a relacao ambivalente dos EUA com a altacultura europeia e a ambiguidade da relacao dos EUA comsuas proprias hierarquias etnicas internas. Ate ha pouco, aEuropa Ocidental nao tinha qualquer tipo de etnicidade.Ou nao reconhecia que tivesse. Os EUA sempre tiveram umaserie de etnicidades e, consequentemente, a construcao dehierarquias etnicas sempre definiu suas politicas culturais.E, evidentemente, dentro desse deslocamento, silenciado esem reconhecimento, estava a pr6pria cultura popular ameri-cana, que desde sempre conteve, silenciadas ou nao, astradicoes vernaculas da cultura popular negra americana.Talvez seja dificil lembrar que, quando vista de fora dosEUA, a cultura de massa americana sempre envolveu certastradicoes que so podem ser atribuidas as tradicoes da culturapopular negra vernacula.

A segunda qualificacao diz respeito a natureza do periodode globalizacao cultural atualmente em processo. Nao gostodo termo "pos-moderno global", um significante tao vazio edeslizante que pode ser entendido como qualquer coisa. Osnegros estao colocados numa relacao tao ambigua com opos-modernismo quanto estavam com o alto modernismo:

336

mesmo quando despojado de sua procedencia no marxismodesencantado ou na intelectualidade francesa e reduzido aum status mais modesto e descritivo, o pos-modernismocontinua a desenvolver-se de forma extremamente desigual,como um fenomeno em que os antigos centro-periferias daalta modernidade reaparecem consistentemente. Os uniceslugares que podem experimentar genuinamente a culinariaetnica pos-moderna sao Manhattan e Londres, nao Calcuta,e mesmo assim e impossivel rejeitar inteiramente o "pos-moderno global", na medida em que ele registra certasmudancas estilisticas no que eu chamaria de dominante cul-tural. Mesmo que o p6s-modernismo nao seja uma nova eracultural, mas somente o modernismo nas ruas, isso, em si,representa uma importante mudanca no terreno da culturarumo ao popular — rumo a praticas populares, praticascotidianas, narrativas locals, descentramento de antigas hie-rarquias e de grandes narrativas. Esse descentramento oudeslocamento abre caminho para novos espacos de contes-tae,ao, e causa uma importantissima mudanca na alta culturadas relacoes culturais populares, apresentando-se, dessaforma, como uma importante oportunidade estrategica paraa intervencao no campo da cultura popular.

Em terceiro lugar, devemos ter em mente a profunda eambivalente fascinacao do pos-modernismo pelas diferengassexuais, raciais, culturais e, sobretudo, etnicas. Em totaloposicao a cegueira e hostilidade que a alta cultura europeiademonstrava, de modo geral, pela difere-nga etnica — suaincapacidade ate de falar em etnicidade quando esta inscreviaseus efeitos de forma tao evidente —, nao ha nada que opos-modernismo global mais adore do que um certo tipo dediferenca: um toque de etnicidade, um "sabor" do exotico e,como dizemos em ingles, a bit of the other (expressao que noReino Unido possui nao so uma conotacao etnica, comotambem sexual). Em seu ensaio "Modernismo, pos-moder-nismo e o problema do visual na cultura afro-americana",3

Michele Wallace acertou ao indagar se esse reaparecimentode uma proliferagao da diferenca, de um certo tipo de ascensaodo pos-moderno global, nao seria uma repeticao daquele jogode "esconde-esconde" — que o modernismo jogou com o primi-tivismo no passado — e ao indagar se esse jogo nao estariasendo novamente realizado as custas do vasto silenciamento

337

Page 172: Da Dispora - Stuart Hall

acerca da fascinacao ocidental pelos corpos de homens emulheres negros e de outras etnias. Devemos indagar sobreesse silencio continue no terreno movedico do pos-rnoder-nismo e questionar se as formas de autorizacao do olhar aque esta proliferate da diferenca convida e permite, ao mesmotempo em que rejeita, nao seriam, realmente, junto com aBenetton e a miscelanea de modelos masculines da revistaThe Face, um tipo de diferenca que nao faz diferenca alguma.

Hal Foster escreve: "O primitive e um problema moderno,uma crise na identidade cultural"/ dai a construcao modernistado primitivismo, o reconhecimento fetichista e a rejeicao dadiferenca do primitivo. Mas essa resolucao e somente umarepressao; o primitivo, detido no interior de nosso incons-ciente politico, retorna como um estranho familiar, no momentode seu aparente eclipse politico. Essa ruptura do primitivismo,administrada pelo modernismo, torna-se um outro evento pos-moderno. Essa administracao e certamente evidente na dife-renca que pode nao produzir diferenca alguma e que marca osurgimento ambiguo da etnicidade no amago do pos-moder-nismo global. Mas nao pode ser so isso, pois nao podemosesquecer como a vida cultural, sobretudo no Ocidente e tambemem outras partes, tern sido transformada em nossa epoca pelasvozes das margens.

Dentro da cultura, a marginalidade, embora permanecaperiferica em relacao ao mainstream, nunca foi um espacotao produtivo quanto e agora, e isso nao e simplesmente umaabertura, dentro dos espacos dominantes, a ocupacao dos defora. E tambem o resultado de politicas culturais da diferenca,de lutas em torno da diferenca, da producao de novas identi-dades e do aparecimento de novos sujeitos no cenario poli-tico e cultural. Isso vale nao somente para a raca, mas tambempara outras etnicidades marginalizadas, assim como o femi-nismo e as politicas sexuais no movimento de gays e lesbicas,como resultado de um novo tipo de politica cultural. Naoquero sugerir, e obvio, que podemos contrapor a eternahistoria de nossa pr6pria marginalizacao uma sensacao confer-tavel de vitorias alcancadas — estou cansado dessas duasgrandes contranarrativas. Permanecer dentro delas e cair naarmadilha da eterna divisao ou/ou, ou vit6ria total ou totalcooptacao, o que quase nunca acontece na politica cultural,mas com o que os criticos culturais se reconfortam.

Estamos falando da luta pela hegemonia cultural que hojee travada tanto na cultura popular quanto em outro lugar.A distincao entre erudito e popular e precisamente o que opos-moderno global esta deslocando. A hegemonia culturalnunca e uma questao de vitoria ou dominacao pura (nao eisso que o termo significa); nunca e um jogo cultural deperde-ganha; sempre tem a ver com a mudanca no equilibriode poder nas relacoes da cultura; trata-se sempre de mudaras disposicoes e configuracoes do poder cultural e nao seretirar dele. Existe uma atitude do tipo "nada muda, o sistemasempre vence", que eu leio como a um involucro protetorcinico, que, lamento dizer, criticos culturais norte-americanosfrequentemente utilizam. Um involucro que, algumas vezes,os impede de desenvolver estrategias culturais que facamdiferenca. E como se, para se protegerem de uma derrotaeventual, precisassem fingir que tudo Ihes e transparente eigual ao que sempre foi.

Ja as estrategias culturais capazes de fazer diferenca sao oque me interessa — aquelas capazes de efetuar diferencas ede deslocar as disposicoes do poder. Reconheco que osespacos "conquistados" para a diferenca sao poucos e dis-perses, e cuidadosamente policiados e regulados. Acreditoque sejam limitados. Sei que eles sao absurdamente subfi-nanciados, que existe sempre um preco de cooptacao a serpago quando o lado cortante da diferenca e da transgressaoperde o fio na espetacularizacao. Eu sei que o que substitui ainvisibilidade e uma especie de visibilidade cuidadosamenteregulada e segregada. Mas simplesmente menospreza-la,chamando-a de "o mesmo", nao adianta. Deprecia-la dessemodo reflete meramente o modelo especifico das politicasculturais ao qual continuamos atados, precisamente o jogoda inversao — nosso modelo substituindo o modelo deles,nossas identidades em lugar das suas — a que AntonioGramsci chamava de cultura como "guerra de manobra" deuma vez por todas, quando, de fato, o unico jogo correnteque vale a pena jogar e o das "guerras de posicao" culturais.

Para que nao pensem, parafraseando Gramsci, que meuotimismo da vontade agora ja superou completamente o meupessimismo do intelecto, deixem-me acrescentar um quartoelemento que comente o atual momento. Se o pos-moderno

338 339

Page 173: Da Dispora - Stuart Hall

global representa uma abertura ambigua para a diferenca epara as margens e faz com que um certo tipo de descentra-mento da narrativa ocidental se torne provave!, ele e acom-panhado por uma reacao que vem do amago das politicasculturais: a resistencia agressiva a diferenca; a tentativa derestaurar o canone da civilizacao ocidental; o ataque direto eindireto ao multiculturalismo; o retorno as grandes narra-tivas da historia, da lingua e da literatura (os tres grandespilares de sustentacao da identidade e da cultura nacionais);a defesa do absolutismo etnico, de um racismo cultural quemarcou as eras Thatcher e Reagan; e as novas xenofobiasque estao prestes a subjugar a Europa. A ultima coisa afazer e ler-me como se eu estivesse dizendo que a diale~ticacultural acabou. Parte do problema e que temos esquecidoque tipo de espaco e o da cultura popular. E a culturapopular negra nao esta isenta dessa dialetica, que e histo-rica e nao uma questjio de ma-fe. Portanto, e necessariodesconstruir o popular de uma vez por todas. Nao ha comoretornar a uma visao ingenua do que ele consiste.

A cultura popular carrega essa ressonancia afirmativa porcausa do peso da palavra "popular". E, em certo sentido,a cultura popular tern sempre sua base em experiencias,prazeres, memorias e tradicoes do povo. Ela tem ligacoescom as esperan9as e aspiracoes locais, tragedias e cenarioslocais que sao praticas e experiencias cotidianas de pessoascomuns. Dai, ela se liga aquilo que Bakhtin chama de"vulgar" — o popular, o informal, o lado inferior, o grotesco— eis porque sempre foi contraposta a alta cultura ou culturade elite e e, portanto, um local de tradicoes alternativas,sendo esse o motive pelo qual a tradi^ao dominante sempresuspeitou profundamente a seu respeito, e com razao. Des-confia-se de que essa tradicao pode ser superada pelo queBakhtin chama de "carnavalesco". Este mapeamento funda-mental da cultura entre o alto e o baixo foi dividido em quatrodommios simbolicos por Peter Stallybrass e Allon White emseu importante livro The Politics and Poetics of Transgression[A politica e a poetica da transgressao}. Eles falam sobre omapeamento do alto e baixo em formas psfquicas, no corpohumano, no espaco e na ordem social5 e discutem a distinc.aoalto/baixo enquanto base fundamental para o mecanismo

de ordenamento e de producao de sentido na cultura europeiae em outras, apesar do fato de o conteudo alto e baixo sofrermudancas de um momento historico a outro.

A questao importante e o ordenamento das diferentesmorais esteticas, das esteticas sociais, os ordenamentosculturais que abrem a cultura para o jogo do poder, e naoum inventario do que e alto versus o que e baixo em ummomento especifico. E por isso que Gramsci deu a questao quechamou de "nacional-popular" tamanha importancia estrate-gica, pois entendeu que e no terreno do senso comum que ahegemonia cultural e produzida, perdida e se torna objeto delutas. O papel do "popular" na cultura popular e o de fixar aautenticidade das formas populares, enraizando-as nas expe-riencias das comunidades populares das quais elas retiram oseu vigor e nos permitindo ve-las como expressao de umavida social subalterna especifica, que resiste a ser constante-mente reformulada enquanto baixa e periferica.

Entretanto, como a cultura popular tem se tornado histori-camente a forma dominante da cultura global, ela ef entao,simultaneamente, a cena, por excelencia, da mercantilizacao,das industrias onde a cultura penetra diretamente nos circuitosde uma tecnologia dominante — os circuitos do poder e docapital. Ela e o espaco de homogeneizacao em que os estereo-tipos e as formulas processam sem compaixao o material eas experiencias que ela traz para dentro da sua rede, espacoern que o controle sobre narrativas e representagoes passapara as maos das burocracias culturais estabelecidas as vezesate sem resistencia. Ela esta enraizada na experiencia populare, ao mesmo tempo, disponivel para expropriacao. Querodefender a ideia de que isso e necessario e inevitavel e valetambem para a cultura popular negra, que, como todas asculturas populares no mundo moderno, esta destinada a sercontraditoria, o que ocorre nao porque nao tenhamos travadoa batalha cultural suficientemente bem.

Por definicao, a cultura popular negra e um espaco contra-ditorio. E um local de contestacao estrategica. Mas ela nuncapode ser simplificada ou explicada nos termos das simplesoposic,6es binarias habitualmente usadas para mapea-la:alto ou baixo, resistencia versus cooptac_ao, autentico versusinautentico, experiencial versus formal, oposicao versus

340 341

Page 174: Da Dispora - Stuart Hall

homogeneizacao. Sempre existem posicoes a serem conquis-tadas na cultura popular, mas nenhuma luta consegue cap-turar a propria cultura popular para o nosso lado ou o deles,Por que isso acontece? Que conseqtiencias isso traz para asestrategias de intervencao nas politicas culturais? Como issomuda as bases de uma critica cultural negra?

Nao importa o quao deformadas, cooptadas e inautenticassejam as formas como os negros e as tradicoes e comunidadesnegras parecam ou sejam represemadas na cultura popular,nos continuamos a ver nessas figuras e repertories, aos quaisa cultura popular recorre, as experiencias que estao por trasdelas. Em sua expressividade, sua musicalidade, sua orali-dade e na sua rica, profunda e variada atencao a fala; emsuas inflexoes vernaculares e locals; em sua rica producaode contranarrativas; e, sobretudo, em seu uso metaforico dovocabulario musical, a cultura popular negra tern permitidotrazer a tona, ate nas modalidades mistas e contraditoriasda cultura popular mainstream, elementos de um discursoque e diferente — outras formas de vida, outras tradicoesde representacao.

Nao pretendo repetir o trabalho daqueles que consagraramsuas vidas de estudo, critica e criacao a identificacao dasparticularidades dessas tradicoes diasporicas, a pesquisa desuas modalidades, as experiencias historicas e as memoriasque codificam. Vou fazer tres comentarios incompletos quenao darao conta dessas tradicoes, ja que elas sao pertinentesao argumento que quero desenvolver. Primeiro, peco queobservem como, dentro do repertorio negro, o estilo — queos criticos culturais da corrente dominante muitas vezes acre-ditam ser uma simples casca, uma embalagem, o revestimentode acucar na pilula — se tornou em si a materia do aconteci-mento. Segundo, percebam como, deslocado de um mundologocentrico — onde o dominio direto das modalidades cul-turais significou o dominio da escrita e, dai, a critica daescrita (critica logocentrica) e a desconstrucao da escrita —,o povo da diaspora negra tern, em oposicao a tudo isso,encontrado a forma profunda, a estrutura profunda de suavida cultural na musica. Terceiro, pensem em como essasculturas tern usado o corpo como se ele fosse, e muitas vezesfoi, o unico capital cultural que tinhamos. Temos trabalhadoem nos mesmos como em telas de representacao.

342

Existem aqui questoes profundas de transmissao e herancacultural, de relacoes complexas entre as origens africanas eas dispersoes irreversiveis da diaspora; questoes que naovou aprofundar aqui. Mas acredito que esses repertories dacultura popular negra — uma vez que fomos excluidos dacorrente cultural dominante — eram frequentemente osunicos espacos performaticos que nos restavam e que foramsobredeterminados de duas formas: parcialmente por suasherancas, e tambem determinados criticamente pelas conducesdiasporicas nas quais as conexoes foram forjadas. A apro-priacao, cooptacao e rearticulacao seletivas de ideologias,culturas e instituicoes europeias, junto a um patrimonio afri-cano — cito novamente Cornel West —, conduziram a ino-vacOes lingiiisticas na estilizacao retorica do corpo, a formasde ocupar um espaco social alheio, a expressoes potenciali-zadas, a estilos de cabelo, a posturas, gingados e maneirasde falar, bem como a meios de constituir e sustentar o compa-nheirismo e a comunidade.

A questao subjacente de sobredeterminacao — repertoriesculturais negros constituidos simultaneamente a partir de duasdirecoes — e talvez mais subversive do que se pensa. Signi-fica insistir que na cultura popular negra, estritamente falando,em termos etnograficos, nao existem formas puras. Todasessas formas sao sempre o produto de sincronizagoes parciais,de engajamentos que atravessam fronteiras culturais, deconfluencias de mais de uma tradicao cultural, de negociacoesentre posicoes dominances e subalternas, de estrategias sub-terraneas de recodificacao e transcodificacao, de significacaocritica e do ato de significar a partir de materials preexis-tentes. Essas formas sao sempre impuras, ate certo pontohibridizadas a partir de uma base vernacula. Assim, elas devemser sempre ouvidas nao simplesmente como recuperacao deum dialogo perdido que carrega indicagoes para a producaode novas musicas (porque nao a volta para o antigo de ummodo simples), mas como o que elas sao — adaptagoesconformadas aos espacos mistos, contraditorios e hibridosda cultura popular. Elas nao sao a recuperacao de algo puropelo qual, finalmente, podemos nos orientar. Somos obri-gados a reconhecer que elas sao o que o moderno e, naquiloque Kobena Mercer chama a necessidade de uma esteticadiasporica.

343

Page 175: Da Dispora - Stuart Hall

Essa marca da diferenca dentro das formas da culturapopular — que sao, por definicao, contraditorias e, portanto,aparecem como impuras e ameacadas pela cooptacao ouexclusao — e carregada pelo significance "negro" na expressao"cultura popular negra". Ela chegou a significar a comuni-dade negra onde se guardam as tradicoes e cujas lutas sobre-vivem na persistencia da experiencia negra (a experienciahistorica do povo negro na diaspora), da estetica negra(os repertories culturais proprios a partir dos quais foramproduzidas as representacoes populares) e das contranarra-tivas negras que lutamos para expressar. Aqui a culturapopular negra retorna ao terreno que defini anteriormente.A "boa" cultura popular passa no teste de autenticidade, que6 a referenda a experiencia negra e a expressividade negra.Estas servem como garantias na determinacao de qual culturapopular negra e a certa, qual £ nossa e qual nao e.

Tenho a impressao de que, historicamente, nada poderiater sido feito para intervir no campo dominado da culturapopular mainstream, para tentar conquistar algum espaco la,sem o uso de estrategias atraves das quais aquelas dimensoesfossem condensadas no significante "negro". Onde esta-riamos, conforme bell hooks comentou certa vez, sem umtoque de essencialisrno ou sem o que Gayatri Spivak chamade essencialisrno estrategico, um momento necessario? Aquestao e se ainda estamos nesse momento, se esse constituiainda uma base suficiente para as estrategias das novasintervencoes. Vou tentar esquematizar o que me parecem seras fraquezas desse momento essencializante e as estrategiascriativas e criticas que dele decorrem.

Esse momento essencializa as diferencas em varies sentidos.Ele enxerga a diferenca como "as tradicoes deles versus asnossas" — nao de uma forma posicional, mas mutuamenteexcludente, autonoma e auto-suficiente — e e, consequente-mente, incapaz de compreender as estrategias dialogicas e asformas hibridas essenciais a estetica diasporica. Um movi-mento para alem desse essencialisrno nao se constitui em estra-tegia critica ou estetica sem uma politica cultural, sem umamarcacao da diferenca. Nao e simplesmente a rearticulacaoe a reapropriacao como um fim em si mesmo. O que essemovimento burla e a essencializacao da diferenca dentro das

344

duas oposicoes mutuas ou/ou. O que ele faz e deslocar-nospara um novo tipo de posicao cultural, uma logica diferenteda diferenca, para resumir o que Paul Gilroy tao vividamentepautou na agenda politica e cultural da politica negra doReino Unido: os negros da diaspora britanica devem, nestemomento historico, recusar o binario negro owbritanico. Elesdevem recusar porque o "ou" permanece o local de contes-ta$ao constante, quando o proposito da luta deve ser, aocontrario, substituir o "ou" pela potencialidade e pela possi-bilidade de um "e", o que significa a logica do acoplamento,em lugar da logica da oposicao binaria. Voce pode ser negroe britanico, negra e britanica nao somente porque esta e umaposicao necessaria nos anos 90, mas porque mesmo essesdois termos, unidos agora pela conjuncao "e", contrariamentea oposicao de um ao outro, nao esgotam todas as nossasidentidades. Somente algumas delas estao, as vezes, envol-vidas nessa luta especifica.

O momento essencializante e fraco porque naturaliza edes-historiciza a diferenca, confunde o que e historico ecultural com o que e natural, biologico e genetico. Nomomento em que o significante "negro" e arrancado de seuencaixe historico, cultural e politico, e e alojado em umacategoria racial biologicamente constituida, valorizamos, pelainversao, a pr6pria base do racismo que estamos tentandodesconstruir. Alem disso, como sempre acontece quandonaturalizamos categorias historicas (pensem em genero esexualidade), fixamos esse significante fora da historia, damudanca e da intervencao politicas. E uma vez que ele efixado, somos tentados a usar "negro" como algo suficienteem si mesmo, para garantir o carater progressista da politicapela qual lutamos sob essa bandeira — como se nao tives-semos nenhuma outra politica para discutir, exceto a de quealgo e negro ou nao e. Somos tentados, ainda, a exibir essesignificante como um dispositive que pode purificar oimpure e enquadrar irmaos e irmas desgarrados, que estaodesviando-se do que deveriam estar fazendo, e policiar asfronteiras — que, claro, sao fronteiras politicas, simbolicas eposicionais — como se elas fossem geneticas. E" como sepudessemos traduzir a natureza em politica, usando uma cate-goria racial para sancionar as politicas de um texto culturale como medida do desvio.

345

Page 176: Da Dispora - Stuart Hall

Alem do mais, tendemos a privilegiar a experiencia enquantotal como se a vida negra fosse uma experiencia vivida fora darepresentacao. So precisamos, parece, expressar o que jasabemos que somos. Em vez disso, e somente pelo modo noqual representamos e imaginamos a nos mesmos que chegamosa saber como nos constituimos e quern somos. Nao ha comoescapar de politicas de representacao, e nao podemos lidarcom a ideia de "como a vida realmente 6 la fora" como umaespecie de teste para medir o acerto ou o erro politico deuma dada estrategia ou texto cultural. E nao sera surpresapara voces que eu considere que "negro" nao e, na reali-dade, nenhuma dessas coisas. Nao e uma categoria de essencia.Portanto, essa maneira de compreender o significante flutu-ante na cultura popular negra e hoje, consequentemente,insatisfatoria.

Existe, e claro, um conjunto de experiencias negras histori-camente distintas que contribuem para os repertories alterna-tives que mencionei anteriormente. Mas e" para a diversidadee nao para a homogeneidade da experiencia negra quedevemos dirigir integralmente a nossa atencao criativa agora.Nao e somente para apreciar as diferencas historicas e expe-rienciais dentro de, e entre, comunidades, regioes, campoe cidade, nas culturas nacionais e entre as diasporas, mastambem reconhecer outros tipos de diferenca que localizam,situam e posicionam o povo negro. A questao nao e simples-mente que, visto que nossas diferencas raciais nao nos cons-tituem inteirarnente, somos sempre diferentes e estamossempre negociando diferentes tipos de differences — de genero,sexualidade, classe. Trata-se tambem do fato de que essesantagonismos se recusam a ser alinhados; simplesmente naose reduzem um ao outro, se recusam a se aglutinar em tornode um eixo unico de diferenciagao. Estamos constantementeem negociac;ao, nao com um unico conjunto de oposJ96es quenos situe sempre na mesma relagao com os outros, mas comuma serie de posifoes diferentes. Cada uma delas tern paranos o seu ponto de profunda identificae.ao subjetiva. Essa e aquestao mais dificil da proliferacao no campo das identidadese antagonismos: elas freqiientemente se deslocam entre si.

Assim, colocado de maneira direta, certas formas pelas quaisos homens negros continuam a viver suas contra-identidades

346

enquanto masculinidades negras e reapresentam fantasias demasculinidades negras nos teatros da cultura popular sao,quando vistas a partir de outros eixos de diferenga, asmesmas identidades masculinas que sao opressivas para asmulheres e que reivindicam visibilidade para a sua dureza ascustas da vulnerabilidade das mulheres negras e da femini-zacjio dos homossexuais negros. O modo como politicastransgressoras sao, em um dominio, constantemente sutu-radas e estabilizadas pelas politicas reacionarias ou naoexaminadas em outro dominio s6 pode ser explicado por estecontinue deslocamento-cru/ado de uma identidade por outra,de uma estrutura por outra. Etnicidades dominantes saosempre sustentadas por uma economia sexual especifica, umafiguracao especifica de masculinidade, uma identidade espe-cifica de classe. Nao existe garantia, quando procuramos umaidentidade racial essencializada da qual pensamos estarseguros, de que esta sempre sera mutuamente Hbertadora eprogressista em todas as outras dimensoes. Entretanto, existesim uma politica pela qual vale lutar. Mas a invocagao deuma experiencia negra garantida por tras dela nao produziraessa politica. De fato nao e nada surpreendente a plurali-dade de antagonismos e diferencas que hoje procuramdestruir a unidade da politica negra, dadas as complexidadesdas estruturas de subordinate que moldaram a forma comonos fomos inseridos na diaspora negra.

Estes sao os pensarnentos que me impulsionaram a falar,em um momento de espontaneidade, do fim da inocencia dosujeito negro ou do fim da noc.ao ingenua de um sujeitonegro essencial. Quero simplesmente concluir lembrando avoces que esse fim e tambem um comedo. Como Isaac Juliendisse, em uma entrevista com bell hooks, sobre o seu novofilme Young Soul Rebels, a respeito da tentativa, em seuproprio trabalho, de retratar uma serie de corpos raciais dife-rentes, para constituir uma gama de diferentes subjetividadesnegras e de se engajar com as posicoes de uma serie de dife-rentes tipos de masculinidades negras:

A negritude enquanto signo nunca e suficiente. O que aquelesujeito negro faz, como ele age, como pensa politicamente... oser negro realmente nao me basta: eu quero conhecer as suaspoliticas culturais.6

347

Page 177: Da Dispora - Stuart Hall

Quero finalizar com dois pensamentos que nos levam devolta ao sujeito da cultura popular. O primeiro e lembra-losde que essa cultura popular, mercantilizada e estereotipadacomo e frequentemente, nao constltui, como as vezes pen-samos, a arena onde descobrimos quern realmente somos, averdade da nossa experiencia. Ela e uma arena profunda-mentemitica. E urn teatro de desejos populares, um teatrode fantasias populares. E onde descobrimos e brincamos comas identificacoes de nos mesmos, onde somos imaginados,representados, nao somente para o publico la fora, que naoentende a mensagem, mas tambem para n6s mesmos pelaprimeira vez. Como disse Freud, o sexo (e a represents cao)acontecem principalmente na cabeca. Em segundo lugar,embora o terreno do popular pareca ser construido combinarismos simples, ele nao e. Eu lembrei a voces sobre aimportancia da estruturacao do espaco cultural em termos dealto e baixo, e a ameaca do carnavalesco bakhtiniano. Achoque Bakhtin tem sido profundamente mal interpretado. Ocarnavalesco nao e simplesmente a inversao de duas coisasque continuam presas aos seus arcaboucos contraries; etambem atravessado pelo que Bakhtin chama de dialogico.

Encerro com uma descricao do que esta envolvido noentendimento da cultura popular, numa forma dialogica emvez de estritamente de oposicao, extraido de A politica e apoetica da transgressao, de Stallybrass e White:

Um padrao recorrente emerge: o "de cima" tenta rejeitar eeliminar o "de baixo" por razoes de prestigio e status e acabadescobrindo que nao so esta, de algum modo, frequentementedependence desse baixo-Outro (...) mas tambem que o de cimainclui simbolicamente o de baixo como constituinte primarioerotizado de sua propria vida de fantasia. O resultado e umafusao movel e conflitiva de poder, medo e desejo na cons-Irucao da subjetividade: uma dependencia psicologica deprecisamente aqueles outros que estao sendo rigorosamenteimpedidos e excluidos no nivel da vida social. £ por essa razaoque o que e socialmente periferico e amiude simbolicamentecentral...7

NOTAS

* "Popular culture" teve uma traducao literal, aqui: "cultura popular". Acultura popular, para Hall, e constituida por tradifoes e praticas culturaispopulares e pela forma como estas se processam em tensao permanentecom a cultura hegemonica. Nesse sentido, ela nao se resume a tradi9ao eao folclore, nem ao que mais se consome ou vende; nao se define porseu conteudo, nem por qualquer especie de "programa politico popular"preexistente. Sua importancia reside em ser um terreno de luta pelopoder, de consentimento e resistencia populares, abarcando, assim, ele-mentos da cultura de massa, da cultura tradicional e das praticas contempo-raneas de producao e consumo culturais. Ver "Notas sobre a desconstrufaodo 'popular'", neste volume. (N. T.)

1 WEST, Cornel. The New Cultural Politics of Difference. In: FERGUSON,Russell et al. (Org.). Out There-. Marginalizatkm and Contemporary Cultures.Cambridge: MIT Press/New Museum of Contemporary Art, 1990. p. 19-36.

2 HALL, Stuart. New Ethnicities. In: MERCER, Kobena (Org.). Black Film/British Cinema, ICA Document. London: Institute of Contemporary Arts, 1988.

p. 27-31-

3 WALLACE, Michele. Modernism, Postmodernism and the Problem of theVisual in Afro-American Culture. In: FERGUSON, Russell et al. (Org.). OutThere-. Marginalization and Contemporary Cultures, p. 39-50.

4 FOSTER, Hal. Recodings-. Art, Spectacle and Cultural Politics. Port Townsend/WA: Bay Press, 1985. p. 204,

5 STALLYBRASS, Peter; WHITE, Allon. The Politics and Poetics of Transgression.Ithaca: Cornell University Press, 1986. p. 3.

6 HOOKS, bell. States of Desire. Transition, v. 1, n. 3, p. 175- Entrevistaconcedida a Isaac Julien.

7 STALLYBRASS, Peter; WHITE, Allon. The Politics and Poetics of Transgression,p. 3.

348

[HALL, S. What is this "Black" in Black Popular Culture? In:WALLACE, Michele (Org.). Black Popular Culture. 2. ed. NewYork: The New Press, 1998. (1. ed.: Seattle: Bay Press, 1992).Traducao de Sayonara Amaral.]

349

Page 178: Da Dispora - Stuart Hall

P A T E

TEORIA DA RECEP^AO

Page 179: Da Dispora - Stuart Hall

REFLEXOES SOBRE 0 MODELO DECODIFICAgiO/DECODIFICAgiO

UMA E H T R E V I S T A COM STUART HALL

Entrevista gravada na Universidade de Massa-chusetts, em fevereiro de 1989. O objetivo dadiscussao foi langar um novo olbar sobre oensaio seminal de Stuart Hall, "Codificacao/Decodifica$ao" (1980), a fim de consideraralguns dos problemas ainda enfrentados poraqueles envolvidos com pesquisa de audiencia.Ian Angus, Jon Cruz, James Der Derian, Sutjally,Justin Lewis e Cathy Schwichienherg realizaramesta entrevista.

Sutjhatty. Nos gostariamos de iniciar falando generica-mente sobre o artigo "Codificacao/Decodificacao" e sobre ocontexto no qual ele foi escrito. Voce poderia dizer algosobre seu contexto politico, teorico e cultural e como issoafetou a enfase e o-impulse que moveram o modelo?

Stuart Hall: Bern, penso que o artigo remete a um numerode diferentes contextos que valem a pena identificar. Oprimeiro, num certo sentido, e um tipo de contexto teorico-metodologico, porque o artigo foi apresentado em umcoloquio organizado pelo Centre for Mass CommunicationsResearch na Universidade de Leicester.

Esse era um centro tradicional, que usava os tradicionaismodelos empiricos positivistas de analise de conteudo, apesquisa de efeitos na audiencia etc. Entao, esse artigo,embora voces possam nao perceber, tem um leve cunho

Page 180: Da Dispora - Stuart Hall

polemico. Opoe-se a algumas dessas posicoes; contra umanocao particular de contetido, entendido como um sentidoou uma mensagem pre-formada e fixa, que pode ser analisadaem termos de transmissao do emissor para o receptor. O artigose posiciona contra uma certa unilinearidade implicita nesseultimo modelo, seu fluxo unidireciona!, isto e, o emissororigina a mensagem, a mensagem e, ela propria, bastanteunidimensional, e o receptor a recebe.

Ora, voce percebe que a implicacao desse modelo eque toda comunicacao e uma comunicacao perfeita? A unicadistorcao nela e que o receptor pode nao estar em condicoesde captar a mensagem que deveria captar. Mas se ele ou elafosse inteligente e alerta o suficiente, obviamente nao exis-tiria nenhum problema com o significado. O significado e"perfeitamente transparente: ele e uma mensagem que oreceptor pode ou nao entender. O comunicador quer trans-mitir a mensagem, entao quer saber quais sao os obstaculospara a perfeita transmissao do sentido.

Entao, a primeira tomada de posicao de "Codificacao/Decodificacao" e, em parte, a de interromper esse tipo denocao transparente de comunicacao para dizer: "Produzira mensagem nao e uma atividade tao transparente comoparece." A^mensagem e uma estrutura complexa de signift-cados-que nap e tao simples como se pensa. A recepcao naoe algo aberto e perfeitamente transparente, que acpntece^naoutra ponta da cadeia de comunicacao. E a cadeia comunica-tiva nao opera de forma unilinear.

Este e um primeiro contexto, o segundo e obviamente umcontexto politico. Ao ler esse artigo ve-se que ha uma no^aoque o perpassa de trabalhar na contramao de um modelo decomunicacao demasiado determinista. E a nocao de que o^sig0iflcadg_nao e fixo, de que nao existe uma logica deter-minante global que nos permita decifrar o significado ou osentido ideologico da mensagem contra alguma grade. Anocao de que o sentido..sempre^possui varias camadas, deque ele e sempj-eJTiu_ltirreferenciaQ Esses novos modelos vaosendo montados no artigo e isso, e claro, reflete o comecodo estruturalismo e da semiotica e seu impacto nos EstudosCulturais.

354

Quanto a esse contexto te6rico maior, na verdade, eletern a ver com o impacto do primeiro Barthes — o Barthesde Elementos de semiologia e S/Z — e toda a recuperacao levi-straussiana do modelo saussuriano de linguagem. Trata-se dealgo que tern implicacoes politicas porque, como voce podever, tambem existia uma discussao em andamento com omarxismo. Existia uma controversia com o modelo base-supe-restrutura, com a nocao de ideologia, linguagem e culturacomo algo secundario, como algo nao constitutive, mas mera-mente constituido pelos processes socioeconomicos. Existiaa abertura de uma certa nocao de politica para a questao dacultura. As questoes politicas tambem tern de lidar com a cons-trucao e reconstruct do sentido, o modo como o sentido econtestado e estabelecido. Esses processes nao sao secun-darios em relacao a algum outro trabalho mais fundamental;antes tern de ver reconhecida sua autonomia relativa ou suapropria eficacia, que Ihes e especifica. Nisso o ensaio nao epolitico, em um sentido estrito; nele nao ha um projeto poli-tico delineado: ele tern a ver com a maneira como se pensasobre questoes politicas.

Finalmente, o texto se situa no contexto de um debatesobre o proprio marxismo. O modelo que esbocei na aber-tura do artigo e retirado de outro, que escrevi mais ou menosna mesma epoca, "Notes on the Reading of Marx's '1857 Intro-duction'" (Hall, 1974), sobre o texto de Marx que e, na minhaopiniao, seu mais elaborado e interessante texto metodolo-gico. Eu o li como forma de contestar a superestruturaliza^aodo marxismo que ocorre em Althusser. Althusser cita a "Intro-ducao de 1857" e eu volto ao texto de Marx e o que apreendoe a metade — tao-somente a metade — do movimento queAlthusser diz que Marx fez em direcao ao modelo estrutura-lista. Nao ouco o absolutismo do texto de Althusser em LendoO capital [Reading Capital, Althusser e Balibar, 1971]. Naoescuto uma pratica teorica que estaria divorciada das estru-turas e relacoes reais, nem tampouco percebo uma nocaode capital que estaria fundada em uma logica inteiramentedeterminista, derivada do que e chamado de "relacoes deproducao". O que encontro na "Introducao de 1857" e ummodelo muito interessante, que, penso, nao foi bem compreen-dido; isto e, um modelo que e elaborado a partir da nocao de

355

Page 181: Da Dispora - Stuart Hall

circuitos de producao. Producao, consume, realizacao, repro-du£ao — um circuito em expansao fundado na nocao de umcircuito de producao. Marx, e claro, privilegia o momento daproducao. Mas o que eu nao escuto e aquilo que se tornouum tipo de versao fetichizada de marxismo: a producaodetermina toda e qualquer coisa. Porque ao ler a "Intro-ducao de 1857" cuidadosamente, voce vera que ele fala queo consume determina a producao, assim como a producaodetermina o consumo.

Isso fornece um modelo daquilo que eu chamo de "articuj;-lacJLo", um entendimento do circuito do capital como umaarticula^ao dos momentos de producao com os momentos deconsumo, com os momentos de realizacao, com os momentosde reproducao. Marx diz no texto que, se voce tiver de comecaranaliticamente esse modelo de algum lugar, tern de comecarpela producao.

Justin Lewis: Acho que muitos de nos vemos seu ensaiocomo uma importante ruptura que nos arrancou dos limitesdas escolas de pesquisa dos usos e gratificacoes e dos efeitosdos meios de comunicacao aos quais voce se referiu. Lendoo artigo, ha um claro sentimento de que estamos no limiar deuma novaera, particularmente em termos do modo de ver asaudiencias e a decodificacao. No artigo de Umberto Eco(1972), escrito aproximadamente uma decada antes, que falasobre a semiotica da decodificacao de uma forma diferente,ele tambem, de algum modo, antecipa uma nova era — umaera que nao se desenvolve. Quase nada, de fato, acontece.A pesquisa nessa area ainda nao aparecera de fato, com aexcecao obvia do trabalho de David Morley (1980). Voceficou decepcionado com isso?

Stuart Hall: Nao, acho que nao. O modelo de codifi-cacao/decodificacao nao era um grande modelo. Eu tinha oCentre for Mass Communications Research na mira — erameles que eu estava tentando afundar. Nao pensava que oartigo geraria um modelo que duraria pelos proximos 25anos. Nao penso que ele tem o rigor teorico, a logica internae a consistencia conceitual para isso. Se ele e de algumaserventia, para hoje ou mais tarde, e pelo que sugere. Sugereuma abordagem, abre novas questoes, mapeia o terreno.Mas e um modelo que tem de ser trabalhado, desenvolvidoe mudado.

356

O trabalho de Morley nao e bem o modelo de codificacao/decodificacao. Na medida em que reflete sobre sua propriapr&tica, ele desloca o modelo, pois nao era algo projetadoespecificamente para ser o ponto de referenda durante umlongo penodo de trabalho empirico. Somente depois de terescrito o texto, vi que, se voce contestar um antigo modelode pesquisa de recepcao para abrir um novo, entao, alguemvai tentar coloca-lo em pratica. Com Dave Morley, nos nosvimos com um problema real. Como, de fato, a gente testaesse modelo com gente de carne e osso? Porque, se nosolharmos o modelo de codificacao/decodificacao, veremosque estao esbocadas ali algumas posicoes hipoteticas dedecodificacao — acho que criei um problema para mimmesmo la. As referidas posicoes sao, como chamo, posicoesideais-tipicas ou hipotetico-dedutivas. Nao sao ainda posicoesempiricas. Sao posicoes de decodificacao; nao sao grupossociologicos. E bem possivel para um individuo ou grupo,em um determinado momento, decodificar no que chamo de"codigos hegemonicos" e, em outro momento, usar codigosde oposicao ou contestatarios. Isso e simplesmente paraexplicar melhor a ideia de que ajdecod-i-fiea-f ao-nao. e homo-genea, de que se pode ler de formas diferentes e e isso que ea leitura.

James Der Derian: Seu relato sobre o contexto dasformas de representacao no momento em que escreveu dealgum modo repercute as visoes de Eco e de Baudrillard,segundo as quais nos passamos por tres estagios de repre-sentacao: um puramente realista ou empirico; um segundoem que nao se reflete a realidade, mas sim as boas e masrepresentacoes — como no marxismo, com sua ideia de falsaconsciencia; e um terceiro, em que a representacao e deslo-cada ou desaparece com a emergencia do simulacro (e o queEco levanta em sua obra Viagens na hiperrealidade coti-diana, e Baudrillard, em Simulacros e simula$ao). Inte-resso-me por isso, porque em um ponto, no artigo, voce, defato, diz que jlij^lj^a_de,_existe^Jp^a_da linguagejn, rnas €constantemente media4a_I?ela linguagern.o,u_atraves dela. Vocea7z~7ehtao: "O cachorro no filme pode latir, mas nao conseguemorder." Mas eu me pergunto, agora, quando nos temossimulacros como Reagan, onde o latido foi claramente piorque a mordida — onde parece que fantasia e espetaculo

357

Page 182: Da Dispora - Stuart Hall

deslocam as realidades dessas representacoes — sera quevoce nao minimiza o poder dos simulacros?

Stuart Hall: Usaria termos um pouco diferentes. Mudeiminha nocao do que e representacao. Acho que o modelo decodificacao/decodificacao esta fundado em uma nocao umtanto nao-problematica de que existe algo separado e fora dodiscurso. Suponho que penso assim, ainda, mas nao tenhoa minima capacidade de dizer onde isso esta. E acho que seiporque nao posso faze-lo, pois na medida em que somentepodemos conhecer o real atraves da linguagem, atraves daconceitualizacao, como eu seria capaz de contar a voce ondeisso estaria? Porque eu so posso faze-lo dentro da linguagem.Esse e o problema da "Introducao de 1857", curiosamente.Quando Marx diz que, claro, estruturas reals existem, nosso podemos pensa-las — e onde mais seria — na cabeca.Depois disso, ele sempre diz que o pensamento so pode serarticulado sobre o real; nao pode ser somente uma reflexaodo real. Penso que no manuscrito de 1857 ja existe umanocao do real como algo cuja existencia so pode ser produ-zida discursivamente. Logo, eu nao creio que exista umanocao nao-problematica do real ou do empirico no modelode codificacao/decodificacao, mas ainda assim ela tem umstatus ligeiramente nao-problematico. For isso, quando otermo "representacao" e" usado naquele artigo, e ainda umpouco como se o real existisse e, entao, a representacaoviesse a representa-lo. Ja estou hoje bem longe daquelanocao de uma realidade nao-problematica, contra a qual asdistorcoes da representacao poderiam ser medidas. Nuncafui muito atraido pela nocao de falsa consciencia em toda asua plenitude. Sempre pensei que existe algo profundamenteinquietante e errado nela, inclusive pelo fato de que ninguemse confessa em falsa consciencia: e sempre o outro.

James Der Derian; Eis um sintoma do que estamosfalando: se voce nao esta consciente da falsa consciencia,voce e, com certeza, sua vitima.

Stuart Hall: Sim, com certeza. Portanto, voce nuncaganha com a falsa consciencia. Agora a questao e: ate ondese vai com a abertura da nocao de representacao como sendoalgo em si mesmo constitutivo — como sendo o efeito deuma pr&tica, mas nao como uma pratica em relacao a qual

358

uma certa origem verdadeira possa ser significada? Em quemedida a nocao de representacao foi diluida ou abertapara o simulacro? Nesse ponto, hesito diante da posicaode Baudrillard. Faco isso por duas razoes. Uma delas e queBaudrillard e um mestre do exagero provocador: penso queele nao acredita em literalmente quase nada do que diz.Porem, ele se posiciona contra um entendimento nao-proble-matico da nocao de representacao e da clara separacao entrea midla e a vida real, dlzendo que as relacoes sao muitomais complexas do que isso. Portanto, entendo isso comouma posicao um pouco polemica. Mas minha hesitacao estabaseada em mais do que isso. Deixe-me tomar a metaforaque voce usou. E verdade que, com Reagan, o latido era talvezmaior do que a mordida; mas tambem existia a mordida, e oresto do mundo sabe bem disso. Consequentemente, nao\posso concordar com uma posicao teorica que diz que nos \nao somos nada senao reflexes do discurso de um outro./Simplesmente nao acredito que isso de conta de como o mundointeiro e — penso que possa ser um relate de como algunsamericanos se sentem naquele canto de mundo deles, masnao que o mundo todo seja assim.

Ian Angus: Gostaria de fazer uma pergunta relacionadacom isso. Voce fala sobre um circuito, um circuito de sentido,que voce chama de "articulacao de momentos Hgados, masdistintos". Porem, parece-me que o modelo da codificacao/decodificacao enfatiza os momentos distintos. Segundo pudenotar, o termo "articulacao" aparece somente tres vezes. Emseu trabalho mais recente, voce relaciona explicitamente arti-cula^ao com ligacao. Queria saber se voce veria em retros-pectiva o que me parece ser uma tensao entre um modelosemiotico de codificacao/decodificagao, que aparentementeenfoca os distintos momentos do processo, e uma tendenciaa articulacao, vinda de um modelo de totalidade, que enfocaas relacoes entre os momentos. Voce ve uma tensao entreesses dois esquemas?

Stuart Hall: Para ser franco, nao vejo, porque, analitica-mente, se voce,vai falar de articulacao, voce tem de identi-ficar os momentos isolados para poder falar sobre o que estarelacionado com o que. Mas eu nao falo como se essesmomentos tivessem algum carater auto-suficiente. Portanto,e sempre a producao e o consume em uma relacao. Voce tem

359

Page 183: Da Dispora - Stuart Hall

de saber, analiticamente, por que o consumo e a producaosao diferentes, a fim de falar sobre como eles se articulam.Voce tern de reconhecer a diferenca em cada ponto. Se gastoalgum tempo falando sobre os momentos da codificacao e dadecodificacao, isso nao me impede de ver as relacoes entreeles. Chamo de codificacao e decodificacao duas praticasdiferentes, mas relacionadas, que conectam o que pode seranaliticamente identificado como dois momentos isolados.

O unico ponto em que fico um pouco incomodado com oque voce diz e quando percebo algo que pode ser verdadeiro.Obviamente, existe uma nocao escondida em algum lugarda totalidade complexa, a nocao althusseriana de totalidadecomplexa; isto e, da articulacao das diferencas, o que significao modelo saussuriano — ajlmguagem^ e uma articulacao de4^eren£as. Portanto, voce tem de identificar as diferencas parasaber o que as articula. A linguagem e uma articulacao de'diferencas. A economia pode ser pensada da mesma forma,e esse e, de fato, o impulse presente em Lendo O capital(Althusser e Balibar, 1979 [1971]). Acredito que essa e a nocaode uma totalidade complexa ou sobredeterminada, e nao ade uma totalidade subdeterminada. E correto dizer que omodelo da codificacao/decodificacao esta, pois, tentandopensar os circuitos de comunicacao como uma totalidadecomplexa e sobredeterminada. Mas tenho que devolver aquestao a voce, porque nao penso o modelo semiotico taofortemente ou totalmente contrastado com a nocao de umatotalidade complexa e sobredeterminada. Desse modo, naovejo essa distincao, embora possa estar apenas cego para ela.

Ian Angus: Acho que existe uma distincao, sim. Se tomarmoso sentido em que Marx interpreta a producao como consumo,o consumo como producao, entao, quando me alimentoestou consumindo os produtos do trabalho e estou me produ-zindo como trabalhador no future, o trabalhador de amanha.Portanto, analiticamente, consumo e producao sao momentos,mas momentos analiticamente isolados de uma mesma ativi-dade, que ocorrem no mesmo lugar e ao mesmo tempo. Assim,a distincao e conceitual e analitica. Ora, se voce aplica isso aum modelo de codificacao/decodificacao, parece-rne que adiferenca maior e que a codificacao ocorre em alguns tiposde instituicao, por parte de algumas pessoas; pode ser compli-cado, mas, basicamente, ocorre com algumas pessoas em

360

alguns lugares. Ja a decodificacao ocorre em algum outrolugar, em outra hora, envolvendo outras pessoas.'Isso meparece ser uma importante diferenca em relacao a citadaconcepcao de totalidade.

Stuart Hall. Discordo e vou dizer por que: discordo porqueacho que a analogia nao pode ser feita com o individuo. Issofaz parecer como se tudo acontecesse no mesmo lugar e aomesmo tempo. Se voce pensa sobre isso em termos de circuitosde producao em geral, a producao pode ocorrer em Taiwan,o consumo pode acontecer em Manhattan, e a demora emfazer o reinvestimento pode ser de ate dez anos. Portanto,como modelo geral da estrutura das relacoes de producao econsumo capitalista, os momentos sao muito diferentes. Cadaum e sustentado por alguma condicao. Voce tem de entenderas condicoes que permitem a producao em Taiwan. Emseguida, voce tem de entender as relac<5es que articulam oinvestidor em Tokio com a producao em Taiwan. Depois disso,voce tern de entender as relacoes de consumo na sociedadede consumo de massa, no supermercado do seu bairro. Final-mente, voce tem de entender como o lucro retorna via Londresa alguem que esta reinvestindo em Tokio e que reinvestiraem Taiwan.

Achava o modelo marxiano instigante precisamente porqueparecia ser um modelo que superava distancias de espaco ede tempo, sendo capaz de relacionar praticas aparentementedesconexas, cada uma das quais poderia entrar em colapso,Se a producao em Taiwan se rompe por suas proprias razoesinternas, isso impossibilita a producao das mercadorias queserao vendidas no supermercado. Assim, eu o via mais comoum modelo de sistema como um todo. O problema talvez sejaque, ao analisa-lo a partir do individuo, o corpo acaba ater-rando tudo no mesmo lugar. Consequentemente, a producaoe o consume parecem ocorrer dentro da mesma entidade. Masse voce pensa em termos de um sistema economico ou de umsistema ideologico, eles nao tem de ocorrer no mesmo lugar,tornam-se parte da mesma pratica em um sentido absoluta-mente global. A soma da producao esta relacionada com asoma do consume, que se relaciona com a soma da repro-ducao. Mas nao acho que eles de forma alguma tenham queser parte da mesma pratica interna, pois isso me levaria a

361

Page 184: Da Dispora - Stuart Hall

uma nocao mais forte de totalidade do que aquela que euacho que retenho da "Introducao de 1857".

Sutjhally: Gostaria de saber sua opiniao sobre a criticafeita por Justin [Lewis, 19831 sobre o seu modelo. Lendo oartigo de Justin a!gue~m poderia arguir que, contidos dentrodo modelo, existem dois niveis de significacao: significagaoem geral, isto e, do mundo social, cultural e politico; e umnivel secundario de significacao, ligado a pratica de codi-ficacao. Trata-se de uma leitura em que se defende que oprocesso de codificacao, em vez de ser parte de processesconstitutivos primaries, atua meramente em termos de repro-duzir ou nao reproduzir os sistemas mais amplos de sentido.Voce concordaria com essa leitura e, nesse caso, voce aindadefende seu modelo? Ou voce pensa que se trata de uma maleitura do seu argumento naquele artigo?

Stuart Hall: Nao, eu acho que e uma leitura apurada eque existem dois niveis de significacao identificados noartigo, mas que nao estao tao claramente diferenciados comodeveriam. Em um nivel, estou falando do processo continuede significacao do mundo cultural e ideologico, que estasempre significando e ressignificando — esse e um processosem fim. Porem, eu tambem uso os termos codificacao edecodificacao para falar sobre a pratica especifica de fazerprogramas de televisao. Portanto, salto de um nivel analiticopara o outro, quando, de fato, o modelo de codificacao edecodificacao refere-se apenas a esse ultimo processo.

Simplesmente considero a base cultural/ideologica comoalgo que sempre existe. Nesse sentido, meu artigo e althus-seriano; sugere que sempre existira ideologia, assim comosempre existirao economia e politica. Estas sao as tresinstancias de qualquer formacao social. Logo, sempre exis-tirao discursos na sociedade que sao os meios pelos quais aspessoas tornam significativo o mundo, dao sentido ao mundo.Isso nunca para. Esse e o campo da significacao, do que seriachamado de "significacao em geral" por Althusser, tal como aideologia em geral. Dentro disso, porem, eu quero falar agorasobre o que e especifico na producao de um programa televi-sivo, em vez de escrever um livro ou um texto, ou de punirou enforca-lo, por mais que tudo isso caia no campo daspraticas discursivas. O que e especifico na producao de um

362

programa televisivo? Existe, pois, uma confusao nesses doisniveis de significacao, por eles nao terem sido especificadosapropriadamente.

O modelo da codificacao e uma tentativa de falar sobreuma nova maneira de fazer estudos de midia [media studies]dentro deste universe mais amplo. Ora, voce tern toda razaoao dizer que existe uma nocao de reproducao pela qual oprocesso de codificacao/decodificacao, enquanto momentoparticular de producao simbolica, por parte da instituicao decomunicacao, reproduz o universe ideologico maior. Entre-tanto, creio que nao, e acho que jamais acreditei nisso,embora considere que seja uma leitura bastante legitima domeu artigo. E direi por que: o texto trabalha com a nocao dereproducao e essa nocao e quase impossivel, na linguainglesa, de ser separada da ideia de mera repeticao. Logo,quando digo "reprodugao", soa como se tudo fosse ideo-logia dominante que "pula" para dentro do programa e parafora na decodificacao.

Certo, voce diria entao: "Por que usar a nocao de repro-ducao?" Bern, isso contesta um outro discurso. Faz parte dacontestacao do discurso que vem da teoria do cinema e darevista Screen e, ainda, daquela posicao absoluta segundoa qual cada significado e uma producao. Nesse caso, naoexistem condicoes anteriores. Cada significado e um atototal de producao: esse e o ponto alto e brechtiano na teoriada Screen. Producao, producao e producao. Cada fala e umaproducao. E o que quero dizer e que cada fala nao e uma!producao no sentido dado por tais teorias, porque cada falaesta situada sobre a base de um sentido ja dado. Se voce ternde dizer algo novo, e porque o processo esta transformandoos significados que ja estao la. Portanto, cada ato de signifUcacao transforma o estado efetivo de todas as significances ja|existentes. Por exemplo, cada vez que falo em "inglesidade"[Englishness], afeto a totalidade do mapa da inglesidade queexistiu antes de mim.

Justin Lewis \ Se entendi corretamente, voce esta dizendoque em vez de ter uma nocao de um mundo de significacaoem geral, que produz, como blocos de concrete, signos quesao trabalhados e, logo, reproduzidos pela midia, nos temosduas nocoes: significacao em geral e praticas significantes

363

Page 185: Da Dispora - Stuart Hall

especificas dentro das instituicoes de comunicacao [mediainstitutions].

Stuart Hall. E por todo o lado. E em toda parte.Justin Lewis: Entao, essas praticas especificas se engajam

com a significacao em geral, da mesma forma que as praticassignificantes o fazem dentro de outros aparelhos ideologicosde estado?

Stuart Hall: Com certeza. So me refiro aos estudos demidia [media studies] porque estou falando para as pessoasligadas aos meios de comunicacao, mas poderiamos falar dequalquer texto literario, de qualquer texto burocratico ouconjunto de regras — qualquer coisa que seja um tipo derecodificacao de algo ja existente. O importante nisso e o"sempre ja" [always already], o estar ai, por assim dizer.Sustento essa posicao por duas razoes: em primeiro lugarporque, ao escapar da nocao de um momento originario,simplesmente sepulto a questao de onde tudo isso inicia.Pode ter comecado no Jardim de Eden, mas nao sei. Depoisdisso, ja estamos na historia; por isso, ja estamos no ambitodo discurso. Portanto, o que a midia capta ja e um universediscursivo.

O momento da codificacao nao surge do nada. Cometoum erro ao desenhar um diagrama, contendo somente ametade superior. Se voce esta fazendo um circuito, voce devedesenhar um circuito; portanto, eu devo mostrar como adecodificacao entra na pratica e no discurso que um reporteresta acolhendo. O reporter esta captando algo do mundt?pre-significado com o objetivo de significa-lo de uma novamaneira. Certamente, eu acabei criando problemas para mimmesmo, ao deixar transparecer que existe uma espe"cie demomento ali. Portanto, voce le o circuito como se existisseum mundo real, depois alguem fala sobre ele e o codifica;ai entao, alguem o le e, depois disso, um mundo real passaa existir novamente. Mas, e claro, o mundo real nao estafora do discurso; nao esta fora da significacao. E pratica ediscurso, como qualquer outra coisa.

Ian Angus: Portanto, os dois nfveis de significacaoseriam melhor entendidos como o do universal e o do parti-cular, em vez de niveis de fundacao da realidade.

Stuart Hall: O segundo entendimento nao esta emquestao. Trata-se somente de uma distincao analitica entreideologia em geral e praticas ideologicas especificas ounossas configuracoes ideologicas discursivas ou qualqueroutro nome que quiser dar.

Cathy Scbwichtenberg: Voce esclarece a confusao aosituar o modelo dentro da reflexao de Althusser e da ideia deque ha uma ideologia geral e uma ideologia especifica. Existeuma razao para nao ter incluido isso no artigo?

Stuart Hall: Aquele nao era um artigo que apresentavasuas referencias por inteiro. Por exemplo, a "Introducao de1857" e Marx nao sao mencionados no artigo original. Soaos poucos vou revelando minhas intencoes. Durante umcoloquio do Congresso de Pesquisa Europeia em Comuni-cacao de Massa, ninguem aceitaria se voce dissesse: "Issoesta fundado na nocao althusseriana de totaiidade complexasobredeterminada", as pessoas teriam saido da sala nomesmo instante. Entao, acho que talvez se trate de praticasideologicas especificas, ou quem sabe um pouco de ambasas coisas mencionadas, mas talvez seja um pouco das duascoisas. Estava lendo e contestando Althusser porque meuproprio pensamento estava muito influenciado por esse autor,mas nunca sou um althusseriano doutrinario.

Ora, talvez, se eu estivesse escrevendo uma versao defini-tiva de "Codificacao/Decodificacao" para uma coletanea,provavelmente eu devesse colocar em nota de rodape oureconhecer mais diretamente o impacto de trabalhar com aproblematic^ althusseriana, ou inclui-Ia na discussao.

Sutjbally: Deixe-me colocar uma questao geral: o queexatamente voce quer dizer com "significados preferenciais"e "leituras preferenciais" no texto? Onde esta localizado oprocesso preferencial? Esta no texto? Ou esta na cultura poli-tica e social mais ampla? Sobre o aspecto da decodificacao,quais sao as conseqiiencias, tanto teoricas como politicas, dese colocar o processo preferencial de um lado do circuito?

Stuart Hall: A leitura preferencial e outro problema notexto, e o escorregao entre significado preferencial e leiturapreferencial e o que causa o dano. Pois a leitura preferencialda a impressao de assumir o lado da decodificacao, ao passoque o sentido preferencial estaria no ambito da codificacao,

364 365

Page 186: Da Dispora - Stuart Hall

nao da decodificacao. For que ele esta la? Bern, esta la porquenao quero um modelo de circuito que exclua a ideia depoder. Nao quero um modelo determinista, mas nao queroum modelo sem determinacao. For conseguinte, nao creioque as audiencias ocupem as mesmas posicoes de poderdaqueles que dao significado ao mundo para elas.^Leiturapreferencial £_simpiesmente urn modo de dizer que, se voce"3et6m o controle^cjos aparatos de sjgnjficagagjdo mundo_.e-do controle dos meios de comunicacao^entao^voce escreveos textos — ate certo ponto, ajeitura_.pi:efexericiai tem umaforma determmante. As decodificacoes que voce faz se daodentro do universe da codificacao. Um tenta englobar ooutro. A transparencia entre o momento da codificacao e adecodificacao e o que eu chamaria de momento da hege-monia. Ser perfeitamente hegemononico e fazer com que cadasignificado que voce quer comunicar seja compreendido pelaaudiencia somente daquela maneira pretendida. Trata-se deum tipo de sonho de poder — nenhum chuvisco na tela,apenas a audiencia totalmente passiva. Ora, o problema paramim e que nao creio que a mensagem tenha somente urnsignificado. For isso, desejo apostar em uma nocao de podere de estruturacao no momento de codificacao que todavianao apague todos os outros possiveis sentidos. Tudo o quequero dizer e que uma afirmacao da BBC sobre a Guerra dasMalvinas nao e inteiramente aberta. Ela quer que voce leiaessa mensagem de uma forma determinada. O elemento daleitura preferencial se situa no ponto onde o poder atravessao discurso, esta dentro e fora da mensagem. Assim, nao sepode dizer que eles sao poderosos so porque controlam osmeios de producao; eles tentam se infiltrar dentro da propriamensagem, para nos dar uma pista: "leia-me desta forma".Isso e o que quero dizer comjeitura^refergncial. Trata-se deurr^Jaojativa dejTjggernpnizar a audiencia que nunca e^Htef"rarn£nt^efic^ze,usualmente, nao o e_. For que? Porque aBBC nao consegue center todas as leituras possiveis dotexto. O proprio texto que codifica escapa de suas maos.

• Sempre se consegue le-Io de uma outra forma.Logo, uma leitura preferencial nunca € completamente

bem-sucedida: e apenas o exercicio do poder na tentativa de, hegemonizar a leitura da audiencia. Isso e tudo o que ela e.

366

So nao quero sugerir que o texto e infinitamente aberto, semelementos internes.

Deixem-me tomar um texto que nao provem da midia, ostextos muito complexes de uma peca de Shakespeare. Nossabemos, hoje, 300 ou 400 anos depois, que uma peca desseautor pode ser produzida e lida da forma que se quiser. Existemcentenas de leituras de Rei Lear. Entretanto, Shakespeare naoestaria satisfeito com isso. Shakespeare quer que voce vejaLear de um modo particular; ele quer fazer com que voce naoconsiga ler essa peca de outra forma; voce tem de ver Learcomo o pai assediado. Se voce escolhe le-lo como um velhoestupido, que nao tolera o fato de suas filhas trazerem muitagente para dentro de casa, essa e uma leitura aberrante.Shakespeare nao quer que voce o leia desse jeito. Portanto,penso que nao somente existe uma vontade de poder napratica de significacao, de codificacao, mas creio que 6possivel ver esses elementos alojados no proprio texto.

Sutjhatty. Nesse sentido, voce diz que a leitura prefe-rencial e a intencao do produtor no local da codificacao?

Stuart Hall. Nao quero reduzir tudo isso a intencao dopxodutoi,__^orgue_aa_BBC o produtor e constrangido pelo

ccontexto institacj^jil^^Justin Lewis: Obviamente, como voce diz, os programas

de televisao nao sao como o "grao" que Roland Barthesdescreve no comeco de S/Z: um grao que, com sua ambigiii-dade fisica, pode, em ultima instancia, significar o mundotodo. Os programas contem sentidos preferenciais, formadospelas estruturas de poder; e, invariavelmente, dentro dasinstituicoes de comunicacao, essas estruturas de poder estaorelacionadas com os significados dominantes dentro da socie-dade. Nao obstante, como e que essa concepcao de sentidopreferencial funciona para textos que nao trabalham dentrodesse sistema de significados dominantes mas, sim, contraele? Como funcionam as mensagens da televisao que tem umaleitura preferencial, do ponto de vista textual, que se opoe aum sentido preferencial dominante, na sociedade como umtodo? Como esse tipo de mensagem trabalha em termos domodelo? Parece-me, tambem, que isso tem conseqiiencias emtermos das tres respostas: a dominante, a de oposicao oucontestataria e a negociada.

367

Page 187: Da Dispora - Stuart Hall

Stuart Hall: Sim, voce tern toda razao. Se existe umahomogeneidade na preferencia, e somente pelo que voce podedetectar em termos de um padrao de preferencias durante umlongo periodo de tempo. Portanto, voce pode dizer que, noconjunto e ap6s um longo periodo, voce tenderia a recebermais freqiientemente a mensagern hegemonica.

Mas, e claro, os media produzem todo tipo de coisas.A Gra-Bretanha tem um canal, como o Canal 4, que e institu-cionalmente dedicado as vozes minoritarias, assim comotodos os tipos de programas de oposicao e de minorias. Logo,o proprio lado da codificacao e um espaco muito mais contes-tado e variavel do que aparece no modelo. O modelo descritono artigo, realmente, faz com que as instituicoes de comuni-cacao parecam bastante homogeneas no seu carater ideolo-gico, mas elas nao o sao. O modelo nao esta suficientementeatento para isso.

Nao creio que o modelo de codificacao, tal como e esbo-cado ali, explique suficientemente por que este e um espacocontraditorio e contestado, mesmo nas proprias instituicoesde comunicacao. Ele trata a institucionalizacao da comuni-cacao como algo demasiadamente onidimensional e direta-mente relacionado a ideologia dominante.

James Der Derian: Fico imaginando se voce poderiaavancar mais, no sentido do diferimento do significado, vocesempre atribui essa interpretacao a diferenca, ao fato de umsignificado ser diferente de outro, e assim diferir, "sempre eja" diferir. Portanto, fico curioso em saber se voce incluiriaesse modelo num esquema derridiano de interpretacao.

Stuart Hall: A razao pela qual a preferencia nao podeestancar ou fixar o texto e que o significado e infinitamentediferido, no sentido de Derrida. Logo, esta e a base na quaiestou trabalhando, Mas e o texto apenas um conjunto aberto,algo semi6tico que pode ser decodificado de qualquer modo?Nem tanto: isso implica uma questao de poder. Alguem temde controlar os meios de significar o mundo. Muitas pessoasla fora nao tem outra forma de conhecer o mundo a nao seratraves do significado que se comunica a elas.

Nesse sentido, o modelo toma como certa a nocao derri-diana de diferimento da diferenca. Essa e a natureza datextualidade, em si; logo, ele simplesmente questiona: "Como

podemos evitar que esse modelo seja um jogo infinito dalinguagem?" A coisa nao € bem assim, porque o poder neces-sita da linguagem. Necessita tirar algo do formato dos mapasde sentido que a populacao vai usar para entender os fatos.

Uso ideologia como aquilo que recorta a infinita semioseda linguagem. A linguagem e pura textualidade, mas a ideo-logia quer construir um significado particular. Desejo rompera cadeia do sentido aqui. Quero que ela tenha este signifi-cado, e nao outro qualquer. Portanto, politicamente, destacoligeiramente essas duas nocoes. Acho que e onde o poderinterfere no discurso, onde o poder sobrepassa o conheci-mento e o discurso; neste ponto ocorre um corte, uma parada,uma sutura, uma sobredeterminacao. O sentido construidopor esse corte na linguagem nunca e permanente, porque aproxima frase a tomara de volta, abrira o processo de semiosenovamente. E nao pode fixa-lo, mas a ideologia e uma tenta-tiva de fixar o significado.

Ian Angus: Por isso, sua nocao de preferencia e, naverdade, muito mais proxima da nocao de rasura cunhadapor Derrida. Trata-se do ponto no qual o jogo das diferencasdeve ser apagado para que um centro seja constituido, pois eem torno desse centro que se constroi o texto.

Stuart Hall: E claro que sim! E isso que exige que voceconclua uma frase — essa e minha metafora! Voce tem deconcluir uma frase para fazer qualquer sentido. Em virtudedisso, voce imagina que isso e tudo o que tem a dizer. Mas,de fato, a proxima pessoa dira algo a mais, a proxima frase odesconstruira.

Ian Angus-. Conseqiientemente, uma das tarefas do criticoe separar esse processo preferencial, abrir o jogo e recolocara ideologia na linguagem?

Stuart Hall; Claro que sim! E por isso que esse tipo detraba!ho critico sobre a codificacao e a decodifica9ao e sempreuma pratica desconstrutiva. Abre o texto a uma variedade designificados ou apropriacoes que nao foram estabelecidas naatividade de sua codificacao.

James Der Derian: Mas no seu artigo sobre o thatcherismovoce tomou muito cuidado para distanciar-se de uma posicaopuramente desconstrucionista. Voce diz que a reconstrucao enecessaria contra movimentos pollticos como o thatcherismo.

368369

Page 188: Da Dispora - Stuart Hall

Stuart Hall: Sim, nao sou um desconstrucionista puro,no sentido de que eu nao acho que exista apenas o momentoda desconstrugao. Eu me vejo, nesse sentido, como umgramsciano: cada momento de desconstrucao e, tambem,um momento de reconstruc.ao. Essa reconstrugao nao 6mais permanente do que a anterior, mas nao se trata apenasde desmontar o texto. A razao pela qual digo isso e que oartigo se posiciona em relacao a um momento muito especi-fico; posiciona-se em relagao ao que penso ser o modo intei-ramente despolitizado e formalista pelo qual a desconstrucaotem sido apropriada nos Estados Unidos.

A apropriac.ao americana da desconstrugao a privou desua forca politica, tornou-a um tipo de parque de diversoesintelectual. Nao importa a droga que voce faz com a descons-trucjio: trata-se de mostrar o quao inteligente voce e porsaber desmontar as pressuposic.6es de cada texto em questao,Porem, tambem importa produzir alguns novos textos, aindaque estes nao durem para sempre. Voce nao pode fugir dofato de que dizer algo signifies desmontar uma configuracaode sentido existente e comec.ar a esbogar uma nova.

Sut Jhally. Vamos adiante e tentemos discutir as tresposicoes de decodificacao (preferencial, negociada e deoposicao) e a propriedade de tais posigoes.

Stuart Hall: Penso que o lado da decodificacao estaformulado de maneira bem inferior ao da codificagao noartigo. O que tentei fazer foi seguir a nocao de que nao existeum significado fixo unico e, consequentemente, nunca poderaexistir uma leitura fixa, baseada na nocao de um conjunto deposicoes ideais-tipicas. Portanto, existe uma posicao detransparencia ideal e de equivalencia perfeita entre os doismomentos onde a leitura corresponde mais ou menos perfei-tamente com o modo de preferencia do texto.

Em seguida, existe o oposto disso, uma leitura sistematicado ponto de vista oposicionista, que pode ou nao entender osentido que foi preferido na construgao, mas via de regraretira do mesmo texto exatamente o oposto — entende, porexemplo, o exercicio da lei e da ordem como um exerciciode opressao, ou de resistencia; olha as mesmas figuras e veo outro lado delas.

370

O problema, se voce traduzir essas duas posigoes para apolitica, e que voce retorna a uma posicao demasiado deter-minista. Voce tem a falsa consciencia de uma leitura perfeita-mente transparente ou o perfeito sujeito revolucionario doeterno sujeito de oposicao. Pois eu prefiro algo entre essedois extremes. Entao, eu simplesmente falo do codigo nego-ciado. O codigo negociado esta no artigo como uma posicao,mas, e" claro, nao e uma posicao. E se voce der uma olhadanum modelo semelhante que esta na longa introducao deResistance Through Rituals (Hall e Jefferson, 1976), vera queo que chamamos de "espac.o negociado" esta preenchido porum numero de diferentes posicoes, em relacao as subcul-turas. Portanto, a verdade e que as leituras negociadas saoprovavelmente o que a maioria de nos faz, na maior parte dotempo. Somente quando voce se torna um sujeito revolucio-nario completamente autoconsciente e esquematicamenteorganizado, voce alcancara integralmente uma leitura deoposicao. A maioria de nos nunca esta completamente dentrode uma leitura preferencial ou totalmente a contrapelo dotexto. Nos sempre lutamos e remamos contra a mare dele.Ora, isso fortalece a nocao de que essas posicoes sao ideais-tipicas. Eu simplesmente digo: "a gama e mais ou menosassim".

Nenhuma das posigoes presentes na decodificagao pretendeser uma descrigao sociologica. Trata-se de um modelo aberto.As audienclas movem-se claramente entre as tres posigoes;logo, elas sao lugares em que se toma posicao [positiona-lities], nao sao entidades sociologicas. Cabe ao trabalho empi-rico dizer, em relacao a um texto particular e a uma parcelaespecifica da audiencia, quais leituras estao operando.

Justin Lewis: Posso fazer um comentario sobre isso, tendoem vista minha propria experiencia de trabalho com essascategorias de decodificacao? Um dos problemas que tive,quando observava o modo como as pessoas liam partesespecificas dos telejornais, em relacao a essas tres respostas,envolve o pressuposto de que ja existe um significado prefe-rencial: aquele com que nos em seguida negociamos, concor-damos ou ao qual nos opomos. Entretanto, tambem encontreicoisas acontecendo nas leituras, que eu nao tinha antecipado.Noticias que eu achara que fossem sobre uma tematica, e eram

371

Page 189: Da Dispora - Stuart Hall

preferidas de um modo especifico, eram freqxientementelidas pelos espectadores como algo inteiramente diferente.

Isso se relaciona com uma questao que David Morleypergunta em seu posfacio critico ao estudo sobre Nationwide[um programa televisivo britanico]. Ele diz: "Onde esta aleitura preferencial?" Ela ja esta inscrita no texto? Esta naleitura do analista? Ou esta na leitura da audiencia? Morley emuito enigmatico e, de forma provocante, deixa a questaoem aberto. Eu me pergunto se isso foi porque ele sentiu quepodia ser a pergunta errada. Em outras palavras, e nosso papel,como pesquisadores, nao pressupor um sentido preferencial,mas antes abrir o texto o tanto quanto puder e, em seguida, vercomo ele e fechado pelas pessoas que compoem a audiencia.Isso nos permite usar evidencias empiricas para localizar eespecificar os momentos textuais que determinam (ou deixamde determinar) o significado de um programa para tiposespecificos de telespectadores.

Stuart Hall: O preferencial no ambito da decodificacaosignifica algo diferente do preferencial na codificacao. De certaforma, posso rejeitar [deprefer] sua preferencia e renovar aminha preferencia [reprefer], Posso dizer: "Voce queria queeu lesse de uma determinada forma, mas eu nao leio dessejeito." Portanto, o elemento de fechamento jamais fundona,o que nao significa que nao esteja presence. Por essa razao,o preferencia! e a tentativa que o poder faz para amarrar amensagem a um significado. Porem, o poder nunca tern exitonessa pratica. Todavia tambem digo, e acho que ainda pensoassim, que um texto comporta — tanto quanto os signifi-cantes reais podem sustentar — uma leitura diferente. Umtexto contem o que so posso chamar de significantes "indica-tives", que tentam se imprimir dentro da propria mensagemna qual podem ser decodificados.

Justin Lewis-. Sim, mas como voce pode descobrir quaissao esses significantes indicatives? Presumimos que, enquantoanalistas, podemos de alguma forma descobri-los? Ou dizemosque o modo de descobri-los e ver como a audiencia constroisuas proprias leituras preferenciais e, tendo feito isso, voltarao texto e ver como ele realmente forcou a audiencia a taisposicoes, negociando com suas proprias visoes de mundoideologicas? Podemos, em suma, dizer que existe uma leitura

372

preferencial ou urn conjunto de leituras preferenciais porquevimos como, de fato, o texto da preferencia a certos tipos de

significados.

Stuart Hall: Nao, eu nao posso pensar nessa direcao,porque sugeriria que as decodificacoes sao demasiado fechadas.Penso que a decodificacao pode reler o texto a contrapelo,portanto nao creio que voce possa usar a decodificacao feitapela audiencia para dizer qual e o significado preferencialdo texto.

Justin Lewis. Como, entao, descobrimos os momentospreferenciais?

Stuart Hall: Bern, penso que voce pode fazer issosomente atraves de um tipo de analise textual.

Ian Angus: O que ja e uma decodificacao da nossa parte.Stuart Hall: Sim, e claro que ja e uma decodificacao; e

isso o que eu Ihe disse anteriormente. Tao logo damos contade um texto, fazemos um tipo de leitura. Penso que voce ternque assumir esse risco analitico e digo isso porque nao achoque essa seja uma arena na qual se possa ter um metodocientifico completamente objetivo. Alias, nao creio que existaqualquer ciencia que possa dar conta do sentido. Portanto,voce deve arriscar a leitura de tudo o que puder, da formamais neutra possivel, daquilo que parecer ser a configuracaoque um texto recebeu em virtude de ter passado por umdeterminado lugar. Isso e tudo! Penso que parte do seu relatetem de ser bastante aberta, bastante neutra. Trata-se do tipode objetividade necessaria. Nao acredito em verdadeira objeti-vidade, mas esse e o momento da pesquisa onde se tentasuprimir ao maximo sua propria leitura para reconstituir otexto como um objeto de pesquisa. Porem, tambem pensoque nao existe um modo de se fazer isso sem reconhecer queja se esta dentro do sentido.

Justin Lewis: Ainda tenho um problema analitico. Minhaimpressao e de que, apesar do grande prestigio que a analisetextual goza, duas pessoas, ambas muito especializadas emanalise textual, podem ver um filme e discutir, longamente,sobre o que, de fato, o filme trata. Penso que ainda estamosna fase de exploracao do funcionamento dos textos. Dadoisso, a pesquisa da decodificacao nao se torna mais sutil,

373

Page 190: Da Dispora - Stuart Hall

mais sofisticada, se tivermos uma ideia do significado prefe-rencial que existe dentro do texto e com o qual podemosjogar durante a decodificacao? Em outras palavras, coletamosdecodificacoes, podemos ver como aquela ideia parecefuncionar e, em seguida, construimos e definimos, realmente,uma leitura preferencial, em vez de definir a leitura prefe-rencial antes de fazer qualquer pesquisa de decodificacao.

Stuart Hall: Bern...Justin lewis: For que o que pode ocorrer se estivermos

errados? Isso bem pode acontecer. Nesse caso, nos simples-mente terminaremos com um numero de decodificacoesaberrantes nas maos.

Stuart Hall; E o mesmo problema que temos com a nocaode leitura preferencial. Nao sei se posso responder a voce deum modo diferente. Acho que existem perigos em ambos oslados. Se voce tern uma leitura preferencial, voce ja pre-estruturou as decodificacoes que provavelmente conseguira.Essa e, penso eu, sua preocupacao. Se voce nao tern umaleitura preferencial, esta na ilusSo da objetividade. Voce estacomprometido com a ideia de que o texto possa significarqualquer coisa. Eu nao sei como sustentar uma posicao entreessas duas citadas, porque nao parece existir qualquerespa£o entre elas.

Ainda assim, nao estamos fora do problema filosofico aiexistente porque, embora seja experimental e aberta, trata-seaqui de um tipo de leitura, onde voce para antes de afirmar:"Isso e o que quer dizer." Voce esta a meio caminho de dizer:"Isso e o que significa." Se voce concorda em aceitar isso, euconcordaria tambem.

Jon Cruz: Existindo limites em torno do significado, se osentido nao estd simplesmente em jogo, disponfvel paraser pego em qualquer ponto no tempo, entao, parece-rneque muitas das questoes que voce levanta no seu trabalhopressupoem correr o risco analitico de especificar o que ehistoricamente particular em qualquer momento dado. Daiminha pergunta sobre o modelo da codificacao/decodifi-cacao nos deixa com o seguinte problema: ou reconhecemosum abismo entre as praticas discursivas, por um lado, e oque se presume ser o real; ou negamos isso e fazemos apenasanalise discursiva, contrabandeando certas nocoes de real,

374

ao assumirmos o risco de especificar o que pensamos seruma leitura apropriada. Estou falando aqui do papel doanalista. Quais sao seus comentarios sobre isso? Existemalguns limites, existem problemas de especificidade historicaque dao forma ao real e forcam o pesquisador a especificar edar nome a ele, ainda que existam momentos e movimentosque neguem o real. Como podemos contornar esse problemasem enfocar somente os textos?

Stuart Hall: Suponho que, no final, essa posicao evitaou se esquiva da questao de saber se existe alguma distincaofixa ou verificavel entre o real e o discursive, ou entre odiscursive e o extradiscursivo. Nao sei onde esta o extra-discursivo. Considero o extradiscursivo como um tipo deaposta. E um tipo de aposta de que o mundo existe, mas quenao pode ser provada em um sentido filosofico. Nao sei comoaiguem provaria isso: a existencia do real. Certamente o queeu nao atribuo € uma determinacao definida e ultima tantoao discursive quanto ao extradiscursivo ou real.

Contudo, creio que eu nao poderia pensar a "pratica" semtocar em algum fundamento, com cada pratica sempre tocandonesse elemento basilar como algo necessario, ainda que naosuficiente — em algum lugar, sempre ha uma materialidade,um registro material. Contudo, isso me coloca diante do quechamaria de real historico que, embora nao seja o real filoso-ficamente, tem bastante determinacao dentro dele. As estru-turas historicas podem nao durar muito tempo, podem naoser para sempre, podem nao ser transcendentais, mas enquantoexistem, de fatof estruturam um campo especifico, Portanto,elas significam que qualquer pesquisa ja esta sempre locali-zada em um momento historico, em uma conjuntura histo-rica. As questoes que o pesquisador possui nao provem dealguma ciencia objetiva, mas de algum conjunto particular depreocupacoes. Existem nocoes sobre qual e a conjunturapolitica e historica que nos estamos vivendo que forinatam apesquisa. Todos esses fatores estao presentes na investigacao.

Trata-se de uma apropriacao gramsciana; dou atencao, viaGramsci, ao que chamo de conjuntura: a articulacao especi-fica de momentos, que e particular e peculiar a um momentohist6rico especifico; ao modo dentro do qual o balance parti-cular das forcas entre diferentes elementos sociais sempre

375

Page 191: Da Dispora - Stuart Hall

define um terreno de movimento e pratica em qualquer tempoparticular. Observe que essa conjuntura nao e o resuitado deuma realidade abstrata, analitica ou cientificamente definida.Nesse sentido, nao existe uma ciencia da historia que possanos dar garantias, mas existe um tipo de reconhecimento deque a leitura esta localizada em algum ponto da historia. Nossaconversa esta sendo conduzida em um espaco particular, emum momento especifico da historia; e a conjuntura ternalguns efeitos de configuracao sobre como uma pesquisa seraconduzida, como as questoes serao feitas e qual sera o destinoda pesquisa.

Portanto, ao afastar-me do real ou do extra discursive comouma especie de significant^ transcendental fora do sistema,estou tentando reintroduzi-lo como elemento da estrutu-racao tendencial. Logo, nao ha razao para o fato de os inglesesterem dominado o resto do mundo por 300 anos significarque, toda vez que se fale da identidade inglesa, ela se vejacomo superior ao resto do mundo. Mas existe uma boa razaohistorica para que isso aconteca. E a tendencia na culturasera sempre no sentido de fazer a inglesidade [Englisbness]significar isso. Se voce quer que signifique outra coisa, sevoce quer que signifique os meninos negros do grupo defotografia com o qual trabalho, voce tern de fazer muitotrabalho ideologico para deslocar a palavra e o conceitodaquela estruturacao tendencial dominante para uma outra.

Nesse sentido, permaneco vinculado a certas origens demeu proprio pensamento na hermeneutica. A promessada semiologia e fazer a hermeneutica tao cientifica quantopossivel — o que e um projeto impossivel. O que nao rendee uma ciencia do significado como a terceira lei da termodina-mica. Mas diz, sim, que se tern de fazer algo mais, no trabafhocientifico, do que somente dizer: "Bern, essa e minha suspeitae acho ta! coisa sobre o texto." E precise avancar o maximopossivel no sentido de sugerir que a coisa toda esta fundadanas operacoes da linguagem. Voce pode dar algum relate dissoque nao seja apenas solipsistico, que nao seja mero resuitadode um preconceito subjetivo interne. Contudo, a nocao deque o que voce produz e o significado, cientificamente vali-dado, e, para mim, insustentavel (nao posso defender essaposicao, e obvio, pela minha interpretacao do que e signifi-cado). A objetividade da pesquisa em ciencia social esta sempre

376

entre aspas: e a aspiracao a teoria, mas como tal e algo quepara antes da pratica teorica. Toda pesquisa e teorizada,mas nao e teoria com !Tmaiusculo: a teoria e a atividade deleorizar, de continuar pensando, em vez do ponto final daproducao de um modelo teorico ultimo.

Ian Angus: Stuart, olhando para o conjunto de possibili-dades de decodificacao, parece que ainda existem outras duasalternativas, ambas, por varias razoes, insatisfatorias. Existe,por um lado, o caminho hermeneutico tradicional, no qualdistinguimos entre um entendimento inicial do texto e ainterpretacao de um leitor determinado. Isso e problema-tico, porque pressupoe um centre comum de sentido emtodas as interpretacoes. Isso e o velho e ruim essencialismo.

Ao rejeitar isso, voce todavia cai em outro problema: o deser incapaz de distinguir, de fato, uma decodificacao aber-rante de uma decodificacao de oposicao — ou entre entenderum texto e as leituras de oposicao. Nesse caso, pensar que otexto trata de algo completamente diferente parece ser umapratica de oposicao.

De alguma maneira, precisamos de uma saida para ambasas alternativas. Precisamos entender a pratica da decodifi-cacao ou leitura de um modo que contorne ambas as posicoescitadas. A unica forma que vejo e comecar a falar de "comuni-dades interpretativas". A vantagem de usar tal ideia e que,nesse caso, as praticas de leitura estao situadas dentro de umcontexto social e institucional, um contexto que e diferentedaquele das instituicoes de codificac.ao. Isso faz sentido paravoce? E o que voce pensa sobre o termo "comunidades inter-pretativas"?

Stuart Hall; Acho que ainda nao percebo ou estou come-c.ando a perceber a distincao que voce faz entre entendimentoe interpretacao. Creio que provavelmente voce esta certo:esses sao dois momentos analiticamente separaveis; rnas, comcerteza, nao tenho consciencia de concebe-los como duasatividades diferentes. Portanto, e uma especie de hiperbolequando falo de contestar o significado — como se voce olesse e reconhecesse que essa e a leitura preferencial e, entao,dissesse: "Eu nao gosto disso, portanto eu o lerei de umaforma diferente." Como disse acima, e somente durante a tenta-tiva de persuadir minha audiencia de que isso, realmente,

377

Page 192: Da Dispora - Stuart Hall

pode ser diferente que falo em distintos momentos. Entao,voce distingue mais ou menos o que a mensagem esta tentandodizer para voce; no mesmo momento, voce, de fato, naoconsegue entende-la dessa forma, mas ja a entende de outramaneira. Portanto, como uma pratica, esses momentos naosao analiticamente separados: eles sao analiticamente sepa-ravels no meu texto, apenas porque se trata de um textoanalitico e funciona exatamente como um circuito. E precisodar-lhes alguma especificidade para falar de sua articulacao,mas esses momentos nao existem na realidade. Eles soexistem ja articulados.

Sei que isso e ligeiramente problematico, na medida emque ha outro problema oculto nessa questao, isto e: existemformas de entendimento que sao mais intuitivas, que nao saotao ideologicamente estruturadas e impulsionadas, formas deconhecimento que nao sao tao claramente relacionadas comos codigos? Ainda nao sei o que pensar sobre isso, mas achoque existem. Assim, eu posso ter passado por cima de algunsproblemas ao fazer do entendimento e da interpretacaopartes de um processo unitario, mas de certo, no artigo, issotudo foi tornado como parte de um processo unitario.

Agora, chegando ao ponto que voce levantou, sobre tentarparar antes de chegar no oposto disso, acho mesmo que ainterpretacao e uma das melhores maneiras de tentar levar oaspecto ideal-tipico do modelo da decodificacao para o campoda pesquisa empfrica. E isso que constitui as audiencias. Elascompartilham alguns referenciais de entendimento e inter-pretacao, alguns referenciais de leitura. Ler nesse sentido naoe apenas o individuo solitario dos "usos e gratificacoes". Naose trata da leitura puramente subjetiva: ela e compartilhada;possui uma expressao institucional; relaciona-se com o fatode que voce e parte de uma instituiyao.

As leituras que voce faz surgem da familia em que voce foicriado, dos lugares em que trabalha, das instituicoes a quepertence, das suas outras praticas; e isso e o que realmentepenso, embora o termo "comunidades interpretativas" nao sejausado. E isso o que realmente direciona a pesquisa deMorley: tentar identificar certas comunidades interpretativasmuito particulares, que compartilham alguns referenciais dedecodificacao comuns e, em seguida, contrasta-las livremente

378

umas com as outras. E por isso que a pesquisa de Morley eapenas o primeiro estagio da aplicagao, extensao e desen-volvimento empirico daquele modelo. Nos nao usamos otermo "comunidades interpretativas".

O trabalho de Tony Bennett sobre James Bond fala arespeito de "formacoes de leitura", que e outra forma de falarsobre o fato de que as comunidades interpretativas compar-tilham as ferramentas de leitura do texto, e que nao saocoisas totalmente solipsisticas e individualizadas. Penso queesse e um interessante caminho a ser seguido e que o trabalhode Morley, depois do periodo em que se deteve sobre afamilia, e outra forma de ver uma comunidade interpretativaparticular que, devido a natureza domestica da televisao, eabsolutamente crucial. O trabalho tern a vantagem extra detornar centrals ao conjunto da atividade decodificadora asquestoes de genero, que, e claro, estao na raiz desse modelo.Portanto, penso que se pode trabalhar muito bem com anocao de comunidades interpretativas ou formacoes de leitura,embora existam problemas com sua identificacao sociologica.Mas, mesmo assim, acho que e um caminho a ser seguido.

Cathy Scbwichtenberg: Gostaria de fazer uma perguntasobre as comunidades interpretativas. De alguma forma, essee um termo que tern sido formulado pela cntica baseada naestetica da recepcao [reader-response criticism] (Stanley Fish,por exemplo). Frank Lentricchia questiona Fish com base naideia de que suas comunidades interpretativas nao sao outrassenao os academicos da costa leste dos Estados Unidos.Portanto, me pergunto como voce responderia a isso emtermos dos tipos de pesquisa de audiencia feitos por Bennette por Morley e, em seguida, pelos modelos de respostado leitor [reader-response approaches]. Eles se contestammutuamente?

Stuart Hall: Comecemos por Fish: eu penso que a criticaesta provavelmente correta. Cada um de nos tern sua comuni-dade interpretativa preferida, algumas nas quais vivemos todoo tempo e, equivocadamente, tomamos pelo resto do mundo:isso e um problema constante na vida academica.

As competencias de leitura, se existem, sao parecidas comas competencias linguisticas, que todos sabemos seremfundamentalmente sociais. Nao ha sentido em se ter uma

379

Page 193: Da Dispora - Stuart Hall

linguagem apenas para voce; desse modo, dentro de suacabeca, voce poderia falar consigo mesmo sem a linguagem.No momento em que voce adquire uma linguagem, voce estaem uma situacao social, e eu creio que a leitura e uma ativi-dade social dessa especie. Assimf alguem diria: "Bern, quaissao esses agrupamentos?" Eles nao sao necessariamente dadospela analise sociologica, porque eles nao coincidem com asclasses sociais ou qualquer coisa do genero. Dentro dequalquer classe, existem numerosos deles. Entao, como vocefaz a divisao de uma maneira que seja sensivel ao fato de queo que esta tentando estudar sao as leituras? Voce nao podedividi-los por profissao ou por qualquer outra dessas cate-gorias sociologicas dadas, pois as leituras interpretativaspodem atravessar varias delas. O discurso e a ideologiapossuem suas proprias estruturas e elas nao correspondemas estruturas economicas ou sociais de maneira simples. Ascomunidades interpretativas sao apenas isso.

Sutjhally. Voce poderia falar um pouco mais sobre o modocomo nos podemos investigar essas atividades de maneiraempirica? E, ainda, por que tem havido tao pouca pesquisacritica da audiencia? Voce acha que essa e uma direcao impor-tante a ser seguida? Voce ere que esse e o proximo passo vitalque precisa ser dado, ou existem outras areas produtivasque poderiam ser desenvoividas? E, na mesma linha, vocepoderia falar sobre o problema ou a questao do prazer, queobviamente tem tido uma ampla aceitacao no recente trabalhocritico que alega ser sobre a audiencia?

Stuart Halt. Por que nao houve mais trabalhos desse tipo?Penso que existem varias razoes. Primeiro, naquela epocaunia grande pa*te dqs estudos culturais se relacionava muitointimamente com. os estudos de comunicacao. Por isso, asanalises de conteudo e as pesquisas de audiencia voltadaspara os efeitos eram uma preocupacao dominante nos estudosculturais. Mas, como voce sabe, logo em seguida (quando oartigo sobre codificacao/decodificacao foi escrito) as coisascomecaram a mudar. O artigo foi escrito no limiar da mudancabarthesiana que partiu da interpretacao dos codigos para anocao de textualidade e, depois, para a nocao de desejo e deprazer do texto. Portanto, e o momento em que os estudosculturais transitaram dos estudos de comunicacao para a

380

teoria literaria, para o texto cinematografico, para a psicana-Hse, para o feminismo e para o inicio do pos-estruturalismo.Creio que isso foi muito importante no desvio para outrostipos de preocupacoes, em detrimento do trabalho empiricoque as pessoas queriam fazer inicialmente e do desenvolvi-mento do modelo de codificacao/decodificacao. Acho que haproblemas no modelo, como tenho dito muito claramente,mas nao creio que seja apenas isso: de algum modo isso tema ver com a conjuntura.

Depois de terminar o artigo sobre a codificacao/decodifi-cacao, nos tentamos obter fundos para torna-lo um modelomais aplicavel empiricamente. Essa e uma questao institu-cional — nos nao conseguimos nada. Teria sido possivelarrumar dinheiro de uma hora para outra para fazer enormesenquetes sobre os efeitos das mensagens nas audiencias.Qualquer um as financiaria, se voce quisesse faze-las, masninguem financiaria tentativas de ver a decodificacao. Final-mente, Dave Morley se associou ao Centre e, entao, nosarranjamos algum dinheiro que permitiu a ele trabalhar, emtempo parcial, no projeto sobre o Nationwide. Tambem, houveo trabalho de Charlotte Brunsdon, que estava entao come-cando a trabalhar com as novelas, os seriados televisivos eoutras coisas do genero a partir de uma perspectiva mais femi-nista. Assim, constitutmos um pequeno grupo de pesquisa e epor isso que o projeto referido acima parece tao fragil: foi feitocom poucos recursos e, assim, realmente nao poderia definirempiricamente as comunidades interpretativas. Tinhamos debaratear o trabalho e dizer: "Bern, podemos crer que esses tresgrupos podem ser frutiferos." Muitos problemas sao resultadoda falta de vontade dos organismos financiadores em investirinstitucionalmente.

Porem, se algue'm dissesse: "Bern, sendo os estudos culturaisuma grande operacao hoje, estamos dispostos a financia-los",eu retornaria ao modelo de codificacao/decodificacao? Achoque nao e isso nao porque eu creia que nao ha serventianele no campo da pesquisa em comunicacao, no estudo dasinstituicoes comunicacionais, das redes de comunicacao e dasaudiencias. Creio que o modelo ainda pode ser utii nessasareas. Hesito nao porque pense que o modelo nao possa pro-duzir algum desenvolvimento adicional (embora eu insistano que havia dito antes: se voce for trabalhar com o modelo,

381

Page 194: Da Dispora - Stuart Hall

tern de modifica-lo e desenvolve-lo). Nao esta em questao ofato de o modelo poder ser, agora, aplicado pratica e empi-ricamente. Voce tern de elaborar o modelo tanto quantotrabalhar com a sua aplicacao empirica. Acho que ele aindatern algo a oferecer aos estudos de comunicacao.

E acho que pode produzir algo na area sobre a qual voceme questionou, isto 6, os estudos da recepcao. Alias, ummodelo parecido tern sido desenvolvido a proposito daquestao de como entender as audiencias de textos literariosespecificos; e, embora o modelo nao seja exatamente omesmo, creio que o modelo de codificacao/decodificacao ternalgo a oferecer a esse tipo de trabalho.

Para mim, porem, muitas das bases teoricas e filosoficasdo modelo tern sido desmanteladas ou desconstruidas pelomovimento p6s-estruturalista, pois a nocao barthesiana detextualidade nao e mais receptiva a identificacao daquelesmomentos analiticos claramente distinguiveis da codificacaoe da decodificacao. So posso descrever Isso espacialmente,porque se trata de algo que achata meu clrcuito: em vez de umcircuito que possui um movimento circular claramente distin-guivel e expansive, a nocao de textualidade coloca a leitura ea producao do sentido iado a lado. Ela as torna laterals, maisdo que um circuito.

Na nocao de decodificacao, estava tentando controlar aquestao da leitura, estrutura-la ao menos um pouco, de modoque pudessemos descobrir algo a seu respeito. No ponto maisalto da teoria da textualidade, especialmente, por exemploem O prazer do texto, de Barthes, nao existe mais qualquercontrole. Por que? Em parte porque o modelo e descentradoa partir de outra perspectiva; ele e descentrado desde ladebaixo, se voce me permite uma metafora espacial, pois naoapenas a interpretacao e a textualidade receberam um sentidomuito mais amplo e abrangente mas, tambem, porque asquestoes do inconsciente, da psicanalise e do feminismoentraram no modelo. Neste momento, voce perguntara: quale o jogo no texto dos significados que nao sao receptivos ouacessiveis aos codigos interpretativos do tipo semiotico? Quesemiotica do inconsciente ou do posicionamento de generoexiste junto a semiotica da ideologia politica? Bern, com issovoce tern uma nocao muito mais fraturada do que um texto

382

significa; voce tern uma nocao muito mais fraturada do quea interpretacao significa. Meu modelo e bastante cognitive.Nao £ verdadeiro dizer que no centre dele esta o sujeitocartesiano: ja se trata de um sujeito descentrado, mas de umtipo de sujeito descentrado cognitive; ainda se trata de umsujeito que atua com muitos codigos interpretativos; maisainda, nao e um sujeito com um inconsciente. Quando ele setorna um sujeito com um inconsciente no qual a textualidadetambem envolve a resposta prazerosa ou o consume praze-roso do texto, e muito dificil saber, empiricamente, como vocevai descobri-lo de alguma maneira identificavel, observavelno comportamento.

Um dos problemas desse ultimo desenvolvimento da teoriacritica e que ela amplia nosso entendimento do quanto J3sentido € complexo e de quantos locals diferentes de deter-minacao estao envolvidos nele. Nos sabemos muito maissobre ele, mas estamos menos seguros em consagrar a eleum esforco de pesquisa empiricamente demonstravel. Isso euma das razoes de um dos problemas de hoje, que todo omundo e critico literario, o que nao deixa de ser surpreen-dente apos trinta anos.

Fizemos um retorno subrepticio a leitura literaria indisci-plinada, que todo esse exercicio pretendia colocar em basessolidas. Nos envolvemos nas questoes do artigo "Codifi-cacao/Decodificacao" porque nao estavamos satisfeitos comtodo o mundo sentar a mesa de Leavis para dizer: "E isso cque o texto quer dizer, nao e?"

Leavis imaginava uma comunidade interpretativa perfeita,reunida no Downing College, Cambridge. Em virtude dosistema educacional ser altamente seletivo na Inglaterra,eliminando todas as outras comunidades interpretativas, voceconseguiria ter nele os oito leitores ideals e, e claro, elesproduziriam uma leitura comum, a leitura comum informada.Todos saberiam exatamente em que ponto The Portrait of aLady deixa de ser um bom texto e comeca a ficar ruim; etodos nos nao so concordariamos como produzinamos talconsenso, a leitura ideal. De modo estranho, nao dessamaneira consensual, voltamos a confianca no entendimentointuitivo do texto, conferindo a ele uma especie de autentici-dade, de validade. Trata-se aqui de uma longa maneira de

383

Page 195: Da Dispora - Stuart Hall

responder a sua questao, mas ela solapa a certeza de que,agora, eu poderia tomar o modelo de codificacao/decodifi-cacao, sair com ele por ai e identificar a audiencia e examinara codificafao e a decodificacao.

Assim, se alguem acha que esse modelo possui suficientecompreensao de algum problema especifico que enfrenta hoje,que levante essa bandeira, reelabore e experimente — euadoraria ver o resultado. Talvez eu nao o faca mais, porqueestou tentando resolver um outro conjunto de problemas, masalguem mais poderia chegar ao ponto de tirar alguma coisadele. A teorizacao e a pesquisa empirica teoricamente infor-mada precisam trabalhar em meio a um certo numero deparadigmas e construir seu proprio ponto de partida para-digmatico. Assim, certamente eu nao gostaria de dizer: "naotente usa-lo"; eu adoraria ve-lo aplicado e penso que, mesmoem sua epoca, ele nao foi bem aproveitado. Naquele periodoeu teria gostado de fazer um teste bem construido do modelo,para ver o que dele poderia resultar e se eu poderia te-Iodesenvolvido melhor a luz daquele experimento. Todavia,nao tivemos essa oportunidade.

[HALL, Stuart. Reflections upon the Encoding/Decoding Model:An Interview with Stuart Hall. In: CRUZ, J.; LEWIS, J. (Org.).Viewing, Reading, Listening. Audiences And Cultural Reception.Boulder/Oxford: Westview Press, 1994. Tradu9&o de Ana Caro-lina Escosteguy e Francisco Riidiger.]

BIBLIOGRAFIA

ALTHUSSER, L Lenin and Philosophy. London: New Left Books, 1971.[Traducao portuguesa: Lisboa: Estampa, 1974.]

AL1HUSSER, L.; BALIBAR, E. Reading Capital London: New Left Books,1971. [Traducao brasileira: Rio de Janeiro: Zahar, 1979.]

BARTHES, R. Elements of Semiology. London: Jonathan Cape, 1967.[Traducao brasileira: Sao Paulo: Cultrix, 1972.]

BARTHES, R. S/Z. New York: Hill and Wang, 1974. [Traducao brasileira:Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.]

384

BARTHES, R. The Pleasure of the Text. London: Jenathan Cape, 1975.[Traducao brasileira: Sao Paulo: Perspectiva, 1973-1

BAUDRILLARD.Jean. Simulations. New York: Semiotexte, 1983.[Traducao portuguesa: Lisboa: Relogio d'Agua, 1991.]

BENNETT, T.; WOOLLACOTT, J. Bond and Beyond: Fiction, Ideologyand Social Process. London: Macmillan, 1987.

BRUNSDEN, C.; MORLEY, D. Everyday Television- Nationwide. London:BFI, 1979.

ECO, U. Towards a Semiotic Inquiry into the Television Message.Working Papers in Cultural Studies, CCCS, University of Birmingham,v. 3, 1972. [Traducao brasileira in: Apocatipticos e integrados. SaoPaulo: Perspectiva, 1972.]

ECO, U. Travels in Hiperreality. London: Picador, 1987. [Traducaobrasileira (7a ed-X Ri° de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.]

FISH, S. Is There a Text in This Class? The Authority of InterpretiveCommunities. Cambridge: Harvard University Press, 1980.

GRAMSCI, A. Selections from the Prison Notebooks. London: Lawrence& Wishart, 1971. [Traducao portuguesa: Lisboa: Martins Fontes, s/d.]

HALL, S. Marx's Notes on Method: A "Reading" of the 1857 Introduction.Working Papers in Cultural Studies, CCCS, University of Birmingham,v. 6, 1974.

HALL, S. Encoding/Decoding. In: HALL, S. et ai. (Ed.). Culture, Media,Language. London: Hutchinson, 1980.

HALL, S.; JEFFERSON, T. (Ed.) Resistance Though Rituals. London:Hutchinson, 1976.

LENTRICCHIA, F. After the New Criticism. Chicago: University ofChicago Press, 1980.

LEWIS, J. The Encoding/Decoding Model: Criticisms and Redevelopmentsfor Research on Decoding. Media, Culture and Society, v. 5, 1983-

385

Page 196: Da Dispora - Stuart Hall

MARX, K. 1857 - Introduction and 1859 - Preface to A Contribution tothe Critique of Political Economy. London: Lawrence & Wishan, 1971.[Traducao brasileira: Sao Paulo: Martins Fontes, 1983J

MORLEY, D. The Nationwide Audience. London: BFI, 1980.

MORLEY, D. Family Televison. London: Comedia, 1986.

SAUSSURE, F. Course in General Linguistics. London: Fontana, 1974.[Traducao brasileira: Sao Paulo: Cultrix, 1969.]

386

C O D I F I C A C A O / D E C O D I F I C A g i O

Tradicionalmente, a^£esc[ui^a em comunicacao de massatem concebido o processo comunicativo em termos de umcircuito. Esse modelo tem sido criticado pela sua linearidade— emissor/mensagem/receptor; por sua concentracao nonivel da troca de raensagens; e pela ausencia de uma con-cepcao estruturada dos diferentes mementos enquantocompiexa estrutura de relacoes. Mas e tambem possivel (e util)pensar esse processo em termos de ^ma^e^r^tura^prflcU.r^ic^es.usteritacUi.^Uajyes^d^^rr^uUcao de momentos distintos,mas interHgados — pj;oducla.^irculacaro,^Ustr^jj[cjg/con-sjjmcx,^reprgcjucjo. Isto seria pensar o processo como uma"compiexa estrutura em dominancia", sustentada atravesda articulacao de praticas conectadas, em que cada qual,no entanto, mante"m sua distincao e tem sua modalidadeespecifica, suas proprias formas e condicoes de existencia.Esta segunda abordagem, homologa a que forma o esque-leto da producao de mercadorias apresentada nos Grundrissede Marx e em O capital, tem a vantagem de destacar maisclaramente a forma na qual um contfnuo circuito — producao-distribuicao-producao — pode ser sustentado atraves deuma "passagem de formas".1 Ela destaca tambem a especifici-dade das formas nas quais o produto do processo "aparece"em cada momento e, portanto, o que distingue a "producao"discursiva de outros tipos de producao em nossa sociedadee nos sistemas de meios de comunicagao modernos.

O "objeto" de tais praticas e composto por significados emensagens sob a forma de signos-veTculo de um tipo especi-fico, organizados, como qualquer forma de comunicacao ou

Page 197: Da Dispora - Stuart Hall

HngLiagem, pela operacao de codigos dentro da correntesintagmJ^a) de um discurso. Os aparatos, relacoes e praticasde producao, aparecem, assim, num certo momento (omomento da "producao/circulacao"), sob a forma de ve.ig.ulossim.b6UG©s-.consti,tuid.osdentro das reeras de "lineuaeem".

— - "*- - I— u^—~ -«-™-»»S«6.™^.^w-£lprMBa«,rfM,™m,J— «-.<> - O-

E nessa forma discursiva que a circula§ao do "produto"se realiza. O processo, desta maneira, requer, do lado daproducao, seus instrumentos materials — seus "meios" —bem como seus pr6prios conjuntos de relagoes sociais (deproducao) — a organizacao e combinacao de praticas dentrodos aparatos de comunicacao. Mas e sob a forma discursivaque a circulacao do produto se realiza, bem como sua^distri-j^yi^jg^^r^difcrentes^udiSncias. Uma vez concluido, odiscurso deve entao ser traduzido — transformado de novo— em praticas sociais, para que o circuito ao mesmo tempose complete e produza efeitos. Se nenhum "sentido" e apreen-;dido, nao pode haver "consume". Se o sentido nao e articu-;lado em pratica, ele nao tern efeito. O valor dessa abordageme que, enquanto cada um dos momentos, em articulacao, enecessario ao circuito como um todo, nenhum momentoconsegue garantir inteiramente o proximo, com o qual estaarticulado. Ja que cada momento tern sua propria modali-dade e condicoes de existencia, cada um pode constituir suapropria ruptura ou interrupcao da "passagem das fo'rmas" decuja continuidade o fluxo de producao efetiva (isto e, a"reprodu^ao") depende. Assim, embora de modo algum sequeira restringir a pesquisa "a seguir apenas aquelas pistasque emergem das analises de conteudo",2 devemos reco-nhecer^u^^joj;ma_discursiva da menjsagejrijern uma.posicaci££iyAtesMda_mijtxQ^^ vista dacirciulacao) e que os momentos de "codificacao" e. "de_co,difi-cacao", embora apenas "relativamente autonornos^ern relacaoao proce_ssp comunicativo como um todo,,. s_ao momentos^^g. ^?.iS^O5. Um evento historico "bruto" nao pode, nessaforma, ser transmitido, digamos, por um telejornal. Os aconte-cimentos so podem ser significados [be signified} dentro dasformas visuais e auditivas do discurso televisivo.

f errLgue um evento historico ejapsto sob o signo da toda a cornpjexidade das "regras" formais^gelas

jqu ais a. Jjnguagem significa . Por isso, paradoxalmente, oacontecimento deve se tornar uma "narrativa" antes que

388

possa se tornar um(gvento comunicativ^'Naquele momento,as sub-regras formais do discurso estao "em dominancia",sem, e claro, subordinarem ate seu apagamento o eventohistorico que esta sendo significado, as relacoes sociais nasquais as regras sao postas em funcionamento ou as conse-quencias politicas e sociais do evento terem sido significa-das dessa maneira. A "forma-mensagem" e a necessaria "formade aparencia" do evento na sua passagem da fonte para o re-ceptor. Assim, a transposicao para dentrjxe,paKi-fera-daJlfotr

i **•*—^——^«-^-^<i*J*?"-ir^™*''J-^™^*~a-"^^^ " " "

ma-mensage^^ (pj^o_modo^d^jtrjocj__^^^'Iniomento" aleatorio, que nos podemos considerar ou igno-rar conforme nossa conveniencia. A "forma-mensagem" e ummomento determinado; embora, em outro nfvel, compreen-da apenas os movimentos superficiais do sistema de comu-nicacoes e requeira, em um outro estagio, integracao nas re-lacoes sociais do processo de comunicacao como um todo,do qual forma apenas uma parte.

Dessa perspectiva geral, nos podemos, de forma grosseira,fazer uma caracterizacao do processo comunicativo da tele-visao. As estruturas institucionais de radiodifusao, com suaspraticas e redes de producao, suas relacoes organizadas einfra-estruturas tecnicas, sao necessarias para produzir umprograma. Aproveitando a analogia de O capital, esse e um"processo de trabalho" no modo discursive. Ajyoducao.nesseicas.QI.,cpngte^i,a_mensagem. Em um sentido, entao, ocircuito comeca aqui. E claro que o processo_^e_p£oduc_apnao-e~isento_de_sejLi aspjeAto^'dis^ursivp": ele^ajnbem sec^rist^|jd^nt£o_ de um refereji£ia2_de^,entJdos_e^deiconhecimento util sobre rotinas de producao, habilidadestecnicas historicamente definidas, ideologias profissionais,conhecimento institucional, definicoes e pressupostos, supo-si9oes sobre a audiencia e assim por diante delimitam a consti-tuigao do programa atraves de tal estrutura de producao.Alem disso, embora as estruturas de produgao da televisaooriginem os discursos televisivos, elas nao constituent umsistema fechado. Elas tiram assuntos, tratamentos, agendas,eventos, equipes, imagensjia^audiencia, "def]jii£oes_j:la_situajgapj' de qutras fontes_,e_o.utras«-fonna§6es.^di,s,cujtsiy,asdentrojdajestrutu-ra-sociaculturaL-e. politi_ca,,mais ampla daqual sao uma parte diferenciada. Philip Elliot expressou

389

Page 198: Da Dispora - Stuart Hall

tal ponto sucintamente, dentro de um referencial mais tradi-cional, em sua discussao do modo como a-audigncia 6,.-a0-rn£SjTio^tempo,,,a^f^Xe^^ televi-siva. Assim — usando os termos de Marx — circulacao erecepcao sao, de fato, "mementos" do processo de producena televisao e sao reincorporados via um certo numero defeedbacks indiretos e estruturados no proprio processo deproducao. O consume ou a recepgao da mensagem da tele-visao ef assim, tambem ela mesma um "momento" do processode producao no seu sentido mais amplo, embora este ultimoseja "predominante" porque e "o ponto de partida para aconcretizacao" da mensagem. Producao e recepcao damensagem televisiva nao sao, portanto, identicas, mas estaorelacionadas: sao momentos diferenciados dentro da iotali-dade formada pelas relacoes sociais do processo comunica-tivo como um todo.

Em um certo ponto, contudo, as estruturas de radiodi-fusao devem produzir mensagens codificadas na forma deum discurso significative. As relacoes de producao institu-cionais e sociais devem passar sob as regras discursivas dalinguagem para que seu produto seja "concretizado". Issoinicia um outro momento diferenciado, no qual as regrasformais do discurso e linguagem estao em dominancia. Antesque essa mensagem possa ter um^e^ito^j(gualqu^r_gue^sejasua definigao), satisfaca uma "necessidade" ou tenha urn "uso",-deve prirneiro ser apropriada como unxdiscursp significatjvp-£—sgr_s.igmficatjyamente decodifica.da. JE. esse__cprijunto~;desj^r^isca^p^^ecp.ciifLca^s .que "tern um efeito", infjuencia,entretem, instrui ou persuade, com consequencias percep-tivas, cognitivas, emocionais, ideologicas ou comportamentais.muito cpmplexas. Em um momento "determinado", a estru-tura emprega um codigo e produz uma "mensagem"; emoutro momento determinado.^a "mensagem" de^emboca na.e^trjjtura.,4as_praticas_sociais_pela._.via,,de. sua, d&codtfica$ao.Estamos agora plenamente cientes de que esse retorno aspraticas de recepcao e "uso" da audiencia nao pode serentendido em termos simplesmente comportamentais. Osprocesses tipicos identificados na pesquisa positivista sobreelementos tsolados — efeitos, usos e gratificacoes — sao elesproprios ordenados por estruturas de compreensao, bem comosao produzidos por relacoes economicas e sociais; que

390

moldam sua "concretizacao" no ponto final da recepcao eque permitem que os significados expresses no discursosejam transpostos para a pratica ou a consciencia (paraadquirir valor de uso social ou efetividade politica).

PROGRAMA COMO

DISCURSO "SIGNIFICATIVO'

codifica$ao

estruturas de sentido 1

referenciais ; de conhecimento

relacoes de producao

infra-estrutura tecnica

decodifica$ao

estruturas de sentido 2

referenciais de conhecimento

relacoes de produ£ao

infra-estrutura tecnica

Nitidamente, o que chamamos no diagrama de "estruturasde significado 1" e "estruturas de significado 2" podem naoser iguais. Elas nao constituent uma "identidade imediata".

|Os codigos de codificacao e decodificacao podem nao serIperfeitamente simetricos. Qs_graus de simetria — ou seja,os graus de "compreensao" e "ma-compreensao" na trocacomunicativa — dependem dos graus de simetria/assimetria(relacoes de equivalencia) estabelecidos entre as posicoesdas "personificacoes" —_c£)dificadoj^ptQd,utox_e decodifi-cador-receptor, Mas isso, por sua vez, depende dos graus deidentidade/nao-identidade entre os codigos que perfeitamenteou imperfeitamente transmitem, interrompem ou sistemati-camente distorcem o que esta sendo transmitido. A falta deadequacao entre os codigos tern a ver em grande parte comas diferencas estruturais de relacao e posicao entre transmis-sores e audiencias, mas tambem tern algo a ver com a assi-metria entre,os c6digosda^fontele_do "receptor" no momentoda transformacao para.jdentro e para fora da forma discur-siva. O que sao chamadas de "distorcoes" ou "mal-enten-didps" surgem precisamente da falta de equivalencia entre

391

Page 199: Da Dispora - Stuart Hall

os dois lados na troca comunicativa. Mais uma vez, isso definea "autonomia relativa", mas tambem a "determinasao", daentrada e saida da mensagem em seus mementos discursivos.

A aplicacao desse paradigma rudimentar ja comegou atransformar nosso entendimento do velho termo "conteudo"da televisao. Estamos apenas comecando a entender comoele tambem pode transformar nosso entendimento da recepcaoda audiencia, bem como sua "leitura" e resposta. Comegos efinais foram anunciados anteriormente na pesquisa em comu-nicagao, portanto devemos ser cautelosos. Mas parece haveralguma razao para se pensar que uma fase bem nova e insti-gante na chamada pesquisa de audiencia, de um novo tipopode estar se abrindo. Em ambas as pontas da cadeia comu-nicativa o uso do paradigma semiotico promete dissipar opersistente behaviorismo que tern perseguido a pesquisa dosmass media por tanto tempo, sobretudo na sua abordagemde conteudo. Embora saibamos que o programa televisivonao e um estimulo comportamental, como uma batida na

' rotula do joelho, parece ter sido quase impossivel para osi pesquisadores tradicionais conceituar o processo comunica-

tivo sem cair em uma ou outra variante de um behaviorismocamuflado. Nos sabemos, como Gerbner observou, que as

• representacoes da violencia na tela da TV "nao sao propria-; mente violencia, mas mensagens sobre violencia".3 Porem,

, continuamos a pesquisar a questao da violencia, por exemplo,como se fossemos incapazes de compreender essa distincao

x epistemologica.Q~s.ignp teleyJ^iyo^^umL^gnocpmjglexo^Ele e constituido

pela £Qmbdn.a^aQ^ejdoJsjipJp^c^^U§c^rso)jg^visuai e o audi-Alem do mais e um signo iconico, na terminologia de

Peirce, porque "possui algumas das propriedades da coisarepresentada"/ Este e um ponto que tern levado a grandesconfusoes e tern sido o terreno de uma intensa controversiano estudo da linguagem visual. Uma vez que o discurso visualtraduz um mundo tridimensional em pianos bidimensionais,ele nao pode, e claro, ser o referente ou o conceito que signi-|Ejca._Qcao, no filme_Lpode latir, mas nao consegue morder!

|"A realidade existe fora da linguagem, mas e constantemente **.imediada pela linguagem ou atraves dela: e o que nos podemostaaber e dizer tern de ser produzido no discurso e atraves dele-PJO "conhecimento" discursive e o produto nao da transparente

392

, representagao do "real" na linguagem, mas da articulagao da' linguagem em condicoes e rela^oes reais. 4.ssJni. .aaQ^ha.

iconicos sao, portanto, signos codificados tambem — mesmo, que aqui os codigos trabalhem de forma diferente daquela

de outros signos. Nao ha grau zero em linguagem. Natura-\ lismo e "realismo" — a aparente fidelidade da representacao1 a coisa ou ao conceito representado — e o resultado, o efeito,| de uma certa articula^ao especifica da linguagem sobre ol"real". j£_o_£eauitado de.uma prau'ca dis_cursiv.a. _J

I Certos codigos podem, e claro, ser tao amplamente distri-/buidos em uma cultura ou comunidade de linguagem especi-(fica, e serem aprendidos tao cedo, que aparentam nao-teremI sido construidos — o efeito de uma articulacao entre signo eI referente — mas serem dados "naturalmente". Nesse sentido,

simples signos visuais parecem ter alcan^ado uma "quase-universalidade", embora permanecam evidencias de que atemesmo codigos visuais aparentemente "naturals" sejam espe-cificos de uma dada cultura. Isto nao significa que nenhumc6digo tenha interferido, mas, antes, que^os codigos forampj^fun^mfiAte^^jMmfeadQ^- A operacao de codigos natu-ralizados revela nao a transparencia e "naturalidade" dalinguagem, mas a profundidade, o carater habitual e a quase-universalidade dos codigos em uso.- Eles4>roduzem reconhe-GtnxeatQS a p ar e n te me n te " naUorais". Isso produz o efeito(ideologico) de enfobrir as praticas de codificacao presentes.Mas nao devemos deixar que as aparencias nos enganem. Naverdade, o que os codigos naturalizados demonstram e o graude familiaridade que se produz quando hS um alinhamentofundamental e uma reciprocidade — a consecucao de umaequivalencia — entre os lados codificador e decodificadorde uma troca de significados. O funcionamento dos codigoslno lado da decodificacao, ira frequentemente assumir o status!

-.djS^pc^C^QQQes^jiatuEal-i-zaida^. Isso nos leva a pensar que osigno visual para "vaca" realmente e(em vez de representa) oanimal. Mas se nos pensarmos na representacao visual deuma vaca em um manual de pecuaria — e, ainda mais, nosigno lingiiistico "vaca" — nos podemos ver que ambos, emgraus diferentes, sao arfc^ran'os em rela^ao ao conceito doanimal que representam. A,— seja visual ou verbal — com o conceito jie umjgferenje e o

393

Page 200: Da Dispora - Stuart Hall

I produto nao da natureza, mas de uma convencao, e oconvencionalismo dos discursos requer a intervencao eo apoio dos codigos. Dessa maneira, Eco argumenta que ossignos iconicos "parecem com objetos do mundo real porquereproduzem as conduces perceptivas (ou seja, os codigos)de quern os ve".5SContudo, essas "condicoes de percepcao"sao o resultado de um conjunto de operacoes altamente codi-ficadas, ainda que virtualmente inconscientes — sao deco-dificacoes. Isto e verdade para as imagens fotograficas outelevisivas, assim como para qualquer outro signo. Signosiconicos sao, entretanto, particularmente vulneraveis a serem"lidos" como naturais, porque os codigos de percepcao visualsao amplamente distribuidos e porque esse tipo de signo

/ e menos arbitrario do que um signo linguistico. O signojI linguistico "vaca" nao possui nenbumadas propriedades dafI coisa representada, ao passo que o signo visual parecel1 possuir algumas dessas propriedades.

Isso nos ajuda a esclarecer uma confusao na teoria lingiais-tica atual e a definir precisamente como alguns conceitos-chave estao sendo usados neste texto. A teoria linguisticafrequentemente emprega a distincao entre "conotacao" e"denotacao". O termo "_denotaca_o" e amplamente equipa-rado com o.,sentido4iteraLde_ um signo: ja que esse sentido

i^er^alniej^^^a "denotacao" tem sido muitas

vezes confundida com a txanscricao literal daJ^r.ea_lidade^-pa-Fa-a—luiguagem e, portanto, com um "signo natural", que eproduzido sem a interven£ao de codigos. A "conotacao" e,por outro ladof empregada para simplesmente referir-se aossentidos menos fixos e, portanto, mais convencionalizados emutaveis, sentidos associativos que variam claramente deinstancia para instancia e, portanto, devem depender daintervencao de codigos.

Nos nao utilizamos a distincao entre denotacao e cono-tacao dessa forma. No nosso ponto de vista, a distincao esomente analitica. Ela e util, na analise, por permitir o usojde um metodo pratico que distingue aqueles aspectos de um'signo que parecem ser considerados, em qualquer comuni-'dade de linguagem e a qualquer tempo, como o seu sentidoj"literal" (denotacao), dos significados que se geram em asso-^ciacao com o signo (conotacao). Mas as distincoes analiticas

394

nao devem ser confundidas com as distincoes do mundo real.Muito poucas vezes os signos organizados em um discursosignificarao somente seus sentidos "literals", isto €, umsentido quase universalmente consensual. Em um discurso'de fato emitido, a maioria dos signos combinara seus aspectosdenotativos e conotativos (conforme redefinido acima)?.Pode-se, entao, perguntar por que manter essa distincao. E,em grande medida, uma questao de valor analitico. E porqueos signos parecem adquirir seu valor ideologico pl'eno —parecem estar abertos a articulacao com discursos e sentidosideologicos mais amplos — no nivel dos seus sentidos"associativos" (ou seja, no nivel da conotacao) — pois aquios sentidos nao sao aparentemente fixados numa percepcaonatural (ou seja, eles nao estao plenamente naturalizados) ea fluidez de seu sentido e associacao pode ser mais comple-tamente explorada e transformada.6 Portanto, e no mvelconoAtativo do signo que as ideologias alteram e transformam ajsignificacao. Nesse nivel, podemos ver mais claramente a inter-vencao ativa da ideologia dentro do discurso e sobre ele: aquio signo esta aberto para novas enfases e, segundo Volochinov,entra plenamente na disputa pelos sentidos — a luta declasses na linguagem.7 Isto nao quer dizer que a denotacaoou o sentido "literal" esteja fora da ideologia. Na verdade,podenamos dizer que seu valor ideologico esta fortementefixado, justamente por ter-se tornado tao plenamente uni-versal e "natural". Desse modo, os termos "denotacao" e"conotacao" sao meramente ferramentas analiticas uteis parase distinguir, em contextos especificos, os diferentes niveis emque as ideologias e os discursos se cruzam, e nao a presencaou ausencia de ideologia na linguagem.8

O nivel de conotacao do signo visual, de sua referenciacontextual e de seu posicionamento em diferentes camposdiscursivos de sentido e associagao, e justamente onde ossignos' ja codificados se interseccionam com os codigossemanticos profundos de uma cultura e, assim, assumemdimensoes ideologicas adicionais e mais ativas. Podemostomar um exemplo do discurso publicitario. Ai, tampouco,ha "denota^ao pura" e certamente nenhuma representacao"natural". Na publicidade, todo signo visual conota uma qua-lidade, situacao, valor ou inferencia que esta presente como umaimplicacao ou sentido implicito, dependendo do posicionamento

395

Page 201: Da Dispora - Stuart Hall

conotativo. No exemplo de Barthes, o sueter sempre significa"uma vestimenta quente" (denotacao) e, portanto, a atividade/valor de "manter-se aquecido". Mas e tambe"m possivel, emniveis mais conotativos, significar a "chegada do inverno"ou "um dia frio". E, nos subcodigos especializados da moda,o sueter pode conotar tambem um estilo em voga na hautecouture ou, alternativamente, um estilo informal de se vestir.Mas, colocado contra o fundo visual correto e posicionadopelo subc6digo romantico, pode conotar "longa caminhada deoutono no bosque".9 Codigos dessa ordem claramente esta-belecem relacoes para o signo com o universo mais amplodas ideologias em uma sociedade. -.Pssp&^codiflos sao os

! meios pelos quais^pj3jdex^aj£tegroig1^aQ4e^^icar em discursos especificos. Eles_.r_emetem_Qs^ignQS.-aQS

e entido'Ldentrocada; e esses "mapas da realidade social" conteni^inscritosliodauma serie de significados sociais, praticas e usos, poder_£

linteresse. Segundo Barthes, os niveis conotativos dos signi-|ficantes "tern uma estreita relacao com a cultura, o conheci-

lento, a historia e e atraves deles, por assim dizer, que oleio ambiente invade o sistema lingiiistico e semantico. Eles

>ao, de alguma forma, os fragmentos da ideologia."10

O chamado nivel denotative do signo televisivo e fixadopor certos codigos (restritos ou "fechados") bastante com-plexes. Mas o nivel conotativo, apesar de tambem ser limi-tado, e mais aberto, sendo objeto de transformacoes maisativas, que exploram seus valores polissemicos. Qualquersigno ja constituido e potencialmente transformavel em maisde uma configuracao conotativa. Polissemia, entretanto, naodeve ser confundida com pluralismo. Os codigos conotativosnao sao iguais entre si. Toda sociedade ou cultura tende, comdiversos graus de clausura, a impor suas classificacoes domundo social, cultural e politico. Essas classificacoes cons-tituem uma ordem cultural dominante, apesar de esta naoser nem univoca nem incontestavel. A questao da "estruturados discursos em dominancia" e um ponto crucial. As dife-rentes areas da vida social parecem ser dispostas dentro dedommios discursivos hierarquicamente organizados atraves desentidos dominantes ou preferenciais. Acontecimentos novos,polemicos ou problematicos que rompem nossas expectativas

ou vao contra os "construtos do senso comum", o conhe-cimento "dado como certo" das estruturas sociais, devemser atribuidos ou alocados aos seus respectivos domini-os discursivos, antes que "facam sentido". A maneira maiscomum de "mapea-los" e atribuir o novo a algum dominiodos "mapas existentes da realidade social problematica". Di-zemos dominante e nao "determinado", porque e semprepossivel ordenar, classificar, atribuir e decodificar um acon-tecimento dentro de mais de um "mapeamento". Mas dize-mos "dominante" porque, de fato, existe um padrao de "lei-turas preferenciais", e ambos — dominante e determinado— tern uma ordem institucional/politica/ideologica impressaneles e ambos se institucionalizaram.11 Os dominios dos "sen-tidos preferenciais" tern, embutida, toda a ordem social en-quanto conjunto de significados, praticas e crencas: o co-nhecimento cotidiano das estruturas sociais, do "modo como

"as coisas funcionam para todos os propositos praticos nestacultura"; a ordem hierarquica do poder e dos interesses ea estrutura das legitimates, restricoes e sancoes. Por isso,para esclarecer um "ma!-entendido" em relacao ao nivel co-notativo, devemos nos referir (atraves de codigos) as orde-nacoes da vida social, do poder politico e economico e daideologia. Alem disso, como esses mapas sao "estrutura-dos em dominancia" mas nao sao fechados, o processo co-municativo nao consiste na atribuicao nao-problematica decada item visual a sua posicao dentro de um conjunto decodigos pre-arranjados, mas sim em regras perfomativas- ouseja, regras de competencia e uso, de logica aplicada — quebuscam ativamente reforcar ou pre-ferir um dominio seman-tico a outro e incluir e excluir itens dos conjuntos de sentidoapropriados. A semiologia formal tern muito frequentementenegligenciado essa pratica de trabalho interpretativo, emboraisso constitua, de fato, as reais relacoes nas praticas dedifusao televisivas.

Ao falarmos de sentidos dominantes, entao, nao estamosnos referindo a um processo de mao unica, que governa aforma como todos os acontecimentos serao significados. Esseprocesso consiste no trabalho necessario para fazer cumprir,conquistar plausibilidade para exigir legitimamerUe umadecodificacao do evento dentro do limite das definicoes

396 397

Page 202: Da Dispora - Stuart Hall

dominances nas quais esse evento tern sido slgnificadoconotativamente. Do ponto de vista de Terni:

Pela palavra leitura entendemos nao somente a capacidade deidentificar e de decodificar um certo numero de signos, mas,tambe"m, a capacidade subjetiva de po-los em uma relacaocriativa entre si e com outros signos: uma capacidade que e,em si mesma, a condicao da plena consciencia de todo oambiente em que se esta inserido.12

Nossa discordancia aqui e em relacao a nocao de "capaci-dade subjetiva", como se 6 referente de um discurso televi-sivo fosse um fato objetivo, mas o mvel interpretative fosseum assunto individual e particular. O caso parece ser ocontrario. A pratica televisiva assume responsabilidade"objetiva" (isto e, sistemica) precisamente pelas relacoes queos signos distintos estabelecem uns com os outros emqualquer ocorrencia discursiva e, por isso, essa praticacontinuamente rearranja, delimita e prescreve em qual "cons-ciencia de todo o ambiente" esses itens estao organizados.

Isso nos leva a questao dos mal-entendidos. Produtoresde televisao que acham que nao conseguem passar suamensagem frequentemente se preocupam em eliminar falhasna cadeia de comunicacao, de modo a facilitar a "eficacia" desua comunicacao. Muita pesquisa que defende a objetivi-dade das "analises politicamente orientadas" reproduz esseobjetivo administrativo ao tentar descobrir quanto da men-sagem a audiencia relembra e ao tentar melhorar o grau deseu entendimento. Nao ha duvida de que mal-entendidos dotipo literal existem. O telespectador nao conhece os termosempregados, nao consegue acompanhar a complexa logicaargumentativa ou da exposicao, nao esta familiarizado com aHnguagem, considera os conceitos demasiado estranhos oudificeis ou as exposicoes narrativas vao alem de sua capaci-dade de compreensao. Mais frequentemente, no entanto, osprodutores se preocupam com a possibilidade de a audienciafalhar em captar o sentido por eles pretendido. O que elesrealmente estao dizendo e que os telespectadores nao estaooperando dentro do c6digo "preferential" ou "dominante". Seuideal e o de uma "comunicacao perfeitamente transparente".Ao contrario, aquilo com que eles tern realmente de se con-frontar e com a "comunicacao sistematicamente distorcida".13

398

Nos ultimos anos, diferencas desse tipo tern sido habitual-mente explicadas pela referenda a "percepcao seletiva".Essa e a brecha pela qual o pluralismo residual evita ascompulsoes de um processo altamente estruturado, assime-trico e nao-equivalente. E claro que sempre havera leiturasindividuals, particulares ou variantes. Mas a "percepcao sele-tiva" quase nunca e tao seletiva, aleatoria ou privatizada quantoo conceito sugere. Os padroes exib'em agrupamentos signifi-cativos ao longo das variantes individuais. Qualquer novaabordagem para o estudo das audiencias tera, portanto, quecomecar com uma critica a teoria da "percepcao seletiva".

Argumentou-se anteriormente que, ja que nao existe umanecessaria correspondencia entre codificacao e decodificacao,a primeira pode tentar "pre-ferir", mas nao pode prescreverou garantir a segunda, que tern suas proprias condicoes deexistencia. A menos que seja disparadamente aberrante, acodificacao produz a formacao de alguns dos limites e para-metros dentro dos quais as decodificacoes vao operar. Se naohouvesse limites, as audiencias poderiam simplesmente lerqualquer coisa que quisessem dentro das mensagens. Semduvida, alguns mal-entendidos desse tipo existem. Mas a vastagama deve conter algum grau de reciprocidade entre osmementos da codificacao e decodificacao; do contrario naopoderiamos falar de uma efetiva troca comunicativa. Apesardisso, essa "correspondencia" nao e dada, mas construida.Nao e "natural", mas produto de uma articulacao entre doismomentos distintos. E a codificacao nao pode deterrninar ougarantir, de forma simples, quais os codigos de decodifi-cacao que serao empregados. De outro modo, a comunicacaoseria um circuito perfeitamente equivalente e cada mensagemseria uma instancia de "comunicacao perfeitamente transpa-rente". Portanto, devemos pensar nas varias articulacoes emque a codificacao/decodificacao podem ser combinadas. Paraexplicar isso oferecemos uma analise hipotetica de algumaspossiveis posicoes de decodificacao, de modo a reforcar aid£ia da "nao necessaria correspondencia".1^Identificamos tres posicoes hipoteticas a partir das quais adecodificacao de um discurso televisivo pode ser construida.Estas precisam ser empiricamente testadas e refinadas. Mas oargumento de que as decodificacoes nao derivam inevitavel-mente das codificacoes, que elas nao sao identicas, reforca o

399

Page 203: Da Dispora - Stuart Hall

argumento da correspondencia "nao necessaria". Isso tambemajuda a desconstruir o sentido comum de "mal-entendido" emtermos de uma teoria da "comunica^ao sistematicamentedistorcida".

A primeira posigao hipote'tica refere-se a posicao hege-monica-dominante, Quando o telespectador se apropria dosentido conotado de, digamos, um telejornal ou um programade atualidades, de forma direta e integral, e decodifica a men-sagem nos termos do codigo referencial no qual ela foi codi-ficada, podemos dizer que o telespectador estd operando dentrodo codigo dominante. Esse e o caso ideal-tipico de "comuni-cacao perfeitamente transparence" ou o caso mais proximo,para todos os efeitos. Dentro disso, podemos distinguir asposigoes produzidas pelo codigo professional. Essa e a posicao(produzida pelo que, talvez, devessemos identificar como aoperacao de um "metacodigo") que os profissionais da radio-difusao assumem quando codificam uma mensagem que jdrecebeu significado de uma maneira hegemonica. O codigoprofissional e "relativamente independente" do codigodominante, ja que aplica criterios e operates de transformagaoproprios, especialmente aqueles de natureza tecnica e pratica.O codigo profissional, contudo, opera dentro da "hegemonia"do codigo dominante. Na verdade, ele serve para reproduziras definicoes dominantes precisamente porque coloca entreparenteses seu carater hegemonico e opera com codigosprofissionais deslocados, que destacam questoes aparente-mente tecnicas e neutras, como as da qualidade visual, dosvalores — da notfcia e da apresentacao, da qualidade televi-siva, do "profissionalismo" etc. As interpretacoes hegemo-nicas, digamos, da politica da Irlanda do Norte, ou do golpechileno ou, ainda, do Estatuto sobre as Relac.6es Industrials,sao geradas, sobretudo, pelas elites politica e militar: a escolhaespecifica da ocasiao e do formato de uma exposicao, a selecaode pessoal, a escolha de imagens e a encenacao dos debatessao feitos e combinados atraves da operagao do codigo profis-sional. Como os profissionais da televisao sao capazes deoperar com codigos proprios "relativamente autonomos" e aomesmo tempo agir de tal forma que reproduzem (nao semcontradicoes) a significagao hegemonica dos acontecimentose uma questao complexa, que nao pode ser melhor explici-tada aqui. Basta dizer que os profissionais estao ligados aselites decis6rias nao somente atraves da posicao institucional

400

das proprias emissoras enquanto "aparelho ideologico",15 mastambem pela estrutura de acesso (ou seja, o recurso excessivee sistematico a pessoas da elite e a sua "definic.ao da situac.ao"na televisao). Podemos inclusive dizer que os codigos profis-sionais servem para reproduzir definicoes hegemonicas, especi-ficamente por nao inclinarem abertamente suas operacoes emuma direcao dominante: a reproducao ideologica, portanto,acontece aqui inadvertidamente, inconscientemente, "pelascostas dos homens".16 Obviamente, conflitos, contradicoese ate mesmo mal-entendidos surgem regularmente entre assignificances profissionais e dominantes e seus agenciamentossignificativos.

A segunda posicao que identificariamos e a do codigo nego-ciado. Provavelmente, a maioria das audiencias compreendebastante bem o que foi definido de maneira dominante erecebeu um significado de forma profissional. Entretanto, asdefinicoes dominantes sao hegemonicas precisamente porquerepresentam definicoes de situagoes e eventos que estao "emdominancia", (globais^). As definicoes dominantes conectameventos, implicitamente ou explicitamente, a grandes totali-zagoes, as grandes visoes de mundo sintagmaticas. Elasassumem "perspectivas globais" sobre as questoes, associamos acontecimentos ao "interesse nacional" ou a geopolitica,mesmo que essas relagoes sejam estabelecidas de maneiratruncada, invertida ou mistificada. A defini^ao de um pontode vista hegemonico e: (a) que define dentro de seus termoso horizonte mental, o universe de significados possiveis e detodo um setor de relacoes em uma sociedade ou cultura; e(b) que carrega consigo o selo da legitimidade — parececoincidir com o que e "natural", "inevitavel" ou "obvio" arespeito da ordem social. Decodificar, dentro da versaonegociada, contem uma mistura de elementos de adaptagaoe de oposigao: reconhece a legitimidade das defini^oes hege-monicas para produzir as grandes significances (abstratas),ao passo que, em um nivel mais restrito, situacional (locali-zado), faz suas proprias regras — funciona com as excefoesa regra. Confere posigao privilegiada as defini^oes domi-nantes dos acontecimentos, enquanto se reserva o direito defazer uma aplicafao mais negociada as "condi^oes locais" eas suas pr6prias posigoes mais corporativas. Essa versaonegociada da ideologia dominante esta, portanto, atravessadapor contradic.6es, apesar de que isso so se torna visivel em

401

Page 204: Da Dispora - Stuart Hall

algumas ocasioes. Os codigos negociados operam atraves doque podemos chamar de logicas especificas ou localizadas:essas 16gicas sao sustentadas por sua relacao diferencial edesigual com os discursos e as logicas do poder. O exemplomais simples de um codigo negociado e aquele que governaa resposta de um trabalhador a ideia de que um Estatutosobre Relacoes Industrials limite o direito de greve ou aproposta de um congelamento dos salaries. Em termos dodebate economico sobre o "interesse nacional", o decodifi-cador pode adotar a definicao hegemonica, concordandoque "todos devemos nos remunerar menos para combatera inflacao". Contudo, isso pode ter pouca ou nenhuma relagaocom sua vontade de entrar em greve por melhor pagamento econdicoes, ou de se opor, no chao de fabrica ou no sindicato,ao Estatuto sobre Relacoes Industriais. Desconfiamos que agrande maioria dos ditos "ma!-entendidos" surge das contra-dicoes e disjuncoes entre codificacoes hegemonico-dominantese decodificacoes negociadas corporativamente. Sao essesdesencontros de niveis que levam as elites e os profissionaisa identificarem a "falha na comunicacao".

Finalmente, e possivel para um telespectador entenderperfeitamente tanto a inflexao conotativa quanto a literalconferida a um discurso, mas, ao mesmo tempo, decodificar amensagem de uma maneira globalmente contraria. Ele ou eladestotaliza a mensagem no codigo preferencial para retota-liza-la dentro de algum referencial alternativo. Esse e o casodo telespectador que ouve um debate sobre a necessidadede Hmitar os salaries, mas "le" cada mencao ao "interessenacional" como "interesse de classe". Ele ou ela esta operandocom o que chamamos de codigo de oposifao. Um dos momentospoliticos mais significativos (eles tambem coincidem com osmomentos de crise dentro das proprias empresas de televisao,por razoes obvias) e aquele em que os acontecimentos quesao normalmente significados e decodificados de maneiranegociada comecam a ter uma leitura contestataria. Aqui setrava a "politica da significacao" — a luta no discurso.

[HAIL, S. Encoding/Decoding. Culture, Media, LanguageWorking Papers in Cul tu ra l Studies, 1972-1979- London:Hutchinson, 1980. Traducao de Ana Carolina Escosteguye Francisco Rudiger]

NOTAS

1 Para uma explicate- e um comentario sobre as implicates metodologicasdo argumento de Marx, ver: HALL, S. A Reading of Marx's 1857 Introductionto the Grundrisse. WPCS, n. 6, 1974.

2 HALLORAN, J. D, Understanding Television. University of Leicester,1973. Trabalho apresentado no Coloquio do Conselho de Europa sobre"Compreender a Televisao".

3 GERBNER, G. et al. Violence in TV Drama: A Study of Trends and SymbolicFunctions. The Annenberg School, University of Pennsylvania, 1970.

4 PEIRCE, Charles. Speculative Grammar. Collected Papers, Cambridge, Mass.:Harvard University Press, 1931-1958.

5 ECO, Umberto. Articulations of the Cinematic Code. Cinematics, n. 1.

6 Ver essa discussao em HALL, S. Determinations of News Photographs. WPCS,n. 3, 1972.7 VOLOCHINOV. Marxism and the Philosophy of Language. The SeminarPress, 1973-

8 Para um esclarecimento parecido, ver: HECK, Marina Camargo. IdeologicalDimensions of Media Messages. CCCS. Culture, Media, Language:Working Papers in Cultural Studies 1972-1979. London: Hutchinson, 1980.p. 122-127.

9 BARTHES, Roland. Rhetoric of the Image. WPCS, n. 1, 1971.

10 BARTHES, Roland. Elements ofSemiology. Cape, 1967. [Traducao brasileira:9. ed. Sao Paulo: Cultrix, 1988.1

11 Para uma critica extensa de "leitura preferencial", ver: O'SHEA, Alan.Preferred Reading. CCCS. University of Birmingham. Mimeografado.

12 TERNI, P. Memorandum. University of Leicester, 1973. (Trabalho apresen-tado no Col6quio do Conselho de Europa sobre "Compreender a Televisao".)

13 HABERMAS, J. Systematically Distorted Communications. In: DRETZEL, P.(Org.). Recent Sociology, 2, Collier-Macmillan, 1970. A frase e de Habermas,contudo, usa-se aqui em outro sentido.

" Para uma formulacao sociologica que se aproxima, de algumas maneiras,as posi^oes esbo9adas aqui, sem passar pela discussao da teoria do discurso,ver: PARKIN, Frank. Class Inequality and Political Order. Macgibbon andKee, 1971.

15 Ver: ALTHUSSER, Louis. Ideology and Ideological State Apparatuses. In:. Lenin and Philosophy and Other Essays. London: New Left Books,

1971. [Aparelhos ideoldgicos de Estado. 2. ed. Traducao de Walter Jos^ Evan-gelista e Maria Laura Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Graal, 1985-1

402 403

Page 205: Da Dispora - Stuart Hall

16 Uma versao mais detalhada desse argumento encontra-se em: HALL,Stuart. The External/ Internal Dialectic in Broadcasting. 4tb Symposium onBroadcasting, University of Manchester, 1972; e HALL. Broadcasting and theState: the Independence/Impartiality Couplet, IAMCR Symposium, Universityof Leicester, 1976. (CCCS, Mimeografado).

STOART HALL FOR STUART HALL

404

Page 206: Da Dispora - Stuart Hall

A FORWARD DE UM I N T E L E C T U A LD I A S P O R I C O

UMA EN1REVIS1A COM SIUART HALL,DE KUMNG C H E N

A SITUAgAO COLONIAL

Kuan-Hsing Chen: Em seu ultimo trabalho sobre rac.a eetnia, a diaspora parece ter se tornado uma figura central —um dos pontos criticos sobre o qual a questao da identidadecultural e articulada; em certos momentos, fragmentos de suapropria experiencia diasporica foram narrados de formaimpactante, para abordar problematicas politicas e teoricas.1

Meu interesse e saber como as especificidades de varias traje-torias historicas vieram a moldar sua experiencia, sua propriaposicao politica e intelectual.

Stuart Hall: Eu nasci e cresci na Jamaica em uma familiade classe media. Meu pai passou a maior parte de sua vidaprodutiva na United Fruit Company. Ele foi o primeiro jamai-cano a ser promovido em cada emprego que teve; antes dele,esses empregos eram ocupados por pessoas provenientes doescrit6rio central nos Estados Unidos. O que e importantecompreender sao as fracoes de classe e de cor das quaismeus pais vieram. As familias de meus pais eram ambas declasse media, mas de diferentes origens. Meu pai pertenciaa classe media baixa de cor. Seu pai tinha uma drogarianuma vila pobre no campo, fora de Kingston. Etnicamente,a familia era bem mista — composta de africanos, indianos,

Page 207: Da Dispora - Stuart Hall

Portugueses e judeus. Ja a famflia de minha mae era de corbem mais clara. Se voce tivesse conhecido o tio dela, pen-saria que ele era um ingles expatriado, quase branco, ou oque nos chamariamos de "branco local". Ela foi adotada poruma tia, cujos filhos — um advogado e outro medico — seformaram na Inglaterra. Ela cresceu em uma linda casa nacolina, perto da propriedade onde a familia morava. Cultural-mente presentes em minha propria familia estavam, conse-quentemente, a classe media baixa jamaicana, rural, de peleevidentemente escura, bem como esta outra fracao, de peleclara, anglofila e ligada aos antigos engenhos.

Desde o inicio, entao, o que era encenado em minhafamilia, em termos culturais, era o conflito entre o local e oimperial no contexto colonizado. Ambas as fracoes de classese opunham a cultura da maioria, do povo negro jamaicanopobre: altamente preconceituosas em relafao a raca e cor,

" identificavam-se com os colonizadores.

Eu era o membro mais escuro da minha familia. A historiaque sempre foi contada em minha familia como uma piada,era de que, quando nasci, minha irma, que era muito maisclara que eu, olhou dentro do berco e disse: "De onde vocestiraram esse bebe coolitf'? Ora, coolie e a palavra deprecia-tiva na Jamaica que designava um indiano pobre, conside-rado o mais humilde entre os humildes. Assim, ela nao diria"de onde voces tiraram esse bebe negro?", ja que naqueleambiente era impensavel que ela pudesse ter um irmaonegro. Mas ela notou, sim, que eu era de uma cor diferenteda sua. Isto e muito comum nas famflias de cor da classemedia jamaicana, porque elas sao o produto de relacoes entreos escravos africanos e os senhores de escravos europeus, eos filhos entao nascem com tons de pele diferentes.

Por causa disso, fui sempre identificado em minha familiacomo alguem de fora, aquele que nao se adequava, o que eramais negro que os outros, o "pequeno coolid' etc. E desem-penhei esse papel o tempo todo. Meus amigos da escola,muitos dos quais provinham de familias de classe mediarespeitaveis, porem mais escuros que eu, nao eram aceitosem minha casa. Meus pais nao achavam que eu estivessefazendo amizade com as pessoas certas. Eles sempre meencorajavam a relacionar-me mais com amigos da classe

408

media, de cor mais clara, o que eu nao fazia. Em vez disso,me afastei emocionalmente da minha familia e fiz amizadesem outros lugares. Passei minha adolescencia negociandoesses espacos culturais.

Meu pai queria que eu fosse um esportista. Queria que eufreqiientasse os clubes que ele frequentava. Mas eu sempreachava que ele proprio nao se encaixava muito bem naqueleambiente. Ele ficava tentando entrar naquele mundo. Osingleses apenas o toleravam. Eu percebia como eles o tra-tavam com um respeito que marcava sua inferioridade. Euodiava aquilo mais do que tudo. Nao era so porque elepertencia a um mundo que eu rejeitava. Eu nao podia entendercomo ele nao percebia o quanto eles o desprezavam. Dizia amim mesmo: "Voce nao entende que quando vai aquele clubeeles acham que voce e um intruso?" e "Mas voce quer mecolocar naquele iugar para ser humilhado do mesmo jeito?"

Por ter sido criada no contexto jamaicano do engenho,minha mae se considerava praticamente inglesa. Ela pensavaque a Inglaterra era a sua patria e se identificava com opoder colonial. Tinha aspiracoes para a familia, que, mate-rialmente, a gente nao conseguia acompanhar, mas elainsistia culturalmente.

Estou tentando dizer que vivi as tensoes coloniais dassicascomo parte da minha historia pessoal. Minha propria for-ma^ao e identidade foram construidas a partir de uma especiede recusa dos modelos dominantes de construcao pessoal ecultural aos quais fui exposto. Eu nao quis pedir licenc.a,como fez meu pai, para obter a aceitacao da comunidadede negociantes expatriados, americanos ou ingleses. Naoconseguia me identificar com aquele mundo antigo do engenhoe suas raizes escravocratas, a que minha mae se referia comouma "epoca de ouro". Sentia-me muito mais como um garotojamaicano independente. Mas nao havia espaco para issoenquanto posicao subjetiva na cultura de minha familia.

Ora, isso foi durante o crescimento do movimento deindependencia jamaicano, Quando era jovem estudante, eramuito a favor dele. Tornei-me um antiimperialista e me identi-fiquei com a independencia jamaicana. Mas minha familianao. Eles nem sequer simpatizavam com as ambicoes deindependencia da burguesia nacional. Nesse sentido, eram

409

Page 208: Da Dispora - Stuart Hall

diferentes ate de seus proprios amigos, os quais pensavamque, assim que a transi^ao para a independencia nacionalcomecasse, "bem, pelo menos nos estaremos no poder". Meu£pais, minha mae especialmente, lamentaram mais que tudoo fim daquele antigo mundo colonial. Havia uma grandedistancia entre o que eles queriam para mim e como eu meidentificava.

Kuan-Hsing Chen: Entao, voce esta dizendo que suapropensao para a "revolta" veio, em parte, da sua situacaojamaicana. Voce pode explicar?

Stuart Hall: Na minha epoca de escola, quando eu eraum aluno inteligente, estudioso e promissor e comecava a meenvolver politicamente, me interessei pelo que estava aconte-cendo na politica, isto e, a formacao dos partidos politicosjamaicanos, a emergencia dos sindicatos e os movimentostrabalhistas depois de 1938, o inicio de um movimento nacio-nalista de independencia ao final da guerra; tudo isso faziaparte de uma revolucao pos-colonial ou descolonizadora. AJamaica comecou a buscar a independencia assim que a guerraterminou. Entao, jovens inteligentes como eu e meus amigos,de varias cores e posicoes sociais, se envolveram com omovimento, e era com isso que nos identificavamos. Ansia-vamos pelo fim do imperialismo, por um governo jamaicano,pela autonomia jamaicana.

Kuan-Hsing Chen: Qual foi o seu desenvolvimento inte-lectual durante este primeiro periodo?

Stuart Hall- Freqiientei uma pequena escola primaria,depois fui para um grande colegio. Na Jamaica havia variasgrandes escolas para meninos e meninas, fortemente inspi-radas nos modelos do sistema ingles de escolas particulars.Faziamos as provas das escolas secundarias inglesas, osexames para obter o Certificado Escolar de Cambridge e ovestibular A-level Nao havia universidades locais, entao quernquisesse cursar uma universidade teria que sair do pals,estudar no Canada, Estados Unidos ou na Inglaterra. Naohavia ainda um curriculo nacional. So nos meus ultimos doisanos de escola e que aprendi alguma coisa sobre a historia ea geografia do Caribe. Foi uma educacao muito "classica",muito boa, porem, em termos academicos, muito formal.

410

Estudei latim, historia inglesa, hist6ria colonial inglesa, historiaeuropeia, literatura inglesa etc. Mas, por causa do meu inte-resse politico, tambem me interessei por outras questoes. Paraconseguir uma bolsa de estudos, era preciso ter mais dedezoito anos e eu era mais jovem; dai tive que prestar ovestibular nivel A duas vezes, e passei tres anos em lugar dedois, na fase final do colegio, No ultimo ano, comecei a lerT. S. Eliot, James Joyce, Freud, Marx, Lenin e um pouco deliteratura e poesia moderna. Minha leitura foi mais ampla quea educacao comum, estreitamente academica e de orientacaobritanica. Mas, tive uma formacao tipica de um membro daintelligentsia colonial.

Kuan-Hsing Chen: Voce se lembra de alguem queinfluenciou seu desenvolvimento intelectual nessa epoca?

Stuart Hall: Nao houve so uma pessoa, mas diversas eelas fizeram duas coisas por mim. Primeiro, me transmitiramum forte sentimento de autoconfianca e de realiza^ao acade-mica. Segundo, sendo professores, eles se identificavam comaquelas tendencias nacionalistas emergentes. Embora fossemintensamente academicos e de orientacao inglesa, tambemestavam atentos ao crescimento do movimento nacionalistacaribenho. Entao, aprendi muito sobre isso com eles. Porexemplo, um barbadiano que estudou em Codrington Collegeme ensinou latim e historia antiga. Um escoces, ex-jogadorde futebol do Corinthians de la, fez com que eu elaborasseum trabalho final de historia sobre assuntos da atualidade. Otrabalho era a respeito da historia do pos-guerra, sobre aguerra e o que aconteceu depois, o que nao era lecionadonormalmente. Estudei pela primeira vez a Guerra Fria, aRevolucao Russa e a politica americana. Fiquei interessadoem assuntos internacionais e na Africa. Ele me fez conhecercertos textos politicos — embora principalmente para me"inocular" contra as perigosas ideias marxistas. Eu os devorei.Era membro da biblioteca local, chamada Institute da Jamaica.A gente ia para la aos sabados de manha e liamos livrossobre a escravidao. Isso me introduziu na literatura cari-benha. Comecei a ler escritores caribenhos. Na maioria dasvezes, Ha por conta propria, tentando compreende-los esonhanclo em um dia me tornar um escritor.

411

Page 209: Da Dispora - Stuart Hall

A guerra foi muito importante para mim. Eu era umacrianca durante a guerra e ela foi uma experiencia dominante.Nao que tenhamos sido atacados ou qualquer coisa assim,mas foi uma presenca real. Eu tinha bastante conscienciadisso. Jogava muitos jogos de guerra e aprendi muito sobreaqueles lugares e onde se localizavam. Aprendi sobre a Asiaacompanhando a guerra americana nas Filipinas. Aprendisobre a Alemanha; so acompanhava os eventos historicos daepoca atraves da guerra. Quando olho para tras, vejo que sode olhar os mapas aprendi muito sobre a guerra, sobre ainvasao do Oriente Medio, e "brincando de guerra" com meusamigos (com frequencia, eu era um general alemao e usavaum monoculo!).

Kuan-Hsing Chen. Qual foi a importancia de Marx ouda tradicao marxista para voce?

Stuart Hall: Bern, eu li os ensaios de Marx — O manifestocomunista, O trabalho assalariado e O capital; li Lenin sobreo imperialismo. Foram leituras importantes muito mais nocontexto do colonialismo do que do capitalismo ocidental.As questoes de classe estavam claramente presentes no debatepolitico sobre o colonialismo na Jamaica, e tambem a questaoda pobreza, o problema do desenvolvimento economico etc.Muitos dos meus colegas, que foram para a universidade namesma epoca que eu, estudaram Economia. Supunha-se quea Economia traria a resposta para a pobreza em que viviampaises como a Jamaica, como conseqiiencia do imperialismoe do colonialismo. Portanto, eu estava interessado na questaoeconomica do ponto de vista colonial. Se tive alguma ambicaonaquela epoca, nao era de entrar no ramo dos negocios,como meu pai, mas queria me tornar um advogado; ser advo-gado, na Jamaica, era o melhor caminho para a politica. Oueu poderia me tornar um economista. Mas estava de fato maisinteressado em literatura e historia do que em economia. Quandofiz dezessete anos, minha irma teve um colapso nervoso. Elacomecou um relacionamento com um estudante de medicinaque veio de Barbados para a Jamaica. Ele era de classemedia, mas era negro e meus pais nao permitiram o namoro.Houve uma tremenda briga em familia e ela, na verdade,recuou da situacao e entrou em crise. De repente me conscien-tizei da contradicao da cultura colonial, de como a gente

412

sobrevive a experiencia da dependencia colonial, de classe ecor e de como isso pode destruir voce, subjetivamente.

Estou contando esse fato porque ele foi muito importantepara o meu desenvolvimento pessoal. Isso acabou parasempre com a distincao entre o ser publico e o ser_.pjtjvado...para mim. Aprendi, em primeiro lugar, que a cultura era algoprofundamente subjetivo e pessoal, e ao mesmo tempo, umaestrutura em que a gente vive. Pude ver que todas essasestranhas aspiragoes e identificagoes que meus pais haviamprojetado sobre nos, seus filhos, destruiram minha irma. Elafoi a vitima, portadora das ambigoes contraditorias de meuspais naquela situagao colonial. Desde entao, nunca mais pudeentender por que as pessoas achavam que essas questoesestruturais nao estavam ligadas ao psiquico — com emogoes,identificagoes e sentimentos, pois para mim, essas estruturassao coisas que a gente vive. Nao quero dizer apenas que elassao pessoais; elas sao, mas sao tambem institucionais e ternpropriedades estruturais reals, elas te derrubam, te destroem.

Foi uma experiencia muito traumatica porque havia poucaou quase nenhuma assistencia psiquiatrica na Jamaica naquelaepoca. Minha irma passou por uma serie de tratamentos comeletro-choque, feitos por um clinico geral, dos quais ela nuncase recuperou. Nunca mais saiu de casa. Ela cuidou de meupai ate ele morrer. Depois, cuidou da minha mae ate elamorrer. E cuidou do meu irmao, que ficou cego, ate a mortedele. Foi uma verdadeira tragedia que vivi junto com ela edecidi que nao podia agiientar; nao conseguia ajuda-la, naoconseguia atingi-la, embora eu soubesse o que estava errado.Eu tinha dezessete ou dezoito anos.

Mas isso cristalizou meus sentimentos a respeito do espacopara o qual minha familia me convocara. Eu nao ia ficar la.Eu nao seria destruido por aquilo. Tinha que sair de la. Sentique nunca mais deveria voltar para la, pois seria destruido.Quando olho as fotos de minha infancia ou inicio da juven-tude, vejo o retrato de uma pessoa deprimida. Eu nao queroser quern eles querem que eu seja, mas nao sei ser outrapessoa. Sinto-me deprimido por isso. Tudo isso compoe osantecedentes que explicam porque finalmente migrei.

413

Page 210: Da Dispora - Stuart Hall

Kuan-ffsing Chen. Desde entao, voce esteve muitoproximo de sua irma, psicanaliticamente falando? Voce seidentifica corn ela?

Stuart Hatt: Nao, nao muito. Embora o sistema tivessearruinado sua vida, ela nunca se revoltou. Eu me revoltei emseu lugar. Tambem sou culpado porque a deixei para tras,para lidar com a situacao. Minha decisao de emigrar era parame salvar. Ela ficou.

Eu sai em 1951 e ate 1957 nao sabia que nao voltaria;nunca pretendera voltar, embora, ao mesmo tempo, naosoubesse disso. De certa forma, sou capaz de escrever sobreisso agora porque estou no final de uma longa Jornada.Aos poucos, vim a reconhecer que era um caribenho negrocomo qualquer outro. Eu conseguia me identificar comisso, conseguia escrever sobre e a partir desta posicao. Leveimuito tempo para conseguir escrever dessa maneira, pessoal-mente. Antes, eu so escrevia sobre isso analiticamente. Nestesentido, levei cinqiienta anos para voltar para casa. Nao quetivesse algo para esconder. Era o espaco que nao conseguiaocupar, um espaco que tive que aprender a ocupar.

Repare que essa formacao — aprender toda a experienciadestrutiva da colonia — me preparou para a Inglaterra. Nuncame esquecerei de minha chegada la. Minha mae me trouxe,eu com chapeu de feltro, vestindo meu sobretudo, com meubau. Ela me trazia, pensava ela, "para casa", num navio quecarregava bananas, e me entregou em Oxford. Ela me entregoua um vigia do colegio muito surpreso e disse: "Este e o meufilho, aqui estao suas malas e seus pertences. Guide dele." Elame entregou, assinou e lacrou, ao lugar ao qual ela achavaque um filho dela sempre pertencera — Oxford.

Minha mae era uma pessoa excessivamente dominadora.Minha relacao com ela era de proximidade e antagonismo.Eu odiava o que ela representava, o que ela tentava repre-sentar para mim. Mas todos nos tinhamos uma ligacao bemproxima com ela, porque ela dominava nossas vidas. Eladominava a vida de minha irma. Alem do mais, meu irmao,que era o mais velho, tinha um problema grave de vista eacabou ficando cego. Desde muito novo, ele era muitodependente de meus pais. Quando nasci, esse padrao de

414

dependencia mae-filho estava claramente estabelecido. Ten-taram fazer o mesmo comigo. E quando comecei a ter meusproprios interesses e posicoes, o antagonismo comecou. Aomesmo tempo, o relacionamento era intense, porque minhamae sempre dizia que eu era o unico que a enfrentava. Elaqueria me dominar, mas tambem menosprezava aqueles aquern dominava. Entao ela menosprezava meu pai, porqueele cedia a ela. Menosprezava minha irma, porque era umamenina e, como minha mae dizia, as mulheres nao eraminteressantes. Na adolescencia, minha irma a enfrentou o tempotodo, mas uma vez que minha mae a venceu, foi desprezada.Portanto, tivemos esse relacionamento de antagonismo. Euera o mais novo. Ela achava que eu estava destinado a meopor a ela, mas ela me respeitava por isso. Finalmente, quandoela entendeu o que eu havia me tornado na Inglaterra —realizando todas as suas fantasias paranoicas de filho rebelde— nao quis que eu voltasse para a Jamaica, porque ai eurepresentaria a minha forma de ser e nao a imagem que elatinha de mim. Ela soube de minha atividade politica e disse:"Fique por ai, nao volte para ca para causar problemas paranos, com suas ideias malucas."

Eu me senti melhor em relacao a Jamaica depois que elesmorreram, pois antes disso, quando eu voltava, tinha quenegociar a Jamaica atraves deles. Depois que meus paismorreram, ficou mais facil estabelecer uma nova relacao coma nova Jamaica que emergiu nos anos 70. Esta nao era aJamaica onde eu tinha crescido. Por exemplo, tinha se tornadoculturalmente uma sociedade negra, uma sociedade pos-escravocrata e pos-colonial, enquanto que eu havia vivido lano final da era colonial. Portanto, pude negocia-la como um"estrangeiro familiar".

Paradoxalmente, eu tinha a mesma relacao com a Inglaterra.Tendo sido preparado pela educacao colonial, eu conhecia aInglaterra de dentro. Mas nao sou nem nunca serei um ingles.Conheco intimamente os dois lugares, mas jnao pertencpcompletamente a nenhum deles. Eesta e exatamente_a expe- !

riencia jJjgAnrjra f longe o suf i ciente_para experirnentar__g_sentimentcL^le. exilio e perda. perto o suficiente para entender

415

Page 211: Da Dispora - Stuart Hall

E interessante, em relacao a Jamaica, porque os amigosque deixei para tras viveram experiencias que eu nao vivi.Eles passaram o ano de 1968 la, presenciaram o nascimentoda consciencia negra e o crescimento do rastafarismo comsuas lembrancas da Africa. Eles viveram aqueles anos de umamaneira diferente da minha, portanto tambem nao me consi-dero da geracao deles. Estudei junto com eles, mantive contatocom eles, mas sua experiencia foi completamente diferenteda minha. Essa lacuna nao pode ser preenchida. E-imp.ossivel

JVoUar para casa" de novo.Existe aquilo de que Simmel falou:^^spfiriencia^de^stor

^entCQ^e..£ora?, .o^estrangeiro familiar". Nos costumavamoschamar de "alienacao" ou "desarraigamento". Mas, hoje emdia, isso passou a ser a condicao arquetipica da modernidadetardia. A vida de todo mundo e cada vez mais assim. Isso e^que-eu-penso da^artiQulaca^^do^rjosHmpderno com o QQS-colonial. De uma forma curiosa, o pos-colonial prepara oindividuo para viver uma relacao "pos-moderna" ou diaspo-rica com a identidade. Trata-se, paradigmaticamente, de umaexperiencia diasporica. Desde que a migracao se tornou ogrande evento historico-mundial da modernidade tardia,_a_,experiencia diasporica .se-lorflou^a^.experier^a^go^mpderna^classica.

Kuan-Hsing Chen: Mas quando a experiencia diasporicase registra de forma consciente?

Stuart Hall: Nos tempos modernos, desde 1492, com ocomeco da aventura "euro-imperial" — no Caribe, desde acolonizacao europeia e o comercio de escravos: desde aquelaepoca, nas chamadas "zonas de contato" do mundo, a culturatern se desenvolvido de um modo "diasporico". Quando euescrevi sobre o rastafarismo, sobre o reggae, nos anos 60,quando eu pensei sobre o papel da religiao na vida do Caribe,sempre me interessei pela "traducao" entre o cristianismo eas religioes africanas, ou as misturas da musica caribenha.Interessei-me por aquilo que se tornou a tematica da diasporapor muito tempo, sem necessariamente chama-la assim.Durante muito tempo, nao usei o termo diaspora porque eleera usado principalmente em relacao a Israel. Era o uso poli-tico dominante e e um uso que considero problematico, porcausa do povo palestino. Esse e o significado originario do

416

termo "diaspora", embutido no texto sagrado, fixado napaisagem original, que exige a expulsao dos demais e arecuperacao de uma terra ja habitada por mais de um povo.Esse projeto diasporico, de "limpeza etnica", nao era defen-sive! para mim. Contudo, devo tambem dizer, ha certasrelacoes muito estreitas entre a diaspora negra e a diasporajudaica — por exemplo, a experiencia de sofrimento e exilio,e a cultura do livramento e da redencao que resultam dai. Istoexplica porque o rastafarismo usa a Biblia, o reggae usa aBiblia, pois ela conta a historia de um povo no exilio domi-nado por um poder estrangeiro, distante de_Jcasa",ze. dog£de^sinib6HTO^o_mitp_redetitor. Portanto, toda a narrativada colonia, da escravidao e da colonizacao esta reinscrita nanarrativa judaica. E no periodo da pos-emancipacao, muitosescritores afro-americanos exploraram fortemente a expe-riencia judaica como metafora. Para as igrejas negras nosEstados Unidos, a fuga da escravidao e o livramento do"Esito" eram metaforas paralelas.

**J ^^Ea,l!_TT' i *>*" • \

Moises e mais importante para as religioes negras do queJesus, porque ele liderou seu povo na saida da Babilonia,Uvrando-os do cativeiro. Portanto, esse duplo texto sempreme interessou, essa dupla te^Uoalidade. O livro de PaulGilroy, O Atldntico negro,2 e um estudo maravilhoso sobre a"diaspora negra" e o papel deste conceito no pensamentoafro-americano. Outro texto de referenda a esse respeito e Aimaginafao dialogica, de Bakhtin,3 que desenvolve uma seriede conceitos sobre linguagem e significado — heteroglossia,carnaval, ou multiacentualidade, de Bakhtin-Volochinov —que nos desenvolvemos teoricamente nos estudos culturais,mais no contexto da linguagem e da ideologia, mas que setornaram tropos discursivos classicos da diaspora.

MOMENTOS DA NOVA ESQUERDA

Kuan-Hsing Chen: Voce foi para a Inglaterra em 1951-O que aconteceu a partir dai?

Stuart Hall: Ao chegar em um barco a vapor em Bristolcom minha mae e pegar um trem para Paddington, passeipelas paisagens rurais da Inglaterra que eu nunca tinha visto,

417

Page 212: Da Dispora - Stuart Hall

mas conhecia. Eu li Shakespeare, Hardy, os poetas romanticos.Embora nao ocupasse aquele espaco, era como encontrar denovo, em sonho, uma paisagem idealizada ja familiar. Apesarde minha visao politica anticolonial, sempre aspirei a estudarna Inglaterra. Sempre quis estudar la. Level um bom tempo ame acostumar com a Gra-Bretanha, especialmente com Oxford,porque Oxford e o apice da "inglesidade", o eixo central, omotor, que cria a "inglesidade".

Houve duas fases. Ate 1954, mergulhei na politica doscaribenhos expatriados. A maioria dos meus amigos eramexpatriados e retornaram para desempenhar funcoes naJamaica, Trindade, Barbados e Guiana. Eramos apaixonadospela questao colonial. Comemoramos a expulsao dos Fran-ceses da Indochina com um grande jantar. Descobrimos, pelaprimeira vez, que eramos West Indians, caribenhos. Conhe-cemos estudantes africanos pela primeira vez. Com a indepen-dencia pos-colonial emergente, sonhamos com uma federacaocaribenha, unindo esses paises numa entidade maior. Se issotivesse acontecido, eu teria voltado para o Caribe.

Varies estudantes caribenhos moraram juntos, por umtempo, numa casa em Oxford, que tambern gerou a NovaEsquerda. Eles foram a primeira geracao da intelligentsianegra anticolonial ou pos-colonial que estudou na Inglaterra,fez pos-graduacao e especializou-se em Economia. Muitosdeles foram enviados por seus paises e depois voltarampara se tornarem lideres apos a independencia. Eu fui muitoinfluenciado, politica e pessoalmente, pelas conversas quemantive com eles naquela fase inicial em Oxford.

Naquela epoca, eu ainda pensava em voltar para a Jamaicae seguir a carreira politica, me envolver na politica da fede-racao dos paises caribenhos ou lecionar na University of theWest Indies. Dai eu consegui uma segunda bolsa de estudose decidi ficar em Oxford para fazer a pos-graduagao. Naquelaepoca, a maioria do meu circulo de amizades caribenho maisimediato ja havia voltado para casa. Durante aquele periodo,eu tambem cheguei a conhecer pessoas da esquerda, princi-palmente do Partido Comunista e da Associacao Trabalhista.Tinha um amigo proximo, Alan Hall, a quem dediquei umensaio sobre a Nova Esquerda chamado Out of Apathy4 Eleera escoces, um arqueologo classico que estava interessado

418

em questoes culturais e politicas. Juntos conhecemosRaymond Williams. Estivemos bem proximos de algumaspessoas do Partido Comunista na epoca, mas nunca fomosmembros dele — pessoas como Raphael Samuel e PeterSedgwick. Outro amigo proximo foi o filosofo Charles Taylor.Charles era outra pessoa, como Alan e eu, que pertencia a"esquerda independente". O marxismo nos interessava, masnao eramos dogmaticos; eramos antistalinistas e nao defen-sores da Uniao Sovietica; e por esta razao nunca nos tornamosmembros do Partido Comunista, embora dialogassemos comeles, recusando o isolamento imposto pela Guerra Fria, comoexigiam os chefes da Associacao Trabalhista naquela epoca.Nos formamos a chamada Sociedade Socialista, que era umlugar para encontros de mentes independentes da esquerda.Encontravam-se ali intelectuais pos-coloniais, marxistas brita-nicos, pessoas do Partido Trabalhista e outros intelectuais deesquerda. Perry Anderson, por exemplo, fez parte daquelegrupo. Isto foi antes de 1956. Muitos de nos eramos estran-geiros ou migrantes internos: a maioria dos britanicos era dointerior e vinha da classe trabalhadora ou eram escoceses,irlandeses ou judeus.

Quando decidi ficar para fazer a pos-graduacao, inicieiuma discussao com algumas pessoas desse amplo grupo deesquerda. Lembro-me de uma reuniao em que abri um debatecom membros do Partido Comunista, contestando a versaoreducionista das teorias de classe marxistas. Isso deve teracontecido em 1954, e parece-me que venho discutindo amesma coisa desde entao. Em 1956, Alan Hall, eu e doisoutros amigos, ambos pintores, saimos para umas longasferias de verao. Alan e eu iamos escrever um livro sobrecultura britanica. Levamos tres capitulos de Culture andSociety? The Uses of Literacy,6 o livro de Grassland, TheFuture of Socialism, o livro de Strachey, After ImperialismLevamos tambem o trabalho de Leavis, com o qual estavamosdialogando ha muito tempo. Essas mesmas questoes tambemsurgiam no cenario da cultura. Levamos tambem o romancede Kingsley Amis, Lucky Jim, e o que estava ocorrendo denovo no cinema no movimento do documentario britanico— como o ensaio de Lindsay Anderson na revista Sight andSound. Em agosto, quando estavamos na Cornualia, a Uniao

419

Page 213: Da Dispora - Stuart Hall

Sovietica marchou sobre a Hungria e, no final desse mes, osbritanicos invadiram Suez. Isso foi o fim de tudo. O mundose transformou. Esse foi o momento de formacao da NovaEsquerda. Tinhamos entrado em uma nova fase.

A maioria das pessoas que haviam participado dos nossoscirculos, no Partido Comunista, o deixaram, e o grupo emOxford entrou em colapso. For um momento em Oxford,aquele agrupamento esquisito em torno da Sociedade Socia-lista tornou-se a consciencia da esquerda, porque semprefizeramos oposicao ao stalinismo e tambem ao imperialismo.Tivemos a vantagem moral de poder criticar ambas as invasoes,a hungara e a britanica. Esse foi o momento — o espacopolitico — do nascimento da primeira Nova Esquerda brita-nica. Raphael Samuel nos convenceu a fundar uma revista, aUniversities and Left Review, e me entusiasmei com isso.Fui ficando cada vez mais envolvido com a revista. Eramosquatro editores, Charles Taylor, Raphael Samuel, GabrielPearson e eu. Quando decidi deixar Oxford, em 1957, vimpara Londres lecionar numa escola secundaria como professorsubstitute, principalmente em Brixton e o Oval, no sul deLondres. Eu saia da escola as quatro e ia para o centre deLondres, ao Soho, editar a revista. Nao deixei a Inglaterra, aprincipio, porque me envolvi com a politica britanica de umamaneira nova.

E importante dizer como me sinto agora com relacao aesse segundo momento. Eu nunca sartia defensiva com relacaoa Nova Esquerda, mas num sentido politico mais amplo,continue me identificando com o projeto da primeira NovaEsquerda. Naquela epoca; sempre tinha problemas com opronome "nos". Eu nao sabia de quern falava quando dizia"nos devemos fazer isso ou aquilo". Tenho uma relacaoestranha com o movimento da classe operaria britanica ecom as instituicoes britanicas do movimento trabalhista: oPartido Trabalhista, os sindicatos se identificavam com ele.Eu estava nele, mas culturalmente nao fazia parte. Enquantoeditor da Universities and Left Review, eu era uma das pessoasque basicamente negociavam aquele espaco, mas nao sentiaa continuidade que as pessoas nascidas nele sentiam, paraas quais ele era parte essencial de sua "inglesidade", comoEdward Thompson. De certa forma, eu ainda estava apren-dendo sobre o movimento e negociando com ele. Tinha uma

420

perspectiva diasporica sobre minha posicao na Nova Esquerda.Mesmo que eu nao estivesse escrevendo sobre diaspora, ousobre politica negra (nao havia ainda muitos imigrantesnegros morando na Gra-Bretanha), eu via o cenario da politicabritanica muito mais como alguem que tinha uma formacaodiferente. Sempre tive consciencia dessa diferenca; sabia quevinha da periferia daquele processo, que eu o encarava deum ponto de vista diferente. Eu estava aprendendo a meapropriar dele, em vez de sentir que a cultura ja era minha.Sempre relutava em angariar votos para o Partido Trabalhista.Nao acho facil dizer na cara de um ingles da classe trabalha-dora: "Voce vai votar na gente?" Eu nao sei como pronunciaressa frase.

Kuan-Hsing Chen. A Nova Esquerda foi formada porintelectuais ou foi baseada em uma organizacao de massa?

Stuart Hall; Nao tinha uma base de massa organizada.No auge da Nova Esquerda, entre 1956 e 1962, ela teve ligacoesmuito mais fortes com as forcas politicas e movimentos sociaisde base. A Associacao da Nova Esquerda em Londres nao eracomposta somente de intelectuais. O trabalho da NovaEsquerda com a questao racial durante a turbulencia emNetting Hill, em 1958, foi um trabalho de base, que organizouassociates de moradores e grupos de defesa de negros.Nos estabelecemos nucleos, o nucleo da Universities andLeft Review e do New Left Review e, em um dado momento,havia vinte e seis organizacoes, Havia gente do Partido Traba-lhista, dos sindicatos, estudantes e outros. Portanto, nao eramso intelectuais; mas uma vez que a Universities and LeftReview fazia o papel de protagonista, eram os intelectuaisque ocupavam a lideranca. Depois mantivemos uma forteligacao com o CND (Campaign for Nuclear Disarmament),um movimento antinuclear. A ligacao com o CND e com omovimento pacifista tambem nao era um movimento de classe,mas representava um profundo envolvimento com o queconstituiu um dos primeiros "novos movimentos sociais";desta forma, nos estavamos na linha de frente do que viria ase tornar, apos 1968, a "nova politica".

Nao estou tentando mostrar que a composicao social daNova Esquerda foi mais ampla do que realmente foi. Mas nao

421

Page 214: Da Dispora - Stuart Hall

e verdade que em seu apogeu ela era composta exclusiva-mente de estudantes e intelectuais no sentido norte-americano.Lembre-se, na Gra-Bretanha, as universidades nao eramgrandes o bastante para formar espacos politicos autonomos.Assim, por muito tempo, a Nova Esquerda teve uma formacaomais ampla. Ela emergiu naquele exato momento dos anos60 em que uma mudanca na formacao das classes socialsacontecia. Havia muitas pessoas transitando entre as classestradicionais, Pessoas das classes trabalhadoras que erambolsistas iam pela primeira vez para a faculdade e as escolasde belas-artes, comecavam a obter empregos como profis-sionais liberals, como professores e assim por diante. A NovaEsquerda estava em contato com essas pessoas que estavamtransitando entre as classes. Muitas de nossas organizacoes sesituavam em novas cidades onde as pessoas tinham pais quedeviam ser operarios, mas efes mesmos tiveram uma edu-cacao melhor, tinham ido para a universidade e voltado comoprofessores. Hoggart e Williams, ambos provenientes da classetrabalhadora e que se tornaram intelectuais atraves do movi-mento de educacao para adultos, eram membros classicos daNova Esquerda, representatives do publico nos nucleos daNova Esquerda e dos leitores das revistas da Nova Esquerda.Eramos mais um "novo movimento social" do que um protopartido politico.

Kuan-Hsing Chen: Por que nao se tentou organizar esse"publico" de alguma forma?

Stuart Hall: Que pergunta mais pre-"novos movimentossocials". Isso era o que nos viviamos nos perguntando —sem saber que a "tirania da falta de estrutura" era um problemade todos os "novos movimentos sociais". Mas havia duasrazoes. A primeira, era a presenca do Partido Trabalhista.A predominancia do Partido Trabalhista, como partido socialdemocrata de massas, sugeria que, se pudessemos construiruma nova alian^a dentro do Partido Trabalhista, ja haveria ummovimento de esquerda em massa que poderia ser atingidopelas ideias da Nova Esquerda. O Partido Trabalhista era comoum premio que nos aguardava, se aquela transformacao deum Partido da Velha Esquerda para um Partido da NovaEsquerda pudesse ser realizada. Isso te lembra alguma coisa?E o dilema da esquerda na Gra-Bretanha, com todas as letras.

422

Em segundo lugar, porque a Nova Esquerda havia sidoantistalinista desde sua origem, e porque se opunha a buro-cracia da Guerra Fria, aos aparatos burocraticos do partidodurante o inicio dos anos 50, e dai por diante. Ela antecipouos novos movimentos sociais ao ser bastante antiorganiza-cional. Portanto, nos nao queriamos nenhuma estrutura,nenhuma lideranca, nao queriamos quaisquer aparatos parti-darios permanentes. As pessoas pertenciam a Nova Esquerdapor filiar-se a ela. Nao queriamos que ninguem pagasse taxaalguma. Talvez estivessemos errados, de muitas maneiras, maseramos muito antiorganizacionais. Da mesma forma que, noinicio, o feminismo era antiestrutural. Era o espirito de 1968,avant la lettre

Kuan-Hsing Chen: Entao havia a possibilidade deformar ou articular uma alianca sem qualquer organizacaohierarquica?

Stuart Hall: Sim, esta era a pretensao, mas nao penseque nos sabiamos como fazer isso. Nao era possivel simples-mente lancar uma Nova Esquerda, porque, afinal de contas, aclasse trabalhadora ja tinha suas proprias instituicoes: oPartido Trabalhista e os sindicatos. E havia no partido enos sindicatos simpatizantes da Nova Esquerda. A luz da expe-riencia stalinista, nos desconfiavamos bastante do aparatoburocratico dos partidos politicos. Nos decidimos entaoevitar essa questao. O que importava, nos afirmavamos, eraquais as novas ideias que defendiamos, nao o nome do partidoao qual elas se ligavam. Era o empenho pela renovacao dasideias socialistas, nao a renovac.ao do partido. "Um pe dentro,outro fora", nos diziamos. O que interessava era "como e otrabalho de base? Voces tern uma CND local, voces vao a feirado bairro?" Era como ocupar um espaco sem organiza-lo, semimpor as pessoas a escolha de uma lealdade institucional.

Lembre-se: nao existia um "novo movimento social"naquela epoca. Para nos, isso nao representava uma novafase (ou forma) da politica. Achavamos que se tratava aindado velho jogo politico, que conduziamos de uma novamaneira. Somente quando olhamos para tras e que perce-bemos que a Nova Esquerda foi uma primeira antecipacao daera dos "novos movimentos sociais". O que estou descrevendofoi exatamente o que aconteceu mais tarde na CND: o

423

Page 215: Da Dispora - Stuart Hall

movimento antinuclear como um movimento autonomo, ummovimento independente.

Kuan-Hsing Chen : Agora, sobre o New Left Review, quesituacao pos voce em contato com a geracao mais estabelecidaou mais antiga, como Thompson e Williams?

Stuart Hall: A situac.ao fbi a seguinte: no corneco, haviadois grupos, da New Reasoner e da Universities and LeftReview. As pessoas do corpo editorial da New Reasoner —Edward e Dorothy Thompson, John Savile, Alasdair Mclntyre— eram de uma geracao um pouco mais velha, basicamenteformada na velha tradicao comunista, os dissidentes da tradicaocomunista que cresceram junto com os historiadores marxistasdos anos 30 e 40, a mesma geracao de Raymond Williams,embora Raymond tivesse sido membro do partido por poucotempo, quando estudava em Cambridge. Raymond entaorompeu e teve uma formacao independente e, conseqiien-temente, se tornou uma das figuras mediadoras, que pertenciacronologicamente a gerafao da Reasoner, mas que tinhamaiores afinidades conosco. Eramos a proxima geracao, queinaugurou o Universities and Left Review. Estavamos ligadosao marxismo, mas eramos mais criticos, queriamos pensarcoisas novas, e principalmente abrir novos espa^os em relagaoas questoes da cultura popular, da televisao etc. — que ageracao mais velha nao considerava relevante politicamente.Apesar disso, essas duas formagoes eram tao proximas, tinhamtanto em comum, e achavam tao dificil, em termos financeiros,manter dois periodicos diferentes, que gradualmente os doiscorpos editoriais comec.aram a se reunir. Entao surgiu a ideiade um so periodico. O editor seria obviamente EdwardThompson, a figura lider da New Reasoner. Mas Edwardestava engajado na luta desde 1956; primeiro, lutando dentrodo Partido Comunista (depois que os horrores do stalinismoforam trazidos a luz do dia no discurso de Kruschev durante oVigesimo Congresso), depois quando foi expulso, e depoistentando manter a New Reasoner com tao poucos recursosetc. Ele tinha dois filhos e acho que Dorothy e ele simples-mente nao conseguiram mais continuar vivendo daquele jeito.Entao o cargo de editor foi passado para mim, embora aambigtiidade da posicao de Edward a meu respeito tenhacontinuado a ser uma fonte de tensao no corpo editorial.

424

Kuan-Hsing Chen: E Raymond Williams, ele foi omediador?

Stuart Hatt: Sim, Raymond desempenhava um papel dife-rente. Raymond nunca assumiu uma funfao editorial especi-fica. Era uma grande figura, sua escrita influenciou a todosnos. Escrevia para ambas as revistas, especialmente para aUniversities and Left Review, e sua escrita ajudou a dar aoprojeto da Nova Esquerda uma identidade distinta e original.Eu fui muito influendado por sua obra. Havia a nova geracao,composta por Charles Taylor, eu e Raphael Samuel. Raphaelera o propufsor e a inspirae.ao, absolutamente indispensavel,cheio de energias e ideias, embora nao fosse a pessoa paratomar conta da edicao regular do periodico. Por volta de1958, eu tinha me tornado editor em tempo integral daUniversities and Left Review. Charles Taylor ja tinha ido paraParis estudar com Merleau-Ponty. Charles foi muito importantepara mim, pessoalmente. Lembro-me das nossas primeirasdiscussoes sobre os Manuscritos economicos e filosoficosde 1844, de Marx, que ele trouxe de Paris, e das discussoessobre alienayao, humanismo e classe social.

Kuan-Hsing Chen: Voce mencionou, em Out of Apathy,Doris Lessing. Que papel ela teve?

Stuart Hatt: Doris nao estava envolvida com o trabalhoeditorial da revista. Ela era colaboradora. Ela era muito proxi-ma da geracao de Edward Thompson e foi uma daquelesintelectuais independentes do Partido Comunista dos anos 40.Ela se juntou ao corpo editorial da New Left Review, mas jaestava se distanciando do ativismo politico.

Kuan-Hsing Chen: Depois de dois anos como editor, em1961, voce estava esgotado. O que fez depois disso?

Stuart Hatt: Deixei a revista para lecionar midia, cinemae cultura popular no Chelsea College, da Universidade deLondres. Fui ensinar o que era chamado de estudos comple-mentares e que agora chamariamos de estudos culturais. Eufui levado por um grupo de professore.s que trabalhava la eque eram simpatizantes da Nova Esquerda, interessados notrabalho de Hoggart e Williams, mas tambem na obra quePaddy Whannel e eu estavamos desenvolvendo sobre o cinemapara o BFI (British Film Institute). Em Chelsea eu daria aulas

425

Page 216: Da Dispora - Stuart Hall

de cinema e meios de comunicacao de massa. Acho que naepoca nao existia curso de cinema ou estudos dos meiosmassivos em lugar algum. Eu tinha feito um trabalho sobrecinema e TV com Paddy Whannel, no Departamento de Edu-cacao do BFI. E havia tambem a ligacao com o "cinemalivre", o movimento britanico de documentaries associado aLindsay Anderson, depois a revista Screen e a Sociedade pelaEducacao em Cinema e Televisao. Entre 1962 e 1964, Paddye eu fizemos o trabalho que resultou finalmente no ThePopular Arts7

Kuan-Hsing Chen: Antes disso, voce pretendia escreversua tese sobre Henry James. Voce a abandonou por causa daNew Left Review?

Stuart Hall: Eu abandonei-a literalmente por causa de1956. Parei, num sentido mais profundo, porque estava dedi-cando cada vez mais meu tempo de pesquisa a leitura sobrecultura, para seguir esta linha de interesse. Passava um tempoenorme na biblioteca Rhodes House, lendo literatura antropo-iogica e absorvendo o debate sobre as "sobrevivencias" afri-canas no Caribe e a cultura do Novo Mundo. Na verdade,minha tese sobre Henry James nao estava muito distante dessaspreocupacoes. O tema era a America versus a Europa nosromances de James. Lidava com os contrastes morais eculturais entre a America e a Europa, um dos maiores temasinterculturais em James. Tambem estava interessado nadesestabilizacao do "eu" narrador em James, sendo ele aultima instancia disso no romance ocidental antes de Joyce,que representa a dissolucao do "eu" narrador; James situa-seperigosamente no limite disso. Sua linguagem quase esgota acapacidade do "eu" narrador. Portanto, meu interesse estavavoltado para essas duas questoes, que tern enormes impli-cacoes para os estudos culturais. Por outro lado, nao achavabom continuar pensando as questoes culturais em termos"puramente" literarios.

Enquanto lecionava em Chelsea, continue! em contatocom Williams e Hoggart. Organizei o primeiro encontroentre Richard Hoggart e Raymond Williams. A conversa foirepublicada na Universities and Left Review. Eles discutiramCulture and Society e The Uses of Literacy. Hoggart tinhadecidido deixar Leicester e ir para Birmingham como

426

professor de Literatura. Ele queria continuar a trabalhar, napos-graduacao, na linha do Uses of Literacy, em vez dosestudos literarios convencionais. A Universidade de BirminghamIhe disse: "Voce pode fazer isso, mas nos nao temos comofinancia-lo". Mas ele havia testemunhado a favor da PenguinBooks no processo do Lady Chatterley's Lover e resolveuprocurar o chefe da Penguin Books, Sir Allen Lane. Ele oconvenceu a nos dar algum dinheiro para criar um centro depesquisa. Entao Allen Lane passou a dar a Hoggart algunsmilhares de libras por ano, que a Penguin poderia descontardo imposto de renda, atraves de um convenio educacional.Com esse dinheiro, Hoggart decidiu empregar alguem quecuidaria desta parte do trabalho, enquanto ele continuava comoprofessor de Literatura, e me convidou para ir para Birminghama assumir esse trabalho. Hoggart tinha lido Universities andLeft Review, New Left Review e The Popular Arts, e achouque, com minha combinacao de interesses em televisao,cinema e literatura popular, meu conhecimento sobre odebate com Leavis e meu interesse em politicas culturais, euseria um bom candidato. Fui para Birmingham em 1964 e mecasei com Catherine — que se transferiu de Sussex paraBirmingham — no mesmo ano.

O PERIODO EM BIRMINGHAM

Kuan-Hsing Chen-. Ha uma impressao generalizada deque, no inicio, o Centre for Contemporary Cultural Studies(CCCS) estava interessado somente nas questoes de classe.Por outro lado, ha tambem uma historia de que o primeiroprojeto coletivo do Centro foi analisar revistas femininas, masde alguma forma o manuscrito desse projeto se perdeudurante o processo de producao, sem sequer ser fotocopiado.8

E verdade?

Stuart Hall: Sim, e absolutamente verdade. As duas coisassao verdade. Prime iramente, os Estudos Culturais se interes-savam por classe social, no sentido de Hoggart e Williams,nao no sentido marxista classico. Alguns de nos tinham tidouma formacao critica em relacao as tradicoes marxistas. Esta-vamos interessados nas questoes de classe, mas esta nunca

427

Page 217: Da Dispora - Stuart Hall

foi a unica questao: por exemplo, podemos encontrar trabalhosimportantes sobre subculturas, feitos nos primordios doCentre. Em segundo lugar, quando se fala da teoria nos estudosculturais, fizemos grandes esforcos para evitar o marxismoreducionista. Lemos Weber, o idealismo alemao, Benjamin,Lukacs, para tentar corrigir aquilo que nos achavamos impra-ticavel no reducionismo de classe, que tinha distorcido o mar-xismo classico, impedindo que este abordasse com seriedadeas questoes culturais. Lemos sobre a etnometodologia, analiseda conversacao, o idealismo hegeliarjxffi os estudos iconogra-ficos em historia da arte, Mannheim; liamos tudo isso, paratentar encontrar algum paradigma sociologico alternativo(alternativas para o funcionalismo e o positivismo), que naose abrisse a acusacao de reducionismo. Empirica e teorica-mente, a ideia de que o CCCS se interessava somente pelasquestoes de classe nao e correta. Em terceiro lugar, nos nosenvolvemos com a questao do feminismo (na verdade umpre-feminismo) e a questao de genero. Analisavamos a ficcaodas revistas femininas. Ficamos seculos analisando um contochamado "Cura para o casamento" e ai, todos aqueles artigos,que deveriam compor um livro, desapareceram; o que signi-fica que aquele momento da historia dos estudos culturaisfoi perdido. Esse foi o momento "pre-feminista" do Centro.

Num dado momento, Michael Green e eu decidimosconvidar algumas feministas que trabalhavam em outroslocals, para vir projetar a questao feminista para dentro doCentro. Portanto, aquela historia "tradicional" de que o femi-nismo surgiu de dentro dos estudos culturais nao e intei-ramente correta. Nos estavamos ansiosos por fazer essa ligacao,em parte por que nos dois estavamos, naquela epoca, vivendocom feministas. Trabalhavamos com estudos culturais, conver-sando com o feminismo. As pessoas dos estudos culturaisestavam se sensibilizando para a questao de genero naquelaepoca, mas nao em relacao a politica feminista. A verdade eque, como classicos "novos homens", quando o feminismorealmente surgiu com autonomia, fomos pegos de surpresapor aquilo que nos tinhamos tentado — de forma patriarcal— iniciar. Essas coisas sao muito imprevisiveis. O feminismorealmente eclodiu no Centro, por si so, em seu proprio estilo

428

explosive. Mas nao era a primeira vez que os estudos culturaispensavam sobre o assunto ou tinham consciencia da politicafeminista.

Kuan-Hsing Chen: No final dos anos 70, voce deixou oCCCS pela Open University. Por que?

Stuart Hall. Eu estava no Centro desde 1964, e o deixeiem 1979 — foi um longo tempo. Eu estava preocupado como fato da "sucessao". Alguem, a geracao seguinte, tinha queassumir. O bastao tinha que ser passado, ou toda a aventuramorreria com a gente. Eu sabia disso, porque quandoHoggart finalmente decidiu partir, eu me tornei o diretor emexercicio. Ele foi para a UNESCO em 1968 e "exerci" no lugardele por quatro anos. Quando, em 1972, ele decidiu naovoltar, a Universidade tentou de todas as formas fechar oCentro e nos trabalhamos firme para mante-lo aberto. Sentique, de alguma maneira, enquanto estivesse la, eles nao ofechariam. Eles consultaram varios professores, e todo mundodizia, "Stuart Hall levara adiante a tradicao de Hoggart, entaonao o fechem". Mas eu sabia que, assim que fosse embora,eles tentariam fecha-lo de novo. Entao eu tinha que garantira transicao. Ate o final dos anos 70 eu nao achava que aposicao estivesse segura. Quando tive certeza, senti-me livrepara partir.

Por outro lado, senti tambem que tinha vivido por demaisas crises internas de cada turma dos estudos culturais. Osnovos pos-graduandos chegavam em outubro, novembro, aisempre havia a primeira crise, o curso de mestrado nao indomuito bem, tudo um tumulto. Vi isso acontecer ano apos ano.Pensei comigo mesmo: "Voce esta se tornando um tipicoacademico desencantado, voce precisa sair enquanto suaexperiencia e boa, antes que voce seja obrigado a cair naqueleshabitos antigos."

A questao do feminismo foi muito dificil de levar por duasrazoes. Uma e que se eu tivesse me oposto ao feminismo,teria sido uma coisa diferente, mas eu estava a favor. Seralvejado como "inimigo", como a figura patriarcal principal,me colocava numa posicao contraditoria insuportavel. E claroque as mulheres tiveram que fazer isso. Elas tinham todarazao em fazer isso. Tinham que me calar, essa era a agendapolitica do feminismo. Se eu tivesse sido calado pela direita,

429

Page 218: Da Dispora - Stuart Hall

tudo bem, nos todos teriamos lutado ate a morte contra isso.Mas eu nao podia lutar contra minhas alunas feministas.Outra forma de pensar essa contradicao seria ve-la comouma contradicao entre teoria e pratica. A gente pode apoiaruma pratica, mas e muito diferente de ter uma feminista deverdade na sua frente dizendo: "Vamos tirar o RaymondWilliams do programa do mestrado e colocar a Julia Kristevaem seu lugar." Viver a politica e diferente de ser abstratamentea favor dela. As feministas me deram um xeque-mate; eu naopoderia me conciliar com isso, trabalhando no Centro. Naofoi nada pessoal. Sou amigo de muitas das feministas daqueleperiodo. Foi uma coisa estrutural. Eu nao poderia produzirnada de util no Centro, ocupando aquela posicao. Era horade partir.

Nos primeiros tempos no Centro, nos eramos como a"universidade alternativa". Havia pouca distancia entre alunose funcionarios. O que vi surgir foi o distanciamento entre asgeracoes, entre status — professores e alunos — e eu naoqueria isso. Preferia estar em um lugar mais tradicional, setivesse que assumir a responsabilidade de ser professor.Eu nao agiientava mais viver parte do meu tempo sendoprofessor delas, sendo pai delas, sendo odiado por ser paidelas, e ter a imagem de um homem antifeminista. Era umapolitica insuportavel de vivenciar.

Queria partir por todas essas razoes. A questao era: irembora para fazer o que? Nao havia outro departamento deestudos culturais. Eu nao queria ir para^utro lugar para serd]g£e-de-um^epaJtamento^de^j3j:lQjog^ Ai surgiu a chancena Open University. Eu ja trabalhara com a Open University.Catherine tinha lecionado la desde o inicio. Pensei: a OpenUniversity era uma opcao mais factivel. Num ambiente maisaberto, interdisciplinar e nao convencional, algumas dasaspiracoes da minha geracao talvez fossem realizaveis —conversar com pessoas comuns, com alunos mulheres enegros num ambiente nao academico. Isso atendia a algumasdas minhas aspiracoes politicas. Por outro lado, pensei, erauma boa oportunidade para levar ao nivel popular o para-digma mais elevado dos estudos culturais, gerado na^estufa.daj^balhpjde_ pos-graduacJ.o^do._C£ntro, porque os cursosda Open University eram acessiveis aos que nao possuiam

uma formacao academica. Para que as ideias dos estudosculturais se tornassem vivas para eles, era precise traduzi-las,se dispor a escrever naquele nivel mais popular e acessivel.Eu queria que os estudos culturais fossem abertos a esse tipode desafio. Eu nao via porque nao poderiam "viver", comouma pedagogia mais popular.

O Centro era uma estufa intelectual: os alunos maisbrilhantes faziam ali seus doutorados. Eles aspiravam a seligar, como intelectuais organicos, a um movimento maior,mas eles mesmos estavam no apice de um sistema de edu-cacao muito seletivo. A Open University era diferente. Aquestao era: "Os estudos culturais podem ser realizados ali?"

Kuan-Hsing Chen: Voltando a questao da diaspora,alguns dos intelectuais diasporicos que eu conheco exerci-taram seu poder, para melhor ou pior, em seus propriospaises, mas voce nao. E alguns deles estao tentando voltar, dequalquer maneira. Neste sentido, voce e muito diferente.

Stuart Hall. Sim. Mas lembre-se: a diaspora veio ate mini.Acabei participando da primeira onda de diaspora por aqui.Quando vim para a Gra-Bretanha, os unicos negros aqui eramestudantes e todos eles queriam voltar para seus paisesdepois da faculdade. Aos poucos, durante minha pos-gra-duacao e o inicio da Nova Esquerda, uma populacao negratrabalhadora se fixou aqui e essa se tornou a diaspora de umadiaspora. O Caribe ja e a diaspora da Africa, da Europa, daChina, da Asia e da India, e essa diaspora se re-diasporizouaqui. Isso explica porque a maior parte do meu trabalhorecente nao se volta somente para o pos-colonial, mastern a ver com os fotografos negros, os negros que fazemfilmes, com os negros no teatro, com a terceira geracaonegra britanica.

Kuan-Hsing Chen: Mas voce nunca tentou exercer seupoder intelectual em seu pais.

Stuart Hall: Houve momentos em que intervim em minhaterra de origem. Num certo ponto, antes de 1968, eu estavaengajado em um dialogo com pessoas que eu conheciadaquela geracao, principalmente para tentar resolver dife-rencas entre grupos de marxistas negros e uma tendencianacionalista negra. Eu disse, voces precisam dialogar uns com

430 431

Page 219: Da Dispora - Stuart Hall

os outros. Os marxistas negros buscavam o proletariado daJamaica, mas nao havia industrias pesadas na Jamaica; elesnao estavam atentando para o impulso cultural revolucionariodos negros nacionalistas, os Rastafaris, que estavam desen-volvendo uma linguagem cultural mais persuasiva ou subjetiva.Mas essencialmente, nunca tentei exercer qualquer papelpolitico maior. Em parte porque a ruptura na politica la — arevolucao cultural que transformou a Jamaica em uma socie-dade "negra" pela primeira vez nos anos 70 — coincidiu comuma ruptura em minha propria vida. Eu teria retornadopara tentar desempenhar um papel la, se a Federacao Cari-benha tivesse durado. O sonho acabou no momento em que,nos anos 50, decidi ficar e iniciar uma "conversacao" com oque se tornou a Nova Esquerda. A possibilidade de ter umcenario no qual eu poderia atuar politicamente no Caribe sefechou no exato momento em que encontrei um novo espacopolitico aqui. Depois disso, uma vez que eu decidira viveraqui e nao la, uma vez que Catherine e eu nos casamos, apossibilidade do retorno ficou mais dificil. Catherine era umahistoriadora social inglesa, uma feminista; sua politica estavaaqui. Paradoxalmente, ela esta agora trabalhando com aJamaica e a relacao imperial, e agora conhece mais a historiajamaicana do que eu, e adora estar la. Mas nos anos 60, eramuito dificil para uma feminista britanica branca nao sesentir uma forasteira, em relacao a politica jamaicana.Minha "re-conexao" com o Caribe aconteceu por causa daformacao de uma populacao negra diasporica aqui. Comeceia escrever sobre isso de novo num contexto de estudos sobreetnicidade e racismo feitos para a UNESCO. Depois euescrevi sobre isso em Policing the Crisis9 focalizando a racae o racismo e sua relacao com a crise da sociedade britanica,e agora escrevo mais em termos de identidades culturais.

Kuan-Hsing Chen: Entao a diaspora e definida pelasconjunturas historicas pessoais e estruturais e a energia criativae o poder da diaspora vem, em parte, dessas tensoes naoresolvidas?

Stuart Hall: Sim, mas e muito especifico e nunca perdesua especificidade. Esta e a razao porque o modo como tentopensar as questoes da identidade e um pouco diferente dopos-modernismo "nomade". Acho que a identidade cultural

432

nao e fixa, e sempre hibrida. Mas e justamente por resultar deformacoes historicas especificas, de historias e repertoriesculturais de enunciacao muito especificos,' que ela podeconstituir um "posicionamento", ao qual nos podemoschamar provisoriamente de identidade. Isto nao e qualquercoisa. Portanto, cada uma dessas historias de identidadeesta inscrita nas posicoes que assumimos e com as quaisnos identiflcamos. Temos que viver esse conjunto de posicoesde identidade com todas as suas especificidades.

[MORLEY, David; CHEN, Kuan-Hsing (Org.). Stuart Hall: Dialo-gues in Cultural Studies. London: Routledge, 1996. Traducaode Adelaine La Guardia Resende.]

NOTAS

1 Sobre o trabalho de Stuart Hall com a raca e a etnicidade, ver, [entreoutros]: A relevancia de Gramsci para o esludo da raca e etnicidade (nestevolume); Minimal selves. ICA Document, n. 6, 1967; ICA Document, n. 7,1968; Ethnicity: Identity and Difference, Radical America, n. 23, v. 4, 1989;Identidade cultural e diaspora. Revista do Patrimonio Historico e ArtisticoNational, n. 24, 1996, p. 68-76; The Local and the Global: Globalization andEthnicity e Old and New Identities, Old and New Ethnicities. In: KING,Anthony D. (Ed.). Culture, Globalization and the World-system, London:Macmillan, 1991; BAILEY, David A.; HALL, Stuart (Ed.). Critical Decade:Black British Photography in the 80s. Ten 8 2(3); Que "negro" e esse nacultura negra?, neste volume; Identidade cultural na pos-modernidade.Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

2 GILROY, Paul. The Black Atlantic. Cambridge, MA: Harvard UP, 1993. [OAtldntico Negro: modernidade e dupla consciencia. Sao Paulo: Ed. 34; Rio deJaneiro: Universidade Candido Mendes, 2001]

3 BAKHTIN, Mikhail. The Dialogic Imagination. Austin: University of TexasPress, 1981.

4 HALL, Stuart. The "First" New Left: Life and Times. Grupo de DiscussaoSocialista da Universidade de Oxford, Out of Apathy. Voices of the New Left30 Years on. London: Verso, 1989.

5 WILLIAMS, Raymond. Culture and Society. 1780-1950. London: Penguin,1958. [Cultura e sociedade: 1780-1950. Sao Paulo: Nacional, 19691.

6 HOGGART, Richard. The Uses of Literacy. London: Penguin, 1958. [Asutilizacoesda cultura. Lisboa: Presenca, 19731-

433

Page 220: Da Dispora - Stuart Hall

7 WHANNEL, Paddy; HALL, Stuart. The Popular Arts. London; Hutchinson,1964.

8 Agradeg o a Larry Grossberg por fornecer esta informagao; conversa pessoal,julho de 1992.

<J HALL, Stuart; CRITCHER, Chas; JEFFERSON, Tony; CLARKE, John, ROBERT,Brian. Policing the Crisis: Mugging, the State, and Law and Order. London:Macmillan, 1978.

434

H U M A N

DIRETORA DA COLEgAOHeloisa Starling

1. DO SOTAO A VITRINE, memorias de mulberesMaria Jose Motta Viana

2. A IDfJA DEJUSTICA EM KANT, seu fundamenlo na Uberdadee na igualdadeJoaquim Carlos Salgado

3. ELEMXNTOS DE TEORIA GERAL DO DIKFJTOEdgar da Mata Machado

4. O ARTESAO DA MEMOR1A NO VALE DO JEQUT17NHONHAVera Lucia Felicio Pereira

5- OS CINCO PARADOXOS DA MODERNIDADE - 2* reimpressaoAnioine Compagnon

6. LICOES DE ALMANAQUE, urn estudo semioticoVera Casa Nova

7. MULTIPLOS OLHARES SOBRE EDUCACAO E CUL1VRA -1* reimpressaoJuarez Dayrell (Org.)

8. ANTKOPOLOGIA DA VIAGEM, escravos e Kbertos em MinasGerais no seculo XIXIlka Boaventura Leite

9. O TRABALHO DA ClTACAOAntoine Compagnon

10. IMAGENS DA MEM6RIA, entre o legivet e o visiuelCesar Guimaraes

11. AO LADO ESQUERDO DO PAISahrina Sedlmayer

12. A ASTUCIA DAS PAIAVRAS, ensaios sobre Guimaraes RosaLauro Belchior Mendes e Luiz Claudio Vieira de Oliveira (Org.)

13. NAVEGAR EPRECJSO, vn'ER, escritospara Silviano SantiagoEneida Maria de Souza e Wander Melo Miranda (Org.)

14. ADORNOS, nove ensaios sobre o filosofo frankfurtianoRodrigo Duarte

15- A OM-QIOGIA DA REALIDADE - 2* reimpressaoHumberto Maturana

16. VISCERAS DA MEMORIA, uma leitum da obra de Pedro NavaAntonio Sergio Bueno

17. NA TESSriVRA DA CENA, A VJDA, camunicafao,sociabilidade e pottiicaMaria Ceres Pimenta SpTnola Castro

18. NAVEGANTES DA INTEGRACAO, os remeiros do ria Sao FranciscoZanoni Neves

Page 221: Da Dispora - Stuart Hall

19- PR PRE'I'O NO BARRO BRANCO, a lingua dos negrosda TabattngaSonia Queiroz

20. JORNALISMOE V1DA SOCIAL, a hisloria amena de urnjornal mineiroVera Veiga Franca

21. EMOCOES E LINGUAGEM NA EDL'CACAO E NA POLITICA -2* reimpressaoHumberto Maturana

2 2. HANNAH ARENDT E A BAN ALIDADE DO MALNadia Souki

23. PONTOS E BORDADOS, escritos de historia e politica - la reimpressaoJose Murilo de Carvalho

24. A DEMOCRACIA CONTRA O ESTADO, Marx e o momentamaquiavelianoMiguel Abensour

25. O LOCAL DA CULTURA - 23 reimpressaoHomi K. Bhabha

26. LUZES E TREVAS, Minos Gerais no seculo XVIIIFabio Lucas

27. LUCIO CARDOSO, a trauessia da escrilaRuth Silviano Brandao COrg.)

28. FILOSOEIA ANALITICA, PRAGMATISMO E CIENCIAPaulo Roberto Margutti Pinto, Cristina Magro, Ernesto PeriniFrizzera Santos e Ltvia Mara Guimaraes (Org.)

29- BELO, SUBLIME E KANTRodrigo Duarte (Org.)

30. A FORMACAO DO HOMEMMODERNO VISTA ATRAW.S DAARQUITETURA - 1* reimpressaoCarlos Antonio Leite Brandao

31. A PEDRA MAGICA DO DISCURSO (2a edicao revista e ampliada)Eneida Maria de Souza

32. O FILMS DENTRO DO F1LMEAna Lucia Andrade

33. O ESPELHO DE HER6DOTO, ensaio sobre a representacdodo outroFrancois Hartog

34. NORMA E CONFUTO, aspectos da historia de Minos no seculo XVIIILaura de Mello e Souza

35. AO LEITOR SEM MEDO, Hobbes escrevendo contra o seu tempo(2s edicao)Renato Janine Ribeiro

36. LfflERAUSMO E S1NDICATO NO BRAS1L (4a edicao revista)Luiz Wemeck VLanna

37. ESCREVER A CASA POR1VGUESAJorge Fernandas da Silveira (Org.)

38. POIJTICA E RECUPERACAO ECON&MICA EM MINAS GERAISOtavio Scares Dulci

39. AINVENCAODA VERDADEOlimpio Pimenta

40. A REVOLUCAO URBANA - I1 reimpressaoHenri Lefebvre

41. 0 DEMOMO DA TEORIA literatura e senso comum - 2» reimpressaoAntoine Compagnon

42. HERMENEUTICA E POESIA o pensamento poelicaBenedito Nunes

43. O CONDOR VOA, literatura e cutiura latino-americanasAntonio Cornejo Polar

44. INTERFACES literatura mito inconsciente cognicaoMaria Luiza Ramos

45. QUID TUM? o combate da arte em Leon Battista AlbertiCarlos Antonio Leite Brandao

46. NIETZSCHE, das forcas cosmicas aos vatores humanosScarlett Marton

47. A FORCA DA LETRA, estilo escrila represeniacaoLucia Castello Branco e Ruth Silviano Brandao COrg.)

48. TEORIA E POLITICA DA IRONIALinda Hutcheon

49- POLITICA E RACIONALIDADE, problemas de teoria e metodo deuma sociologia critica da polilicaFabio Wanderley Reis

50. AS M1SSOES JESUITICAS E O PENSAMENTO POLITICO MODERNO,encontros cuiturais, aventuras leoricasJose Eisenberg

51. PENSARA REPliBLICA - la reimpressaoNewton Bignotto (Org.)

5 2. TEORIA SOCIAL E MODERNIDADE NO BRASILLeonardo Avritzer e Jose Mauricio Domingues (Org.)

53. CULTURA E POLITICA NOS MOVIMEN'I'OS SOCIAISLATINO-AMERICANOS, novas leilurasSonia E. Alvarez, Evelina Dagnino e Arturo Escobar (Org.)

54. AMERICANOS, representacoes da identidade nacianal noBrasil e nos EUALucia Lippi Oliveira

55. A CONQUISTA DO OESTE, afronteira na obra de SergioBuarque de HolandaRobert Wegner

56. A POE77CA DO HIPOCENTAURO, literatura, sociedadee discurso fictional em Luciano de SamosataJacyntho Lins Brandao

57. UM VISIONARIO NA COKIE DE D. JOAO V, revoita e milenarisnonas Minas GeraisAdriana Romeiro

Page 222: Da Dispora - Stuart Hall

58. COGNICAO, CIENCIA E VJDA COTIDIANAHumbeito Maturana

59. O FILOSOFO E O COMEDIAWE, ensaios sobre literatura efilosofiana IlusiracaoFranklin de Matos

60. MIMESIS E EXPRESSAOKodrigo Duarte e Virginia Figueiredo (Org.)

61. A EXAUSTAO DA DIFERENCA, a politica dos esludos culturaislalino-americanQSAlberto Moreiras

62. HANNAH ARENDT, didlogos, reflexoes, memorias - la reimpressaoEduardo Jardim de Moraes e Newton Bignotto (Org.)

63. BEHEMOTH OU O LONGO PARIAMENTOThomas Hobbes

64. A HIST6RIA DE HOMERO A SANTO AGQSTINHOFrancois Hartog (Org.)

65. ORIGENS DO REPUBLICANISMO MODERNONewton Bignotto

66. DARCY RIBEIRO, sociologia de um indisciplinadoHelena Bomeny

67. DIALOGOS OCEANICOS, Minas Gerais e as novas abordagens parauma bistoria do Imperio Ultramarino PortuguesJunia Ferreira Furtado (Org.)

68. CHARLES FREDERICK HARTT, UM NATURALISTANO IMPERIO DE PEDRO IIMarcus Vinicius de Freitas

69- A TRADICAO ESQUEC1DA, Os parceiros do Rio Bonito e a sociologiade Antonio CandidaLuiz Carlos Jackson

70. A MOBIUDADE DAS FRONTEIRAS, insercoes da geografla na criseda modemidadeCassio Rduardo Viana Hissa

71. REISNEGROSNO BRASIL ESCRAV1STA, bistoria dafesta decoroagao de Rei CongoMarina de Mello e Souza

7 2 . X ESCOLA DE MINAS DE OURO PRETO, o peso da gloria(2a edicao revista)Jose Murilo de Carvalho

73- HOMO SACER, o poder soberana e a uida nua IGiorgio Agamben

74. ESTACAO IMAGEM, desafiosPaulo Bernardo e Vera Casa N(Dva (Org.)

75- FRANCIS BACON E A FUNDAMENTACAODA CIENCIA COMO TECNOLOGIABernardo Jefferson de Oliveira

76. A CRISE NAO MODERNA DA UWVKRSIDADE MODERNA (epilogode O conflito das faculdades)Willy Thayer

77. DIALETICA DO OLHAR, Walter Benjamin e o Projeto das PassagensSusan Buck-Morss

78. O CORPO DO DELITO, um manualJosefina Ludmer

79. CRtUCA CULTEneida Maria de Souza

80. VALORES, arle mercadopolfticaReinaldo Marques e Lucia Helena Vilela (Org.)

81. INTERVENCOES CRITICAS, arte, cultura, genero e politicaNelly Richard

82. TEMPO PRESENTE, do MDB a FHCFabio Wandedey Reis

83. AS CORES DE ERCIUA, esfera publica, democracia,configuracoes pos-nacionaisSergio Costa

84. A DEMOCRACIA E OS TRES PODERES NO BRASILLuiz Werneck Vianna (Org.)

85. INTERNET E POLITICA, teoria e pratica da democracia eleironicaJose Eisenberg e Marco Cepik (Org.)

86. 05 SONS DO ROSARIO, o congado mineiro dos Arturos ejatobaGlaura Lucas

87. ET1CA, POLITICA E CULTURAIvan Domingues, Paulo Roberto Margutti Pinto eRodrigo Duarte (Org.)

88. ANTROPC-LOGAS & ANTROPOLOGIAMarisa Correa

89. O CALCULO DO CONFUTO, estabilidade e crise na politica brasileiraWanderley GuLlherme dos Santos

90. OS CRIMES DO TEXTO, Ruben Fonseca e aficcao conlempordneaVera Lucia Follain de Figueiredo

91. O DILEMA DO CENTA URO, ensaios de teoria da bistoriae pensamento latino-americanoAntonio Mitre

92. ALEGQRIAS DA DERROTA, a ficcao pos-ditatonal e o trabalho deiuto na America LatinaIdelber Avelar

93- DA DIASPORA, identidades e mediacoes culturaisStuart Hall

Page 223: Da Dispora - Stuart Hall

^TE r. --r--

u

J

Hall. Stuart

Da diaspora identidades e mediapSes culturais

316. 72/H174dDEVOLVER NOME LEIT. U98681/O5)

A presente edi^ao foi composta pela Editora

UFMG, em caracteres Gatineau, corpo 10,5/

13 e 10/13, e impressa pela Rona EdiLora

Ltda. , em sistema offset, papel offset 90g

(miolo) e cartao supremo 250g Ccapa), em

main de 2003-

. ..,.. Reg. 198.881

Hall* Stuart

Da diaspora identidadesacBes culturals

316. 72/H174d(198,

cimento de seu alcance limitado,

de outro.

Este livro procura dar conta dessa

trajetoria, apresentando os textos

mais significativos de Stuart Hall e,

tambem, algumas de suas mais

recentes intervenc.6es nos debates

em institutes publicas e academicas.

A selec.ao dos textos, feita com a cola-

borac.ao do proprio autor, procura

contribuir para um diaiogo amplo

entre a obra de Stuart Hall e a intelec-

tualidade brasileira, em sua diverst-

dade de interesses e preocupayees.

Stuart Hall foi um dos fundadores

e dirigiu, durante seu periodo rnais

fertil, entre 1968 e 1979, o centro

que foi o berco dos Estudos Culturais

na Universidade de Birmingham

(Inglaterra), de onde se transferiu

para a Open University. £ um dos

mais proeminentes criticos da cultura,

com varios titulos publicados.