da diplomacia do equilÍbrio de poderes À polÍtica...

20

Click here to load reader

Upload: duongphuc

Post on 19-Jan-2019

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: DA DIPLOMACIA DO EQUILÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA …bresserpereira.org.br/papers/2003/592-diplomacia_do_equilibrio... · novas fontes de ameaças. Introduziu-se então a categoria

DA DIPLOMACIA DOEQUILÍBRIO DE PODERES

À POLÍTICA DA GLOBALIZAÇÃO1

Luiz Carlos Bresser-Pereira

RESUMOO 11 de Setembro marcou o fim da Diplomacia do Equilíbrio de Poderes, na qual os Estados-nação se definiam como inimigos e resolviam contendas mediante a guerra ou ameaça deguerra, e aos poucos surge a Política da Globalização, em meio à qual se estabelece um Estadode direito internacional. Sendo a globalização inerentemente injusta para os países pobres,estes, sem possibilidade de inserção num mundo de competição, ou estão simplesmente forado sistema ou, frustrados, recorrem ao terrorismo. Mas os interesses não apontam apenas parao aumento das desigualdades: por meio da política será possível criar um sistema jurídicointernacional menos injusto e até mesmo um governo internacional.Palavras-chave: globalização; diplomacia; política internacional; direito internacional.

SUMMARYThe September 11th episode marked the end of the Balance of Powers Diplomacy, throughwhich the nation-states defined themselves as enemies and solved their problems with war orwar threat. Slowly Globalization's Politics replace the previous system, as long as the rule of lawemerges at international level. Globalization is inherently unjust to the poor countries: unableto compete in a world where competition prevails, such countries are either just outside thesystem or, frustrated, recur to terrorism. Interests, however, do not point out only in thedirection of inequalities. Through politics, it will be possible to create a less unjust internationallaw system, and even an international government.Keywords: globalization; diplomacy; international politics; rule of law.

Não foi apenas a Guerra Fria que se encerrou com os atentados de 11 desetembro, mas também a antiga Diplomacia do Equilíbrio de Poderes.Embora o conflito entre Estados Unidos e União Soviética tenha terminadocom o colapso desta última em 1989, os analistas e formuladores das políticasinternacionais continuaram a concebê-las como se o mundo permanecessedividido entre duas superpotências conflitantes. Depois do 11 de Setembro,porém, tornou-se evidente que as políticas externas da superpotência rema-nescente e das potências intermediárias exigem uma revisão substancial, afim de se desenvolver mais seriamente uma nova ordem internacional. Apremissa básica sobre a qual foi construída a antiga ordem — a de que osconflitos podem ser resolvidos pela guerra ou ameaça de guerra — não fazmais sentido. Embora o poderio militar continue a ser fator relevante nas

(1) Este texto será publicadoem livro organizado por EricHershberg e Kevin More (Ter-rorism and the internationalorder, global perspectives onSeptember 11 and its afterma-th. Nova York: The New Press).A versão para o português foifeita por Maria Cristina de Go-doy. Agradeço o apoio do Nú-cleo de Pesquisas e Publica-ções da Eaesp-FGV.

MARÇO DE 2003 91

Page 2: DA DIPLOMACIA DO EQUILÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA …bresserpereira.org.br/papers/2003/592-diplomacia_do_equilibrio... · novas fontes de ameaças. Introduziu-se então a categoria

DA DIPLOMACIA DO EQUIÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA DA GLOBALIZAÇÃO

relações internacionais, tornou-se claro que a história dessas relações nãopoderá mais se reduzir a uma crônica de guerras ou ameaças de guerra entreimpérios ou Estados-nação, bem como que o papel fundamental da diploma-cia não será mais o de evitar guerras.

O 11 de Setembro demonstrou que a fonte das principais ameaças aosEstados Unidos e às potências intermediárias não está mais nos outrosEstados-nação, que agora são meros competidores no mercado globalizado.A verdadeira ameaça vem do terrorismo, de diversos tipos de fundamentalis-mo religioso, do tráfico de drogas, da instabilidade financeira devida a fluxosinternacionais descontrolados e da persistência de situações de extremapobreza combinadas com estagnação em algumas partes do mundo (sobretu-do na África), bem como do sentimento de continuada decadência econômi-ca e exclusão em certas regiões e grupos étnicos (em particular no OrienteMédio). O maior inimigo que emerge do 11 de Setembro é o terrorismointernacional, embora seja pouco provável que qualquer país ouse acolhê-loe apoiá-lo após o ataque norte-americano ao Afeganistão.

A Diplomacia do Equilíbrio de Poderes, ou das Grandes Potências emConflito, acabou. Trata-se agora de saber que tipo de ordem internacional irásubstituí-la, tendo em vista a mudança da natureza das ameaças enfrentadaspelas potências mundiais. A globalização, até agora um fenômeno econô-mico com importantes conseqüências nas áreas do desenvolvimento e dadistribuição, exigirá mais condução política do que nunca. Nessas circunstân-cias, a velha idéia do governo internacional, que sempre pareceu utópica aosteóricos realistas e políticos, torna-se uma possibilidade real. Continuaremosa testemunhar resistências a ela nos Estados Unidos, mas as políticas unilate-rais e o comportamento puramente hegemônico desse país, como estamosvendo no governo Bush, conflitarão cada vez mais com seus verdadeirosinteresses nacionais2.

O problema central ora enfrentado pelos Estados-nação consiste emcomo tirar maiores vantagens das oportunidades que o comércio e asfinanças internacionais têm a oferecer: como ganhar, e não perder, em umcontexto internacional essencialmente caracterizado por jogos comerciais dotipo "ganhar-ganhar", mas em que alguns tendem a ganhar mais do queoutros. Assim, em lugar de uma diplomacia definida pelo conflito político-militar, veremos cada vez mais uma diplomacia globalizada, em que serãoquestões centrais as regras sobre o comércio e as finanças internacionais,bem como sobre a imigração e a vida multicultural dentro dos Estados-nação.Uma nova ordem internacional, que está emergindo desde o fim da II GuerraMundial e a criação das Nações Unidas, tornou-se evidente após os aconteci-mentos de 11 de setembro. Essa nova ordem, eu a chamo aqui de "Política daGlobalização". A substituição da expressão "diplomacia" por "política" temum sentido nada acidental, como discutirei adiante: o conflito entre Estados-nação exigiu atividade diplomática, ao passo que o mundo globalizado exi-girá, mais que diplomacia, ação política. Diplomacia e política nunca foramatividades opostas, mas na nova ordem internacional serão cada vez maissemelhantes, se não a mesma coisa.

(2) Essa é a única referênciaque farei aqui ao governo Bush,já que este ensaio adota umaperspectiva de longo prazo.Mas isso não significa que ig-nore o desastre que no curtoprazo poderá significar para osEstados Unidos e o mundo umgoverno que conflita com astendências e necessidades fun-damentais do mundo em quevivemos.

92 NOVOS ESTUDOS N.° 65

Page 3: DA DIPLOMACIA DO EQUILÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA …bresserpereira.org.br/papers/2003/592-diplomacia_do_equilibrio... · novas fontes de ameaças. Introduziu-se então a categoria

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA

Os Estados-nação deixaram de ser inimigos

Durante séculos, as relações internacionais foram encaradas como cho-ques reais ou virtuais entre superpotências: França contra Inglaterra, Espanhacontra França, Espanha contra Inglaterra, Alemanha contra França, Inglaterracontra o Império Otomano, o Império Austro-Húngaro contra a França napo-leônica, o Império Otomano contra o Império Austro-Húngaro e assim pordiante. O último capítulo dessa Diplomacia das Potências em Conflito foi aGuerra Fria, em que o conflito permaneceu "frio" e não se transformou emguerra — desde que não consideremos as muitas guerras regionais da segun-da metade do século XX, que, em graus diferentes, refletiram o deslocamentodo conflito entre Estados Unidos e União Soviética para o contexto do TerceiroMundo.

Quando caiu o Muro de Berlim e a União Soviética desmoronou, os ana-listas reconheceram de imediato que havia sobrado apenas uma superpotên-cia, mas passaram a procurar a nova grande potência mundial que se tornariaseu próximo adversário. Em virtude de seu tamanho e dinamismo econômico,a China era o candidato mais óbvio, mas em face do seu manifesto interesse nocomércio pacífico, bem como da violência implícita na hipótese de Hunting-ton sobre o "choque de civilizações"3, os analistas foram obrigados a procurarnovas fontes de ameaças. Introduziu-se então a categoria das "nações fora-da-lei" (rogue nations), depois definidas pelo presidente Bush como integran-tes do "eixo do mal", composta por Iraque, Irã, Coréia do Norte, Cuba e Líbia,e os Estados Unidos instituíram a estratégia do escudo nacional antimísseispara fazer frente à possibilidade de ataque por parte de algum desses peque-nos países.

Tais análises faziam pouco sentido, uma vez que aplicavam a lógica daGuerra Fria a situações internacionais muito diferentes. Sem considerar as no-vas circunstâncias históricas, estudiosos e formuladores de políticas insistiramem aplicar esquemas de pensamento tradicionais para compreender realida-des em mudança. Embora eventos dramáticos como o de 11 de setembro pos-sam não alterar interesses e visões dogmáticas, podem tornar menos ambí-guas as mudanças históricas. Os atentados evidenciaram que a potência hege-mônica não mais possui inimigos que a ameacem entre os Estados-nação.Atualmente, nenhum país no mundo representa uma verdadeira ameaça mili-tar, econômica ou ideológica aos Estados Unidos, e a própria lógica das rela-ções internacionais afasta tal hipótese. Alguns países lhes são mais amigos doque outros, e certos países menores podem ser encarados como inamistosos,como Iraque ou Coréia do Norte, mas eles sabem muito bem que se atacaremos Estados Unidos a retaliação legítima será imediata e arrasadora — já sabiamdisso antes da derrota do regime Taliban (no 11 de Setembro, o primeiro go-verno a declarar não ter nada a ver com os ataques foi o afegão). A guerra podeter sido a primeira resposta ao terrorismo — uma guerra de tipo inteiramentediferente, que mais pareceu uma forma extrema de policiamento internacional—, mas não será a essa estratégia principal para combatê-lo e derrotá-lo.

(3) Huntington, Samuel P. Theclash of civilizations and theremaking of the world order.Nova York: Simon and Schus-ter, 1997.

MARÇO DE 2003 93

Page 4: DA DIPLOMACIA DO EQUILÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA …bresserpereira.org.br/papers/2003/592-diplomacia_do_equilibrio... · novas fontes de ameaças. Introduziu-se então a categoria

DA DIPLOMACIA DO EQUILÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA DA GLOBALIZAÇÃO

Entre as potências intermediárias, apenas Índia e Paquistão ainda sevêem como inimigos, em razão do conflito da Caxemira. Tão logo esseconflito seja solucionado, os dois países se somarão à categoria predominan-te de competidores, e não de belicosos. Entre as nações menores, o conflitopalestino-israelense continua sendo o mais perigoso, e há ainda outros,particularmente na África, mas a nova diplomacia internacional emergenteterá de enfrentá-los em termos razoavelmente imparciais para poder resolvê-los. Conflitos regionais representam uma ameaça inaceitável à segurançaeconômica, e num mundo globalizado, em que o respeito aos direitos depropriedade é essencial, tais conflitos precisam ter uma solução — namaioria dos casos, alguma forma de compromisso. Assim, a arbitrageminternacional deverá ser cada vez mais presente. Com o fim da política deequilíbrio de poderes, essa arbitragem poderá e deverá ser razoavelmenteimparcial: se as decisões forem tomadas de acordo com critérios diferentes,as partes continuarão a desafiá-las, e intervenções facciosas mais cedo oumais tarde originarão novos conflitos. O fato de que os árbitros imponhamsuas decisões não deverá representar um problema — os tribunais, que sãoem princípio imparciais, impõem suas decisões —, mas é essencial que adecisão imposta tenha alguma referência legítima no conceito de justiça (naintervenção das grandes potências na guerra da Bósnia, foi esse tipo de ar-bitragem que vimos).

Entre as principais nações do mundo, é impensável hoje conceber aguerra como um meio de solucionar conflitos. Em primeiro lugar, o imperia-lismo clássico — a estratégia de submeter outros povos pela força, colonizá-los e taxá-los — tornou-se implausível, e as grandes potências praticamformas de exploração mais sofisticadas e menos violentas em relação aospaíses pobres. Em segundo lugar, após um longo e difícil processo, conflitosterritoriais que antes só eram solucionados por guerras estão agora quasetodos resolvidos. Por fim, o interesse econômico comum em participar demercados globalizados supera amplamente os interesses conflitantes aindaexistentes. A guerra foi o padrão de comportamento "internacional" entretribos pré-capitalistas, cidades-estado e antigos impérios. Era o meio peloqual grupos dominantes tradicionais se apropriavam do excedente econômi-co, recolhendo o butim, escravizando os derrotados ou impondo pesadosimpostos sobre as colônias. No campo interno, as classes dominantes sempredependeram do controle do Estado para se apropriar do excedente econômi-co de camponeses e comerciantes. A legitimidade religiosa foi sempre umaparte essencial do processo, mas a simples existência de impérios e oligarqui-as dominantes dependia de sua capacidade de manter o poder político efazer a guerra.

Com a revolução capitalista, completada primeiramente na Inglaterracom a Revolução Industrial, surgiu um fator novo e extremamente significa-tivo. A apropriação interna do excedente econômico deixou de depender docontrole do Estado e passou a ocorrer no mercado, por meio da realização delucros. Mercados, trabalho assalariado, lucros, acumulação de capital, pro-gresso técnico e inovação tornaram-se os novos elementos-chave, que um

94 NOVOS ESTUDOS N.° 65

Page 5: DA DIPLOMACIA DO EQUILÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA …bresserpereira.org.br/papers/2003/592-diplomacia_do_equilibrio... · novas fontes de ameaças. Introduziu-se então a categoria

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA

novo sistema de governo teria de assegurar. O Estado moderno começou asurgir com as repúblicas italianas a partir do século XII, com a finalidade deorganizar e garantir o comércio de longa distância. Os primeiros Estadosnacionais materializaram-se três ou quatro séculos depois, na França, Ingla-terra, Portugal e Espanha, como resultado da aliança do rei com a burguesiaa fim de tornar os mercados livres e seguros em grandes territórios antesdivididos entre os senhores feudais. Instituições do Estado — sobretudo osistema jurídico — que já eram altamente desenvolvidas no Império Romanoganharam importância ao garantir os direitos de propriedade e os contratosdos comerciantes.

O poderio militar continuou a desempenhar papel essencial nessenovo contexto histórico, para consolidar as fronteiras nacionais, defender opaís contra inimigos externos e, posteriormente, sustentar a estratégia dosnovos Estados-nação de abrir novos mercados e garantir acesso a fatores deprodução estratégicos. Durante o século XIX e a primeira parte do século XXa história foi essencialmente o registro de como os países capitalistasdefiniram seus territórios nacionais e desenvolveram impérios modernospara garantir o monopólio de mercado sobre vastos territórios. Nesse perío-do, os primeiros Estados-nação foram capazes de consolidar suas revoluçõescapitalistas, garantir o Estado de direito, desenvolver instituições liberais epor fim transformar seus regimes autoritários em democracias modernas. Sãoesses, atualmente, os países desenvolvidos. Alguns dos países que ficarampara trás — como Brasil, México, Argentina, Índia, China, os Tigres Asiáticose a África do Sul — conseguiram realizar a revolução capitalista no século XX,e são atualmente os de desenvolvimento intermediário. Um terceiro grupode países ainda não foi capaz de completar essa revolução e permanece emgrande parte à margem do crescimento econômico global, constituindo-senas principais vítimas da globalização, já que não têm as condições mínimaspara concorrer nos mercados internacionais4.

À medida que os países se transformavam em democracias modernas epoderosas ou em economias de desenvolvimento intermediário, seus territó-rios nacionais tornavam-se bem-definidos. Ao mesmo tempo, diminuiu ointeresse das primeiras em manter ou ampliar poderes imperiais, já quenovos países independentes abriam seus mercados para o comércio exte-rior e havia crescente resistência das colônias à dominação externa. Nessequadro, a guerra deixa de ser um modo afirmativo de atingir o desenvolvi-mento econômico. Não é por acaso que Japão e Alemanha, os dois importan-tes países derrotados na II Guerra, tenham se desenvolvido extraordinaria-mente no pós-guerra sem que se inclinassem a reconstruir seu poderiomilitar. Pode-se argumentar que essa foi uma condição imposta pelos EstadosUnidos no pós-guerra, mas o que observamos hoje é precisamente o oposto:os Estados Unidos estão pressionando esses dois países a reconstruir suacapacidade militar para que participem mais ativamente de ações de segu-rança internacional.

(4) Cf. Stiglitz, Joseph E. Globa-lization and its discontents.Nova York: W. W. Norton,2002. Países de desenvolvi-mento intermediário como aArgentina podem também serfortemente prejudicados, nãotanto pela globalização, maspelas políticas enviesadas a fa-vor dos países ricos adotadaspelas organizações internacio-nais, em particular o FMI.

MARÇO DE 2003 95

Page 6: DA DIPLOMACIA DO EQUILÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA …bresserpereira.org.br/papers/2003/592-diplomacia_do_equilibrio... · novas fontes de ameaças. Introduziu-se então a categoria

DA DIPLOMACIA DO EQUILÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA DA GLOBALIZAÇÃO

O novo jogo é a globalização

Em um mundo onde o excedente econômico é alcançado por meio dolucro nos mercados e onde os mercados estão generalizadamente abertos, apolítica da guerra ou ameaça de guerra perdeu muito de seu apelo clássico navida das nações. A última "guerra" — a Guerra Fria — pode ser interpretadacomo um conflito entre estatismo e capitalismo (vencido por este último),como uma tentativa de algum país atrasado de acelerar a industrialização pormeio do controle burocrático ou como o último capítulo da resistência dealguns grandes países, em particular União Soviética e China, em abrir suaseconomias ao capitalismo global. Essas três interpretações lançam algumaluz sobre certos aspectos da Guerra Fria, mas gostaria de destacar aqui aúltima delas.

A resistência da União Soviética e da China à abertura de suas econo-mias se baseou não apenas nos clássicos argumentos protecionistas, mastambém em idéias socialistas distorcidas. O estatismo soviético julgava seruma alternativa econômica e ideológica ao capitalismo e ao liberalismo,quando era apenas uma estratégia de industrialização protecionista e estatis-ta que durante décadas fechou uma grande parte do mundo ao comérciointernacional. Enquanto existiu a União Soviética, e enquanto a China estevesob Mao Tse-tung, suas economias foram mantidas à margem do capitalismoglobal. Não é mera coincidência que a palavra "globalização" tenha adquiri-do predominância depois do colapso da União Soviética e da abertura daChina para o mundo e o capitalismo sob Deng Xiaoping. Desde então aglobalização tornou-se uma realidade e as guerras para abrir novos mercadosperderam sentido. O colapso soviético completou o trabalho da II Guerra emdefinir a maior parte das fronteiras nacionais.

A configuração do capitalismo global levou séculos e foi marcada nãoapenas pela mudança tecnológica e o crescimento econômico, mas tambémpela afirmação de duas instituições básicas e complementares: o Estado-nação e o mercado. Os Estados-nação surgiram na França, Inglaterra, Portu-gal e Espanha durante o século XVI, na época do mercantilismo e dasmonarquias absolutas. A revolução liberal contra o excessivo controle domercado pelo Estado começou com as revoluções políticas, inicialmente naInglaterra, no século XVII, e no século seguinte nos Estados Unidos e naFrança, atingindo seu ápice no final do século XVIII, com as revoluçõesAmericana e Francesa. O fato de que revoluções políticas tenham abertocaminho para direitos civis e mercados livres é sintomático da complemen-taridade entre mercado e Estado. O século XIX foi o período do capitalismocompetitivo e do liberalismo, mas ambos terminaram em crise, tal como omercantilismo havia antes se exaurido. Nesse momento, no entanto, a razãobásica para tal foi o descontrole dos mercados, e não seu excessivo controle.

Após a Grande Depressão dos anos 1930, o novo padrão capitalistapassa a ser o do Welfare State ou do Estado social-democrata. Durante algumtempo há uma controvérsia entre o planejamento econômico e as políticas

96 NOVOS ESTUDOS N.° 65

Page 7: DA DIPLOMACIA DO EQUILÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA …bresserpereira.org.br/papers/2003/592-diplomacia_do_equilibrio... · novas fontes de ameaças. Introduziu-se então a categoria

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA

econômicas keynesianas, mas estas se mostram mais sensatas e duradouras.Assim como as fases mercantilista e liberal, a fase social-democrata foi marca-da pelo contínuo aparecimento de novos Estados-nação e pela afirmação dosantigos. O desenvolvimento econômico propiciado pela revolução capitalistano período liberal ganhou impulso no período social-democrata. Crises cícli-cas continuaram a caracterizar o desenvolvimento capitalista, mas deixaramde ter conseqüências econômicas devastadoras. Um ciclo mais intenso mani-festou-se em meados dos anos 1970. Dado o crescimento excessivo e distorci-do da organização do Estado no período anterior, ocorreu uma nova crise doEstado — uma crise fiscal e uma crise do modo burocrático de administrá-la —e abriu-se espaço para reformas liberais orientadas ao mercado. Ao mesmotempo, o crescimento dos mercados mundiais em ritmo mais rápido do que odos PIBs, a ascensão explosiva dos mercados financeiros e, mais amplamente,o surgimento de uma rede cada vez mais forte de relações internacionais —não apenas entre nações, mas também entre indivíduos, empresas, associa-ções e ONGs — levaram à forma atual do capitalismo: a globalização.

Diversas circunstâncias históricas contribuíram para o progresso daglobalização: de um lado, a aceleração do progresso técnico, a revolução dainformática e a redução dos custos de transporte; de outro, o fim da GuerraFria, a crescente pressão norte-americana pela liberalização do comércio e aaceitação de que o comércio internacional pode ser — embora não necessa-riamente — um jogo de ganhar-ganhar. Combinados, esses fatores mudaramo mundo nos últimos 25 anos do século XX, de modo que hoje observamos apredominância efetiva dos mercados globalizados. Comercializar bens, ser-viços, tecnologia, dinheiro e crédito e fazer investimentos diretos no exteriornão representa apenas a única alternativa, mas a que realmente importa.Todos os tipos de regras internacionais protegem os mercados, tornando-osabertos e cada vez mais seguros quanto à garantia dos direitos de proprieda-de. Apenas os mercados de trabalho ainda não se tornaram globalizados,embora os fortes fluxos migratórios em direção aos países ricos apontemnessa direção, e apenas os mercados financeiros continuam basicamenteinseguros, não porque os direitos de propriedade não sejam aí garantidos,mas porque esses mercados permanecem insuficientemente regulados.

Globalização é um conjunto de relações econômicas, instituições eideologias controladas principalmente por países ricos. É diferente de "glo-balismo". Globalização é um fato econômico e tecnológico com conseqüên-cias políticas, é o nome do capitalismo do nosso tempo, enquanto "globalis-mo" é apenas uma dessas conseqüências políticas: uma ideologia que afirma,em primeiro lugar, que existe hoje uma comunidade internacional indepen-dente dos Estados-nação, formada por empresas e pessoas internacionaliza-das e, em segundo lugar, que os Estados-nação perderam autonomia paradefinir suas políticas nacionais e não têm alternativa senão seguir as regras erestrições impostas pelo mercado globalizado. Embora exista alguma verda-de na segunda afirmativa, os Estados nacionais continuam poderosos econservam um importante grau de independência na definição de suaspolíticas. Contrariando certas perspectivas ingênuas, as democracias desen-

MARÇO DE 2003 97

Page 8: DA DIPLOMACIA DO EQUILÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA …bresserpereira.org.br/papers/2003/592-diplomacia_do_equilibrio... · novas fontes de ameaças. Introduziu-se então a categoria

DA DIPLOMACIA DO EQUILÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA DA GLOBALIZAÇÃO

volvidas não seguem um único modelo econômico, pois além do modelonorte-americano há pelo menos três outros: o japonês, o renano (da Alema-nha e da França) e o escandinavo.

A crise endógena do Estado e a globalização, que implicaram umaredução relativa na autonomia dos Estados-nação em definir suas políticas,levaram os analistas ultraliberais a prever ou pregar a redução do Estado a ummínimo. Tolice. Mercados fortes precisam de um Estado forte. O equilíbrioentre a organização do Estado e a coordenação do mercado pode obedecer aum padrão cíclico5, mas não é difícil verificar que os países com mercadosmais livres e ativos são também aqueles com organizações e instituições deEstado mais eficazes. Desde meados dos anos 1990, quando a onda ideológi-ca ultraliberal perdeu impulso, essa verdade começou a se tornar perceptível,e depois do 11 de Setembro ganhou plena saliência. Nos Estados Unidos,onde a vaga ultraliberal havia sido mais forte, tal mudança foi mais evidente:a confiança no governo, que estava decaindo desde os anos 1960, voltou comforça total — é em tempos de crise que as pessoas se lembram de como ogoverno é importante6. A triste faceta desse processo é que ali, sob o argu-mento de combater o terrorismo, foram eliminados sumariamente algunsdireitos civis. The Economist, revendo atos da administração Bush como aprisão em segredo de mais de seiscentos estrangeiros, a suspensão do direitode sigilo entre advogado e cliente, a caracterização racial, o aumento dospoderes de vigilância governamental e o julgamento por tribunais militaresespeciais, reconheceu que essas decisões eram "perturbadoras", mas nãocaracterizariam exatamente uma "ditadura"7. De fato, não podemos falar deditadura, mas é certo que essas medidas ameaçam a liberdade. Desde os"pais fundadores", os norte-americanos sempre desempenharam um papelimportante na luta pelos direitos civis, que teve como último episódio re-levante o empenho do presidente Carter pelos direitos humanos.

Assim como há um equilíbrio necessário, mas sempre mutante, entreintervenção do Estado e alocação dos recursos econômicos pelo mercado,também é preciso um equilíbrio entre direitos civis e segurança nacional. Noentanto, como bem sabemos na América Latina, onde os regimes militaresprosperaram desde os anos 1960 até meados da década de 80, o primeiroargumento que o autoritarismo usa para justificar as limitações aos direitoscivis e políticos é o da segurança nacional. Os eventos de 11 de setembro,portanto, tiveram o efeito positivo de nos fazer lembrar da importância dogoverno e da boa governança, mas representaram um perigoso passo atrás naafirmação dos direitos civis. Acredito que se trate de um problema transitório,e que a tradição de proteger os direitos civis e a democracia acabará pre-valecendo, mas é evidente que, assim como é importante lutar contra oterrorismo internacional, será necessário lutar pelos direitos civis.

Entre as reformas orientadas para o mercado desde os anos 1980, as demaior sucesso foram capazes não só de liberalizar os mercados mas tambémde aumentar a capacidade do governo. Nos países desenvolvidos, essa foi anorma. Na Inglaterra, por exemplo, as reformas de Thatcher não enfraquece-ram o Estado: ao contrário, fortaleceram-no. Já nos países em desenvolvi-

(5) Desenvolvi esse ponto emBresser-Pereira, Luiz Carlos."Economic reforms and cyclesof state intervention". WorldDevelopment, vol. 21, nº 8,agosto de 1993, pp. 1.337-1.353.

(6) De acordo com pesquisasde opinião pública, nos anos1960 a confiança no governo(medida por perguntas como"Você acredita que o governofará o que está certo?") estavaacima de 60%, caiu para menosde 20% nos anos 1990 e depoisdo 11 de Setembro voltou aosníveis dos anos 1960 (cf. TheEconomist, 08/01/2002, combase em dados da Universida-de de Michigan e do Gallup).

(7) Idem.

98 NOVOS ESTUDOS N.° 65

Page 9: DA DIPLOMACIA DO EQUILÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA …bresserpereira.org.br/papers/2003/592-diplomacia_do_equilibrio... · novas fontes de ameaças. Introduziu-se então a categoria

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA

mento isso nem sempre ocorreu. A Argentina, por exemplo, seguiu ou ten-tou seguir todas as orientações provenientes de Washington e Nova York, emesmo assim acabou em desastre. Ali a privatização foi caótica e ruinosa,mas podemos dizer que se tratou de um problema de implementação, e nãode concepção. No caso da política macroeconômica, no entanto, essa des-culpa não se aplica. Diante de uma moeda obviamente sobrevalorizada, oajuste fiscal, que era extremamente necessário, mostrou-se inviável, porqueos cortes de gastos não foram acompanhados de crescimento do PIB e au-mento das receitas, na medida em que os homens de negócios não mostra-ram confiança em investir e os trabalhadores assalariados em consumir. OFMI exigiu o ajuste fiscal, mas aceitou a sobrevalorização da moeda. Resu-mindo, reformas e ajuste fiscal foram mal planejados e se somaram a políticasmacroeconômicas incompetentes: enfraqueceram o Estado argentino, aoinvés de fortalecê-lo, e levaram o país a uma grave crise econômica e políticano final de 2001.

A crise da Argentina atingiu o ápice logo após o 11 de Setembro echamou a atenção para a necessidade de organizações estatais mais fortes,sólidas do ponto de vista fiscal e administrativamente competentes em temposde globalização. Os Estados-nação continuam sendo a unidade política bási-ca, em que se garantem os interesses coletivos e a cidadania. A globalização ostorna interdependentes, e não mais fracos. Uma globalização organizada ousegura exige um Estado democrático, liberal, social e republicano. Os ideaisrepublicanos, liberais, democráticos e socialistas foram historicamente con-flitantes, mas isso não significa que o sejam intrinsecamente — ao contrário,são valores que podem conviver e se somar. Um Estado liberal forte é umsistema político que protege a liberdade e os direitos de propriedade erespeita todos os sexos, raças e culturas; um Estado democrático forte é osistema de governo que garante um governo representativo e legítimo; Estadosocial-democrata forte é aquele que busca o pleno emprego e a igualdadede oportunidades e garante os direitos sociais; um Estado republicano fortepossui dirigentes com espírito republicano e logra proteger os direitos republi-canos, de modo que defende o meio ambiente e o patrimônio econômico pú-blico contra a corrupção e a busca de rendas monopolistas (rent-seeking)8.

A globalização não vem para desmantelar os Estados-nação e asrespectivas organizações estatais: apenas torna os mercados e o capitalismopresentes em toda parte e exige que tais mercados sejam regulamentados emâmbito internacional. Assim, apenas com o apoio de Estados-nação fortes edemocráticos — e não às custas de seu poder — será possível alcançar umEstado de direito internacional.

O terrorismo floresce em Estados fracos e frustrados

O episódio de 11 de setembro ocorreu num contexto mundial já glo-balizado, mas em que muitos Estados-nação continuam fracos e subdesen-

(8) Sobre o conceito de direitosrepublicanos, ver Bresser-Pe-reira, Luiz Carlos. "Cidadania eres publica: a emergência dosdireitos republicanos". Revistade Filosofia Política (nova sé-rie). Porto Alegre: Departamen-to de Filosofia da UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul,vol. 1, 1997, pp. 99-144.

MARÇO DE 2003 99

Page 10: DA DIPLOMACIA DO EQUILÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA …bresserpereira.org.br/papers/2003/592-diplomacia_do_equilibrio... · novas fontes de ameaças. Introduziu-se então a categoria

DA DIPLOMACIA DO EQUILÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA DA GLOBALIZAÇÃO

volvidos. Os países em que emergem o fundamentalismo e o terrorismo sãoaqueles onde a modernização se frustrou: sua sociedade civil é inexistente;suas elites, vorazes; seus governos representam apenas essas elites. Entre taispaíses há aqueles que nunca experimentaram um verdadeiro desenvol-vimento econômico e uma revolução capitalista e aqueles que tentaram sedesenvolver e modernizar mas fracassaram. Os primeiros, entre os quaismuitos dos países subsaarianos, continuam fora do processo de globalização;seus Estados são fracos e sua população é incapaz de protestar. Nos últimos,muitos deles no Oriente Médio e islâmicos, o fundamentalismo e o terrorismomedram sobretudo em virtude da frustração de seu povo com as tentativasfracassadas de modernização dos últimos cinqüenta anos. O único país daregião que conseguiu se modernizar foi a Turquia. O Irã, que possui umalonga tradição cultural, estava se aproximando da modernização nos anos1960 e 70, mas suas elites eram corruptas e abriu-se espaço para o fundamen-talismo (agora, o Irã vai redescobrindo seu próprio caminho em direção auma sociedade secular). Cada um dos demais países apresenta situaçãodiferente, mas a ameaça do fundamentalismo é maior naqueles onde sobres-sai a frustração com a modernização e a afirmação nacional. Como afirmaHabermas, "apesar de sua linguagem religiosa, o fundamentalismo é umfenômeno exclusivamente moderno e, portanto, não é apenas um problemados outros"9.

A ausência de um povo educado e de uma sociedade civil ativa quecontrole as elites está na base do problema, mas é precisamente assim quesão definidas as sociedades pré-capitalistas. Para realizar a acumulação ori-ginal ou primitiva de capital e ter sucesso na revolução nacional e capitalista,elas necessitam de elites comerciais e políticas ilustradas que apenas poracaso poderiam ter. Os países desenvolvidos julgaram que o Banco Mundiale o FMI, armados de conhecimento superior e capacidade financeira, seriamcapazes de exigir ação das elites locais e controlar seu desempenho, mas elesfracassaram na maior parte dos casos, sobretudo porque não conseguemcompreender as condições econômicas e políticas específicas de cada país.Desde meados dos anos 1980, porém, os países em desenvolvimento vêmadotando duas posições corretas: pressionar os países mais pobres a investirem educação e a adotar regimes políticos democráticos. Com tais políticas,estão fortalecendo a capacidade de governo das elites locais, tornando-asmais responsáveis diante de seu próprio povo.

É bastante claro que os países excluídos do crescimento econômico sãotambém os excluídos da globalização. Como argumenta Clive Crook, a glo-balização, "longe de ser a maior causa de pobreza, é apenas a cura possí-vel"10. Em outras palavras, apenas os países que participam da globalização eadotam as novas tecnologias e instituições por ela exigidas terão condiçõespara o crescimento econômico. No entanto, o problema que ficou evidentedepois do 11 de Setembro é que a população dos países que não conseguemfazer isso está cada vez mais inquieta. Tais países não são capazes de par-ticipar dos mercados globalizados, ou quando participam, fazem-no em con-dições tão desvantajosas que não conseguem obter nenhum crescimento real

(9) Habermas, Jürgen. "Fé e co-nhecimento". Folha de S. Pau-lo, "mais!", 06/01/2002, p. 5.

(10) Crook, Clive. "Globalizati-on and its critics". The Econo-mist, 27/09/2001, p. 2.

100 NOVOS ESTUDOS N° 65

Page 11: DA DIPLOMACIA DO EQUILÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA …bresserpereira.org.br/papers/2003/592-diplomacia_do_equilibrio... · novas fontes de ameaças. Introduziu-se então a categoria

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA

(11) Rodrik, Dani. The new glo-bal economy and developingcountries: making opennesswork Washington DC/Baltimo-re: Overseas DevelopmentCouncil/John Hopkins Univer-sity Press, 1999.

(12) Recentemente, um profes-sor de saúde pública da Univer-sidade da Califórnia, num arti-go cujo título é auto-explicativo— "Por que devemos alimentaras mãos que podem nos mor-der" (Diamond, Jared. "Why wemust feed the hands that canbite us". Washington Post, 13/01/2002) —, enfatizou o inte-resse do povo norte-americanoem ajudar os países pobres. Aglobalização aproximou as pes-soas não apenas econômica eculturalmente, mas também emtermos de saúde.

ou nos padrões de vida. Dany Rodrik mostrou, mediante análise de regres-são, que os países pobres não estão lucrando com o comércio internacio-nal11. Mas não se deve confundir comércio internacional com livre-comércio:o comércio internacional pode privilegiar bens manufaturados sobre os bensprimários, e a produção local nos países pobres pode ser organizada de talmodo que os benefícios do comércio internacional remunerem apenas umapequena elite ou os interesses externos.

Assim, a luta contra o terrorismo e os fundamentalismos envolve maio-res esforços da comunidade internacional para ajudar os países cuja moderni-zação foi frustrada por elites corruptas. Tal ajuda só terá sucesso porém sepermitir que a população e as elites desses países protejam seus interessesnacionais e resolvam seus próprios problemas, em vez de lhes impor po-líticas de modernização inadequadas às suas necessidades. Quanto aos paí-ses pobres subsaarianos, a ameaça que deles provém não reside no terroris-mo, mas nas doenças infecciosas. Em um mundo globalizado, onde os vírusviajam com a mesma rapidez que os homens, os países ricos e intermediáriosnão podem ignorar esse fato: se antes não foram capazes de agir em nome dasolidariedade, agora terão de fazê-lo por interesse próprio12. Há alguns anosos países ricos vêm discutindo as condições para o alívio da dívida dessespaíses, e é hora de acelerar esse processo: se antes os empréstimos foram emgrande parte capturados por elites locais corruptas, a responsabilidade poresse delito não terá sido apenas dos transgressores, mas também dos tec-nocratas internacionais e sua estratégia de crescimento baseada em emprés-timos externos.

Por uma globalização política, com solidariedade e controles justos

A ordem internacional exigida pelos mercados globalizados requer queos Estados Unidos sejam fortes e que haja uma estreita associação econômicae militar entre os países desenvolvidos, como no G-7 e na Otan, mas isso nãoé suficiente. Pode ser útil envolver os países intermediários, por meio, porexemplo, do G-20 ou de um Conselho de Segurança das Nações Unidasampliado, mas ainda assim não é o bastante. Criar estratégias para reduzir apobreza e limitar a corrupção das elites em países que estão começando suamodernização ou suas revoluções capitalistas é tarefa essencial para institui-ções internacionais renovadas, mas trata-se sobretudo de fazer que os paí-ses líderes compreendam as novas características e exigências da emergentePolítica da Globalização.

Podemos comparar o novo desafio para os países do mundo todo noséculo XXI com aquele enfrentado pelos Estados-nação que surgiam a partirda ordem feudal. Para possibilitar o estabelecimento de mercados internos,impunha-se ao rei, associado à burguesia, e posteriormente aos políticos esociedades civis emergentes estabelecer a ordem e a segurança dentro dasfronteiras nacionais. No entanto as sociedades compreenderam, lenta mas

MARÇO DE 2003 101

Page 12: DA DIPLOMACIA DO EQUILÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA …bresserpereira.org.br/papers/2003/592-diplomacia_do_equilibrio... · novas fontes de ameaças. Introduziu-se então a categoria

DA DIPLOMACIA DO EQUILÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA DA GLOBALIZAÇÃO

inevitavelmente, que a ordem não poderia se basear apenas na força, mastambém no Estado de direito e na afirmação gradual dos direitos civis, po-líticos, sociais e finalmente republicanos. Também perceberam que tais obje-tivos implicavam a participação das elites e, mais tarde, do povo nos assuntospolíticos: envolviam argumentação, desenvolvimento de ideologias secula-res e debate público, e exigiam, além de competição, algum grau de coope-ração e solidariedade.

Em suma, a consecução da ordem social implicava a política — nosentido nobre com que Aristóteles e, modernamente, Hannah Arendt conce-beram o termo. Os Estados-nação podem nascer da violência, da guerra e darevolução, mas sua única alternativa é tornar-se políticos, construir umsistema de governo, cultivar algum grau de solidariedade e respeito mútuoentre seus membros. Direitos civis, políticos e sociais foram o resultado deexigências bem-sucedidas vindas de baixo, mas também responderam anecessidades intrínsecas da nova ordem social e econômica que estava seformando. Hannah Arendt observa que "as duas famosas definições dohomem por Aristóteles, de que ele é um ser político e um ser dotado de fala,complementam-se uma à outra", e conclui:

O importante aqui é que a violência em si é incapaz de fala, e nãoapenas que a fala é impotente quando confrontada com a violência.Em razão dessa incapacidade de fala, a teoria política tem pouco adizer sobre o fenômeno da violência [...]. Na medida em que a violênciadesempenha um papel predominante em guerras e revoluções, ambasocorrem, a rigor, fora do âmbito político, apesar de seu enorme papel nahistória registrada13.

A política era central na pólis grega e na república romana, onde a falae os argumentos eram fundamentais. Mas aqueles eram tempos excepcio-nais, num mundo pré-capitalista dominado antes pela violência e a guerra doque pela política. Com o aparecimento dos Estados-nação modernos, apolítica foi ganhando espaço entre seus membros, que ao mesmo tempo setransformavam em cidadãos. Mediante discussões e persuasão, os cidadãosestabeleceram métodos para decidir sobre a ação coletiva, regulamentar aseleições e a representação, estabelecer objetivos comuns, definir direitos eobrigações, fazer acordos e compromissos. Assim, a política tornava-se umaalternativa à força bruta, e a violência perdeu terreno — a não ser queconsideremos o uso do dinheiro em campanhas políticas uma forma deviolência, mas com esse dinheiro os ricos tentavam persuadir os pobres: jánão se tratava de ameaçá-los.

No campo internacional, a primeira manifestação da política foi a di-plomacia: as negociações passaram a preceder as guerras, e em certos casosas evitaram. Contudo, diplomacia e política são coisas diferentes. Na diplo-macia clássica, a principal via para solucionar questões não é a persuasão,

(13) Arendt, Hannah. On revo-lution. 2ª ed. Nova York: TheViking Press, 1963, p. 19.

102 NOVOS ESTUDOS N.° 65

Page 13: DA DIPLOMACIA DO EQUILÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA …bresserpereira.org.br/papers/2003/592-diplomacia_do_equilibrio... · novas fontes de ameaças. Introduziu-se então a categoria

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA

mas a ameaça de violência. Era esse o princípio a que obedecia a ordeminternacional estabelecida pelo tratado de Vestfália — a Diplomacia doEquilíbrio de Poderes. Mas essa ordem já estava em declínio desde o final daII Guerra Mundial, e agora, no mundo globalizado, o desafio posto aos paísesé semelhante àquele que os Estados-nação enfrentaram em seu processo deconsolidação: alcançar a ordem e a segurança, não internas, mas globais.Para atingir tais objetivos, a diplomacia está se transformando em política. Amoderna diplomacia, que é essencialmente uma diplomacia econômica, já éuma forma de política; e vai se tornando cada vez mais importante umadiplomacia estritamente política, com instituições políticas em âmbito inter-nacional. No século XX, o primeiro grande passo foi a criação das NaçõesUnidas. Agora, a ONU e as novas instituições políticas internacionais relacio-nadas, como o Tribunal Penal Internacional, bem como os vários acordosinternacionais, seja para proteção dos direitos humanos ou do meio ambien-te, seja para combate às drogas e ao crime internacional, serão reforçados.

O grande desafio internacional de hoje é transformar a globalização naPolítica da Globalização, é garantir um status político à economia globaliza-da, já que a globalização per se não é uma ordem internacional. À medida queganharem força e representatividade as instituições políticas internacionaisque acabamos de mencionar, além das instituições econômicas como OMC eFMI, a globalização deixará de ser a manifestação de mercados globalizadosselvagens para se tornar a maneira civilizada e política com que os Estados-nação e os indivíduos se relacionarão no campo internacional.

Como ocorrera com os Estados-nação, à medida que as instituiçõesinternacionais se fortalecem a cooperação internacional deixa de ser umslogan e começa a ser construído um certo grau de solidariedade — umasolidariedade que podemos explicar como a manifestação da inclinaçãoaltruística que contrabalança o interesse próprio em cada um de nós ou comoo "interesse próprio bem-compreendido" de Tocqueville. No momento emque a economia globalizada tende a se transformar numa sociedade globali-zada, torna-se necessário um certo grau de solidariedade. Quando há umasociedade globalizada, há inimigos globais a serem combatidos — como ofundamentalismo, o terrorismo, o tráfico de drogas —, e uma sociedadeglobalizada só será capaz de combatê-los se for capaz de desenvolver algumgrau de solidariedade e, portanto, de ação coletiva. O interesse próprio e acompetição continuarão dominando, mas a cooperação e a solidariedadenecessariamente ganharão espaço.

Os países ricos têm agora um interesse próprio bem-compreendido emdemonstrar solidariedade para com os mais pobres. A solidariedade já existeentre os países ricos: eles podem competir economicamente entre si, massabem que fazem parte do mesmo jogo e, assim, constroem redes desolidariedade entre si, suas empresas e seus cidadãos. À medida que os paí-ses em desenvolvimento completem suas revoluções capitalistas, alcancemum nível intermediário de desenvolvimento e se tornem democráticos, serãoadmitidos nesse clube como membros de categoria secundária. O problemaocorre com os países em desenvolvimento em que a modernização foi

MARÇO DE 2003 103

Page 14: DA DIPLOMACIA DO EQUILÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA …bresserpereira.org.br/papers/2003/592-diplomacia_do_equilibrio... · novas fontes de ameaças. Introduziu-se então a categoria

DA DIPLOMACIA DO EQUILÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA DA GLOBALIZAÇÃO

frustrada e com os países muito pobres. São estes os que precisam de maissolidariedade, mas são os que recebem menos. É mais difícil ser solidáriocom aqueles que são diferentes. Nos países ricos, a imigração em massa tor-nou o problema multicultural uma de suas questões políticas centrais. Nonível internacional, os países ricos muitas vezes vêem os países pobres efrustrados como uma ameaça, e quando tentam mostrar sua solidariedade,ela muitas vezes assume a forma de ajuda caritativa aliada a traumáticascondições "civilizadoras".

Não há uma solução fácil para esse problema. As instituições internaci-onais criadas para promover o crescimento, como o Banco Mundial, tiverammais sucesso com os países intermediários do que com os países pobres efrustrados. Nesse sentido, bons resultados dependem muito mais da capaci-dade das autoridades e dos homens de negócios locais em fazer bom uso dosrecursos concedidos sob a forma de ajuda ou financiamento do que dascondicionalidades impostas pelos tecnocratas internacionais. No caso daÁfrica subsaariana, por exemplo, a decisão do Banco Mundial, no início dosanos 1970, de basear a estratégia de desenvolvimento para os países daregião no financiamento internacional acabou se mostrando um grande erro.As elites corruptas locais dilapidaram os recursos de tal forma que trinta anosmais tarde a renda per capita desses países continuava mais ou menos amesma e havia uma grande dívida externa a ser paga.

O aumento do grau solidariedade no mundo globalizado ocorre nãoapenas porque tal comportamento corresponde ao interesse próprio dospaíses ricos. Também é necessário levar em conta os valores morais de seuscidadãos, cuja expressão concreta está nas ONGs e movimentos sociaisinternacionais, e as necessidades dos países pobres. Esses dois fatores estãolevando ao surgimento de uma sociedade civil e de uma cidadania globaliza-das, o que pode ser observado desde a Declaração dos Direitos Humanos dasNações Unidas, com a qual se tornou claro que homens e mulheres têmdireito a ter direitos. A globalização está acelerando esse processo: a possibi-lidade concreta de uma cidadania e uma sociedade civil globalizadas é parteda dinâmica global14.

A globalização é um fenômeno tecnológico e econômico que promovea capacidade das sociedades de aumentar a produtividade e gerar riqueza, namedida em que permite o avanço da divisão internacional do trabalho e arealização da lei das vantagens comparativas de Ricardo. No entanto, osmercados, quando descontrolados ou regulamentados de modo viciado,tanto podem ser cegos e injustos na distribuição da renda e da riqueza comoeficientes na alocação de fatores de produção e na promoção do crescimentoeconômico. A globalização tornou interdependentes todos os países. Antes,enormes e crescentes desigualdades entre as nações eram um desafio moralpara os países desenvolvidos e o principal problema enfrentado pelos paísesem desenvolvimento: agora são um desafio para todos. As desigualdades sãoperigosas, mas o aumento das desigualdades é ainda mais perigoso, tal co-mo nos sugere o "efeito túnel" de Hirschman15. A globalização envolve aabertura de mercados e o aumento dos níveis de produtividade e riqueza,

(14) Sobre o surgimento deuma cidadania globalizada, vera pesquisa de Cristina Vargas(Ciudadanias globales y socie-dades civiles globales — pistaspara el analisis. Fórum SocialMundial, Porto Alegre, 2001) apartir de trabalhos de ManuelCastells, Anthony Giddens, Bo-aventura de Sousa Santos, Da-vid Held e Yuval Davis.

(15) Os motoristas ficam frus-trados quando enfrentam umcongestionamento em um tú-nel, mas os motoristas de umadas faixas ficarão muito maisfrustrados se a outra faixa co-meçar a andar.

104 NOVOS ESTUDOS N.° 65

Page 15: DA DIPLOMACIA DO EQUILÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA …bresserpereira.org.br/papers/2003/592-diplomacia_do_equilibrio... · novas fontes de ameaças. Introduziu-se então a categoria

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA

mas também o aumento das desigualdades, quando os pobres e os fracos nãoconseguem aproveitar as oportunidades que a globalização oferece. Sabe-mos bem que os mercados são eficientes mas cegos.

Assim como acontece nos mercados internos, a globalização exigecontrole, exige o estabelecimento de um sistema jurídico, mas esse sistema sóserá efetivo se for minimamente justo. A liberalização do mercado represen-tou um grande avanço para os países em desenvolvimento, onde as estraté-gias de substituição das importações deixaram de fazer sentido. O mesmonão acontece porém em relação aos países que tiveram sua modernizaçãofrustrada e aos países pobres. Eles estão longe de ter completado suas revo-luções capitalistas e não contam com uma moderna classe de empresáriosnem com uma classe média profissional competente. Sua inserção no proces-so de globalização muitas vezes envolve riscos econômicos. Os grupos ouregiões incapazes de se modernizar estão destinados não apenas a mantersua situação atual, mas também a perder renda e prestígio social.

No processo de reforma, os países ricos estabeleceram as prioridadesde acordo com seus interesses. A abertura dos mercados financeiros e aproteção total dos direitos de propriedade intelectual, por exemplo, ocorre-ram num momento em que muitos países ainda não estavam preparados paratais reformas. Com poucas exceções, as oportunidades oferecidas pelos mer-cados globalizados internacionais agiram contra os países em desenvolvi-mento, e não em seu favor. Nos anos 1970, pela primeira vez esses paísestomaram a iniciativa nos assuntos econômicos internacionais, envolvendo-seem um esforço, embora fracassado, para construir uma nova ordem interna-cional baseada nas preferências comerciais. No entanto, tiveram repentinoacesso a grandes quantias de crédito privado internacional, ficaram altamen-te endividados e desde então suas taxas de crescimento reduziram-se subs-tancialmente, enquanto perdiam a precária dianteira que haviam conseguidono campo internacional. Desde o fim da II Guerra, a maior parte dos paísesem desenvolvimento havia se engajado em uma estratégia de substituiçãodas importações conduzida pelo Estado. Esses países (com a clássica exceçãodos Tigres Asiáticos, que conseguiram alterar na hora certa seu crescimentobaseado na exportação) expandiram-se rápido demais com base na inter-venção do Estado, gerando sérias distorções em suas economias e no seuaparelho estatal. A crise da dívida externa e a crise fiscal do Estado tornaramevidente sua fragilidade econômica.

A iniciativa era agora norte-americana, e os instrumentos, o BancoMundial e o FMI. Desde o Plano Baker, em 1985, o ajuste fiscal e as reformasorientadas para o mercado tornaram-se o novo princípio condutor interno,enquanto em âmbito internacional os Estados Unidos avançaram com aRodada Uruguai e a criação da OMC a partir do Gatt e com seus importantesdispositivos relacionados aos direitos de propriedade e à proteção dos in-vestimentos diretos. Todas essas políticas estavam na direção correta. Emcada país elas respondiam à demanda por reformas extremamente necessá-rias, e internacionalmente apontavam para a criação de mercados globaliza-dos, que em princípio são do interesse de todos. No entanto, é amplamente

MARÇO DE 2003 105

Page 16: DA DIPLOMACIA DO EQUILÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA …bresserpereira.org.br/papers/2003/592-diplomacia_do_equilibrio... · novas fontes de ameaças. Introduziu-se então a categoria

DA DIPLOMACIA DO EQUILÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA DA GLOBALIZAÇÃO

aceito hoje em dia que os acordos da Rodada Uruguai beneficiaram mais ospaíses ricos do que seus colegas pobres, que a liberalização financeiraaconteceu cedo demais e com excessiva amplitude, provocando repetidascrises financeiras e diminuindo as taxas de crescimento econômico, e que osacordos sobre direitos de propriedade também beneficiaram mais os paísesdesenvolvidos do que os países em desenvolvimento.

Esses fatos, aliados à incapacidade da maior parte dos países pobres eem desenvolvimento de aproveitar as oportunidades oferecidas pela globali-zação, levaram ao aumento das diferenças nos índices de crescimento percapita entre os países ricos e pobres. No limite, acabaram apenas emmodernização frustrada. Por outro lado, a aceleração do progresso técnicoaumentou a demanda por mão-de-obra qualificada, reduzindo a demandapela não-qualificada e levando a uma maior concentração de renda dentro decada país. A crítica de que a globalização contemporânea está excluindograndes parcelas do mundo dos benefícios do crescimento provém dessesfatores. O descontentamento com a globalização tem lugar não apenas nosgrupos de esquerda nos países desenvolvidos, mas também em considerá-veis segmentos sociais nos países em desenvolvimento. O Fórum Social dePorto Alegre, que se reuniu pela terceira vez em janeiro de 2003, é uma sériaexpressão de tais preocupações.

Os patrocinadores da globalização estão certos quando observam que apior coisa que pode acontecer a um país é ser incapaz de participar. Os paísesem desenvolvimento, como o Brasil, já estão competindo na arena interna-cional, e o desafio do crescimento depende de sua capacidade de avançarcom a democratização, para que o debate público possa reduzir os erros depolítica que seus governos estariam inclinados a fazer. Um controle justo dosmercados globalizados é importante para eles, mas mais importante é suacapacidade de pensar com independência e tomar as decisões necessárias —não forçosamente aquelas recomendadas pelas organizações internacionais.A situação dos países pobres e dos que tiveram a modernização frustrada, noentanto, é diferente. Um desafio central enfrentado pelos países ricos e pelasinstituições internacionais a fim de atingir a segurança global é desenvolveriniciativas de solidariedade que criem condições para que tais países partici-pem e aproveitem dos mercados globalizados.

A difícil transição para a Política da Globalização

Se a nova ordem global que está surgindo é uma ordem política, cujosprincípios condutores são o argumento e a persuasão e não a guerra e aameaça de guerra, se tende a se basear no Estado de direito e na competiçãomitigada pela solidariedade, como podemos entender que a resposta imedi-ata ao ataque de 11 de setembro tenha sido a guerra?

O fato é que a nação hegemônica entendeu esse ataque literalmentecomo um ato de guerra, comparou-o com o ataque a Pearl Harbor e decidiu

106 NOVOS ESTUDOS N.° 65

Page 17: DA DIPLOMACIA DO EQUILÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA …bresserpereira.org.br/papers/2003/592-diplomacia_do_equilibrio... · novas fontes de ameaças. Introduziu-se então a categoria

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA

responder à guerra com guerra. Diferentemente de outras guerras regionaisem que os Estados Unidos estiveram envolvidos, nesse caso a Guerra Fria nãoestava por trás, e durante alguns dias o problema foi saber quem era o ini-migo. A imprensa e o governo norte-americanos imediatamente o definiramcomo o terrorismo internacional, mas sabiam que esse objeto é um agentedifuso demais para ser singularizado como inimigo. Definir como inimigostodos os países que acolhem o terrorismo também foi uma definição amplademais, e haveria que incluir entre eles alguns amigos tradicionais, como aArábia Saudita. Então o Afeganistão se mostrou perfeito para assumir o papelde inimigo, na medida em que o grupo fundamentalista que ali estava nopoder se confundia com a maior organização terrorista paramilitar no mundo.

O Taliban e a Al-Qaeda foram vencidos, mas estamos longe de poderdizer que os terroristas em geral estão derrotados, porque nenhuma guerrajamais derrotará esse tipo de mal. Quando Estados-nação civilizados deci-dem combater o terror não-civilizado com a guerra, o perigo é que elestambém se tornem não-civilizados. Escrevendo sobre as conseqüências dosacontecimentos de 11 de setembro, Habermas fala de um "choque mortal esem palavras de mundos que, além do terror e da violência muda dos mísseis,precisam desenvolver uma linguagem comum"16. O monstruoso ataque aopovo norte-americano provocou manifestações de solidariedade do mundocivilizado porque todos se sentiram ameaçados. A curto prazo, levou a umaguerra punitiva, mas sua conseqüência principal sobre a nação hegemônicaserá fazê-la reexaminar radicalmente sua política internacional. O governo eas elites norte-americanos ainda não foram capazes de fazer esse reexame,mas acabarão por fazê-lo. O objetivo será aumentar a segurança norte-americana e internacional reduzindo o ódio. Como começa a ser gradual-mente reconhecido, ações retaliatórias generalizadas contra países árabesinamistosos e a manutenção de uma política de guerra fria dividindo omundo artificialmente entre amigos e inimigos só agravarão a atual insegu-rança. Agora os inimigos óbvios são os grupos terroristas. Movidas pelo ódio,suas ações não são racionais — não há sinal da utilização de meios adequa-dos para alcançar objetivos específicos. Em contraste com os governos dosEstados-nação, os líderes terroristas não temem a ampla retaliação: podematé desejá-la, uma vez que isso só engendrará mais ódio.

Por que o ódio se tornou tão intenso e tão fortemente orientado para osEstados Unidos? Tão-somente porque são o país hegemônico do mundo?Embora muitos sejam tentados por essa explicação, tenho certeza de que elaestá errada17. Os Estados Unidos podem não ser o "poder hegemônicobenevolente"18 que gostam de se considerar, mas são o primeiro paísdemocrático na história da humanidade a se tornar hegemônico, e portantosempre existirá algum grau de antiamericanismo em toda parte, mesmo nospaíses mais amigos dos Estados Unidos. Esse sentimento não deve, noentanto, ser confundido com o profundo ódio que gerou os atos terroristas de11 de setembro. Estará o ódio relacionado à religião islâmica? Não creio:muitos outros povos além dos árabes são muçulmanos (chegam a 1,3 bilhão)e somente no Oriente Médio os fundamentalistas guardam tanto ódio. Será

(16) Habermas, op. cit., p. 5.

(17) Paul Kennedy, por exem-plo, defendeu essa explicaçãoem um artigo publicado imedi-atamente depois dos atentados:"The attack shows the vulnera-bility of the American giant". OEstado de S.Paulo, 16/09/2001.

(18) Essa expressão é atribuídaa Larry Summers, ex-secretáriodo Tesouro dos Estados Uni-dos.

MARÇO DE 2003 107

Page 18: DA DIPLOMACIA DO EQUILÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA …bresserpereira.org.br/papers/2003/592-diplomacia_do_equilibrio... · novas fontes de ameaças. Introduziu-se então a categoria

DA DIPLOMACIA DO EQUILÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA DA GLOBALIZAÇÃO

porque a globalização está provocando aumento da desigualdade econômi-ca? Isso pode fazer um pouco mais de sentido, mas há muitos outros povospobres no mundo além dos do Oriente Médio que não demonstram tantoódio. Será porque a política internacional norte-americana foi incapaz dereconhecer que a Guerra Fria acabou e continua a agir de modo parcial emrelação aos países que considera amigos, particularmente Israel? Essa hipóte-se não esgota a questão, mas acredito que aponta o seu elemento básico.

Mais amplamente, a resposta para tal questão está diretamente ligadaao argumento central deste ensaio. Acredito que seja hora de passar daDiplomacia do Equilíbrio de Poderes à Política da Globalização, de umaordem internacional na qual os participantes se dividem entre amigos e ini-migos para uma ordem em que competem entre si ao mesmo tempo que têmalguma voz nas instituições políticas internacionais. O isolacionismo está de-finitivamente morto. Os acontecimentos de 11 de setembro tiveram o efeitode esclarecer para os norte-americanos a razão pela qual eles precisam se en-gajar com o resto do mundo de modo sustentado. Defender uma política iso-lacionista é tão irrealista quanto esperar que o país não intervenha emconflitos regionais. Assim, se os Estados Unidos são o país hegemônico todo-poderoso do mundo, se não mais enfrentam países inimigos, mas terroristasinimigos, sua estratégia de limitar o terrorismo e garantir a segurança na-cional e internacional deveria mudar: em vez de se alinharem com os amigoscontra os inimigos, o que era racional no tempo da Guerra Fria, deveriamadotar a política de agir como um árbitro imparcial em conflitos regionais.

O governo norte-americano compreendeu essa nova realidade quandointerveio na ex-Iugoslávia. Em sua ação conjunta com a Otan, não favoreceubósnios, sérvios ou croatas; agiu em favor da paz. Se muitos ficaram desgos-tosos com a ação norte-americana, no final a maior parte da população daregião acabou manifestando sentimentos simpáticos em relação aos EstadosUnidos. No caso do Estado de Israel, parecia inicialmente que havia umamudança na política norte-americana, de modo que não atenderia a seuinteresse nacional apenas alinhar-se com um lado. Mas à medida que os"falcões" fizeram prevalecer suas posições no governo americano, tornou-sedominante a idéia equivocada de que o combate ao terrorismo palestino fazparte do combate ao terrorismo internacional. Os Estados Unidos precisamgarantir a segurança de Israel, mas agora a paz na região é essencial. Nomomento, o que observamos da parte de Israel e dos grupos terroristaspalestinos é apenas radicalização, mas a lógica da nova ordem internacionalque está surgindo nos diz que os Estados Unidos terão um papel importantepara a paz na região e que acabarão desempenhando seu papel necessário,que é o de adotar uma atitude imparcial em relação às partes. Essa mudançade política eliminará uma importante fonte de ódio.

Os Estados Unidos continuarão a ser o país hegemônico por muitotempo, mas terão de limitar suas políticas unilaterais e jogar de acordo com asregras internacionais que estão ativamente ajudando a construir. Antes de 11de setembro rejeitaram o Protocolo de Quioto, negaram apoio ao TribunalPenal Internacional e se opuseram à ação conjunta contra os paraísos fiscais,

108 NOVOS ESTUDOS N.° 65

Page 19: DA DIPLOMACIA DO EQUILÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA …bresserpereira.org.br/papers/2003/592-diplomacia_do_equilibrio... · novas fontes de ameaças. Introduziu-se então a categoria

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA

mas agora começam lentamente a rever tais políticas. As mudanças levarãotempo, encontrarão oposição e exigirão debate, pois interesses e ideologiascontinuarão a desempenhar seus papéis clássicos. No entanto, uma novacompreensão do impacto de tais questões sobre os interesses nacionaisdeverá levar a novas resoluções. Duas mudanças importantes já são eviden-tes: o apoio do país à ONU é menos ambíguo e acabou a política de ali-nhamento automático com Israel. A Europa, por sua vez, terá de mudartambém. Ela possui uma sociedade interna mais equilibrada, mas os proble-mas multiculturais oriundos da imigração terão de encontrar uma soluçãomais razoável. Também seu protecionismo, particularmente no setor da agri-cultura, terá de ser amenizado. Com relação a esse último aspecto, a mudançajá está em curso, como pudemos ver nos encontros da OMC no Catar em2001.

Conclusão

Embora a competição dos mercados seja central num mundo globaliza-do, deve ser contrabalançada por cooperação e solidariedade. Mas o quetemos visto, em vez de uma solidariedade global, é ódio global. Precisamosde medidas consistentes para neutralizar essa tendência. Um mundo demo-crático exige segurança internacional, e os Estados Unidos podem contarcom as outras nações democráticas para garanti-la. A curto prazo, a questão écomo punir as organizações terroristas, e a médio prazo, como definir umapolítica de arbitragem internacional para os Estados Unidos. Em ambas ascircunstâncias o desafio será a redução do ódio e o estabelecimento derelações civilizadas entre todos. Esse desafio e os esforços para enfrentá-lonão são novos, mas os acontecimentos de 11 de setembro mostraram queprecisam ser trabalhados de modo mais consistente.

Uma nova ordem internacional está surgindo como resposta às novasrealidades, prenunciando que a antiga Diplomacia do Equilíbrio de Poderesserá substituída por uma Política da Globalização, em que as grandes naçõesnão mais se verão como inimigos, mas como competidores. Esse novo jogopode se transformar em um jogo de ganhar-ganhar se as instituições políticasinternacionais amenizarem as ações cegas do mercado, se a competição formitigada pela solidariedade e se os países mais importantes do mundo, pormeio da ONU, desempenharem o papel de árbitros neutros em conflitosregionais.

Nessa nova ordem internacional, os Estados-nação continuarão pode-rosos e mais autônomos do que sugere a ideologia globalista. No entanto, afim de obter segurança nos mercados globalizados, eles terão de cooperar eaceitar que se tornarão mais interdependentes em termos econômicos epolíticos. A transição da ameaça de guerra e da diplomacia para uma políticamundial envolverá passos concretos em direção a uma governança mundial.Mercados seguros e eqüitativos exigem instituições políticas. Mercados e

MARÇO DE 2003 109

Page 20: DA DIPLOMACIA DO EQUILÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA …bresserpereira.org.br/papers/2003/592-diplomacia_do_equilibrio... · novas fontes de ameaças. Introduziu-se então a categoria

DA DIPLOMACIA DO EQUILÍBRIO DE PODERES À POLÍTICA DA GLOBALIZAÇÃO

política são a alternativa à força bruta e à guerra. Os mercados são o reino dacompetição; a política, a área da ação coletiva. Os mercados aparentementesão auto-regulados, mas exigem controle político. Tomadas de decisão po-líticas envolvem argumentar e persuadir, bem como firmar compromissos evotar. Enquanto é esperado que os mercados sejam competitivos, a política éessencialmente cooperativa. Ela admite interesses em conflito, mas é impos-sível sem algum grau de solidariedade. Os acontecimentos de 11 de setembromostraram que ninguém está seguro sozinho, e abriram definitivamente oespaço para a política internacional.

A combinação intrínseca de mercados e política, de interesse próprio ecooperação, de interesse pelo lucro e responsabilidade republicana pelobem comum, pelos direitos do cidadão e pelo respeito multicultural está nocentro das democracias modernas, seculares, liberais, sociais e republicanas.Pela primeira vez na história da humanidade, a política, e não a força, cons-tituirá o fator mais importante nas relações internacionais. O poderio militarcontinuará a desempenhar seu papel, mas este será menor. Competição emercados livres podem propiciar benefícios mútuos, mas é apenas por meioda política que os valores e as instituições internacionais serão criados. Émediante uma moderna diplomacia, agora transformada em política, que ogoverno internacional emergirá algum dia. Provavelmente não verei esse dia,mas os acontecimentos históricos que analisei neste ensaio me fazem crerque meus filhos e filhas, ou pelo menos meus netos e netas, o verão. O go-verno global ainda não é uma realidade, mas deixou de ser uma utopia.

Recebido para publicação em8 de julho de 2002.

Luiz Carlos Bresser-Pereira éprofessor da FGV-SP. Publicounesta revista "Um novo Estadopara a América Latina" (n° 50).

Novos EstudosCEBRAP

N.° 65, março 2003pp. 91-110

110 NOVOS ESTUDOS N.° 65