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Page 1: DA CRONOBIOLOGIA AOS NEUROCOSMÉTICOS: O ADVENTO DO CORPO ... · e transformando o corpo no principal suporte sobre o qual se registra, de formas diferentes, o poder da autoridade

15º Encontro Anual da COMPÓS - Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação. UNESP-Bauru, 6 a 9 de junho de 2006

DA CRONOBIOLOGIA AOS NEUROCOSMÉTICOS: O ADVENTO DO CORPO-MÍDIA NO DISCURSO

PUBLICITÁRIO DA BELEZA1

Luciane Lucas2

Tânia Hoff3

Resumo: Avaliando algumas transformações no binômio saber-poder, este artigo analisa novos sentidos que o discurso publicitário da beleza assume na sociedade contemporânea. Hibridismos progressivos entre alimentos e medicamentos ou entre fármacos e cosméticos de última geração (que prometem intervenções inteligentes no corpo) apontam para uma mudança na produção de sentido do discurso da saúde. Ao mesmo tempo em que presenciamos certa laicização do discurso científico - legitimando a premissa de que o indivíduo é agora responsável por seu nível de saúde e, por que não dizer, por sua aparência -, experimentamos, também, certa cientificização do discurso publicitário. Interessa-nos observar, neste estudo, de que modo a publicidade reforça a constituição de um corpo-mídia, influenciando, com a pretensa cientificidade de seus argumentos, o fio condutor desta narrativa implícita de corpo. Se o cuidado de si é, antes de mais nada, um modo de expressão, uma prática discursiva que lança luz sobre a produção simbólica social, o consumo das novas promessas da indústria da beleza - de crono a neurocosméticos – nos fala de mudanças no processo de constituição do sujeito. O corpo-mídia, também espécie de corpo-lego, se afirma, desta forma, como, vetor invisível dos princípios de uma sociedade de controle. Com base nas representações de corpo presentes em anúncios de cosméticos da última década, este trabalho busca evidenciar, que o corpo presente no discurso publicitário da beleza, não só é sinônimo de performance, como também o espaço próprio de superação simbólica do orgânico. A publicidade, neste caso, se fortalece como prática discursiva que legitima o imaginário social de uma espécie de ‘corpo-lego’ – flexível e adaptável em suas formas e limites.

Palavras-chave: práticas discursivas; publicidade brasileira; cosmética.

As técnicas de si como práticas discursivas:

colhendo evidências nas entrelinhas da narrativa de corpo

A análise das práticas discursivas – que, segundo Foucault, constitui um eixo metodológico –

nos habilita a compreender em que medida as transformações nos modos de expressão

(incluindo a narrativa do corpo) apontam para mudanças nas representações sociais. Por meio 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho “Cultura das Mídias”, do XV Encontro da Compós, na Unesp, Bauru, SP, em junho de 2006. 2 Mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM – [email protected] 3 Mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM – [email protected]

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destas práticas discursivas, ou seja, das formas como o sujeito de conhecimento se expressa e

constitui historicamente seu espaço, podemos entender não só o aparecimento e a

consolidação de formas específicas de subjetividade, como também novas estratégias de

poder e de produção de verdade. Longe de se restringir ao campo próprio do discurso como

fato lingüístico, estes modos de saber, que evidenciam o sentido subterrâneo das práticas

sociais, “ganham corpo em conjuntos técnicos, em instituições, em esquema de

comportamento, em tipos de transmissão e de difusão” (FOUCAULT, 1997, p. 12). Razão

por que a comunicação midiática se revela um importante território de investigação, já que

deixa entrever, na enunciação das tranformações das técnicas de si, aquilo que constitui o

alvo das estratégias de poder na sociedade contemporânea: o processo de subjetivação,

entendido mais detalhadamente como o processo de constituição do sujeito (VAZ, 1999, p.

164).

Portanto, para entender as transformações na constituição do binômio saber-poder da

sociedade de controle, é preciso, antes, a4tentar para as mudanças nas técnicas de si5 que nela

tomam corpo, entendidas estas técnicas como procedimentos “prescritos aos indivíduos para

fixar sua identidade, mantê-la ou transformá-la (...) graças a relações de domínio de si sobre

si ou de conhecimento de si por si” (FOUCAULT, 1997, p. 109). Isso significa que, diante do

hibridismo entre os cuidado com o corpo e o discurso da saúde, a diet´ética se afirma como

um processo identitário (BRUNO, 1994, p. 71) – sintoma de uma intervenção no processo de

constituição do sujeito, ou seja, nos modos pelo qual ele se conhece e se transforma. Neste

sentido, a dietética - na condição de ética que ressalta a qualidade de vida como produto de

um investimento pessoal - elege a mídia como espaço privilegiado de enunciação do cuidado

de si6 e como ponto de partida para o projeto de ‘remodelagem’ em que o sujeito 5 Segundo Foucault, as técnicas de si constituem, junto com o modo de assujeitamento, a substância ética e a teleologia, um dos elementos da ‘relação a si’. Como esclarece Fernanda Bruno, a análise das técnicas de si funciona como “uma modalidade de pesquisa sobre o sujeito”, estabelecendo “uma interrogação sobre a forma pela qual o sujeito foi estabelecido, em diferentes momentos históricos, como um objeto de conhecimento, transformação, elaboração” (1997, p. 16). 6 Inúmeras notícias de jornal e de revista evidenciam esta tendência, mostrando, inclusive, como expressões do campo semântico da medicina aparecem misturadas a termos como juventude, viço, beleza. Vejamos alguns exemplos: (1) “Os defensores do chocolate explicam que o cacau tem substâncias que podem prevenir os estragos provocados pelos radicais livres ao colágeno, elastano e outras proteínas da pele. Desse modo, ao entrar em cremes, ajudaria a manter a pele com aparência jovem e saudável” (Estadão, 17/6/05); (2) “a adoção de dietas adequadas, aliada as mudanças de hábito, pode ajudar a prevenir o câncer. [Pesquisador da USP]

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contemporâneo parece apostar. Ao assistir à emergência deste sujeito “que tem sua

interioridade e suas virtualidades (predisposições genéticas, fatores de risco, etc.) anunciadas

pela mídia”, nos deparamos com “técnicas de si contemporâneas [que] têm como

características o anúncio e a gestão das virtualidades” (BRUNO, 1997, p. 19). Como veremos

a seguir, a partir de um breve relato da narrativa de corpo e do sentido biopolítico de saúde

em diferentes contextos, a cultura midiática se tornou o ponto de confluência entre as práticas

de saúde, estética e consumo. Uma análise da publicidade e da narrativa de corpo que nela se

inscreve já evidencia dois fenômenos – a laicização do saber médico e a cientificização do

discurso publicitário. Nas entrelinhas da narrativa publicitária da indústria cosmética,

argumentos científicos constituem formas de saber-poder legitimadoras das representações

que povoam o imaginário social e que, consequentemente, redimensionam os conceitos de

saúde, doença e corpo são.

Da dietética grega como estética da existência às intervenções cósméticas no corpo:

revisitando os sentidos de corpo ‘são’

A dietética sempre teve seu lugar garantido. Fundamentada pela busca permanente da justa

medida, a dietética grega sugeria um regime – regime que representava, em si mesmo, uma

arte de viver (tekne tou biou), conforme observa Foucault. Como não poderia deixar de ser,

esta técnica de si presumia um exercício constante, um certo adestramento de si por si mesmo

(askesis) que propunha, como resultado, uma condução adequada da existência

(FOUCAULT, 1988; BRUNO, 1994). Diferente dos contornos da sociedade disciplinar, em

que a norma pressupunha consonância de corpos individuais e coletivos em torno de um

projeto político e/ou econômico, ou mesmo da sociedade de controle, em que a norma cede

lugar a uma estratégia de adesão, o ‘regime’ grego resultava da escolha de homens livres,

podendo ser de tal forma amplo no conjunto de suas preocupações que se assemelhava, de apresentou dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) indicando que o aumento global da população e o estilo de vida ocidentalizado podem resultar em um aumento de 50% na incidência de cânceres nas próximas duas décadas (...) Destes, um terço pode ser prevenido principalmente com mudanças de hábitos alimentares (JC, 17 e 18/04/05); (3) “Hoje se consegue recuperar o viço da juventude suprindo os nutrientes que estão em falta no organismo” (Plástica&Você, ano 2, n. 7) As manchetes seguem a mesma linha: “Alimentação a serviço da psiconeuroimunologia” (Estadão, 14/09/05); “Os poderes do azeite extra-virgem na saúde” (Estadão, 15/09/05); “Está engordando? Olho no stress” (www.ondarpc.com.br/viverbem).

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certo modo, a uma agenda do dia7. O cuidado com o corpo está, então, diretamente ligado ao

conceito de saúde, mas o extrapola à medida que se aproxima da proposta de uma estética da

existência.

Conforme caminhamos para a Idade Média, todos os hábitos relativos ao corpo se submetem

a uma rígida disciplina, de modo a se mostrarem compatíveis com o espírito de ascese da

época. Há, portanto, uma vigilância constante do corpo, mas por conta de um elemento que

lhe é ulterior: o espírito. Longe de ser uma opção do indivíduo, o comportamento que

infringe a regra é rigidamente punido, seja pela prática do autoflagelo, seja pela inscrição,

neste corpo, das marcas do poder (FOUCAULT, 1997, p. 27). Não é por outra razão que as

sociedades ocidentais do final da Idade Média são denominadas de sociedades de marcagem,

supliciando, em cerimônias públicas, o corpo infrator. As doenças, por sua vez, são em geral

atribuídas aos desregramentos do corpo, como sintomas - e porque não dizer ‘marcas’ - de

uma punição divina.

Já na Modernidade, não mais reduzidos às intempéries divinas, o corpo e seu nível de

saúde/doença são submetidos a um mecanismo social disciplinar – um modo novo “de gerir

os homens, controlar suas multiplicidades, utilizá-las ao máximo e majorar o efeito útil de seu

trabalho (...)” (FOUCAULT, 1990, p.105). Nos diferentes contextos em que atua, as técnicas

de disciplina identificam e expurgam a diferença incômoda, garantindo a adequação à norma

e transformando o corpo no principal suporte sobre o qual se registra, de formas diferentes, o

poder da autoridade. Este corpo, entretanto, não é sempre o mesmo e a escolha se deve às

estratégias de poder: primeiro temos o corpo coletivo do cidadão, depois o corpo da cidade e,

por fim, o corpo como função de produção. Ora se concentrando na força ativa das

populações, ora fortalecendo-se a partir das preocupações político-sanitárias em torno da

cidade, ou ainda pela necessidade de garantir a produtividade da força de trabalho, a medicina

se fortalece por razões políticas e econômicas. Este período de desenvolvimento do

capitalismo, e que corresponde também ao surgimento de uma medicina social, é profícuo na

produção de documentos que têm a função de vigiar, de manter o corpo na norma. 7 Quando Foucault fala de regime, dentro da dietética grega, ele não está se referindo apenas à escolha dos alimentos (sitia), mas a um conjunto bastante amplo de preocupações que envolvem também os exercícios (ponoi), o sono (hupnoi) e as relações sexuais (aphrodisia), entre outras questões. Ver: FOUCAULT, M. História da Sexualidade. O uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

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De modo geral, três focos de ação caracterizam, de modo diverso, entre os séculos XVIII e

XIX, a ação da medicina sobre o corpo social e do indivíduo: (a) as práticas do cidadão no

cumprimento da lei e no bom andamento do espaço urbano, esperando-se, com isso, manter o

nível de saúde do Estado, ou seja, do corpo-cidadão; (b) as práticas sanitárias e de higiene

para manter a saúde da cidade, constituindo-se mais como uma medicina do espaço (de

controle da circulação de água e ar, por exemplo) e (c) as práticas cotidianas que viabilizam o

corpo que produz. Percebe-se que as primeiras noções de corpo assimiladas pela medicina, na

Modernidade, não se referem ao corpo como força produtiva (portanto individual) mas como

corpo coletivo sobre o qual é preciso atuar para manter a força do Estado ou a ordem do

tecido urbano (FOUCAULT, 1990).

Assim, em um primeiro momento, presenciamos o nascimento, na Alemanha, de uma

medicina do Estado, em que a preocupação com o nível de saúde da população ativa objetiva

garantir o funcionamento do aparelho político8. Esta questão do funcionamento político é tão

séria e prioritária que as práticas discursivas da época em tudo exacerbam esta preocupação:

contabilidade e registro aparecem juntos como parâmetro para análise e intervenção no corpo

social. Acompanha-se de perto o estado de saúde da população economicamente ativa, já que

isso representa, em última análise, a condição de saúde do Estado. Médicos e hospitais devem

apresentar uma espécie de levantamento contábil da morbidade, orientando o Estado a definir

políticas mais sintonizadas com a necessidade de garantir a força ativa de suas populações.

Note-se que o conceito de saúde do corpo, aqui, guarda uma distância considerável do estado

de bem-estar a que o indivíduo pode e deve aspirar (pela via do consumo) na sociedade de

controle.

À medicina do Estado, segue-se a chamada medicina urbana. O enfoque, agora, gira em torno

da cidade9. E, conforme a cidade cresce, cresce junto com ela uma preocupação político- 8 Foucault explica o valor político do corpo no âmbito de uma medicina de Estado, o que nos ajuda a compreender as diferenças entre as possíveis e diferentes bases culturais de disciplina de um corpo - “não é o corpo que trabalha, o corpo do proletário que é assumido por essa administração estatal da saúde, mas o próprio corpo dos indivíduos enquanto constituem globalmente o Estado: é a força, não do trabalho, mas estatal, a força do Estado em seus conflitos, econômicos certamente, mas igualmente políticos, com seus vizinhos. É essa força estatal que a medicina deve aperfeiçoar e desenvolver” (1990, p. 84). 9 Foucault relata que uma arte do corpo humano só se desenvolve efetivamente a partir do século XVIII e nos lembra que, neste século, o que temos não é exatamente uma medicina do corpo, mas sim uma medicina do

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sanitária. É no contexto de uma medicina urbana que o corpo aparece efetivamente como

lugar de vigilância e controle social. A ortopedia social fica evidente diante da decisão

político-sanitária de reavivar a prática medieval da quarentena, em que os indivíduos são

vigiados permanentemente em seus movimentos. Observa-se que o isolamento da diferença –

que vai amparar a idéia de confinamento no século XIX – começa a tomar forma. Toda a

prática de registro tem por função vigiar e normatizar a circulação na cidade:

O poder político da medicina consiste em distribuir os indivíduos uns ao lado dos outros, isolá-los, individualizá-los, vigiá-los um a um, constatar o estado de saúde de cada um, ver se está vivo ou morto e fixar, assim, a sociedade em um espaço esquadrinhado, dividido, inspecionado, percorrido por um olhar permanente e controlado por um registro, tanto quanto possível completo, de todos os fenômenos (...) Não mais a exclusão, mas o internamento; não mais o agrupamento no exterior da cidade, mas, ao contrário, a análise minuciosa da cidade, a análise individualizante, o registro permanente (...) É a revista militar e não a purificação religiosa que serve, fundamentalmente, de modelo logínquo para esta organização político-médica (1990, p. 89).

Chega o século XIX e, com ele, a institucionalização do saber científico. Em termos

históricos, trata-se do momento em que presenciamos, com força, um outro fenômeno: a

ortopedia do corpo pobre (FOUCAULT, 1990, p. 97), do corpo que ameaça não só a

percepção de estabilidade do sistema, como também a manutenção, em níveis ótimos, da

saúde econômica. Entende-se que o corpo proletário precisa ser acompanhado, inclusive em

seus níveis de saúde, para não comprometer os resultados de um capitalismo em pleno vapor.

Tal controle do corpo operário, que se confirma pela preocupação do Estado com o nível de

saúde da classe trabalhadora, na Inglaterra do século XIX, acontece mediante monitoramento

permanente das epidemias/doenças e controle da vacinação.

Com o advento, na contemporaneidade, do chamado ‘capitalismo leve’10 (BAUMAN, 2001),

o poder deixa de ter como principal alvo o corpo do operário - elemento-chave de uma

sociedade industrial - e elege como foco o corpo do consumidor, salientando a expectativa

permanente de uma realização pela via do consumo11. Diferente da disciplina e da vigilância espaço (1979, p. 90). É no âmbito do século XIX que se estabelece mesmo uma polícia médica na Alemanha e um controle sobre o corpo operário, na Inglaterra (1979, p. 83 e p. 97). 10Conforme lembra Bauman, se o capitalismo pesado “era obcecado por volume e tamanho, e, por isso, também por fronteiras, fazendo-as firmes e impenetráveis, hoje, na contramão, o capital viaja leve - apenas com a bagagem de mão, que inclui nada mais que pasta, telefone celular e computador portátil” (2001, p. 69). 11 O consumo passa a ser o campo de produção simbólica onde a luta de classes toma novos contornos.

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que caracterizavam o panóptico e, como tal, o espaço fechado da fábrica, com sua linha de

montagem e sua produção em escala, o modelo de poder, hoje, não precisa de mapa ou

território. Sobrevive na exata proporção em que se espraia por um espaço aberto, onde a

vigilância cede lugar ao desejo de performance e a produção a uma lógica de encaixe de

semi-acabados. Neste contexto, o corpo como força de produção cede lugar ao corpo como

objeto de investimento e consumo.

Com a passagem de uma sociedade disciplinar - marcada pela vigilância - para uma

sociedade de controle, o binômio saber-poder sofre mudanças radicais, especialmente com o

advento das tecnologias da informação. Conforme lembra Deleuze (1992), as sociedades de

controle “funcionam não mais por confinamento, mas por controle contínuo e comunicação

instantânea”, contando com máquinas cibernéticas e computadores para exercer este

“controle incessante em meio aberto”. Neste sentido, o poder já não se configura como a

vigilância do corpo na sua relação de conformidade com a norma, mas, antes, deixa entrever

novos modos de intervenção na constituição do sujeito, incidindo sobre a forma como o

indivíduo se pensa, engendra seus limites e se transforma (VAZ, 1999, p. 164; BRUNO,

1997, p. 16). Com as novas técnicas de si, de cuidado de si, mediadas pelas tecnologias

biomédicas – que não só prenunciam tendências, mas intervém nos modos de relação do

homem com seu corpo –, o indivíduo estabelece uma outra relação com o seu passado e seu

futuro, colocando-se em uma posição proativa sempre que a antecipação de riscos e

tendências lhe sugerir a possibilidade de uma modificação das circunstâncias. Naturalmente

que estas mudanças que o sujeito se impõe - alimentação para reduzir propensão a doenças,

substâncias e próteses para corrigir a estrutura da pele, body modification para inventariar

novas formas de expressão – tudo isto mais funciona como sintoma de uma alteração nos

modos do sujeito interpretar seus limites e responsabilidades do que, propriamente,

intervenção efetiva nas suas condições de finitude.

É inegável, entretanto, que as tecnologias biomédicas, introduzindo novas formas de

conceber os limites humanos, têm ampliado as condições de atuação do indivíduo sobre sua

realidade: ele agora pode re-construir seu corpo, ampliar sua inteligência e memória, atuar

sobre seu ânimo. Os progressos nos campos da imunologia, da engenharia genética e da

neurociência têm proporcionado ao homem reconfigurar seus limites, à medida que

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potencializam seu poder sobre o corpo, a capacidade cognitiva e os estados emocionais. Do

mesmo modo, cirurgias e recursos como próteses e substâncias químicas têm possibilitado a

construção de novas narrativas de corpo, recombinando natureza e cultura em processos

singulares de body modification:

Graças ao avanço [das tecnologias biomédicas] ... daqui a pouco nosso corpo será passível de ser transformado pela ação humana, seja na sua aparência e identidade, seja na sua capacidade de se misturar com os minerais e seres vivos, seja na de resistir às doenças e perseverar (no caso, temos a engenharia genética e a imunologia). Nosso pensamento, no que pensa e no modo como pensa, poderá ser alterado por substâncias químicas e simulado-potencializado por máquinas. Nossas formas de interagir serão, já estão sendo, afetadas pelas novas tecnologias de comunicação” (VAZ, 1996, p. 132). O conceito de body modification traduz a um só tempo, tanto a prática baseada na tecnologia da cirurgia plástica, quanto as técnicas do piercing e da tatuagem, passando pela química dos esteróides (...) Problematiza as fronteiras entre o masculino e o feminino, confunde as identidades étnicas e provoca verdadeiras revoluções nos conceitos de natureza e cultura (GOES, 1999, p. 38)

Dentro deste contexto de reinvenção do corpo como modo de expressão - buscando esgarçar

seus limites, promover novas narrativas simbólicas e ampliar as condições de finitude - a

dietética volta a encontrar seu espaço. Não mais como uma estética de existência, mas como

um processo identitário12 em que os modos de vida (do tipo de alimentação à atenção aos

fatores de risco) são formas de construção e afirmação de identidade. Alimentado

periodicamente com a midiatização do discurso científico - e posterior assimilação destes

argumentos pela propaganda -, o indivíduo assimila os princípios desta dietética, acreditando

que pode retardar o envelhecimento e a morte a partir de um conhecimento prévio de suas

condições de saúde e respectivas propensões. Note-se que é uma característica da sociedade

de controle repassar ao indivíduo a idéia de que é responsável por sua vida e por seu nível de

saúde, cabendo-lhe postergar a finitude do corpo e os efeitos do tempo. Contudo, se o sujeito

pode agora potencializar o seu prazer - amparado por tecnologias que lhe permitem conhecer

e positivar os riscos13 -, ele precisa, mais do que nunca, administrar esta liberdade. 12 Para saber mais sobre a dietética contemporânea, consultar: BRUNO, Fernanda. Diet´ética: a saúde na mídia. In: Revista Eco-Pós, v. 1, n. 5, 1994. 13 Se no século XIX o risco é de fato assimilado, pode-se dizer que uma mudança ainda mais significativa acontece a partir do século XX: o risco é simplesmente positivado. Ou seja, ele é transformado de algo que se devia temer em algo que se deve agora otimizar, usar em proveito próprio. O universo da especulação encontra aqui sua justificativa e se atrela à idéia de poder transformar perigo e risco numa reconfiguração de limites e

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Afirmando-se como campo de produção simbólica no interior do qual as relações sociais se

estabelecem e onde as identidades se afirmam (CANCLINI, 1995), o consumo se apresenta

como o principal vetor desta gestão diária da condição de finitude. Toda a comunicação para

o consumo, especialmente a que está ligada à indústria da beleza adere a esta prerrogativa da

sociedade de controle de que o indivíduo pode (e tem que) melhorar a performance, inclusive

bioquímica, do seu corpo. Se quer retardar os sinais do tempo e as linhas de expressão, a

cosmética promete de substâncias inteligentes que aprendem a reproduzir o funcionamento da

pele jovem (como uma espécie de algoritmo) a ingredientes que retardam em oito vezes a

velocidade da morte das células14. Se quer, por outro lado, modificar o bioritmo e as formas

do corpo, a indústria da beleza promete de avanços na cronobiologia estética - que usa os

ritmos biológicos para interferir no metabolismo celular - a substâncias popularizadas como o

orlistate (xenical) para que o corpo não assimile a gordura dos alimentos. A todo momento,

propagandas, embalagens e matérias jornalísticas sugerem ao indivíduo que ele pode ter o

corpo que quer, o rosto que deseja, a idade que precisa. O que caracteriza o poder na

sociedade de controle não é mais a intervenção sobre o corpo como força de produção, mas é

assimilação do corpo como objeto de investimento e de consumo, alimentando-se da própria

vontade dos indivíduos, já que incide sobre o processo de constituição do sujeito (VAZ,

1999).

Tudo parece possível na cultura de consumo da sociedade contemporânea, que tem como

peça curinga a noção de corpo-lego. Flexível e modificável em suas formas e limites, o

corpo-lego recombina, de maneiras variadas e infinitas, os múltiplos ingredientes que vestem

a identidade. Acrescente-se que o corpo, aqui, ostenta uma narrativa; ou seja, constitui, em si

mesmo, uma prática discursiva que demarca posições nas relações sociais. Portanto, é o

espaço próprio de enunciação das identidades, seja na marcação dos discursos comuns, seja numa perspectiva de maiores ganhos. É neste território que se desenvolvem a especulação, a simulação de possíveis e a análise de riscos. 14 Um exemplo recente do chamado cosmético inteligente é o do produto Seileya Elixir, da Sisley. Segundo a matéria “Tudo em Cima”, publicada na Revista Meeting & Negócios (2005, p. 96), Seileya poderia ser considerado um produto inteligente, já que “suas substâncias enviam mensagens às células e fazem com que a pele aprenda a funcionar com o rendimento de quando era jovem Na mesma matéria, fala-se do Revive Intensité Volumizing Serum, que simplesmente “promete tornar a velocidade da morte das células oito vezes menr do que a normal” (p.96). Observe-se que as mensagens aparecem como matérias e, como tal, ainda que sejam oriundas de material de divulgação da marca (de catálogos a releases), são assimiladas pelo leitor(a) como informação objetiva, o que nos remete à Pêcheux (1990), lembrando que “todo enunciado pode (...) se deslocar discursivamente de seu sentido” (p. 53).

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na delimitação das diferenças. ‘Ler’ o corpo e suas mutações (no sentido foucaultiano de

prática discursiva) é, desta forma, ‘ler’ as transformações que ocorrem, antes e durante, nas

relações sociais. Isso significa que práticas de poder relativas ao processo de constituição do

sujeito - incluindo aí afirmação e construção de identidades - desvelam não só as novas linhas

de força sobre o corpo, mas também, e sobretudo, a dinâmica social pela qual a noção de

corpo se modifica.

Vivemos, assim, o advento do corpo-mídia - espécie de suporte espetacular que serve de

vitrine para inúmeros ‘feixes de objetos’ (BAUDRILLARD, 1995), mas que, ao mesmo

tempo, como construção simbólica que é, se oferece, ele mesmo, como signo e elemento de

consumo. Para adornar este corpo-mídia - oferecendo recursos para a produção simbólica que

ele permanentemente formula -, a cultura midiática emite, permanentemente, mensagens que

fortalecem a perspectiva de performance e de re-construção do corpo. Neste caso, duas

características da cultura midiática, no caso da indústria da beleza, valem um olhar mais

atento: a primeira é a assimilação, em linguagem jornalística (crítica), nas revistas femininas,

do discurso mercadológico das marcas de cosméticos (catálogos e material de lançamento de

produtos, com informações técnicas) e a segunda, sobre a qual falaremos a seguir mais

detidamente, é a progressiva cientificização do discurso publicitário. Neste sentido, a

publicidade se fortalece como prática discursiva que legitima o imaginário social deste

‘corpo-lego’, frente à sobreposição irreversível e progressiva dos conceitos de saúde e

estética.

Controle, trompe l´oeil e cientificização do discurso publicitário: as representações

midiáticas de um corpo-lego

No campo da saúde, a cultura midiática - associada à informação disponível nos veículos de

comunicação e, a partir dela, à gestão e controle dos riscos - tem funcionado como alavanca

de certas prerrogativas da sociedade de controle. Conhecendo antecipadamente as propensões

individuais, bem como as ‘descobertas’ anunciadas pela mídia, o indivíduo médio pode

promover uma revisão de suas condições de vida, incluindo os hábitos alimentares -

fartamente associados, nas manchetes de jornais e revistas, a problemas de saúde que vão de

doenças coronarianas a reumáticas, entre outras tantas possibilidades. “Ginseng brasileiro

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contra o câncer de mama”, diz a manchete da revista Saúde é Vital (jan 2006). “Pesquisa

inédita e novíssima comprova que a gordura abdominal, mais conhecida como pneu, traz

riscos ao coração”, diz uma chamada na revista Dieta Já (nov 2005).

Fato é que os enunciados midiáticos, incluindo aí a propaganda, não mais desatrelam saúde

de alimentação, de modo que a dietética contemporânea se configura como o espaço de

convergência entre estas duas dimensões, com a entrada em cena da variável ‘estética’.

Observe-se, também, que a linguagem midiática, ao entrelaçar saúde e estética, se caracteriza

por mensagens que misturam fartamente termos científicos, do campo semântico da

medicina, com palavras de ordem como ‘juventude’, ´viço’, ‘beleza’ e ‘bem-estar’. Este

fenômeno se torna ainda mais significativo quando extrapola o discurso publicitário e passa a

caracterizar manchetes e matérias de jornais e revistas. Em várias publicações, as matérias

misturam informações sobre benefícios de certos produtos a expressões de jargão científico -

não raro, oriundas de materiais institucionais usados na divulgação da marca (de catálogos a

releases). Este fato, cada vez mais comum, tem influência evidente no ‘modo de constituição’

das práticas discursivas, já que as informações veiculadas nestas ‘matérias’ são assimiladas

pelo leitor(a) como informação objetiva. Como nos lembra Pêcheux “todo enunciado é

intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar

discursivamente de seu sentido para derivar outro” (1990, p. 53). Neste caso, a mensagem

mercadológica, ao voltar sob a pele da informação jornalística, produz novos sentidos, não só

porque, como diz Pêcheux, é da natureza dos enunciados serem transformados no jogo das

interpretações, mas também porque este deslocamento de sentido, pouco visível na

apresentação ‘jornalística’ dos dados e informações, desdobra níveis de legitimação

relacionados à natureza das mensagens jornalísticas. A cientificização ‘rasa’ de muitas

matérias contribui para legitimar, no imaginário social, a idéia de corpo-lego.

Mas os contornos entre nutrição, estética e saúde se confundem não só nas mensagens

publicitárias e jornalísticas, mas no próprio andamento das pesquisas e na construção das

linhas de produtos. Assim, alimentos funcionais são adotados como verdadeiros remédios

para impedir o aparecimento de doenças crônicas, tais como osteoporose, arterioesclerose,

diabetes e hipertensão, atuando também sobre o desafio estético da obesidade. Do mesmo

modo, aumenta o número de cosméticos planejados a partir de alimentos: cremes à base de

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chocolate, caviar, soja. O que, entretanto, tem colocado em evidência o mundo da cosmética

é, justamente, a sua experiência, cada vez mais ousada, em manipular princípios fármacos,

muitos dos quais até então restritos à produção de remédios: o fenol vira matéria-prima para

peelings, o ácido poli-L-lático estimula a produção de colágeno e preenche rugas profundas, a

idebenona (usada no mal de Alzheimer) cuida agora do envelhecimento da pele.

Os meios de comunicação desempenham, aqui, importante papel na assimilação mental

destes espaços compartilhados pelos campos semânticos da medicina, da estética e da

nutrição. A cultura midiática, de um modo geral, vai reforçar a idéia de que a alimentação, o

estilo de vida e os hábitos de consumo condicionam uma vida mais ou menos saudável.

Rapidamente estas questões chegam ao domínio da Estética e, a partir de argumentos

médicos, prometem atuar não só no prolongamento da vida e de suas condições, mas também

na aparência e, como tal, nos níveis de aceitação social e legitimação juntos às diversas

‘tribos’ a que o indivíduo pertence. Das facetas laminadas de porcelana que renovam os

dentes15, aos neurocosméticos, que prometem rejuvenescimento da pele por proteger suas

células nervosas – tudo agora pode ser remodelado, reduzido, ajustado. O corpo se torna, ele

mesmo, um objeto de consumo.

Note-se que, neste contexto, os domínios da estética e da medicina claramente se confundem,

configurando-se o espaço midiático como o cenário deste novo híbrido. Nas editorias,

cadernos e revistas voltados para as questões de saúde e vida, as notícias são uma evidência

disto: tecnologias biomédicas prometem, a partir de estudos farmacológicos, soluções para

antigos problemas estéticos. Assim, a fitoendorfina Happybelle, que se assemelha à

endorfina, “traz para a beleza o conceito de neurocosmética, que procura combater o

envelhecimento agindo no cérebro, aumentando a sensação de prazer” (Revista Marie

Claire)16. Do mesmo modo, “um método de processamento que mantém intactas duas

poderosas proteínas da soja, a BBI e a STI” turbina o mercado dos cremes anti-idade, criando

a expectativa de uma “pele homogênea em 12 semanas” (Isto É, 21/09/05). A cada dia 15 A plástica dental é uma modalidade de tratamento que promete amplos resultados em curto intervalo de tempo, substituindo o uso de aparelhos ortodônticos. A cosmética dental promete o sorriso perfeito: corrige dentes mal posicionados, conserta falhas de proporção, aumentando ou diminuindo dentes e reduz os espaços entre eles. Ver: SORRIA sem medo. Revista Plástica&Você, ano 2, n. 7, p.88-90. A ‘saúde’ dos dentes se mistura com uma preocupação estética. 16 Ver: http://revistamarieclaire.globo.com/Marieclaire/0,6993,EML953087-1742,00.html

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chegam ao mercado uma infinidade de novos cosméticos inteligentes, alguns dos quais

chegam a prometer “melhorar a comunicação entre as células”, potencializando “mecanismos

que dificultam a contração muscular, origem das famosas rugas de expressão” (Isto É,

18/05/05). Cabe lembrar que esta cientificização, tão presente no discurso midiático, também

atravessa a comunicação publicitária, apresentando, para maior impacto, evidências

estatísticas que amparem as promessas levantadas. Assim, o PerfectSlim, da L´Oreal,

promete “85% de eficácia anti-celulite” e enriquecido com Par-Elastyl “dá firmeza à pele a

partir de 8 dias” (Nova Beleza, out./nov. 2002). O gel tensor Sculp Up, também da L´Oreal,

que tem “um complexo fitotensor único que associa polímeros tensores e um derivado de

algo castanha silicilada para (...) reforçar os tecidos de sustentação da pele”, promete efeito

tensor imediato e, em apenas três semanas, “abdômen liso, glúteos remodelados” (Revista

Criativa, jan. 2006).

Pode-se dizer que a publicidade reforça as noções de superação do orgânico em prol do

maquínico quando representa o corpo como algo passível de toda sorte de intervenção. Em

função do desenvolvimento e sofisticação das técnicas de produção de mensagens,

predominam as imagens digitais, editadas e trabalhadas quanto à visualidade. As imagens de

corpo apresentadas na publicidade atual são idealizações: distantes dos corpos “naturais” ou

orgânicos, são representações da perfeição. Para corpos modelares são necessários

cosméticos que atuem para além da epiderme: os sabonetes prometem mais que limpeza e

perfume, são também esfoliantes e hidratam profundamente, como Dove, por exemplo. Os

cremes, por sua vez, têm propriedades que rejuvenescem a estrutura da pele (Age Reverse,

Liposyne gel creme, Sculp Up, dentre outros); como tal, reduzem as gorduras localizadas,

drenam e melhoram a circulação.

Certamente, este ‘corpo in progress’ distoa da noção de ‘corpo são’ que vigora na sociedade

disciplinar de que nos falara Foucault. No início do século, o corpo imperfeito era aquele que

não tinha saúde (daí a ênfase na doença), o que se verifica tanto nos anúncios de

medicamentos quanto nos de cosméticos. Na contemporaneidade, há um deslocamento da

saúde para a beleza, de modo que a imperfeição concentra-se na forma/aparência: o corpo

deve aproximar-se de modelos – divulgados pela publicidade e pela mídia em geral -- para

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ser legitimado como belo e/ou saudável. Embora haja uma diversidade de modelos, dadas as

segmentações de mercado que promovem a legitimação de grupos até a pouco tempo

ignorados como consumidores, o corpo deve estar conformado aos padrões estabelecidos pelo

seu grupo de inserção. O que se observa em especial não é somente a necessidade de

enquadramento, mas também a idéia de superação que se associa ao corpo presente na

publicidade.

A publicidade de cosméticos se enquadra perfeitamente nesta hibridação entre os discursos

da saúde e da estética, já que tem como um de seus principais argumentos a reversão do

tempo. A informação aparentemente científica, respaldada por transitar pelo campo

semântico da medicina, contribui para alimentar a narrativa contemporânea de corpo -

flexível em suas formas e marcado por modos de intervenção e expressão legitimados pelo

discurso midiático.

Assim, nos anúncios de cosméticos, a noção de corpo dialoga com uma idéia constante de

“vir a ser” (Age Reverse, por exemplo, “rejuvenece em dez anos a estrutura da sua pele”).

Dada sua condição mortal, faz sentido conceber o corpo como algo por fazer, ou seja, algo

que pode sofrer intervenções. Talvez prolongar a vida ou aprimorar o corpo seja uma

tentativa de adiar a morte. Não se trata de um “vir a ser” para um fim único que, uma vez

alcançado, implicaria em satisfação e término das intervenções – como no imaginário

religioso cristão que subjuga o corpo para alcançar o paraíso (LE GOFF, 1994). Nas

representações de corpo presentes na publicidade, no entanto, há muitas possibilidades de

“vir a ser”, todas facilmente alcançadas e rapidamente superadas.

A forma como as informações de caráter científico são apresentadas ao consumidor foge aos

padrões de rigor apregoados pela ciência na apresentação das provas: nas peças publicitárias

são apresentadas a promessa do produto e as substâncias responsáveis pelos efeitos

divulgados num discurso pseudo-científico. Afirmar que “o Gel Minceline Plus associa a

ação redutora lipolítica da cafeína e guaraná com o poder firmador do DMAE,

potencializados pelo C.A.V., veículo exclusivo de Anna Pegova...” informa, mas não explica

a atuação das substâncias no corpo. Trata-se de um discurso dogmático, que apresenta as

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informações científicas como se fossem “verdades absolutas” – característica do discurso

religioso.

A credibilidade que este tipo de texto confere à publicidade de medicamentos e cosméticos é

bastante discutível, no entanto, cabe questionar: por que a criação publicitária para tais

categorias de produto utiliza-se de pseudo-argumentos tecno-científicos, se, de fato, ela não

pode e nem deve explicá-los, dadas suas características discursivas? Trata-se de conferir

credibilidade a produtos que se sustentam na credulidade do consumidor quanto aos poderes

da ciência em relação ao corpo?

Considerações finais

Como alvo de permanente investimento da publicidade, o corpo se torna o grande suporte de

expressão da cultura midiática. Constituindo-se como o território próprio em que o poder

incide nos processos de subjetivação - ou seja, nos modos de constituição do sujeito -, o

corpo se estabelece como produção simbólica, espécie de aparato cultural em que as

marcações identitárias deixam vestígios nos seus modos de expressão. O corpo

contemporâneo é, portanto, um corpo-signo. E, neste sentido, é a cultura midiática que

resignifica, de tempos em tempos, os valores que devem estar gravados nos trejeitos e nos

contornos deste corpo. Uma breve análise do discurso publicitário na última década – e,

portanto, no modo como as técnicas de si são atravessadas por estas enunciações midiáticas –

pode nos dar uma idéia mais clara das transformações na percepção do corpo e do sentido de

saúde.

O corpo presente na publicidade brasileira atual, embora traga consigo a promessa de

superação das mazelas e fragilidades da condição humana, enquanto experiência vívida que

acompanha o sujeito durante a existência, mantém-se como espaço/instância de controle: a

pseudo-liberdade de intervir no próprio corpo, reinventando-o a partir de escolhas de caráter

individual, acena para a noção de acesso ao mercado e popularização do consumo. Podemos

dizer que o consumidor encontra-se livre diante das ofertas do mercado e escolherá,

exercendo seu direito de consumidor, em função do que está disponível. Mas não é bem

assim, certamente. Nesse cenário, as mais avançadas técnicas de intervenção no corpo para a

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construção de um ideal estético reafirmam a noção de controle, conforme já nos advertira

Deleuze. Cabe-nos imaginar que táticas desviacionistas se tornam possíveis, quando o que

está em questão não é mais a inferência sobre o sujeito e seu corpo como fator de produção,

mas, antes, o processo em si de constituição da subjetividade – ponto nevrálgico que afeta

não só a natureza das práticas discursivas em geral, mas, de modo ainda mais profundo, a

dinâmica das relações sócio-culturais que a elas confere sentido.

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