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DA BOSSA NOVA ÀTROPICÁLIA:contenção e excesso namúsica popular*

Santuza Cambraia Naves

RBCS Vol. 15 no 43 junho/2000

Em 1968, Augusto de Campos reuniu no livroBalanço da bossa: antologia crítica da modernamúsica popular brasileira uma série de artigosseus e de músicos como Júlio Medaglia e GilbertoMendes, publicados anteriormente em suplemen-tos literários de jornais paulistas, que analisam,entre outras experiências musicais recentes, comoa da tropicália, o estilo desenvolvido pelos bossa-novistas. Estes autores, a propósito de defenderuma postura internacionalista e moderna na músi-ca popular, em contraposição aos ideólogos do�nacional-popular�, ressaltam a atitude inovadorados criadores da bossa nova, particularmente afigura de João Gilberto. Eles são unânimes ematribuir a João Gilberto uma postura que valoriza acontenção, contrária ao emocionalismo excessivoda música popular das décadas de 40 e 50, e emestabelecer uma correspondência entre este proce-dimento e outras manifestações estéticas dos anos

50, como a poesia concreta e a arquitetura de OscarNiemeyer. Assim, segundo eles, ao introduzir umregistro musical intimista semelhante ao do cooljazz, a bossa nova harmonizar-se-ia com o ideáriode racionalidade, despojamento e funcionalismoque teria caracterizado várias manifestações cultu-rais do período. Vale acrescentar que se valoriza,nesta tendência, o procedimento bossa-novista deruptura com tradições anteriores da música popu-lar no Brasil. Assim, tal como os poetas concretos,que teriam rompido com as tradições retórico-discursiva e subjetivista na literatura, os músicos dabossa nova, notadamente João Gilberto, pautariamo seu trabalho pela rejeição dos sambas-canções edos boleros melodramáticos do período anterior, eda maneira operística de interpretar estas canções,ao estilo de Dalva de Oliveira e outros cantores doperíodo.

Este tipo de interpretação, desenvolvida pelospoetas e musicólogos paulistas, tornou-se, de certaforma, canônica, passando a constituir uma referên-cia imprescindível para os estudiosos da músicapopular no Brasil. Mas observa-se que, a despeitoda profundidade e pertinência destas análises, elasacabam absolutizando o período inicial da bossanova, em que, de fato, sob a batuta de João

* Para a realização da pesquisa que deu origem a estetexto contei com a colaboração das pesquisadoras doCentro de Estudos Sociais Aplicados (CESAP), da Uni-versidade Candido Mendes, Juliana de Mello Jabor,Maria Micaela Bissio Neiva Moreira e Thais Medeiros.Fui também auxiliada por Heloísa Tapajós e Kate Lyra.Agradeço a todas.

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Gilberto, parte-se para um tipo de experimentaçãomusical bastante afinada com as propostas da poe-sia concreta. Assim, por exemplo, vemos que asmúsicas inaugurais da nova tendência musical apa-recem como canções-manifesto. �Desafinado�(1958) e �Samba de uma nota só� (1960), compostaspor Tom Jobim, em parceria com Newton Mendon-ça, introduzem um tipo de procedimento em queletra e música, ao mesmo tempo em que se comen-tam mutuamente, fazem alusões às novidades musi-cais. Os elementos de transgressão da bossa novaencontram-se presentes sobretudo em �Desafina-do�: no momento exato em que se pronuncia asílaba tônica da palavra �desafino� ocorre, no planoda música, uma nota inesperada, que representauma transgressão aos padrões harmônicos da músi-ca popular convencional. Outro procedimento quecaracteriza as duas composições, colocando-as emcorrespondência com o tipo de sensibilidade dapoesia concreta, é a maneira cool de se lidar com atemática amorosa. Em �Desafinado�, por exemplo,a pretexto de uma arenga sentimental, discute-se,na verdade, uma questão estética.

Tudo leva a crer, portanto, que a �bossa nova�que interessa aos concretos é a que se singularizapelo intimismo, pela concisão, pela racionalidade epela objetividade, o que converge perfeitamentecom a proposta de João Gilberto. E é justamenteneste ponto que eu gostaria de acrescentar algunsdados à discussão, chamando a atenção para outrosaspectos do que se convencionou chamar de �estilobossa-nova�. Poderia lembrar, num primeiro mo-mento, que nem todos os integrantes da bossa novase sentiam atraídos, como João Gilberto, por umprocedimento de ruptura mais radical com o passa-do da música popular, embora todos reconheces-sem uma liderança na figura deste músico, princi-palmente com relação à famosa �batida� que eleinventa no violão e à sua maneira de cantar à meiavoz, com um timing perfeito e nenhuma ênfaseemotiva. Dito de outro modo, a bossa nova permitediversas leituras, principalmente por parte dos mú-sicos que participaram desta tendência. Se há umaunanimidade entre eles quanto à percepção de JoãoGilberto como um líder, cada um, porém, acenapara procedimentos diferentes com relação às tradi-ções incorporadas. Assim, por exemplo, todos ad-

mitem a influência do jazz mais requintado que sedesenvolve nos Estados Unidos a partir dos anos 40,do be-bop ao cool jazz, sobre os músicos que sepropõem a recriar o samba nativo. Mas alguns, maisdo que outros, reconhecem o impacto do bolero,principalmente o desenvolvido no México, comLucho Gatica. Roberto Menescal, por exemplo, aofalar sobre as novidades estrangeiras que o marca-ram profundamente na fase de sua formação musi-cal, refere-se ao LP Inolvidable, de Lucho Gatica,que recorria apenas a dois instrumentos � violão ebaixo � para o arranjo, rompendo com a tradiçãodo bolero de utilizar grandes orquestrações. Segun-do Menescal, este procedimento foi importantepara que ele e outros músicos de sua geraçãoformassem o hábito de �ouvir o violão�, que assim,dialogando apenas com o baixo, aparece destaca-do, singularizado.1

Carlos Lyra também se refere às músicasmexicanas, como os boleros de Agustin Lara, queseriam referências importantes para ele e os seuscompanheiros de geração. E vê de maneira cari-nhosa o repertório anterior de sambas-canções,que denomina de �boleros brasileiros�, emboradistinga, dentro desta tradição, os mais �sofistica-dos� e os melodramáticos. Assim, segundo ele,Antônio Maria incorreria nos dois procedimentos,criando canções pesadas, como �Ninguém meama�, e composições refinadas como �Ser ou nãoser� e �Um cantinho e você�. Lyra admite que�desperta� para a música ouvindo os sambas-canções interpretados por Dick Farney, e quecomeça a sua carreira musical compondo nestegênero, como é o caso de �Quando chegares� emesmo de �Minha namorada�, �meio samba-canção�, uma espécie de música de transição paraa bossa nova. Esse estilo musical teria então,segundo ele, uma gama variada de influências:além do bolero mexicano, do impressionismo deRavel e Debussy, do jazz desenvolvido por Ger-shwin, Cole Porter, Richard Rogers, Larry Hart evários outros compositores. Às influências estran-geiras somam-se as misturas brasileiras de samba,xaxado, valsa, além de outros ritmos. Enfim, paraLyra, se João Gilberto é mais identificado comocantador de samba, existem outros ritmos dentroda bossa nova, da valsa ao baião.2

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José Miguel Wisnik, em seu livro o Coro doscontrários (1983), identificou dois procedimentosmodernistas fundamentais: de um lado, um rigorconstrutivo, como o de Webern, que recorre aomito do engenheiro, e de outro, o recurso à bricola-gem, tão caro a Stravinski, Villa-Lobos e outroscompositores da época. Analisando O pensamentoselvagem, de Lévi-Strauss (1989), Jacques Derrida(1971) define o �engenheiro� como �um sujeito quefosse a origem absoluta do seu próprio discurso e oconstruísse �com todas as peças��. Em trabalhoanterior (Naves, 1998), argumentei que o mito doengenheiro não teve lugar na experiência moder-nista brasileira porque tanto os músicos quanto ospoetas do movimento tenderam a assumir umapostura antropofágica � semelhante à preconizadapor Oswald de Andrade em manifesto (1972) �,ajustando-se mais ao perfil do bricoleur delineadopor Lévi-Strauss: um tipo de produtor que se definepela maneira incorporativa de realizar suas opera-ções, utilizando sempre os instrumentos já disponí-veis, ao contrário do engenheiro, que subordinacada tarefa específica �à obtenção de matérias-primas e de utensílios concebidos e procurados namedida do seu projeto� (Lévi-Strauss, 1989, p. 33).As imagens fortes trazidas à baila por Lévi-Strauss,como a do caleidoscópio ou da colagem � sucessi-vas configurações de imagens obtidas mediante acombinação de um certo número de textos visuais�, ajudaram-me a pensar na possibilidade moder-nista de se atingir a modernidade sem recorrer àtábula rasa, procurando-se, ao contrário, criar o�tipo novo� através de arranjos que atualizam reper-tórios variados, porém finitos, de nossa tradiçãocultural (Lévi-Strauss, 1989, p. 52). O que mais meinteressava nesta discussão era justamente ressaltaro fato de que os músicos e os poetas modernistas,no Brasil, partilhavam uma mesma visão do país,qual seja, a de um universo inesgotável de informa-ções culturais, tanto arcaicas quanto contemporâ-neas, tanto regionais quanto universais. A estaimagem de pujança seguia-se, naturalmente, a idéiade se tentar incorporar a riqueza cultural ao traba-lho artístico.

Associei o procedimento excludente de JoãoGilberto, ao inaugurar um estilo conciso e racionalque rompia com formas musicais anteriores, ao

registro do engenheiro, retirado de uma mitologiaque pressupõe um marco zero, a partir do qual tudose cria por vontade � e projeto � de um demiurgo.João Gilberto, à maneira de um demiurgo, teriadado forma à bossa nova, mesmo porque este tipode criação musical não resultou propriamente deum projeto, embora tenha sido compartilhada porvários músicos. Em outras palavras, nos váriosrelatos sobre a bossa nova, João Gilberto sempreaparece como o �autor� de um estilo: a �batida� quecria ao violão e a sua maneira única de interpretar.Se tudo indica, por exemplo, que ele captou o gostoemergente pelo jazz camerístico, não há dúvida,por outro lado, de que a nova forma musical dabossa nova em muito se deveu à sua obsessão porum ritmo e uma harmonia inteiramente novos,compatíveis com a sua interpretação dos temposmodernos (Castro, 1991). Assim, João Gilberto in-corporou repertórios tradicionais, recriando, rítmi-ca e harmonicamente, sambas de diversos autorespor meio da fusão com o jazz. Por outro lado, elerompeu com os gêneros associados ao excesso emvárias de suas manifestações na música popular,como o �exibicionismo operístico� (expressão cu-nhada por Augusto de Campos, 1968) e os arranjosque recorriam a orquestrações grandiosas.

Retomo, no entanto, o argumento de que oestilo bossa-nova não se exaure com a estética deJoão Gilberto, mostrando-se, pelo menos do pontode vista de músicos ligados a esta tendência,bastante diversificado. Recorro, a título de exem-plo, à figura de Tom Jobim. Se ninguém temdúvidas quanto à influência de João Gilberto sobreTom, pelo menos no momento inicial da bossanova, não se pode esquecer, no entanto, que estecompositor havia começado a sua carreira musicalnum momento anterior às inovações do final dosanos 50. O próprio Tom declarou em entrevista,em 1968, que a bossa nova foi apenas uma fase nasua carreira; 80% de suas composições � entreelas �canções de câmara, fundo de filmes, músicasinfônica, muito samba-canção, muito choro� �não se enquadram no gênero.3

De fato, Tom inicia a sua formação musical,por volta dos 13 anos, dentro dos parâmetros damúsica erudita. Seu primeiro professor foi HansJoachim Koellreuter, o músico alemão refugiado do

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nazismo que introduziu o dodecafonismo no Brasil.Segundo depoimento de Koellreuter, ele teria pas-sado a Tom noções de harmonia e contrapontoclássicos e �rudimentos de execução pianística�,pois o que interessava ao professor era dar ao alunouma instrução �globalizante� (Koellreuter apud Ca-bral, 1997, p. 45). Mais tarde, Tom estudou pianoclássico com Lúcia Branco, Tomás Gutierrez deTerán (amigo pessoal de Villa-Lobos) e Paulo Silva.Desde cedo, mostrou-se desestimulado com o ensi-no �escolástico� da Escola Nacional de Música, oque o fazia recorrer a professores particulares.Ainda jovem, começou a se interessar por orques-tração, passando a freqüentar o Teatro Municipal ea comprar partituras e gravações de músicos que oentusiasmavam no momento, como Stravinsky,Schoenberg e Prokofiev. Por razões de sobrevivên-cia, trabalhou, no início da década de 50, comopianista nos �inferninhos� de Copacabana, até con-seguir um emprego na Continental, onde, escreven-do partituras para compositores e fazendo arranjospara orquestra, entrou em contato com outrosarranjadores, como Radamés Gnattali, Gaya, LéoPeracchi e Lyrio Panicalli.4

Chama particularmente a atenção, na trajetó-ria artística de Tom Jobim, a sua tendência a darcontinuidade, dentro do campo popular, a umatradição musical �erudita� que, se não foi inaugura-da, pelo menos foi muito marcada pelo modernis-mo nacionalista de Villa-Lobos. Trata-se de umatradição que recorre ao excesso � tanto sinfônicoquanto coral � como forma de representar umBrasil exuberante, pujante em seus elementos físi-cos e culturais (Naves, 1998). Quanto a esta inter-seção entre o erudito e o popular em prol de umaestética grandiosa, alguns músicos aparecem comomediadores entre Villa-Lobos e Tom Jobim, comoé o caso de Tomás Terán e Radamés Gnattali.Terán, pianista espanhol, viajou para o Brasil aos27 anos em função do seu fascínio pela obra deVilla-Lobos, particularmente pela peça A prole dobebê, que ouviu em Buenos Aires executada porArthur Rubinstein. A partir deste primeiro impacto,especializa-se em Villa-Lobos, a quem conheceuem 1924, em Paris. De volta à Europa, executa asobras do compositor brasileiro na capital francesae, convidado por Villa-Lobos para lecionar no

Conservatório de Música e na Sociedade de CulturaArtística do Rio de Janeiro, vem morar no Brasil noinício dos anos 30 (Cabral, 1997).

Na condição de professor de piano de TomJobim, Terán ressalta a importância de RadamésGnattali na sua própria formação musical. Tomvem a ter contato mais estreito com Radamés em1954, por ocasião da gravação da Sinfonia do Riode Janeiro (Tom Jobim-Billy Blanco), da qual estefora arranjador, e no ano seguinte, na Continental,onde Tom se afirmaria como seu discípulo na artede orquestrar composições populares (Cabral,1997). Porém, mais do que uma mera questãotécnica de instrumentação, Tom compartilha como mestre duas atitudes: uma, a de transitar � comomúsico, compositor e arranjador � com desenvol-tura pelos domínios do erudito e do popular; outra,a de se permitir experimentar os mais diversosestilos, operando tanto no registro da simplicidadequanto na estética do excesso. Esta maneira deatuar, característica de Radamés, permitiu que elefizesse uma verdadeira revolução nos arranjos demúsica popular a partir do início dos anos 30. Atéa intervenção do maestro, as execuções de músicapopular limitavam-se ao acompanhamento dos�regionais�, conjuntos musicais pobremente cons-tituídos, tanto em termos numéricos quanto criati-vos. A partir das experimentações instrumentais deRadamés � ao lado de Pixinguinha, na Victor, apartir de 1932 �, com sua formação adquirida nosestudos de instrumentação erudita, como pianistae violista, os arranjos de música popular recebemelementos da orquestra sinfônica e do jazz. Rada-més deu continuidade a este tipo de experimenta-ção instrumental por muitos anos, na Columbia, eposteriormente na Rádio Nacional, nas décadas de40 e 50 (Didier, 1996).

A análise da trajetória musical de Radaméstem grande importância para o trabalho que desen-volvo na medida em que permite identificar, nocompositor, um gesto modernista. Tal como osmodernistas musicais da geração que o precedeu,Radamés preocupa-se em criar, por meio da músi-ca, um �idioma nacional�. Suas composições, taiscomo as de Villa-Lobos e outros compositores,alimentam-se do repertório popular. Os músicosda geração modernista propriamente dita, entre-

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tanto, mostram-se bastante presos ao registro eru-dito e tendem a incorporar preferencialmente aspeças folclóricas, rejeitando, por questões progra-máticas, a música popular produzida pela mídia �o �popularesco�, segundo Mário de Andrade (Ma-riz, 1983). Talvez até pelas dificuldades de sobrevi-ver como músico erudito no Rio de Janeiro, Rada-més aproxima-se cada vez mais da música popular,trabalhando como pianista em cinemas e teatros e,posteriormente, como vimos, como violista e ar-ranjador. Nestes ambientes noturnos, faz amizadecom músicos populares, como Luciano Perrone,Pixinguinha e outros chorões, além dos �pianeiros�da Casa Vieira Machado, na rua do Ouvidor, �dequem transcreve músicas para a partitura e comquem aprende um jeito brasileiro de tocar pianoque, na época, existia somente no Rio de Janeiro�(Didier, 1996, p. 16). Assim, além de se tornar�criador� de música popular, compondo choros eoutros gêneros, Radamés interfere na execuçãodeste tipo de música, alterando-lhe o caráter comarranjos requintados. Carlos Didier lembra que eleatua também num procedimento inverso, que é ode levar para a música erudita os elementos dasrodas de choro, dos pianeiros e das jazz bandsnorte-americanas. E, segundo Didier, é na RádioNacional que Radamés amadurece como orques-trador e compositor, exercitando livremente a suacriatividade com novas experimentações musicais.Trabalhando com músicos da estatura de LéoPeracchi, Romeu Ghipsman e Lyrio Panicalli, ali ele�compõe e arranja para trios, quartetos, quintetos,explora novos timbres� (Didier, 1996, pp. 23-24).

Radamés atua também, principalmente a par-tir dos anos 40, como uma espécie de mediadorentre estilos musicais mais sofisticados e a músicabrasileira, estilizando o samba através do recurso àorquestra de cordas e a um tipo de harmoniaproveniente da música erudita e do jazz. Constaque esta mistura produzida pelo compositor-arran-jador teria sido um parâmetro para os músicos que,no final dos anos 50, partiram para a experiênciabossa-novista (Didier, 1996). Data, por exemplo,de 1954, como vimos, uma maior aproximação deRadamés com Tom Jobim, a propósito da gravaçãoda Sinfonia do Rio de Janeiro, obra composta porTom e Billy Blanco que seria lançada no mesmo

ano pela Continental, com arranjos de Radamés esob a regência de Tom. A peça consiste de váriosmovimentos, cada qual tematizando aspectos danatureza e da cultura do Rio de Janeiro. E osintérpretes foram os mais variados, como DickFarney, Gilberto Milfont, Elisete Cardoso e Emili-nha Borba, entre outros. Concebida à maneira deum musical, a Sinfonia do Rio de Janeiro écomparável, segundo Jaime Negreiros, crítico mu-sical de expressão na época, a Um americano emParis, de Gershwin (Cabral, 1997). Radamés ressal-ta os aspectos da composição que celebram o Riode Janeiro � �a montanha, o sol, o mar�, �o morro�e o �asfalto, o samba e outros aspectos da cidade�� misturando instrumentos sinfônicos com osutilizados na execução de música popular: �cordas,metais, madeiras, bells, acordeom, quarteto e pia-no, baixo, violão elétrico e bateria com escovinha�(Didier, 1996, pp. 27-28).

A partir de 1955, com a ida de Tom Jobim paraa Continental, onde passa a fazer arranjos orques-trais, a semelhança de sua trajetória com a deRadamés torna-se ainda mais marcante. Não é poracaso, portanto, que neste mesmo ano Tom éconvidado por Radamés a participar do programaQuando os maestros se encontram, na Rádio Nacio-nal, onde rege a peça sinfônica Lenda, que compôsem memória de seu pai, Jorge Jobim (Cabral, 1997).

Mas não só de peças sinfônicas vivia ojovem compositor. A primeira composição de Toma ser gravada, em 1953, por Maurici Moura (pelaSinter, em 78 rotações), é o samba-canção �Incer-teza�, que faz em parceria com Newton Mendonça.Sérgio Cabral (1997) comenta que esta música seidentifica muito com o clima dos anos 50, princi-palmente a letra, que narra o sofrimento de umprotagonista de um caso de amor. Além de sambas-canções soturnos, Tom, muito versátil neste mo-mento inicial de sua carreira, parte também paraoutras experiências no gênero, como �Teresa dapraia� (em parceria com Billy Blanco), que compõeem 1954 a pedido de Dick Farney, para cantar emdupla com Lúcio Alves. Nesta canção, letra emúsica se harmonizam para expressar uma situa-ção conflituosa e ao mesmo tempo carinhosa entredois amigos em idílio com a mesma musa da praiado Leblon. Ao invés do clima noir de �Incerteza�,

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em que se vive �uma noite sem Lua�, �Teresa dapraia� é solar, concebida com muito espírito. As-sim, os dois amigos desistem da disputa pela musae resolvem �Teresa na praia deixar/ aos beijos doSol/ e abraços do mar�. A música, um samba-canção concebido à maneira de um sambablue(Cabral, 1997), contribui bastante para a leveza e ohumor da composição.

Tom Jobim demonstra, portanto, desde oinício de sua carreira, que não tem um perfilmusical definido por um único tipo de sensibilida-de. Se exibe, sem dúvida, uma certa vocação paraa produção de composições exuberantes, ao estilosinfônico, também se mostra apto a criar peçasmais intimistas, como é o caso de �Teresa da praia�.Mas tudo indica que a sua tendência ao excesso semanifesta desde cedo, principalmente se conside-ramos os relatos sobre os seus exercícios musicais,no final dos anos 40, com obras de Gershwin,Ravel, Debussy e Villa-Lobos, entre outros, e sobreo seu �fascínio� com a descoberta dos composito-res russos Rachmaninoff, Prokofiev e Stravinsky(Cabral, 1997).

Voltando ao ponto inicial da discussão, TomJobim, de fato, envolve-se com o estilo bossa-novista, chegando a compor, com Newton Men-donça, �Desafinado� e �Samba de uma nota só�,canções lapidares da tendência e profundamenteafinadas com o espírito intimista que João Gilbertopretende conferir à nova experiência musical. Maso encontro entre Tom Jobim e João Gilberto nãoteria sido isento de tensões, como relata Ruy Castroao descrever a produção do LP Canção do amordemais, de 1958, considerado um marco da bossanova. As diferenças entre os artistas envolvidos noprojeto � João Gilberto, Tom Jobim, Vinícius deMoraes, Elisete Cardoso, além dos músicos instru-mentistas � quanto à concepção e realização dodisco se fizeram sentir desde o início. Se JoãoGilberto buscava novas linguagens, os demais inte-grantes do grupo orientavam-se por um estilo maisconvencional (pelo menos na visão de João Gilber-to). João Gilberto não gostava da �gravidade� comque Elisete interpretava as músicas, assim como nãoapreciava a letra de Vinícius para �Serenata doadeus�, que considerava de mau gosto. E, naverdade, o encontro de Tom com Vinícius, por volta

de 1956, quando foi chamado para musicar a peçaOrfeu do Carnaval, já havia marcado decisivamentea sua carreira. Em seguida, Vinícius lhe solicitou asmúsicas para o filme Orfeu negro, dirigido porMarcel Camus, que acabou premiado em váriospaíses e divulgou a obra de Tom no exterior. Foi apartir daí que o compositor se tornou conhecidopelo grande público (Castro, 1997).

Mas o fato é que, passado o período inicial dabossa nova, Tom retoma a sua vocação para oexcesso e volta a recorrer à costumeira visãomodernista do Brasil como o locus por excelênciada vitalidade, um país fértil em elementos naturaise culturais. Aliás, a própria estética bossa-novistapassa a conviver com a recuperação do excessocomo representação de pujança cultural, como odemonstra o seu desenvolvimento nos anos 60. Aprincípio, com a estética do CPC da UNE, em quese busca juntar o ritmo da bossa nova com outrasinformações musicais, notadamente as nordesti-nas, ou mesmo com as configurações musicais nalinha afro, desenvolvidas por músicos como JorgeBen e Baden Powell. E logo em seguida, com ageração que surge em meados dos anos 60, repre-sentada tanto por cancionistas quanto por músicosinstrumentais, como Chico Buarque de Hollanda,Edu Lobo, Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Chico Buarque é um bom exemplo de músicoda geração pós-bossa-nova que não só incorpora a�batida� inaugurada por João Gilberto como adicio-na a este ritmo outros elementos do repertóriomusical brasileiro (Moreira, 1999). Chico admiteexplicitamente que, por volta dos 15 anos, ao ouvirpela primeira vez João Gilberto interpretando �Che-ga de saudade�, converteu-se à bossa nova: �Foi aíque eu peguei em um violão. Comecei a fazermúsica mesmo a partir desse momento�. Mas ocompositor afirma que, a despeito da atitude deruptura que é inerente à bossa nova, ela não o teriaimpossibilitado de buscar novas fontes para suascomposições, principalmente aquelas situadas noperíodo de criação do chamado �samba tradicio-nal�. Segundo Chico, a �ruptura total� durou apenastrês ou quatro anos; depois disso, alguns dos maisimportantes nomes da bossa nova retornam a NoelRosa, Cartola e Nelson Cavaquinho, e passam acompor canções que já não podem se enquadrar na

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estética bossa-novista.5 O próprio Chico, no iníciode sua carreira, reedita Noel através de �Rita�,samba que recria a atmosfera de dor-de-cotovelo ehumor que caracteriza a sensibilidade do composi-tor de Vila Isabel, citado explicitamente na letra.

Se ampliamos, entretanto, o tema discutidopara além do processo de composição, podemosanalisar outros aspectos da bossa nova que influ-enciaram Chico Buarque, como, por exemplo, amaneira intimista de lidar com o palco, ao estilo deJoão Gilberto, recorrendo apenas ao �banquinho eviolão�. Chico admite que este tipo de estética seadequava à sua visão de artista, já que ele nunca seviu como um �artista de palco�, �com fantasias,máscaras, figurinos e movimentação de palco�,mas apenas como um �autor de músicas no palco�.Assim, ao entrar no palco com a roupa que usanormalmente no cotidiano e ao cantar como seestivesse em casa, Chico registra a sua recusa decriar uma persona. Esta atitude, segundo ele, seriauma �reação de oposição absoluta à estética ante-rior, que era a estética do auditório de rádio, dosbrilhos, do Cauby Peixoto, das grandes estrelas�. Abossa nova, ao contrariar este tipo de extroversão,criou um cenário diferente, com �artistas que nãoeram artistas e cantores que não eram cantores�.6

Edu Lobo assume uma atitude semelhante aorecusar não apenas a máscara, como também opalco, o que tem a ver com a sua identidadeartística, construída basicamente a partir do traba-lho de compositor. As outras atividades que desen-volve como instrumentista, orquestrador e intérpre-te seriam �ramificações� do seu trabalho. O palco,para ele, é uma exigência da profissão, ou, dito deoutro modo, tem a ver com as condições docompositor no Brasil, em que se é praticamenteobrigado a fazer show.7 Em termos propriamentemusicais, Edu Lobo talvez seja o melhor exemplode um compositor da geração 60 que dá continuida-de à tradição inaugurada por Radamés na músicapopular. Além de compositor, Edu atua tambémcomo orquestrador, atividade para a qual se prepa-rou durante dois anos nos Estados Unidos. E embo-ra se considere um músico popular, tem umaformação técnica raramente vista neste domínio,responsável, em grande parte, pela sofisticação desuas harmonias e dos seus arranjos. Tal como

Radamés, ele aprecia um tipo de estética modernis-ta mais exuberante, menos contida, como a deRavel, Stravinsky, Bartók, Copland, Prokofiev � e,naturalmente, Villa-Lobos. Chega a questionar aênfase excessiva que se dá ao jazz como elementoformador da bossa nova, pois este estilo musicalsofreria também a influência de compositores maisantigos, principalmente Villa-Lobos. Assim, segun-do Edu, as canções líricas da bossa nova � de TomJobim, Carlinhos Lyra e Baden Powell, entre outros� teriam �a alma do Villa�. Como Chico Buarque,ele admite o impacto da �batida� do violão de JoãoGilberto sobre a sua música, embora veja o seu pró-prio trabalho como uma ramificação da bossa nova,já que, como outros músicos de sua geração, tendemuito mais a misturar peças diferentes do repertóriomusical do que a lidar com um estilo claramentedefinido. É neste sentido que ele reconhece aascendência de Villa-Lobos sobre a sua formaçãomusical, cuja flexibilidade lhe serviria de parâmetropara misturar a informação que tinha de músicanordestina � já que, por questões familiares, passa-va as férias em Recife até os 18 anos, ouvindo detudo, �coisas populares, frevos e o que vinha darua� � com toda a escola harmônica que tinhaaprendido com a bossa nova. E é também a partirdeste tipo de constatação que Edu Lobo, tal comoChico Buarque, ressalta a singularidade da geraçãoa que pertence, formada imediatamente após àeclosão da bossa nova. Ao contrário de músicosmais ortodoxos ligados à nova tendência, quecriavam, segundo Edu, uma fórmula para a bossanova, alguns compositores começaram a abrir maiso estilo, entre eles Sérgio Ricardo, Carlos Lyra eBaden Powell. Esses músicos teriam começado �aperceber que o Brasil não é só o Rio de Janeiro�.8

Sem dúvida, o cenário musical assolado pelachamada �geração pós-bossa� não se esgota com ascontribuições de Chico Buarque e Edu Lobo. Osdois compositores, entretanto, podem ser tomadoscomo figuras emblemáticas desta geração, não sópela sua importância como formadores do gostomusical do período, como também por terem algoem comum; não por acaso, fizeram parcerias emvárias composições. Apesar de Chico se destacarmais como cancionista, mostrando-se um hábilartesão ao trabalhar com música e letra, e Edu se

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especializar mais na composição de música � namaioria das vezes recorrendo a um parceiro letrista�, a sensibilidade de ambos parece convergir parauma certa leitura da tradição. Tanto um quanto ooutro tendem, por exemplo, a valorizar e recuperartextos musicais legados pelo passado ou restritos aespaços geográficos específicos. Mais do que pro-priamente recorrer à citação, eles estruturam o seutrabalho a partir das informações colhidas após umlongo período de escuta e análise. Dito de outromodo, é como se o procedimento de ambos seancorasse na idéia de �recriação�, tão familiar acertas tendências modernistas inclinadas a �filosofarem alemão�. Edward Sapir, por exemplo, ligado aogrupo de antropólogos da Escola de Cultura ePersonalidade norte-americana, lida de uma manei-ra muito particular com a questão da herançacultural. Fortemente fundamentado em Nietzsche,questiona, a propósito de se criar uma identidadenacional �saudável�, a aceitação passiva do legadodo passado. Assim, segundo Sapir, o processocriativo, por um lado, não significa a �manufatura daforma ex nihilo�, isto é, a partir do zero, mesmoporque o indivíduo se tornaria �impotente� se nãolançasse mão da herança cultural. Mas, por outrolado, a forma � legada pela tradição � deve sersubmetida à �vontade� de alguém, pois �o passivoperpetuador de uma tradição cultural dá-nos sim-plesmente uma maneira, a casca de uma vida quepassou� (Sapir, 1949, p. 299). Imbuídos de umespírito semelhante, os dois compositores citados� Chico Buarque e Edu Lobo � valorizam atradição musical brasileira mas operam de modo acriar algo singular a partir do leque de opçõesdisponíveis. Chico, por exemplo, ao retomar osamba urbano dos anos 30, tende a privilegiar ascomposições de Noel Rosa que tematizam a figurado músico-malandro como marginal e transgressor,o que se coaduna com sua postura contestadora,característica da segunda metade dos anos 60.

Após esta passagem rápida por algumas dastendências predominantes na música brasileira nosanos 60, fica claro que todas elas � com exceção dabossa nova � apresentam uma característica co-mum: um procedimento que se pauta pela inclu-são, muito próximo ao do bricoleur analisado porLévi-Strauss. Chico Buarque e Edu Lobo, como

vimos, optam pelo recurso à recriação, comum auma certa tradição modernista que, afinada com oneo-romantismo alemão, mostra-se muita viva nopensamento modernista de Mário de Andrade. NoEnsaio sobre a música brasileira, de 1928 (1962),Mário só vê a possibilidade de uma configuraçãocultural vital através da música � isto é, o desenvol-vimento da �música artística� � a partir do aprovei-tamento do �populário� � ou seja, as músicasfolclórica e popular arraigadas na tradição nacional.Mas a plena realização da �música artística� requer,por outro lado, uma série de elaborações formais, oque significa uma transfiguração, para o registroerudito, das peças musicais fornecidas pela tradi-ção; em outras palavras, trata-se de recriação.

Os músicos tropicalistas, na medida em quetambém operam com a idéia de inclusão, exibemde igual modo uma sensibilidade modernista. Sóque, desta vez, a convergência se dá com Oswaldde Andrade, com a sua predisposição para recolher� ou �devorar� � peças as mais díspares dorepertório cultural, com o propósito de dispô-lasem consonância com uma síntese coerente, porémnão totalizante, à maneira do processo de colagem.Os baianos assumem também, à maneira de Oswald,a atitude antropofágica, devorando elementos ar-caicos, vinculados à tradição, e modernos, associa-dos às inovações técnicas. Do mesmo modo, asimportações culturais são incorporadas sem qual-quer temor de descaracterização de uma supostapureza nacional, já que a cultura brasileira é vistacomo rica e pujante o suficiente para deglutir tudoque possa vir de fora: �Nunca fomos catequizados.Fizemos foi carnaval.� (Andrade, 1972, p. 16).

No movimento tropicalista, a tradição musi-cal é valorizada, embora se faça um recorte dife-rente dos elementos culturais a serem utilizados. Aconcepção tropicalista de �riqueza cultural� abran-ge desde o rock alienígena aos ritmos regionais jáconsagrados, e mostra-se flexível o suficiente paraincluir o kitsch como um item a mais do tesouronacional. Amplia-se, portanto, a concepção de�riqueza cultural�: além da criação mais �sofistica-da�, mesmo que produzida no registro popular, oesteticamente �pobre� também passa a ser precio-so. A sofisticação aparece no processo de elabora-ção das músicas, nos arranjos meticulosos, nas

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performances, nas capas dos LPs � elementos quetraem a influência das tendências progressistas dorock da época. Ao incorporar o impacto dosBeatles à sua estética, os tropicalistas estão atuali-zando o gesto da geração anterior, que dez anosantes utilizou, na elaboração da bossa nova, osprocedimentos do jazz mais avançado de seutempo. E os tropicalistas assumem radicalmente opalco, encarnando publicamente, através de diver-sas máscaras e coreografias, o sincretismo querealizam entre os vários gêneros musicais. Damesma forma em que há uma relação entre a suaestética e a imagem artística, música e letra, desdea concepção, mantêm entre si uma correspondên-cia isomórfica. Os arranjos interferem com o mes-mo peso. Guitarras elétricas, incorporadas do rock,convivem com a sonoridade kitsch dos violinos ecom o berimbau da música regionalista. A guitarraelétrica, retirada do universo do rock e incorpora-da à cena tropicalista, aparece como símbolo demovimento cultural. Este instrumento ajuda a com-por o espetáculo de roupas coloridas, cabelosencaracolados e apresentação cênica movimenta-da e parodística (Ribeiro, 1988).

O rock, porém, é apenas um de toda umavariedade de elementos díspares. Os tropicalistaslançam mão dos mais diversos textos e � o que émais importante � os trabalham através de umexercício de metalinguagem, por meio da paródiaou do pastiche. Mas, mesmo valendo-se de proce-dimentos parodísticos e, portanto, críticos, não setrata de uma crítica corrosiva; a tradição costumaser tratada com carinho: com �amor e humor�,como diria Oswald de Andrade.

É carinhosa, por exemplo � e nada parodís-tica �, a atitude adotada com relação à bossa nova,principalmente ao seu mentor, João Gilberto. Em�Saudosismo�, canção-manifesto de 1969, Caetanoproclama a retomada da linha dissonante inaugura-da por João Gilberto:

Chega de saudade a realidade

é que aprendemos com João

pra sempre a ser desafinados

Mas, ao contrário da bossa nova, que seorienta por um modelo de contenção, a tropicália

recorre ao excesso, retomando inclusive uma tradi-ção que, como vimos, foi renegada pelos músicosbossa-novistas: os arranjos grandiosos de violinose de metais inaugurados por Radamés e Pixingui-nha, o estilo operístico de Francisco Alves, oufanismo de �Aquarela do Brasil� e as dores-de-cotovelo derramadas que datam dos anos 20 eatravessam os anos 40 e 50, no samba-canção(Castro, 1991). Da mesma forma, os tropicalistasressuscitam Vicente Celestino, considerado à épo-ca o modelo do mau gosto, e Chacrinha, associadoao grotesco, que se torna uma figura emblemáticado movimento, saudado inclusive por Gilberto Gilna sua famosa canção de despedida, �Aqueleabraço�, de 1969. Duas tradições antagônicas fo-ram assim incorporadas num mesmo movimento: ado despojamento, vinculada à bossa nova, e a dohistrionismo do repertório popular tradicional. Osbaianos inauguraram, portanto, com a tropicália,uma nova relação com a diferença, assumindouma postura afirmativa e comprometendo-se demodo indiferenciado com todos os aspectos captá-veis do universo brasileiro, como o brega e o cool,o nacional e o estrangeiro, o erudito e o popular,o rural e o urbano, e assim por diante.

A atitude tropicalista, portanto, rompe com oconceito de forma fechada � não existe umafórmula de canção tropicalista, tal como uma fór-mula de canção bossa-nova ou de samba-enredo�, incluindo indiscriminadamente os elementosdestas diversas formas fechadas por vezes numamesma canção. Em particular, o movimento fazquestão de desconstruir a oposição mais fetichiza-da de todas as existentes no período: a que se fazentre o �nacional� e �autêntico�, de um lado, e o�alienígena� e �descaracterizador�, de outro. Daí aspalavras compostas, fundindo um termo da culturapopular brasileira com um outro que representa acultura de massa de origem norte-americana, como�batmacumba� e �bumba-iê-iê-boi�. No plano mu-sical, passo equivalente se dá aproveitando-se ascoincidências rítmicas entre o rock e o baião,ambos em tempo binário fortemente marcado,com andamento rápido e relativamente poucosincopado. Do mesmo modo, a tropicália se esfor-ça por demolir outra oposição marcante: a que sedá entre a linguagem acessível da música popular

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e a metalinguagem erudita da crítica (e da literatu-ra). As canções de Caetano, Gil e seus companhei-ros de movimento trabalham, tanto no plano damúsica quanto no da letra, com elementos �baixos�e �elevados�: a sofisticação harmônica, melódica epoética de �Clara� convive com a singeleza irônicade �Baby�; e em �Alegria, alegria�, uma letra quelança mão de recursos poéticos elaborados é aco-plada a um iê-iê-iê fácil e despretensioso.

Retomo aqui o argumento apenas esboçadona conclusão do meu livro O violão azul: moder-nismo e música popular, de que a atitude exclu-dente do engenheiro dominou o cenário culturalbrasileiro por um período curto e relativamenteatípico. Num momento de afirmação da moderni-dade industrial do país, os ideais de funcionalidadee objetividade impuseram-se não apenas na arqui-tetura, nas artes plásticas e na música erudita � ododecafonismo � como também na poesia e namúsica popular. Findo este momento de crençaotimista nas virtudes da modernização do país,com as tensões e incertezas que marcaram o finaldos anos 60, a estratégia do bricoleur � includen-te, flexível e assumidamente subjetivista e capri-chosa � retoma a posição central que vinhamantendo desde o início do século.

NOTAS

1 Entrevista concedida aos pesquisadores do Centro deEstudos Sociais Aplicados (CESAP) da UniversidadeCandido Mendes em 25/6/1998.

2 Entrevista concedida aos pesquisadores do CESAP/Universidade Candido Mendes em 9/10/1999.

3 Entrevista concedida a José Eduardo Homem de Melloem 17/10/1968. Apud Mello (1976, pp.15-18).

4 Entrevista concedida a José Eduardo Homem de Mello.Apud Mello (1976).

5 Entrevista concedida aos pesquisadores do CESAP/Universidade Candido Mendes em 5/4/1999.

6 Entrevista concedida aos pesquisadores do CESAP/Universidade Candido Mendes em 5/4/1999.

7 Entrevista concedida aos pesquisadores do CESAP/Universidade Candido Mendes em 18/3/1999.

8 Entrevista concedida aos pesquisadores do CESAP/Universidade Candido Mendes em 18/3/1999.

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