da arte luta da capoeira angola ao anarquismo somático

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  • 7/26/2019 Da Arte Luta Da Capoeira Angola Ao Anarquismo Somtico

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    Da arte-luta da capoeira angola ao anarquismo somtico

    Joo da Mata*

    mandinga de escravo em nsia de liberdade

    1

    Fruto da luta dos cativos diante da escravido no Brasil, a capoeira emergiu

    como uma resposta encontrada pelo africano contra o colonizador europeu. Utilizando

    seus corpos como instrumento de luta, a capoeira traz o registro de uma histria forjada

    ao longo de sculos por indivduos que reagiram s prticas intolerveis da escravido e

    da represso policial. Os capoeiras tambm faziam emergir, em disputas de territrios

    nas comunidades negras do sculo XIX, a busca por laos de companheirismos,

    diverso e lazer.

    A trajetria da capoeira est repleta de personagens que se rebelaram diante da

    violncia que lhes roubavam o sentido da existncia, sempre pela covardia e pelo

    autoritarismo. Propomos aqui, valorizar estes instantes insurgentes da capoeira, para

    lidar com as prticas de poder no presente, caracterizadas por mecanismos menos

    explcitos que o escravismo, mas por eficientes formas de controle e domnio.

    Os escravos da atualidade no se apresentam como no passado. Eles j no so

    caados, transportados e negociados em redes de negcios que envolvem corpos

    humanos, como ocorreu por quase quatro sculos no Brasil. Hoje, existem aos montes

    formando filas ou implorando por alguma forma de oportunidade em empregos que

    exploram sua fora e conhecimento. So capturados pela lgica do capital, negociando

    ou competindo para ocupar o lugar daqueles que encontraram alguma oportunidade.

    Enfraquecidos em sua potncia de vida e luta, acabam sendo, desgraadamente, a

    maioria.

    Optamos por eleger a capoeira angola neste estudo, tambm conhecida como

    capoeira-me, por representar uma modalidade da capoeira mais ligada ao seu

    passado. Concebida como um jogo, no qual a luta, a dana, a mmica e outros elementos

    se conjugam, a capoeira angola privilegia a mandinga como estratgia de luta e

    enfrentamento. Outra particularidade de seu estilo, comumente chamada de jogo

    baixo, faz dela algo facilmente reconhecida. A capoeira angola prioritariamente

    jogada no cho, ou seja, seus movimentos utilizam simultaneamente diferentes partes docorpo. Muitos dos golpes de ataque e defesa so realizados com o apoio das pernas e

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    das mos em contato direto e permanente com o cho, favorecendo com isso, uma

    eficiente mobilizao corporal.

    Na relao direta com o outro durante o jogo, os movimentos corporais dos

    capoeiristas buscam criar uma espcie de manto de iluso para poder realizar o ataque.No entanto, isto no feito de modo bvio. Ao contrrio, a brincadeira e a teatralidade

    do espao criao de uma relao de comunicao entre os corpos, a partir da qual o

    aspecto da luta est mesclado com a ginga e a malandragem. A capoeira angola uma

    luta danada, que se estabelece como relao agonstica entre os jogadores. No h

    vencidos nem vencedores, mas um encontro capaz de promover um dilogo entre

    corpos.

    Na capoeira angola, este jogo mandingado representa a capacidade do capoeristaem apanhar de improviso o outro, tornando-se uma importante estratgia ligada noo

    de criao, espontaneidade e astcia no jogo e no o resultado de uma crena religiosa.

    Est atrelada ao ato de comofazer determinados procedimentos durante o jogo, no de

    um feitio. Ao angoleiro, a mandinga a prpria maneira de jogar a capoeira, sempre

    atento, mas podendo aparentar distrao.

    A virtude do corpo no jogo da capoeira angola vem dessa peculiar

    performatividade: sua capacidade de mover-se de maneira inusitada e surpreendente.Este jeito do corpo em instaurar-se no mundo de modo inteligente na elegncia do

    gesto ou na tenso do golpebaliza sua existncia na interface entre a arte e a luta.

    Diferentemente da capoeira regional ou da capoeira contempornea

    nomenclaturas que designam modalidades mais recentes e mescladas com outras lutas,

    a capoeira angola est mais prxima aos princpios ritualsticos do passado, marcada por

    um jogo menos competitivo, com movimentos mais rasteiros e lentos. Ao privilegiar o

    dilogo corporal entre os jogadores em detrimento da competio, a capoeira angola

    distingue-se por uma permanente conversao de perguntas-respostas corporais. Bem

    menos conhecida hoje em dia, a capoeira angola uma prtica de resistncia dentro do

    prprio universo da capoeira.

    revolta

    A histria da capoeira eminentemente descontnua e carente de registros. Osapontamentos sobre os negros escravos e a capoeira ganham destaque especialmente

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    com a chegada da Famlia Real ao Brasil. O perodo joanino foi marcado pela intensa

    vinda de negros ao Rio de Janeiro, numa proporo nunca vista antes. Este fato fez

    aumentar muito os nveis de criminalidade e a priso de muitos capoeiristas, o que por

    sua vez, fez aumentar o nmero de registros de uma polcia recm-criada com principal

    objetivo de perseguir e controlar a populao negra.

    Outra parte significativa do que conhecemos sobre a histria da capoeira

    trazida at nossos dias atravs da memria oral, seja nas msicas ou nos causos

    contados entre capoeiristas. Sua trajetria, suas prticas e seus rituais so transmitidos

    de gerao a gerao, incorporando e abandonando elementos ao longo do tempo, mas

    conservando boa parte das memrias africanas e do registro escravocrata.

    Diante de uma genealogia possvel de sua histria, podemos afirmar que a

    capoeira angola emerge como uma das formas de resistncia ao regime escravista, seja

    como diverso e luta, seja como atitude rebelde nos centros urbanos, especialmente no

    sculo XIX. Para lidar com a violncia de um regime de segregao e domnio, o

    africano tornado escravo resgatou os rituais de sua cultura, que aqui foram

    miscigenados com costumes locais, e valeu-se de uma realidade sociopoltica

    intolervel, para criar uma luta que foi fermento de liberdade.

    Nas diversas formas de resistncia no contexto da escravido, as fugas doscativos, a lutas dos quilombos e a prpria capoeira, representam para ns possibilidades

    encontradas pelos negros para forjar uma certa liberdade, conquistada no enfrentamento

    ao autoritarismo, como resultado de combates mais ou menos calculados e, em certa

    medida, bem-sucedidos.

    Composto sob um rico e complexo conjunto de elementos ritualsticos,

    brincadeiras, picardias e movimentos variados, a capoeira angola constitui-se como um

    jogo no qual seu potencial de luta est diretamente implicado com o ldico e com a

    dana. No passado, esta caracterstica conferiu capoeira uma condio fundamental

    em seu processo de resistncia: a estratgia necessria ao negro escravizado e

    desarmado para enfrentar o feitor e a polcia.

    Todo o movimento de insurgncia produzido pela capoeira diante da escravido

    e aps ela nos mostra a potncia libertria que ela representou no passado. Apesar de

    haver divergncias quanto ao seu surgimento, se num contexto urbano ou rural, parece

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    certo que as condies vividas no Brasil colonial foram decisivas para que esta

    manifestao negra surgisse. No h nenhuma prtica idntica capoeira em qualquer

    outra parte do mundo, o que nos faz crer que seu aparecimento est intimamente ligado

    luta antiescravista.

    A escravido brasileira, considerada a maior entre todas as formas de escravido

    na histria da humanidade, com a transferncia de mais de quatro milhes de pessoas de

    um continente a outro, foi responsvel por muitos aspectos de nossa formao cultural.

    A capoeira foi um importante legado dessa herana africana em solo brasileiro. Os mais

    de trs sculos em que o africano foi tornado escravo deixam marcas cravadas na

    sociedade que at hoje no foram solucionadas. Apesar de o Brasil ter a segunda maior

    populao de negros e mestios do mundo perdendo somente para a Nigria , a

    condio do negro brasileiro traz os registros no corpo e na vida destes sculos de

    escravido. Se a capoeira representou uma das formas de luta no passado, defendemos

    aqui que ela continua sendo um instrumento de luta no presente.

    Durante sculos, a capoeira criou uma cultura prpria, fez histria e

    transformou-se em um dos principais representantes do imaginrio popular brasileiro.

    Esta mistura de expresso artstica, potncia de luta e ao poltica nos faz pensar em

    sua atualizao e sentido no presente, onde no existe mais a cultura escrava como

    regime de produo, mas mecanismos de disciplina e controle disseminados por

    diferentes e difusos espaos sociais.

    Se a capoeira emergiu como reao diante da escravido, compreendemo-la

    como disparadora de enfrentamentos e implicada com processos de libertao. Libertar-

    se, no contexto que estamos falando, no significa eliminar ou situar-se fora do poder,

    no caso de sua histria, da prpria poltica da escravido, mas promover resistncias

    contra as prticas de dominao, tpicas desta mesma poltica. Querer destacar este

    potencial libertrio da capoeira no significa ignorar as contradies de sua trajetria,

    menos ainda de seus praticantes.

    Mesmo com todas as contradies que a histria da capoeira nos mostra, quando

    ela esteve ao lado das foras repressoras, por exemplo, seus atores quase sempre

    estiveram empenhados em atitudes insurgentes em presena dos mandos e desmandos.

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    Muitas vezes associado imagem do marginal, vagabundo e desordeiro, o capoeira

    tornava-se alvo privilegiado da perseguio policial nos incipientes centros urbanos.

    Neste perodo de fortalecimento do Estado brasileiro, as tcnicas de gesto da vida

    comeam a ganhar fora e tm na figura do capoeirista o mal a ser perseguido paralimpar as ruas. Devemos lembrar que a polcia e os tribunais sempre estiveram presentes

    para combater o considerado ilegal, para fazer a gesto dos ilegalismos, e muitas vezes

    o faz de modo ilegal, como na perseguio e caa aos marginais da poca.

    Hoje, dezenas de academias se espalham por diversas cidades do Brasil e do

    mundo, difundindo sua prtica. Nas escolas, nas universidades e diferentes espaos de

    ensino, a capoeira tem sido utilizada como prtica corporal original, auxiliando o

    processo de aprendizagem, socializao, psicomotricidade, etc. Mas e seu sentido

    libertrio? possvel pensar a capoeira como uma prtica que, assim como no passado,

    est ligada a um processo de libertao e de liberdade? Ou sua prtica no presente

    tornou-se tambm capturada como atividade recreativa?

    Pensar o uso da capoeira no presente tambm estarmos atentos a estas

    possveis capturas de sua prtica, inclusive de sua prpria histria e tradio. Assim,

    no buscamos na capoeira uma prtica de ocupao e/ou recreao, mas dereconhecimento corporal, instrumento de luta e afirmao de vida no cotidiano. O que

    destacamos justamente esta potncia cravada em sua histria e sua possvel

    atualizao. Sem deixar de lado seu valor como cultura popular, nos interessa pensar a

    capoeira como uma arte de resistir, sob uma perspectiva libertria.

    corpo e luta

    Parte de nossa investigao se volta ao entendimento da capoeira angola como

    trabalho corporal eminentemente bioenergtico. Os diferentes movimentos presentes em

    sua prtica, tais como a ginga, os golpes de ataque e defesa, o canto e os demais

    elementos ritualsticos envolvidos so tratados aqui como expedientes capazes de atuar

    sobre o comportamento, seguindo as indicaes do ex-psicanalista Wilhelm Reich2

    sobre a relao entre corpo e emoo.

    Reich salientou a importncia do trabalho corporal na anlise dos conflitos

    emocionais, do reconhecimento do prprio corpo e da percepo corporal. A ao

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    motora dos movimentos da capoeira angola age em diferentes msculos, produzindo

    uma eficiente massagem corporal, que atua simultaneamente em todo o corpo, ativando

    inclusive vrios msculos antes inativos.

    Wilhelm Reich foi preciso ao sugerir que a neurose um fenmeno social,criada por mecanismos e objetivos polticos, frutos da ao disciplinadora e do controle

    exercidos sobre os indivduos. A partir desta noo, Reich lana mo de um dos seus

    principais conceitos: a couraa neuromuscular do carter. Segundo ele, nosso corpo

    cria posturas, gestos e atitudes que tendem a materializar nossos traos de

    comportamentos inconscientes. uma espcie de materializao do inconsciente

    freudiano, conceito este levado alm do que a Psicanlise prope, pois localiza nos

    fenmenos sociais e polticos as fontes de seu surgimento da neurose, como tambm,

    sua manuteno. Para Reich, o conflito emocional se instala no corpo, materializando

    um conjunto de atitudes emocionais que correspondem a uma forma padronizada que

    criamos ao longo de nossa existncia.

    Sua psicologia somtica aponta para sete regies do corpo onde normalmente se

    criam tenses musculares, os chamados anis ousegmentos de couraa. Segundo Reich,

    estas regies espalhadas em diferentes pontos do corpo concentram grande quantidade

    de energia vital, produzida por uma tenso crnica na musculatura voluntria. Os

    distintos movimentos da capoeira atuam sobre todas estas regies simultaneamente.

    Eles permitem trabalhar sobre a couraa muscular, auxiliando em seu processo de

    dissoluo da tenso crnica, liberando a energia vital antes bloqueada e seu

    consequente efeito sobre emoes e posturas.

    Alm de servir como exerccio bioenergtico na perspectiva reichiana, a

    capoeira angola tambm traz uma preparao para a luta, um estado de ateno e alerta.

    Isso visto, por exemplo, durante uma roda de capoeira, onde os jogadores esto

    atentos aos limites fsicos da roda, ao som do berimbau, msica que est sendo

    cantada e, sobretudo, ao outro. De oitiva3, o angoleiro observa os movimentos e a

    vadiao do outro capoeira, para ento soltar ou se defender dos golpes, navalhadas e

    mesmo armas de fogo.

    Durante o jogo da capoeira angola, diferentes partes do corpo so ativadas

    causando intensa mobilizao nos anis de couraa. Desde o canto aos movimentostpicos da capoeira angola, tais como ginga, a, rol, etc., que mobilizam a testa

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    franzida ou a cintura presa, todo corpo recebe uma ao neuromuscular graas aos

    movimentos da capoeiragem. Ao mesmo tempo em que mobiliza diferentes regies

    corporais, os movimentos da capoeira angola so executados exigindo do capoeirista

    uma permanente ateno.

    Para a psicologia somtica de Wilhelm Reich, qualquer forma de insurgncia

    passa pelo reconhecimento do corpo. Para ele, a reserva energtica resultante do

    trabalho sobre as couraas fundamental para o processo de luta e enfrentamento

    emocional na vida das pessoas. Dessa forma, mais que apenas uma prtica corporal,

    buscamos destacar a capacidade que a capoeira angola traz em estimular a ao diante

    dos mecanismos de poder na atualidade.

    Os movimentos presentes na capoeira angola agem liberando a energia vital

    cronicamente presa nos msculos, ao mesmo tempo em que nos ajudam a estabelecer

    conexes que passam pelo corpo e sua inscrio no mundo. A variedade de situaes

    corporais que surgem durante o jogo to ampla, que requer um tipo de ateno que

    no passa apenas pela racionalidade, mas por um amplo conjunto de percepes e

    sensaes diante do momento presente.

    A importncia em manter-se conectado a si e ao outro durante a roda da capoeira

    angolacomposta pelo instrumental, pelo canto, pelo crculo e, sobretudo na presena

    do outro jogadorest relacionada este estado de percepo sobre o aqui e o agora.

    praticamente impossvel jog-la sem estar o mais envolvido possvel naquele instante. A

    prpria possibilidade de se receber um golpe faz com que a ateno esteja totalmente

    voltada para o momento, criando um encontro nico.

    Ali, durante o jogo, no equilbrio, na tenso e na espreita no outro, o corpo vai

    sendo trabalhado junto com nossa ao e conexo no mundo. Afastado de qualquer

    transcendncia, o capoeira situa-se no terreno da imanncia e faz emergir sua tica

    forjada no encontro a si e ao outro. Rebelde, resistente e libertrio, o capoeira vai

    transformando-se nos golpes de ataque e defesa da angola.

    anarquismo somtico

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    Ao defendermos a prtica da capoeira angola, buscamos a criao de estratgias

    que favoream nossas prticas libertrias, para incrementar o exerccio de vidas livres.

    Neste sentido, vale nos interrogar sobre qual noo de liberdade que estamos

    defendendo. Partindo de uma anlise presentes nos anarquismos, investigamos na ideiada liberdade como um movimento contnuo, sem um ponto a ser atingindo.

    Nesta perspectiva, acreditamos na atualidade do pensamento de Joseph

    Proudhon (1809-1865), aquele que primeiro passou a autodenominar-se de anarquista.

    Em sua anlise serial, Proudhon defende um mtodo dialtico emprico, no qual a

    liberdade pensada a partir de uma srie em direo a mais liberdade ou em direo a

    mais autoridade. A partir da anlise serial proudhoniana, as prticas libertrias so

    tomadas aqui como acontecimentos que criam possibilidades concretas em promover a

    srie de mais liberdade, em oposio s prticas heterogestoras, que se direcionam

    srie de mais autoridade. Como a srie no tem fim, esta uma construo que no se

    esgota. A prpria noo de liberdade vista assim como algo que tambm jamais se

    exaure e nunca ser alcanada por completo. A liberdade absoluta uma abstrao,

    como tambm o fim completo da autoridade.

    A construo de vidas livres ocorre em experimentaes e encontros entre

    nicos que buscam interaes que combatam as prticas de dominao. Os anarquistas

    buscam na vida associativasem obedecer a manuais ou cartilhas, e sem antagonismos

    entre coletivo e indivduoinstantes que fujam da iluso de um paraso desprovido de

    conflitos. As prticas de vidas livres esto assim, implicadas na permanente relao

    junto ao outro, no incessante combate que faz coexistirem diferenas entre pessoas que

    exercitam subjetividades libertrias.

    Empenhado em tomar o presente como aliado, o exerccio da vida livre se

    afirma, em maior ou menor grau, nas associaes pautadas na crtica autoridade

    centralizada do poder pastoral ao poder de Estado, e todas as demais redes de poderes,

    deveres e assujeitamentos tpicas das relaes de dominao. O jogo de capoeira angola

    nos parece ser uma boa metfora da prtica libertria: na permanente aposta de conexo

    junto ao outro e na comunicao entre corpos que atentos aos limites da roda,

    msica e ao toque do berimbauo capoeira cria a afirmao de si.

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    Propor o capoeira como nico4 radicalizar sua inscrio no mundo na

    elaborao de caminhos singulares e rebeldes. Seja nas rotas solitrias, na presena de

    outros capoeiras ou at na relao como Mestres, mesmo quando estes queiram tomar o

    lugar do pastor, o capoeira estar atento em inventar suas prprias cartografias. Rompero pacto com as relaes de dominao antes de tudo sair do lugar da servido e do

    autoritarismo.

    Problema presente nas trajetrias dos anarquismos, a tica como modo de vida

    sempre foi uma preocupao cotidiana dos libertrios. Fazer agora, mudar agora,

    inventar agora. No interessa ao anarquista a revoluo como caminho de salvao ou

    construo de uma sociedade pacificada. No se trata tambm de aperfeioar o Estado,

    em busca de um melhor Estado. Pelo contrrio: a anarquia se constitui como

    experimentao de vida que vai alm da lei e do Estado. Significa ainda conceber a

    liberdade como elaborao de si, que acontece a todo o momento, em acontecimentos

    que envolvem sempre um outrona relao.

    Distante das estratgias corriqueiras realizadas pela poltica tradicional, a

    antipoltica libertria no luta pela conquista do poder de Estado. Tambm no est

    interessada no sistema representativo com seus partidos e polticos profissionais. Os

    anarquismos esto voltados em criar prticas que invistam na intensificao da vida

    cotidiana, atravs da auto-organizao, da valorizao radical do singular e nas prticas

    livres de viver. Todas estas estratgias, que no so atingidas pelas vias parlamentares,

    ancoram-se nas formulaes entre as prticas de poder e as prticas de liberdade,

    sempre de forma imanente e em fluxo contnuo.

    Neste sentido, vale mencionar Michel Foucault (2003) quando afirma que a

    utopia como algo promissor no mobiliza nossas vidas no presente porque est distante

    de ns. Qualquer processo de resistncia e luta no deve ser deslocado para um futuro

    esperanoso, um lugar a ser atingido e fora dos espaos reais da sociedade. Ao

    contrrio, Foucault prope a resistncia como um problema cotidiano e constante.

    Lana mo do conceito de heterotopia, como algo que se constri em distintos espaos

    e apenas tem sentido no presente, no no amanh incerto e distante.

    Esta heterotopia foucaultiana, dentro da sociedade de controle, justamente a

    possibilidade de fugir das capturas das individualidades, criando para isso espaos earranjos novos de sociabilidades libertrias, sempre de maneira guerreira, em um

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    permanente embate. Ou seja, ou ns construmos nossos espaos e pactos de liberdade

    no aqui e agora ou no haver sentido na questo luta/resistncia. Este empreendimento,

    num primeiro momento pessoal e solitrio, articula-se ao outro, para ento estabelecer

    uma espcie de aritmtica de liberdades. Assim, pensamos a noo de resistncia, apartir da criao e produo de singulares formas de viver. Para alm de uma fora

    reativa, a resistncia a afirmao e inveno na construo de sociabilidades livres.

    Acreditamos que investir em prticas como a capoeira angola significa criar

    condies de enfrentamento: momentos de insurgncias, de criao e inveno de si.

    Acontecimentos que inscrevam no corpo a marca de uma vida afirmativa: no gesto e no

    movimento, assim como na atitude e postura diante das malhas de poder. Investigar a

    capoeira angola como instrumento libertrio investir nesta construo do devir

    revolucionrio, onde seu praticante descubra no reconhecimento de seu corpo, sua

    potncia e seu enfrentamento na vida cotidiana.

    na afirmao desta postura poltica libertria que inscrevemos a capoeira

    angola como campo possvel de resistncia, para pensar a lgica capitalista no presente,

    que transforma a existncia em capital. A alienao do corpo tambm a alienao da

    vida, vestida como fantoche do capitalismo moderno. As reflexes que apresentamos

    aqui buscam, portanto, propor a capoeira angola como uma linha de fuga libertria, um

    movimento de resistncia: prticas da liberdade, enfrentamento e luta corporal no

    cotidiano.

    Sua prtica tem nos mostrado um espao de legitimao da singularidade: os

    movimentos de ataque e defesa, a ginga e o canto so a expresso singular do nico. No

    jogo da capoeira, literalmente cada um cada um. No se joga igual ao outro, assim

    como as estratgias de luta, tanto na roda da capoeira como na vida, tambm so

    prprias e nicas. O que se passa simbolizado durante o jogo, nos fornece um retrato de

    nossas existncias e, como dizem os velhos mestres: a roda da capoeira a roda da

    vida.

    Problematizar o corpo na psicologia, refletir sobre as prticas de poder e formas

    de resistncia no presente e a experimentao da capoeira angola como instrumento de

    luta so alguns dos temas presentes no trabalho que desenvolvemos h mais de vinte

    anos na Somaterapia. A Soma, como tambm conhecida, uma tcnica psicolgica epedaggica com um posicionamento poltico libertrio, que utiliza em sua metodologia

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    os princpios de produo coletiva inspirados na autogesto como ferramenta para

    desenvolvimento de seu processo.

    Criada no Brasil pelo instaurador Roberto Freire, a Soma funciona em grupo,

    com tempo determinado e realiza-se em sesses compostas por exerccios corporais e

    dinmicas de grupo autogestionadas. Neste conjunto metodolgico inclusive com a

    prtica da capoeiraos membros dos grupos de Soma so estimulados a produzir suas

    prprias prticas de liberdade dentro destes laboratrios sociais, desenvolvendo um

    olhar e uma compreenso maior a partir do corpo, sobre as atitudes e comportamentos

    polticos no cotidiano. Os objetivos da Soma esto ligados a questes como se pensar

    uma subjetividade libertria; que tica possvel para pensar a liberdade; como

    estabelecer as bases de uma sociabilidade apoiada na defesa das diferenas individuais;

    e como situar o corpo no centro da intersubjetividade.

    Nesta perspectiva, a Somaterapia encontra na prtica da capoeira angola um

    poderoso exerccio corporal que amplia o sentido bioenergtico e poltico de seu

    processo. Para a Soma, a energia vital disponibilizada pela mobilizao das couraas

    musculares atravs do jogo da capoeira angola ser fator imprescindvel a elaborao de

    vidas afirmativas dentro nos coletivos teraputicos.

    Na elaborao de sua terapia anarquista, Roberto Freire vivenciou intenso

    contato com a juventude brasileira, que se aproximava dos grupos de Soma, cursos e

    palestras. Toda esta experincia e vivncia foram determinantes para a confeco de

    uma peculiar forma de ao libertria, que recebeu a denominao de anarquismo

    somtico, fortemente impregnado da noo do teso5 como modo libertrio de

    existncia.

    Este termo ganhou contorno, sobretudo, a partir do encontro entre Roberto Freire

    e o anarquista Jaime Cubero6(1926-1998), ainda na dcada de 1970. Cubero observara

    na obra de Freire um jeito diferente de exercer o anarquismo no Brasil, com

    caractersticas marcantes de um ativismo mais despojado, ldico e prazeroso. Sempre

    atento s diferentes formas de anarquismos, Cubero percebeu que ali nascia algo novo e

    singular na ao libertria.

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    As caractersticas deste anarquismo somtico esto diretamente relacionadas

    com o cruzamento da obra de Wilhelm Reich e o pensamento libertrio. O corpo

    enquanto unidade indivisvel; o olhar poltico sobre o cotidiano, no que chamamos de

    uma poltica do cotidiano; a afetividade como combustvel de sociabilidades libertrias;e a valorizao do prazer como tica e indicador de nossa singularidade so algumas das

    especificidades que encontramos nesta unio de elementos que compem o pensamento

    de Freire.

    Fortemente presente na metodologia da Soma, as peculiaridades do anarquismo

    somtico atuam no sentido de promover novas formulaes sociais, menos

    hierarquizadas e mais livres. Atravs de uma dinmica de grupo autogestionria, as

    reflexes anarquistas incidem diretamente no processo teraputico, auxiliando cada um

    a perceber e transformar as prticas autoritrias engendradas no comportamento, que

    operam no modo de agir em diferentes mbitos das relaes sociais.

    Este projeto pedaggico-teraputico segue prximo ao que Reich defendia como

    o lugar possvel de uma psicologia transformadora, ou seja, na confeco de

    sociabilidades que estabeleam um contraponto ao capitalismo como elaborao clnica.

    Caso contrrio, os mecanismos que produzem a neurose seguem seus cursos, e a clnica

    corre o risco de transformar-se em uma mera mantenedora destes mecanismos. Neste

    caso, a psicologia atua como paliativa, tornando sua prtica com um espao circular e

    sobrecodificante.

    Ao utilizar a capoeira angola como exerccio bioenergtico, propomos um

    investimento na percepo corporal e a utilizao de um veculo para o reequilbrio da

    energia vital. Buscamos tambm investir em um corpo uno e material, que nos fornea

    informaes do mundo a partir do contato direto com ele, distante de qualquer verdade

    que se coloque como ideia em si. Aqui, a experincia e a sensao so tomadas como

    premissas para o acesso ao acontecimento. Corpo em movimento, carne percorrida por

    energias agradveis: a apropriao da corporeidade produz uma sabedoria do

    organismo. assim que a capoeira angola tem nos auxiliado a confeco de nosso

    anarquismo somtico.

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    *Joo da Mata Dr. em Psicologia pela UFF e Dr. em Sociologia Econmica e das

    Organizaes pela Universidade de Lisboa PT. Trabalha com a Soma uma terapia

    anarquista h 25 anos.

    RESUMO:

    A arte-luta da capoeira angola apresentada a partir de uma anlise libertria de suatrajetria histrica, seu estilo e suaprticano presente, para ser pensada como elementoindutor de rebeldias diante das relaes de dominao na atualidade. Mostramostambm como, a partir da obra de Wilhelm Reich e sua relao entre corpo e emoo, acapoeira angola faz parte do processo teraputico-pedaggico da Somaterapia comoexerccio bioenergtico de original valor. Formada a partir de um vasto mosaico de

    povos da dispora africana, a capoeira angola foi utilizada pelo negro escravizado comoveculo de resistncia diante da escravido. Agora, junto s anlises e s prticas doanarquismo somtico, nos interessa pensar seu uso no presente, capaz de auxiliar nos

    processos de enfrentamento e disposio de luta para a construo de vidas livres.

    Palavras-chave:capoeira angola, Wilhelm Reich, anarquismo somtico.

    ABSTRACT

    The art-fight Capoeira Angola is presented from a libertarian analysis of its historicaltrajectory, its style and its practice in the present, to be thought as an inductor element

    of rebellion against the relations of domination of today. We also demonstrate how,through the work of Wilhelm Reich and his relation between body and emotion,Capoeira Angola is part of the therapeutic-pedagogical process of Somaterapia, seen asa bioenergetic exercise of original value. Constructed from a mosaic of tribes from theAfrican Diaspora, the enslaved black-man used the Capoeira Angola as a vehicle ofresistance against slavery. Now, together with somatic anarchist practices and analysis,what interests us is to think the use of Capoeira Angola at the present and to be able toorganize processes of confrontation and willingness to fight in order to build free waysof living.

    Keywords:Capoeira Angola, Wilhelm Reich, somatic anarchism.

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    1 Frase atribuda Vicente Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha.

    2Wilhelm Reich.Psicologia de Massa do Fascismo. So Paulo: Martins Fontes, 2001.

    3Este termo, de oitiva, originalmente era o nome popular empregado queles que estavam no porto

    espera de trabalho. Repentinamente, algum capataz gritava que havia surgido algum trabalho, e osestivadores que estavam na rea porturia na escuta, atentos e de oitiva, ento se apresentavam. Estaatitude de alerta, lembram os velhos mestres, era a mesma da capoeira. Ali, no cais, eles tambm

    praticavam a capoeira e iniciavam os novos praticantes.

    4A noo aqui utilizada de niconos remete ao conceito desenvolvido por Max Stirner em sua obra O

    nico e sua propriedade. STIRNER, Max. O nico e Sua Propriedade. Lisboa: Antgona, 2004.

    5Este conceito, presente em boa parte da obra de Roberto Freire, est melhor bem expresso no best-sellerSem tesono h soluo, onde o autor defende o fim do bloqueio que a sociedade impe satisfaodo prazer. O livro rene trs ensaios nos quais Freire traz suas pesquisas e reflexes sobre Psicologia ePoltica. Segundo ele, o livro influenciou na introduo do uso da palavra teso no vocabulrio dos jovens

    brasileiros, com seu atual significado. Usada apenas para descrever excitao sexual, aps o lanamento eas sucessivas edies do livro, a palavra deixou de ser chula e ganhou todas as faixas etrias e camadassociais. Seu sentido passou a ser outro: tesorepresenta a paixo por algo que desperte prazer, beleza ealegria. FREIRE, Roberto. Sem Teso no h Soluo. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1987.

    6 Jaime Cubero foi autodidata e um dos principais militantes do anarquismo no Brasil no sculo XX.

    Jornalista, pedagogo e libertrio ainda na adolescncia fundou com a ajuda de amigos o CentroJuvenil de Estudos Sociais. Participou de inmeras atividades (palestras, cursos, debates, peas de teatro)em centros culturais do Rio de Janeiro e de So Paulo. Durantes vrios anos participou ativamente doCCS Centro de Cultura Social , em So Paulo, que representou um ncleo de resistncia ao regimemilitar e um dos principais espaos dedicados ao estudo e divulgao do anarquismo brasileiro.