da arte luta da capoeira angola ao anarquismo somático
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Da arte-luta da capoeira angola ao anarquismo somtico
Joo da Mata*
mandinga de escravo em nsia de liberdade
1
Fruto da luta dos cativos diante da escravido no Brasil, a capoeira emergiu
como uma resposta encontrada pelo africano contra o colonizador europeu. Utilizando
seus corpos como instrumento de luta, a capoeira traz o registro de uma histria forjada
ao longo de sculos por indivduos que reagiram s prticas intolerveis da escravido e
da represso policial. Os capoeiras tambm faziam emergir, em disputas de territrios
nas comunidades negras do sculo XIX, a busca por laos de companheirismos,
diverso e lazer.
A trajetria da capoeira est repleta de personagens que se rebelaram diante da
violncia que lhes roubavam o sentido da existncia, sempre pela covardia e pelo
autoritarismo. Propomos aqui, valorizar estes instantes insurgentes da capoeira, para
lidar com as prticas de poder no presente, caracterizadas por mecanismos menos
explcitos que o escravismo, mas por eficientes formas de controle e domnio.
Os escravos da atualidade no se apresentam como no passado. Eles j no so
caados, transportados e negociados em redes de negcios que envolvem corpos
humanos, como ocorreu por quase quatro sculos no Brasil. Hoje, existem aos montes
formando filas ou implorando por alguma forma de oportunidade em empregos que
exploram sua fora e conhecimento. So capturados pela lgica do capital, negociando
ou competindo para ocupar o lugar daqueles que encontraram alguma oportunidade.
Enfraquecidos em sua potncia de vida e luta, acabam sendo, desgraadamente, a
maioria.
Optamos por eleger a capoeira angola neste estudo, tambm conhecida como
capoeira-me, por representar uma modalidade da capoeira mais ligada ao seu
passado. Concebida como um jogo, no qual a luta, a dana, a mmica e outros elementos
se conjugam, a capoeira angola privilegia a mandinga como estratgia de luta e
enfrentamento. Outra particularidade de seu estilo, comumente chamada de jogo
baixo, faz dela algo facilmente reconhecida. A capoeira angola prioritariamente
jogada no cho, ou seja, seus movimentos utilizam simultaneamente diferentes partes docorpo. Muitos dos golpes de ataque e defesa so realizados com o apoio das pernas e
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das mos em contato direto e permanente com o cho, favorecendo com isso, uma
eficiente mobilizao corporal.
Na relao direta com o outro durante o jogo, os movimentos corporais dos
capoeiristas buscam criar uma espcie de manto de iluso para poder realizar o ataque.No entanto, isto no feito de modo bvio. Ao contrrio, a brincadeira e a teatralidade
do espao criao de uma relao de comunicao entre os corpos, a partir da qual o
aspecto da luta est mesclado com a ginga e a malandragem. A capoeira angola uma
luta danada, que se estabelece como relao agonstica entre os jogadores. No h
vencidos nem vencedores, mas um encontro capaz de promover um dilogo entre
corpos.
Na capoeira angola, este jogo mandingado representa a capacidade do capoeristaem apanhar de improviso o outro, tornando-se uma importante estratgia ligada noo
de criao, espontaneidade e astcia no jogo e no o resultado de uma crena religiosa.
Est atrelada ao ato de comofazer determinados procedimentos durante o jogo, no de
um feitio. Ao angoleiro, a mandinga a prpria maneira de jogar a capoeira, sempre
atento, mas podendo aparentar distrao.
A virtude do corpo no jogo da capoeira angola vem dessa peculiar
performatividade: sua capacidade de mover-se de maneira inusitada e surpreendente.Este jeito do corpo em instaurar-se no mundo de modo inteligente na elegncia do
gesto ou na tenso do golpebaliza sua existncia na interface entre a arte e a luta.
Diferentemente da capoeira regional ou da capoeira contempornea
nomenclaturas que designam modalidades mais recentes e mescladas com outras lutas,
a capoeira angola est mais prxima aos princpios ritualsticos do passado, marcada por
um jogo menos competitivo, com movimentos mais rasteiros e lentos. Ao privilegiar o
dilogo corporal entre os jogadores em detrimento da competio, a capoeira angola
distingue-se por uma permanente conversao de perguntas-respostas corporais. Bem
menos conhecida hoje em dia, a capoeira angola uma prtica de resistncia dentro do
prprio universo da capoeira.
revolta
A histria da capoeira eminentemente descontnua e carente de registros. Osapontamentos sobre os negros escravos e a capoeira ganham destaque especialmente
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com a chegada da Famlia Real ao Brasil. O perodo joanino foi marcado pela intensa
vinda de negros ao Rio de Janeiro, numa proporo nunca vista antes. Este fato fez
aumentar muito os nveis de criminalidade e a priso de muitos capoeiristas, o que por
sua vez, fez aumentar o nmero de registros de uma polcia recm-criada com principal
objetivo de perseguir e controlar a populao negra.
Outra parte significativa do que conhecemos sobre a histria da capoeira
trazida at nossos dias atravs da memria oral, seja nas msicas ou nos causos
contados entre capoeiristas. Sua trajetria, suas prticas e seus rituais so transmitidos
de gerao a gerao, incorporando e abandonando elementos ao longo do tempo, mas
conservando boa parte das memrias africanas e do registro escravocrata.
Diante de uma genealogia possvel de sua histria, podemos afirmar que a
capoeira angola emerge como uma das formas de resistncia ao regime escravista, seja
como diverso e luta, seja como atitude rebelde nos centros urbanos, especialmente no
sculo XIX. Para lidar com a violncia de um regime de segregao e domnio, o
africano tornado escravo resgatou os rituais de sua cultura, que aqui foram
miscigenados com costumes locais, e valeu-se de uma realidade sociopoltica
intolervel, para criar uma luta que foi fermento de liberdade.
Nas diversas formas de resistncia no contexto da escravido, as fugas doscativos, a lutas dos quilombos e a prpria capoeira, representam para ns possibilidades
encontradas pelos negros para forjar uma certa liberdade, conquistada no enfrentamento
ao autoritarismo, como resultado de combates mais ou menos calculados e, em certa
medida, bem-sucedidos.
Composto sob um rico e complexo conjunto de elementos ritualsticos,
brincadeiras, picardias e movimentos variados, a capoeira angola constitui-se como um
jogo no qual seu potencial de luta est diretamente implicado com o ldico e com a
dana. No passado, esta caracterstica conferiu capoeira uma condio fundamental
em seu processo de resistncia: a estratgia necessria ao negro escravizado e
desarmado para enfrentar o feitor e a polcia.
Todo o movimento de insurgncia produzido pela capoeira diante da escravido
e aps ela nos mostra a potncia libertria que ela representou no passado. Apesar de
haver divergncias quanto ao seu surgimento, se num contexto urbano ou rural, parece
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certo que as condies vividas no Brasil colonial foram decisivas para que esta
manifestao negra surgisse. No h nenhuma prtica idntica capoeira em qualquer
outra parte do mundo, o que nos faz crer que seu aparecimento est intimamente ligado
luta antiescravista.
A escravido brasileira, considerada a maior entre todas as formas de escravido
na histria da humanidade, com a transferncia de mais de quatro milhes de pessoas de
um continente a outro, foi responsvel por muitos aspectos de nossa formao cultural.
A capoeira foi um importante legado dessa herana africana em solo brasileiro. Os mais
de trs sculos em que o africano foi tornado escravo deixam marcas cravadas na
sociedade que at hoje no foram solucionadas. Apesar de o Brasil ter a segunda maior
populao de negros e mestios do mundo perdendo somente para a Nigria , a
condio do negro brasileiro traz os registros no corpo e na vida destes sculos de
escravido. Se a capoeira representou uma das formas de luta no passado, defendemos
aqui que ela continua sendo um instrumento de luta no presente.
Durante sculos, a capoeira criou uma cultura prpria, fez histria e
transformou-se em um dos principais representantes do imaginrio popular brasileiro.
Esta mistura de expresso artstica, potncia de luta e ao poltica nos faz pensar em
sua atualizao e sentido no presente, onde no existe mais a cultura escrava como
regime de produo, mas mecanismos de disciplina e controle disseminados por
diferentes e difusos espaos sociais.
Se a capoeira emergiu como reao diante da escravido, compreendemo-la
como disparadora de enfrentamentos e implicada com processos de libertao. Libertar-
se, no contexto que estamos falando, no significa eliminar ou situar-se fora do poder,
no caso de sua histria, da prpria poltica da escravido, mas promover resistncias
contra as prticas de dominao, tpicas desta mesma poltica. Querer destacar este
potencial libertrio da capoeira no significa ignorar as contradies de sua trajetria,
menos ainda de seus praticantes.
Mesmo com todas as contradies que a histria da capoeira nos mostra, quando
ela esteve ao lado das foras repressoras, por exemplo, seus atores quase sempre
estiveram empenhados em atitudes insurgentes em presena dos mandos e desmandos.
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Muitas vezes associado imagem do marginal, vagabundo e desordeiro, o capoeira
tornava-se alvo privilegiado da perseguio policial nos incipientes centros urbanos.
Neste perodo de fortalecimento do Estado brasileiro, as tcnicas de gesto da vida
comeam a ganhar fora e tm na figura do capoeirista o mal a ser perseguido paralimpar as ruas. Devemos lembrar que a polcia e os tribunais sempre estiveram presentes
para combater o considerado ilegal, para fazer a gesto dos ilegalismos, e muitas vezes
o faz de modo ilegal, como na perseguio e caa aos marginais da poca.
Hoje, dezenas de academias se espalham por diversas cidades do Brasil e do
mundo, difundindo sua prtica. Nas escolas, nas universidades e diferentes espaos de
ensino, a capoeira tem sido utilizada como prtica corporal original, auxiliando o
processo de aprendizagem, socializao, psicomotricidade, etc. Mas e seu sentido
libertrio? possvel pensar a capoeira como uma prtica que, assim como no passado,
est ligada a um processo de libertao e de liberdade? Ou sua prtica no presente
tornou-se tambm capturada como atividade recreativa?
Pensar o uso da capoeira no presente tambm estarmos atentos a estas
possveis capturas de sua prtica, inclusive de sua prpria histria e tradio. Assim,
no buscamos na capoeira uma prtica de ocupao e/ou recreao, mas dereconhecimento corporal, instrumento de luta e afirmao de vida no cotidiano. O que
destacamos justamente esta potncia cravada em sua histria e sua possvel
atualizao. Sem deixar de lado seu valor como cultura popular, nos interessa pensar a
capoeira como uma arte de resistir, sob uma perspectiva libertria.
corpo e luta
Parte de nossa investigao se volta ao entendimento da capoeira angola como
trabalho corporal eminentemente bioenergtico. Os diferentes movimentos presentes em
sua prtica, tais como a ginga, os golpes de ataque e defesa, o canto e os demais
elementos ritualsticos envolvidos so tratados aqui como expedientes capazes de atuar
sobre o comportamento, seguindo as indicaes do ex-psicanalista Wilhelm Reich2
sobre a relao entre corpo e emoo.
Reich salientou a importncia do trabalho corporal na anlise dos conflitos
emocionais, do reconhecimento do prprio corpo e da percepo corporal. A ao
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motora dos movimentos da capoeira angola age em diferentes msculos, produzindo
uma eficiente massagem corporal, que atua simultaneamente em todo o corpo, ativando
inclusive vrios msculos antes inativos.
Wilhelm Reich foi preciso ao sugerir que a neurose um fenmeno social,criada por mecanismos e objetivos polticos, frutos da ao disciplinadora e do controle
exercidos sobre os indivduos. A partir desta noo, Reich lana mo de um dos seus
principais conceitos: a couraa neuromuscular do carter. Segundo ele, nosso corpo
cria posturas, gestos e atitudes que tendem a materializar nossos traos de
comportamentos inconscientes. uma espcie de materializao do inconsciente
freudiano, conceito este levado alm do que a Psicanlise prope, pois localiza nos
fenmenos sociais e polticos as fontes de seu surgimento da neurose, como tambm,
sua manuteno. Para Reich, o conflito emocional se instala no corpo, materializando
um conjunto de atitudes emocionais que correspondem a uma forma padronizada que
criamos ao longo de nossa existncia.
Sua psicologia somtica aponta para sete regies do corpo onde normalmente se
criam tenses musculares, os chamados anis ousegmentos de couraa. Segundo Reich,
estas regies espalhadas em diferentes pontos do corpo concentram grande quantidade
de energia vital, produzida por uma tenso crnica na musculatura voluntria. Os
distintos movimentos da capoeira atuam sobre todas estas regies simultaneamente.
Eles permitem trabalhar sobre a couraa muscular, auxiliando em seu processo de
dissoluo da tenso crnica, liberando a energia vital antes bloqueada e seu
consequente efeito sobre emoes e posturas.
Alm de servir como exerccio bioenergtico na perspectiva reichiana, a
capoeira angola tambm traz uma preparao para a luta, um estado de ateno e alerta.
Isso visto, por exemplo, durante uma roda de capoeira, onde os jogadores esto
atentos aos limites fsicos da roda, ao som do berimbau, msica que est sendo
cantada e, sobretudo, ao outro. De oitiva3, o angoleiro observa os movimentos e a
vadiao do outro capoeira, para ento soltar ou se defender dos golpes, navalhadas e
mesmo armas de fogo.
Durante o jogo da capoeira angola, diferentes partes do corpo so ativadas
causando intensa mobilizao nos anis de couraa. Desde o canto aos movimentostpicos da capoeira angola, tais como ginga, a, rol, etc., que mobilizam a testa
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franzida ou a cintura presa, todo corpo recebe uma ao neuromuscular graas aos
movimentos da capoeiragem. Ao mesmo tempo em que mobiliza diferentes regies
corporais, os movimentos da capoeira angola so executados exigindo do capoeirista
uma permanente ateno.
Para a psicologia somtica de Wilhelm Reich, qualquer forma de insurgncia
passa pelo reconhecimento do corpo. Para ele, a reserva energtica resultante do
trabalho sobre as couraas fundamental para o processo de luta e enfrentamento
emocional na vida das pessoas. Dessa forma, mais que apenas uma prtica corporal,
buscamos destacar a capacidade que a capoeira angola traz em estimular a ao diante
dos mecanismos de poder na atualidade.
Os movimentos presentes na capoeira angola agem liberando a energia vital
cronicamente presa nos msculos, ao mesmo tempo em que nos ajudam a estabelecer
conexes que passam pelo corpo e sua inscrio no mundo. A variedade de situaes
corporais que surgem durante o jogo to ampla, que requer um tipo de ateno que
no passa apenas pela racionalidade, mas por um amplo conjunto de percepes e
sensaes diante do momento presente.
A importncia em manter-se conectado a si e ao outro durante a roda da capoeira
angolacomposta pelo instrumental, pelo canto, pelo crculo e, sobretudo na presena
do outro jogadorest relacionada este estado de percepo sobre o aqui e o agora.
praticamente impossvel jog-la sem estar o mais envolvido possvel naquele instante. A
prpria possibilidade de se receber um golpe faz com que a ateno esteja totalmente
voltada para o momento, criando um encontro nico.
Ali, durante o jogo, no equilbrio, na tenso e na espreita no outro, o corpo vai
sendo trabalhado junto com nossa ao e conexo no mundo. Afastado de qualquer
transcendncia, o capoeira situa-se no terreno da imanncia e faz emergir sua tica
forjada no encontro a si e ao outro. Rebelde, resistente e libertrio, o capoeira vai
transformando-se nos golpes de ataque e defesa da angola.
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Ao defendermos a prtica da capoeira angola, buscamos a criao de estratgias
que favoream nossas prticas libertrias, para incrementar o exerccio de vidas livres.
Neste sentido, vale nos interrogar sobre qual noo de liberdade que estamos
defendendo. Partindo de uma anlise presentes nos anarquismos, investigamos na ideiada liberdade como um movimento contnuo, sem um ponto a ser atingindo.
Nesta perspectiva, acreditamos na atualidade do pensamento de Joseph
Proudhon (1809-1865), aquele que primeiro passou a autodenominar-se de anarquista.
Em sua anlise serial, Proudhon defende um mtodo dialtico emprico, no qual a
liberdade pensada a partir de uma srie em direo a mais liberdade ou em direo a
mais autoridade. A partir da anlise serial proudhoniana, as prticas libertrias so
tomadas aqui como acontecimentos que criam possibilidades concretas em promover a
srie de mais liberdade, em oposio s prticas heterogestoras, que se direcionam
srie de mais autoridade. Como a srie no tem fim, esta uma construo que no se
esgota. A prpria noo de liberdade vista assim como algo que tambm jamais se
exaure e nunca ser alcanada por completo. A liberdade absoluta uma abstrao,
como tambm o fim completo da autoridade.
A construo de vidas livres ocorre em experimentaes e encontros entre
nicos que buscam interaes que combatam as prticas de dominao. Os anarquistas
buscam na vida associativasem obedecer a manuais ou cartilhas, e sem antagonismos
entre coletivo e indivduoinstantes que fujam da iluso de um paraso desprovido de
conflitos. As prticas de vidas livres esto assim, implicadas na permanente relao
junto ao outro, no incessante combate que faz coexistirem diferenas entre pessoas que
exercitam subjetividades libertrias.
Empenhado em tomar o presente como aliado, o exerccio da vida livre se
afirma, em maior ou menor grau, nas associaes pautadas na crtica autoridade
centralizada do poder pastoral ao poder de Estado, e todas as demais redes de poderes,
deveres e assujeitamentos tpicas das relaes de dominao. O jogo de capoeira angola
nos parece ser uma boa metfora da prtica libertria: na permanente aposta de conexo
junto ao outro e na comunicao entre corpos que atentos aos limites da roda,
msica e ao toque do berimbauo capoeira cria a afirmao de si.
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Propor o capoeira como nico4 radicalizar sua inscrio no mundo na
elaborao de caminhos singulares e rebeldes. Seja nas rotas solitrias, na presena de
outros capoeiras ou at na relao como Mestres, mesmo quando estes queiram tomar o
lugar do pastor, o capoeira estar atento em inventar suas prprias cartografias. Rompero pacto com as relaes de dominao antes de tudo sair do lugar da servido e do
autoritarismo.
Problema presente nas trajetrias dos anarquismos, a tica como modo de vida
sempre foi uma preocupao cotidiana dos libertrios. Fazer agora, mudar agora,
inventar agora. No interessa ao anarquista a revoluo como caminho de salvao ou
construo de uma sociedade pacificada. No se trata tambm de aperfeioar o Estado,
em busca de um melhor Estado. Pelo contrrio: a anarquia se constitui como
experimentao de vida que vai alm da lei e do Estado. Significa ainda conceber a
liberdade como elaborao de si, que acontece a todo o momento, em acontecimentos
que envolvem sempre um outrona relao.
Distante das estratgias corriqueiras realizadas pela poltica tradicional, a
antipoltica libertria no luta pela conquista do poder de Estado. Tambm no est
interessada no sistema representativo com seus partidos e polticos profissionais. Os
anarquismos esto voltados em criar prticas que invistam na intensificao da vida
cotidiana, atravs da auto-organizao, da valorizao radical do singular e nas prticas
livres de viver. Todas estas estratgias, que no so atingidas pelas vias parlamentares,
ancoram-se nas formulaes entre as prticas de poder e as prticas de liberdade,
sempre de forma imanente e em fluxo contnuo.
Neste sentido, vale mencionar Michel Foucault (2003) quando afirma que a
utopia como algo promissor no mobiliza nossas vidas no presente porque est distante
de ns. Qualquer processo de resistncia e luta no deve ser deslocado para um futuro
esperanoso, um lugar a ser atingido e fora dos espaos reais da sociedade. Ao
contrrio, Foucault prope a resistncia como um problema cotidiano e constante.
Lana mo do conceito de heterotopia, como algo que se constri em distintos espaos
e apenas tem sentido no presente, no no amanh incerto e distante.
Esta heterotopia foucaultiana, dentro da sociedade de controle, justamente a
possibilidade de fugir das capturas das individualidades, criando para isso espaos earranjos novos de sociabilidades libertrias, sempre de maneira guerreira, em um
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permanente embate. Ou seja, ou ns construmos nossos espaos e pactos de liberdade
no aqui e agora ou no haver sentido na questo luta/resistncia. Este empreendimento,
num primeiro momento pessoal e solitrio, articula-se ao outro, para ento estabelecer
uma espcie de aritmtica de liberdades. Assim, pensamos a noo de resistncia, apartir da criao e produo de singulares formas de viver. Para alm de uma fora
reativa, a resistncia a afirmao e inveno na construo de sociabilidades livres.
Acreditamos que investir em prticas como a capoeira angola significa criar
condies de enfrentamento: momentos de insurgncias, de criao e inveno de si.
Acontecimentos que inscrevam no corpo a marca de uma vida afirmativa: no gesto e no
movimento, assim como na atitude e postura diante das malhas de poder. Investigar a
capoeira angola como instrumento libertrio investir nesta construo do devir
revolucionrio, onde seu praticante descubra no reconhecimento de seu corpo, sua
potncia e seu enfrentamento na vida cotidiana.
na afirmao desta postura poltica libertria que inscrevemos a capoeira
angola como campo possvel de resistncia, para pensar a lgica capitalista no presente,
que transforma a existncia em capital. A alienao do corpo tambm a alienao da
vida, vestida como fantoche do capitalismo moderno. As reflexes que apresentamos
aqui buscam, portanto, propor a capoeira angola como uma linha de fuga libertria, um
movimento de resistncia: prticas da liberdade, enfrentamento e luta corporal no
cotidiano.
Sua prtica tem nos mostrado um espao de legitimao da singularidade: os
movimentos de ataque e defesa, a ginga e o canto so a expresso singular do nico. No
jogo da capoeira, literalmente cada um cada um. No se joga igual ao outro, assim
como as estratgias de luta, tanto na roda da capoeira como na vida, tambm so
prprias e nicas. O que se passa simbolizado durante o jogo, nos fornece um retrato de
nossas existncias e, como dizem os velhos mestres: a roda da capoeira a roda da
vida.
Problematizar o corpo na psicologia, refletir sobre as prticas de poder e formas
de resistncia no presente e a experimentao da capoeira angola como instrumento de
luta so alguns dos temas presentes no trabalho que desenvolvemos h mais de vinte
anos na Somaterapia. A Soma, como tambm conhecida, uma tcnica psicolgica epedaggica com um posicionamento poltico libertrio, que utiliza em sua metodologia
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os princpios de produo coletiva inspirados na autogesto como ferramenta para
desenvolvimento de seu processo.
Criada no Brasil pelo instaurador Roberto Freire, a Soma funciona em grupo,
com tempo determinado e realiza-se em sesses compostas por exerccios corporais e
dinmicas de grupo autogestionadas. Neste conjunto metodolgico inclusive com a
prtica da capoeiraos membros dos grupos de Soma so estimulados a produzir suas
prprias prticas de liberdade dentro destes laboratrios sociais, desenvolvendo um
olhar e uma compreenso maior a partir do corpo, sobre as atitudes e comportamentos
polticos no cotidiano. Os objetivos da Soma esto ligados a questes como se pensar
uma subjetividade libertria; que tica possvel para pensar a liberdade; como
estabelecer as bases de uma sociabilidade apoiada na defesa das diferenas individuais;
e como situar o corpo no centro da intersubjetividade.
Nesta perspectiva, a Somaterapia encontra na prtica da capoeira angola um
poderoso exerccio corporal que amplia o sentido bioenergtico e poltico de seu
processo. Para a Soma, a energia vital disponibilizada pela mobilizao das couraas
musculares atravs do jogo da capoeira angola ser fator imprescindvel a elaborao de
vidas afirmativas dentro nos coletivos teraputicos.
Na elaborao de sua terapia anarquista, Roberto Freire vivenciou intenso
contato com a juventude brasileira, que se aproximava dos grupos de Soma, cursos e
palestras. Toda esta experincia e vivncia foram determinantes para a confeco de
uma peculiar forma de ao libertria, que recebeu a denominao de anarquismo
somtico, fortemente impregnado da noo do teso5 como modo libertrio de
existncia.
Este termo ganhou contorno, sobretudo, a partir do encontro entre Roberto Freire
e o anarquista Jaime Cubero6(1926-1998), ainda na dcada de 1970. Cubero observara
na obra de Freire um jeito diferente de exercer o anarquismo no Brasil, com
caractersticas marcantes de um ativismo mais despojado, ldico e prazeroso. Sempre
atento s diferentes formas de anarquismos, Cubero percebeu que ali nascia algo novo e
singular na ao libertria.
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As caractersticas deste anarquismo somtico esto diretamente relacionadas
com o cruzamento da obra de Wilhelm Reich e o pensamento libertrio. O corpo
enquanto unidade indivisvel; o olhar poltico sobre o cotidiano, no que chamamos de
uma poltica do cotidiano; a afetividade como combustvel de sociabilidades libertrias;e a valorizao do prazer como tica e indicador de nossa singularidade so algumas das
especificidades que encontramos nesta unio de elementos que compem o pensamento
de Freire.
Fortemente presente na metodologia da Soma, as peculiaridades do anarquismo
somtico atuam no sentido de promover novas formulaes sociais, menos
hierarquizadas e mais livres. Atravs de uma dinmica de grupo autogestionria, as
reflexes anarquistas incidem diretamente no processo teraputico, auxiliando cada um
a perceber e transformar as prticas autoritrias engendradas no comportamento, que
operam no modo de agir em diferentes mbitos das relaes sociais.
Este projeto pedaggico-teraputico segue prximo ao que Reich defendia como
o lugar possvel de uma psicologia transformadora, ou seja, na confeco de
sociabilidades que estabeleam um contraponto ao capitalismo como elaborao clnica.
Caso contrrio, os mecanismos que produzem a neurose seguem seus cursos, e a clnica
corre o risco de transformar-se em uma mera mantenedora destes mecanismos. Neste
caso, a psicologia atua como paliativa, tornando sua prtica com um espao circular e
sobrecodificante.
Ao utilizar a capoeira angola como exerccio bioenergtico, propomos um
investimento na percepo corporal e a utilizao de um veculo para o reequilbrio da
energia vital. Buscamos tambm investir em um corpo uno e material, que nos fornea
informaes do mundo a partir do contato direto com ele, distante de qualquer verdade
que se coloque como ideia em si. Aqui, a experincia e a sensao so tomadas como
premissas para o acesso ao acontecimento. Corpo em movimento, carne percorrida por
energias agradveis: a apropriao da corporeidade produz uma sabedoria do
organismo. assim que a capoeira angola tem nos auxiliado a confeco de nosso
anarquismo somtico.
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*Joo da Mata Dr. em Psicologia pela UFF e Dr. em Sociologia Econmica e das
Organizaes pela Universidade de Lisboa PT. Trabalha com a Soma uma terapia
anarquista h 25 anos.
RESUMO:
A arte-luta da capoeira angola apresentada a partir de uma anlise libertria de suatrajetria histrica, seu estilo e suaprticano presente, para ser pensada como elementoindutor de rebeldias diante das relaes de dominao na atualidade. Mostramostambm como, a partir da obra de Wilhelm Reich e sua relao entre corpo e emoo, acapoeira angola faz parte do processo teraputico-pedaggico da Somaterapia comoexerccio bioenergtico de original valor. Formada a partir de um vasto mosaico de
povos da dispora africana, a capoeira angola foi utilizada pelo negro escravizado comoveculo de resistncia diante da escravido. Agora, junto s anlises e s prticas doanarquismo somtico, nos interessa pensar seu uso no presente, capaz de auxiliar nos
processos de enfrentamento e disposio de luta para a construo de vidas livres.
Palavras-chave:capoeira angola, Wilhelm Reich, anarquismo somtico.
ABSTRACT
The art-fight Capoeira Angola is presented from a libertarian analysis of its historicaltrajectory, its style and its practice in the present, to be thought as an inductor element
of rebellion against the relations of domination of today. We also demonstrate how,through the work of Wilhelm Reich and his relation between body and emotion,Capoeira Angola is part of the therapeutic-pedagogical process of Somaterapia, seen asa bioenergetic exercise of original value. Constructed from a mosaic of tribes from theAfrican Diaspora, the enslaved black-man used the Capoeira Angola as a vehicle ofresistance against slavery. Now, together with somatic anarchist practices and analysis,what interests us is to think the use of Capoeira Angola at the present and to be able toorganize processes of confrontation and willingness to fight in order to build free waysof living.
Keywords:Capoeira Angola, Wilhelm Reich, somatic anarchism.
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1 Frase atribuda Vicente Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha.
2Wilhelm Reich.Psicologia de Massa do Fascismo. So Paulo: Martins Fontes, 2001.
3Este termo, de oitiva, originalmente era o nome popular empregado queles que estavam no porto
espera de trabalho. Repentinamente, algum capataz gritava que havia surgido algum trabalho, e osestivadores que estavam na rea porturia na escuta, atentos e de oitiva, ento se apresentavam. Estaatitude de alerta, lembram os velhos mestres, era a mesma da capoeira. Ali, no cais, eles tambm
praticavam a capoeira e iniciavam os novos praticantes.
4A noo aqui utilizada de niconos remete ao conceito desenvolvido por Max Stirner em sua obra O
nico e sua propriedade. STIRNER, Max. O nico e Sua Propriedade. Lisboa: Antgona, 2004.
5Este conceito, presente em boa parte da obra de Roberto Freire, est melhor bem expresso no best-sellerSem tesono h soluo, onde o autor defende o fim do bloqueio que a sociedade impe satisfaodo prazer. O livro rene trs ensaios nos quais Freire traz suas pesquisas e reflexes sobre Psicologia ePoltica. Segundo ele, o livro influenciou na introduo do uso da palavra teso no vocabulrio dos jovens
brasileiros, com seu atual significado. Usada apenas para descrever excitao sexual, aps o lanamento eas sucessivas edies do livro, a palavra deixou de ser chula e ganhou todas as faixas etrias e camadassociais. Seu sentido passou a ser outro: tesorepresenta a paixo por algo que desperte prazer, beleza ealegria. FREIRE, Roberto. Sem Teso no h Soluo. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1987.
6 Jaime Cubero foi autodidata e um dos principais militantes do anarquismo no Brasil no sculo XX.
Jornalista, pedagogo e libertrio ainda na adolescncia fundou com a ajuda de amigos o CentroJuvenil de Estudos Sociais. Participou de inmeras atividades (palestras, cursos, debates, peas de teatro)em centros culturais do Rio de Janeiro e de So Paulo. Durantes vrios anos participou ativamente doCCS Centro de Cultura Social , em So Paulo, que representou um ncleo de resistncia ao regimemilitar e um dos principais espaos dedicados ao estudo e divulgao do anarquismo brasileiro.