«d. pedro v - um homem e um rei» no público

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Tiragem: 47306 País: Portugal Period.: Diária Âmbito: Informação Geral Pág: 6 Cores: Cor Área: 29,47 x 37,04 cm² Corte: 1 de 1 ID: 38402603 07-11-2011 | P2 6 P2 Segunda-feira 7 Novembro 2011 Ruben A. revisita D. Pedro V A história de um rei pela mão de um romancista, ou de como a figura de D. Pedro V e o liberalismo foram reinterpretados pelos padrões de uma época de ditadura a D. Pedro V por Ruben A. é uma experiência de puro prazer. É puro prazer o que se sente ao ler a obra D. Pedro V — Um Homem e um Rei, da autoria de Ruben Andresen Leitão, uma obra marcante publicada em 1950 e há décadas esgotada, agora reeditada pela Leya, sob a chancela da Texto Editora. Prazer de ler sobre uma figura como D. Pedro V. Prazer de ler um livro escrito por alguém que escreve como Ruben Andresen Leitão escrevia. E prazer imenso de poder ler um livro sobre história com a distância de mais de meio século sobre a sua escrita, podendo gozar o privilégio de ver como a história é a interpretação que cada época faz do passado, o privilégio de perceber como a história do passado se reescreve a cada época de acordo. A figura de D. Pedro V (n.16/09/1837, f.11/11/1861), o rei intelectual, que reinou apenas seis breves anos, e morreu jovem, aos 24 anos, tudo indica que de febre tifóide, é apresentada por Ruben A. acompanhado e contextualizado na época por um conjunto de reflexões do autor que se prendem e são ditadas pelo período e o contexto histórico em que Ruben A. viveu, ou seja, a ditadura de Oliveira Salazar. E é na visão de Ruben A. que vai beber muito do que a historiografia subsequente e actual até diz sobre o liberalismo, bem como à mitificação que é feita de D. Pedro V, filho de Maria II, falecida em 1853, data em que o marido Fernando Saxe Coburgo assume a regência do reino até à maioridade de D. Pedro em 1855. O jovem rei reinou entre 1855 e 1861 e teve como primeiros-ministros o duque de Saldanha e o então marquês de Loulé. Filho de um Saxe Coburgo, viajou pela Europa antes de assumir o trono e tinha uma visão muito própria do que deveria ser a governação. Nasceu antes do seu tempo Defendia a centralização do poder no âmbito do que são os nacionalis- mos do século XIX, a reorganização do exército e a aposta no desen- volvimento do ensino em termos experimentais, incluindo-se nos que são os intelectuais europeus que preanunciam o positivismo. Foi ele, por exemplo, que, a expensas suas, financiou a abertura da Faculdade de Letras de Lisboa e a Faculdade de Letras do Porto. Podemos assim reencontrar o rei que é apresentado por Ruben A. como precursor, como alguém que nasceu antes do seu tempo num país como Portugal. É o próprio Ruben A. quem diz: “D. Pedro V foi o melhor conhecedor da sua época e o homem mais bem-intencionado que existiu na política do século passado; andou extraviado na época em que viveu, mas nunca, como tantos pretendem dizer, viveu sonâmbulo e pensativo, alheio às manifestações da sua pátria.” (p. 45) E insiste: “É este rei o primeiro homem moderno no nosso país; é ele que nos seus escritos proclama insistentemente o que a geração de 70 vai tentar realizar. É, se me perdoam a expressão, o primeiro grito histórico no século XIX depois daqueles anos desmantelados de liberalismo duvidoso.” (p.14) A crítica do liberalismo é, aliás, uma constante ao longo desta obra, escrita para servir de introdução à publicação das Obras Completas de D. Pedro V. “A falta de seriedade dedicada à resolução dos mais importantes problemas que se deparam aos homens das gerações que governam o país no século XIX é um facto que não deve desprezar quem pretenda ter uma visão em que a perspectiva não esteja errada. Havia um interesse individual colocado muito acima do interesse colectivo; o duque de Saldanha, defendendo o regime, constitucional, defendia-se a si próprio e aos seus, obrigando a força a fazer respeitar a lei e a sujeitar tudo ao Ministério da Guerra, ditadura esta muito mais dura e cruel do que as ditaduras habituais.” (p.21) E fazendo claramente uma leitura determinada pelo momento histórico e a época em que Ruben Andresen Leitão viveu, este acrescenta à critica do liberalismo: “Era preciso aparecer alguém, algum português compenetrado do que havia a fazer e que se sacrificasse pelo bem da pátria; era preciso que nos impuséssemos ao mundo como dignos herdeiros dos homens de Quatrocentos, e era preciso compreender a época fantástica que começava a raiar nos diversos países da Europa; finalmente, era preciso um grande espírito de sacrifício e de amor pela pátria portuguesa que até então era desconhecido.” (p.36) A defesa de regimes ditatoriais é clara no texto de Ruben A. e D. Pedro V é apresentado como um precursor do que serão alguns caudilhos e ditadores do século XX. “Certamente parece-me haver no pensamento e na forma de agir de D. Pedro uma forte vontade de realizar por meio da ditadura militar a transição à centralização do poder. (...) Os seis anos do seu reinado não foram acaso mais do que uma preparação para futuras realizações a que o tempo impediu a sua efectivação?” (p. 47), pergunta Ruben A. respondendo mais à frente: “O rei queria atrair ao seu poder os negócios públicos, queria centralizar, tendências estas bem visíveis nos seus escritos. O regime representativo não servia a este homem para pôr em prática tantas ideias e tantos projectos. Era acanhado de mais o sistema em que vivia.” (p. 102) E garante que “o rei era o único homem na nossa terra que possuía as ambições indispensáveis para caminhar firme na linha traçada; era a única pessoa a encarar o futuro tendo fé e alimentando uma esperança em tempos melhores.” (p. 119), para concluir: “Não tenho dúvida em afirmar que mais cedo ou mais tarde D. Pedro tomaria conta pessoalmente do poder, único meio de ver realizados os seus planos.” (p.121) São José Almeida D. Pedro V, já rei, retratado com a estola de arminho real DR

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O jornal ‘Público’ rendeu-se ao livro: «D. Pedro V por Ruben A. é uma experiência de puro prazer», escreve São José Almeida

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Page 1: «D. Pedro V - Um Homem e Um Rei» no Público

Tiragem: 47306

País: Portugal

Period.: Diária

Âmbito: Informação Geral

Pág: 6

Cores: Cor

Área: 29,47 x 37,04 cm²

Corte: 1 de 1ID: 38402603 07-11-2011 | P26 P2 Segunda-feira 7 Novembro 2011

Ruben A. revisita D. Pedro VA história de um rei pela mão de um romancista, ou de como a fi gura de D. Pedro V e o liberalismo foram reinterpretados pelos padrões de uma época de ditadura

a D. Pedro V por Ruben A. é uma experiência de puro prazer. É puro prazer o que se sente ao ler a obra D. Pedro V — Um Homem e um Rei, da autoria de Ruben Andresen Leitão, uma obra marcante publicada em 1950 e há décadas esgotada, agora reeditada pela Leya, sob a chancela da Texto Editora.

Prazer de ler sobre uma fi gura como D. Pedro V. Prazer de ler um livro escrito por alguém que escreve como Ruben Andresen Leitão escrevia. E prazer imenso de poder ler um livro sobre história com a distância de mais de meio século sobre a sua escrita, podendo gozar o privilégio de ver como a história é a interpretação que cada época faz do passado, o privilégio de perceber como a história do passado se reescreve a cada época de acordo.

A fi gura de D. Pedro V (n.16/09/1837, f.11/11/1861), o rei intelectual, que reinou apenas seis breves anos, e morreu jovem, aos 24 anos, tudo indica que de febre tifóide, é apresentada por Ruben A. acompanhado e contextualizado na época por um conjunto de refl exões do autor que se prendem e são ditadas pelo período e o contexto histórico em que Ruben A. viveu, ou seja, a ditadura de Oliveira Salazar.

E é na visão de Ruben A. que vai beber muito do que a historiografi a subsequente e actual até diz sobre o liberalismo, bem como à mitifi cação que é feita de D. Pedro V, fi lho de Maria II, falecida em 1853, data em que o marido Fernando Saxe Coburgo assume a regência do reino até à maioridade de D. Pedro em 1855.

O jovem rei reinou entre 1855 e 1861 e teve como primeiros-ministros o duque de Saldanha e o então marquês de Loulé. Filho de um Saxe Coburgo, viajou pela Europa antes de assumir o trono e tinha uma visão muito própria do que deveria ser a governação.

Nasceu antes do seu tempoDefendia a centralização do poder no âmbito do que são os nacionalis-mos do século XIX, a reorganização do exército e a aposta no desen-volvimento do ensino em termos experimentais, incluindo-se nos que são os intelectuais europeus que preanunciam o positivismo. Foi ele, por exemplo, que, a expensas suas, fi nanciou a abertura da Faculdade de Letras de Lisboa e a Faculdade de Letras do Porto.

Podemos assim reencontrar o rei que é apresentado por Ruben A. como precursor, como alguém que nasceu antes do seu tempo num país como Portugal. É o próprio Ruben A. quem diz: “D. Pedro V foi o melhor conhecedor da sua época e o homem mais bem-intencionado que existiu na política do século passado; andou extraviado na época em que viveu, mas nunca, como tantos pretendem

dizer, viveu sonâmbulo e pensativo, alheio às manifestações da sua pátria.” (p. 45) E insiste: “É este rei o primeiro homem moderno no nosso país; é ele que nos seus escritos proclama insistentemente o que a geração de 70 vai tentar realizar. É, se me perdoam a expressão, o primeiro grito histórico no século XIX depois

daqueles anos desmantelados de liberalismo duvidoso.” (p.14)

A crítica do liberalismo é, aliás, uma constante ao longo desta obra, escrita para servir de introdução à publicação das Obras Completas de D. Pedro V. “A falta de seriedade dedicada à resolução dos mais importantes problemas que se

deparam aos homens das gerações que governam o país no século XIX é um facto que não deve desprezar quem pretenda ter uma visão em que a perspectiva não esteja errada. Havia um interesse individual colocado muito acima do interesse colectivo; o duque de Saldanha, defendendo o regime, constitucional, defendia-se a si próprio e aos seus, obrigando a força a fazer respeitar a lei e a sujeitar tudo ao Ministério da Guerra, ditadura esta muito mais dura e cruel do que as ditaduras habituais.” (p.21)

E fazendo claramente uma leitura determinada pelo momento histórico e a época em que Ruben Andresen Leitão viveu, este acrescenta à critica do liberalismo: “Era preciso aparecer alguém, algum português compenetrado do que havia a fazer e que se sacrifi casse pelo bem da pátria; era preciso que nos impuséssemos ao mundo como dignos herdeiros dos homens de Quatrocentos, e era preciso compreender a época fantástica que começava a raiar nos diversos países da Europa; fi nalmente, era preciso um grande espírito de sacrifício e de amor pela pátria portuguesa que até então era desconhecido.” (p.36)

A defesa de regimes ditatoriais é clara no texto de Ruben A. e D. Pedro V é apresentado como um precursor do que serão alguns caudilhos e ditadores do século XX. “Certamente parece-me haver no pensamento e na forma de agir de D. Pedro uma forte vontade de realizar por meio da ditadura militar a transição à centralização do poder. (...) Os seis anos do seu reinado não foram acaso mais do que uma preparação para futuras realizações a que o tempo impediu a sua efectivação?” (p. 47), pergunta Ruben A. respondendo mais à frente: “O rei queria atrair ao seu poder os negócios públicos, queria centralizar, tendências estas bem visíveis nos seus escritos. O regime representativo não servia a este homem para pôr em prática tantas ideias e tantos projectos. Era acanhado de mais o sistema em que vivia.” (p. 102)

E garante que “o rei era o único homem na nossa terra que possuía as ambições indispensáveis para caminhar fi rme na linha traçada; era a única pessoa a encarar o futuro tendo fé e alimentando uma esperança em tempos melhores.” (p. 119), para concluir: “Não tenho dúvida em afi rmar que mais cedo ou mais tarde D. Pedro tomaria conta pessoalmente do poder, único meio de ver realizados os seus planos.” (p.121)

São José Almeida

D. Pedro V, já rei, retratado com a estola de arminho real

DR