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Curvas de danos de inundação versus profundidade de submersão: desenvolvimento de metodologia Maria Léa Machado, Nilo Nascimento, Márcio Baptista, Március Gonçalves, Adriano Silva, Joelma Costa de Lima, Rodrigo Dias, Anderson Silva, Ébio Machado, Wilson Fernandes INTRODUÇÃO As soluções de controle de inundações, em particular as do tipo estrutural, requerem in- vestimentos elevados em implantação e ope- ração. Os custos fixos de implantação são ele- vados e custos marginais aproximam-se de RESUMO: O presente trabalho descreve a meto- dologia e os principais resultados obtidos em uma pesquisa tendo por objetivo o desenvolvimento de curvas padronizadas de danos de inundação ver- sus profundidade de submersão. Curvas desse tipo possibilitam a avaliação global de prejuízos diretos causados por inundações segundo as profundida- des de submersão em uma dada área. O trabalho descreve o desenvolvimento de curvas para o setor habitacional, embora pesquisa de que se origina interesse-se também pelos setores comercial, de serviços e industrial. Os dados empíricos utiliza- dos provêem de uma amostragem realizada em Ita- jubá, uma cidade de 85.000 habitantes, localizada no vale do rio Sapucaí, em Minas Gerais, região Sudeste do Brasil, em 2002. Os dados empíricos sobre classe social da população, características da habitação e de seu conteúdo e os danos causados pela inundação foram obtidos por meio da aplica- ção de questionários junto à população sinistrada pelo evento de referência, de janeiro de 2000, quan- do a cidade teve mais de 70% de sua área urbana atingida pela inundação que durou três dias e, em certas áreas densamente ocupadas, atingiu profun- didades de submersão superiores a três metros. PALABRAS-CLAVE: Controle de inundação, da- nos de inundação, curvas de danos de inundação. ABSTRACT: The present paper describes the main results of an on-going research aiming to develop standard flood damage data in the form of generic flood-damage curves. This type of cur- ve allows estimating flood damages from the dep- th of inundation. Although the research project encompasses flood damages on different urban land use activities (residential, commercial, ser- vices and industrial land uses), the paper focus on residential flood damage information. The empirical data used on this research was obtai- ned from systematic surveys performed in the city of Itajubá, a town with 85.000 inhabitants located in the Sapucaí river valley in the South- eastern region of Brazil, during the year of 2002. The survey consisted in interviewing residents in the Itajubá flood prone urban area in order to develop a data base characterizing the social class, the building fabric, the contents (inven- tory items) and the damages caused to dwellin- gs by a reference flood event, the 2000 flood event. During this event, the town had more than 70% of its urban area flooded for three days and, in some densely urbanised areas, the depth of water was superior to three meters. KEY-WORDS: Flood control, flood damage, flood damage curves zero, sendo longo o retorno do capital inves- tido. A escala ótima do controle de inunda- ção é da ordem de grandeza da população beneficiada e sua oferta é indivisível entre os beneficiários, não sendo usualmente possível

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Curvas de danos de inundaçãoversus profundidade de submersão:

desenvolvimento de metodologia

Maria Léa Machado, Nilo Nascimento,Márcio Baptista, Március Gonçalves,Adriano Silva, Joelma Costa de Lima,Rodrigo Dias, Anderson Silva,Ébio Machado, Wilson Fernandes

INTRODUÇÃOAs soluções de controle de inundações, em

particular as do tipo estrutural, requerem in-vestimentos elevados em implantação e ope-ração. Os custos fixos de implantação são ele-vados e custos marginais aproximam-se de

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RESUMO: O presente trabalho descreve a meto-dologia e os principais resultados obtidos em umapesquisa tendo por objetivo o desenvolvimento decurvas padronizadas de danos de inundação ver-sus profundidade de submersão. Curvas desse tipopossibilitam a avaliação global de prejuízos diretoscausados por inundações segundo as profundida-des de submersão em uma dada área. O trabalhodescreve o desenvolvimento de curvas para o setorhabitacional, embora pesquisa de que se originainteresse-se também pelos setores comercial, deserviços e industrial. Os dados empíricos utiliza-dos provêem de uma amostragem realizada em Ita-jubá, uma cidade de 85.000 habitantes, localizadano vale do rio Sapucaí, em Minas Gerais, regiãoSudeste do Brasil, em 2002. Os dados empíricossobre classe social da população, características dahabitação e de seu conteúdo e os danos causadospela inundação foram obtidos por meio da aplica-ção de questionários junto à população sinistradapelo evento de referência, de janeiro de 2000, quan-do a cidade teve mais de 70% de sua área urbanaatingida pela inundação que durou três dias e, emcertas áreas densamente ocupadas, atingiu profun-didades de submersão superiores a três metros.

PALABRAS-CLAVE: Controle de inundação, da-nos de inundação, curvas de danos de inundação.

ABSTRACT: The present paper describes themain results of an on-going research aiming todevelop standard flood damage data in the formof generic flood-damage curves. This type of cur-ve allows estimating flood damages from the dep-th of inundation. Although the research projectencompasses flood damages on different urbanland use activities (residential, commercial, ser-vices and industrial land uses), the paper focuson residential flood damage information. Theempirical data used on this research was obtai-ned from systematic surveys performed in thecity of Itajubá, a town with 85.000 inhabitantslocated in the Sapucaí river valley in the South-eastern region of Brazil, during the year of 2002.The survey consisted in interviewing residentsin the Itajubá flood prone urban area in orderto develop a data base characterizing the socialclass, the building fabric, the contents (inven-tory items) and the damages caused to dwellin-gs by a reference flood event, the 2000 floodevent. During this event, the town had more than70% of its urban area flooded for three days and,in some densely urbanised areas, the depth ofwater was superior to three meters.

KEY-WORDS: Flood control, flood damage,flood damage curves

zero, sendo longo o retorno do capital inves-tido. A escala ótima do controle de inunda-ção é da ordem de grandeza da populaçãobeneficiada e sua oferta é indivisível entre osbeneficiários, não sendo usualmente possível

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excluir um agente de seu consumo. Os siste-mas de controle de inundação operam fre-qüentemente com capacidade ociosa, em fun-ção do comportamento estocástico dos even-tos hidrológicos.

Tais características econômicas inibem ointeresse de investidores privados em provermedidas de controle de inundação, em largaescala, com fins comerciais. Com isso, os in-vestimentos feitos nesse setor são, usualmen-te, públicos. Pesquisas teóricas e empíricastêm sido realizadas visando promover o de-senvolvimento e a aplicação de princípios deeficiência econômica capazes de orientar adecisão do setor público sobre o interesse doinvestimento, bem como apoio à seleção dasalternativas mais efetivas de controle de inun-dações, capazes de gerar os maiores benefíci-os. No Brasil, a avaliação e a decisão sobrealternativas de investimentos com esses obje-tivos são, muitas vezes, feitas sem uma análiseeconômico-financeira detalhada. Este fato sedeve, principalmente, à escassez de informa-ções sistematizadas sobre os danos de inun-dações (Salgado, 1995).

O presente texto relata e discute resultadosde um estudo de desenvolvimento de meto-dologia para determinação de curvas de da-nos de inundação, traduzidos em valores mo-netários, em função da profundidade de sub-mersão (curvas de danos x profundidade desubmersão). Esses resultados provêem de umapesquisa em curso, com financiamento doFundo Setorial CT-HIDRO e apoio do Institu-to Mineiro de Gestão das Águas (IGAM), vi-sando particularmente o desenvolvimento demetodologia para a estimativa de danos deinundações para diferentes tipologias de usodo solo urbano, classificadas por setores: habi-tacional, comercial, de serviços, industrial e deinfra-estrutura de serviços públicos.

Curvas como essas, adequadas ao contextobrasileiro, podem ser de grande valia em estu-dos de avaliação de alternativas de controle deinundação tendo por referência análises eco-nômico-financeiras. Elas constituem-se, igual-mente, em síntese relevante de informaçõessobre os prejuízos potenciais causados porinundações cujo emprego pode ser bastanteamplo, notadamente em áreas como o plane-jamento urbano, a elaboração de planos de

contingência, a proteção local de unidadesvulneráveis, entre outras.

Enfoca-se, no presente artigo, o desenvolvi-mento de curvas de danos x profundidade desubmersão para o setor habitacional. Os da-dos empíricos utilizados na pesquisa foramobtidos a partir de levantamento sistemáticode danos de inundação realizado na cidade deItajubá, no vale do rio Sapucaí, estado de Mi-nas Gerais, Brasil, em 2002, tendo por eventohidrológico de referência a inundação ocorri-da, nessa cidade, em janeiro de 2000.

TIPOLOGIA DE DANOSCAUSADOS POR INUNDAÇÕESOs danos de inundação são, usualmente,

divididos, em um primeiro nível de classifica-ção, em tangíveis e intangíveis, e, em um se-gundo nível, em diretos e indiretos (ver Tabe-la 1). A distinção entre tangíveis e intangíveisencontra-se relacionada ao grau de dificulda-de em estabelecer um procedimento para aavaliação monetária do dano. O prejuízo asso-ciado a danos físicos causados a uma constru-ção que tenha sido inundada pode, por exem-plo, ser estimado por meio da avaliação doscustos de sua restauração ao estado anterior àinundação. Aqui, tratam-se, portanto, de da-nos tangíveis, ainda que a avaliação de custosde restauração possa encerrar dificuldades esutilezas e exigir esforços consideráveis emcoleta de dados, elaboração de cenários e esti-mativa de custos, propriamente dita.

Por outro lado, estados de estresse ou ansi-edade causados por inundações, ou pela ex-pectativa de sua ocorrência, são exemplos dedanos de difícil valoração monetária, usual-mente classificados como intangíveis.

Os danos diretos resultam do contato dire-to de águas de inundação com bens, sendo,portanto, relacionados à deterioração física debens. Os danos indiretos têm por origem per-turbações causadas ao sistema produtivo comoconseqüência de inundações, levando à redu-ção da atividade econômica, bem como per-das de arrecadação de impostos, custos de ser-viços de emergência e de defesa civil, custosde limpeza de áreas atingidas, perdas de valorde propriedades, aumentos em valores de se-guros, quando existentes para cobrir danos de

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inundação, desemprego ou redução de salári-os, entre outros.

A literatura científica é mais rica em dados,informações e modelos sobre danos diretoscausados ao setor habitacional e, em menormonta, aos setores comercial e de serviços. Parao setor industrial, é corrente encontrarem-seinformações sobre indústrias de pequeno por-te e pequenos ateliês. O número relativamen-te pequeno de grandes indústrias, quandocomparado ao de habitações, por exemplo, adiversidade de formas de organização e a vari-abilidade em atualização tecnológica das uni-

dades de produção tornam mais difíceis a ob-tenção e a síntese de informações sobre o tema.

No setor de serviços públicos, a infra-estrutu-ra sujeita a danos de inundações compreende:

Saúde: hospitais, clínicas, postos de saú-de, asilos;Ensino: escolas, creches, colégios, facul-dades, universidades;Esportes: estádios, ginásios, piscinas;Lazer: praças, parques, jardins públicos;Sócio-culturais: teatros, cinemas, salas deconcerto, museus, centros culturais;

TABELA 1.Tipologia de danos decorrentes de inundações em área urbanas

(adaptado de Hubert e Ledoux, 1999; Dutta et al, 2003 e Penning-Rowsell e Chatterton, 1977).

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Redes: viária; elétrica, gás, água, esgoto,telefone, equipamentos (estações de tra-tamento de águas de abastecimento, es-tações de tratamento de esgotos, subes-tações de energia elétrica etc);Outros: correios, prefeitura, tribunais,etc.

A ruptura ou a perturbação de alguns des-ses serviços, em muitos casos resulta em per-turbação e prejuízos em outros serviços e seto-res de atividade, implicando freqüentementeem danos indiretos e, por vezes, em danos di-retos. É o caso da ruptura de redes, como ener-gia elétrica ou abastecimento de água, ou ainterrupção de serviços de saúde durante es-tados de crise causados por inundações.

Do mesmo modo, deve-se ter em conta quea redução de atividade econômica em umaárea sinistrada pode resultar no aumento daatividade econômica em outras áreas, não atin-gidas pela inundação, e capazes de suprir omercado com os mesmos tipos de produto.

A avaliação de danos indiretos requer aten-ção particular ao fato de que algumas perdaspodem ser circunstanciais, ocorrendo, eventu-almente, compensações entre agentes econô-micos, durante o período de crise causado pelainundação ou, para um mesmo agente, ao lon-go do tempo. Certos mercados, como o de ma-teriais de construção civil, ampliam-se tempo-rariamente durante o período de reconstrução.Por outro lado, a redução da atividade comer-cial em alguns setores, como o de supermerca-dos ou o comércio de medicamentos, pode sertemporária, decorrendo tão somente de umatransferência de compras para um futuro pró-ximo, uma vez superado o período de crise cau-sado pela inundação. A transferência de aquisi-ções pode se fazer também, de forma circuns-tancial ou permanente, para estabelecimentoscomerciais localizados fora de zonas sinistradas.Nesse caso, a perda para a sociedade não cor-responde ao lucro cessante de estabelecimen-tos sinistrados individuais, uma vez que a inter-rupção de vendas em um local é compensadapelo aumento de vendas em outro. Aqui, a ava-liação de prejuízos deve ter em conta as perdassociais e não as individuais.

Por outro lado, danos indiretos podem es-tender-se por áreas muito superiores às direta-

mente sinistradas pela inundação, como é ocaso de eventuais perturbações sobre proces-sos produtivos em indústrias localizadas emoutras áreas e mesmo em outros países, quan-do dependentes de produtos oriundos de áre-as sinistradas por inundação.

Os danos indiretos são estimados por meiode coleta de dados em áreas sinistradas porinundações. Esforços devem ser desenvolvidospara estimar apenas os prejuízos efetivos de-correntes de danos indiretos causados pelasinundações, traduzidos em valores monetári-os, uma tarefa delicada e difícil tendo em vistaos efeitos de compensação acima menciona-dos e a complexidade de processos produtivose de comercialização da atualidade.

AVALIAÇÃO DOS IMPACTOS SÓCIO-ECONÔMICOS DE INUNDAÇÕESA avaliação dos impactos sócio-econômicos

de inundações pode fazer-se segundo três pro-cedimentos metodológicos distintos, por vezesdenominados métodos conceituais, métodosdeterministas ou de avaliação direta e análisede vulnerabilidade (Hubert e Ledoux, 1999).

Métodos conceituaisOs métodos ditos conceituais, usualmente

fundamentados no conceito de excedente doconsumidor, incorporam técnicas de análiseeconômica desenvolvidas com o fim de valo-ração de ativos ambientais ou de prejuízoscausados por poluição do meio, como os mé-todos de avaliação contingente e hedônica.Supõe-se que o mercado é capaz de incorpo-rar o risco de inundação sendo necessárioapenas aplicarem-se procedimentos adequa-dos para revelar o valor por ele atribuído aesse tipo de risco.

Uma das principais vantagens atribuídas atais métodos seria sua capacidade de incorpo-rar à estimativa de prejuízos causados por inun-dações tanto danos tangíveis quanto intangí-veis. Porém, em razão de dificuldades de apli-cação e de incertezas associadas, estudos destanatureza têm sido desenvolvidos com maiorfreqüência em contexto acadêmico.

Os métodos conceituais, como os de avalia-ção contingente ou análise hedônica, funda-

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mentam-se na hipótese de que o controle deinundações é um bem para o qual existe umacerta demanda na sociedade, conduzindo auma disposição a pagar pelo mesmo. O méto-do de análise hedônica procura identificar equantificar tal disposição a pagar por intermé-dio do mercado imobiliário, pressupondo quecompradores e vendedores possuem informa-ções suficientes sobre o risco de inundação, osdanos diretos, indiretos e intangíveis decorren-tes de inundações, bem como sobre a reduçãodo risco de inundação efetivamente obtidacom a adoção de medidas de controle.

Pressupõe-se, portanto, a incorporação pelomercado imobiliário dos custos infligidos aimóveis localizados em áreas inundáveis, comoos custos de manutenção, recuperação e repo-sição do espaço construído e de seu conteú-do. O método pode ser aplicado em ausênciade medidas de controle de inundações, com-parando-se valores de mercado de imóveis lo-calizados em áreas sujeitas a inundação comvalores de imóveis semelhantes localizados emzonas urbanas equivalentes sob aspectos capa-zes de influenciar o valor do imóvel (infra-es-trutura urbana, acesso, segurança, ...), com adistinção de serem áreas não inundáveis. Adiferença entre os valores de imóveis de carac-terísticas equivalentes, porém localizados emzonas distintas quanto ao risco de inundação,revelaria o custo da inundação ou, em outrostermos, o benefício da redução do risco deinundação em áreas inundáveis.

Uma alternativa de aplicação do métodoseria a de avaliar, ao longo do tempo, a evolu-ção de valor de mercado de imóveis localiza-dos em áreas sujeitas a inundação, antes e apósa adoção de medidas de controle. A hipótesedesse enfoque é a de que a redução de danoscausados por inundações produz uma reduçãoequivalente nos custos de manutenção, recu-peração e reposição de bens da propriedade,usualmente cobertos pelos proprietários. Estaredução de custos seria, em conseqüência, ca-pitalizada no valor da propriedade. O aumen-to do valor da propriedade pode ser utilizadocomo uma aproximação do benefício das me-didas de controle de inundação.

As principais dificuldades de emprego dométodo de análise hedônica decorrem da incer-teza em atribuírem-se diferenças estatísticas even-

tualmente identificadas entre valores de merca-do de bens imóveis a causas relacionadas comprejuízos realizados ou potenciais de inundações.Uma outra limitação do método é sua depen-dência da memória de inundações passadas. Umlongo período sem inundações produz freqüen-temente o efeito de esquecimento ou de negli-gência do risco de inundação e, como resulta-do, a sua provável não incorporação aos valoresde mercado dos bens imóveis expostos.

No método de análise contingente, procu-ra-se construir uns mercados hipotéticos paraavaliar o bem “controle de inundação” junto ahabitantes ou ocupantes de áreas inundáveis.Usualmente com o auxílio de questionários ede painéis explicativos, busca-se fazer emergira disposição da população concernida a pagarpor medidas de controle de inundações. Paratal, é necessário construir cenários hipotéticos,porém plausíveis, de ações de controle de inun-dação e elaborar material explicativo, claro esintético, destinado a público leigo, sobre aredução do risco que se poderá obter com aimplementação de tais ações. É com base nes-ses cenários que a população consultada po-derá revelar sua disposição a pagar.

Como no caso do método de avaliação he-dônica, a avaliação contingente depende damemória de inundações passadas e da percep-ção de risco de inundação por parte da popula-ção concernida. É importante, portanto, com-binar à pesquisa sobre disposição a pagar estu-dos de percepção de risco. Um outro elementometodológico importante, com potencial paraenviesar resultados de emprego do método, é areferência de cobrança que seria hipoteticamen-te adotada para o pagamento da redução dorisco de inundação. A título de exemplo, rela-tam-se dificuldades de expressão da disposiçãoa pagar quando se adota o aumento de impos-tos como base de cobrança. É comum que en-trevistados considerem a carga tributária comoelevada, devendo incluir o financiamento deações de controle de inundação. Não se encon-tram, em conseqüência, dispostos a aceitar umaumento no valor dos impostos.

Métodos de avaliação diretaNos métodos de avaliação direta, busca-se

elaborar uma descrição detalhada e precisa do

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conjunto de impactos gerados por inundações,tomando por base inventários de danos em zo-nas sinistradas (avaliação a posteriori) ou cons-trução de cenários de danos a partir da defini-ção detalhada de patologias causadas por inun-dações (avaliação a priori). Procuram-se estabe-lecer relações funcionais entre os danos de inun-

dações e variáveis hidráulicas associadas à sub-mersão por inundação, tais como a profundi-dade, a duração e a velocidade de escoamentos(Figura 1). A avaliação direta pode compreen-der tanto danos diretos quanto indiretos, em-bora os maiores progressos metodológicos te-nham se dado no caso dos danos diretos.

A construção de curvas de danos versus pro-fundidade de submersão (DPS) é bastante tra-balhosa, quando se considera a variabilidadedos danos expostos, mesmo para um únicosetor, como o habitacional. Um dos trabalhosmais detalhados de construção desse tipo defunção foi realizado para a Inglaterra e Paísde Gales (Penning-Rowsell e Chatterton,1977), para os setores habitacional, comerci-al, de serviços, industrial e agrícola, com baseem análise a priori de danos. Outro exemplo,mais recente, é o trabalho de Dutta et al (2003).

Além das dificuldades de estabelecimentode curvas DPS, deve-se ter em conta sua vali-dade relativamente curta, principalmente emrazão do progresso tecnológico que pode im-plicar em mudanças de padrões e de métodosconstrutivos, bem como de diversidade de ti-pos, modelos e quantidade de bens de conteú-do (móveis, eletrodomésticos, máquinas eequipamentos de escritório ou industriais, etc).Outro fator de desatualização pode estar asso-ciado a mudanças de mercado. Por exemplo,aumentos de valor imobiliário do solo podemconduzir a um uso mais intenso das áreas cons-truídas tanto no setor habitacional como node comércio e serviços, resultando em uma

maior quantidade de bens de conteúdo expos-tos por unidade de área.

Análise de vulnerabilidadeEm termos mais tradicionais, a análise de

vulnerabilidade busca estabelecer uma associa-ção entre a aleatoriedade do evento hidrológi-co (risco hidrológico), os bens expostos, os da-nos potenciais decorrentes da ocorrência de umevento hidrológico de certa magnitude e os re-cursos disponíveis para fazer face ao risco (an-tecedência para agir, capacidade física das pes-soas expostas, meios financeiros para recupe-rar áreas atingidas, cobertura de seguros,...). Noconceito clássico, muitas vezes a vulnerabilida-de é traduzida em termos financeiros, admitin-do-se que quanto maior os prejuízos causadospor uma inundação maior a vulnerabilidade daárea inundável em foco. Esse enforque tradici-onal da análise de vulnerabilidade tem sido fre-qüentemente questionado como redutor ape-nas a sua dimensão econômica e financeira deum problema complexo, com reflexos sociais,políticos e ambientais importantes.

Na atualidade, nota-se uma tendência a avali-ar a vulnerabilidade como uma expressão da fra-

Figura 1. Exemplohipotético de curva dedano versus profundida-de de submersão

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gilidade de um sistema sócio-econômico face aorisco. Nesses termos, a análise visa identificar apropensão do sistema a sofrer danos, em caso daocorrência de um evento raro, e sua capacidadea resistir a um impacto dessa natureza (Hubert eLedoux, 1999). Para Theys e Fabiani (1987), avulnerabilidade mede a capacidade de sistemasinterdependentes a funcionar de forma adequa-da, absorvendo as perturbações exteriores, mes-mo as mais imprevisíveis. Nesse tipo de enfoque,não se utilizam, por exemplo, funções de custocomo as descritas em parágrafos anteriores.

Para Torterotot (1993), a vulnerabilidade éum conceito relativo que exprime a associa-ção entre:

o evento aleatório, expresso por variáveiscomo a profundidade e a duração de sub-mersão, a velocidade de subida das águas;os bens expostos, caracterizados por suaquantidade e natureza;as atividades desenvolvidas na área inun-dável;a fragilidade dos bens à submersão eos recursos disponíveis para limitar osimpactos, tais como o tempo de antece-dência disponível para o alerta, a capaci-dade física e financeira dos responsáveispara agir, a existência de cobertura deseguros, entre outros.

Há, portanto, nesse conjunto de conceitosuma distinção entre a vulnerabilidade econô-mica, traduzida por prejuízos potenciais ourealizados, e a vulnerabilidade social e políti-ca, relacionada à capacidade e organizaçãopara superar a crise. Nesse sentido, são fatoresdeterminantes da vulnerabilidade:

• Fatores intrínsecos:A qualidade da construção e seu estadode conservação;A eventual adoção de medidas construti-vas locais para a redução dos danos cau-sados por inundações (em Inglês, “floodproofing”);A implantação de construções (e.g.: es-truturas hidráulicas, tubulações, edifica-ções), tal que deixem desimpedido o es-coamento das cheias nos principais eixosem que ele ocorre;

• Fatores relacionados à gestão da crise:A existência de sistema de previsão e aler-ta de cheias;A organização social como expressão deuma cultura do risco – convivência comas inundações;Os modos e os meios para a gestão dacrise, claramente definidos em planos decontingência;A capacidade financeira para financiaras ações requeridas durante a inundação;

• Fatores relacionados à gestão pós-crise:A capacidade de reação técnica e os mei-os técnicos para recuperar a infra-estru-tura danificada e restabelecer o funcio-namento dos serviços, em particular osserviços públicos essenciais;A capacidade financeira para financiaras ações requeridas após a inundação;A capacidade organizacional da socieda-de e de suas instituições;A existência de seguros e de mecanismosde coleta e transferência de ajudas.

A análise de vulnerabilidade é usualmenterealizada com base no emprego de indicado-res. Exemplos de indicadores utilizados po-dem ser encontrados em Hubert e Ledoux(1999); exemplos de procedimentos para aanálise de vulnerabilidade podem ser encon-trados em Agence de l’Eau e Ministère del’Amenagement du Territoire et de l’Environ-nement (1998).

AVALIAÇÃO DOS BENEFÍCIOSDO CONTROLE DE INUNDAÇÕESQuando se adota um enfoque custo-benefí-

cio para a análise de medidas de controle deinundação, o benefício é feito igual ao customarginal dos danos evitados. Com base nesseenfoque, admite-se que além de um dado ní-vel de controle (e.g.: evento de projeto paraum tempo de retorno dado), todo esforço su-plementar de redução de risco é mais custosoque o benefício auferido. A Figura 2 ilustra,graficamente, um procedimento de cálculo debenefício de uma medida de controle de inun-dação com o emprego de uma curva DPS.

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No exemplo da Figura 2, os gráficos G1 e G2

são produtos de análise hidrológica e hidráu-lica tradicionais. G1 relaciona valores de vazãoem uma dada seção de um curso d’água a pro-babilidades de excedência e decorre de estu-dos de análise de freqüência de eventos extre-mos. G2 é uma representação gráfica da rela-ção cota-descarga em uma seção de cursod’água. A curva contínua representa a relaçãocota-descarga atual, a curva pontilhada ilustraa nova relação cota-descarga que poderia serobtida em se adotando a medida de controleem foco. Nesse caso, nota-se que a capacidadede transporte de vazões do curso d’água au-menta, o que pode resultar de intervençõesestruturais de canalização, por exemplo.

G3 é uma curva DPS síntese da relação en-tre danos, expressos em termos monetários,e cotas de inundação para a área em estudo,ou seja, trata-se de uma curva representativado conjunto dos danos. O gráfico G4 é a fun-ção de probabilidade de excedência dos da-nos de inundação, para a área em foco, ex-pressos em valores monetários. A integraldessa função, área sob a curva, correspondeà esperança matemática de prejuízos de inun-dação, em base anual. A curva contínua re-presenta a função custo-probabilidade de ex-cedência, para a situação atual, e a curva pon-tilhada a nova função custo-probabilidade de

excedência, caso se implante a medida emestudo. A diferença das integrais das duascurvas fornece o benefício de implantação damedida, também em bases anuais. A integralda função representada pela curva pontilha-da fornece o custo residual resultante de inun-dações que excedem a capacidade de contro-le da medida adotada.

No contexto da análise custo-benefício, aestimativa dos custos de implantação de alter-nativas de controle de inundações apresenta,em comparação com a avaliação dos benefíci-os, uma relativa facilidade de realização, asmaiores incertezas concentrando-se em estima-tivas de custos de:

operação e manutenção de sistemas es-truturais;serviços de emergência;operação de sistemas não estruturaiscomplexos que combinem, por exemplo,sistemas de previsão e alerta com solu-ções difusas de proteção individual emáreas inundáveis chamadas “flood proo-fing”;implantação e manutenção de medidasnão estruturais difusas na bacia hidrográ-fica, como a reconstituição da coberturavegetal, o controle de erosão, a renatu-ralização de cursos d’água, entre outras.

Figura 2. Exemplohipotético de cálculo debenefício de controle deinundação com oemprego de curva DPS

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Machado, M. L. et al. Curvas de danos de inundação versus profundidade de submersão: desenvolvimento de metodologia

Nos próximos parágrafos, descreve-se ametodologia e os resultados obtidos em umapesquisa visando a construção de curvas DPSpor meio de um estudo de caso no Brasil.

DESENVOLVIMENTO DE METODOLOGIAPARA A CONSTRUÇÃO DE CURVASDE DANOS DE INUNDAÇÃO EM FUNÇÃODA PROFUNDIDADE DE SUBMERSÃOConforme mencionado, dois enfoques prin-

cipais podem ser adotados para a construçãode curvas de danos x profundidade de submer-são (curvas DPS): (i) elas podem ser desenvol-vidas a partir de uma síntese de dados sobredanos reais obtidos por amostragem em zonassinistradas (e.g.: Torterotot, 1993), ou (ii) apartir de estimativas de danos hipotéticos, es-tabelecidos a priori, com base em expertise so-bre os efeitos potenciais de inundações sobrea construção e seu conteúdo (e.g.: Penning-Rowsell e Chatterton, 1977).

O método a posteriori permite avaliar, igual-mente, a eficiência dos serviços de socorro eemergência, a capacidade de gestão de crisepelos organismos responsáveis, a efetividadede aplicação dos planos de contingência, quan-do existentes, o comportamento de pessoassinistradas e a capacidade de organização dasociedade civil para fazer face à situação decrise e a gestão pós-crise. Podem ser, igualmen-te, identificadas ações de iniciativa individualvisando a redução de danos, em particularmudanças na construção, como a substituiçãode materiais de revestimento, a instalação decomportas em portas e janelas, bem comomudanças na disposição de móveis, na áreahabitacional e de estoques nas áreas comerci-al e industrial. Ademais, é possível, para even-tos conhecidos, identificarem-se os mecanis-mos de ajuda a pessoas sinistradas, provenien-tes de diferentes fontes e organizações gover-namentais ou não, e estimar a ajuda financei-ra disponibilizada.

Avaliação a priori dá lugar a construção demodelos de danos para diferentes setores apartir de esforços conceituais de reproduçãode processos de aparecimento de impactos. Ascurvas DPS assim obtidas, após validação, cons-tituem-se em modelos gerais, potencialmenteaplicáveis a contextos bastante distintos em um

mesmo país, posto que não existam grandesdiferenças de nível de desenvolvimento entreregiões distintas.

A metodologia empregada no presente tra-balho procura combinar os dois enfoques, ten-do em vista, por um lado, a constituição de umareferência empírica para a construção das cur-vas e, por outro lado, a busca de generalizaçõesque venham a permitir, no futuro, o empregode curvas semelhantes em contextos distintos.Para tal, procedeu-se à identificação de danosdecorrentes de um evento de inundação de re-ferência em uma zona sinistrada, previamenteescolhida, por meio de aplicação de questioná-rios, buscando-se constituir uma amostragemrepresentativa das distintas profundidades desubmersão registradas e dos diferentes padrõesde uso do solo presentes. O dimensionamentoda amostra encontra-se descrito no próximoitem. Uma breve descrição do conteúdo dosquestionários encontra-se no Anexo 1.

No setor habitacional, os danos de inunda-ção estão relacionados, entre outros fatores, àqualidade da construção, à área construída, aoestado de conservação da construção e a seuconteúdo, por sua vez caracterizado pela quan-tidade, tipo, qualidade e idade de bens durá-veis expostos, tais como, móveis, eletrodomés-ticos e elementos de decoração. Como essesfatores encontram-se por sua vez relacionadosao poder aquisitivo dos moradores, espera-seque as curvas DPS apresentem uma certa de-pendência dessa variável. Torna-se, portanto,relevante investigar o comportamento das cur-vas DPS em face das possíveis associações fun-cionais entre os mencionados fatores, poten-cialmente ligados aos danos de inundação, eo indicador de poder aquisitivo. No presentetrabalho, essa investigação foi realizada a par-tir dos dados obtidos pela aplicação dos ques-tionários. A classe sócio-econômica do mora-dor, obtida pela aplicação do Critério Brasil(ABIPEME, 2003), foi empregada como umindicador indireto de poder aquisitivo. O Cri-tério Brasil adota cinco classes sócio-econômi-cas (A, B, C, D e E), em ordem decrescente depoder aquisitivo, tendo por base informaçõesrelacionadas a itens de conforto familiar (pos-se de bens de consumo duráveis), ao grau deinstrução do chefe de família e à utilização deempregados domésticos.

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A aplicação de questionários permitiu adescrição detalhada dos danos à construção ea seu conteúdo. Cada questionário encontra-se associado a uma habitação, por sua vez ca-racterizada pelo padrão construtivo, profun-didade de submersão e classe sócio-econômi-ca de seus habitantes.

Os prejuízos à construção foram estima-dos como custos de reparação dos danos de-correntes da inundação na forma de orça-mentos de reforma. Tendo por base a nor-ma brasileira NBR71721 foram estabelecidos4 níveis distintos de padrão construtivo, asaber: alto, normal, baixo e proletário. Opadrão construtivo é classificado por meiode 9 itens considerados os mais relevantespara a caracterização da qualidade da cons-trução: os tipos predominantes de revesti-mento de paredes externas e internas daconstrução, cozinha e banheiros, os pisos eacessórios para a cozinha e os banheiros e omaterial predominante de portas e janelas.

A avaliação dos prejuízos ao conteúdo dashabitações teve um componente mais signi-ficativo de análise a priori. Para cada classesocial, estabeleceram-se a priori projetos tí-picos de habitação (plantas baixas) e padrõesde conteúdo (móveis, eletrodomésticos, ele-mentos de decoração, etc.). As plantas bai-xas foram construídas tendo por base proje-tos típicos de conjuntos habitacionais desti-nados a distintas faixas de renda balizadospor uma investigação empírica sobre a dis-tribuição de áreas construídas em cada clas-se social.

O conteúdo das habitações foi estabeleci-do tendo por base o próprio Critério Brasil epesquisas de distribuição de preços de merca-do de móveis e eletrodomésticos novos. Osdados empíricos obtidos pela aplicação dosquestionários permitiram avaliar a pertinênciados padrões estabelecidos, corrigindo-os quan-do necessário. A estimativa dos danos ao con-teúdo, em função de distintas profundidadesde submersão baseou-se em curvas de susceti-bilidade à inundação propostas por e Penning-Rowsell e Chatterton (1977). Os valores resi-duais dos bens do conteúdo das habitaçõesforam estabelecidos com base em sua vida útile em seu ciclo de renovação em função dopoder aquisitivo de cada classe social.

APLICAÇÃO DA METODOLOGIAÀ CIDADE DE ITAJUBÁ (MG)O município de Itajubá apresenta grande

vulnerabilidade a inundações, tendo a maiorparte de sua área urbana localizada na planí-cie de inundação do rio Sapucaí e uma parce-la significativa da população urbana, de cercade 77.000 habitantes (a população total domunicípio, segundo o censo IBGE de 2000, éde 84.135 habitantes), residindo em áreas fre-qüentemente inundáveis – estima-se em cercade 30.000 habitantes da população residentenessas áreas (Lima, 2003). A cidade localiza-sena planície de inundação do rio Sapucaí, noSul de Minas Gerais, a cerca de 500 km de BeloHorizonte. A Figura 3 mostra a localização dacidade na bacia hidrográfica o rio Sapucaí, cujaárea de drenagem até uma estação fluviomé-trica localizada a montante da área urbana éde cerca de 800 km2.

Ao longo dos últimos 128 anos registraram-se em sua área urbana treze ocorrências deinundações de vulto (IGAM, 1999). Durante acheia de janeiro de 2000, cuja inundação re-sultante serve de referencia ao presente estu-do, mais de 70% da área urbana foi inundada,em alguns locais com profundidades de sub-mersão de até 3 metros e duração superior atrês dias. Registraram-se quatro mortes e cer-ca de 20.000 desabrigados. O tempo de retor-no estimado para esse evento foi de 100 anos(Vianna et al, 2001). As Figuras 4 e 5 ilustram,respectivamente, imagens das inundações de1919 e de 2000.

A cidade de Itajubá foi escolhida, junto comSanta Rita do Sapucaí, como uma das primei-ras cidades para a aplicação da metodologiaacima descrita, tendo em conta seu nível dedesenvolvimento, a diversidade de ocupaçãourbana que apresenta e as características dainundação de 2000. Em agosto de 2002, reali-zou-se a aplicação sistemática de 469 questio-nários no setor habitacional e cerca de 200 nossetores de comércio, serviços e indústria, to-dos concebidos e aplicados segundo a meto-dologia aqui descrita.

Para o dimensionamento da amostra, par-tiu-se do mapa da área inundada pelo eventode referência de janeiro de 2000, produzidopela empresa Companhia de Saneamento de

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Figura 3. Mapa da bacia hidrográficado rio Sapucaí, em Itajubá.

Escala aproximada: 1:515.000Figura 4. Itajubá: foto dainundação de 1919Fonte: IGAM, 1999

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Figura 5. Itajubá: foto dainundação de 2000Fonte: Defesa Civil, 2000.

Minas Gerais (COPASA, 2001), identificando-se, em cada quarteirão, o intervalo de varia-ção da profundidade de submersão. Dadoscensitários e informações fornecidas pela Pre-feitura Municipal de Itajubá foram utilizadoscomo referência de variação do nível de ren-da da população em cada quarteirão. A amos-tra foi dimensionada, a priori, adotando-secomo diretriz a aplicação de, no mínimo, doisquestionários por quarteirão. A escolha dasunidades a serem entrevistadas foi feita, emparte, pelo livre-arbítrio do entrevistador, fi-cando, entretanto, na dependência da dispo-nibilidade do morador para responder o ques-tionário. De forma a evitar vieses de amostra-gem, um controle diário da distribuição dasamostras foi realizado, tendo por critérios aclasse social dos entrevistados, as profundida-

des de inundação e a localização espacial dasunidades amostradas na área inundada.Como a amostragem estendeu-se por três se-manas, esse controle diário permitiu corrigireventuais sobre ou subamostragens. Todos osquarteirões atingidos pela inundação foramamostrados.

As Figuras 6 e 7 ilustram, para o setor habi-tacional, a distribuição percentual de classessociais amostradas e distribuição percentual daamostragem por intervalos de profundidadede submersão e por classe social. A similitudeentre as distribuições sugere a adequação daamostragem, mesmo para profundidades su-periores a 2,0 m. Nota-se a ausência de amos-tragem de economias da classe E, um resulta-do que é típico de cidades de médio porte emáreas mais desenvolvidas, em Minas Gerais.

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Figura 6. Itajubá: percentualde questionários por classesocial sobre base de 469questionários aplicados nosetor habitacional, em agostode 2002.

Figura 7. Itajubá: percentualde questionários por classesocial e profundidade desubmersão sobre base de 469questionários aplicados nosetor habitacional, em agostode 2002.

Figura 8. Distribuição depadrões construtivos dasresidências e a classe sócio-econômica dos moradores nacidade de Itajubá, segundoamostra constituída por 469questionários aplicados nosetor habitacional, em agostode 2002.

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Análises de distribuição de qualidade daconstrução (Figura 8) e de área construída(Figura 9), por classe social, evidenciaram a

correlação entre essas variáveis e as classes so-ciais, validando as hipóteses básicas do traba-lho e a proposta metodológica.

Figura 9. Distribuição de freqüência de valores de área construída por classesócio-econômica, das habitações em Itajubá, segundo amostra constituída por469 questionários aplicados no setor habitacional, em agosto de 2002.

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Machado, M. L. et al. Curvas de danos de inundação versus profundidade de submersão: desenvolvimento de metodologia

Com base nesses resultados, procedeu-se àconstrução das curvas DPS, com danos expres-sos em R$ por área construída da habitação,em m2. Foram construídas curvas individuaispara cada classe social. Porém, considerando-se a dispersão relativamente elevada dos dados,em cada classe social, a aparente proximidadede valores de danos entre classes sociais vizinhas,

e os benefícios potenciais para sua aplicaçãofutura de uma eventual redução do número decurvas, realizaram-se análises estatísticas (testesde hipótese, análise de variância) de forma averificar se os danos obtidos são estatisticamen-te distintos entre classes sócio-econômicas. Es-tas análises permitiram agrupar os danos relati-vos às classes A e B e C e D (Figuras 10 e 11).

Figuras 10. Itajubá: curvas dedanos x profundidade desubmersão para o setorhabitacional e classes sócio-econômicas A e B

Figuras 11. Itajubá: curvas dedanos x profundidade desubmersão para o setorhabitacional e classes sócio-econômicas C e D

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A despeito das curvas mostradas nas Figu-ras 10 e 11 constituírem-se em uma mescla dedados empíricos (danos à construção) e demodelos teóricos (danos ao conteúdo), a dis-persão mostra-se elevada, ilustrando as incer-tezas associadas a esse tipo de metodologia.

As curvas DPS obtidas mostram danos relati-vamente elevados segundo a profundidade desubmersão. A título de exemplo, para a profun-didade 1,0 m, supondo-se uma residência com100 m2 de área construída, o prejuízo diretototal (construção e conteúdo) seria de aproxi-madamente R$ 13.100,00, no caso das classes Ae B, ou de R$ 6.900,00, para as classes C e D.

Esses resultados são indicações prelimina-res para orientar questões subseqüentes quedevem ser investigadas:

um esforço de verificação desses resulta-dos com base em prejuízos declarados pe-los moradores durante a aplicação dosquestionários – essa base de dados foi ex-plorada por Lima (2003), restando ela-borar-se um estudo comparativo sobre otema;a investigação da hipótese de que rara-mente os habitantes, conseguem, em cur-to prazo (menos de 5 anos) repor todosos prejuízos causados por inundações.

CONCLUSÕESA avaliação dos impactos sócio-econômicos

causados por inundações constitui-se em fon-te fundamental de informações sobre os pre-juízos causados, sobre a qualidade e a eficiên-cia das instituições públicas e das organizaçõesprivadas para fazerem face a situações de crisee de pós-crise decorrentes de eventos catastró-ficos de inundação e sobre as alternativas e asoportunidades de redução de riscos e de pre-juízos, tendo por origem esse tipo de evento.

Entre as metodologias de avaliação dessetipo de impactos, encontram-se as curvas dedanos versus profundidade de inundação, ins-trumentos mais bem adaptados à estimativaeconômico-financeira de custos decorrentes dedanos diretos de inundações. Esse tipo de cur-va é instrumento bem adaptado à análise cus-to-benefício de alternativas de controle deinundação. Porém, o tipo de informação ge-rada no decorrer de sua aplicação pode con-tribuir, de forma significativa, para o empregode outros instrumentos e políticas visando ocontrole de inundações e a redução de seusimpactos, tais como:

o aprimoramento de instrumentos degestão urbana, tendo em conta os riscosde inundação, como o plano diretor ur-bano, o zoneamento urbano e a lei deuso do solo que incorporem o risco deinundação;o aprimoramento de instrumentos de ges-tão da crise por meio da elaboração de pla-nos de contingência e do aperfeiçoamen-to dos meios de ações de defesa civil;o aprimoramento de metodologias paraanálise de risco e de vulnerabilidade ainundações.

No presente artigo, apresentaram-se umametodologia para o desenvolvimento de cur-vas DPS e alguns resultados de sua aplicaçãoem um estudo de caso na cidade de Itajubá,Minas Gerais, Brasil. A metodologia e os resul-tados apresentados ilustram, ainda que parci-almente, as afirmativas que vêem de ser enun-ciadas. Aplicações subseqüentes dessas curvaspara a avaliação de algumas alternativas decontrole de cheias para o caso da cidade deItajubá deverão, em futuro próximo, fornecerelementos para uma discussão mais aprofun-dada dos benefícios, das vantagens e das limi-tações desse tipo de enfoque.

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Machado, M. L. et al. Curvas de danos de inundação versus profundidade de submersão: desenvolvimento de metodologia

Para a obtenção de dados empíricos foram desen-volvidos quatro modelos de questionários segundo osetor a ser investigado: habitação, comércio, serviçose indústria. Esses questionários possuem, em comum,a identificação do entrevistado, as informações geraissobre a inundação, a caracterização da construção edos danos a ela causados pela inundação e a percep-ção de risco. O questionário do setor de comércio pro-cura detalhar os danos aos bens expostos, ao estoquee a equipamentos para diferentes tipos de estabeleci-mentos (e.g.: farmácias, supermercados, lojas de fer-ragens, lojas de roupas, lojas de eletrodomésticos). Oquestionário do setor de serviços interessa-se pelosdanos aos diferentes tipos de equipamentos e mobiliá-rio (e.g.: consultórios médicos e odontológicos, cabe-leireiros, restaurantes, bancos).

Apresenta-se aqui, a título de exemplo, a estrutura doquestionário aplicado ao setor habitacional. O questioná-rio encontra-se dividido em 10 seções, compreendendo:

1: identificação e endereço do entrevistado;2: informações gerais necessárias à identifica-ção da classe social do entrevistado (bens deconsumo duráveis da família e grau de instruçãodo responsável pelo domicílio), tempo de resi-dência naquele endereço, composição e faixasetárias da família;3: caracterização da parte externa da constru-ção: tipo (e.g.: casa individual, casa germinada,edifício), número de pavimentos, idade da cons-trução, estado de conservação da construção,área construída, material de construção predo-minante, tipo de revestimento, materiais de por-tas e janelas;4: caracterização da parte interna da construção:número de cômodos, área e materiais de peças

da cozinha e dos banheiros, materiais de reves-timento e sistema de aquecimento de água;5: informações gerais sobre a inundação, com-preendendo as profundidades de submersão in-terna e externa da construção, a duração da inun-dação, a antecedência com a qual a família foialertada da iminência da inundação, as atitudesadotadas após o alerta;6: caracterização dos danos à construção pormeio da caracterização dos tipos de danos (e.g:danos à estrutura, às fundações, aos materiaisde revestimento) e da quantificação dos danos(e.g.: área de revestimento atingida, comprimentode cabos de eletricidade substituídos);7: caracterização dos danos ao conteúdo dashabitações e a veículos motorizados (e.g: danosa eletrodomésticos e mobiliário, danos a objetosde uso pessoal)8: caracterização dos danos pessoais, envolven-do danos corporais e emocionais;9: estimativa, pelo entrevistado, dos prejuízossofridos, do valor dos bens expostos, na atuali-dade e da ajuda financeira eventualmente rece-bida logo após a inundação;10: percepção de risco de inundação pelo qualse busca investigar o conhecimento do entrevis-tado sobre o fenômeno (e.g.: freqüência e prin-cipais causas de inundações na área em foco),as iniciativas individuais ou coletivas para redu-zir os prejuízos de inundações (e.g.: alteraçõesna construção, deslocamento de bens de maiorvalor) e uma classificação do risco de inundaçãopor comparação com outros riscos do cotidiano(e.g: acidentes de trânsito, assaltos e roubos, in-cêndios).

Anexo 1Conteudo dos questionarios

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Maria Léa Machado, Nilo Nascimento, Márcio Baptista, Március Gonçal-ves, Adriano Silva, Joelma Costa de Lima, Rodrigo Dias, Anderson Silva,Ébio Machado, Wilson Fernandes UFMG - Departamento deEngenharia Hidráulica e Recursos Hídricos. [email protected]

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