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Curso Introdução à experiência intelectual de Gilles Deleuze: 1.Parte: Em direção à Diferença e Repetição Ministrado no Departamento de Filosofia Universidade de São Paulo Primeiro semestre de 2012 11 aulas Professor: Vladimir Safatle

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  • Curso Introduo experincia intelectual de Gilles Deleuze:

    1.Parte: Em direo Diferena e Repetio

    Ministrado no Departamento de Filosofia Universidade de So Paulo Primeiro semestre de 2012

    11 aulas

    Professor: Vladimir Safatle

  • Introduo experincia intelectual de Gilles Deleuze Aula 1

    Duas imagens

    Creio que todos vocs conhecem este quadro. Trata-se de Las meninas, de Velsquez. Este quadro teve uma grande importncia nos debates prprios filosofia francesa contempornea, j que atravs de um comentrio a seu respeito que Michel Foucault abre esta que uma das obras mais conhecidas do pensamento francs do ps-guerra: As palavras e as coisas.

  • A escolha de Foucault em comear com este quadro no deixava de ter uma certa ironia. Basta lembrarmos que ele foi pintado em 1656. Aqueles que leram A histria da loucura sabem muito bem o que esta data representa. 1656 tambm a data do edito de criao do Hospital Geral e, conseqentemente, data do incio desta experincia de internamento da loucura que ir marcar, de maneira, definitiva o modo de partilha entre a razo e seu Outro. Assim, atravs do comentrio do quadro de Velsquez, Foucault ir descrever a figurao de um processo semelhante ao grande internamento analisado em A histria da loucura. Trata-se do incio deste processo de constituio do sujeito atravs da excluso do que no se submete mais a um regime de saber marcado pela disponibilizao do objeto atravs da representao. No caso do quadro de Velsquez, o que chama a ateno de Foucault fundamentalmente o fato dele ser a figurao esttica de um corte epistemolgico, dele ser a representao da representao clssica1, j que seu motivo central o prprio ato de representar, o prprio processo de ordenao do campo de visibilidade. Neste sentido, ele marca o advento da episteme clssica, toda ela fundada na noo de representao, e a obsolescncia da episteme em voga da Renascena. Mas, tal como em A histria da loucura, tal corte implica excluso daquilo que, para o regime de saber prprio razo moderna, desprovido de verdade. O objeto desta excluso ser a crena na capacidade cognitiva da semelhana. isto que Foucault tem em mente ao dizer que o espao aberto pelo quadro de Velsquez solidrio de um vazio essencial:

    O desaparecimento necessrio daquilo que funda a representao daquele a quem ela assemelha-se e daquele aos olhos de quem ela apenas semelhana. O prprio sujeito que o mesmo foi elidido. E finalmente livre desta relao que a aprisionava, a representao pode se oferecer como pura representao2.

    Ou seja, o sujeito pode enfim nascer como sujeito da representao, como aquele que est no interior do campo de visibilidade do saber. Mas este estar no deixa de ter sua peculiaridade. O sujeito moderno traz uma estrutura peculiar do estar no mundo. Analisando os motivos internos ao quadro, Foucault lembra que um de seus eixos a constituio de um lugar, lugar fundado na intercambialidade absoluta dos objetos que porventura iro ocup-lo. O assunto central do quadro no est apenas ausente. Ele ser encarnado a todo momento que o quadro for visto. Mas encarnado sempre no interior de uma relao de representao, j que uma imagem est l: a imagem dos soberanos Felipe IV e sua mulher que aparece ao fundo, em um espelho. Espelho que: restitui a visibilidade quilo que permanece fora de todo olhar3. Mas esta restituio expe a verdade de toda imagem especular: a verdade de ser uma imagem formadora e conformadora, ao invs de simples dispositivo de descrio de semelhanas. Este espelho no o espelho que apenas reproduz o objeto que a pintura j apresenta. Ele espelho que se coloca como nica condio de possibilidade do objeto a ser apresentado. A identificao entre o olhar de quem contempla o quadro e a imagem do espelho , por um lado, abolio de toda relao de semelhana; por outro, constituio de uma nova relao de representao. Relao na qual o sujeito no aparece apenas como fundamento

    1 FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 31 2 idem, p. 31 3 idem, p. 23

  • soberano de toda visualidade, mas como fundamento apenas condio de submeter-se a um regime amplo de visibilidade, a uma ordem da representao que lhe ultrapassa. Submeter-se a esta ordem, ser capaz de reconhecer processos de relao e de ordenamento, condio para que o olhar possa ser constitudo com tal e desempenhar sua funo no interior do quadro. No entanto, no esqueamos como este fundamento um estranho fundamento negativo. Ele no est l, posto diretamente no campo de visibilidade. Ele est pressuposto, sem nunca poder estar totalmente posto. O sujeito moderno se manifesta assim como o que um dia Hegel chamar de negatividade (ele o que no pode ser integralmente posto, ele o que no se confunde completamente com suas prprias representaes) e o que Deleuze chamar de transcendncia (ele nunca integralmente fenmeno). Uma negatividade e uma transcendncia que, ao menos aos olhos de Deleuze, seriam astcias supremas da representao. Seriam a maneira do pensar representativo pr um limite, pr um para alm da representao, mas apenas para absorv-lo e cal-lo. Apenas para dizer que o fora da representao caracterizado exatamente por isto, por no poder ser representado, por ser um limite da representao, por no ter, em si, nenhum princpio positivo, nenhum princpio outro de organizao. a representao que fornece a ordem prpria ao pensar com suas regras e seus processos de recognio. O pensar no saberia se mover em uma ordem outra. Tudo se passa como nestas sonatas onde a dissonncia aceita, mas condio de permitir a reiterao, o retorno uma ordem que aceita o que lhe nega apenas para finalmente poder triunfar.

  • Este, por sua vez, um quadro menos conhecido. Trata-se de Trptico: estudos do corpo humano, pintado por Francis Bacon em 1970. Ele um dos principais quadros analisados por Gilles Deleuze em um livro dedicado obra de Bacon: Lgica da sensao. No creio estar incorrendo em erro se afirmar que, para Deleuze, este quadro tem, para a contemporaneidade, a mesma funo que Las meninas teve para aquilo que Foucault chama de Idade Clssica. Ele descreve uma operao que diz respeito aos modos de posio do que serve de fundamento visualidade. Ele diz respeito, tal como em Las meninas, encenao de um modo de funcionamento do saber que servir de vetor de desenvolvimento para a os padres de racionalidade de toda uma poca. Tais colocaes nos foram a perguntar: quais os vetores de caracterizam, ao menos segundo Deleuze, a poca de Estudos do corpo humano? Notemos inicialmente que, se no quadro de Velsquez, a estrutura pictural visa apresentar o lugar do sujeito como fundamento transcendente, no caso de Bacon trata-se de apresentar este fundamento que s pode aparecer l onde a dissoluo do Eu toma a cena. Esta no apenas dissoluo de um Eu determinado em sua identidade e individualidade. Ela a dissoluo de todo um padro de ordenamento dependente da aceitao tcita do princpio de identidade e dos modos tradicionais de determinao de individualidades. Deleuze partilha um grande diagnstico de poca que podemos encontrar em autores tais distintos entre si como Adorno, Foucault, Lacan, Derrida, Lyotard. Diagnstico aqui a palavra mais correta porque se trata de identificar as causas de um sofrimento social. Nossa poca sofre, mas ela no sofre, por exemplo, da indeterminao advinda da perda de relaes substanciais e seguras que nos permitiam saber claramente nossos papis sociais. Se quisssemos utilizar uma metfora ilustrativa de Deleuze, diramos: ela no sofre de desterritorializao. Ela

  • sofre por no suportar mais as amarras da identidade, da individualidade, do Eu. deste sofrimento que, ao menos segundo Deleuze, os quadros de Bacon seriam feitos. Vejamos, por exemplo, como Deleuze pensa os quadros de Bacon. H sempre um processo de isolamento, de extrao que permite construir um lugar no qual a figura pode ser exposta em sua nudez. No h estruturas de relaes (fundo/forma, claro/obscuro, profundidade de cores que permitiram variaes e gradaes, motivos subordinados). O que ocupa o resto do quadro so cores imveis e absolutamente uniformes. Por isto, Deleuze pode afirmar no haver modelo a representar, nem histria a contar4. Aqui, o isolamento aparece como garantia de ruptura com a narrativa e a representao. Pois estas figuras no estabelecem relaes de figurao (embora no possamos dizer que elas so exatamente abstraes). Sabemos que tais figuras so corpos, mas corpos que fazem um grande: esforo sobre si mesmos para advir Figura5, como um corpo que tenta escapar de si mesmo atravs de um de seus rgos. Deleuze sensvel, por exemplo, ao fato dos corpos das pinturas de Bacon no terem exatamente rostos, mas cabeas, como se seu projeto de retratista fossa o de: desfazer o rosto, reencontrar ou fazer surgir a cabea sob o rosto6. Em Mil Plats, quando dedicar um captulo ao rosto, Deleuze e Guattari diro: O rosto tem um grande futuro, condio de ser destrudo, desfeito. Em direo ao a-significante, ao a-subjetivo7. Se pensarmos como nossa ideia de individualidade est visualmente vinculada ao rosto e a seus traos, podemos imaginar o que significa tal processo de dissoluo. Ele , no fundo, procura da imagem em apreender uma zona objetiva de indiscernibilidade, zona de indecidibilidade que nos remete a um estranho fator comum anterior a constituio de individualidades. Fator comum entre o homem e o animal, entre o corpo e a carne (viande). Esta zona objetiva de indiscernibilidade anterior a toda constituio de individidualidades, fator comum que indica uma unicidade anterior a toda diferena ordenada pela representao , no fundo, o verdadeiro objeto da filosofia de Gilles Deleuze. Que toda a experincia intelectual do filsofo da diferena, do nomadismo, da desterritorializao seja animada pela procura das condies para pensar a unicidade, esta unicidade que est em ns e cuja potncia nos atravessa: eis algo que, como veremos no decorrer deste curso, no deve mais nos surpreender. Veremos como, neste sentido, devemos seguir uma indicao preciosa de Alain Badiou: O problema fundamental de Deleuze no certamente liberar o mltiplo, dobrar o pensamento a um conceito renovado do Uno8. Mas se ns voltarmos a Bacon, veremos que as condies para pensar tal zona de indiscernibilidade esto vinculadas a um certo resgate do que Deleuze chama de sensao, ou seja, isto que: age imediatamente sobre o sistema nervoso, que a carne9. Ele chega mesmo a falar da violncia de uma sensao que no passa pela estruturao do diverso da experincia pela forma do conceito, que no passa pela espontaneidade de uma subjetividade constitutiva com suas formas a priori, que, por isto, pode se manifestar como agente de deformao dos corpos.

    4 DELEUZE, Logique de la sensation, Paris, Seuil, 2002, p. 12 5 idem, p. 23 6 idem, p. 27 7 DELEUZE e GUATARRI, Mille plateaux, Paris: Seuil, 1980, p. 270 8 BADIOU, Deleuze: o clamor do ser, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997, p. 18 9 DELEUZE, Logique de la sensation, p. 39

  • No seria difcil enxergar, neste recurso ao imediato da sensao que parece descartar o trabalho de um conceito que sempre ser confundido com a representao, alguma evidente forma de irracionalismo? Ou no seria melhor dizer que o sensvel impe sua lgica, que h uma lgica da sensao que exigiria uma remodelao da esttica transcendental, que libera o sensvel de sua domesticao ou unificao conceitual10? Uma remodelao que exigiria nos despedirmos de um conceito de sujeito que Francis Bacon parece nos dizer que ele j no nos diz mais respeito. Uma remodelao que seria condio sine qua non para apreendermos o ser do sensvel11 (notemos esta construo, pois ningum, em filosofia, fala impunemente do ser). Sugiro levarmos a segunda hiptese a srio e descartarmos a primeira. Devemos descart-la com a tranqilidade de um leitor atento de Deleuze, Bento Prado Jnior. O mesmo Bento Prado que respondeu, nos seguintes termos, a uma pergunta sobre o pretenso irracionalismo do filsofo francs: Irracionalismo um pseudoconceito. Pertence mais linguagem da injria do que da anlise. Que contedo poderia ter, sem uma prvia definio de Razo? Como h tantos conceitos de Razo quantas filosofias h, dir-se-ia que irracionalismo a filosofia do Outro. Ou pastichando uma frase de mile Brhier que, na ocasio, ponderava as acusaes de libertinagem, poderamos dizer: on est toujours lirrationaliste de quelquun12. Da peculiariedade da experincia intelectual de Gilles Deleuze Dito isto, devemos nos perguntar sobre uma questo de mtodo de leitura: qual a melhor maneira de abordar a experincia intelectual de Gilles Deleuze? De fato, esta no uma questo simples, j que uma anlise de sobrevo parece nos apresentar uma obra fragmentada e dispersiva. Grosso modo, conseguimos enxergar trs grandes fases. A primeira comea com seu primeiro livro, publicado em 1953, quando o autor tinha ento 28 anos. Trata-se de uma tese de mestrado, dirigida por Jean Hyppolite, sobre David Hume intitulada Empirismo e subjetividade. Durante oito anos, Deleuze no publica nada. Segue-se ento uma seqncia de monografias que parecem firm-lo como um historiador atpico da filosofia. So textos sobre Nietzsche, Kant, Bergson e Spinoza, isto alm de dois livros sobre escritores: Marcel Proust e Sacher-Masoch. Historiador atpico porque, a primeira vista, difcil identificar o que vincularia autores aparentemente to distantes entre si como Hume, Nietzsche, Spinoza, Kant e Bergson. Mas se colocarmos um pouco de lado Kant, j que, segundo o prprio Deleuze, tratava-se de fazer um livro sobre um inimigo sobre quem procuro mostrar como ele funciona, quais so seus mecanismos13, veremos uma certa ligao patrocinada pela possibilidade recuperao de uma filosofia da imanncia capaz de ser a elaborao escrita de uma forma singular de intuio14. Como ele mesmo dir: Desenhar um plano de imanncia, traar um campo de imanncia, todos os autores dos quais me ocupei fizeram isto (mesmo Kant quando ele denuncia o uso transcendental das snteses, mas ele se limita experincia possvel e no experimentao real)15. 10 PRADO JR., Erro, iluso, loucura, So Paulo, Editora 34, 2004, p. 247 11 DELEUZE, Diffrence et rptition, p. 182 12 PRADO JR., idem, p. 256 13 DELEUZE, Pourparlers, Paris, Minuit, p. 14 14 BADIOU, idem, p. 47 15 DELEUZE, idem, p. 199

  • Mas por que afinal a contemporaneidade precisaria reconstruir as condies para pensar a imanncia? A resposta s ser dada de maneira articulada atravs de dois livros que marcam a sistematizao daquilo que estava em gestao durante todo este longo trajeto na histria da filosofia. So eles: Lgica do sentido e, principalmente, Diferena e repetio, sua tese de Doutorado de Estado orientada por Maurice de Gandillac e publicada em 1969 (a tese suplementar era Spinoza e o problema da expresso, orientada pelo cartesiano Ferdinand Alqui). Estes so, do ponto de vista da elaborao filosfica, os dois livros mais importantes de Deleuze e aqueles que determinam o que poderamos chamar de um programa filosfico marcado sobretudo por aquilo que o filsofo francs entende por um anti-hegelianismo generalizado. A crtica ao hegelianismo , no fundo, a crtica a uma tradio filosfica (cujas razes se encontrariam em Plato, mas que englobaria ainda Descartes) incapaz de escapar das amarras de um pensamento da representao e de alcanar a identidade imediata. Impossibilidade, que no caso de Hegel, consistiria em criticar a representao, em insistir em seus limites, contradies e antinomias, insistir na negatividade que tais limites e contradies acarretam, mas sem ser capaz de pr uma outra ordem positiva em seu lugar, sem ser capaz de realmente ultrapassar as dicotomias e os lugares que o pensamento articula (essncia/aparncia, necessidade/contingncia, objetividade/subjetividade, forma/contedo). Uma impossibilidade de ultrapassar lugares que Deleuze chama de nomos sedentrio. Plato, Descartes e Hegel: filsofos do nomos sedentrio. No entanto, esquecemos muitas vezes como esta crtica sobretudo moral, at porque, um pouco como em Nietzsche, a crtica do conhecimento e a critica das categorias lgicas do pensar (identidade, diferena, unidade, repetio) tm sempre um fundamento moral, isto no sentido delas visarem um certo ethos por trs dos modos de operao da razo. De onde vem o medo por aquilo que no se submete ao conceito? De onde vem o medo do caos? Por que compreendemos a diferena como negatividade que pode ser superada pelo auto-movimento do conceito? De onde vem esta paixo pelo sistema e pela totalidade? Por que continuamos a falar em alienao quando estamos em uma posio na qual no mais nos reconhecemos, j que se alienar significa perder uma identidade, exilar-se de uma essncia, ou seja, insistir na necessidade de no abandonarmos a noo mesma de essncia? Por que compreendemos as individuaes como produo de identidades estveis e fixas? Por que ainda estamos aferrados ao sujeito quando vemos se abrir diante de ns uma zona de indiscernibilidade anterior formao mesma da dicotomia sujeito-objeto? Todas estas perguntas recebero respostas ligadas, sua maneira ao campo da moral. Trata-se de um ethos que deve se afirmar atravs das operaes da razo, trata-se de, no fundo, validar uma forma de vida. Por exemplo, uma das operaes filosficas maiores de Lgica do sentido e Diferena e repetio a recuperao da noo de simulacro, ou seja, desta imagem que no representao de um modelo, no cpia de um modelo, mas cpia da cpia e que, por isto, contesta a relao de subordinao entre cpia e modelo. Mas o questionamento da relao ao modelo , no fundo, questionamento da essncia do fundamento, j que no posso mais garantir uma partilha das imagens, quais imagens tm relao ao fundamento e quais no o tem, quais so boas imagens e quais so imagens ruins. At porque fundar aqui estabelecer o existente atravs da sua relao a um padro que me permite orientar-me no pensamento. Da porque a essncia do mal no a posio de uma nova ordem, mas a

  • confuso, o embaralhamento, a impossibilidade de julgar, a profuso dos simulacros. Ou seja, atravs da crtica ao simulacro, Plato procuraria afirmar uma viso moral do mundo. Ns havamos partido de uma questo: por que afinal a contemporaneidade precisaria reconstruir as condies para pensar o imediato e a imanncia? A resposta de Diferena e repetio e Lgica do sentido ser: para escapar do hegelianismo e de sua maneira de desqualificar o imediato atravs de um pensamento da negatividade. Veremos tudo isto com calma no interior do nosso curso. No entanto, no deve ter escapado a vocs o carter circular e desonesto da minha resposta. Por que a contemporaneidade precisa reconstruir as condies para pensar o imediato? Para escapar de uma forma de pensar que nos impede de pensar o imediato. No entanto, Deleuze tem uma resposta melhor do que esta. Podemos mesmo dizer que tal resposta a essncia do que devemos chamar de segunda fase do pensamento deleuzeano, esta que comea em 1972 e que marcada pela sua colaborao com Felix Guatarri. A obra central desta fase Capitalismo e esquizofrenia com seus dois grandes volumes: O anti-dipo, de 1972, e Mil plats, de 1980. Para alm de seu carter militante e polemista, o que devemos guardar destes livros a maneira peculiar com que eles tentam articular a reflexo filosfica anterior de Deleuze a um diagnstico social de larga escala a respeito do capitalismo e de suas formaes scio-culturais. sua maneira, Deleuze quer dizer que o hegelianismo, suas formaes e sua maneira de insistir na identidade, no conflito que deve ser superado, na negatividade reativa so, no fundo, a ideologia do ltimo estgio do capitalismo avanado. Este capitalismo marcado pela territorializao e pela produo regulada de identidades que na mesma poca leva Theodor Adorno a afirmar: a identidade a forma originria da ideologia.. A crtica da razo se transforma, a partir de ento, em crtica social. desta forma que devemos compreender o sentido maior de O anti-dipo. O ttulo no poderia ser mais claro: trata-se partir da crtica deste dispositivo de socializao do desejo que a psicanlise chama de complexo de dipo. Mas trata-se de partir dele a fim de lembrar como o modo de socializao no primeiro ncleo de interao social, ou seja, na famlia, determinar os modos de interao em esferas mais amplas da vida social (as instituies, o Estado, o Capital). Ao colocar a reflexo sobre o desejo e seu destino no cerne de uma reflexo sobre o social, Deleuze no fazia outra coisa que realizar aquilo que ele havia afirmado em seu primeiro livro, sobre David Hume: s uma psicologia dos afetos pode constituir a verdadeira cincia do homem16. O que mostraria a coerncia profunda entre o passional e o social. A riqueza de O anti-dipo est exatamente aqui, no fato de ter realizado o projeto de pensar a natureza dos vnculos entre o pathos e o socius a partir de uma perspectiva de tentativa de renovao da crtica ao capitalismo animada pelos movimentos de maio de 68. Vnculos estes que permitiro uma das operaes centrais dos ltimos quarenta anos: a elevao do corpo condio de dispositivo central da poltica. Transformar seu corpo em espao de manifestao da liberdade, espao de afirmao de um projeto de estetizao de si, de construo plstica e performativa da multiplicidade. Conjugar a plasticidade do corpo. Todas estas colocaes aparecem para nossa sensibilidade contempornea como dotadas de forte potencial disruptivo. Como se tivssemos deslocado nossas aspiraes de reforma social para dentro do corpo, como se tivssemos transformado o impulso de reforma social em reforma do corpo e de suas potencialidades. Tais processos seriam impossveis sem O anti-dipo. 16 DELEUZE, Empirisme et subjectivit, p. 1

  • Mas voltemos psicanlise. Durante anos, Deleuze fora um leitor atento da Freud, Melanie Klein, Lacan, Winnicott, entre outros. Basta ver a preciso de um trabalho sobre o masoquismo como Apresentao de Sacher-Masoch, assim como pginas brilhantes dedicadas reflexo sobre a pulso de morte em Diferena e repetio e sobre os objetos parciais em Lgica do sentido. Deleuze seguira de perto a produo de Jacques Lacan, que chegou mesmo a convid-lo a fazer parte de sua Escola Freudiana de Psicanlise. No entanto, a partir de O anti-dipo esta posio de acolhimento da psicanlise se inverte radicalmente. Um trajeto extremamente semelhante acontecer com Michel Foucault a partir de Histria da sexualidade. Nos dois casos uma relao inicial de aproximao dar lugar a uma compreenso da psicanlise como fundamento dos processos de reproduo social e de misria afetiva no capitalismo. No caso de Deleuze, a crtica era clara: a maneira com que a psicanlise procura socializar o desejo produz um desejo marcado pela negatividade, pela perda, pelo conflito, desejo como falta que nos remete, afinal de contas, a Hegel. Toda a moral hegeliana da negatividade estaria presente na clnica psicanaltica graas, principalmente, a Jacques Lacan. Contra isto, uma verdadeira crtica social deveria comear como clnica capaz de produzir um curto-circuito nesta forma de socializao.. Esta seria a funo de conceitos como: corpo sem rgo, mquina desejante, inconsciente como fluxo, e tantos outros. Uma clnica que Deleuze e Guatarri chamaro de esquizo-anlise sempre bom lembrar como, nesta tentativa de constituir uma clnica a partir de uma reflexo filosfico sobre o modo de ser do desejo, Deleuze acabava por dar seqncia a uma certa tradio francesa que podemos encontrar em Sartre com sua psicanlise existencial. Por fim, haveria uma ltima fase do pensamento deleuzeano a partir de Mil Plats. Ela estaria marcada por um certo retorno histria da filosofia (atravs de monografias sobre Spinoza e Leibniz) e, principalmente, por grandes trabalhos sobre esttica visual, como: Imagem-tempo, Imagem-movimento (sobre o cinema) e Lgica da sensao (sobre Francis Bacon). Deleuze sempre escrevera sobre a literatura (Proust, Sacher-Masoch, Kafka), mas estes estudos demorados sobre a imagem no deixavam de ser surpreendentes, sobretudo se lembrarmos como Deleuze havia, em Diferena e Repetio, proposto uma filosofia capaz de ser a crtica radical da Imagem e dos postulados que ela implica ou ainda, ser capaz de operar uma luta rigorosa contra a Imagem, denunciada como no-filosofia17. Esta crtica da Imagem com suas ramificaes profundas na tradio filosfica francesa do sculo XX, ser revista por Deleuze nos anos 80, isto graas identificao de um novo regime de imagens vindo do cinema e, principalmente, da pintura ps-abstrata, esta que, como a pintura de Francis Bacon, resgata a figura em sua potencia de no-figurao, em sua forma de disposio do que no se reconhece mais na sua prpria forma. Alguns anos antes de morrer, Deleuze escrever uma ltima contribuio com Flix Guatarri, uma espcie de obra pstuma em vida na qual eles se propem a responder esta questo que enfrentamos numa agitao discreta, meia-noite, quando nada mais resta a perguntar, uma questo prpria queles que desfrutam de um momento de graa entre a vida e a morte18, a saber, O que a filosofia? Teoria e prtica

    17 DELEUZE, Diffrence et rptition, p. 173 18 DELEUZE, O que a filosofia? , p. 9

  • Mas estas passagens entre histria da filosofia, clnica, crtica social e esttica no interior de uma experincia intelectual como a de Gilles Deleuze: o que elas podem querer significar? O que pode querer significar este movimento que parece exigir uma indistino entre campos autnomos de saber, entre reflexo e empiricidades? No fundo, esta questo, ao menos segundo Deleuze, nos leva diretamente a um dos problemas maiores da filosofia contempornea: os modos de relao entre teoria e prtica. A este respeito gostaria de lembr-los de uma entrevista de Deleuze feita por Michel Foucault na qual Foucault comea colocando a questo: Um maosta me dizia : Sartre, eu compreendo bem porque ele est conosco, porque ele faz poltica e de que forma ele faz; voc, em ltima instncia, eu compreendo um pouco, voc sempre colocou o problema do encarceramento. Mas Deleuze, este a eu realmente no compreendo nada19. A resposta de Deleuze no deixa de ser surpreendente. Ele afirma estarmos vivendo de uma outra maneira as relaes entre teoria e prtica. At ento, ou concebamos a prtica como uma aplicao da teoria, como a exposio de um processo que j havia sido descrito e conceitualizado pela teoria, ou fazamos a operao inversa e concebamos a prtica como a fora criadora de uma forma de teoria a vir, ou seja, uma prtica soberana que despediria a teoria ou, no mximo, que a obrigaria a se curvar diante de seu peso. Nos dois casos, concebemos as relaes entre teoria e prtica como a subsuno de um plo pelo outro. Pensamos a aplicao como uma operao guiada por relaes de semelhana ou analogia. Onde a prtica anloga teoria? Onde a teoria se assemelha ao que vemos na prtica? Mas, e se ao invs de pensarmos relaes hierrquicas e verticais, comessemos a pensar relaes horizontais? Poderamos pensar que, quando a teoria se concentra em seu prprio domnio, ela comea a se confrontar com obstculos, com muros que a impedem de avanar, que nos obrigam a substitu-la por um outro tipo de discurso, uma prtica que nos permita passar a um domnio diferente. Graas a esta passagem, poderemos resolver um problema na teoria, retornar a teoria em outro ponto, a partir de outro lugar. Assim: a prtica um conjunto de passagens (relais) de um ponto terico a um outro, e a teoria, uma passagem de uma prtica a outro. Nenhuma teoria pode se desenvolver sem encontrar uma espcie de muro e necessrio a prtica para perfurar este muro20. Deleuze no poderia ser mais claro: para continuar a fazer esta teoria por excelncia que a filosofia, faz-se necessrio saber abandonar a filosofia, passar a um outro domnio, a uma prtica como a clnica, a esttica, a crtica social. Mas este abandono o que nos permite continuar a fazer filosofia. Parafraseando Nietzsche, a verdadeira filosofia capaz de se perder para poder se realizar. indiferente dizer que a prtica uma maneira de permitir a teoria avanar, de resolver um problema terico que nos bloqueia ou que a teoria uma maneira de permitir a prtica avanar, de resolver um problema prtico que nos bloqueia. indiferente porque o movimento de passagem de um plo a outro constante (o que todos os grandes filsofos do sculo XX compreenderam: Foucault com suas passagens anlise das instituies, Adorno com suas passagens em direo sociologia e crtica da cultura, Wittgenstein com seus abandonos da filosofia em direo anlise da linguagem ordinria). Em ltima instncia, era isto que o maoista de Foucault tinha dificuldade em compreender. Compreender que o poltico, enquanto campo de foras que visam implementar modificaes estruturais em nossas formas de vida, enquanto campo de foras que visam impedir o bloqueio e a mutilao de uma vida que pode ser maior do que

    19 DELEUZE, Lle deserte, p. 289 20 idem, p. 289

  • atualmente , est presente na recuperao da durao em Bergson e nas experincia clnica de La Borde, ou melhor, est presente na passagem de um campo de problemas a outro. Maneira de afirmar que toda crtica social vigorosa uma crtica da razo, e toda crtica da razo que vai s ltimas conseqncias uma crtica social. Veremos isto no interior de nosso curso. Antes ento de terminar a aula de hoje, eu gostaria de dizer duas ou trs palavras mais pessoais a respeito do que me levou a apresentar para vocs, mais uma vez, um curso sobre Gilles Deleuze. Creio ser obrigado a dizer tais palavras porque aqueles que conhecem o que fao sabem que algum que escreveu um livro chamado A paixo do negativo no parece ser a pessoa mais indicada para falar sobre a filosofia de Deleuze. Todos meus interesses maiores so por autores que Deleuze claramente afirma detestar (Hegel), dever criticar (Lacan) ou simplesmente ignorar (Adorno). Por isto, se decidi oferecer este curso sobre Deleuze porque tive um professor que um dia me ensinou que s comeamos realmente a pensar quando perdemos o medo de nos confrontar com autores que parecem nossos antpodas. Este professor era um profundo leitor de Sartre que, devido exatamente a esta crena, decidiu escrever uma tese sobre o aparente antpoda de seu autor: o mesmo Henri Bergson que ir influenciar profundamente Deleuze. Foi ele quem me mostrou, pela primeira vez, o interesse que pode existir na filosofia de Deleuze e, a cada dia que passa, tenho certeza de que sua prpria filosofia em muitos pontos se encontrava, graas a caminhos absolutamente prprios, com dispositivos maiores do pensamento de Deleuze. Por isto, que este curso seja uma certa maneira de prestar uma pequena homenagem no apenas a ele, mas forma de fazer filosofia que ele prprio representou. Um fazer filosofia que , acima de tudo, o ato de pensar contra si mesmo. Se vocs me permitem, isto que gostaria de fazer durante este semestre, isto que gostaria de fazer junto com vocs.

  • Introduo experincia intelectual de Gilles Deleuze Aula 2: Empirismo e subjetividade

    Fica-se surpreso ao considerar o sentido geral das objees sempre apresentadas contra Descartes, Kant, Hegel etc. Digamos que as objees filosficas so de duas formas. Algumas, a maioria, tm de filosfica apenas o nome. Elas consistem em criticar uma teoria sem considerar a natureza do problema ao qual ela responde, no qual ela encontra seu fundamento e estrutura (...) O que diz um filsofo apresentado como se fosse o que ele faz ou o que ele quer. Como crtica suficiente da teoria, apresenta-se uma psicologia ficcional das intenes do terico (...) Na verdade, uma teoria filosfica uma questo desenvolvida e nada mais que isto: por ela mesma, nela mesma, ela consiste, no em resolver um problema, mas em desenvolver at o fim as implicaes necessrias de uma questo formulada (...) Neste sentido, vemos quo nula a maioria das objees feitas aos grandes filsofos. Dizemos a eles: as coisas no so assim. Mas, na verdade, no se trata de saber se as coisas so assim ou no, trata-se de saber se boa ou no, rigorosa ou no, a questo que deixa as coisas assim. (...) Na verdade, apenas um gnero de objees vlido: este que consiste em mostrar que a questo posta por tal filsofo no uma boa questo, que ela no fora de maneira suficiente a natureza das coisas, que teria sido necessrio coloc-la de outra forma, que deveramos melhor coloc-la ou colocar uma outra questo. E desta maneira que um grande filsofo levanta objees a um outro (...)21.

    Estas questes de mtodo de Deleuze apresentada em seu primeiro livro, Empirismo e subjetividade, serviro de orientao para praticamente todas suas incurses no interior da historia da filosofia. Cada filosofia animada por uma forma de questo capaz de gerar tanto uma srie determinada de problemas quanto algo que Deleuze chamar mais tarde de imagem do pensamento, ou seja, uma dimenso de pressupostos tacitamente implcitos e no-problematizados que fornece o campo de enunciao de uma questo filosfica. Contra uma questo filosfica, ns no objetamos um estado de coisas. Ns no devemos dizer: esta filosofia no vlida por as coisas no serem assim. Trata-se apenas de saber se rigorosa ou no, boa ou no, a questo que deixa as coisas assim. Tambm no devemos interpretar uma questo, procurando a psicologia ficcional das intenes do terico, ou seja, aquilo que em sua vida, em seu contexto, exporia as verdadeiras estruturas causais das proposies filosficas. At porque: A estrutura no um no-dito que deveria ser descoberto sob o que dito, ns s podemos descobri-la seguindo a ordem explcita do autor22. Esta ltima citao, Deleuze a faz em um texto sobre o mtodo estrutural de leitura de textos filosficos de Martial Guroult. De fato, no deixa de ser desprovido de interesse lembrar quo estrutural parecem ser tais colocaes que Deleuze toma para si. Aparentemente, trata-se de evitar toda comparao do texto filosfico com o que se d na sua exterioridade (intenes no ditas, estados de coisas). Tanto que Deleuze chegar a dizer a nica problematizao que podemos colocar diz respeito ao rigor, ou seja,

    21 DELEUZE, Empirisme et subjectivit, pp. 118-120 22 DELEUZE, Spinoza et la mthode gnrale de M. Guroult in Lle deserte, p. 204

  • coerncia interna de uma questo filosfica em relao s suas conseqncias. Ou seja, constituio da ordem das razes e do tempo lgico interno ao desenvolvimento de um projeto filosfico. No entanto, como sempre ocorre em Deleuze, a filiao a uma certa perspectiva filosfica guarda algo de subversivo. Pois Deleuze afirma: uma questo filosfica, podemos perguntar se ela rigorosa ou no, boa ou no. Mas no nos escapa o fato destes dois julgamentos serem distintos: rigor um julgamento de coerncia interna, bom um julgamento de valor que nos leva para fora dos raciocnios intransitivos. Bom exige um critrio que no se esgota no interior do sistema filosfico estudado. Mas de onde vem o valor que me permite julgar as questes filosficas que animam projetos filosficos singulares? Por que uma boa questo aquela que fora de maneira suficiente a natureza das coisas? O que significa, neste contexto, forar e, principalmente, por que deveramos faz-lo? Estas questes no sero respondidas por Deleuze. Ao menos, no agora, em seu primeiro livro. Mas elas sero respondidas pela constituio da srie dos autores que iro acompanh-lo: Hume, Bergson, Nietzsche, Spinoza. No entanto, j aparece neste texto deleuzeano de juventude uma tenso fundamental, uma verdadeira questo de mtodo entre o historiador da filosofia que quer desenvolver at o fim as implicaes da questo filosfica que anima um programa filosfico determinado e o filsofo que sabe que, afinal de contas, devemos sempre perguntar: mas esta questo, ela era no final das contas uma boa questo? Hume, Bergson, Nietzsche e Spinoza traro uma boa questo que em larga medida a mesma. O sujeito e o dado No devemos perder este problema de vista. Mas antes de tentar responder algo sobre os critrios de julgamento do filsofo Deleuze, vamos tentar compreender como o historiador da filosofia Deleuze trabalha. Qual pois a questo que sintetiza a filosofia de David Hume, isto ao menos segundo Deleuze, j que durante toda a aula de hoje no ser exatamente questo da filosofia de Hume, mas da maneira com que Deleuze l Hume e transforma tal leitura em momento fundamental para a constituio do seu prprio programa filosfico? Podemos colocar tal problema de outra forma: o que realmente interessa Deleuze em Hume? O que ele procura ao ler Hume? Notemos que uma resposta esquemtica j est presente no prprio ttulo do livro, nesta conjuno inesperada entre empirismo e subjetividade ou, para ser mais preciso, na crena de que o verdadeiro problema do empirismo diz respeito determinao da natureza da subjetividade. De fato, esta crena no deixa de nos causar surpresas j que aceitamos comumente que, grosso modo, no h um problema da subjetividade no empirismo. Tendemos a admitir que, no empirismo, o sujeito seria apenas um feixe de representaes desprovido de qualquer substancialidade ou capacidades inatas, uma forma de tabula rasa que simplesmente recebe e associa o que vem da sensao. O que nos levaria frmula do sujeito como nada mais que: o lugar de uma sucesso de sensaes, de desejos e de imagens23, frase de Jacques Lacan que sintetizava bem o esprito francs dominante na psicologia, na psiquiatria e na tradio fenomenolgica da poca contra o empirismo. Assim, ao escrever seu livro, Deleuze sabe que est entrando em uma polmica que toca tanto a filosofia quanto s chamadas cincias humanas (psicologia frente). uma 23 LACAN, De la psychose paranoaque dans ses relations avec la personnalit, p. 35

  • polmica desta natureza que continuar a alimentar sua experincia intelectual, principalmente com O anti-dipo; o que talvez nos permita expor um dos eixos centrais e invariveis do pensamento de Deleuze: a problematizao do que a tradio moderna compreendeu como o lugar do sujeito e suas conseqncias para a estruturao das cincias do homem. Deleuze quer assim mostrar como esta forma ento hegemnica de compreender o problema do significado do empirismo e da filosofia de Hume em particular estava equivocada. Ele quer mostrar que, se formos capazes de apreender de maneira correta a natureza do problema da subjetividade no empirismo poderemos, ao mesmo tempo: a) ultrapassar a filosofia da conscincia, b) dar um novo encaminhamento para o problema da constituio das individualidades, c) constituir uma teoria social no mais fundada no paradigma jurdico da lei, mas no problema da relao entre interesses prticos e instituies, d) abrir espao para uma verdadeira filosofia da prxis. Todos estes pontos servem de horizonte para o livro de Deleuze. Mas se h um problema da subjetividade no empirismo, em especial no empirismo de Hume, ento devemos nos perguntar porque ele no foi visto de maneira correta. A resposta de Deleuze consiste em dizer que aceitamos sem reservas a definio do empirismo proposta pela tradio kantiana: teoria segundo a qual o conhecimento no apenas comea com a experincia, mas deriva dela. Frmula amplamente insuficiente. Primeiro, porque o conhecimento no a atividade mais importante do empirismo, mas apenas o meio para a ao prtica. O empirismo no uma filosofia do conhecimento, mas uma filosofia da prxis, reflexo sobre o modo com que o sujeito age em situaes da vida ordinria. Segundo, porque para os empiristas e para Hume, a experincia tem dois sentidos e em nenhum deles ela constituinte. Em um sentido, chamamos de experincia as diversas conjunes de objetos no passado. Este o sentido que uso quando afirmo, na linguagem ordinria: A experincia me mostrou que.... No entanto, tais conjunes no so dadas pela experincia, mas postas por princpios de associao prprios natureza humana e que permitem ao sujeito, inclusive, ultrapassar a experincia (dizer que o sol se levantar amanh, que Csar existiu ...). Em um segundo sentido, mais importante, chamamos de experincia a coleo de impresses e percepes distintas que, por sua vez, tambm so relacionadas por princpios de associao. Nos dois casos claro que o conhecimento no deriva da experincia, mas organizado por princpios. Da porque Deleuze no cansar de insistir que o empirismo nos mostra como o conhecimento no deriva da experincia, mas do dado. Em ltima instncia, o empirismo afirmaria que o conhecimento provm do dado e, para ser mais preciso, da ultrapassagem, pela transcendncia do dado. Mas o que o dado? Podemos afirmar que duas caractersticas estruturas definem o dado. Por um lado, o dado: nos diz Hume, o fluxo do sensvel, uma coleo de impresses e de imagens, um conjunto de percepes. o conjunto do que aparece, o ser igual aparncia, o movimento, a mudana, sem identidade nem lei24. Ou seja, o dado um conjunto formado por impresses e imagens elementares (lembremos da noo da Idia como cpia das nossas impresses) dispostas como um fluxo; o que significa, sem princpio interno de estruturao e, por isto, atomizado. Este gnero de campo catico, embrio do que vimos na

    24 DELEUZE, Empirisme et subjectivit, p. 93

  • aula passada sob o nome de zona de indiscernibilidade, o que, no caso de Hume, valida sua perspectiva atomista. Por outro lado, o dado precisa de um princpio que o estruture, que distribua estas impresses e imagens elementares em uma estrutura. Eis a perspectiva associacionista de Hume. Quando Hume afirma: todo o poder criador da mente nada mais vem a ser do que a faculdade de compor, transpor, aumentar ou diminuir os materiais que nos so fornecidos pelos sentidos e pela experincia25 devemos entender o verdadeiro sentido de tal afirmao. Pois ela nos indica que o princpio de relao que fornece a forma do pensvel exterior aos termos que ele relaciona. O que me permite relacionar idias exterior idia. Da porque Deleuze poder afirmar que o empirismo s se definir de maneira correta como um dualismo:

    A dualidade emprica entre os termos e as relaes, ou mais exatamente entre as causas das percepes e as causas das relaes, entre os poderes escondidos da Natureza e os princpios da natureza humana26.

    Assim, aparece um outro critrio para o empirismo: no exatamente a teoria que afirma que o conhecimento deriva da experincia, mas a teoria que afirma que as relaes que estruturam a experincia no derivam da natureza das coisas. Deleuze chega mesmo a afirmar que Hume elabora o ceticismo moderno ao no insistir mais na variao das aparncias sensveis e dos erros do sentido, mas na exterioridade entre a relao e seus termos. Como vemos, trata-se de uma leitura, digamos, transcendental do empirismo e do ceticismo de Hume; o que obriga a Deleuze fazer um verdadeiro malabarismo para afirmar que o pensamento de Kant era no-empirista por excelncia, j que: em Kant, as relaes dependem da natureza das coisas no sentido de que, como fenmenos, as coisas supem uma sntese cuja fonte a mesma que a das relaes. por isto que o criticismo no um empirismo27. Ou seja, Deleuze precisa secundarizar o problema da distncia entre as estruturas categorias e as coisas em-si. Por mais que esta leitura de Kant seja discutvel, importante compreendermos sua funo no interior da economia do texto de Deleuze. Pois ela vai permitir o encaminhamento para a fundamentao daquilo que seria a verdadeira questo posta pela filosofia de Hume. Lembremos destas colocaes centrais do nosso texto:

    Ns fazemos uma crtica transcendental quando, situando-nos em um plano metodicamente reduzido que nos fornece uma certeza essencial, uma certeza de essncia, perguntamos: como pode existir o dado, como algo pode se dar a um sujeito, como o sujeito pode se dar algo? (...) A crtica emprica quando, colocando-se em um ponto de vista puramente imanente de onde possvel uma descrio que encontra sua regra em hipteses determinveis e seu modelo na fsica, perguntamos a respeito do sujeito: como ele se constitui no dado? (...) O dado no mais dado a um sujeito, o sujeito se constitui no dado. O mrito de Hume foi ter

    25 HUME, Investigaes acerca do entendimento humano, p.24 26 idem, p. 122 27 DELEUZE, idem, p. 125

  • extrado o problema emprico em estado puro, mantendo-o distante do transcendental, mas tambm do psicolgico28.

    Quer dizer, a questo posta por Hume e que ser desenvolvida em todas suas implicaes : como o sujeito se constitui no dado?. Questo distinta da pergunta transcendental por excelncia: como o sujeito constitui o dado?. Pois se a segunda parte do reconhecimento do carter constituinte de uma subjetividade assegurada a priori, a primeira afirma no ser exatamente o sujeito quem constitui o campo da experincia, mas aquilo que, de uma certa forma, constitudo no interior do que chamamos de experincia. Poderamos mesmo dizer que experincia o nome que damos para um processo de constituio ou, como Deleuze dir mais tarde, de produo da subjetividade. Da porque ele pode afirmar que o empirismo coloca essencialmente o problema da constituio do sujeito, o problema de como o esprito advm sujeito, no como o produto de uma gnese, mas como efeito de princpios transcendentes. A imaginao e as paixes Para entender melhor este ponto, devemos analisar o lugar central da imaginao na filosofia de Hume; o que leva Deleuze a afirmar que o empirismo no uma filosofia dos sentidos, mas uma filosofia da imaginao, j que tudo ocorre na imaginao, o que no quer dizer que tudo ocorra atravs da imaginao. Deleuze insiste que, em Hume, a imaginao no inicialmente uma faculdade do conhecimento. No interior, da experincia, ela advm uma faculdade. Inicialmente, ela apenas um conjunto de percepes e imagens que formam uma espcie de fundo do esprito. Quando submetida s paixes, a imaginao pode produzir associaes de maneira fantasiosa, delirante e inconstante. "Nada mais livre que a imaginao", dir Hume. Tal como um pintor que mistura cores, a imaginao associa livremente idias elementares e produz drages de fogo, quimeras, tucanos honestos. Faz-se necessrio pois princpios gerais de associao (como a semelhana, a causalidade, a contigidade no tempo e no espao) que no sejam produtos da imaginao mas que, de uma certa forma, afetem a imaginao. Por isto, Deleuze poder dizer que, para Hume: O que universal ou constante no esprito humano nunca tal ou tal idia como termo, mais apenas as formas de passar de uma idia particular a uma outra29. A natureza humana ser assim imaginao que se fixou atravs de outros princpios. a partir deste momento que ela pode advir faculdade do conhecimento. Assim: quando nos falamos do sujeito, o que queremos dizer? Queremos dizer que a imaginao, de simples coleo transformou-se em uma faculdade; a coleo distribuda transformou-se em sistema30. Mas vocs poderiam perguntar: e estes princpios de associao enquanto sistema de regras que organizam os dados caticos da imaginao? No seriam eles o embrio da noo de transcendental enquanto estrutura de regras que fornecem a condio para a experincia, assim como da submisso da imaginao ao entendimento? Neste ponto, de suma importncia lembrarmos da maneira com que Deleuze afirma existir em Hume duas

    28 idem, p. 92 29 DELEUZE, Hume In; Lle dserte, p. 228 30 DELEUZE, Empirisme et subjectivit, p. 100

  • modalidades de princpios na natureza humana: os princpios de associao e os princpios das paixes. Pois isto complexificar o problema da relao entre relaes e idias. Deleuze lembra como: os princpios de associao explicam a rigor a forma do pensamento em geral, no seus contedos singulares31. Ou seja, enquanto regras gerais eles apenas dizem, por exemplo, que um determinado sujeito foi capaz de estabelecer relaes de semelhana entre dois termos. No entanto, sabemos como, de um certo ponto de vista, tudo pode ter algum grau semelhana com tudo. Como j disse John Searle: a semelhana um predicado vazio : duas coisas quaisquer so semelhantes sob algum aspecto32. Vocs devem inclusive conhecer estes jogos surrealistas onde dois termos quaisquer eram postos em relao de contigidade ou semelhana, criando situaes humorsticas. Assim, quando Hume afirma, por exemplo: Na realidade, todos os argumentos da experincia se baseiam na semelhana que descobrimos entre os objetos naturais e pela qual somos induzidos a esperar efeitos similares queles que vimos seguirem-se de tais objetos33, devemos dizer que tal explicao explica pouco, j que no sabemos sob qual padro de semelhana estruturamos relaes. O uso da probabilidade e da inferncia ainda no resolve a questo, j que a inferncia e a probabilidade pressupem a deciso a respeito de princpios de semelhana entre dois casos no contguos. Ou seja, o raciocnio aqui circular. tendo questes similares em mente que Deleuze insiste: o encaminhamento particular de um esprito deve ser estudado, a toda uma casustica a fazer: por que em uma conscincia particular, em tal momento, esta percepo vai evocar tal idia ao invs de outra?34. A resposta exige o recurso a um outro princpio, no caso a afetividade. Hume a introduz afirmando que a explicao que fornecer a razo suficiente da relao ser fornecida pela circunstncia. Neste contexto, circunstncia significa que apenas as situaes singulares, marcadas por modos de investimentos afetivos podem explicar a tendncia que guia os processos de associao. Aqui, Deleuze convoca Freud para lembrar que a explicao para o fato, por exemplo, de um determinado sujeito pensar na liberdade todas as vezes que v uma bandeira vermelha ou de associar medo de cavalos e medo pelo pai s pode ser fornecida atravs da compreenso de uma certa histria da afetividade. A associao liga as idias na imaginao, as paixes fornecem um sentido a tais relaes ou, para ser mais preciso, uma finalidade. Se as idias se associam, em funo de uma inteno que s a paixo pode fornecer. O que significa no apenas colocar uma psicologia das afeces do esprito na base de uma verdadeira cincia do homem, mas significa algo mais profundo e decisivo. Trata-se de afirmar que todas as expectativas de conhecimento esto necessariamente submetidas ao interesse, que o conhecimento uma questo de satisfao de interesses prticos. Deleuze insiste nesta via ao afirmar que Hume critica o primado do sujeito do conhecimento em prol de um certo utilitarismo: A associao de idias no define um sujeito cognoscente, mas ao contrrio um conjunto de meios possveis para um sujeito prtico cujos fins reais so de ordem passional, moral, poltica, econmica35. Assim, por um lado o sujeito no aparece como sujeito ativo, mas como sujeito afetado pelas paixes

    31 DELEUZE, Empirisme et subjectivit, p. 114 32 SEARLE, Expresso e significado, p. 150 33 HUME, Investigaes, p. 40 34 DELEUZE, idem, p. 115 35 idem, p. 138

  • que, atravs do clculo do prazer e do desprazer, produz um princpio de utilidade. Ele esprito ativado por princpios que seguem uma finalidade ditada, em ltima instncia, pelas paixes. Os princpios da paixo so absolutamente primeiros e selecionam as impresses de sensao. A subjetividade, por sua vez, aparece definida como regra geral de associao enquanto operada na imaginao e afetada pelas paixes. Desta forma, a questo como o sujeito se constitui no dado? pode receber uma resposta como: ele se constitui atravs de operaes regionais de sntese afetadas por paixes que fornecem ao uma finalidade. O sujeito do conhecimento, da teoria, o efeito da imaginao, da crena, do hbito, dos sentimentos e das paixes. Ele no mais um princpio de explicao, mas o que deve ser explicado36. No entanto, esta resposta parece trazer mais problemas do que soluo. Pois esta submisso do conhecimento aos mbiles do interesse est longe de ser uma operao simples. Estaria Hume, ao menos segundo Deleuze, colocando em marcha alguma forma de psicologismo selvagem que submete as expectativas cognitivas a interesses prtico-finalistas? Ou estaria ele insistindo, e a na melhor tradio que encontramos tambm em Nietzsche e Freud, que a razo configura seus procedimentos (ou seja, ela define o que racional e legtimo) atravs dos interesses postos na realizao de fins prticos? Mas, se este for o caso, fica ainda um problema espinhoso: como podemos distinguir a simples fantasia da percepo, o delrio que produz associaes ao bel prazer e o conhecimento que me permite agir no mundo? A este respeito, Deleuze provavelmente diria: vejam como j a pergunta opera um deslocamento do problema em direo a uma questo de ordem eminentemente prtica. H dois modos de associao: um a fantasia privada, o outro um modo que me permite operar no mundo. Nada escapa mais a nosso conhecimento do que os poderes da natureza e, como o ceticismo mitigado de Hume no cansar de lembrar: operar no mundo no pressupe conhecer aquilo que a natureza em-si. Pressupe, antes de mais nada, o que sujeitos organizados socialmente, ou seja, relacionando-se atravs de instituies, querem fazer no mundo. Mas para melhor compreender este ponto, ponto fundamental por nos explicar porque Deleuze comea seu livro afirmando que Hume precisou ser um moralista, um socilogo, um historiador antes de ser psiclogo para ser um psiclogo, devemos dar um pequeno passo para trs. Ele nos levar a colocar a pergunta central: quais so os modos do operar no mundo, quais so os mbiles fundamentais da prxis? Hume fornece principalmente dois: a crena e a inveno. A crena a base do sujeito cognoscente j que todo ato de conhecer (enquanto ultrapassagem do dado) a projeo de uma probabilidade, de uma crena. Por sua vez, a inveno, como veremos, a base do sujeito da moral e da poltica. Todos estes dois mbiles tm com fundamento o hbito. O hbito e a sntese do tempo Deleuze dedicar longos trechos de seu Diferena e repetio a uma discusso sobre o problema do hbito. Em Empirismo e subjetividade tal discusso aparece de maneira lateral. No entanto, ela ganhar importncia a partir do desdobramento do pensamento de Deleuze.

    36 ANTONIOLI, Deleuze et lhistoire de la philosophie, p. 30

  • Lembremos inicialmente da maneira com que Hume introduz a questo do hbito. Ao se perguntar sobre o verdadeiro princpio que guia nossas operaes de inferncia, ele afirma: "Este princpio o costume ou hbito, pois, onde quer que a repetio de qualquer ato ou operao particular manifeste uma propenso para renovar o mesmo ato ou operao, sem ser impulsionado por raciocnio ou processo algum do entendimento, dizemos sempre que essa propenso o efeito do costume"37. Nesta afirmao encontram-se elementos fundamentais para a interpretao de Deleuze. Primeiro, o hbito, enquanto princpio de repetio, uma forma de sntese do tempo, j que ele modo de projeo de um futuro a partir de modos de sntese do passado e do presente ou antes, maneira de organizar o tempo: como um presente perptuo a respeito do qual devemos e podemos nos adaptar38. Deleuze chegar mesmo a dizer que a estrutura da durao prpria ao problema da memria em Bergson estaria presente j nas reflexes de Hume sobre o hbito, mesmo que "o hbito no precise da memria"39. O que implica uma reconsiderao sobre o que Bergson afinal entende por memria. Por ser modo de sntese do tempo, o hbito pode dar conta do problema da crena, problema maior para Hume j que o conhecimento , no fundo, uma forma de crena. Mas o que a crena? "Toda a crena acerca de uma questo de fato ou de uma existncia real derivada unicamente de algum objeto presente memria ou aos sentidos e de uma conjuno habitual entre ele e algum outro objeto"40. Quer dizer, a crena um sentimento dependente das conjunes produzidas pelo hbito. Da porque ela nada mais do que a concepo de um objeto mais viva, estvel e intensa do que aquilo que a imaginao pode ser capaz de obter. Ela dependente das regularidades que sou capaz de perceber [problemas nas distines entre alucinao e percepo]. H duas questes que gostaria de abordar a respeito desta forma de definir o hbito. Primeiro, por ser estrutura de sntese do tempo, o hbito pode aparece como a raiz constitutiva do sujeito41. De fato, esta pode ser uma definio mais precisa do que Deleuze entende neste momento por subjetividade. Subjetividade aquilo que permite a sntese do tempo. Mas devemos estar atento para um ponto: a sntese atravs do hbito no exatamente uma sntese ativa feita por um Eu enquanto operador de snteses que se do na transparncia da conscincia. Da porque Hume insiste que a repetio de atos e operaes no , quando submetida ao hbito, impulsionada pelo raciocnio ou por processos do entendimento.

    Partindo deste ponto, Deleuze pode afirmar que Eu sou muito mais um paciente do que agente das snteses do tempo feitas pelo hbito. Eu sou muito mais algum que contempla a formao silenciosa do hbito, do que algum que age para produzir unidades. No fundo, esta unidade do hbito permite subjetividade liberar-se de um determinismo estrito para encontrar uma certa regularidade. Mas, acima de tudo, o hbito no a funo de um Eu, mas algo que permite a produo de um Eu. No h hbito porque h um Eu. Mais correto seria dizer: h um Eu porque o hbito aparece como princpio ativo que fixa e desdobra as snteses passivas da associao42. Isto talvez nos explique porque Deleuze poder dizer que, atravs de Hume, podemos aprender que: ns somos hbitos, nada mais 37 HUME, idem, p. 47 38 DELEUZE, idem, p. 105 39 idem, p. 104 40 HUME, idem, p. 50 41 DELEUZE, idem, p. 101 42 PRADO JR., Hume, Freud, Skinner, p. 44

  • que hbitos, o hbito de dizer Eu ... Talvez no exista resposta mais surpreendente para o problema do Eu43. Ou seja, desta forma, Deleuze pode estabelecer uma estratgia para a crtica da filosofia da conscincia e da sua iluso de uma subjetividade constitutiva, de uma subjetividade capaz de constituir o campo da experincia e de apropriar de maneira reflexo os procedimentos gerais de constituio de tal campo. No empirismo, ele encontrar uma filosofia na qual a subjetividade produto de afeces que atuam em princpios de associao e que produzem uma disposio que chamamos de hbito. Disposio esta que me desaloja da condio de agente, mas que me assujeita. O mundo social O outro ponto importante a abordar a respeito da definio humeana do hbito diz respeito a uma questo fundamental para Deleuze. Vimos at aqui como a subjetividade apareceu como regra geral de associao enquanto operada na imaginao e afetada pelas paixes. Esta regra geral recebeu seu nome prprio: hbito. Mas o hbito, enquanto produo de conjunes, tem sua fora garantida por "uma espcie de harmonia pr-estabelecida entre o curso da natureza e a sucesso das nossas idias"44. De onde vm est harmonia, este acordo entre a natureza humana animada por uma finalidade, marcada pelas paixes e a natureza? Esta resposta exige um desvio. Deleuze comeou seu livro afirmando que Hume nos mostrara que as duas formas pelas quais o esprito afetado so o passional e o social e que haveria uma coerncia profunda entre elas. Isto a ponto de afirmar que: "o verdadeiro sentido do entendimento justamente o de tornar social uma paixo, social um interesse"45. Dificilmente ns encontraramos uma afirmao mais contra-intuitiva. Pois normalmente diramos que a funo do entendimento produzir esquemas categoriais capazes de se reportar percepo. De onde vem esta histria de paixo que se torna social?

    Ao subordinar conhecimento ao interesse, Deleuze-Hume quer dizer que a maneira de estruturao do dado depende de interesses que nos permitem agir no mundo, agir em um mundo que sempre socialmente produzido a partir de expectativas prticas de sujeitos socializados. Da porque o problema fundamental da filosofia de Hume no diz respeito dinmica de confrontao entre sujeito e objeto, mas a um problema de socializao de interesses dirigidos ao mundo, problema relativo maneira de "tornar social uma paixo, social um interesse".

    Isto explica porque Deleuze insiste que no h conflito ontolgico entre paixes individuais e vnculos sociais em Hume. Pois o homem no naturalmente egosta, ele naturalmente parcial, homem que coloca acima de tudo o interesse da sua famlia, do seu cl. A ao animada por uma simpatia, mas parcial. No se faz necessrio negar e restringir os interesses atravs da Lei, mas estender a simpatia. Isto permite a Deleuze afimar: "a justia a extenso da paixo, do interesse a respeito do qual negado apenas seu movimento parcial"46. O social no assim espao da restrio do interesse particularista de cada um, mas o espao da inveno de modelos de associao fornecidos

    43 DELEUZE, Deux regimes de fous, p. 342 44 HUME, idem, p. 57 45 DELEUZE, idem, p. 2 46 idem, p. 32

  • pela imaginao, espao de inveno de iluses capazes de anular a parcialidade das paixes, mas de iluses necessrias capazes de criar um interesse geral.

    Estes modelos de associao sero as instituies. Da porque Deleuze insiste em pensar o social no atravs do paradigma jurdico da lei, mas do paradigma social da inastituio. A diferena entre lei e instituio :

    a primeira uma limitao da ao, a outra um modelo positivo de ao. Contrariamente s teorias da lei que colocam o positivo fora do social (direitos naturais) e o social no negativo (limitao contratual), a teoria da instituio coloca o negativo fora do social (necessidades), para apresentar a sociedade como essencialmente positiva, inventiva (meios originais de satisfao)47. Esta inventividade prpria ao social que fornece aos nossos corpos um gnero de

    modelo, assim como fornece inteligncia um saber, uma possibilidade previso permite ao homem sair do domnio do instinto. "O homem no tem instinto, ele faz instituies". Sendo assim, so estas paixes socializadas que fornecem o princpio para a associao, que so internalizadas como hbito. Assim, quando Deleuze afirma: "ao crer e inventar, ns fazemos do prprio dado uma natureza"48. Ns fazemos atravs de paixes "instituticionalizadas". Porque, a respeito da natureza tal como ela (o que, no fundo, uma maneira de colocar a questo do Ser), at agora no podemos dizer nada.

    47 DELEUZE, Instincts et institutitions, p. 25 48 DELEUZE, Empirisme et subjectivit, p. 152

  • Introduo experincia intelectual de Gilles Deleuze Aula 3 : Le bergsonisme

    Na aula passada, lemos Empirismo e subjetividade, o primeiro livro de Gilles Deleuze. Atravs desta leitura vimos como j aparece neste texto de juventude uma tenso fundamental, uma verdadeira questo de mtodo que dizia respeito s relaes entre histria da filosofia e afirmao de um programa filosfico singular. Vimos como Deleuze procurava realizar duas exigncias. Por um lado, tratava-se de desenvolver at o fim as implicaes da questo filosfica que animaria a filosofia humeana, uma questo que diz respeito ao estatuto de um conceito de subjetividade que no aparece mais como fundamento para o saber seguro, mas como processo de constituio de um mundo prtico. Questo que Deleuze enunciava da seguinte forma: como o sujeito se constitui no dado?. Inverso da questo definidora de toda filosofia crtica: como o sujeito constitui o dado?. Mas, por outro lado, Deleuze j procurava, atravs de Hume, constituir os problemas e encaminhamentos que direcionaro sua prpria experincia intelectual de maturidade; esta experincia que comea com os livros Lgica do sentido e Diferena e repetio. A este respeito, eu havia afirmado na aula passada que uma das chaves de compreenso de Deleuze estava na sua problematizao recorrente do lugar do sujeito na filosofia moderna e suas conseqncias para a configurao do que se convencionou chamar de cincias humanas, psicologia frente. Da porque dois de seus livros so dedicados correntes e autores objetos de crticas virulentas da psicologia e da psiquiatria de inspirao fenomenolgica hegemnica ento na Frana (pensem, por exemplo, em autores como Henri Ey e Karl Jasper). Um deles e o empirismo com sua justificao do associacionismo, o outro e Bergson e sua teoria dos dados imediatos da conscincia. Levando esta problemtica em conta, procurei mostrar na aula passada como o livro de Deleuze insistia que a apreenso correta da natureza do problema da subjetividade no empirismo permitira, ao mesmo tempo: a) ultrapassar a filosofia da conscincia, b) dar um novo encaminhamento para o problema da constituio das individualidades, c) constituir uma teoria social no mais fundada no paradigma jurdico da lei, mas no problema da relao entre interesses prticos e instituies, d) abrir espao para uma verdadeira filosofia da prxis. A ultrapassagem da filosofia da conscincia se dava na medida em que o empirismo trazia uma crtica noo de subjetividade constitutiva prpria s filosofias que colocam a conscincia como fundamento do saber. Como a subjetividade aparece como o que constitudo, no como o que constitui o campo da experincia, o esforo filosfico se volta para a anlise dos princpios pr-individuais que permitem a constituio do que nos aparece como o dado. Da porque Deleuze no cansar de insistir que o empirismo nos mostra, na verdade, como o conhecimento no deriva da experincia, mas do dado. Vimos como Deleuze mobilizava um certo dualismo a fim de compreender o que o dado. Por um lado, o dado: nos diz Hume, o fluxo do sensvel, uma coleo de impresses e de imagens, um conjunto de percepes. o conjunto do que aparece, o ser igual aparncia, o movimento, a mudana, sem identidade nem lei49. Ou seja, o dado um conjunto formado por impresses e imagens elementares (lembremos da noo da Idia 49 DELEUZE, Empirisme et subjectivit, p. 93

  • como cpia das nossas impresses) dispostas como um fluxo; o que significa, sem princpio interno de estruturao e, por isto, atomizado. Por outro, o dado precisa de um princpio que o estruture, que distribua estas impresses e imagens elementares em uma estrutura. Isto demonstra que o princpio de relao que fornece a forma do pensvel exterior aos termos que ele relaciona. O que me permite relacionar idias exterior idia. Da porque Deleuze poder afirmar que o empirismo s se definir de maneira correta como um dualismo. Estes princpios de relao, ou princpios de associao, so inatos natureza humana. No entanto, s eles no bastam para fornecer as condies para a estruturao do campo da experincia e da ao. Vimos Deleuze insistir como: os princpios de associao explicam a rigor a forma do pensamento em geral, no seus contedos singulares50. Ou seja, os princpios de associao so regras gerais que apenas dizem, por exemplo, que um determinado sujeito foi capaz de estabelecer relaes de semelhana entre dois termos. Como sabemos que semelhana um predicado vazio que pede outro princpio capaz de dar conta do modo especfico de determinao da relao entre termos, vimos estes outro princpio ser encontrado na afetividade. Hume a teria introduzido ao afirmar que a explicao que fornecer a razo suficiente da relao ser fornecida pela circunstncia. Neste contexto, circunstncia significa que apenas as situaes singulares, marcadas por modos de investimentos afetivos podem explicar a tendncia que guia os processos de associao. Assim a associao liga as idias na imaginao, enquanto as paixes fornecem um sentido a tais relaes ou, para ser mais preciso, uma finalidade.

    A partir desta noo, vimos Deleuze dar um novo encaminhamento para o problema da constituio das individualidades. Pois para alm da noo da subjetividade constitutiva, transcendental e imediatamente auto-idntica, Deleuze podia falar da subjetividade como no modo com que uma regra geral era afetada pelas paixes no interior da imaginao, construindo assim uma ordem a partir de um conjunto de imagens e percepes. A este modo de afeco de uma regra geral de associao no interior da imaginao, Hume dava comumente o nome de hbito. Insistindo que a associao a base dos processos subjetivos de sntese do tempo (j que ela o que permite a experincia da repetio e da diferenciao de experincias), Deleuze podia ainda falar que o hbito era, no fundo, o dispositivo subjetivo de sntese do tempo. Proposio que, nas mos de Deleuze, transforma-se em pea central de uma crtica da filosofia da conscincia e da noo moderna de sujeito. Pois Eu sou muito mais um paciente do que agente das snteses do tempo feitas pelo hbito. Eu sou muito mais algum que contempla a formao silenciosa do hbito, do que algum que age para produzir unidades. O hbito no a funo de um Eu, mas algo que permite a produo de um Eu. No h hbito porque h um Eu. Mais correto seria dizer: h um Eu porque o hbito aparece como princpio ativo que fixa e desdobra as snteses passivas da associao51. Isto talvez nos explique porque Deleuze poder dizer que, atravs de Hume, podemos aprender que: ns somos hbitos, nada mais que hbitos, o hbito de dizer Eu ... Talvez no exista resposta mais surpreendente para o problema do Eu52. Por fim, esta maneira de insistir nas paixes como princpio estruturador do campo a experincia permitia a Deleuze mostrar que a verdadeira contribuio do empirismo

    50 DELEUZE, Empirisme et subjectivit, p. 114 51 PRADO JR., Hume, Freud, Skinner, p. 44 52 DELEUZE, Deux regimes de fous, p. 342

  • estaria no deslocamento do problema do sujeito, da teoria do conhecimento para uma teoria da prxis. Da porque: A associao de idias no define um sujeito cognoscente, mas ao contrrio um conjunto de meios possveis para um sujeito prtico cujos fins reais so de ordem passional, moral, poltica, econmica53. Assim, o sujeito aparece aquilo que, ao se deixar afetar pelas paixes, produz um princpio de utilidade atravs do clculo do prazer e do desprazer. Ele esprito ativado por princpios que seguem uma finalidade ditada, em ltima instncia, pelas paixes. Maneira de lembrar que a razo configura seus procedimentos (ou seja, ela define o que racional e legtimo) atravs dos interesses postos na realizao de fins prticos. Maneira ainda de problematizar profundamente a relao entre conhecimento e interesse. A fim de no resvalar em um certo relativismo que submete todas as exigncias de verdade ao particularismo dos interesses, Deleuze precisava, de uma certa forma, fornecer um certo universalismo para as paixes como princpio. O prprio termo paixes ruim por ressoar um certo psicologismo e um certo personalismo, o que levar Deleuze a restringir cada vez mais seu uso a fim de usar, em seu lugar a impessoalidade do afeto e, principalmente, da intensidade.

    De qualquer forma, Deleuze insistia que, em Hume, no havia conflito ontolgico entre paixes individuais e vnculos sociais. Pois o homem no naturalmente egosta, ele naturalmente parcial, homem que coloca acima de tudo o interesse da sua famlia, do seu cl. A ao animada por uma simpatia, mas parcial. No se faz necessrio negar e restringir os interesses atravs da Lei, mas estender a simpatia. Isto permite a Deleuze afimar: "a justia a extenso da paixo, do interesse a respeito do qual negado apenas seu movimento parcial"54. O social no assim espao da restrio do interesse particularista de cada um, mas o espao da inveno de modelos de associao fornecidos pela imaginao, espao de inveno de iluses capazes de anular a parcialidade das paixes. So pois estas paixes socializadas que fornecem o princpio para a associao, que so internalizadas como hbito. Assim, quando Deleuze afirma: "ao crer e inventar, ns fazemos do prprio dado uma natureza"55, ns o fazemos atravs de paixes "instituticionalizadas". Porque, a respeito da natureza tal como ela (o que, no fundo, uma maneira de colocar a questo do Ser) nada poderia ser dito, como Hume nos ensinara.

    De Hume a Bergson

    Mas o ensinamento de Hume no era exatamente algo que Deleuze estava disposto a ouvir. Por isto, ele continuar sua procura em ultrapassar a filosofia da conscincia, em pensar outros modos de constituio de individualidades e em se orientar em uma filosofia da prxis atravs de um outro autor. Um autor capaz de fornecer aquilo que Hume no era capaz de fornecer: uma ontologia, um discurso do ser enquanto ser ou, o que o mesmo, uma tematizao filosfica possvel a respeito do conceito de natureza. Esta ontologia, Deleuze encontrar em Henri Bergson. Desta forma, Bergson permite passar desta tendncia em colocar uma teoria da subjetividade e uma sociologia na base da teoria do conhecimento, isto a fim de fornecer uma ontologia renovada filosofia: o que, no fundo, era o verdadeiro projeto intelectual de Deleuze.

    53 idem, p. 138 54 idem, p. 32 55 DELEUZE, Empirisme et subjectivit, p. 152

  • O livro sobre Bergson no escrito logo aps Empirismo e subjetividade. Na verdade, 13 anos se passam entre os dois. Durante este tempo, Deleuze passa oito anos sem nada escrever, um buraco de oito anos no qual Deleuze se descreve como algum que procurava perfurar o muro, para cessar de bater a cabea56. Aps este tempo, Deleuze comea a escrever um livro por ano. Primeiro, Nietzsche e a filosofia, depois A filosofia crtica de Kant, Proust e os signos e enfim O bergsonismo. Deleuze v este pequeno livro como o fim de um ciclo. Tanto que, em 1989, ao procurar classificar o conjunto de seu trabalho a partir de sries temticas, ele construir onze sries cuja primeira ter como ttulo: De Hume a Bergson. Mas, afinal de contas, como se vai de Hume a Bergson? Primeiro, vale a pena lembrar da peculiaridade da escolha de Deleuze. Se havia algo que unia tanto a fenomenologia francesa de Sartre e Merleau-Ponty quanto o estruturalismo em plena hegemonia em 1966 (ano da publicao de dois livros maiores do estruturalismo: Escritos, de Lacan e As palavras e as coisas, de Foucault) era a recusa a Bergson. A filosofia bergsoniana era vista como subjetivista, espiritualista, intuicionista e tributria de um vitalismo evolucionista que parecia flertar com o irracionalismo. Foucault, por exemplo, lembra como havia, em sua poca de estudante, uma espcie de bergsonismo latente dominando a filosofia universitria francesa. Ele chega a relatar uma anedota significativa do esprito de poca: Eu me lembro de ter feito uma conferncia em uma escola de arquitetura e de ter falado das formas de diferenciao dos espaos em uma sociedade como a nossa. Ao final, algum tomou a palavra em um tom muito violento dizendo que falar do espao era ser um agente do capitalismo, que tudo mundo sabe que o espao o morto, o fixo, a imobilidade que a sociedade burguesa quer impor a si mesma, que isto significa desconhecer o movimento da histria (...) Via-se claramente como, atravs uma certa valorizao bergsoniana do tempo, ele desenvolvia uma concepo marxista muito vulgar57. A anedota serve para medir o tamanho da inverso que Deleuze procurava fazer ao apresentar um Bergson anti-humanista, prximo de preocupaes maiores do empirismo ingls e portador de um conceito de tempo que, em ltima instncia, abria as portas para uma crtica radical do primado da conscincia. Deleuze procura realizar seu objetivo atravs da anlise de trs conceitos centrais em Bergson: durao (Ensaio sobre os dados imediatos da conscincia), memria (Matria e memria) e lan vital (A evoluo criadora). Tal anlise visa mostrar as relaes profundas entre os trs conceitos, assim como a progresso que a passagem de um para outro implica. Antes de entrar na anlise direta de tais conceitos, Deleuze precisa fornecer o verdadeiro alcance do chamado intuicionismo bergsoniano. Este um ponto central que no teria sido apreendido pelos leitores de Bergson. O conceito bergsoniano de intuio nada tem a ver com uma noo clssica de intuio como a apreenso mental imediata do que imediatamente claro e distinto ao esprito. Noo dependente de uma metfora naturalizada: a metfora ocular do golpe de vista, to presente em Descartes, para quem ressoa o sentido de intueri no latim clssico : olhar ou inspecionar. De fato, em Bergson, a intuio um mtodo que permite construir uma outra relao com as coisas distinta da relao de representao prpria ao discurso da cincia. H em Bergson uma espcie de crtica reificao produzida pelo discurso cientfico que leva Deleuze a simplesmente dizer: Ns estamos separados das coisas, o dado imediato

    56 DELEUZE, Pourparlers, p. 189 57 FOUCAULT, Dits et crits, p. 576

  • no pois o imediatamente dado58. Para recuperar o dado imediato, a intuio deve operar por diviso. Na dimenso da experincia, estamos sempre s voltas com mistos que devem ser distinguidos e divididos. Mistos compostos de percepo e lembranas, de matria e memria, de tempo e espao. O trabalho da intuio consiste em dividir estes mistos, mostrando que h uma profunda diferena de natureza entre aquilo que misturamos por, no fundo, ver entre eles apenas diferenas de grau. Por exemplo, ao pensar o tempo como uma linha reta composta de diversos pontos que seriam os instantes (metfora kantiana para o tempo) acabamos por ps apenas uma diferena de grau entre tempo e espao. O mesmo acontece quando compreendemos a lembrana como puros traos mnsicos de antigas percepes. A intuio permite assim a apreenso da verdadeira diferena, para alm das puras diferenas de grau. Neste sentido, ela mtodo por permitir a passagem da experincia s condies de constituio da experincia, por mostrar como a aparncia imediata do dado se constitui atravs de uma iluso a respeito das diferenas de natureza. Deleuze chega mesmo a afirmar, apoiando em Bergson, que os falsos problemas vm da nossa incapacidade em ultrapassar a experincia em direo s condies da experincia, em direo s articulaes do real, mostrando o que se distingue no interior dos mistos mal analisados no meio dos quais vivemos. Os falsos problemas so manifestaes da impossibilidade de se colocar a pergunta: como se constitui o dado? e, com isto, alcanar um empirismo superior; at porque, essa passagem em direo s condies de experincia no consiste em ultrapassar o dado em direo ao conceito, mas em direo a perceptos puros que s podem ser apreendidos pela intuio. A iluso do negativo A mais importante destas diferenas de grau , no entanto, aquela que sustenta a oposio entre ser e no-ser. A partir dos livros sobre Nietzsche, Deleuze introduzir um dos dispositivos mais importantes do seu programa filosfico: a crtica do negativo. Insistir na realidade do negativo, na realidade de objetos que s podem ser pensados e apreendidos de maneira negativa, seria uma das piores iluses do pensar, j que isto implicaria na impossibilidade de apreender a verdadeira diferena. Voltaremos em vrias ocasies anlise da anatomia desta crtica. Por enquanto, podemos dizer que a crtica do negativo insiste no estatuto de falso problema prprio ao no-ser, j que o no-ser seria resultado de uma simples diferena de grau e de intensidade em relao ao ser: Na idia de no-ser, h a idia de ser, mais o motivo psicolgico particular desta operao (quando um ser no convm nossa expectativa e que nos o apreendemos apenas como a falta, a ausncia do que nos interessa)59. Ou seja, o Nada sempre um nada relativo, nada disto ou daquilo, nada em relao a algo que se diferencia como grau de realidade, nunca um Nada absoluto. Da porque: O Nada, ainda no nvel psicolgico, reduz-se a um no-mais, a um ainda-no. E nessas expresses, h que sublinhar o ainda e o mais60. No entanto, com a idia de no-ser, esta realidade subsidiria do Nada recalcada. Isto permite que a diferena em relao idia de ser transforme-se em uma diferena exterior, em uma limitao do ser que se deixa pensar no interior de uma relao de oposio. Isto nos impede pensar a diferena como estrutura interna do ser. Da porque a

    58 DELEUZE, Lle deserte, p. 30 59 DELEUZE, Le bergsonisme, p. 6 60 PRADO JR. Presena e campo transcendental em Bergson, p. 55

  • intuio um mtodo de apreenso de objetos para os quais as idias de no-ser, de negativo, de nada no tm realidade. Por outro lado, esta maneira de pensar diferenas como diferenas externas o motor gerador das antinomias nas quais o entendimento e o pensamento conceitual sempre se enredam. Esta ausncia de realidade do negativo uma constante do pensamento filosfico do sculo XX. J em Heidegger, por exemplo, encontramos a afirmao de que a negao deve ser compreendida como atividade do entendimento, uma atividade secundria, j que dependente da determinao da realidade de algo que ser posteriormente negado. Como dir Sartre, marcado profundamente aqui pelo encaminhamento heideggeriano: Seria vo negar que a negao aparea sobre o fundo primitivo de uma relao do homem ao mundo; o mundo no descobre seus no-seres a algum que primeiramente no os ps como possibilidade61. Ou seja, a negao , no fundo, pensada como privao, como ausncia de atributos ou objetos. Neste sentido, ela no pode ter um ser que lhe seja prprio, como afirmou Hegel, ao insistir na existncia de uma negao em si que s tem um ser enquanto negao reportando-se a si62, ou seja, uma negao que no pode ser compreendida como mera figura da privao, mas como modo de determinao daquilo cuja essncia um negativo posto como negativo. De fato, Bergson participa sua maneira desta tendncia ao elevar o Nada e a miragem da ausncia como iluses fundamentais do pensamento. Pois a idia do Nada, para Bergson, a base da desqualificao do movimento, do tempo e, por isto, pea chave para a impossibilidade de intuir um Ser que pensado como durao: Se a filosofia sempre se prope como ideal uma contemplao do real sub specie aeternitatis, porque o que vem ao Ser (isto , que do Nada vem Presena) parece guardar algo de sua origem, uma insuficincia ontolgica que se confirma em seu desaparecimento, isto , em sua volta ao Nada. O devir o esquema do advento de um ser que no consegue por completo emergir do Nada e que , por ele, reabsorvido. Para essa filosofia, a realidade temporal no parece suficientemente forte para vencer a inexistncia e afirmar-se a si mesma63. Tudo se passa como se o Nada fosse mais primitivo do que a noo de algo, como se o ser surgisse sobre o fundo do nada. Como resultado desta origem angustiante, teramos, entre outras coisas, o privilgio compulsivo do eterno e a desqualificao temerosa do temporal. Um novo monismo e o problema da multiplicidade Eu havia dito anteriormente que o conceito bergsoniano de intuio nada tem a ver com uma noo clssica de intuio como a apreenso mental imediata do que imediatamente claro e distinto ao esprito. Ao contrrio, ao fazer a crtica do negativo, Bergson procura vincular a intuio apreenso daquilo que traz em si mesmo sua prpria diferena. Esta uma definio possvel de durao: trata-se de uma passagem, de uma mudana, de um devir, mas de um devir que dura, de uma mudana que a prpria substncia64. De onde se segue as duas caractersticas fundamentais da durao como temporalidade: a continuidade e a heterogeneidade. Pois a durao temporalidade no mais pensada a partir

    61 SARTRE, Ltre et le nant,p. 41 62 HEGEL, Wissenschaft der Logik I, p.18 63 PRADO Jr. , idem, p. 45 64 DELEUZE, Le bergsonisme, p. 29

  • do instante descontnuo (como no caso de Descartes), mas atravs de uma particular coexistncia de estruturas temporais heterogneas (como o passado e o presente). Notemos inicialmente que a durao no exatamente uma experincia psicolgica, embora ela ainda aparea como fato da conscincia em Ensaios sobre os dados imediatos da conscincia. Ela progressivamente ser compreendida como a essncia varivel das coisas que fornece as bases para uma ontologia complexa. Esta noo de durao como o que se caracteriza como continuidade e heterogeneidade permitir Deleuze constituir, atravs de sua leitura de Bergson, um dos seus conceitos filosficos centrais: o Ser como multiplicidade. Antes de analisarmos o conceito de multiplicidade, notemos uma estratgia fundamental. A intuio um mtodo de diviso que visa insistir na diferena de natureza presente em entes que misturam durao e matria, reificando com isto a durao. Mas, atravs desta distino trata-se de apreender a pura durao e mostrar que o Ser fundamentalmente durao, que os outros modos de ser (como o espao, a matria) no tm realidade prpria, mas so momentos reificados da durao. Ou seja, retornamos a um novo monismo, para usar um termo de Deleuze. Como se no interior da crtica bergsoniana houvesse um movimento do dualismo em direo ao monismo. Alain Badiou viu, neste modo deleuzeano de pensar Bergson, a exposio da essncia do prprio mtodo de Deleuze: em Deleuze, o alm de uma oposio esttica (quantitativa), acaba sempre sendo a assuno qualitativa de um dos seus termos65. Proposio decisiva por lembrar como trata-se, no fundo, de recuperar as condio para tematizar a univocidade do Ser atravs da intuio, j que tambm o mtodo de Deleuze seria a elaborao escrita de uma forma singular de intuio. Mas h aqui uma questo maior: como pensar a univocidade do Ser atravs de uma durao que , ao mesmo tempo, continuidade mas tambm heterogeneidade? Ou seja, como pensar a univocidade de um Ser que multiplicidade? Lembremos, inicialmente que o conceito de multiplicidade no corresponde noo filosfica do mltiplo em geral, j que no se trata de opor Um e mltiplo. Na verdade, a noo de multiplicidade nos evitaria pensar em termos de Um e mltiplo. A noo de multiplicidade ser paulatinamente desenvolvida por Deleuze at Diferena e repetio. L ela aparecer como estrutura na qual os elementos no tm funo subordinada, mas so determinados por relaes recprocas que no podem ser compreendidas como relaes de oposio. Em O bergsonismo, a multiplicidade aparece como o que conhece dois tipos: a multiplicidade discreta ou numrica e a multiplicidade contnua.. Esta distino vinha do matemtico alemo Bernhard Riemann que definia uma multiplicidade discreta como aquela cujo princpio mtrico estava em si mesma, j que a medida de suas partes era dada pelo nmero de elementos que ela possua. Por isto, multiplicidades discretas so quantitativas e numerveis. J multiplicidades continuas seriam aquelas cujo princpio mtrico estaria fora delas, por exemplo, nas foras que agiriam sobre ela de fora. Por isto, elas no so numerveis. Deleuze baseia-se nesta distino a fim de afirmar que multiplicidades discretas no modificam sua natureza ao se dividir, enquanto multiplicidades contnuas mudariam de natureza ao se dividir e se deixariam medir apenas ao modificar seu princpio mtrico em cada estgio da diviso.

    65 BADIOU, Deleuze, p. 18

  • A durao forneceria o exemplo mais bem acabado de uma multiplicidade contnua por mudar continuamente de natureza ao se dividir (o espao, por sua vez, seria uma multiplicidade discreta). Pensar a durao como multiplicidade discreta nos levaria a paradoxos como aqueles que Zeno, para quem a seta nunca alcanar o alvo porque para chegar at l ela deve passar por cada ponto de uma multiplicidade discreta inumervel. O que apenas demonstra que o movimento temporal no pode ser constitudo a partir da distino discreta dos instantes. Da mesma forma, contrariamente durao, o objeto seria aquilo que no muda de natureza ao se dividir: O que caracteriza o objeto a adequao recproca do dividido e das divises, do nmero e da unidade66, Ou seja, o objeto um ente partes extra partes. Da porque podemos identificar o objeto, assim como a matria, imagem, estaticidade de um dispositivo de descrio que apresenta e determina tudo o que mostra. Esta idia de um processo que muda continuamente de natureza leva Deleuze a afirmar que: ao conceito platnico de alteridade, Bergson substitui um conceito aristotlico, este de alterao, isto para transform-lo na prpria substncia. O Ser alterao, a alterao substncia67. desta noo do ser como alterao que nasce o conceito de multiplicidade. No entanto, talvez este ponto s possa ser claramente compreendido se lembrarmos de um outro conceito decisivo para Deleuze que comea a ser construdo atravs da leitura da filosofia de Bergson: o virtual. Ao falar de um processo de muda continuamente de natureza ao se realizar, poderamos pensar estar diante de uma idia maior da dialtica: a temporalidade como o que porta em si mesmo sua prpria negao, ou seja, o tempo como aquilo que, no sendo, , j que o tempo a negao da configurao de todo instante, ele o que aparece negando todo instante. sua maneira, Deleuze quer evitar esta estratgia dialtica fazendo apelo noo de virtual. Podemos inicialmente afirmar que o virtual , para Deleuze, o principal nome do ser, j que ele o fundamento do dado, daquilo que aparece. Mas o virtual estabelece uma relao peculiar de fundamentao. Devemos sempre lembrar que, em ltima instncia, fundar estabelecer o existente atravs da sua relao a um padro que me permite orientar-me no pensamento. A partir do recurso ao fundamento posso garantir o critrio do verdadeiro e do falso, do bom e do mal, do justo e do injusto. Mas qual a natureza da relao entre o fundamento e o existente? Deleuze conhece dois tipos de relao: aquela que se deixa compreender como potncia e real (uma figura possvel do par clssico entre potncia e ato), assim como aquela que se deixa compreender como virtual e atual. No caso, do par potncia/real, o real aparece como sendo a imagem do possvel que ele realiza. Esta realizao implica uma certa seleo. De todos os possveis, de todas as figuraes possveis, uma realiza-se como real, uma passa no real. Assim,