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SEGUE A RELAÇÃO DAS MATÉRIAS DO MÓDULO I: LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL DIREITO CIVIL – PARTE GERAL DIREITO CIVIL FAMÍLIA DIREITO CIVIL SUCESSÕES TUTELA DOS INTERESSES DIFUSOS E COLETIVOS ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE DIREITO COMERCIAL – TOMO I DIREITO COMERCIAL – TOMO II DIREITO PROCESSUAL CIVIL – TOMO I LEGISLAÇÃO PENAL DIREITO PENAL – PARTE GERAL – TOMO I DIREITO PENAL – PARTE GERAL – TOMO II DIREITO PENAL ESPECIAL DIREITO PROCESSUAL PENAL DIREITO CONSTITUCIONAL DIREITO ADMINISTRATIVO DIREITO TRIBUTÁRIO TESTES

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SEGUE A RELAÇÃO DAS MATÉRIAS DO MÓDULO I:

LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL DIREITO CIVIL – PARTE GERAL DIREITO CIVIL FAMÍLIA DIREITO CIVIL SUCESSÕES TUTELA DOS INTERESSES DIFUSOS E COLETIVOS ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE DIREITO COMERCIAL – TOMO I DIREITO COMERCIAL – TOMO II DIREITO PROCESSUAL CIVIL – TOMO I LEGISLAÇÃO PENAL DIREITO PENAL – PARTE GERAL – TOMO I DIREITO PENAL – PARTE GERAL – TOMO II DIREITO PENAL ESPECIAL DIREITO PROCESSUAL PENAL DIREITO CONSTITUCIONAL DIREITO ADMINISTRATIVO DIREITO TRIBUTÁRIO TESTES

LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO I

1CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO IDIREITO CIVIL - LICC – PROF. FLÁVIO AUGUSTO MONTEIRO DE BARROS

LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL

GENERALIDADES

A Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-lei 4.657/1942) não faz parte do Código Civil. Embora anexada a ele, antecedendo-o, trata-se de um todo separado.

Ademais, o Código Civil regula os direitos e obrigações de ordem privada, ao passo que a Lei de Introdução disciplina o âmbito de aplicação das normas jurídicas.

A Lei de Introdução ao Código Civil é norma de sobredireito ou de apoio, consistente num conjunto de normas cujo objetivo é disciplinar as próprias normas jurídicas. De fato, norma de sobredireito é a que disciplina a emissão e aplicação de outras normas jurídicas.

CONTEÚDO

A Lei de Introdução ao Código Civil cuida dos seguintes assuntos:

a. vigência e eficácia das normas jurídicas; b. conflito de leis no tempo; c. conflito de leis no espaço; d. critérios hermenêuticos; e. critérios de integração do ordenamento jurídico; f. normas de direito internacional privado (arts. 7.º a 19).

Na verdade, como salienta Maria Helena Diniz, é uma lei de introdução às leis, por conter princípios gerais sobre as normas sem qualquer discriminação. É, pois, aplicável a todos os ramos do direito.

CONCEITO E CLASSIFICAÇÃO

Lei é a norma jurídica escrita, emanada do Poder Legislativo, com caráter genérico e obrigatório.

A lei apresenta as seguintes características:

a. generalidade ou impessoalidade: porque se dirige a todas as pessoas indistintamente. Abre-se exceção à lei formal ou singular, que é destinada a uma pessoa determinada, como, por exemplo, a lei que concede aposentadoria a uma grande personalidade pública. A rigor, a lei formal, conquanto aprovada pelo Poder Legislativo, não é propriamente uma lei, mas um ato administrativo;

b. obrigatoriedade e imperatividade: porque o seu descumprimento autoriza a imposição de uma sanção;

c. permanência ou persistência: porque não se exaure numa só aplicação;

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d. autorizante: porque a sua violação legitima o ofendido a pleitear indenização por perdas e danos. Nesse aspecto, a lei se distingue das normas sociais;

Segundo a sua força obrigatória, as leis podem ser:

a. cogentes ou injuntivas: são as leis de ordem pública, e, por isso, não podem ser modificadas pela vontade das partes ou do juiz. Essas leis são imperativas, quando ordenam um certo comportamento; e proibitivas, quando vedam um comportamento.

b. supletivas ou permissivas: são as leis dispositivas, que visam tutelar interesses patrimoniais, e, por isso, podem ser modificadas pelas partes. Tal ocorre, por exemplo, com a maioria das leis contratuais.

Segundo a intensidade da sanção, as leis podem ser:

a. perfeitas: são as que prevêem como sanção à sua violação a nulidade ou anulabilidade do ato ou negócio jurídico.

b. mais que perfeitas: são as que prevêem como sanção à sua violação, além da anulação ou anulabilidade, uma pena criminal. Tal ocorre, por exemplo, com a bigamia.

c. menos perfeitas: são as que estabelecem como sanção à sua violação uma conseqüência diversa da nulidade ou anulabilidade. Exemplo: o divorciado que se casar sem realizar a partilha dos bens sofrerá como sanção o regime da separação dos bens, não obstante a validade do seu matrimônio.

d. imperfeitas: são aquelas cuja violação não acarreta qualquer conseqüência jurídica. O ato não é nulo; o agente não é punido.

LEI DE EFEITO CONCRETO

Lei de efeito concreto é a que produz efeitos imediatos, pois traz em si mesma o resultado específico pretendido. Exemplo: lei que proíbe certa atividade.

Em regra, não cabe mandado de segurança contra a lei, salvo quando se tratar de lei de efeito concreto. Aludida lei, no que tange aos seus efeitos, que são imediatos, assemelha-se aos atos administrativos.

CÓDIGO, CONSOLIDAÇÃO, COMPILAÇÃO E ESTATUTO

Código é o conjunto de normas estabelecidas por lei. É, pois, a regulamentação unitária de um mesmo ramo do direito. Exemplos: Código Civil, Código Penal etc.

Consolidação é a regulamentação unitária de leis preexistentes. A Consolidação das Leis do Trabalho, por exemplo, é formada por um conjunto de leis esparsas, que acabaram sendo reunidas num corpo único. Não podem ser objeto de consolidação as medidas provisórias ainda

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não convertidas em lei (art. 14, § 1.º, da LC 95/1998, com redação alterada pela LC 107/2001).

Assim, enquanto o Código cria e revoga normas, a Consolidação apenas reúne as já existentes, isto é, não cria nem revoga as normas. O Código é estabelecido por lei; a Consolidação pode ser criada por mero decreto. Nada obsta, porém, que a Consolidação seja ordenada por lei, cuja iniciativa do projeto compete à mesa diretora do Congresso Nacional, de qualquer de suas casas e qualquer membro ou comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional. Será também admitido projeto de lei de consolidação destinado exclusivamente à declaração de leis ou dispositivos implicitamente revogados ou cuja eficácia ou validade encontra-se completamente prejudicada, outrossim, para inclusão de dispositivos ou diplomas esparsos em leis preexistentes (art. 14, § 3.º, da LC 95/1998, com redação alterada pela LC 107/2001).

Por outro lado, a compilação consiste num repertório de normas organizadas pela ordem cronológica ou matéria.

Finalmente, o Estatuto é a regulamentação unitária dos interesses de uma categoria de pessoas. Exemplos: Estatuto do Idoso, Estatuto do Índio, Estatuto da Mulher Casada, Estatuto da Criança e do Adolescente. No concernente ao consumidor, o legislador optou pela denominação Código do Consumidor, em vez de Estatuto, porque disciplina o interesse de todas as pessoas, e não de uma categoria específica, tendo em vista que todos podem se enquadrar no conceito de consumidor.

VIGÊNCIA DAS NORMAS

SISTEMAS DE VIGÊNCIA

O Direito é uno. A sua divisão em diversos ramos é apenas para fins didáticos. Por isso, o estudo da vigência e eficácia da lei é aplicável a todas as normas jurídicas e não apenas às do Direito Civil.

Dispõe o art. 1.º da Lei de Introdução ao Código Civil que: “Salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o país 45 (quarenta e cinco) dias depois de oficialmente publicada”. Acrescenta seu § 1.º: “Nos Estados estrangeiros, a obrigatoriedade da lei brasileira, quando admitida, se inicia 3 (três) meses depois de oficialmente publicada”.

Vê-se, portanto, que se adotou o sistema do prazo de vigência único ou sincrônico, ou simultâneo, segundo o qual a lei entra em vigor de uma só vez em todo o país.

O sistema de vigência sucessiva ou progressiva, pelo qual a lei entra em vigor aos poucos, era adotado pela antiga Lei de Introdução ao Código Civil. Com efeito, três dias depois de publicada, a lei entrava em vigor no Distrito Federal, 15 dias depois no Rio de Janeiro, 30 dias depois nos Estados marítimos e em Minas Gerais, e 100 dias depois nos demais Estados.

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Conquanto adotado o sistema de vigência único, Oscar Tenório sustenta que a lei pode fixar o sistema sucessivo. No silêncio, porém, a lei entra em vigor simultaneamente em todo o território brasileiro.

VACATIO LEGIS

Vacatio legis é o período que medeia entre a publicação da lei e a sua entrada em vigor.

Tem a finalidade de fazer com que os futuros destinatários da lei a conheçam e se preparem para bem cumpri-la.

A Constituição Federal não exige que as leis observem o período de vacatio legis. Aliás, normalmente as leis entram em vigor na data da publicação. Em duas hipóteses, porém, a vacatio legis é obrigatória:

a. Lei que cria ou aumenta contribuição social para a Seguridade Social. Só pode entrar em vigor noventa dias após sua publicação (art. 195, § 6.º, da CF).

b. Lei que cria ou aumenta tributo. Só pode entrar em vigor noventa dias da data que haja sido publicada, conforme art. 150, III, c, da CF, com redação determinada pela EC 42/2003. Saliente-se, ainda, que deve ser observado o princípio da anterioridade.

Em contrapartida, em três hipóteses, a vigência é imediata, sem que haja vacatio legis, a saber:

a. Atos Administrativos. Salvo disposição em contrário, entram em vigor na data da publicação (art. 103, I, do CTN).

b. Emendas Constitucionais. No silêncio, como esclarece Oscar Tenório, entram em vigor no dia da sua publicação.

c. Lei que cria ou altera o processo eleitoral. Tem vigência imediata, na data da sua publicação, todavia, não se aplica à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência (art. 16 da CF).

CLÁUSULA DE VIGÊNCIA

Cláusula de vigência é a que indica a data a partir da qual a lei entra em vigor.

Na ausência dessa cláusula, a lei começa a vigorar em todo o país 45 dias depois de oficialmente publicada. Nos Estados estrangeiros, a obrigatoriedade da lei brasileira, quando admitida, inicia-se três meses depois de oficialmente publicada. A obrigatoriedade da lei nos países estrangeiros é para os juízes, embaixadas, consulados, brasileiros residentes no estrangeiro e para todos os que fora do Brasil tenham interesses regulados pela lei brasileira. Saliente-se, contudo, que o alto mar não é território estrangeiro, logo, no silêncio, a lei entra em vigor 45 dias depois da publicação (Oscar Tenório).

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Os prazos de 45 dias e de três meses, mencionados acima, aplicam-se às leis de direito público e de direito privado, outrossim, às leis federais, estaduais e municipais, bem como aos Tratados e Convenções, pois estes são leis e não atos administrativos.

Conforme preceitua o § 2.º do art. 8.º da LC 95/1998, as leis que estabelecem período de vacância deverão utilizar a cláusula “esta lei entra em vigor após decorridos (o número de) dias de sua publicação oficial”. No silêncio, porém, o prazo de vacância é de 45 dias, de modo que continua em vigor o art. 1.º da LICC.

FORMA DE CONTAGEM

Quanto à contagem do prazo de vacatio legis, dispõe o art. 8.º, § 1.º, da LC 95/1998, que deve ser incluído o dia da publicação e o último dia, devendo a lei entrar em vigor no dia seguinte.

Conta-se o prazo dia a dia, inclusive domingos e feriados, como salienta Caio Mário da Silva Pereira. O aludido prazo não se suspende nem se interrompe, entrando em vigor no dia seguinte ao último dia, ainda que se trate de domingo e feriado.

Convém esclarecer que se a execução da lei depender de regulamento, o prazo de 45 dias, em relação a essa parte da lei, conta-se a partir da publicação do regulamento (Serpa Lopes).

LEI CORRETIVA

Pode ocorrer de a lei ser publicada com incorreções e erros materiais. Nesse caso, se a lei ainda não entrou em vigor, para corrigi-la, não é necessária nova lei, bastando a repetição da publicação, sanando-se os erros, reabrindo-se, destarte, o prazo da vacatio legis em relação aos artigos republicados. Entretanto, se a lei já entrou em vigor, urge, para corrigi-la, a edição de uma nova lei, que é denominada lei corretiva, cujo efeito, no silêncio, se dá após o decurso do prazo de 45 dias a contar da sua publicação. Enquanto não sobrevém essa lei corretiva, a lei continua em vigor, apesar de seus erros materiais, ressalvando-se, porém, ao juiz, conforme esclarece Washington de Barros Monteiro, o poder de corrigi-la, ainda que faça sentido o texto errado.

Por outro lado, se o Poder Legislativo aprova um determinado projeto de lei, submetendo-o à sanção do Presidente da República, e este acrescenta determinados dispositivos, publicando em seguida o texto, a hipótese será de inconstitucionalidade, por violação do princípio da separação dos poderes. De fato, o Presidente da República não pode acrescentar ou modificar os dispositivos aprovados pelo Poder Legislativo, devendo limitar-se a suprimi-los, pois, no Brasil, é vedado o veto aditivo ou translativo, admitindo-se apenas o veto supressivo.

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LOCAL DE PUBLICAÇÃO DAS LEIS

A lei é publicada no Diário Oficial do Executivo. Nada obsta a sua publicação no Diário Oficial do Legislativo ou Judiciário. Todavia, o termo inicial da vacatio legis é a publicação no Diário Oficial do Executivo.

Caso o Município ou o Estado-membro não tenham imprensa oficial, a lei pode ser publicada na imprensa particular.

Nos municípios em que não há imprensa oficial nem particular, a publicação pode ser feita mediante fixação em lugar público ou então em jornal vizinho ou no órgão oficial do Estado.

PRINCÍPIO DA OBRIGATORIEDADE DAS LEIS

De acordo com esse princípio, consagrado no art. 3.º da LICC, ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece. Trata-se da máxima: nemine excusat ignorantia legis.

Assim, uma vez em vigor, todas as pessoas sem distinção devem obedecer a lei, inclusive os incapazes, pois ela se dirige a todos.

Diversas teorias procuram justificar a regra acima. Para uns, trata-se de uma presunção jure et jure, legalmente estabelecida (teoria da presunção). Outros defendem a teoria da ficção jurídica. Há ainda os adeptos da teoria da necessidade social, segundo a qual a norma do art. 3.º da LICC é uma regra ditada por uma razão de ordem social e jurídica, sendo, pois, um atributo da própria norma.

Aludido princípio encontra exceção no art. 8.º da Lei das Contravenções Penais, que permite ao juiz deixar de aplicar a pena se reconhecer que o acusado não tinha pleno conhecimento do caráter ilícito do fato.

PRINCÍPIO JURA NOVIT CURIA

O princípio do jura novit curia significa que o juiz conhece a lei. Conseqüentemente, torna-se desnecessário provar em juízo a existência da lei.

Esse princípio comporta as seguintes exceções:

a. direito estrangeiro; b. direito municipal; c. direito estadual; d. direito consuetudinário.

Nesses casos, a parte precisa provar o teor e a vigência do direito.

PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE DAS LEIS

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De acordo com esse princípio, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue (art. 2.º da LICC). Assim, só a lei pode revogar a lei. Esta não pode ser revogada por decisão judicial ou por ato do Poder Executivo.

Em regra, as leis têm efeito permanente, isto é, uma vigência por prazo indeterminado, salvo quanto as leis de vigência temporária.

A não aplicação da lei não implica na renúncia do Estado em atribuir-lhe efeito, pois a lei só pode ser revogada por outra lei.

REPRISTINAÇÃO

Repristinação é a restauração da vigência de uma lei anteriormente revogada em virtude da revogação da lei revogadora.

Sobre o assunto, dispõe o § 3.º do art. 2.º da LICC: “salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência”.

Assim, o efeito repristinatório não é automático; só é possível mediante cláusula expressa. No silêncio da lei, não há falar-se em repristinação. Se, por exemplo, uma terceira lei revogar a segunda, a primeira não volta a viger, a não ser mediante cláusula expressa.

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QUESTÕES

1. O que é norma de sobredireito ou de apoio? 2. A LICC faz parte do Código Civil? É aplicável apenas ao Direito Civil? 3. O que é lei formal ou singular? 4. O que são leis cogentes? 5. Qual a diferença entre lei imperativa e lei proibitiva? 6. O que são leis supletivas? 7. O que são leis perfeitas, leis mais que perfeitas, leis menos perfeitas e

leis imperfeitas? 8. O que é lei de efeito concreto? 9. É cabível mandado de segurança contra lei? 10. Qual é a diferença entre Código e Consolidação? 11. O que é estatuto? 12. O que é sistema de vigência único ou sincrônico? 13. O que é vacatio legis?14. A vacatio legis é obrigatória? 15. No silêncio, a vacatio legis é sempre obrigatória? 16. O que é cláusula de vigência? 17. No silêncio, qual é o prazo de vacância? 18. Qual a forma de contagem do prazo de vacatio legis?19. O que é lei corretiva? 20. Para corrigir os erros materiais de uma lei, é necessária lei corretiva? 21. O que é o princípio da obrigatoriedade das leis? Há exceção a esse

princípio?22. O que é o princípio da continuidade das leis? 23. O que é repristinação? É possível a sua ocorrência?

DIREITO CIVIL PARTE GERAL

TOMO I

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO I

1CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO IDIREITO CIVIL - PARTE GERAL - PROF. FLÁVIO AUGUSTO MONTEIRO DE BARROS

INTRODUÇÃO À PARTE GERAL

A ESTRUTURA DO CÓDIGO

Em um País, como esclarece Miguel Reale, há duas leis fundamentais: a Constituição e o Código Civil. A primeira estabelece a estrutura e as atribuições do Estado em função do ser humano e da sociedade civil. A segunda se refere à pessoa humana e à sociedade civil como tais, abrangendo suas atividades essenciais.

O Código Civil atual é dividido em seis partes: a. Parte Geral – elaborada por José Carlos Moreira Alves. b. Direito das Obrigações – elaborada por Agostinho de Arruda Alvim. c. Direito de Empresa – elaborada por Sylvio Marcondes. d. Direito das Coisas – elaborada por Ebert Vianna Chamoun. e. Direito de Família – elaborada por Clóvis do Couto e Silva. f. Direito das Sucessões – elaborada por Torquato Castro.

O eminente jurista Miguel Reale foi o coordenador-geral e o responsável pela codificação. O Projeto do Código Civil foi aprovado pela Câmara dos Deputados em 1994, figurando como relator-geral o saudoso Deputado Ernani Satyro. Em novembro de 1997, o Projeto foi aprovado pelo Senado Federal, com base no parecer final do relator-geral, Senador Josaphat Marinho, com 332 emendas.

Dentre as inovações do Código em vigor, destaca-se a unidade do Direito das Obrigações, justificada pelo fato de o Código Comercial de 1850 se tornar completamente superado. O novo Código Civil, em seguida ao Direito das Obrigações, introduz uma parte nova, que é o Direito de Empresa. A idéia, preconizada pelo jurista Caio Mário da Silva Pereira, de elaborar um Código das Obrigações separado do Código Civil, foi rejeitada, mantendo-se a unidade da codificação.

PRINCÍPIOS

São três os princípios norteadores do Código Civil de 2002, a saber: a. Princípio da Socialidade; b. Princípio da Eticidade; e c. Princípio da Operabilidade.

O Princípio da Socialidade consiste na prevalência dos interesses coletivos sobre os individuais. Aludido princípio se opõe ao sentido individualista que motivou o Código Civil anterior. Dessa forma, surgiu um novo conceito de posse, a posse-trabalho, reduzindo-se o prazo de usucapião, se o possuidor instalar no imóvel a sua moradia ou realizar investimentos de interesse social e econômico.

2CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO IDIREITO CIVIL - PARTE GERAL - PROF. FLÁVIO AUGUSTO MONTEIRO DE BARROS

O Princípio da Eticidade é o que confere maior poder ao Juiz para decidir o caso concreto, não só suprindo as lacunas da lei, mas também resolvendo os litígios com base na eqüidade, quando autorizado pelo ordenamento jurídico, ou quando a norma expressa for deficiente ou inajustável para o caso concreto. No novo Código, nem tudo se resolve por meio de preceitos normativos expressos, pois são fartas as referências à eqüidade, à boa-fé, à justa causa e demais critérios éticos. O grande número de hipóteses em que a decisão deve se basear em critérios ético-jurídicos amplia, em nome de uma solução mais justa ou eqüitativa, os poderes do magistrado. Como esclarece Miguel Reale, no novo Código não prevalece a crença na plenitude hermética do Direito Positivo, sendo reconhecida a imprescindível eticidade do ordenamento. Nesse sentido, é posto o Princípio do Equilíbrio Econômico dos Contratos como base ética de todo Direito Obrigacional.

Finalmente, o Princípio da Operabilidade consiste no fato de estabelecer soluções normativas de modo a facilitar a interpretação e a aplicação do direito, eliminando-se, por exemplo, as dúvidas hermenêuticas que persistiam no Código anterior, como a polêmica distinção entre prescrição e decadência. De fato, o Código atual enumera, na Parte Geral, os casos de prescrição, inserindo as hipóteses de decadência em conexão com a disposição normativa que as estabelece.

DAS PESSOAS

DAS PESSOAS NATURAIS

OS SUJEITOS DE DIREITO. CONCEITO. ESPÉCIES

Sujeito de direito é o ente referido pela norma jurídica como sendo o titular ou o possível titular de direitos e obrigações. Como ensina Fábio Ulhoa Coelho, “sujeito de direito é o centro de imputação de direitos e obrigações referidos em normas jurídicas”.

Saliente-se, desde logo, que nem todo sujeito de direito é pessoa, embora a maioria da doutrina utilize as expressões como sinônimas.

Considerando-se que direito subjetivo é o poder de agir atribuído a um sujeito ou titular, força convir, como assevera Washington de Barros Monteiro, que, presente determinado direito, há de existir forçosamente um sujeito que lhe tenha a titularidade.

Modernamente, entende-se que esse sujeito pode ser de duas categorias: personalizados e despersonalizados.

Os sujeitos personalizados são os dotados de personalidade jurídica. Significa que podem praticar a maioria dos atos e negócios jurídicos. Esses sujeitos são: a pessoa física e a pessoa jurídica.

Os sujeitos despersonalizados, por sua vez, como revela Fábio Ulhoa Coelho, “podem praticar apenas os atos inerentes à sua finalidade (se possuírem uma) ou para os quais estejam especificamente

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autorizados”. Esses sujeitos são: o nascituro e as chamadas quase pessoas jurídicas (espólio, massa falida, herança jacente, condomínio edilício e pessoa jurídica sem registro). Esses entes não desfrutam de personalidade jurídica, mas, como veremos, podem figurar em algumas relações jurídicas.

PESSOA. CONCEITO. ESPÉCIES

Pessoa, na acepção jurídica, é o titular de direitos e obrigações. Nesse sentido, pessoa é espécie do gênero sujeito de direito ou sujeito da relação jurídica. É, pois, o único ente dotado de personalidade jurídica.

Duas são as espécies de pessoas: a. pessoa natural ou pessoa física: é o ser humano. b. pessoa jurídica ou pessoa moral ou pessoa coletiva: organizações que

visam à realização de um certo interesse.

PERSONALIDADE JURÍDICA

CONCEITO

Personalidade jurídica é a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações.

Tanto a pessoa física quanto a pessoa jurídica são dotadas dessa personalidade.

No tocante à pessoa natural, a personalidade emana do simples nascimento com vida, ao passo que a pessoa jurídica de direito privado só a adquire a partir do registro do seu ato constitutivo no Cartório competente. Assim, o registro da pessoa humana é meramente declaratório, ao passo que o da pessoa jurídica é constitutivo.

Dispõe o art. 1.º do CC que “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”. Portanto, não existe, no Brasil, ser humano destituído de personalidade jurídica, esta é inerente à natureza humana. Quanto aos apátridas, que não pertencem a Estado algum, também desfrutam de personalidade jurídica. Igualmente os estrangeiros e os doentes mentais. No Brasil, cumpre observar que, ao tempo da escravatura, os escravos não eram pessoas, equiparavam-se às coisas.

Quanto aos animais, não são pessoas. Por conseqüência, não podem adquirir direitos e obrigações. Igualmente, as almas e santos. Nulos são, portanto, os contratos e testamentos em favor desses seres.

Início da personalidade O início da personalidade jurídica varia conforme se trate de

pessoa física ou de pessoa jurídica. A personalidade civil da pessoa física começa a partir do

nascimento com vida (art. 2.º do CC). Como se vê, o nosso Código acolheu a teoria natalista, que exige, para a aquisição da personalidade, o nascimento com vida, desvencilhando-se da teoria da concepção, que defende o início da

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personalidade desde a concepção, e da teoria da viabilidade, adotada na França, que condiciona o início da personalidade à existência fisiológica de vida, isto é, de órgãos essenciais ao corpo humano.

Saliente-se, porém, que a personalidade é regida pela lei do domicílio, conforme preceitua o art. 7.º da LICC. Portanto, tratando-se de mulher grávida domiciliada fora do Brasil, torna-se perfeitamente possível a adoção da teoria da concepção, que atribui personalidade ao nascituro desde a concepção, se essa doutrina for a abraçada no país de origem. Da mesma forma, poderá ser acolhida, nesse caso, a teoria da viabilidade.

Como vimos, adotou o nosso legislador a teoria da natalidade: a personalidade começa a partir do nascimento com vida. Discorrendo sobre o assunto, Washington de Barros Monteiro assevera: “Para que ocorra o fato do nascimento, ponto de partida da personalidade, preciso será que a criança se separe completamente do ventre materno. Ainda não terá nascido enquanto a este permanecer ligada pelo cordão umbilical. Não importa que o parto tenha sido natural, ou haja exigido intervenção cirúrgica. Não importa, outrossim, tenha sido a termo ou fora de tempo”. No tocante à ruptura do cordão umbilical, cremos não ser necessária, pois, como assevera Clóvis Beviláqua, para que o nascimento com vida se perfaça basta que a criança respire o ar atmosférico, razão pela qual também torna-se dispensável a separação completa do ventre materno.

É insuficiente, contudo, o nascimento; urge ainda que a criança tenha nascido com vida para que se lhe reconheça a personalidade. Sobre a prova do nascimento com vida, cumpre mencionar a docimasia hidrostática de Galeno, segundo a qual os pulmões do recém-nascido são colocados num recipiente d’água: se sobrenadarem é porque respirou, nascendo com vida; o que não sucede com os pulmões que não respiram. Acrescente-se, porém, que viver é respirar, de modo que a prova dessa respiração pode ser suprida por testemunhas que presenciaram os vagidos e movimentos da criança.

No Brasil, para a aquisição da personalidade, pouco importa o tempo de vida. Portanto, desde que tenha respirado, serão necessários dois registros: o de nascimento e o de óbito. Se, ao revés, não houver respirado, lavrar-se-á apenas o registro de óbito do nascituro, sendo vedado o registro do nascimento diante do fato de não ter sido pessoa.

Não se exige também o formato humano. Basta que promane do ventre materno. Se, ao revés, for dotado de caracteres humanos, mas não emanar de mulher, não será considerado pessoa.

No concernente ao início da personalidade das pessoas jurídicas de direito privado, dispõem os arts. 45 e 985 do CC que tal fato ocorre com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro.

As sociedades simples estão no livro do direito de empresa, mas devem ser registradas no Registro Civil das Pessoas Jurídicas (art. 998 do CC).

Assim, as sociedades, associações, fundações, organizações religiosas e partidos políticos adquirem personalidade jurídica a partir da inscrição de seus atos constitutivos no Cartório de Registro Civil das

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Pessoas Jurídicas. As sociedades empresárias devem ser inscritas na Junta Comercial.

No concernente à personalidade das pessoas jurídicas de direito público, como, por exemplo, autarquias, emana diretamente da lei que as criou.

Conteúdo da personalidade Com relação ao conteúdo da personalidade jurídica, cumpre

mencionar que implica na admissibilidade para prática dos atos e negócios jurídicos em geral. Essa amplitude, contudo, é restrita à personalidade das pessoas naturais e das pessoas jurídicas de direito privado (sociedade, associação, fundação, organização religiosa e partido político), às quais se aplicam o princípio da legalidade, previsto no art. 5.º, II, da CF, que as autoriza a praticar quaisquer atos ou negócios jurídicos não proibidos por lei. O que não é proibido é permitido. Assim, uma sociedade, por exemplo, pode comprar uma fazenda de gado. O nosso Código afastou-se da teoria da ultravires, que manda invalidar os negócios jurídicos estranhos ao objeto social da pessoa jurídica. O tema, porém, não é pacífico; alguns juristas, com base no art. 1.015, parágrafo único, inciso III, do CC, sustentam que teria sido adotada a teoria da ultra vires. Discordamos dessa exegese, porque o aludido dispositivo não proíbe a prática de atos estranhos ao objeto social, mas apenas o excesso em relação às operações evidentemente estranhas aos negócios da sociedade.

Por outro lado, a personalidade das pessoas jurídicas de direito público é mais restrita, porque em relação a elas o princípio da legalidade apresenta outro sentido. Com efeito, no âmbito do direito público, o princípio da legalidade significa que o administrador só pode praticar os atos administrativos autorizados por lei. Se a lei não autoriza é porque é proibido.

Fim da personalidade A existência da pessoa natural termina com a morte (art. 6.º,

primeira parte, do CC). A morte pode ser: real, presumida ou ficta. A morte real é a que pressupõe a existência do cadáver. É

atestada pelo médico. Se não houver médico, será atestada por duas pessoas que tiverem presenciado ou verificado o fato (art. 77 da Lei 6.015/1973). Com base no atestado de óbito, o Cartório de Registro Civil lavra o registro de óbito, e, em seguida, expede a respectiva certidão de óbito. Modernamente, prevalece o entendimento de que a verdadeira morte é a cerebral do tipo encefálica, revelada pela ausência de impulsos cerebrais (linha reta no eletroencefalograma, art. 3.º, § 1.º, da Lei 9.434/1997 e Resolução CFM n. 1.480/97), pois a morte clínica, isto é, a cessação das funções circulatórias e respiratórias, por si só, é insuficiente.

A morte presumida, por sua vez, ocorre quando, a despeito de o cadáver não ser encontrado, há um juízo de probabilidade acerca de sua ocorrência, apurada por meio do silogismo lógico. Pode verificar-se em duas hipóteses:

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a. se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida (art. 7.º, I, do CC). O art. 88 da Lei 6.015/1973 contém preceito similar, pois também presume a morte de uma pessoa desaparecida em catástrofe, quando estiver provada a sua presença no local do desastre e não for possível encontrar o cadáver para exame. No Código Civil de 2002, não se exige o desaparecimento em catástrofe, isto é, em um grande acontecimento, bastando dois requisitos: o perigo de vida e a probabilidade da morte.

b. se alguém desaparecido em campanha ou feito prisioneiro não for encontrado até dois anos após o término da guerra (art. 7.º, II, do CC). Enquanto na hipótese anterior a probabilidade da morte é extrema, na hipótese em apreço a morte também é provável, mas não de forma extrema, razão pela qual é necessário o decurso de dois anos após o término da guerra. Anote-se que, antes desse prazo, a morte não pode ser declarada, ao passo que na hipótese anterior esse prazo não é exigido.

Nessas hipóteses de morte presumida, a medida cabível é a ação de justificação de óbito e não a ação declaratória de ausência. O juiz prolatará sentença declaratória de morte presumida, fixando a data do falecimento. A declaração de morte presumida, nesses casos, somente poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento (parágrafo único do art. 7.º do CC).

Outro caso de morte presumida é o previsto na Lei 9.140/1995, referente às pessoas desaparecidas no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988, acusadas de participar de atividades políticas. Essas pessoas, cujos nomes são elencados pela aludida lei, são reconhecidas como mortas, independentemente de sentença. O legislador as declarou mortas. Quanto aos militantes políticos desaparecidos, cujos nomes a lei não menciona, urge que o interessado proponha a ação declaratória de morte presumida, com base na Lei 6.683/1979, adotando-se o rito sumário. Entretanto, a Lei 10.875/2004, que alterou a Lei 9.140/1995, dispõe que se o Anexo da Lei não mencionar o nome de uma pessoa, a Comissão Especial, mediante requerimento do interessado, poderá reconhecera condição de anistiado.

Por outro lado, a morte ficta, como veremos adiante, é a que se verifica com a sentença definitiva de ausência, prolatada depois de dez anos do trânsito em julgado da sentença que concedeu a abertura da sucessão provisória. Na ausência, há apenas uma suspeita de morte e não propriamente uma probabilidade. A medida cabível é a ação declaratória de ausência, e não a ação de justificação de óbito.

Finalmente, a morte civil, consistente na perda da personalidade durante a vida, correspondente a capitis diminitio máxima do direito romano, não encontra guarida em nosso ordenamento jurídico, pois a personalidade é irrenunciável. Há, porém, um resquício de morte civil em relação ao herdeiro excluído por indignidade, que, para o fim de herança, é

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considerado morto, tanto que os seus descendentes herdam em seu lugar, por representação. Outro resquício de morte civil ocorre em relação ao militar declarado indigno do oficialato, ou com ele incompatível, pois perderá o seu posto e a respectiva patente, ressalvado à sua família o direito à percepção das suas pensões, como se houvesse falecido (art. 142, § 3.º, VI, da CF/88 e Decreto-lei 3.038/1941, art. 7.º).

COMORIÊNCIA

Comoriência é a morte de duas ou mais pessoas, na mesma ocasião, sendo elas herdeiras entre si.

Em não se apurando a ordem cronológica dos óbitos, o art. 8.º do CC presume a comoriência, independentemente de sexo, idade ou estado civil, considerando-os simultaneamente mortos.

Assim, enquanto a premoriência, isto é, a morte precedente, e a pós-moriência, isto é, a morte subseqüente, devem ser comprovadas, a comoriência é presumida. Na dúvida sobre quem tenha falecido primeiro, o Código presume o falecimento conjunto.

O efeito da comoriência é o seguinte: os comorientes não herdam entre si. Não haverá transmissão de bens entre os comorientes. Imagine, por exemplo, um casal sem descendentes e ascendentes, em que o único herdeiro do marido, além da sua esposa, seja um primo, e, por sua vez, a única herdeira da varoa, além do marido, seja a sua irmã. Se o casal falece no mesmo evento, podem ocorrer as seguintes situações: a. apura-se que o marido pré-morreu à esposa. Esta recolhe a herança

daquele, transmitindo em seguida à sua irmã. Haverá dois fatos geradores do imposto causa mortis.

b. apura-se que a mulher pré-morreu ao marido. Este recolhe a herança daquela, transmitindo em seguida ao seu primo. Igualmente, incidirão dois impostos causa mortis.

c. não se apura quem morreu primeiro. Nesse caso, presume-se a comoriência, sendo certo que os comorientes não herdarão entre si. Assim, a herança do marido será transmitida para seu primo; a herança da esposa, para a sua irmã. Em cada herança, incidirá um único imposto causa mortis.

QUASE PESSOA JURÍDICA

Ao lado da pessoa natural e da pessoa jurídica há um ente intermediário que pode figurar em algumas relações jurídicas. É a chamada quase pessoa jurídica ou ente despersonalizado.

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Com efeito, trata-se de determinados patrimônios especiais ou órgãos públicos que, conquanto destituídos de personalidade jurídica, titularizam alguns direitos e obrigações. Não podem ser reduzidos à coisa nem alçados ao status de pessoas.

Esses entes despersonalizados são de duas ordens: a. patrimônios especiais: assemelham-se às pessoas jurídicas de direito

privado, mas não se revestem dessa natureza jurídica, pois não constam no rol do art. 44 do CC. É o caso do espólio, massa falida, herança jacente, condomínio edilício e pessoa jurídica sem registro. Esses entes têm legitimação ad processum, pois podem ser autor e réu nas ações patrimoniais (art. 12, incisos III, IV, V, VII e IX, do CPC), mas não desfrutam de capacidade aquisitiva. Com efeito, não podem adquirir bens, figurando, por exemplo, como beneficiários de um contrato de doação ou então em testamento, porquanto não gozam de personalidade jurídica, inviabilizando-se, destarte, o registro do imóvel alienado. Abre-se uma exceção ao condomínio edilício, pois o § 3.º do art. 63 da Lei 4.591/1964 permite-lhe a adjudicação da unidade do adquirente remisso. O aludido dispositivo legal só permite essa adjudicação na fase de construção, atribuindo direito de preferência ao condomínio nas vinte e quatro horas seguintes à realização da segunda praça. No Estado de São Paulo, contudo, o magistrado Venício Antonio de Paula Salles, titular da 1.ª Vara de Registros Públicos da Capital, conferiu ao condomínio o poder de adjudicação ou arrematação de bem imóvel em execução movida em face de condômino por não pagamento da taxa condominial, mesmo após o término da construção. Acrescente-se ainda que o espólio pode alienar bens com autorização judicial, por força do art. 992, I, do CPC. Igualmente, a massa falida. Não podem, porém, figurar como adquirentes de bens, pois, como frisado, não desfrutam de personalidade jurídica.

b. órgãos públicos: são os componentes de uma pessoa política, isto é, da União, Estados-membros, Municípios e Distrito Federal. Exemplos: Câmara dos Vereadores, Assembléia Legislativa, Congresso Nacional, Câmara dos Deputados, Senado Federal, Tribunal de Contas, Tribunal de Justiça, Ministério Público, Secretarias de Governo etc. Esses entes podem, porém, impetrar mandado de segurança para a defesa de suas atribuições institucionais, por força do art. 5.º, LXIX, da CF. A Mesa do Senado e a Mesa da Câmara dos Deputados ainda podem mover a ação direta de inconstitucionalidade, conforme preceitua o art. 103, II e III, da CF. O Ministério Público, como é sabido, pode propor as ações penais públicas e ações civis para defesa de interesses individuais indisponíveis, difusos ou coletivos. Afora essas exceções, nenhuma outra ação pode ser ajuizada por esses entes. Jamais poderão figurar no pólo passivo de uma relação processual, sob pena de carência de ação, salvo quando se tratar de mandado de segurança ou habeas data. Não se pode, por exemplo, mover ação trabalhista contra a Câmara dos Vereadores nem ação de indenização contra o Tribunal de Justiça ou o Ministério Público. Também

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não se pode vender ou doar bens a esses órgãos, pois, não sendo eles pessoas, inviabiliza-se o registro do bem.

NASCITURO

A lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro (art. 2.º do CC). O nascituro é pessoa condicional, pois a aquisição da personalidade depende do nascimento com vida. A rigor, o nascituro, à exceção do direito de nascer, não tem direito adquirido, mas apenas expectativas de direitos (direito in fieri).

Todavia, o nascituro pode figurar em algumas relações jurídicas, a saber: a. a doação feita ao nascituro valerá, sendo aceita pelo seu representante

legal (art. 542 do CC); b. o testamento pode ser feito em favor de nascituro (art. 1.798 do CC); c. o nascituro pode ser reconhecido pelos pais (parágrafo único do art. 1.609

do CC). Esses três atos mencionados acima só produzirão efeitos

se sobrevier o nascimento com vida. Tratando-se de natimorto, opera-se a caducidade desses atos, porquanto elaborados sob condição suspensiva. Não se pode, a propósito, vender bens para o nascituro, porque as hipóteses previstas no Código Civil relativas a direitos do nascituro são exaustivas, não os equiparando em tudo ao já nascido. O nascituro é representado pelos pais. Dar-se-á, porém, curador ao nascituro se o pai falecer estando grávida a mulher, e não tendo esta o poder familiar (art. 1.779 do CC). Se a mulher é capaz, ela mesma exerce o poder familiar sobre o nascituro; nesse caso, não há falar-se em nomeação de curador. Se a mulher estiver interditada seu curador será também curador do nascituro, por força do instituto da curatela prorrogada (art. 1.779, parágrafo único, do CC).

Portanto, dá-se curador ao nascituro apenas quando presentes três requisitos: a. que o pai faleça estando grávida a mulher; b. que esta não tenha o poder familiar; c. que ela ainda não esteja interditada.

O interesse em se nomear curador ao nascituro ocorre quando houver expectativa de recebimento de alguma herança, legado ou doação.

A jurisprudência tem reconhecido o direito de alimentos em favor do nascituro, legitimando-o a promover a ação de alimentos. De fato, se a lei põe a salvo os seus direitos, desde a concepção, nada mais justo do que lhe atribuir o direito de ação. De nada adiantaria essa salvaguarda dos seus interesses se ele não pudesse mover as ações judiciais destinadas à defesa desses direitos.

Por outro lado, o nascituro ainda pode figurar no pólo passivo de uma relação processual. Tal ocorre, por exemplo, na ação anulatória de doação ou testamento feitos em seu favor.

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Finalmente, o embrião in vitro não é sujeito de direito, mas apenas objeto de direito. Com efeito, a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro (art. 2.º do CC). A expressão concepção deve ser entendida como sendo a fecundação in utero ou então a implantação do embrião in vitro no útero. À míngua de legislação disciplinando o assunto não há como antecipar-lhe a personalidade para o momento da fertilização laboratorial, mesmo porque a sua posterior implantação no útero subordina-se ao puro arbítrio dos pais, que podem perfeitamente revogar a autorização anterior. A implantação no útero, portanto, é um ato sob condição puramente potestativa, que é vedada por lei, no art. 122, segunda parte, do CC, e, por isso, não se lhe pode atribuir qualquer efeito antes da concretização dessa implantação in utero. O assunto, porém, não é pacífico. Fábio Ulhoa Coelho, por exemplo, salienta que se os genitores manifestaram a vontade por escrito de ver um ou mais dos embriões fertilizados desenvolverem-se como seres humanos, os seus direitos devem ser preservados desde a fertilização in vitro, caso a criança venha a nascer com vida, ainda que já esteja morto um dos pais.

É pacífico, porém, que o embrião in vitro ainda não implantado no útero é apenas objeto de direito. Após essa implantação ganha o status de nascituro e os seus direitos devem então ser preservados.

Para uns, a preservação desses direitos ocorre a partir da implantação no útero; outros, ao revés, sustentam que essa preservação deve retroagir à data da fertilização laboratorial, na hipótese de os genitores terem manifestado por escrito sua vontade de ver um ou mais embriões fertilizados desenvolverem-se como seres humanos. Essa última solução, a meu ver, gera insegurança jurídica, além de atribuir efeito à condição puramente potestativa, que é repudiada pelo art. 122, última parte, do CC.

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QUESTÕES

1. Em quantas partes é dividido o Código Civil? 2. Quais os princípios do Código Civil? Explique-os. 3. O que é sujeito de direito? 4. Quais as duas categorias de sujeitos de direito? 5. Qual é o único ente dotado de personalidade jurídica? 6. Quais as espécies de pessoas? 7. O que é personalidade jurídica? 8. Quando surge a personalidade jurídica da pessoa física e da pessoa

jurídica? 9. Há alguma pessoa destituída de personalidade jurídica? 10. É válida a doação ou testamento em favor de animais? 11. Qual a diferença entre as teorias natalista, da concepção e da

viabilidade? Qual dessas teorias foi adotada pelo Código Civil? 12. A personalidade jurídica é sempre regida pela lei brasileira? 13. O que é docimasia hidrostática de Galeno? 14. Qual o conteúdo da personalidade da pessoa física, da pessoa jurídica

de direito privado e da pessoa jurídica de direito público? 15. Quando termina a personalidade jurídica da pessoa natural? 16. Qual a diferença entre a morte clínica e a morte cerebral? 17. O que é morte presumida e quais as suas hipóteses? 18. Qual a ação cabível para declarar a morte presumida? 19. O que é morte ficta e qual a ação cabível para declará-la? 20. O que é morte civil e quais os seus resquícios? 21. O que é comoriência e qual o seu efeito? 22. O nascituro pode figurar em quais relações jurídicas? 23. É possível vender bens ao nascituro?

DIREITO CIVIL DIREITO DE FAMÍLIA

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO I

1CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO IDIREITO CIVIL – DIREITO DE FAMÍLIA - PROF. FLÁVIO AUGUSTO MONTEIRO DE BARROS

INTRODUÇÃO

Com a Constituição Federal de 1988, surgiu um novo direito de família. Este, até então, limitava-se à união, pelo casamento, entre o homem e a mulher.

A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado e, hoje, é oriunda não apenas do casamento, mas também da união estável entre o homem e a mulher e da comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (art. 226 e §§ 3.º e 4.º da CF). Essa última entidade familiar é chamada família monoparental.

A família deve ser protegida pelo Estado (art. 226, caput, da CF). Este concretiza essa proteção editando leis cogentes, que lhe assegurem a harmonia, organização e o bem-estar das pessoas.

No Brasil, não prevalece a concepção segundo a qual a família é dotada de personalidade jurídica, tanto é que o Código não a inclui no rol das pessoas jurídicas (art. 41). Ademais, não há lei atribuindo-lhe personalidade jurídica.

CONTEÚDO E CONCEITO

Podemos dividir o estatuto do direito de família em sete partes:

a. casamento; b. união estável; c. relações de parentesco; d. poder familiar; e. alimentos; f. bem de família; g. tutela e curatela.

Feitas essas considerações, arriscamo-nos a propor a seguinte definição:

“Direito de família é o conjunto de princípios e normas que disciplinam o casamento, a união estável, as relações de parentesco, os alimentos, o bem de família e os institutos de proteção ao incapaz”.

As normas que disciplinam o direito de família, em regra, são cogentes, isto é, de ordem pública, insuscetíveis de modificação por vontade das partes. O interesse do Estado em manter a organização social, tendo a família como a base da sociedade, sobrepõe-se aos interesses individuais, de modo que no Código, à exceção do regime de bens, não se costuma deparar com normas dispositivas, isto é, derrogáveis por vontade das partes.

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Os direitos de família são ainda personalíssimos, isto é, intransferíveis e irrenunciáveis. Assim, ninguém pode transferir ou renunciar sua condição de filho.

A intervenção do Estado sobre esse ramo do direito é intensa, mas não chega a ponto de interferir no planejamento familiar, sob pena de violação dos princípios da dignidade da pessoa humana e da responsabilidade paternal. O planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte das instituições oficiais ou privadas (CF, art. 226, § 7.º).

CASAMENTO

CONCEITO

Casamento é o vínculo entre o homem e a mulher, firmado perante o Estado, com o intuito de constituição de uma família.

A satisfação sexual e a prole comum são apenas conseqüências do casamento, e, por isso, não devem integrar o seu conceito.

NATUREZA JURÍDICA

Segundo a doutrina contratual ou individualista, o casamento é um contrato, porque emana de um acerto de vontades. Esse ponto de vista não pode prevalecer, porque realça apenas o aspecto econômico do matrimônio. Ademais, enquanto o contrato é regido pela autonomia da vontade, o casamento é disciplinado por normas cogentes, impostas pelo Estado.

Uma outra doutrina, chamada institucionalista, vislumbra no casamento uma instituição social do Estado, porque regida por normas de ordem pública, cabendo às partes aderirem ou não; mas, uma vez dada a referida adesão, a vontade dos cônjuges não tem o condão de alterar-lhe os efeitos.

A nosso ver, deve prevalecer a doutrina eclética ou mista, segundo a qual o casamento é simultaneamente instituição e contrato. No que tange à constituição de família, trata-se de verdadeira instituição, porque regida por normas cogentes, mas, no atinente ao regime de bens, prevalece o caráter contratual, tendo em vista a predominância da autonomia da vontade.

PROCESSO DE HABILITAÇÃO

O processo de habilitação é a fase preliminar na qual se verifica se os nubentes preenchem os requisitos para o ato nupcial.

Por meio da habilitação visa-se evitar a realização de casamentos vedados pela lei.

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O requerimento de habilitação para o casamento será firmado por ambos os nubentes, de próprio punho, ou, a seu pedido, por procurador.

A habilitação será feita perante o oficial do registro civil, instruída com os documentos elencados no art. 1.525, e, após a audiência do Ministério Público, será homologada pelo juiz (art. 1.526). A necessidade de intervenção judicial a toda e qualquer habilitação mostra-se incompatível com a realidade, tendo em vista que, em regra, a questão restringe-se a simples conferência de documentos, atividade meramente administrativa, sem qualquer conteúdo jurisdicional. A nosso ver, o art. 1.526 deve ser interpretado restritivamente, no sentido de se remeter ao Juiz Corregedor Permanente apenas as habilitações matrimoniais em que o oficial registrador antever questões relativas à identificação da presença de impedimentos (art. 1.521) ou causas suspensivas (art. 1.523), bem como nas hipóteses de segundas núpcias e quando não atingida a maioridade civil (arts. 1.517 e 1.520). Nesse sentido o brilhante parecer da Egrégia Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo, da lavra do eminente Juiz Marcelo Fortes Barbosa Filho, aprovado pelo digníssimo Corregedor-Geral da Justiça, Desembargador Luiz Tâmbara.

Estando em ordem a documentação, o oficial lavrará os proclamas de casamento, que se afixará em quinze dias nas circunscrições do Registro Civil de ambos os nubentes, e, obrigatoriamente, publicar-se-á na imprensa local, se houver (art. 1.527).

O parágrafo único do art. 1.527 dispõe que a autoridade competente, havendo urgência, poderá dispensar a publicação dos proclamas. A autoridade competente é o juiz de direito (art. 69 da Lei 6.015/73). A lei não especifica os casos de urgência, mas a doutrina costuma citar a moléstia grave de um dos nubentes, que está prestes à morte; a necessidade de viagem inadiável etc. Antes de deferir o requerimento, o juiz deve ouvir o outro nubente e o Ministério Público.

Verificada a inexistência de fato obstativo, o oficial extrairá o certificado de habilitação (art. 1.531), cuja eficácia será de noventa dias, a contar da data em que foi extraído o certificado (art. 1.532). Após o decurso desse prazo, que é decadencial, o casamento só poderá ser realizado se houver renovação do processo da habilitação.

CAPACIDADE PARA O CASAMENTO

O novo Código, com técnica mais apurada do que o anterior, fixa a distinção entre incapacidade e impedimento matrimonial.

A incapacidade é a inaptidão para contrair casamento com qualquer pessoa que seja; impedimento é a falta de legitimação para contrair núpcias apenas com certas pessoas.

A capacidade para o casamento, isto é, a idade núbil é adquirida aos 16 anos para o homem ou mulher, exigindo-se, porém, a

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autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil. Havendo divergência entre os pais, é assegurado a qualquer deles recorrer ao juiz para a solução do desacordo. Até a celebração do casamento podem os pais, tutores ou curadores revogar a autorização (art. 1.518).

Se ambos os pais denegam a autorização, o menor pode requerer ao juiz a expedição de alvará de suprimento de consentimento (art. 1.519).

Excepcionalmente, será permitido o casamento de quem ainda não alcançou a idade núbil, em caso de gravidez (art. 1.520). Assim, antes da idade núbil, de nada adianta a autorização dos pais, urge que se requeira ao juiz a expedição do alvará de suprimento de idade. O novo Código não faculta mais ao magistrado impor a separação de corpos do casal.

É certo, pois, que o art. 1.520 do CC também permite o casamento, antes da idade núbil, para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal, nos crimes sexuais. Todavia, com o advento da Lei nº 11.106/2005, operou-se a revogação expressa dos incisos VII e VIII do art. 107 do CP, que previa a extinção da punibilidade pelo casamento. Portanto, esta hipótese deixou de figurar como fator autorizante do casamento aos que ainda não têm a idade núbil.

Por outro lado, também não desfruta de capacidade matrimonial o incapaz de consentir ou manifestar, de modo inequívoco, o seu consentimento. Nesse caso, cumpre distinguir os absolutamente e os relativamente incapazes. Os absolutamente incapazes, previstos no art. 3.º, incisos II e III, em hipótese alguma podem contrair casamento; os relativamente incapazes, elencados no art. 4.º, podem se casar mediante autorização do curador ou ato judicial que a supra (art. 1.525, II).

Cumpre, porém, registrar que, à exceção do enfermo mental sem necessário discernimento para os atos da vida civil, por falta de capacidade, a nulidade matrimonial é sempre relativa, nunca absoluta, podendo ocorrer a convalidação do matrimônio, ainda que um dos cônjuges seja absolutamente incapaz (art. 1.550 c/c o art. 1.560).

Finalmente, no Código de 1916, as hipóteses de incapacidade matrimonial eram consideradas impedimentos relativos ou dirimentes privados.

IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS

Vimos que o impedimento é a falta de legitimação para se casar com certa pessoa.

O Código disciplina no capítulo dos impedimentos apenas os impedimentos dirimentes absolutos ou públicos, que são aqueles cuja violação provoca a nulidade absoluta do casamento. Os impedimentos dirimentes relativos, cuja violação provoca a nulidade relativa do casamento, no novo Código, são tratados como incapacidade matrimonial. Quanto aos

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chamados impedimentos meramente impedientes ou proibitivos ou precautórios, cuja violação sequer anula o casamento, são tratados como causas suspensivas do matrimônio.

Os impedimentos absolutamente dirimentes, previstos no art. 1.521, têm por objetivo: a) impedir o casamento incestuoso (incs. I a V); b) preservar a monogamia (inc. VI); c) evitar o casamento motivado pelo homicídio.

Com efeito, não podem casar:

I. os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil. O parentesco civil é o resultante da adoção;

II. os afins em linha reta. A afinidade é vínculo entre o cônjuge ou companheiro e os parentes do outro. Na linha reta, os afins são: o sogro, a sogra, o genro e a nora; na linha colateral, os cunhados. O código prevê o vínculo de afinidade na união estável, dirimindo a controvérsia que reinava no direito anterior (art. 1.595). Assim, o homem que vive em união estável não pode se casar com a filha de sua companheira. Dispõe o § 2.º do art. 1.595 que na linha reta a afinidade não se extingue com a dissolução do casamento ou da união estável. Assim, mesmo estando divorciado, o agente continua sendo afim de sua sogra, estando, pois, impedido de casar-se com ela. Anote-se, por fim, que, na linha colateral, extingue-se a afinidade com a dissolução do casamento, de modo que é lícito o casamento entre ex-cunhados;

III. o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem foi cônjuge do adotante. Ora, tendo em vista a igualdade de direito dos filhos, o presente inciso torna-se desnecessário, porque o impedimento matrimonial já deflui do inciso anterior;

IV. os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até terceiro grau inclusive. Os irmãos são colaterais de segundo grau. Podem ser bilaterais ou germanos, quando têm o mesmo pai e a mesma mãe, e unilaterais, quando só um dos progenitores é o mesmo. Os colaterais de terceiro grau são os tios e sobrinhos. Admite-se, porém, o casamento entre tio e sobrinha ou tia e sobrinho, se eles requererem no processo de habilitação o exame médico pré-nupcial; o juiz então nomeará dois médicos para examinar o problema referente à sanidade da eventual prole; se os médicos descartarem qualquer problema de eugenia, o casamento poderá ser realizado (art. 2.º do Dec.-lei 3.200/41). Sem esse exame médico, porém, o casamento será nulo. Quanto aos primos-irmãos, não há qualquer impedimento, podendo o casamento realizar-se livremente, independentemente de exame médico;

V. o adotado com o filho do adotante. A adoção atribui ao adotado a condição de filho. O filho do adotante é tido como irmão do adotado, de modo que o impedimento justifica-se também pelo inciso IV. Na verdade, o inciso V era desnecessário, porque no novo Código só há adoção plena;

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VI. as pessoas casadas. A bigamia é crime (CP, art. 235). Na verdade, não se trata propriamente de um impedimento e sim de incapacidade matrimonial, porque à pessoa casada é vedado o casamento com qualquer outra pessoa. O Código atual comete o mesmo erro do anterior, pois deveria ter dito que não podem se casar as pessoas vinculadas matrimonialmente. Com efeito, o separado judicialmente não está mais casado; no entanto, é vedado-lhe o casamento, porque se encontra ainda vinculado matrimonialmente;

VII. o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte. O casamento gera uma presunção de conivência no crime de homicídio. Ainda que o cônjuge nada tenha a ver com o homicídio, impõe-se o impedimento. É lícito o casamento na hipótese de absolvição, ainda que por insuficiência de provas, ou extinção da punibilidade, outrossim, quando tratar-se de homicídio culposo. O simples fato de existir um processo-crime em andamento não inviabiliza o matrimônio; a lei exige condenação definitiva; antes disso, milita em prol do acusado o princípio da presunção da inocência. O impedimento deve existir até o momento da celebração do casamento. Se o trânsito em julgado da condenação ocorrer depois do casamento, este permanece intacto.

O Código de 1916 não permitia o casamento do cônjuge adúltero com o seu co-réu, por tal condenado. O novo Código não repete esse impedimento, viabilizando o enlace matrimonial entre eles. Aliás, o delito de adultério acabou sendo revogado pela Lei n. 11.106/2005.

CAUSAS SUSPENSIVAS

As causas suspensivas são as que obstam a celebração do casamento, mas quando infringidas não anulam o ato. Trata-se do chamado casamento irregular. No código anterior figuravam no rol dos impedimentos. Na doutrina, recebiam o nome de impedimentos precautórios ou proibitivos ou meramente impedientes.

O casamento celebrado com infringência dessas causas suspensivas não é nulo nem anulável. É válido, apesar de irregular, impondo-se-lhe, porém, o regime da separação obrigatória de bens (art. 1.641, I).

Essas causas suspensivas da celebração do casamento encontram-se no art. 1.523. Assim, não devem casar:I. o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer

inventário dos bens do casal e dar partilha aos herdeiros. O objetivo da lei é evitar a confusão de patrimônios. É permitido aos nubentes solicitar ao juiz a realização do casamento, provando-se a inexistência de prejuízo ao filho do leito anterior. Tal ocorre, por exemplo, quando o falecido não deixou bens a inventariar;

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II. a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal. O objetivo da lei é evitar a turbatio sanguinis, isto é, um conflito de paternidade, tendo em vista que a presunção de paternidade, nos moldes do art. 1.597, pode militar em favor de ambos, isto é, do atual marido e do marido morto. Afasta-se essa causa suspensiva, provando-se, perante o juiz, o nascimento de filho, ou a inexistência de gravidez, na fluência do prazo (parágrafo único do art. 1.523);

III. o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal. Trata-se de inovação da lei, cujo objetivo é também evitar a confusão de patrimônios. Se se provar, perante o juiz, a inexistência de prejuízo para o ex-cônjuge, o casamento poderá ser celebrado (parágrafo único do art. 1.523);

IV. o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas. O objetivo da lei é proteger o pupilo ou curatelado da influência exercida pelo tutor ou curador. Admite-se, porém, o casamento, na pendência da tutela ou curatela, mediante alvará judicial, provando-se a inexistência de prejuízo para a pessoa tutelada ou curatelada (parágrafo único do art. 1.523).

No Código anterior, admitia-se o casamento mediante permissão paterna ou materna manifestada em escrito autêntico ou testamento; no novo Código isso não é mais possível. Todavia, com a cessação da tutela ou curatela, desde que as contas estejam saldadas, o casamento pode realizar-se, independentemente de alvará judicial.

No Código de 1916, o juiz, o escrivão e seus parentes não podiam casar-se com órfão ou viúva da comarca onde exerceram a jurisdição, salvo licença da autoridade judiciária superior. O novo Código não repete a hipótese, que, por isso, encontra-se revogada.

OPOSIÇÃO DOS IMPEDIMENTOS E DAS CAUSAS SUSPENSIVAS

A oposição é o ato que visa obstar a celebração do casamento.

A legitimidade para apresentar a oposição dos impedimentos é atribuída a qualquer pessoa capaz, aliás, se o juiz, ou o oficial de registro, tiver conhecimento da existência de algum impedimento, será obrigado a declará-lo (art. 1.522). Diferentemente, as causas suspensivas da celebração do casamento podem ser argüidas apenas pelos parentes em linha reta de um dos nubentes, sejam consangüíneos ou afins, e pelos colaterais em segundo grau, sejam também consangüíneos ou afins (art. 1.524). Anote-se que a lei não atribui legitimidade ao testamenteiro nem ao ex-cônjuge. A jurisprudência considera taxativo o rol do art. 1.524. Cumpre desde logo não confundir a

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legitimidade para oposição dos impedimentos e das causas suspensivas com a legitimidade para propor a ação de nulidade ou anulação de casamento. Desse último assunto, cuidaremos oportunamente.

A oposição deve ser formulada por escrito, devidamente instruída com a prova do fato alegado, ou com a indicação do lugar onde possam ser obtidas (art. 1.529).

A oposição impede a realização do casamento até decisão final. O oficial do registro dará aos nubentes ou a seus representantes nota da oposição, indicando os fundamentos, as provas e o nome de quem a ofereceu. Podem os nubentes requerer prazo razoável para fazer prova contrária aos fatos alegados, e promover as ações civis e criminais contra o opoente de má-fé (art. 1.530).

O procedimento da oposição é regulado pelo § 5.º do art. 67 da Lei 6.015/73. Com efeito, se houver apresentação de impedimento, o oficial dará ciência do fato aos nubentes, para que indique em três dias provas que pretendam produzir. Em seguida, o oficial remete os autos a juízo; produzidas as provas pelo opoente e nubentes, no prazo de dez dias, com ciência do Ministério Público, e ouvidos os interessados e o órgão do Ministério Público em cinco dias, decidirá o juiz em igual prazo. Essa decisão é prolatada em processo administrativo, de índole correcional, não fazendo coisa julgada. Se os nubentes não se conformarem com a decisão contrária, poderão rediscutir a matéria em processo judicial.

9CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO IDIREITO CIVIL – DIREITO DE FAMÍLIA - PROF. FLÁVIO AUGUSTO MONTEIRO DE BARROS

QUESTÕES

1. A família é dotada de personalidade jurídica? 2. As normas de direito de família são cogentes ou dispositivas? 3. O Estado pode interferir no planejamento familiar? 4. Por que o casamento é simultaneamente contrato e instituição? 5. O juiz intervém em todos os procedimentos de habilitação? E o MP? 6. Quando é possível dispensar a publicação de proclamas? Qual é a

autoridade competente para tanto? 7. Qual o tempo de eficácia do certificado de habilitação? 8. Qual a diferença entre incapacidade e impedimento matrimonial? 9. Qual é a idade núbil? 10. O representante legal do menor pode revogar a autorização que já havia

dado para a celebração do casamento? 11. Qual é a diferença entre o alvará de suprimento de idade e o alvará de

suprimento de consentimento? 12. É cabível o casamento antes de o menor atingir a idade núbil? 13. Os relativamente incapazes podem contrair casamento? 14. Os absolutamente incapazes, previstos no art. 3°, II e III, do CC, podem

se casar ? 15. A falta de capacidade gera a nulidade absoluta ou relativa do

casamento?16. O que são impedimentos absolutos ou públicos? 17. O homem que vive em união estável pode se casar com a filha de sua

companheira?18. O divorciado ou viúvo pode se casar com a sogra? E com a ex-cunhada? 19. É possível o casamento entre tio e sobrinha? E entre primos? 20. Há algum crime que impede o casamento? 21. O que é casamento irregular? 22. Como os impedimentos precautórios e os impedimentos dirimentes

relativos do Código de 1916 foram disciplinados no Código atual? 23. Qual a conseqüência de o casamento violar as causas suspensivas? 24. Quais são as causas suspensivas da celebração do casamento? Dentre

essas causas, qual foi introduzida pelo Código de 2002? 25. O tutor pode se casar com o pupilo? 26. O juiz pode se casar com viúva ou órfã da comarca onde exerce a

jurisdição?27. Quem tem legitimidade para apresentar a oposição dos impedimentos? 28. Quem tem legitimidade para argüir as causas suspensivas da celebração

do casamento? 29. Qual a conseqüência da oposição? 30. Perante quem é apresentada a oposição e qual o órgão competente para

julgá-la ? Essa decisão faz coisa julgada material?

DIREITO CIVIL DIREITO DAS SUCESSÕES

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO I

1CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO IDIREITO CIVIL - DIREITO DAS SUCESSÕES - PROF. FLÁVIO AUGUSTO MONTEIRO DE BARROS

DIREITO DAS SUCESSÕES

CONCEITO

Direito das sucessões é o conjunto de princípios e normas que regem a transferência da herança, ou do legado, ao herdeiro ou legatário, em razão da morte de alguém.

O direito das sucessões fundamenta-se no princípio da perpetuidade da propriedade, consubstanciada na sua transmissibilidade postmortem.

FORMAS DE SUCESSÃO

No Brasil, são duas as formas de sucessão: a legítima e a testamentária.

Na sucessão legítima ou ab intestato, defere-se a herança aos herdeiros expressamente indicados pela lei, cuja ordem de vocação hereditária encontra-se no art. 1.829.

Dá-se a sucessão legítima quando não houver testamento, ou quando este caducar ou for anulado por decisão judicial.

Por outro lado, na sucessão testamentária, a herança ou legado são deferidos aos herdeiros instituídos ou legatários indicados no ato de última vontade.

A liberdade de testar é absoluta ou relativa? Depende. Em havendo herdeiros necessários

(descendentes, ascendentes e cônjuge), é relativa, porque aos referidos herdeiros é reservada a legítima, consistente em metade da herança líquida, de modo que o testamento só poderá abranger a outra metade disponível. Se, porém, não houver herdeiros necessários, a liberdade de testar é absoluta, e toda a herança é disponível, podendo o testador distribuí-la livremente.

Admite-se também a coexistência das duas formas de sucessão, na hipótese de o testamento não abranger todos os bens, aplicando-se as regras da sucessão legítima em relação aos bens omitidos no testamento.

Finalmente, no Brasil, não se admite uma terceira forma de sucessão, qual seja a contratual ou pacta corvina ou sucessão pactícia. De fato, o art. 426 proíbe o contrato de herança de pessoa viva, quer se trate de pacto aquisitivo (de succedendo), quer renunciativo (de non succedendo). O Código de 1916 abria três exceções: a) nos contratos antenupciais, facultava-se aos nubentes disporem acerca da recíproca e futura sucessão (art. 312); b) nos contratos antenupciais facultava-se, ainda, a realização de doação para depois da morte do doador, em favor dos filhos deste; c) os pais, por ato entre vivos,podiam partilhar os bens entre os descendentes (art. 1.776). O novo Código não repete as duas primeiras exceções, operando-se a revogação global, mas mantém a terceira, qual seja a partilha inter vivos (CC, art. 2.018), que se trata de uma verdadeira sucessão antecipada, porém restrita aos bens presentes.

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ABERTURA DA SUCESSÃO

No art.1.784 consagra-se o princípio de saisine, oriundo do direito francês, segundo o qual com a morte a herança transmite-se desde logo aos herdeiros legítimos e testamentários, ainda que estes ignorem o falecimento. A transmissibilidade abrange o domínio e a posse da herança (CC, art. 1.207) logo que se abre a sucessão, independentemente de qualquer ato do herdeiro.

Quanto ao legatário, a situação é distinta. Se infungível a coisa legada, adquire-lhe a propriedade desde a abertura da sucessão; se fungível, só a adquire após a partilha. Quanto à posse, seja a coisa fungível ou infungível, a aquisição só ocorre após a partilha.

Finalmente, na hipótese de comoriência, isto é, morte simultânea entre o autor da herança e o seu herdeiro ou legatário, aplica-se o art. 8.º, não se operando a transmissibilidade da herança ou legado. Como se vê, os comorientes não herdam entre si, regendo-se a sucessão como se o comoriente jamais houvesse existido.

SUCESSÃO UNIVERSAL E SINGULAR

A sucessão universal é a transferência da totalidade ou de um percentual do acervo deixado pelo de cujus. Os herdeiros legítimos, isto é, indicados pela lei, e os herdeiros instituídos, designados no testamento, sucedem a título universal, porque não há a individualização dos bens que lhes são transmitidos.

Em contrapartida, a sucessão singular é a que recai sobre uma coisa individualizada pelo testador ou sobre um percentual dela. O legatário sempre sucede a título singular.

Assim, é legatário quem recebe, por testamento, uma determinada coisa ou percentual dela. Ao revés, é herdeiro quem recebe, por testamento, um terço de toda a herança.

Os herdeiros legítimos podem ser:

a. necessários: descendentes, ascendentes e cônjuge; b. facultativos: companheiros e colaterais até quarto grau; c. universal: o que recebe a totalidade da herança.

Quanto ao Município, discute-se sobre a sua natureza jurídica. Para uns, trata-se de herdeiro obrigatório, porque não pode renunciar à herança, enquanto outros sustentam que ele não é sequer herdeiro, e sim apenas destinatário da herança. A discussão tem repercussão no princípio de saisine, aplicável tão-somente aos herdeiros. A matéria será abordada no estudo da herança jacente.

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DA CAPACIDADE PARA SUCEDER

A capacidade para suceder regular-se-á pela lei vigente no tempo da abertura da sucessão (art. 1.784). Assim, a nova lei não pode retroagir a sucessões abertas antes da sua vigência.

Quanto à sucessão testamentária, a solução é a mesma, qual seja o herdeiro instituído ou legatário deve ser capaz de suceder ao tempo da abertura da sucessão, ainda que não o seja ao tempo da feitura do testamento. Se, porém, a nomeação se fizer mediante condição, a capacidade é apurada pela lei vigente ao tempo do implemento da condição.

Anote-se que a sentença de reconhecimento da paternidade, ainda que prolatada após a morte do pai, retroage à data da concepção do filho, atribuindo-se a este o respectivo quinhão hereditário.

SUCESSÕES IRREGULARES OU ANÔMALAS OU ANORMAIS

Sucessão irregular é aquela ditada por normas especiais, que alteram a ordem de vocação hereditária prevista no Código Civil.

Vejamos alguns exemplos:

a. O Dec.-lei 3.438, de 17.07.1941, proíbe a sucessão de cônjuge estrangeiro em terrenos da marinha.

b. A Lei 6.858/80 atribui aos dependentes previdenciários do de cujus a sucessão de créditos previdenciários, trabalhistas, FGTS, PIS, Pasep e conta bancária de 500 OTN, desde que não haja outros bens. Dispensa-se o alvará judicial para levantamento desses valores em favor dos dependentes. Se, porém, não houver dependentes, atribui-se a sucessão aos herdeiros legítimos, mediante alvará judicial, dispensando-se, contudo, o inventário.

c. No direito autoral, morrendo o autor sem herdeiros, a obra cai no domínio comum, em vez de destiná-la ao Município (Lei 9.610/98 ).

d. O art, 692, III, do Código de 1916, dispunha que a enfiteuse se extinguia, se o enfiteuta falecesse sem herdeiros. Como se vê, a enfiteuse não integrava a herança jacente.

e. O art. 10 da LICC dispõe que a sucessão é regida pela lei do domicílio do defunto ou ausente, qualquer que seja a natureza dos bens. Se, por exemplo, morrer um argentino, domiciliado no Paraguai, deixando bens no Brasil, aplicar-se-á o Código Civil paraguaio. Este estatuto que designará os herdeiros e os respectivos direitos, sendo certo, porém, que o inventário se realizará no Brasil, de acordo com as nossas leis processuais. Adotou-se o princípio da unidade ou universalidade sucessória, segundo o qual a sucessão é regida por única lei, a do domicílio do de cujus, sejam os bens móveis ou imóveis. Afastou o nosso direito o princípio da fragmentariedadeou pluralidade, o qual prevê para os bens móveis a lei do domicílio ou a da nacionalidade do de cujus, e para os imóveis, a lei da situação do bem. Abre-

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se uma exceção ao princípio da unidade sucessória quando houver cônjuge ou filho brasileiro, ou quem os represente, nesse caso, a lei brasileira é aplicável, se for mais favorável do que a do domicílio do de cujus. Anote-se ainda que a capacidade para suceder não é regida pela lei do domicílio do de cujus, mas pela lei do domicílio do herdeiro ou legatário, conforme § 2.º do art. 10 da LICC. É esta lei que solucionará os problemas referentes à renúncia, deserdação, indignidade e falta de legitimação para suceder.

DA INDIVISIBILIDADE DA HERANÇA

O direito à herança é indivisível (art. 1.791). A indivisibilidade, que abrange o domínio e a posse dos bens hereditários, perdura entre a abertura da sucessão e a partilha, quando então se individualizam os quinhões.

Da indivisibilidade decorrem as seguintes conseqüências:

a. antes da partilha, o co-herdeiro pode alienar apenas a sua quota ideal, isto é, os seus direitos hereditários. Não pode alienar coisa certa e determinada, salvo se houver alvará judicial ou autorização de todos os demais herdeiros;

b. antes de alienar os seus direitos, os demais herdeiros devem ser notificados, os quais poderão exercer o direito de preferência na aquisição do quinhão. Se a alienação ocorrer sem essa notificação, os herdeiros preteridos em seu direito de preferência ou preempção poderão ajuizar ação reivindicatória, dentro do prazo de 180 dias após a transmissão, depositando em juízo o preço (art. 1.795). Sendo vários os co-herdeiros a exercer a preferência, entre eles distribuir-se-á o quinhão, na proporção das respectivas quotas hereditárias;

c. o adquirente dos direitos hereditários não poderá registrar no Registro de Imóveis a cessão, porque a herança é composta de direitos e obrigações, móveis e imóveis, de modo que o registro não pode recair sobre objeto indeterminado. O inciso I do art. 167 da Lei 6.015/73, cujo rol é taxativo, não prevê o registro da cessão de direitos hereditários;

d. qualquer dos co-herdeiros pode ajuizar ações petitórias e possessórias em face de terceiros, visando a defesa de toda a herança.

Por outro lado, o direito à herança é considerado bem imóvel para efeitos legais (CC, art. 80, II). As conseqüências são: a) a cessão de direitos hereditários depende de escritura pública ou termo nos autos do inventário; b) a aludida cessão depende de outorga do cônjuge, salvo no regime de separação obrigatória; c) exige-se a outorga do cônjuge para que o herdeiro possa estar em juízo; d) exige-se, também, a outorga do cônjuge para mover ação em face do herdeiro, se o litígio versar sobre direitos sucessórios (CPC, art. 10).

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QUESTÕES

1. Quais são as duas formas de sucessão? 2. Quais são os herdeiros na sucessão ab intestato?3. Quando é cabível a sucessão legítima? 4. Quais os destinatários da sucessão testamentária? 5. A liberdade de testar é absoluta? 6. É possível a coexistência das duas formas de sucessão? 7. O que é sucessão pactícia? É admissível no Brasil? 8. O que é o princípio de Saisine? 9. O herdeiro e o legatário adquirem, desde logo, a propriedade e a posse

da herança ou legado? 10. Qual a diferença entre sucessão universal e sucessão singular? 11. O herdeiro testamentário sucede a título singular ou universal? E o

legatário?12. Elenque os herdeiros legítimos e depois explique o significado de cada

um deles. 13. A nova lei pode retroagir a sucessões abertas antes da sua vigência? 14. A capacidade para suceder é sempre regida pela lei vigente ao tempo da

abertura da sucessão? 15. O que é sucessão irregular ou anômala? 16. Quem são os destinatários dos valores previstos na Lei 6.858/80? Há

necessidade de alvará judicial? 17. No direito autoral, morrendo o autor sem herdeiros, a obra é destinada ao

Município?18. É correto afirmar que, no Brasil, a sucessão é regida pelas leis

brasileiras? 19. O que é o princípio da unidade ou universalidade sucessória? Há

exceção a esse princípio? 20. A capacidade para suceder é regida por qual lei? 21. O herdeiro, antes da partilha, pode alienar coisa certa e determinada da

herança?22. Antes de alienar os seus direitos hereditários, os demais herdeiros devem

ser notificados? 23. A cessão de direitos hereditários pode ser registrada no Registro de

Imóveis?24. Por que qualquer dos co-herdeiros pode ajuizar ações petitórias e

possessórias em face de terceiros? 25. O direito à herança é bem móvel ou imóvel? Qual a conseqüência disso?

TUTELA DOS INTERESSES DIFUSOS E

COLETIVOS

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO I

1CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO IINTERESSES DIFUSOS E COLETIVOS - PROF. ROBERTO BARBOSA ALVES

TUTELA DOS INTERESSES DIFUSOS E COLETIVOS

INTRODUÇÃO

Os interesses de grupos sempre existiram. O que é necessário é estabelecer o momento em que eles passaram a ser disciplinados por nosso ordenamento jurídico e, por conseguinte, adquiriram a força necessária a uma adequada defesa em juízo. A iniciativa pioneira partiu dos professores Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe e Waldemar Mariz de Oliveira Júnior, autores de um anteprojeto de lei de defesa dos interesses transindividuais que, tendo como relator o Professor José Carlos Barbosa Moreira, foi apresentado como tese no I Congresso Nacional de Direito Processual (Porto Alegre, 1983). Este mesmo texto serviu de base para os estudos dos Promotores de Justiça Antônio Augusto Mello de Camargo Ferraz, Edis Milaré e Nélson Nery Júnior, que elaboraram a proposta que, em linhas gerais, se converteu na Lei 7.347, de 24 de julho de 1985 (Lei da Ação Civil Pública). A Lei da Ação Civil Pública alcançou a proteção do meio ambiente, do patrimônio cultural e do consumidor (o texto original, na parte em que previa a defesa de outros interesses difusos ou coletivos, foi vetado). Nela aparecia pela primeira vez um conceito de ação civil pública, caracterizada como aquela ação proposta pelo Ministério Público ou por um dos outros co-legitimados, para tutelar os interesses transindividuais ali disciplinados. Foi também nesta Lei que surgiram pela primeira vez as noções de inquérito civil e de legitimação para a ação civil pública. A Constituição Federal de 1988 consolidou aqueles conceitos da Lei da Ação Civil Pública e os ampliou. A Carta Magna restabeleceu o texto vetado da Lei 7.347/85 e ampliou a proteção a qualquer interesse difuso ou coletivo (artigo 129, III). Além disso, reconheceu as formas de legitimação coletiva (associações, sindicatos, mandado de segurança coletiva, conforme artigos 5º, XXI e LXX, e 232). O Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990) reproduziu a abrangência constitucional. Suas inovações consistiram na admissão do litisconsórcio entre Ministérios Públicos, na criação do compromisso de ajustamento e em ampliações e aperfeiçoamentos introduzidos na Lei da Ação Civil Pública.

CONCEITO DE INTERESSE

Francesco Carnelutti considerava a lide essencial ao processo. Segundo ele, a lide podia ser definida como o conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida. Assim, quando alguém pretende fazer algo e é impedido produz-se um choque entre uma pretensão e uma resistência. Este conflito de interesses passa a ser um litígio quando uma dessas duas pessoas formula contra a outra uma pretensão, e esta lhe

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oponha resistência. Quando a pretensão encontra resistência e não consegue vencê-la por si própria, o conflito deve ser resolvido através do processo. Decompondo-se este conceito, temos o seguinte:

a. pretensão: é a exteriorização da vontade de alguém de exigir seu direito em juízo.

b. a resistência à pretensão caracteriza o conflito de interesses. E os interesses consistem, segundo a clássica definição de Capitant, em qualquer vantagem de ordem pecuniária ou moral.

O termo interesse tem, em verdade, duas acepções. A primeira, em sentido leigo, indica qualquer desejo situado no plano fático: corresponde à idéia de querer, desejar, aspirar, mas não à possibilidade de exigência de que se cumpra. A segunda tem sentido técnico. Tradicionalmente, o Estado e o indivíduo eram os únicos pontos de referência do Direito. Por isso, os interesses eram rigorosamente separados em públicos e privados; e o próprio Direito se dividia em público e privado. Os interesses públicos são aqueles cujo titular é o Estado. Compreendem os interesses públicos primários e os interesses públicos secundários. Os interesses públicos primários são representados pelo bem geral, coletivo, social. Trata-se das aspirações da sociedade. Os interesses públicos secundários consistem no modo pelo qual a administração efetivamente atua, isto é, a forma como o Estado observa os interesses sociais. É evidente, portanto, que nem sempre o interesse do Estado coincide com o interesse geral. Os interesses privados têm o indivíduo como titular. Eles supõem a contraposição de indivíduos entre si, como ocorre, por exemplo, na demanda originada num contrato. Assim, um só indivíduo obtém a satisfação de seu interesse ou suporta os ônus de sua perda. Ao longo do tempo esta divisão foi se tornando mais fluida, e a dicotomia interesse público-interesse privado deixou de ser suficiente para explicar a questão dos interesses. Em primeiro lugar, porque a expressão interesse público é equívoca, ao abranger interesses sociais, coletivos, difusos, indisponíveis, etc. Aliás, a própria idéia de bem comum é discutível: a instalação de uma fábrica, por exemplo, pode representar um bem pelo aspecto econômico e, ao mesmo tempo, significar danos ambientais. Em segundo lugar, a divisão entre interesse público e interesse privado não considera determinados interesses que, pertencendo a grupos de pessoas, apresentam peculiaridades especialmente quanto à legitimação e à extensão da coisa julgada. De fato, numa lide há sempre dois e somente dois interesses contrapostos. Contudo, alguns desses interesses se inserem numa faixa intermediária entre o interesse público e o privado. Ultrapassam o âmbito de

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proteção individual, mas não atingem o status de interesses públicos (para alguns autores, o critério é o da coletivização crescente, em que os interesses difusos são ainda mais abrangentes que o interesse público; assim, seria possível estabelecer a seguinte gradação: interesses individuais – interesses sociais – interesses coletivos – interesses gerais ou públicos – interesses difusos). São aqueles interesses compartilhados por grupos, classes ou categorias de pessoas. Por isso, a lei reconhece que a defesa de tais interesses deve ser diferente; e o acesso individual à justiça é substituído por um acesso coletivo à justiça, que vai permitir uma tutela coletiva dos interesses. Esses interesses são chamados de interesses transindividuais, metaindividuais ou coletivos em sentido amplo.

CARACTERÍSTICAS DA TUTELA COLETIVA

As principais propriedades da tutela coletiva podem ser esquematizadas assim:

a. a controvérsia envolve interesses de um grupo, e não interesses individuais;

b. a legitimação é extraordinária, porque aquele que pede a proteção jurisdicional defende não apenas interesses próprios, mas também interesses alheios;

c. em regra, a reparação do dano é destinada a um fundo comum, e não diretamente aos lesados;

d. a coisa julgada tem efeito erga omnes, isto é, não se restringe às partes em conflito;

e. o acesso à justiça é, normalmente, facilitado pela presença de litigantes habituais (como o Ministério Público, por exemplo), ao invés de litigantes ocasionais.

CATEGORIAS DE INTERESSES METAINDIVIDUAIS

O Código de Defesa do Consumidor conceitua três espécies ou categorias de interesses metaindividuais (artigo 81, parágrafo único): os interesses difusos, os interesses coletivos e os interesses individuais homogêneos.

INTERESSES DIFUSOS

Segundo o CDC, os interesses difusos são aqueles interesses transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato (art. 81, parágrafo único, I).

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Assim, graficamente, pode-se dizer que os interesses difusos têm os seguintes elementos: a. seus titulares são grupos de pessoas. b. estas pessoas não podem ser determinadas. c. os integrantes do grupo estão unidos por uma situação de fato: há,

evidentemente, uma relação jurídica a caracterizar o interesse, mas a união do grupo é determinada por uma situação fática. Exemplo: num dano ambiental há uma relação jurídica, mas o grupo só existe em função do fato de que seus integrantes moram numa mesma região; numa propaganda enganosa há relações jurídicas, mas o grupo existe em função do fato de que aquelas pessoas tiveram acesso à publicidade. Por isso, o interesse difuso é fugaz, mutável: desaparecido ou modificado o fato, desaparece ou muda o interesse. Exemplo: o meio ambiente não era objeto de preocupação há alguns anos; hoje o dano ambiental é passível de proteção coletiva.

d. o objeto da tutela é indivisível, o que significa que a tutela será igual para todos os integrantes do grupo.

INTERESSES COLETIVOS

Os interesses coletivos podem ser conceituados em sentidoamplo ou em sentido estrito. Em sentido amplo, abrangem todos os interesses de grupos, classes ou categorias de pessoas. Em sentido estrito, constituem espécie do gênero interesses transindividuais. Segundo o CDC (artigo 81, parágrafo único, II), os interesses ou direitos coletivos são aqueles interesses transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. Os interesses coletivos não podem ser confundidos com os interesses pessoais do grupo, que não são propriamente interesses coletivos. Exemplo: se uma cooperativa de agricultores pretende aumentar seu capital, este é um interesse individual da cooperativa, e não um interesse coletivo. O que caracteriza o interesse coletivo é a síntese de interesses individuais, que se agrupam para constituir um novo ente. Esquematicamente, os interesses coletivos:

a. têm como titulares grupos de pessoas. b. estas pessoas são determinadas ou determináveis. c. os integrantes do grupo estão unidos por uma situação jurídica: aqui há

também uma situação de fato que caracteriza o interesse, mas, ao contrário do que acontece nos interesses difusos, a união do grupo é determinada por uma relação jurídica. Exemplo: vários alunos de um colégio particular (unidos pela mesma relação jurídica – um contrato) são prejudicados por um reajuste ilegal das mensalidades. Também podem defender interesses coletivos grupos como a família, os sindicatos, as associações e os partidos políticos.

d. o objeto da tutela também é indivisível, o que significa que a tutela será igual para todos os integrantes do grupo.

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INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS

Os interesses individuais homogêneos são definidos pelo CDC (art. 81, parágrafo único, III) como aqueles decorrentes de origem comum. Trata-se, em verdade, de interesses de grupos, categorias ou classes de pessoas determinadas ou determináveis, que compartilham prejuízos divisíveis cuja origem é a mesma. Também é possível dizê-lo de modo esquemático:

a. os interesses individuais homogêneos têm como titulares grupos de pessoas.

b. estas pessoas são determinadas ou determináveis. c. os integrantes do grupo estão unidos por uma situação de fato. Como nos

interesses difusos, aqui também há uma situação jurídica que caracteriza o interesse, mas a união do grupo é determinada por uma relação fática. Exemplo: vários compradores de um modelo de veículo que apresenta o mesmo defeito de fabricação têm em comum o fato de haverem comprado carros.

d. objeto da tutela, aqui, é divisível, o que significa que a tutela poderá ser distinta para cada um dos interessados (exemplo: aquele que comprou dois automóveis com defeito receberá a indenização em dobro).

6CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO IINTERESSES DIFUSOS E COLETIVOS - PROF. ROBERTO BARBOSA ALVES

QUESTÕES

1. O que é lide? 2. Qual a diferença entre interesse público primário e secundário? 3. Por que ao longo do tempo a dicotomia interesse público – interesse

particular deixou de ser suficiente para explicar a questão dos interesses?

4. Como são chamados os interesses compartilhados por grupos, classes ou categorias de pessoas?

5. Quais as principais características da tutela coletiva? 6. Quais ass três espécies de interesses metaindividuais disciplinadas pelo

Código de Defesa do Consumidor? 7. O que são interesses difusos? 8. Quais os elementos dos interesses difusos? 9. O que é interesse coletivo? 10. Quais os elementos do interesse coletivo? 11. Qual a diferença entre interesse difuso e interesse coletivo? 12. O que são interesses individuais homogêneos e quais os seus

elementos?13. Qual a diferença entre interesse difuso e o interesse individual

homogêneo?14. Qual a diferença entre interesse coletivo e interesse individual

homogêneo?

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO I

1CURSO À DISTÂNCIA – MÓDULO I ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - PROF. FAUSTO JUNQUEIRA DE PAULA

CRIANÇA E ADOLESCENTE. PRINCÍPIOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

INTRODUÇÃO E BREVE ESCORÇO HISTÓRICO

O Brasil já era signatário de diversos documentos internacionais, aprovados com amplo consenso da comunidade das nações, quando o legislador constituinte de 1988 editou a Constituição Federal, incorporando a doutrina da proteção integral ao ordenamento jurídico nacional, para abordar a criança e o adolescente, pela primeira vez, como prioridade absoluta, proclamando que são eles sujeitos e titulares de direitos fundamentais e especiais na sua condição peculiar de desenvolvimento, aos quais se subordinam a família, a sociedade e o Estado.

Fruto de intensa mobilização de toda a sociedade e de especialistas da área, secundado pela realização de inúmeros debates e conclaves, o Congresso Nacional aprova o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei Federal nº 8069/90 – que entra em vigor dois anos depois da Constituição da República, suprindo uma lacuna infraconstitucional, pois a antigo Código de Menores, editado em 1979 e inspirado pela doutrina da situação irregular, havia sido praticamente sepultado pela nova ordem jurídica vigente e inúmeros dispositivos sequer foram recepcionados pela nova Carta.

NORMATIZAÇÃO DO DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

O Direito da Criança e do Adolescente nasce com a nova ordem constitucional em 1988, insculpido de modo especial no artigo 227 a 229 e vem a ser regulamentado pela Lei 8069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente, que se harmoniza no plano infraconstitucional com outras normas gerais ou específicas (Código Civil, CLT, Lei de Diretrizes da Educação) que, recepcionadas pela Constituição Federal, completam o arcabouço jurídico que forma o novo ramo do Direito.

A doutrina da proteção integral, alicerce do novo direito, inspira-se na normativa internacional, objeto de tratados e convenções, sendo as mais recentes as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude – Regras de Beijing (Res.40/33 da Assembléia-Geral, 1985), a Convenção sobre os Direitos das Crianças (aprovada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas em 1989 e pelo Congresso Nacional brasileiro em 14.09.90, através do Dec. Legislativo 28 e ratificado com a publicação do Dec. 99.710, em 21.11.90, transformando-se em lei interna), as Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil – Diretrizes de Riad (Assembléia-Geral da ONU, 1990) e as Regras Mínimas das Nações Unidas para Jovens Privados de Liberdade (Assembléia-Geral da ONU, 1990).

Importantes diplomas legais se harmonizam com o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente na composição do Direito da Criança e do

2CURSO À DISTÂNCIA – MÓDULO I ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - PROF. FAUSTO JUNQUEIRA DE PAULA

Adolescente. No direito à educação, a lei de diretrizes e bases de 1996, regula a matéria em harmonia com as regras correspondentes contidas no ECA; em relação aos procedimentos contidos no ECA, são aplicáveis subsidiariamente as normas gerais de processo, sendo que o procedimento recursal é aquele sistematizado do Código de Processo Civil, com algumas alterações.

Instituído pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, com vacatio legis de um ano, o novo Código Civil tratou de temas cuidados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Embora estejam ainda muito vivas as discussões sobre a compatibilidade entre os diplomas jurídicos, parece-nos a melhor senda, o entendimento que o ECA instituiu um microssistema jurídico, que permanece vigente e ligado ao ordenamento brasileiro; e o novo Código se restringe a servir, nos temas correlatos, como norma meramente complementar, especialmente no tocante a assuntos como colocação em família substituta e poder familiar.

Assim, o ECA e o novo Código Civil seguirão convivendo, cabendo ao operador do direito harmonizar suas regras.

O direito trabalhista cuida da proteção ao trabalho do adolescente e a proibição do trabalho infantil.

A característica desse novo direito é a sua composição através de um sistema aberto, sustentado por princípios, cláusulas gerais e conceitos indeterminados, que permite ao intérprete maior liberdade de criação e a atualização da norma diante das exigências hodiernas e das transformações que sempre são necessárias, notadamente numa legislação interdisciplinar que se dirige à tutela de uma gama de direitos fundamentais da pessoa humana na etapa de sua infância e de sua adolescência.

Como é cediço, o risco de um sistema aberto é o maior espaço que se dá ao julgador, que torna menor a segurança jurídica estabelecida pelo positivismo, todavia, no campo onde os perigos seriam maiores – no enfrentamento da delinquência e no amparo ao exercício do poder familiar – o legislador optou, respectivamente, por um sistema semelhante ao garantismo penal para a delinqüência juvenil e de conceitos indeterminados limitados ao preceito específico como utilizado pelo novo Código Civil – reduzindo a margem de manobra e criação do operador do direito tão somente quando se trata de regras limitadoras dos direitos juvenis, permitindo maior flexibilidade na utilização dos instrumentos de defesa de direitos.

A dinâmica de apuração do ato infracional é extremamente garantista e não se tergiversa sobre a natureza retributiva da medida sócio-educativa. De outro lado, exige-se para a perda ou suspensão do poder familiar procedimento contraditório e causa prevista em lei, a qual embora composta de conceitos indeterminados não se compõe por cláusula geral, ficando o juízo de valor do julgador adstrito unicamente ao preceito legal específico.

CONCEITOS DE CRIANÇA E DE ADOLESCENTE

Dispõe o artigo 2º do ECA que criança é a pessoa com até doze anos de idade incompletos e adolescente aquela entre doze e dezoito

3CURSO À DISTÂNCIA – MÓDULO I ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - PROF. FAUSTO JUNQUEIRA DE PAULA

anos de idade. O legislador estatutário abandonou o termo “menor”, que segue utilizado em outros ramos do direito, como, por exemplo, na CLT, no Código Civil e no Código Penal.

É que a expressão “menor”, historicamente, no âmbito do direito da criança, designava um sentido pejorativo, era sinônimo de carente ou infrator, egresso da FEBEM, rotulando, muitas vezes, o petiz desde há mais tenra infância.

Cioso registrar que o critério é puramente cronológico, não se indagando da eventual capacidade de discernimento para determinação da condição jurídica do pequeno. Mas o fundamento da fixação do início da adolescência aos doze anos advém das ciências auxiliares, como a psicologia jurídica e a psiquiatria forense.

Criança e adolescente possuem os mesmos direitos fundamentais e são tutelados integralmente pelo Direito da Criança, contudo, em alguns aspectos, a feição do atendimento será adequada ao estado peculiar do estágio de desenvolvimento. Exemplificando, o ECA dispõe, no §2º do artigo 45, que tratando-se de pessoa maior de doze anos de idade, será necessário seu consentimento para que seja adotado. Como se verá, o atendimento ao adolescente considerado autor de ato infracional (crime ou contravenção penal) será muito diferente daquele dispensado a criança.

Enfim, o Direito da Criança e do Adolescente, bem como o seu mais notável diploma jurídica, o Estatuto da Criança e do Adolescente, destina-se à tutela dos direitos fundamentais das pessoas de até 18 anos de idade, todavia, acentua o parágrafo único do artigo 2º já mencionado, que nos casos expressos a lei se aplicará também às pessoas entre 18 e 21 anos de idade. São exemplos da aplicação estendida, a regra do artigo 40, que trata da adoção da pessoa maior de dezoito anos que, desde o tempo da infância ou da adolescência, já estava sob a guarda ou tutela dos adotantes, e ainda, a disposição do §5º do artigo 121, que possibilita a aplicação e execução da medida sócio-educativa de internação até os 21 anos de idade, desde que o ato infracional tenha sido praticado ao tempo da adolescência, mas no limite acima deverá o jovem ser compulsoriamente liberado.

Nos tempos atuais, em que se nota o recrudescimento da criminalidade violenta, sobretudo nos grandes centros urbanos, vozes se levantam sustentando a diminuição da idade penal para que o adolescente seja submetido ao juízo criminal, subtraindo-o do sistema de atendimento estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

A proposta, além de afrontar cláusula pétrea estabelecida na Constituição da República, não contribui para melhor proteger a sociedade da violência a que está submetida. Percentual mínimo dos crimes graves e violentos é praticado por adolescentes e é cediço que o sistema penitenciário brasileiro está absolutamente falido, o que tem permitido altos índices de fugas, reincidência e violações aos direitos humanos no interior de presídios e todo tipo de local onde se acolhe os condenados.

4CURSO À DISTÂNCIA – MÓDULO I ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - PROF. FAUSTO JUNQUEIRA DE PAULA

Além disso, sabe-se que o agente imputável dispõe de inúmeros subterfúgios legais que impedem sua apenação em regime prisional fechado e que as alternativas à privação de liberdade, como regimes semi-aberto ou aberto, penas restritivas de direitos, suspensão condicional do processo e da pena, ainda estão muito longe que serem eficazes para representar real resposta do Estado frente ao crime, pois salvo raras e honrosas exceções, não passam de medidas formais e burocráticas, sem fiscalização ou acompanhamento de sua execução, o que leva ao descrédito todo o Sistema de Justiça.

Com certeza, a inserção do adolescente nesse cenário, em nada contribuirá para melhor atendimento da criminalidade juvenil, ao contrário, deixará a sociedade ainda mais desprotegida, com um novo contingente de jovens expostos a criminosos adultos e ao recrutamento a preço vil pelo crime organizado que está infiltrado largamente no sistema penitenciário.

Por ocasião da abordagem da “Prática do Ato Infracional” o assunto voltará à baila.

É cediço, outrossim, que a normativa internacional normalmente se refere a criança como sendo a pessoa de até 18 anos de idade, mas como já foi salientado, o legislador do ECA, atento a realidade brasileira, entendeu que devia impor uma proteção diferenciada ao indivíduos como idade inferior a 12 anos.

DA INTERPRETAÇÃO DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

O artigo 6º do ECA inspira-se e, praticamente, repete, o artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, que reza : “Na aplicação desta lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige”, acrescentando que na interpretação se levará em conta, ainda, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.

Importante anotar que, a tutela dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, pela família, sociedade e Estado deve estar harmonizada com o respeito aos direitos sociais e a garantia do bem comum, garantindo a proteção integral com prioridade absoluta sem se esquecer que no entorno da criança há um conjunto de interesses que deve ser respeitado.

Em eventual colidência de interesses jurídicos será preciso aplicar o princípio da proporcionalidade, de modo a optar pelo interesse que mais aproxime-se dos fins sociais da lei e do princípio da dignidade humana, coluna vertebral da proteção integral e do próprio Direito da Infância e da Juventude. Nem sempre é simples valorar o interesse jurídico que deve ser atendido, como por exemplo, nas questões relativas a disciplina escolar ou mesmo na prática do ato infracional, onde o jovem destinatário do ECA deverá se submeter a medidas constrangedoras e mesmo persecutórias, para que interesses sociais e o bem comum sejam assegurados, mas mesmo a aflição imposta deverá possuir acentuado conteúdo pedagógico, sem o qual torna-se ilegal a intervenção.

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PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

O Direito da Criança e do Adolescente se assenta em postulados que determinam todo o seu desenvolvimento e formatam seu conteúdo de modo a esculpir contornos especiais e adequados à realidade nacional. São quatro os princípios informadores do Direito da Criança e do Adolescente que merecem especial destaque da doutrina especializada. Os princípios da proteção integral, da prioridade absoluta, do respeito à condição peculiar da criança e do adolescente de pessoa em desenvolvimento e da participação popular, inspiram cada norma do novo direito.

PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO INTEGRAL

Mais do que um princípio do direito brasileiro a ProteçãoIntegral é uma doutrina difundida em todo o mundo e tem inspirado as nações a consorciarem-se em pactos e convenções internacionais, que acabam por refletir no direito interno. A doutrina da Proteção Integral preconiza o dever do Estado, da sociedade e da família de zelar pela inviolabilidade dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, deixando-os a salvo de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Desse modo, a criança e o adolescente são sujeitos desses direitos, ditos fundamentais, a que se subordinam as pessoas adultas e, notadamente, o próprio Estado, como pessoa jurídica do direito público e a sociedade. No direito nacional, a Proteção Integral tem status de princípio, no qual busca validade toda a norma relativa ao tema da infância e da juventude, sendo a pedra fundamental deste ramo do direito e sua gênese foi a Constituição da República de 1988, precisamente no caput do artigo 227, que praticamente sintetiza a doutrina da proteção integral em uma só sentença. No ensinamento de Paulo Afonso Garrido de Paula, quando dispõe sobre o objeto formal do Direito da Criança e do Adolescente, “ODireito da Criança e do Adolescente, reiterando, tem por objeto a disciplina das relações jurídicas, formas qualificadas de relações interpessoais reguladas pelo Direito, entre crianças e adolescentes, de um lado, e de outro, família, sociedade e Estado. O conjunto dessas relações integra o objeto formal do Direito da Criança e do Adolescente, pouco importando a sede desses dispositivos: Constituição Federal, tratados, convenções e outros documentos internacionais, legislação infraconstitucional, especial ou comum, abrangendo inclusive as normas atópicas.” (O Direito da Criança e do Adolescente e Tutela Jurisdicional Diferenciada, Revista dos Tribunais, p.11) O Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei Federal nº 8069/90, principal norma infraconstitucional que regula o Direito da Criança e do Adolescente, para que não ficasse qualquer dúvida, proclama logo no seu

6CURSO À DISTÂNCIA – MÓDULO I ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - PROF. FAUSTO JUNQUEIRA DE PAULA

artigo 1º que: “Esta lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”. Em seguida, após as disposições preliminares, cuida de regulamentar os direitos fundamentais de crianças e adolescentes e definir os instrumentos de garantia com os quais a família, a sociedade e o Estado cumprirão sua missão constitucional. Pode-se resumir o Estatuto da Criança e do Adolescente como uma grande ampliação do artigo 227 da Constituição da República. A lei, advinda dois anos após a Carta Magna, regulamenta e dá concretude à implantação da doutrina da proteção integral no ordenamento jurídico nacional. Não foi por outra razão que Paolo Vercelone, Magistrado Italiano comentarista do Estatuto da Criança e do Adolescente organizado por Munir Cury, Antônio Fernando do Amaral e Silva e Emílio Garcia Mendez, sustenta que “a lei tem o conteúdo e a forma de uma verdadeira Constituição, como adverte o Título, que usa o termo ‘Estatuto’. Isto vale principalmente para as ‘disposições preliminares’, que abrem o caminho para o elenco dos direitos específicos e para a predisposição dos instrumentos legislativos necessários par a sua atuação concreta.”.... “Trata-se de técnica legislativa usual quando se faz uma revolução, quando se reconhece que uma parte substancial da população tem sido até o momento excluída da sociedade e coloca-se agora em primeiro plano na ordem de prioridades dos fins a que o Estado se propõe.”(Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, Malheiros Editores, p.17).

PRINCÍPIO DA PRIORIDADE ABSOLUTA

Corolário da Proteção Integral, que correria o risco de ser letra morta inserta na lei brasileira, surge com a Constituição Federal o Princípio da Prioridade Absoluta e, pela primeira vez na Norma Magna, o legislador expressamente proclama que criança e adolescente é prioridade absoluta. A prioridade da infância, que sempre teve lugar fácil nos palanques eleitorais desta vez, sem a menor dúvida, foi reconhecida pelo legislador constituinte, dando concretude à opção do Estado de Brasileiro de efetivar os direitos fundamentais da criança e do adolescente. Assim é que o caput artigo 227 da Lei Maior assegura que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde e demais direitos fundamentais. A família há muito dá cumprimento a essa missão, pois não há pai e mãe que deixe de comprar remédio para um filho doente, para gastar com a reforma da pintura da casa. Por outro lado, o mesmo não tem feito o Estado, que mesmo convivendo com a fome e a doença de milhares de brasileiros – crianças e adultos – envereda-se em obras monumentais, algumas abandonadas pela metade e outras recheadas de improbidade, simplesmente para demonstrar poder e marcar a presença política do administrador do momento.

7CURSO À DISTÂNCIA – MÓDULO I ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - PROF. FAUSTO JUNQUEIRA DE PAULA

O Princípio da Prioridade Absoluta tem propiciado melhor destinação orçamentária para a área da infância e juventude e inclusive tem sido o fundamento jurídico para o ajuizamento de inúmeras ações civis públicas contra a própria Administração Pública para compelir o governante a priorizar as iniciativas em prol da criança e do adolescente, mesmo que em detrimento de outras linhas de ação política, sem que isso represente ingerência do Poder Judiciário em questões de mérito administrativo, já que nesse campo a eleição da prioridade não depende do gestor da coisa pública, mas já decorre da própria lei e, cumprir a lei é dever do gestor público. É cediço que o desvio de poder pode e deve ser corrigido pelo Judiciário (TJSP, Ap. 37.609-0, rel. Luís de Macedo). Pormenorizando de modo exemplificativo a norma constitucional, o artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente, depois de repeti-la no caput, define no parágrafo único que a prioridade absoluta compreende:a. primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b. procedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância

pública;c. preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d. destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a

proteção à infância e à juventude. Conforme já advertido, as hipóteses são meramente exemplificativas, o direito da criança e do adolescente terá sempre primazia frente aos outros interesses, podendo a própria lei estabelecer outras situações de prioridade ou, no caso concreto, o juiz decide pela priorização, seguindo o mandamento constitucional. Por exemplo: no que toca à ordem dos processos nos tribunais, os recursos dos procedimentos afetos à justiça da infância e a juventude dispensam revisor e têm preferência na pauta de julgamento, consoante proclama o inciso III, do artigo 198 do Estatuto da Criança e do Adolescente. O recentemente aprovado Estatuto do Idoso – Lei Federal nº 10.741/2003, inspirado no ECA, também proclama que os direitos do idoso são prioritários. Com isso, ao lado da criança e do adolescente, o idoso também possui a garantia do atendimento prioritário aos seus direitos fundamentais, assentando-se tal prerrogativa, na condição peculiar de fragilidade que reclama a especial proteção do Estado e da sociedade.

Forçoso reconhecer que a priorização da criança e do adolescente possui status constitucional, eis que insculpido na própria Carta da República, enquanto a garantia de prioridade do idoso está prevista tão somente em legislação infra-constitucional.

Todavia, o fato da prioridade do idoso verter de lei ordinária não lhe coloca em segundo plano frente as crianças e adolescentes, a todos devendo ser assegurada igualmente a prioridade, somente refletido a hierarquização na fixação da garantia no ordenamento jurídico.

8CURSO À DISTÂNCIA – MÓDULO I ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - PROF. FAUSTO JUNQUEIRA DE PAULA

Por exemplo, no socorro médico emergencial de uma criança e um idoso, ambos terão direito a prioridade pelo critério etário, devendo o socorrente verificar qual deles carece de maior presteza ou atenção pelo critério de saúde, que será o fator de desempate. Estamos ambos em pé de igualmente, qualquer um deles poderá ser primeiramente atendido.

PRINCÍPIO DO RESPEITO A CONDIÇÃO PECULIAR DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE DE PESSOA EM DESENVOLVIMENTO

Cioso perguntar: porque o Estado, a Sociedade e a Família são juridicamente compelidos a assegurar, com absoluta prioridade, a proteção integral aos direitos fundamentais de crianças e adolescentes? Que ninguém se engane, ao assegurar a prioridade aos pequenos, claramente outros interesses serão qualificados como não prioritários. A necessidade de proteção especial e prioritária, advém do fato de crianças e adolescentes serem pessoas em condição peculiar de desenvolvimento e, nesse diapasão, que apresentam hipossuficiência frente a defesa dos seus próprios interesses, além de apresentarem interesses especiais; isso decorre da própria situação de imaturidade, revelada pela constante transformação física, moral, espiritual e social, testificada pela psicologia jurídica desde o início do século passado, quando no campo penal era mister se aferir o discernimento do jovem para dimensionar sua responsabilidade penal. Desta forma, tratando da colocação de uma criança em família substituta ou da imposição de medida sócioeducativa a adolescente considerado autor de ato infracional, exige a norma inspirada pelo princípio em tela, a consideração de que a criança e o adolescente estão em estágio especial de profundas transformações em suas vidas. Por exemplo, o respeito a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento desautoriza eternizar e alongar em demasia a disputa de guarda de uma criança, bem como reclama que entidades de abrigo e internação desempenhem serviços e atividades compatíveis com a idade, sexo, compleição física e maturidade dos acolhidos. Um visível reflexo da preocupação do legislador com a presteza da prestação jurisdicional está na dispensa do revisor nos recursos afetos a infância e juventude, bem como na preferência na pauta de julgamentos, nos a termos do artigo 198 do ECA.

PRINCÍPIO DA PARTICIPAÇÃO POPULAR A Constituição da República, no seu artigo 1º, parágrafo único, consagra a democracia participativa, proclamando que o poder será exercido não só através dos representantes, mas também pelo próprio povo, diretamente. Na senda da democracia participativa, o artigo 227 da Magna Carta convoca a Sociedade para, ao lado do Estado e da Família,

9CURSO À DISTÂNCIA – MÓDULO I ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - PROF. FAUSTO JUNQUEIRA DE PAULA

zelarem pela inviolabilidade dos direitos fundamentais da criança e do adolescente. Vale dizer, a participação popular deve ser assegurada quando se tratar de defesa dos direitos infanto-juvenis. Ao legislador infraconstitucional coube regulamentar e com isso possibilitar com efetividade, a participação da sociedade no cenário da luta pelos direitos das crianças e adolescentes, criando assim diversos instrumentos de protagonismo social, tais como o Conselho Tutelar, Conselhos dos Direitos, Entidades de Atendimento, credenciamento de auxiliares voluntários etc. Como se verá, tais entes constituem formas efetivas de participação popular na discussão das questões e definição de providências destinadas a resolução dos problemas afetos a criança e a adolescentes. Martha de Toledo Machado defende que a participação da comunidade organizada “reforça a noção de proteção integral deles e, penso, deriva também da peculiar condição de pessoa humana em desenvolvimento, pela faceta de maior vulnerabilidade que ela traz em si, mas sobretudo, pela faceta de força potencial de transformação da realidade para redução das desigualdades sociais, ligadas ao princípio fundamental da dignidade humana e aos objetivos fundamentais da República referidos no artigo 3º da Constituição Federal”. (A Proteção Constitucional de Crianças e Adolescentes e os Direitos Humanos, Editora Manole. Pág.141).

10CURSO À DISTÂNCIA – MÓDULO I ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - PROF. FAUSTO JUNQUEIRA DE PAULA

QUESTÕES

1. Em relação aos procedimentos contidos no ECA, quais normas são aplicadas subsidiariamente?

2. O novo Código Civil revogou o ECA em relação à colocação em família substituta e poder familiar?

3. Defina criança e adolescente. Quais as ciências que embasam esses critérios?

4. O ECA é aplicável às pessoas entre 18 e 21 anos? Exemplifique. 5. Quais os quatro princípios informadores do Direito da Criança e do

Adolescente?6. O que é o princípio da Proteção Integral? 7. O que é o princípio da Prioridade Absoluta? 8. Cite quatro exemplos de primazia dos interesses da criança e do

adolescente sobre outros interesses. Há alguma primazia em relação aos recursos?

9. A garantia de atendimento prioritário é exclusiva das crianças e adolescentes?

DIREITOCOMERCIAL

TOMO I

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO I

1CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO I DIREITO COMERCIAL I - PROF. SÍLVIO ANTÔNIO MARQUES

INTRODUÇÃO AO DIREITO COMERCIAL

NOÇÕES GERAIS DE COMÉRCIO

O comércio consiste na atividade humana que visa colocar em circulação riquezas produzidas. No seu estágio primitivo, considerado como economia do escambo, o comércio era exercido através da troca de mercadorias e serviços entre produtores, individuais ou coletivos, e consumidores. Posteriormente, o comércio evoluiu para a fase da economia de mercado (ou economia monetária), que consistia na produção para a venda e não para a troca in natura de produtos e serviços.

Segundo Rubens Requião1, o comércio pode ser entendido sob dois aspectos: o econômico e o jurídico. Sob o aspecto econômico, comércio “é uma atividade humana que põe em circulação a riqueza produzida, aumentando-lhe a utilidade”. Sob o aspecto jurídico, comércio, na clássica definição de Cesare Vivante, é “o complexo de atos de intromissão entre o produtor e o consumidor, que, exercidos habitualmente com fins de lucro, realizam, promovem ou facilitam a circulação dos produtos da natureza e da indústria, para tornar mais fácil e pronta a procura e a oferta".

Partindo do conceito jurídico, decorrem três características principais do comércio: mediação (entre produtor e consumidor), lucratividade (visa a obtenção de vantagem econômica) e habitualidade.

Embora seja muito antigo o comércio, o direito comercial, conforme ensina Fábio Ulhoa Coelho2, surgiu apenas na idade média, com a ascensão da burguesia, sendo um conjunto pretensamente sistemático das normas disciplinadoras do comércio. Aduz o citado autor que só “pretensamente” as normas comerciais são sistemáticas, pois não passam de uma somatória de sub-ramos jurídicos que têm, entre si, a rigor, apenas a ligação com uma classe social e os seus interesses privados. O direito comercial disciplina esses múltiplos interesses dos chamados comerciantes, hoje empresários. No Brasil, a legislação comercial está fragmentada, havendo normas no Código Comercial de 1850, Código Civil de 2002 e em diversas leis esparsas.

O direito comercial, em verdade, é derivado historicamente do direito civil. Sua autonomia ocorreu em virtude das necessidades específicas da atividade mercantil.

A matéria comercial, para Rubens Requião, constitui um conceito de direito positivo, pois é a lei que determina o que é ou não comercial3. Mas ela não é integrada apenas por atos tipicamente comerciais. A elaboração do contrato social e a emissão de títulos de crédito, por

1 Curso de Direito Comercial, p.4, S.Paulo, Saraiva, 1995. 2 Fábio Ulhoa Coelho, Manual de Direito Comercial, p.3, S.Paulo, Saraiva, 1993. 3 Ob.cit.p.23-24.

2CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO I DIREITO COMERCIAL I - PROF. SÍLVIO ANTÔNIO MARQUES

exemplo, não são atos exclusivamente empresariais, mas devem ser estudados no âmbito do direito comercial.

EVOLUÇÃO DO DIREITO COMERCIAL

O direito comercial surgiu na idade média em razão da necessidade imposta pelo tráfico de mercadorias dos diversos povos, em especial dos europeus. Contudo, historicamente há registros da existência de algumas normas antes mesmo da era cristã, conforme narra Rubens Requião: “Os historiadores encontram normas dessa natureza no Código de Manu, na Índia; as pesquisas arqueológicas, que revelaram a Babilônia aos nossos olhos, acresceram à coleção do Museu do Louvre a pedra em que foi esculpida há cerca de dois mil anos a.C o Código do Rei Hamurabi, tido como a primeira codificação de leis comerciais. São conhecidas diversas regras jurídicas, regulando instituições de direito comercial marítimo, que os romanos acolheram dos fenícios, denominadas "Lex Rhodia de Iactu" (alijamento), ou institutos como o "foenus nauticum" (câmbio marítimo).4

Podem ser distinguidas três períodos ou fases no direito comercial: período subjetivo-corporativista, período objetivo dos atos de do comércio e período moderno do direito empresarial. a. Período subjetivo-corporativista (século XII até meados do século XVII): o

direito comercial era um direito classista e fechado, privativo, em princípio, de pessoas matriculadas nas corporações de comércio. Nesta época, as pendências eram resolvidas entre os cônsules eleitos, mas sempre com simplicidade. Algumas cidades da Itália até conseguiram autonomia nessa época, como Veneza, Gênova e Florença, sobretudo em razão do grande poderio econômico. Na Alemanha, no mesmo período, foi constituída uma liga de 80 cidades denominada “Hansa”. Contudo, verificou-se que nem todos os atos dos comerciantes eram comerciais, como, por exemplo a alienação de um imóvel. Surgiu, então, a necessidade de separar os atos de do comércio e os demais atos da vida civil.

b. Período objetivo dos atos de do comércio (a partir do fim do século XVII): em razão da incidência do direito comercial sobre atos da vida civil, que nada tinham de comerciais, passou-se a entender que comerciantes eram aqueles que praticavam determinados atos previstos em lei como comerciais. O Código Comercial francês de 1808 adotou a chamada “Teoria dos atos dedo comércio”, descrevendo quais eram mercantisos atos do comércio e, portanto, quem estava sujeito às normas comerciais.

O Código Comercial brasileiro de 1850, influenciado pelo direito francês, adotou essa teoria dos atos do comércio: comerciante era aquele que exercia atos dedo comércio. Ocorre que, apesar de ter adotado a referida teoria, o nosso Código Comercial não descreveu quais eram os atos de comércio. Somente com a edição do Regulamento n. 737/1850 (art. 19),

4 Ob.cit.p.8.

3CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO I DIREITO COMERCIAL I - PROF. SÍLVIO ANTÔNIO MARQUES

hoje revogado, foram descritos os atos mercantis: a) compra e venda ou troca de bem móvel ou semoventes, para revenda, por atacado ou varejo, industrializado ou não, ou para alugar seu uso; b) operações câmbio, banco e corretagem; c) seguros, fretamentos e riscos; d) quaisquer atividades marítimas e armação ou expedição de navios.

Além dessas atividades, que a doutrina considerava comerciais (pois a lei foi revogada), havia casos excepcionais: a) as sociedades por ações (sociedade anônima e sociedade em comandita por ações - regidas atualmente pela Lei n. 6.404/1976), em qualquer caso, eram consideradas mercantis; b) as empresa de construção (Lei n. 4.068/1962), que apenas vendiam os lotes, estavam sob a égide da lei civil.

Não eram consideradas comerciais as atividades de compra e venda de imóveis, de transporte de pessoas (ambas consideradas prestação de serviços), das cooperativas (Lei n. 5.764/1971), agropecuárias, dos profissionais liberais e de prestação de serviços. c. Período moderno do direito empresarial (a partir da década de 1940) – a

atividade mercantil não é mais caracterizada pela prática de atos de do comércio, mas entendida como o “exercício profissional de qualquer atividade organizada, exceto atividade intelectual, para a produção ou circulação de bens ou de serviços”. Com essa teoria ampliou-se o campo de incidência do direito comercial, que passou a abranger também os prestadores de serviços que se organizam profissionalmente.

A empresa, segundo Alberto Asquini, é um fenômeno multifacetário. Para entendê-la é preciso compreender seus aspectos, que são o subjetivo, o objetivo, o corporativo e o da atividade: a) aspectosubjetivo: por este aspecto, empresário é o titular da empresa e responsável pela articulação dos fatores de produção (capital, mão-de-obra, matéria-prima e tecnologia); b) aspecto objetivo: a empresa constitui é a reunião de um complexo de bens necessários à produção ou circulação de bens e serviços (maquinaria, tecnologia, marcas, etc); c) aspecto corporativo: a empresa resulta dos esforços do empresário e dos trabalhadores com vistas ao implemento do objetivo comum, que é a produção ou circulação de bens ou de serviços; d) aspecto da atividade: a empresa é a atividade de exploração econômica de produção ou circulação de bens ou de serviços.

UNIFICAÇÃO DOS CÓDIGOS CIVIL E COMERCIAL

O direito civil e o direito comercial têm as suas próprias normas e princípios. No Brasil, até a entrada em vigor do novo Código Civil, em 10/01/2003, existia uma divisão legislativa entre o direito comercial e o direito civil. Inclusive, havia um Código Comercial, em vigor desde 1850, e um Código Civil, editado em 1916, além de inúmeros diplomas sobre ambos os ramos do direito. Por isso, houve muitas tentativas de unificação.

O Código Civil, que não encontra similar estrangeiro, segue uma tendência de países desenvolvidos, como a Itália, onde o Código Civil,

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de 1942, reúne o direito civil e o direito comercial. Em verdade, o novo Código não acabou com o direito comercial, mas revogou (parcialmente) o Código Comercial de 1850.

Em suma, pode-se afirmar o seguinte: a) o Código Civil trata da parte geral e especial do direito civil e da parte geral e da maioria dos temas da parte especial do direito comercial; b) o Código Civil somente revogou a parte primeira do Código Comercial (arts. 1º/456), conforme art. 2.045, permanecendo em vigor a Parte Segunda (direito marítimo), cujas regras são praticamente irrelevantes (a parte terceira – sobre quebras - já estava revogada); c) o direito comercial e o direito civil continuarão tendo a sua autonomia, de sorte que se pode concluir que atualmente há uma teoria geral do direito privado.

De acordo com o novo sistema, foram procedidas as seguintes modificações em relação ao direito comercial: a) os antigos comerciantes e os prestadores de serviços foram inseridos no Direito de Empresa; b) são chamados de empresários aqueles indivíduos e sociedades que articulem trabalho próprio e alheio, matéria-prima e capital, com vistas à produção ou circulação de bens ou à prestação de serviços para o mercado; c) não são considerados empresários os profissionais liberais, os artistas e outros que exerçam atividades puramente intelectuais (advogados, engenheiros etc), exceto se a atividade do profissional constituir elemento de empresa, ou seja, de uma atividade econômica organizada (por exemplo, um escritório de engenharia com vários engenheiros empregados, projetistas, etc.); d) o pequeno empresário e o produtor rural terão a oportunidade de se inscrever como empresários, mas, se não o fizerem, não terão as vantagens do regime empresarial, sendo-lhes vedados alguns benefícios, como a recuperação judicial (Lei n. 11.101/2005); e) os títulos de crédito são regulados, em suas generalidades, pelo Código Civil.

É importante frisar que a mudança recentemente aprovada ocorreu em razão de uma evolução legislativa. A própria Constituição Federal, em diversos dispositivos (arts. 21, XI, 37, XIX, 165 §5º, II, 173 §§1º e 2º, 179, 222 §§1º e 2º), trata da “empresa” (estatal, economia mista, jornalística etc) e não mais do “comércio” ou “comerciantes”. Diplomas legislativos inferiores também adotaram a nomenclatura “empresa”, como a Lei n. 9.841/1999 (Lei da Microempresa).

As empresas têm importância fundamental para a sociedade brasileira, pois propiciam o desenvolvimento econômico, tecnológico e científico do País. Atualmente, encontra-se em vigor a Lei Complementar n. 123, de 14 de dezembro de 2006 - Estatuto Nacional das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte (que revogou as Leis n. 9.317/1996 e 9.841/1999), a qual estabelece que a ME e a EPP recebem tratamento privilegiado em relação: a) à apuração e recolhimento de impostos e contribuições sociais; b) cumprimento das obrigações trabalhistas e previdenciárias; c) acesso a crédito e ao mercado, inclusive quanto à preferência mas aquisições de bens e serviços pelos Poderes Públicos, à

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tecnologia, ao associativismo e às regras de inclusão (art. 1º). Referido tratamento diferenciado é gerido pelo Comitê Gestor de Tributação (formadodois membros da Secretaria e dois da Receita previdenciária, como representantes da União, dois dos Estados e do Distrito Federal e dois dos Municípios), quanto aos aspectos tributários, e pelo Fórum Permanente das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (com participação de órgãos federais competentes e de entidades vinculadas ao setor), em relação aos demais assuntos (art. 2º).

De acordo com sistema atual, consideram-se: A) Microempresa (ME) – o empresário individual, a sociedade empresária

ou sociedade simples que aufira receita bruta no ano-calendário inferior ou igual a R$ 240.000,00. Para efeitos legais, receita bruta é o produto da venda de bens e serviços, não se incluindo as vendas canceladas e os descontos incondicionais concedidos.

B) Empresa de pequeno porte (EPP) - o empresário individual, a sociedade empresária ou sociedade simples que aufira renda bruta no ano-calendário superior a R$ 240.000,00 e inferior ou igual a R$ 2.400.000,00.

C) Empresa de grande porte – aquela que tem faturamento bruto anual superior a R$ 2.400.000,00 e não pode se valer dos benefícios da Lei Complementar n. 123/2006.

Por força do art. 4o do Estatuto em exame, na elaboração de normas de sua competência, os órgãos e entidades envolvidos na abertura e fechamento de empresas, dos 3 (três) âmbitos de governo, deverão considerar a unicidade do processo de registro e de legalização de empresários e de pessoas jurídicas, para tanto devendo articular as competências próprias com aquelas dos demais membros, e buscar, em conjunto, compatibilizar e integrar procedimentos, de modo a evitar a duplicidade de exigências e garantir a linearidade do processo, da perspectiva do usuário. Ademais, os mesmos órgãos deverão manter à disposição dos usuários, de forma presencial e pela rede mundial de computadores (world wide web - internet), informações, orientações e instrumentos, de forma integrada e consolidada, que permitam pesquisas prévias às etapas de registro ou inscrição, alteração e baixa de empresários e pessoas jurídicas, de modo a prover ao usuário certeza quanto à documentação exigível e quanto à viabilidade do registro ou inscrição.

Não se inclui no regime diferenciado e favorecido da ME e EPP, para nenhum efeito legal, a pessoa jurídica: I – de cujo capital participe outra pessoa jurídica; II – que seja filial, sucursal, agência ou representação, no País, de pessoa jurídica com sede no exterior; III – de cujo capital participe pessoa física que seja inscrita como empresário ou seja sócia de outra empresa que receba tratamento jurídico diferenciado, desde que a receita bruta global ultrapasse o limite de R$ 2.400.000,00; IV – cujo titular ou sócio participe com mais de 10% (dez por cento) do capital de outra empresa não

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beneficiada pela mesma Lei Complementar, desde que a receita bruta global ultrapasse o limite de R$ 2.400.000,00; V – cujo sócio ou titular seja administrador ou equiparado de outra pessoa jurídica com fins lucrativos, desde que a receita bruta global ultrapasse o limite de R$ 2.400.000,00; VI – constituída sob a forma de cooperativas, salvo as de consumo; VII – que participe do capital de outra pessoa jurídica; VIII – que exerça atividade de banco comercial, de investimentos e de desenvolvimento, de caixa econômica, de sociedade de crédito, financiamento e investimento ou de crédito imobiliário, de corretora ou de distribuidora de títulos, valores mobiliários e câmbio, de empresa de arrendamento mercantil, de seguros privados e de capitalização ou de previdência complementar; IX – resultante ou remanescente de cisão ou qualquer outra forma de desmembramento de pessoa jurídica que tenha ocorrido em um dos 5 (cinco) anos-calendário anteriores; X – constituída sob a forma de sociedade por ações.

No âmbito tributário, a Lei Complementar n. 123/2006 (art. 12) instituiu o Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Simples Nacional ou “Super Simples”), abrangendo o recolhimento, mediante documento único instituído pelo Comitê Gestor, do Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ), Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social - COFINS, Contribuição para o PIS/Pasep, Contribuição para a Seguridade Social (art. 22 da Lei n. 8.212/1991), Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) e Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS). As alíquotas variam conforme a atividade do empresário ou sociedade (comércio, indústria, serviços e locação de bens móveis e serviços em geral), entre 4% e 17,42%, observado o faturamento (Anexo da Lei Complementar n. 123/2006). Assim, a ME que, por exemplo, atua no comércio e tem faturamento bruto anual de R$ 120.000,00, deverá pagar 4% de Simples Nacional, sendo que devem ser destinados 0,21% do total a CSLL, 0,74% a COFINS, 1,80% ao INSS e 1,25% ao ISS. Já a EPP que tem faturamento bruto anual entre R$ 2.280.000,01 e R$ 2.400.000,00 e atua no ramo da prestação de serviços, deverá recolher o Simples Nacional com alíquota de 16,85%, sendo que 6,12% serão destinados ao pagamento do IRPJ, 2,53% a CSLL, 2,63% a COFINS, 0,57% ao PIS/PASEP e 5,00% ao ISS.

Contudo, não podem recolher os impostos e contribuições na forma do Simples Nacional a ME ou EPP: I – que explore atividade de prestação cumulativa e contínua de serviços de assessoria creditícia, gestão de crédito, seleção e riscos, administração de contas a pagar e a receber, gerenciamento de ativos (asset management), compras de direitos creditórios resultantes de vendas mercantis a prazo ou de prestação de serviços (factoring); II – que tenha sócio domiciliado no exterior; III – de cujo capital participe entidade da administração pública, direta ou indireta, federal,

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estadual ou municipal; IV – que preste serviço de comunicação; V – que possua débito com o Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, ou com as Fazendas Públicas Federal, Estadual ou Municipal, cuja exigibilidade não esteja suspensa; VI – que preste serviço de transporte intermunicipal e interestadual de passageiros; VII – que seja geradora, transmissora, distribuidora ou comercializadora de energia elétrica; VIII – que exerça atividade de importação ou fabricação de automóveis e motocicletas; IX – que exerça atividade de importação de combustíveis; X – que exerça atividade de produção ou venda no atacado de bebidas alcoólicas, cigarros, armas, bem como de outros produtos tributados pelo IPI com alíquota ad valorem superiora 20% (vinte por cento) ou com alíquota específica; XI – que tenha por finalidade a prestação de serviços decorrentes do exercício de atividade intelectual, de natureza técnica, científica, desportiva, artística ou cultural, que constitua profissão regulamentada ou não, bem como a que preste serviços de instrutor, de corretor, de despachante ou de qualquer tipo de intermediação de negócios; XII – que realize cessão ou locação de mão-de-obra; XIII – que realize atividade de consultoria; XIV – que se dedique ao loteamento e à incorporação de imóveis (art. 17).

O Simples Nacional não exclui a obrigação dos empresários ou sociedades simples enquadrados de recolherem outros tributos e contribuições, tais como o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), Imposto sobre Importação de Produtos Estrangeiros (II), Imposto sobre a Exportação para o Exterior de Produtos Nacionais ou Nacionalizados (IE) e outros (art. 13§1º).

No âmbito das relações de trabalho, a ME e EPP são dispensadas: I – da afixação de Quadro de Trabalho em suas dependências; II – da anotação das férias dos empregados nos respectivos livros ou fichas de registro; III – de empregar e matricular seus aprendizes nos cursos dos Serviços Nacionais de Aprendizagem; IV – da posse do livro intitulado “Inspeção do Trabalho”; e V – de comunicar ao Ministério do Trabalho e Emprego a concessão de férias coletivas. Todavia, elas não estão dispensadas de realizar as anotações na Carteira de Trabalho e Previdência Social – CTPS, o arquivamento dos documentos comprobatórios de cumprimento das obrigações trabalhistas e previdenciárias, enquanto não prescreverem essas obrigações, da apresentação da Guia de Recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e Informações à Previdência Social – GFIP e da apresentação das Relações Anuais de Empregados e da Relação Anual de Informações Sociais – RAIS e do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados – CAGED (arts. 51 e 52).

No que se refere ao associativismo, a Lei Complementar n. 123/2006 estabelece que as ME e EPP optantes pelo Simples Nacional poderão realizar negócios de compra e venda, de bens e serviços, para os mercados nacional e internacional, por meio de consórcio, por prazo indeterminado, nos termos e condições estabelecidos pelo Poder Executivo federal (art. 56). Para propiciar o acesso aos mercados, as ME e EPP

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poderão participar de licitações e comprovar a regularidade fiscal no momento da assinatura do contrato (art. 42). Em relação ao estímulo ao crédito, oPoder Executivo federal deverá propor, sempre que necessário, medidas no sentido de melhorar o acesso das ME e EPP aos mercados de crédito e de capitais, objetivando a redução do custo de transação, a elevação da eficiência alocativa, o incentivo ao ambiente concorrencial e a qualidade do conjunto informacional, em especial o acesso e portabilidade das informações cadastrais relativas ao crédito. Os bancos comerciais públicos e os bancos múltiplos públicos com carteira comercial e a Caixa Econômica Federal manterão linhas de crédito específicas para as ME e EPP, devendo o montante disponível e suas condições de acesso ser expressos nos respectivos orçamentos e amplamente divulgados (art. 58). Para facilitar o acesso a justiça, a ME e a EPP devem ser admitidas como proponentes de ações perante o Juizado Especial, na forma das Leis n. 9.099/1995 (art. 8º, §1º) e 10.259/2001 (art. 6º caput, I).

Finalmente, quanto à recuperação judicial, os empresários individuais ou sociedades empresárias enquadrados com ME e EPP podem se valer do plano especial previsto nos arts. 70/72 da Lei n. 11.101/2005. Referido plano abrange apenas créditos quirografários, poderá prever o parcelamento das dívidas em até 36 parcelas mensais e tratará do pagamento da primeira parcela em até 180 dias contados da distribuição do pedido, devendo a alienação ou oneração de bens ser autorizada pelo juiz universal.

FONTES DO DIREITO COMERCIAL

Fonte é o local de onde provém alguma coisa. No direito, as fontes são utilizadas para resolver algum conflito aparente de normas ou de interesses. As fontes do direito comercial são classificadas em primárias(positivadas) e secundárias (não positivadas)5.

FONTES PRIMÁRIAS

Constituem fontes primárias do direito comercial a Constituição Federal e as leis comerciais (Código Comercial de 1850, Código Civil de 2002 e leis esparsas).

A Constituição Federal é a lex mater da nação, motivo pelo qual deve ser observada pelo legislador ordinário. Qualquer outra norma, independentemente do nível ou origem, deve ser compatível com o texto constitucional. Obviamente, as regras sobre direito comercial insertas na Carta Magna (como, por exemplo, os arts. 170/175) devem ser observados pelo intérprete e ou pelo legislador infraconstitucional.

5 V. Ricardo Negrão, Manual de Direito Comercial e de Empresa, v. 1, p.11-20; Rubens Requião, Curso de Direito Comercial, 1º v., p. 26-29.

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A lei comercial é a principal fonte do direito comercial. O Código Comercial, considerado um verdadeiro monumento da cultura jurídica brasileira, foi mutilado pelas diversas modificações decorrentes de leis posteriores, mas ainda está em vigor parcialmente (arts. 457/796). O Código Civil de 2002 passou a regular, entre outros temas, a capacidade das pessoas, os contratos, o direito de empresa e os títulos de crédito. Há diversas leis esparsas regulando temas do direito comercial, tais como a Lei de Recuperação Empresarial e Falências (Lei n. 11.101/2005), Lei Uniforme de Genebra (LUG) sobre letras de câmbio e notas promissórias (Decreto n. 57.663/1966), a Lei das Sociedades Anônimas (Lei n. 6.404/1976), a Lei da Propriedade Industrial (n. 9.279/1996) e diversas outras.

FONTES SECUNDÁRIAS

São fontes secundárias do direito comercial a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito (art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil).

A analogia constitui uma operação lógica pela qual as omissões da lei são supridas, aplicando-se a uma determinada relação jurídica as normas de direito positivo disciplinadoras de casos semelhantes. É a aplicação de uma norma jurídica que, em princípio, foi editada anteriormente para um caso diverso. Em negócios realizados pela internet,por exemplo, podem ser aplicadas, por analogia, as normas gerais dos contratos previstas no Código Civil, com adaptações que se fizerem necessárias e que viabilizem o comércio eletrônico (e-commerce).

São considerados costumes aquelas práticas geralmente observadas por uma determinada classe de pessoas ou região. O direito comercial inicialmente se desenvolveu com base nos usos e costumes. Trata-se, portanto, de um ramo do direito que tem como fonte natural as práticas comerciais dos comerciantes, hoje denominados empresários. O próprio Código Comercial dispunha em seus arts.154, 168, 179, 186, 201, 207, nº 2, e 291 (revogados pelo Código Civil de 2002) que os usos e costumes poderiam ser utilizados nas relações mercantis. O costume não pode derrogar lei imperativa, mas, segundo Rubens Requião6, em muitos casos, quando é largamente utilizado, pode levar o legislador a positivá-lo. Há quem diga que existe diferença entre usos e costumes. Estes seriam imperativos e aqueles apenas convencionais. A Lei do Cheque, por exemplo, não permite que o título seja utilizado no pagamento de prestação de obrigação a prazo, mas o dispositivo vem sendo derrogado paulatinamente pelo costume da emissão dos famosos “cheques pré-datados”.

6 Ob.cit.p.26.

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Os princípios são elementos predominantes na formação dos sistemas jurídicos. No direito comercial, embora pouco utilizados, são úteis na realização da justiça. Na falência, por exemplo, aplica-se o princípio pars conditio creditorum, pelo qual os credores da mesma categoria recebem proporcionalmente ao total de seus créditos, propiciando a divisão mais ou menos equânime dos bens e valores da massa falida.

CAPACIDADE E IMPEDIMENTOS EMPRESARIAIS

INTRODUÇÃO

Até a aprovação do novo Código Civil, eram considerados comerciantes aqueles que se dedicavam ao comércio com habitualidade e praticavam os chamados "atos de comércio".

Com o novo sistema, algumas modificações ocorreram. O art. 966 do Código Civil dispõe que se considera empresário "quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”.

Para praticar atos jurídicos validamente, o Código Civil exige o preenchimento de três requisitos (art. 104 do Código Civil): a) agente capaz; b) objeto lícito, possível, determinado ou determinável; c) forma prescrita ou não defesa em lei.

O objeto da atividade empresarial pode ser produção ou a circulação de bens ou de serviços, não se falando atualmente na prática de atos de comércio. A forma se refere ao modo pelo qual os atos empresariais podem ser praticados. Somente são válidos os atos jurídicos praticados por empresários individuais e por sociedades devidamente registrados. A capacidade diz respeito à existência de aptidão legal para a pessoa adquirir e exercer direitos e contrair obrigações.

Para que os atos empresariais sejam praticados validamente o empresário individual ou sócio da sociedade não pode ser incapaz ou legalmente impedido (art. 973 do Código Civil). Há pessoas que não podem exercer atividades empresariais por faltar-lhes capacidade e outras por estarem legalmente proibidas.

CAPACIDADE PARA O EXERCÍCIO DA ATIVIDADE EMPRESARIAL

A capacidade do agente é condição de validade do ato jurídico. Quem tem capacidade civil tem capacidade empresarial.

O art.3º do Código Comercial de 1850 (revogado) prescrevia que era capaz para o comércio o maior de 18 anos, autorizado por escritura pública pelo titular do pátrio poder. Mas esta autorização não se equiparava à emancipação, pois: a) a autorização era revogável, enquanto a emancipação irrevogável; b) pela autorização, ficava o menor capacitado para praticar atos mercantisdo comércio, mas não para os demais atos da vida civil (casamento,

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etc); c) a autorização dependia sempre de escritura pública e a emancipação poderia ser feita por instrumento particular. Mas a autorização poderia importar nos mesmos efeitos da emancipação, se o menor se estabelecesse com economia própria (Código Civil de 1916, art.9º, §1º, V).

A capacidade civil plena, válida para atos da vida civil e atos da vida empresarial, de acordo com o Código Civil, começa aos 18 anos, e não mais aos 21 (art. 5º). Em alguns casos, contudo, cessa a incapacidade em virtude de situações especiais: a. concessão dos pais e autorização do juiz - a concessão dos pais (ou de um

deles) ou a autorização do juiz é a primeira causa da cessação da incapacidade, sendo possível se o menor de 18 anos tiver, pelo menos, 16 anos completos. O menor com 14 ou 15 anos, por exemplo, é absolutamente incapaz, de sorte que não pode ser alçado à condição de absolutamente capaz com a simples concessão dos pais, ainda que por instrumento público. Igualmente, o menor de 16 anos que está sob tutela também não tem a possibilidade de ser emancipado, ainda que mediante ordem judicial. É o que ensina o Prof. Miguel Reale7, coordenador da Comissão que elaborou o texto do anteprojeto originário do novo Código Civil:

“Note-se que, na Parte Geral, atende-se, outrossim, às circunstâncias da vida contemporânea, adotando-se novos critérios para estabelecer a maioridade, que baixou de 21 para 18 anos. É sabido que, em virtude da Informática e da expansão cultural, as pessoas amadurecem mais cedo que antes. Essa mudança fundamental refletiu-se também no campo da responsabilidade relativa, que passou a ser de 16 anos, correspondendo, aliás, à situação atual do adolescente de 16 anos, que é até eleitor em todos os planos da política nacional desde o Município até a União” (g.n.).

b. casamento - o casamento é um dos motivos para que o menor adquira a capacidade para os atos da vida civil. A idade núbil mínima é de 16 anos. Se o menor não tiver 18 anos, necessita de autorização de ambos os pais ou de seus representantes legais para casar (art. 1.517). Excepcionalmente, será permitido o casamento de quem ainda não alcançou a idade núbil, em caso de gravidez (art. 1.520). Assim, uma vez casada, uma pessoa com 14 ou 15 anos, por exemplo, poderá exercer validamente atividades empresariais, por ter adquirido a capacidade civil plena. Neste caso, o casamento produzirá reflexos apenas no regime de bens, que será o da separação total, conforme art. 1.641, inciso III, do Código Civil.

c. exercício de emprego público efetivo - o exercício de emprego público efetivo (não eventual) somente é possível se o funcionário tiver sido aprovado em concurso de provas ou provas e títulos. Se o menor de 18 anos exerce funções públicas, também é capaz para exercer outros atos da vida civil. Na maioria dos casos, todavia, a Administração Pública exige idade mínima de 18 anos. Por outro lado, em muitos casos os funcionários

7 O Projeto do Novo Código Civil, p. 17, S. Paulopaulo, Saraiva, 1999.

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públicos são proibidos de exercerem atividades empresariais em razão de disposição legal, apesar de possuírem capacidade plena.

d. colação de grau em curso de ensino superior - a colação de grau em curso de ensino superior já provocava a emancipação do menor de acordo com o antigo Código Civil. Considerando que mesmo atualmente é muito difícil alguém colar grau em curso de nível superior com menos de 18 anos, esse dispositivo não será muito aplicado.

e. pelo estabelecimento civil ou comercial, ou pela existência de relação de emprego, desde que, em função deles, o menor com dezesseis anos completos tenha economia própria - sob a égide do antigo Código Civil, a doutrina ainda discutia qual era a idade mínima para que o menor se estabelecesse com economia própria e se emancipasse. Carvalho de Mendonça e Clóvis Beviláqua ensinavam que somente era possível a emancipação aos 18 anos. Rubens Requião e Waldemar Ferreira ensinavam que era possível aos 16 anos. Com o novo Código Civil acabou a celeuma, pois somente pode obter a emancipação aquele menor de, pelo menos, 16 anos, desde que tenha economia própria (por exemplo, adolescentes que exercem a profissão de modelo).

Quanto à possibilidade do exercício de atividade mercantil pelo menor impúbere, de tenra idade, em caso de morte do pai ou mãe, titular de empresa, também havia dúvidas. O Código Comercial de 1850 e Código Civil de 1916 não resolviam a questão. Rubens Requião ensinava que deveria ser liquidada a sociedade, com o pagamento aos herdeiros dos direitos do sócio falecido. Entretanto, o Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária relativa ao Recurso Extraordinário n. 82.773, de 26/05/76, decidiu que o menor poderia ser sócio de sociedade comercial, sucedendo aquele que havia morrido. Para tanto, o Registro do Comércio determinou que o menor impúbere poderia exercer o comércio se: I) o capital da sociedade estivesse totalmente integralizado, inclusive nas alterações; II) não fossem atribuídos a ele quaisquer poderes de gerência ou administração.

Com o Código Civil, a situação do menor e das demais pessoas relativa ou absolutamente incapazes foi resolvida. O incapaz poderá continuar a exercer a empresa por meio de representante (se absolutamente incapaz) ou devidamente assistido (se relativamente incapaz): a) antes exercida por ele enquanto capaz; b) antes exercida por seus pais; c) antes exercida pelo autor de herança, se beneficiário em sucessão causa mortis. Em tais casos, é necessária a autorização judicial, mediante alvará, após exame das circunstâncias e dos riscos da empresa, bem como da conveniência em continuá-la, podendo a autorização ser revogada pelo juiz, ouvidos os pais, tutores ou representantes legais do menor ou do interdito, sem prejuízo dos direitos adquiridos por terceiros. Não ficam sujeitos ao resultado da empresa os bens que o incapaz já possuía, ao tempo da sucessão ou da interdição judicial, desde que estranhos ao acervo daquela, devendo tais fatos constar do alvará que conceder a autorização (art. 974 e §§ 1º e 2º).

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Os absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil (menores de 16 anos e aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos e os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade), não têm capacidade civil, motivo pelo qual não podem iniciar atividade empresarial. Os menores de 16 anos, como visto, podem iniciar a atividade empresarial se forem emancipados pelo casamento (art. 3º do Código Civil). Nada impede que os representantes dos incapazes adquiram, em nomes destes, por exemplo, ações preferenciais de companhias abertas. Mas não deve ser admitida a aquisição pelos incapazes, através de seus representantes, de quotas de sociedades contratuais simples ou limitada, mesmo quando o capital encontrar-se totalmente integralizado, pois em alguns casos existe a possibilidade de sua responsabilização, especialmente em se tratando de dívidas trabalhistas, previdenciárias e tributárias.

Os relativamente incapazes (que são os menores entre 16 e 18 anos, os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; e os pródigos), assim declarados judicialmente através de processo de interdição (art. 1.767 do Código Civil), também não podem iniciar atividade empresarial. Os menores entre 16 e 18 anos somente poderão fazê-lo se, por qualquer das hipóteses mencionadas, obtiverem a emancipação.

É certo, ainda, que os negócios realizados por pessoas absolutamente incapazes são nulos, enquanto os realizados por relativamente incapazes são anuláveis.

IMPEDIDOS DE EXERCER EM ATIVIDADES EMPRESARIAIS

Ao lado das pessoas incapazes de exercerem atividades empresariais, existem aquelas que, embora capazes, estão juridicamente impedidas. As proibições decorrem de causas diversas, como a atividade exercida ou quanto à administração do negócio. Há pessoas que exercem atividades incompatíveis com a atividade empresarial e outras estão proibidas por terem praticado crime, por exemplo. Em resumo, e sem esgotar todas as hipóteses, estão incursas nas proibições constitucionais ou legais as seguintes pessoas: a. Os deputados e senadores, que não podem ser controladores ou diretores

de empresas que gozam de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) ou nela exerça atividade remunerada (art.54, II, "a", da Constituição).

b. Os funcionários públicos civis da União, Estado, Distrito Federal e Municípios, exceto, na maioria dos casos, conforme legislação própria, como sócio-cotista ou acionista, desde que não exerçam funções de administração. A previsão de proibição parcial não atinge o direito do funcionário ser sócio, mas apenas de exercer a administração, eis que, por

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razões óbvias, deverá exercer primordialmente suas funções perante a Administração Pública.

c. Os militares da ativa da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, de acordo com o art. 204 do Código de Processo Penal Militar, não podem exercer atividades mercantis (exceto como quotistas ou acionistas não administradores) e ficam sujeitos à suspensão do exercício do posto, além do fato ser considerado crime previsto no art.180 do Código Penal Militar.

d. Os corretores e leiloeiros, que, em verdade, exercem atividade empresarial, não podem exercer outras atividades estranhas às suas funções.

e. Os magistrados e membros do Ministério Público, assim como os funcionários públicos, podem ser sócios ou acionistas de sociedades, desde que não exerçam qualquer função administrativa ou de gerência (Leis Orgânicas da Magistratura e do Ministério Público).

f. Os médicos, para exercício simultâneo da medicina, farmácia ou laboratório (Decreto n. 20.877/1931)

g. Os falidos, exceto após a sentença declaratória da extinção das obrigações. Tendo em vista a aplicação do Decreto-lei n. 7.661/1945 às falências e concordatas em curso (art. 192 da Lei 11.101/2005), duas situações subsistem: 1) a reabilitação penal depende da extinção das obrigações mercantis (arts. 134/135 do Decreto-lei n. 7.661/1945) e pode ser requerida em 3 ou 5 anos da data em que termina o cumprimento da pena de detenção ou reclusão por crime falimentar, respectivamente. Há decisões no sentido que o art. 197 da antiga Lei de Falências foi revogado pela parte geral do Código Penal (art. 94 caput), considerando a extinção das penas acessórias. Na lição de Damásio E. de Jesus8, o "art. 197 do Decreto-lei n. 7.661/45 (...) foi derrogado, no que se refere ao prazo, pelo art. 94, caput, do Código Penal. Hoje o prazo é sempre de dois anos". O Tribunal de Justiça de São Paulo tem sustentado que ainda não foi revogado o referido artigo (RT 636/267), pois, embora tenham sido extintas as penas acessórias, subsiste a interdição do exercício de profissão referida no art. 47 do Código Penal, bem como por ser a lei falimentar especial; 2) De acordo com a Lei n. 11.101/2005 (art. 158), são causas de extinção das obrigações do falido: o pagamento de todos os créditos; o pagamento, depois de realizado todo o ativo, de mais de 50% (cinqüenta por cento) dos créditos quirografários, sendo facultado ao falido o depósito da quantia necessária para atingir essa porcentagem se para tanto não bastou a integral liquidação do ativo; o decurso do prazo de 5 (cinco) anos, contado do encerramento da falência, se o falido não tiver sido condenado por prática de crime falimentar; o decurso do prazo de 10 (dez) anos, contado do encerramento da falência, se o falido tiver sido condenado por prática de crime falimentar. O falido não pode exercer a empresa enquanto não forem extintas as suas obrigações mercantis, e se o fizer poderá ser negada sua reabilitação. Caso ele não tenha sucesso no novo negócio, poderá ser decretada novamente sua falência.

8 Código Penal Anotado, p. 226.

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h. Os estrangeiros para as atividades previstas na Constituição Federal, quais sejam: I) pesquisa e lavra de recursos minerais e o aproveitamento potencial de energia hidráulica (art. 176, §1º), que são atividades exclusivas de brasileiros natos e empresas constituídas conforme as leis brasileiras. II) propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora de sons e imagens, que é privativa de brasileiros natos ou naturalizados (art. 222). Nos termos da Lei n. 10.610/2002, pelo menos 70% do capital votante de tais empresas deverão pertencer a brasileiro nato ou naturalizado há mais de 10 anos.

i. As sociedades e empresários individuais devedores do Instituto Nacional do Seguro Social (Lei n. 8.212/1991, art. 95 §2º, d).

Muitos dos impedimentos citados, como visto, dizem respeito especialmente ao empresário individual, pois a maioria das pessoas referidas pode participar de sociedades, desde que não exerça funções de direção. O Juiz pode, por exemplo, ser sócio de sociedade anônima ou de sociedade limitada, mas não pode dirigi-la ou participar da sua administração, evitando influências maléficas à dignidade de seu cargo (art. 36 da Lei Complementar n. 35/1979 Lei Orgânica Nacional da Magistratura). O Promotor de Justiça ou Procurador da República também pode ser sócio ou acionista de sociedade, mas lhe é vedado o exercício efetivo da administração empresarial.

As proibições legais, outrossim, são pessoais, não se estendendo, por exemplo, ao cônjuge do falido. Mas os cônjuges, entre si ou com terceiros, não podem constituir sociedade se o regime de bens do casamento for o da comunhão universal ou de separação obrigatória de bens (art. 977 do Código Civil).

Nas sociedades simples e em todas as sociedades que adotarem as suas regras não poderão exercer a administração, além das pessoas impedidas por lei especial, os condenados a pena que vede, ainda que temporariamente, o acesso a cargos públicos ou por crime falimentar, prevaricação, peita ou suborno, concussão, peculato; ou contra a economia popular, contra o sistema financeiro nacional, contra as normas de defesa da concorrência, contra as relações de consumo, a fé pública, ou a propriedade, enquanto perdurarem os efeitos da condenação (art. 1.011 §1º do Código Civil).

As conseqüências da violação das proibições são diversas. Os funcionários públicos podem até ser demitidos. Os militares das Forças Armadas podem ser presos e perder o posto. Além disso, qualquer pessoa pode ser processada como incursa no art. 47 da Lei das Contravenções Penais ("exercer profissão ou atividade econômica ou anunciar que a exerce, sem preencher as condições a que a lei está subordinando seu exercício").

A pessoa legalmente impedida de exercer atividade própria de empresário, se a exercer, responderá pelas obrigações contraídas (art. 973 do Código Civil). Assim, seus bens pessoais poderão ser atingidos em razão dos vínculos obrigacionais contraídos com terceiros, não podendo alegar em seu favor sua própria torpeza. Se o impedido fizer parte de uma

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sociedade, somente ele será responsabilizado pessoalmente, exceto se os demais sócios souberem da proibição.

Em geral, os impedimentos para o exercício de atividades empresariais objetivam proteger o interesse público ou dos agentes do mercado, e não o impedido.

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QUESTÕES

1. No novo Código Civil o termo correto é comerciante ou empresário? Adotou-se a teoria da empresa ou a teoria dos atos de comércio?

2. Como são classificadas as empresas? 3. Qual a diferença entre microempresa e empresa de pequeno porte? Os

limites para enquadramento são os mesmos na parte tributária? 4. O que é necessário para que alguém seja considerado empresário? 5. Todo empresário é uma pessoa jurídica? 6. Qual é o objeto da atividade empresarial? 7. É possível alguém desfrutar de capacidade comercial sem ter capacidade

civil? No Código Comercial de 1850 isso era possível? 8. Qual a idade em que se inicia a capacidade comercial? 9. Os menores emancipados podem exercer a atividade empresarial? 10. Quais são as causas de emancipação? 11. É possível a emancipação antes dos 16 anos? 12. Poderá o enfermo mental continuar a empresa antes exercida por ele

enquanto capaz? Caso positivo, qual a autoridade competente para autorizá-lo? Essa autorização é revogável? Os bens do incapaz respondem pelas dívidas da empresa?

13. Os absolutamente incapazes e os relativamente incapazes podem exercer atividade empresarial?

14. Cite as pessoas capazes que estão impedidas de exercer atividades empresariais.

15. Os magistrados, membros do Ministério Público e funcionários públicos podem ser sócios de sociedades?

16. O médico está proibido de exercer alguma atividade empresarial? 17. Quando o falido poderá exercer novamente uma atividade empresarial? 18. Quais as atividades empresariais proibidas aos estrangeiros? 19. Cite dois crimes, cuja condenação impede o exercício da atividade

empresarial?20. A pessoa impedida de exercer atividade de empresário, responde pelas

obrigações contraídas ?

DIREITOCOMERCIAL

TOMO II

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO I

1CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO I DIREITO COMERCIAL II - PROF. SÍLVIO ANTÔNIO MARQUES

TÍTULOS DE CRÉDITO

TEORIA GERAL DOS TÍTULOS DE CRÉDITO

INTRODUÇÃO

O direito de uma pessoa física ou jurídica em relação a outra pode ou não estar representado por instrumentos jurídicos. Uma sentença judicial, por exemplo, pode impor ao demandado o dever de ressarcir o autor por prejuízos sofridos. Os contratos geram obrigações e atribuem direitos aos contratantes. A declaração de vontade pode acarretar obrigações a seu subscritor. As ações, debêntures e outros valores mobiliários emitidos por sociedades anônimas atribuem a seus detentores diversos direitos.Os títulos de crédito, tais como a letra de câmbio, a nota promissória, o devedor a pagar determinada quantia em dinheiro ou atribuir direitos em favor de credores.seu titular.

Embora tenha caráter representativo, o título de crédito não se confunde com a obrigação, que é um vínculo pessoal existente entre devedor e credor que tem por objeto uma prestação ou contraprestação. O título de crédito, como o próprio nomen juris sugere, titulariza o crédito de alguém, denominado credor, em relação outrem, denominado devedor.

Etimologicamente crédito deriva da expressão latina creditu,que significa confiança, consideração, fé, segurança. No âmbito do Direito, conforme lição de André Gide, crédito “é o alargamento da troca”, ou “a troca no tempo, em lugar de ser no espaço”. As formas mais comuns de crédito são a venda a prazo e o empréstimo1, e são seus elementos o consumo ou a obtenção da coisa vendida ou emprestada (como, por exemplo, um bem móvel) e a espera da prestação ou coisa nova destinada a substituí-la (por exemplo, o dinheiro).

Na lição de José Maria Withaker, título de crédito “é o documento capaz de realizar imediatamente o valor que representa”.2 Para Cesare Vivante, “título de crédito é o documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele mencionado”3. O Código Civil Brasileiro de 2002 foi inspirado na definição de Vivante, como se observa do texto do art. 887:

"Art. 887. O título de crédito, documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido, somente produz efeito quando preencha os requisitos da lei."

O título de crédito possibilita melhor utilização do capital, na medida em que o beneficiário, em regra, pode convertê-lo em dinheiro, mediante a transferência a outrem por tradição, se emitido ao portador, ou por endosso, se emitido na forma nominativa. A circulabilidade, aliás, é uma das principais características do título de crédito.

1 Apud Rubens Requião, Curso de Direito Comercial, 2º v., p. 357, S. Paulo, Saraiva, 2003. 2 Apud Luiz Emygdio. F. Rosa Jr., Títulos de Crédito, p. 51, Rio de Janeiro, Renovar, 2002. 3 Tratatto di diritto commerciale, 3ª ed. Milão, Casa Editrice Dott. Francesco.

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Os títulos de crédito têm força executiva (executividade),equiparando-se ao contrato assinado por duas testemunhas, a transação referendada pelo Ministério Público, a certidão de dívida ativa da Fazenda Pública, o contrato de hipoteca, o contrato de seguro de vida e outros (CPC, art. 585). Portanto, em caso de inadimplemento do devedor quanto ao pagamento, o credor não está obrigado a propor uma ação de conhecimento, geralmente demorada e dispendiosa, para obter uma sentença condenatória favorável, podendo ajuizar diretamente uma ação de execução.

Em regra, o pagamento com título de crédito não representa novação (substituição) ou dação em pagamento (recebimento de prestação diversa), no que toca à relação negocial original. A emissão e entrega do título de crédito, salvo estipulação contratual em sentido contrário, têm natureza “pro solvendo” (sem caráter extintivo da obrigação), e não “pro soluto” (com caráter extintivo). Assim, se alguém compra um bem e paga com cheque ou nota promissória, somente haverá extinção da obrigação se o título de crédito for pago. Vale dizer: somente o pagamento extingue a obrigação. Se não houver pagamento, permanece a relação causal, ou, conforme tem decidido nossos tribunais, as relações contratual e cambial subsistem (RT 744/249). A entrega do título, todavia, pode ser “pro soluto” se houver contrato estipulando que a entrega do título de crédito (por exemplo, cheque visado ou administrativo) representa extinção da obrigação ou quitação da dívida. Nesse caso, se houver inadimplemento restará apenas uma obrigação a ser cumprida, que é o pagamento da cártula. A entrega do título, assim, opera a novação da dívida, conforme arts. 360 e 361 do Código Civil de 2002. A questão, contudo, não é pacífica, havendo decisões em sentidos opostos4.

Em relação à legislação aplicável, necessário se faz acentuar que o Código Civil contém o Título VIII (arts. 887/926), que pode ser considerado uma “Teoria Geral dos Títulos de Crédito”. Em verdade, o novo diploma contém dispositivos que se aplicam apenas supletivamente ao direito cambiário, ou seja, se não houver regra específica na legislação especial. Continuam em vigor, em consonância com o enunciado do art. 903 do próprio Código Civil e com o princípio de hermenêutica “lex speciali derogat lex generali”, os diplomas referentes à letra de câmbio e nota promissória (Decreto n. 2.044/1908 e Decreto n. 57.663/1966 – Lei Uniforme de Genebra), duplicata (Lei n. 5.474/1968), cheque (Lei n. 7.357/1985), conhecimento de depósito de mercadorias e warrant (Decreto n. 1.102/1903), certificado de depósito bancário (Lei n. 4.728/1965), conhecimento de transporte ou frete (Decreto n. 19.473/1930 e Decreto-lei n. 116/1967), cédula e nota de crédito rural (Decreto-lei n. 167/1967), cédula e nota de crédito industrial (Decreto-lei

4 O Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu o seguinte: "CAMBIAL - Título vinculado a contrato - Emissão 'pro soluto', e não 'pro solvendo' - Documento dado como pagamento, quitando o preço avençado, desvinculando-se do ajuste e que, se não honrado, não enseja a rescisão daquele, mas apenas a execução forçada do emitente" (RT 645/90). O 1º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, por sua vez, entendeu que: "CHEQUE - Falta de provisão de fundos - Alegação de que, por ter sido emitido para resgate de outro título de crédito, se trataria de pagamento 'pro soluto', ocorrendo a quitação do débito - Inadmissibilidade - Impossibilidade de o título ser tido como dinheiro, de sorte que não possui força liberatória, constituindo-se em pagamento 'pro solvendo' - Ocorrência apenas de tentativa frustrada de resgate da dívida, persistindo a responsabilidade do emitente" (RT 648/119).

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n. 413/1969), cédula e nota de crédito comercial (Lei n. 6.840/1980), cédula e nota de crédito à exportação (Lei n. 6.313/1975), cédula hipotecária (Decreto-lei n. 70/1966), letras hipotecárias (Lei n. 7.684/1988), cédula de produto rural (Lei n. 8.929/1994), certificado de recebíveis imobiliários (Lei n. 9.514/1997), letra e cédula de crédito imobiliário(arts. 12/25 da Lei n. 10.931/2004), cédula de crédito bancário(arts. 26/45 da Lei n. 10.931/2004), entre outros.

Apesar de não haver na legislação especialqualquer distinção, os títulos de crédito são divididos pela doutrina em duas categorias: os próprios, que representam créditos e se encaixam perfeitamente no regime cambiário, admitindo o saque, endosso, aval e protesto; e os impróprios, que nem sempre representam créditos e não se enquadram perfeitamente no regime cambiário. Entre os títulos de crédito próprios destacam-se a letra de câmbio, a nota promissória, o cheque e a duplicata; entre impróprios encontram-se o conhecimento de depósito e o warrant, quese referem à posse e propriedade de mercadorias depositadas em armazéns gerais, e o conhecimento de transporte, que se refere à posse e propriedade de mercadorias transportadas.

PRINCÍPIOS DOS TÍTULOS DE CRÉDITO

Do conceito adotado pelo Código Civil, derivado da doutrina de Cesare Vivante, extraem-se os princípios do direito cambiário, que são a cartularidade, a literalidade e a autonomia.

CARTULARIDADE

O título de crédito é o documento necessário para que sejam exercidos os direitos nele constantes. O credor, em regra, deve ter a posse da cártula na qual são lançadas as informações necessárias para exercer seus direitos, em especial para receber o valor ou executar judicialmente a dívida em caso de inadimplemento. O “documento” referido no texto legal pode ser o papel (cártula) ou outro suporte material no qual possam ser lançados os atos cambiais (saque, aceite, endosso, aval etc.). Numa ação de execução, por exemplo, o requerente deve apresentar o título de crédito original, e não a cópia, até porque ele tem que provar que não o transferiu.

As cópias autenticadas não podem substituir o título original, exceto em casos específicos, como, por exemplo, quando a cártula está sendo utilizada em inquérito policial por crime de estelionato (art. 171 do Código Penal). A posse é necessária, também, para que o novo credor tenha condições de exercer o direito de regresso contra outros co-responsáveis pelo pagamento.

Apenas em casos excepcionais o título de crédito original não é mostrado. A duplicata pode ser cobrada se o devedor a reteve indevidamente, desde que esteja protestada por indicações e seja provada a entrega da mercadoria (Lei n. 5.474/1968, art.15, II).

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LITERALIDADE

O título de crédito vale pelo que nele está literalmente escrito. O credor não pode exigir mais e nem o devedor está obrigado a pagar mais do que consta da cártula. Salvo exceções contidas em leis especiais, os atos cambiais não são válidos se lançados em documento distinto do título. Se alguém, por exemplo, endossa uma nota promissória num documento, público ou privado, distinto do título, tal ato não será válido.

Dos títulos de crédito existentes, apenas a duplicata admite a quitação dada pelo legítimo possuidor do título em documento distinto (art.9º, §1º, Lei n. 5.474/1968). A duplicata tem regime diverso, pois pode ser encaminhada ao devedor em caso de cobrança bancária, além de ser possível ao credor emitir a triplicata. Nos termos do art. 890 do Código Civil, “consideram-se não escritas no título a cláusula de juros, a proibitiva de endosso, a excludente de responsabilidade pelo pagamento ou por despesas, a que dispense a observância de termos e formalidade prescritas, e a que, além dos limites fixados em lei, exclua ou restrinja direitos e obrigações.” O credor, todavia, pode requerer, em ações judiciais, o pagamento de juros e correção monetária, não constantes do título de crédito, em caso de inadimplemento do devedor, em razão do Código de Processo Civil (art. 219) e ao próprio Código Civil (art. 884), que veda o enriquecimento ilícito do devedor. Há títulos impróprios, tais como a cédula de crédito industrial e cédula de crédito comercial, que admitem a cláusula de juros.

AUTONOMIA

O título de crédito é o documento necessário para o exercício do direito, literal e autônomo, nele mencionado. A autonomia constitui a principal característica do título de crédito. As obrigações dos títulos de crédito são autônomas, de modo que a ineficácia de uma não contamina a outra. Se alguém endossa um título a um menor de 18 anos, que também o endossa a outrem, o fato do último endosso ser nulo não significa que o primeiro também o seja. O credor (endossatário) pode cobrar o valor do devedor principal e do primeiro endossante.

Igualmente não há nulidade do título em razão do vício do negócio que gerou a emissão do título. Assim, se "A" vendeu um automóvel a "B" e recebeu uma nota promissória, poderá transferir o título por endosso a "C". Se "B" devolver o bem por vício redibitório (defeito), ainda assim "A" estará obrigado a efetuar o pagamento a C, caso este venha a lhe cobrar o valor do título. "A" poderá, posteriormente, receber o total do título ou parte deste, dependendo do caso, de B, que é o devedor principal.

O princípio da autonomia, em verdade, envolve dois aspectos diversos e importantes, também chamados de sub-princípios, quando o título é transferido: a abstração e a inoponibilidade das exceções pessoais aos terceiros de boa-fé.

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ABSTRAÇÃO

Quando posto em circulação, o título de crédito desvincula-se da relação jurídica que lhe deu causa, não podendo o devedor deixar de pagar o valor devido, sob pena de ser executado pelos terceiros de boa-fé. O devedor não pode deixar de pagar o valor do título ainda que tenha devolvido o bem, caso o título tenha circulado. É evidente que se o título não foi colocado em circulação pode o devedor se recusar a pagar e depositar a quantia em juízo para que seja discutido o negócio judicialmente, numa ação anulatória, por exemplo. A abstração, portanto, consiste na desvinculação dotítulo em relação ao negócio fundamental, em caso de circulabilidade da cártula. É o aspecto substancial do princípio da autonomia.

INOPONIBILIDADE DAS EXCEÇÕES PESSOAIS AOS TERCEIROS DE BOA-FÉ

Por esse sub-princípio, não podem ser alegadas em processos judiciais matérias não relacionadas aos possuidores de boa-fé do título. As relações do devedor com o anterior possuidor, assim, não serão conhecidas pelo juiz, em caso de execução do título. Se o exeqüente possui legitimamente o título, ele nada tem a ver com os problemas do executado com os devedores anteriores. Somente podem ser apresentadas pelo executado nos autos da ação de embargos do devedor ou em eventual exceção de pré-executividade as matérias pertinentes a ele e ao exeqüente. Da mesma forma, o devedor principal, se executado, não pode se beneficiar de matérias que digam respeito a ele e a outros coobrigados do título, como, por exemplo, o primeiro endossatário, salvo se o exeqüente não estiver agindo de boa-fé. Nesse último caso qualquer matéria pode ser alegada.

O Código Civil de 2002 claramente adotou o sub-princípio da inoponibilidade das exceções pessoais aos terceiros de boa-fé. Nos termos do seu art. 915, "o devedor, além das exceções fundadas nas relações pessoais que tiver com o portador, só poderá opor a este as exceções relativas à forma do título e ao seu conteúdo literal, à falsidade da própria assinatura,defeito de capacidade ou de representação no momento da subscrição, e à falta de requisito necessário ao exercício da ação". O art. 916 estabelece que "as exceções, fundadas em relação do devedor com os portadores precedentes, somente poderão ser por ele opostas ao portador, se este, ao adquirir o título, tiver agido de má-fé".

Para que se caracterize a má-fé não é necessário que o executado prove o conluio ou o dolo entre o anterior possuidor e exeqüente, mas apenas que este último sabia dos vícios5.

5 Neste sentido, Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, v. I, p. 378.

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TÍTULOS DE CRÉDITO ELETRÔNICOS

Os títulos de crédito na forma documentada ("papelizada") surgiram na Idade Média com a função de facilitar o comércio e sobreviveram às diversas mudanças econômicas e políticas.

Atualmente, pelo menos nos países onde a informática encontra-se em desenvolvimento, o papel tem sido trocado pelo meio magnético. A troca de informações tem sido realizada de modo eletrônico ou virtual, e não corpóreo. Na maioria dos estabelecimentos mercantis o consumidor pode, por exemplo, comprar produtos e pagar com cartões de crédito, sendo que alguns destes estão interligados a bancos. A operação débito-crédito, em alguns casos, é realizada instantaneamente, sem o uso de papel. É possível, ainda, comprar e vender via Internet ou subscrever eletronicamente faturas de compra e venda de produtos ou de serviços.

O Código Civil permite que seja emitido título de crédito por computador ou meio técnico equivalente (art. 889, § 3º). A regra é válida, por enquanto, para a chamada “duplicata virtual”, que não se materializa numa cártula (papel).Trata-se de título sustentado em dados constantes no microcomputador e no livro de registro de duplicatas do credor. Sua cobrança pode ser realizada mediante o envio de informações através de mensagem eletrônica (internet/modem) a uma instituição financeira, que por sua vez emite um "boleto" pagável em qualquer agência bancária. Se o devedor não efetuar o pagamento, o próprio banco, desde que autorizado, pode enviar eletronicamente os dados ao Tabelionato de Protestos, que efetiva a notificação e, se for o caso, o protesto por indicações da duplicata (art. 8º da Lei n. 9.492/1997). O instrumento de protesto e o documento assinado que prova a entrega da mercadoria ou a prestação de serviços, fazendo presumir o aceite, constituem título executivo extrajudicial. Em síntese, está em curso a chamada desmaterialização dos títulos, que deverá mitigar ou acabar com o princípio da cartularidade, pois os títulos não serão mais "documentos" escritos, valendo apenas as informações virtuais. A autonomia poderá ter algum sentido, na medida em que as obrigações virtuais assumidas gerarão efeitos jurídicos.

CLASSIFICAÇÃO DOS TÍTULOS DE CRÉDITO

São várias as classificações dos títulos de crédito, sendo que as mais importantes se referem ao modelo, forma, emissão, circulação e conteúdo6.MODELO

Quanto ao modelo, os títulos de crédito são classificados em duas espécies:

I. Livres: não têm modelo estabelecido na lei, como as notas promissórias e letras de câmbio.

6 V. Amador Paes de Almeida, Teoria e Prática dos Títulos de Crédito, p.13-15; Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, v. 1, p.381-383.

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II. Vinculados: tem modelo previsto em lei, como o cheque e duplicata, que seguem os padrões legais.

FORMA

A forma se refere às situações jurídicas geradas pelo título de crédito, havendo, também, duas espécies:

I. Ordens de pagamento: representam determinações de pagamento e sua emissão gera, em regra, 3 (três) situações jurídicas: a de quem dá a ordem (sacador ou emitente), a de quem recebe a ordem (sacado); e a de quem se beneficia da ordem (tomador, portador ou beneficiário). Às vezes, o sacador é também o beneficiário (por exemplo, o correntista pode emitir e descontar um cheque seu). O banco é o sacado e correntista é o emitente (sacador) e também o beneficiário (tomador). A letra de câmbio também pode ser emitida em favor do sacador. A nota promissória também é uma ordem de pagamento, mas sua emissão gera apenas duas situações jurídicas.

II. Promessa de pagamento: gera apenas 2 (duas) situações jurídicas: quem promete pagar (sacado) e quem vai se beneficiar (tomador ou beneficiário). Só existe um título desse tipo, que é a nota promissória.

HIPÓTESES DE EMISSÃO

Há três hipóteses de emissão de títulos de crédito: I. Causais - só podem ser emitidos se houver uma causa explícita na lei,

como, por exemplo, a duplicata, que representa uma fatura de venda de produto ou prestação de serviços, ou o warrant; que representa o depósito de mercadorias em armazéns gerais.

II. Não-causais (abstratos): não necessitam de qualquer causa, como o cheque ou a nota promissória.

III. Limitados: não podem ser emitidos em determinadas situações, como, por exemplo, a letra de câmbio, que pode representar operações bancárias, mas não a compra e venda mercantil. A Lei n. 5.474/1968, neste caso, exige a emissão de duplicata (art. 2º).

CIRCULAÇÃO

Há também duas espécies: I. Ao portador: não indicam o nome do beneficiário e são transferidos por

mera tradição. Atualmente, apenas os cheques de até R$ 100,00 podem ser emitidos ao portador (art. 69 da Lei n. 9.069/1995)

II. Nominativos: são aqueles que têm a indicação do beneficiário. Os nominativos podem ser “à ordem” e “não à ordem” Os "nominativos à ordem" são transferidos por endosso, enquanto os "nominativos não à ordem" somente são transferidos por cessão civil de crédito. Esses títulos

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devem estar acompanhados da cessão civil de crédito, ou seja, por documento em separado que transfira o crédito. Pela cláusula “não à ordem” o emitente do título procura impedir a sua circulação.

Nos termos do art. 921 do Código Civil, considera-se "título nominativo o emitido em favor de pessoa cujo nome conste no registro do emitente". Para Fábio Ulhoa Coelho7, a classificação legal “é imprestável”, pois, “além de não existir título de crédito nenhum, no direito brasileiro, que atenda aos requisitos para se considerar nominativo, confunde, nos títulos ao portador, efeito com conceito da classe (o título ao portador é o que não identifica o credor e por isso se transfere pela simples tradição)”.

Ao tratar dos títulos nominativos possivelmente o legislador pátrio foi influenciado pelo sistema italiano, que possui títulos cuja transferência somente se aperfeiçoa após o registro nos livros do devedor. A propósito do tema, ensina Cesare Vivante8 o seguinte:

"Os títulos nominativos são títulos de crédito averbados a uma pessoa determinada, quer seja um indivíduo ou uma pessoa coletiva, cuja transmissão só é perfeita com a cooperação do devedor que intervém registrando nos seus livros a transferência realizada, e substituindo o título retirado por outro equivalente, averbado ao novo possuidor, a quem é entregue. A esta categoria pertencem os títulos nominativos da Dívida Pública, do Crédito Predial, do Crédito Agrário, as obrigações ferroviárias, uma grande parte das ações nominativas das sociedades anônimas".

A legislação cambiária em vigor no Brasil, desde a revogação do Decreto-lei n. 427/1969 pelo Decreto-lei n. 1.700/1979, não exige qualquer registro para que os títulos de crédito nominativos próprios (letra de câmbio, nota promissória, cheque e duplicata) tenha validade ou força executiva. O art. 921 do Código Civil, que se refere a qualquer título de crédito, talvez possa ser aplicado às sociedades anônimas, que negociam ações, debêntures, commercial paper (notas promissórias), bônus de subscrição e outros valores mobiliários no mercado de capitais, e estão obrigadas a manter escrituração relativa aos registros e transferências (Lei n. 6.404/1976, arts. 100/102).

CONTEÚDO

Os títulos de crédito podem ser classificados conforme os direitos que atribuem a seu titular:

I. Atributivos de direitos reais: são títulos que representam direitos sobre determinada coisa, como, por exemplo, o conhecimento de depósito e warrant, que se referem à posse e propriedade de mercadorias

7 Curso de Direito Comercial, v. 1, p. 384, v. 1. 8 Instituições de Direito Comercial, p. 155.

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depositadas em armazéns gerais, o conhecimento de frete, relativo à propriedade de mercadorias transportadas, e as cautelas de penhor, que se referem a bens empenhados.

II. Atributivos de créditos: são títulos que conferem ao credor o direito ao recebimento de determinada quantia em dinheiro do devedor, como, por exemplo, a letra de câmbio, o cheque e a duplicata.

III. Atributivos de direitos diversos: são títulos que atribuem direitos de diversas índoles, como exemplo, as debêntures, que representam empréstimos, e as ações das sociedades anônimas, que atribuem em favor do acionista, entre outros, direitos de voto e de recebimento de dividendos.

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QUESTÕES

1. Como Vivante define o título de crédito? 2. Quais os dois principais atributos dos títulos de crédito? 3. O pagamento com título de crédito é “pro solvendo” ou “pro soluto”? 4. As normas do Código Civil são aplicáveis aos títulos de crédito? 5. Qual a distinção entre títulos de crédito próprios e impróprios? Quais são

os títulos de crédito próprios e os impróprios? 6. Quais são os três princípios do direito cambiário? 7. O que é o princípio da cartularidade? Cite duas exceções a esse

princípio.8. O que é o princípio da literalidade? Há alguma exceção a esse princípio? 9. O título de crédito pode conter cláusula de juros? Em juízo, são devidos

os juros? Há algum título de crédito que pode conter cláusula de juros? 10. O que é o princípio da autonomia dos títulos de crédito? Quais os seus

dois aspectos? 11. O que é o sub-princípio da abstração? O devedor pode deixar de pagar o

título, no caso de nulidade do contrato que ensejou a sua emissão? 12. O que é o sub-princípio da inoponibilidade das exceções pessoais aos

terceiros de boa-fé? 13. O novo Código Civil admite título de crédito emitido por computador ou

meio técnico equivalente? 14. O que é duplicata virtual?

DIREITOPROCESSUAL CIVIL

I

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO I

1CURSO À DISTÂNCIA – MÓDULO IDIREITO PROCESSUAL CIVIL I - PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS

DA AÇÃO

TEORIAS SOBRE O DIREITO DE AÇÃO

A teoria imanentista ou clássica, oriunda do direito romano, sustenta que a ação é o próprio direito material reagindo à sua violação. Aludida teoria nega autonomia ao direito de ação, encarando-a sob o ponto de vista civilístico. A ação, segundo definição de Celso, “é o direito de pedir em juízo o que nos é devido”. Tem como pressuposto a anterior violação do direito material, de modo que não há direito sem ação, nem ação sem direito. As objeções a essa teoria afloram com evidência translúcida. Basta dizer que na hipótese de improcedência da ação, não há violação do direito material, malgrado o exercício do direito de ação. Para esta teoria, o direito de ação não pode existir independentemente do direito material. Chiovenda, em seu trabalho sobre a ação declaratória negativa, demonstrou que o direito de ação é autônomo e independente do direito material. De fato, o direito de ação pode ser exercido sem que haja violação do direito material. Modernamente, é pacífica a autonomia do direito de ação em relação ao direito material. Discute-se apenas se o direito de ação é concreto ou abstrato. Na teoria concreta, sustentada pelos juristas alemães Wach e Bulow, a ação é o direito à sentença favorável. Assim, a existência do direito de ação depende da sentença ser favorável ao autor. Somente após a sentença é que se pode aferir se há ou não o direito de ação. Nas hipóteses de carência de ação ou sentença de improcedência, não há o exercício do direito de ação. Finalmente, a teoria abstrata liderada por Degenkolb, outro jurista alemão, preconiza que para a existência do direito de ação, basta o autor mencionar o interesse protegido abstratamente pelo direito, pouco importando se a sentença lhe é ou não favorável. Aludida doutrina é seguida por Alfredo Buzaid, Liebman, Moacyr Amaral Santos e outros. De fato, a ação consiste no direito de exigir um provimento jurisdicional, pouco importando se a sentença final será procedente ou improcedente. É essencial, no entanto, para que haja a ação, o preenchimento das condições da ação.

TEORIA DA ASSERÇÃO

O termo asserção tem origem no latim, vem de assertione, e significa afirmação, alegação ou argumentação.

A teoria da asserção, também denominada de “prospettazione”, deve sempre ser lembrada quando do estudo das condições da ação, posto que a forma de aferição de tais requisitos, gerará efeitos diversos no processo.

Pela teoria da asserção, o órgão judicial ao apreciar as condições da ação, o faz “in statu assertione”, ou seja, à vista do que fora

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alegado pelo autor, sem analisar o mérito, abstratamente, admitindo-se em caráter provisório, a veracidade do que fora alegado. Em seguida, por ocasião da instrução probatória, aí sim, apura-se concretamente o que fora alegado pelo autor na petição inicial, proferindo-se uma sentença definitiva de procedência ou improcedência do pedido, uma vez que a questão das condições da ação encontra-se superada, não mais comportando uma decisão terminativa de extinção do processo sem julgamento do mérito.

Dinamarco ao dissertar sobre a teoria da asserção faz a seguinte afirmação:

“Goza, no entanto, de crescente prestigio a teoria da asserção. Segundo seus seguidores, as condições da ação deveriam ser aferidas in statu assertione, ou seja, a partir do modo como a demanda é construída, de modo que estaria diante de questões de mérito sempre que, por estarem as condições corretamente expostas na petição inicial, só depois se verificasse a falta de sua concreta implementação”. (Instituições de Direito Processual Civil, vol. III; ed. Malheiros, 2002, P.317).

Para a teoria da asserção basta a demonstração abstrata das condições da ação pelo demandante, sem que seja necessária a sua cabal demonstração, sob pena de só poder exercer o direito de ação aquele que, de plano, demonstre a existência do direito material.

Exemplificando, o credor de uma determinada quantia, que ingressa em juízo com a respectiva ação de cobrança, e que no curso do processo tem a sua condição de credor afastada, pela teoria da asserção terá uma sentença de improcedência do seu pedido.

Por fim, após a realização da instrução probatória, o provimento jurisdicional, em regra, será de mérito, já que a cognição da inexistência das condições da ação, não terá mais força para gerar a extinção do processo sem análise do mérito. Não há que se falar em carência da ação, nesta altura a questão reporta-se à procedência ou improcedência do pedido.

Em contraposição à teoria da asserção, encontra-se a teoria eclética ou concretista, defendida por Liebman, de acordo com esta teoria, só existe ação quando, efetivamente, estiverem presentes as condições da ação. Assim, independentemente da fase processual, verificada a ausência de qualquer das condições da ação, haverá a extinção do processo sem julgamento do mérito, proferindo o órgão julgador uma sentença terminativa e não definitiva.

Dinamarco, seguindo Liebman, faz a defesa desta teoria, inverbis:

“Não basta que o demandante descreva formalmente uma situação em que estejam presentes as condições da ação. É preciso que elas existam realmente. Uma condição da ação é sempre uma condição da ação e por falta dela o processo deve ser extinto sem julgamento do mérito, quer o autor já descreva uma situação em que ela falte, quer dissimule a situação e só mais tarde os fatos revelem ao juiz a realidade”. (op. cit; p.316)

Para os defensores da teoria eclética o juiz jamais deverá julgar o mérito quando faltar qualquer condição da ação.

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CONCEITO DE AÇÃO

Ação é o direito público, subjetivo, condicionado, abstrato e autônomo, de exigir do Poder Judiciário uma decisão sobre uma pretensão. Direito público, porque é dirigido contra o Estado e não contra o réu. O direito de ação envolve uma atividade pública do Estado, consistente na função jurisdicional. É exercido contra o Estado, do qual se exige uma decisão sobre uma pretensão. Portanto, o sujeito passivo do direito de ação é o Estado. Ajuíza-se a ação contra o Estado em face do réu. Enquanto a ação é o direito de exigir do Estado uma decisão judicial, cuja pretensão é o bem da vida que o autor deseja obter pela sentença. A pretensão é exercida contra o réu, com o intuito de se obter a solução de um conflito. É direito subjetivo, porque cada pessoa a titulariza individualmente. É direito condicionado, porque o autor só pode exigir do Poder Judiciário uma decisão quando presentes as condições da ação. Enquanto o direito de demanda é incondicionado, consistindo no mero acesso ao Poder Judiciário, o direito de ação é condicionado. Assim, ausentes as condições da ação, o processo é extinto sem julgamento do mérito (art. 267, inc. VI do CPC); nesse caso, não há que se falar em ação, mas tão somente em demanda. É direito abstrato, porque é instrumental, visando a tutela do direito material. É o direito à prestação jurisdicional. É exercido ainda que a sentença final seja desfavorável ao autor. O direito de ação é bifrontal, pois é exercido tanto pelo autor como pelo réu ao se opor à pretensão do primeiro, com o intuito de obter um pronunciamento do Estado-Juiz. Finalmente, é um direito autônomo, pois existe independentemente do direito material. Trata-se de um direito distinto do direito material disputado entre as partes. Aliás, é possível existir um direito material destituído da respectiva ação. Tal ocorre, por exemplo, quando se verifica a perempção e a prescrição.

CONDIÇÕES DA AÇÃO

Condições da ação são os requisitos necessários para se obter uma decisão de mérito sobre a pretensão estampada na inicial. Por conseqüência, a falta de uma condição da ação gera a extinção do processo sem julgamento do mérito (art. 267, inc. VI). É o que se denomina carência de ação. A carência de ação pode ser decretada a qualquer tempo, mas nada obsta a propositura de nova ação, desde que o autor pague as custas e despesas processuais, além dos honorários advocatícios (art. 28). São três as condições da ação: legitimidade das partes, interesse de agir e possibilidade jurídica do pedido. O art. 3º do CPC elenca apenas o interesse e a legitimidade, mas a doutrina, inspirada em Liebman, faz também menção à possibilidade jurídica do pedido. O citado art. 3º dispõe que: “Para propor ou contestar ação

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é necessário ter interesse e legitimidade”. A redação é defeituosa, pois o réu às vezes contesta justamente para alegar a falta de interesse e legitimidade. Antes de decidir o mérito, o juiz deve verificar se estão presentes essas condições. Faltando uma dessas condições, como vimos, haverá carência de ação, e, por conseqüência, extinção do processo sem julgamento do mérito. Presentes essas condições, o juiz decide o pedido, podendo o provimento jurisdicional ser procedente ou improcedente. Nítida, portanto, a distinção entre carência da ação e improcedência da ação.

LEGITIMIDADE AD CAUSAM

A legitimidade ad causam consiste no liame jurídico entre a pessoa e o objeto litigioso. Autor e réu devem ter legitimidade ad causam,sob pena de carência de ação. Assim, a ação de cobrança, por exemplo, deve ser proposta pelo credor em face do devedor. Não se pode acionar o pai do devedor. Em regra, como salienta Vicente Greco Filho, “somente podem demandar aqueles que forem sujeitos da relação jurídica material trazida a juízo. Cada um deve propor as ações relativas aos seus direitos. Salvo casos excepcionais expressamente previstos em lei, quem está autorizado a agir é o sujeito da relação jurídica discutida”. A legitimidade ordinária ocorre quando as partes da relação processual são as mesmas da relação material. Vale dizer, as partes que figuram no processo são as mesmas do conflito de interesses. Essa legitimidade ordinária não implica necessariamente na coincidência de pessoas, mas sim na coincidência das partes. Se, por exemplo, o credor move ação de cobrança em face do espólio do devedor, há uma legitimação ordinária sucessiva. Se o devedor ainda estivesse vivo e a ação fosse ajuizada em face dele, haveria uma legitimação ordinária originária. A legitimidade extraordinária, por sua vez, ocorre quando a lei autoriza alguém a defender em nome próprio interesse alheio. Tal ocorre, por exemplo, com o gestor de negócios (art. 861 do CC). Outro exemplo consiste na possibilidade de qualquer credor propor a ação revocatória em benefício da massa falida - (art. 132 da nova Lei de Falência nº 11.101/05). A legitimidade extraordinária foi denominada por Chiovenda “substituição processual”. Só é admitida nos casos expressos em lei. Com efeito, dispõe o art. 6º do CPC: “Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei”. Na legitimidade extraordinária, a lei autoriza a figurar, no pólo ativo ou passivo da relação processual, alguém que não está envolvido na relação de direito material. Conquanto a doutrina dominante considere sinônimas as expressões legitimidade extraordinária e substituição processual, alguns processualistas realizam uma sutil distinção, salientando que, na legitimidade extraordinária, o legitimado ordinário também pode propor a ação, ao passo que na substituição processual inexiste a figura do legitimado ordinário. Noutras

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palavras, a substituição processual compreende os casos de legitimidade extraordinária exclusiva, que atribui legitimidade a um terceiro, eliminando a do sujeito da relação jurídica, que seria o legitimado ordinário, como ocorria no regime dotal do CC de 1916, cuja ação poderia ser proposta apenas pelo marido para defender os interesses de sua esposa referentemente ao dote. Os adeptos dessa distinção reservam a legitimidade extraordinária apenas para as hipóteses em que a lei admite a ação proposta pelo terceiro, sem excluir a possibilidade de o legitimado ordinário também propô-la. Cumpre não confundir substituição processual com representação processual. O substituto funciona como parte no processo, defendendo em nome próprio interesse alheio. O representante atua em nome alheio sobre interesse alheio, não figurando como parte processual. O tutor, por exemplo, é representante processual do pupilo impúbere, mas nesse caso a parte processual é o pupilo, sendo o tutor um mero representante. Saliente-se, contudo, que os pais são usufrutuários dos bens dos filhos menores (art. 1689, I, do CC), de tal sorte que a eventual ação envolvendo esses bens deve ser movida pelos pais, em nome próprio, e não em nome do menor, diversamente do que ocorre com o tutor. Em tal situação, os pais não são representantes processuais e nem substitutos processuais, pois defendem em nome próprio interesses que lhes são próprios. Finalmente, convém esclarecer que ser parte não é uma condição da ação, pois qualquer pessoa pode figurar como autor ou réu. Parte é elemento da ação, ao passo que a legitimidade para agir, isto é, para figurar corretamente na relação processual, é condição da ação.

INTERESSE DE AGIR

O interesse de agir consiste no binômio necessidade-adequação. A necessidade emana da impossibilidade de obtenção do direito por vias extrajudiciais. Para se obter o registro de nascimento do filho, por exemplo, não há necessidade de se recorrer ao Poder Judiciário, pois o registro pode ser concretizado junto ao Cartório de Registro Civil. Enquanto for possível a satisfação do direito por vias extrajudiciais faltará o interesse processual. A adequação ou utilidade, por sua vez, consiste no fato de a ação escolhida pela parte ser apta para a obtenção do direito. Diz respeito ao tipo de providência requerida. Urge, portanto, a correspondência entre o tipo da ação e o pedido pleiteado. Haverá falta de interesse de agir quando a sentença não representar nenhuma utilidade prática para o autor. Tal ocorre, por exemplo, quando o credor de um cheque sem fundo, ao invés de mover a ação de execução, opta pela ação de cobrança. Nesse caso, falta o interesse de agir, pois a sentença almejada surtirá o mesmo efeito que o cheque, tendo em vista que ambos funcionam como título executivo. Outro exemplo: o locador move em face do locatário a ação de reintegração de posse, ao invés de ajuizar a ação de despejo. Mais um exemplo: o proprietário de um imóvel impetra mandado de segurança contra o diretor da Sabesp, alegando que o

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hidrômetro está adulterado. Ora, em mandado de segurança só é admissível prova documental, sendo, pois, inadequado para as questões em que há necessidade de produção de prova testemunhal ou pericial. Convém, porém, esclarecer que a erronia em relação ao tipo de procedimento não provoca o indeferimento automático da petição inicial. Esta só será indeferida se não for possível a adaptação ao tipo de procedimento legal (art. 295, inc. V). Assim, se o autor move uma ação de cobrança no rito sumário, quando o certo era o rito ordinário, o juiz, ao invés de indeferir a inicial deve adaptá-la ao procedimento correto. Portanto, a erronia em relação ao tipo de ação, que gera a falta de interesse processual, distingue-se nitidamente da erronia do tipo de procedimento. A primeira não pode ser corrigida pelo juiz, que de ofício deve decretar a carência de ação; a segunda é passível de corrigenda. Finalmente, a existência do interesse de agir não significa que o autor tenha razão e que a ação será procedente.

POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO

A teoria concreta da ação sustenta que o direito de ação só existe se a sentença for favorável ao autor. Nessa linha de raciocínio, o pedido será juridicamente impossível quando não encontrar amparo no direito material positivo. Em tal situação, o juiz deverá decretar a carência da ação. A teoria abstrata, por sua vez, preconiza que existe o direito de ação, independentemente de a sentença ser favorável ou não ao autor. Sendo assim, o pedido que não encontra correspondência no direito material ensejará uma sentença de mérito, consistente na improcedência da ação, ao invés de o magistrado decretar a carência da ação. A discussão acima não é meramente teórica ou acadêmica, pois a sentença de mérito se sujeita à coisa julgada material, impedindo a repetição da demanda, ao passo que a extinção do processo sem julgamento do mérito admite a repropositura da ação. O autor, quando propõe uma ação, formula dois tipos de pedido: o imediato, consistente na tutela jurisdicional; e o mediato, que se refere à providência de direito material. O primeiro é dirigido contra o Estado; o segundo, contra o réu. Adotada entre nós a teoria abstrata da ação, força convir que a possibilidade jurídica reside no pedido imediato, vale dizer, o pedido é juridicamente impossível nos casos em que a lei veda a tutela jurisdicional. Vejamos alguns exemplos: a) o pedido de mandado de segurança normativo, isto é, a obtenção de uma sentença para regular fatos futuros e incertos; b) o pedido de prisão civil por dívida que não seja relacionada com o devedor de alimentos ou depositário infiel; c) a ação de petição de herança de pessoa viva. Cabe observar, como esclarece Vicente Greco Filho, que a rejeição da ação por falta de possibilidade jurídica deve limitar-se às hipóteses claramente vedadas, não sendo o caso de se impedir a ação quando o fundamento for injurídico, pois, se o direito não protege determinado

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interesse, isto significa que a ação deve ser julgada improcedente e não o autor carecedor da ação. Assim, por exemplo, se alguém pede o despejo, em contrato de locação residencial, por motivo não elencado na Lei do Inquilinato e isto for, afinal, verificado, o juiz deverá julgar a ação improcedente e não o autor carecedor da ação. Isto porque o pedido era juridicamente possível (despejo), mas seu fundamento não está amparado pela lei.”

CONDIÇÃO E CARÊNCIA SUPERVENIENTES

Ao despachar a inicial, o juiz analisa as condições da ação. Ausente uma dessas condições, a inicial é indeferida liminarmente (art. 295, inc. II, III, e parágrafo único, III). Pode ocorrer, entretanto, de o magistrado não se atentar para a carência de ação, ordenando a citação do réu. Ainda assim, o processo deverá ser extinto sem julgamento do mérito, pois a carência da ação pode ser decretada a qualquer momento. Se, porém, no curso da ação verificar-se a superveniência da condição faltante, o processo deverá prosseguir para exame do mérito, por força do princípio da economia processual. É o que se denomina condição superveniente. Exemplo: o obreiro move ação de acidente do trabalho em face do INSS, requerendo o auxílio doença, todavia, já encontra-se no gozo de auxílio-doença acidentário, em razão do mesmo acidente. A hipótese é de carência de ação. Este último só pode ser pleiteado após a cessação daquele. Se, contudo, o juiz ordenou a citação, por não se atentar para esse fato, o processo poderá prosseguir, caso cesse o auxílio-doença no curso da demanda, verificando-se, destarte, a condição superveniente. Fenômeno inverso é a chamada carência superveniente da ação. Ocorre quando, no curso do processo, desaparece uma das condições da ação, presente por ocasião do ajuizamento da demanda. Em tal situação, extingue-se o processo por carência de ação (art. 267, inc. VI do CPC). Exemplo: no curso da ação de despejo, o réu desocupa o imóvel. Outro exemplo: no curso da ação de investigação de paternidade, o pai reconhece o filho por escritura pública. No tocante ao ônus da sucumbência, consistente no pagamento de custas, despesas processuais e honorários advocatícios, em regra, quando o processo é extinto em razão de carência de ação, a responsabilidade é do autor. Entretanto, na extinção por carência superveniente, o réu arcará com essas despesas, por força do princípio da causalidade.

ELEMENTOS DA AÇÃO

São elementos identificadores da ação: as partes, o pedido e a causa de pedir. Através desses elementos é que se distingue uma ação da outra. A compreensão dessa matéria é fundamental no estudo da coisa julgada, litispendência, conexão e continência. Com efeito, a coisa julgada impede a repetição da mesma ação, quando esta já houver sido julgada por sentença definitiva. A litispendência impede a repetição da mesma ação, que ainda se encontra sub

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judice. Observe-se, porém, que a alternância de um dos elementos da ação implica numa nova ação, que pode ser proposta normalmente sem que se viole a coisa julgada ou a litispendência. A conexão, por sua vez, ocorre quando duas ou mais ações apresentam o mesmo pedido ou a mesma causa de pedir. A continência se caracteriza pelo fato de o pedido de uma ação abranger o pedido de outra ação, como ocorre entre as ações de separação judicial e divórcio. Em havendo conexão ou continência, os processos são reunidos perante o juiz prevento, para julgamento simultâneo. Discute-se se a reunião dos processos é obrigatória ou facultativa. Denota-se que na coisa julgada e na litispendência as ações são idênticas, ao passo que na conexão e continência as ações são apenas semelhantes. Finalmente, cumpre examinar separadamente cada um dos elementos da ação.

PARTES

“As partes, autor e réu, constituem o sujeito ativo e o sujeito passivo do processo. É quem pede e contra quem se pede o provimento jurisdicional. Para a identificação das partes não é suficiente a identificação das pessoas presentes nos autos, porque é preciso verificar a qualidade com que alguém, de fato, esteja litigando. Assim, por exemplo, uma mesma pessoa poderá litigar com qualidades diferentes: em nome próprio, no interesse próprio; em nome próprio, sobre direito alheio, como substituto processual; por intermédio de outrem, seu representante. Em cada caso a situação da pessoa é diferente no plano jurídico, de modo que não existe, nessas hipóteses, identidade de parte”, na lição de Vicente Greco Filho. No sentido material, parte é quem participa da relação jurídica de direito material. Sob o prisma formal, porém, parte é toda pessoa, diversa do juiz, que atua no processo, submetendo-se ao contraditório. Nesse último sentido, o assistente também é parte, pois atua no processo, sob o contraditório, embora não participe da relação jurídica de direito material.

PEDIDO

O pedido ou objeto da ação corresponde à lide, isto é, à matéria sobre a qual incidirá a sentença de mérito. Trata-se da pretensão formulada pelo autor perante a autoridade judiciária. O pedido estabelece a limitação objetiva da sentença, pois é vedado o julgamento extra petita. Até a citação, o autor pode mudar unilateralmente o pedido. Feita a citação, a modificação do pedido ou da causa de pedir só será possível mediante a anuência do réu. A alteração do pedido ou da causa de pedir em nenhuma hipótese será permitida após o saneamento do processo (art. 264, “caput” e seu parágrafo único).

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O pedido pode ser imediato e mediato. O primeiro consiste no provimento jurisdicional solicitado, que pode ser de condenação, declaração, constituição, cautelar ou de execução. O segundo, diz respeito ao bem da vida pretendido pelo autor. Numa ação de cobrança de cem mil reais, por exemplo, o pedido imediato é a sentença condenatória; o mediato é o recebimento da importância devida. A sentença condenatória, por si só, atende apenas ao pedido imediato, tendo em vista que o pedido mediato, para ser satisfeito, deve ser objeto da fase de cumprimento de sentença. Em contrapartida, a sentença meramente declaratória e a sentença constitutiva atendem simultaneamente ao pedido imediato e ao pedido mediato, esgotando-se em si mesmas a função jurisdicional. Tal ocorre, por exemplo, com a sentença de divórcio. A sentença de improcedência da ação atende tão somente ao pedido imediato. A sentença terminativa não atende a nenhum dos dois pedidos, pois o processo é extinto sem julgamento do mérito. Vimos que o juiz não pode julgar fora do pedido estampado na inicial, sendo vedado ao réu ampliar na contestação os limites do julgamento, devendo limitar-se à sua defesa. Caso queira formular pedido deverá mover ação autônoma ou então oferecer a reconvenção. Tratando-se, porém, de ações dúplices, como as ações possessórias, a ação de prestação de contas, a ação renovatória de locação etc, faculta-se ao réu formular pedido na contestação, ao invés de reconvir, ampliando, destarte, o âmbito do julgamento. Finalmente, cumpre mencionar que julgada procedente a ação de investigação de paternidade, o juiz condenará o réu a pagar alimentos, independentemente de pedido expresso na inicial, por força da Lei 8560/92. Trata-se de um pedido implícito.

CAUSA DE PEDIR OU CAUSA PETENDI

A causa de pedir corresponde aos fundamentos, de fato e de direito, narrados pelo autor na petição inicial. Diz respeito, portanto, aos motivos do pedido. A causa de pedir subdivide-se em próxima e remota. A causa de pedir próxima compreende os fundamentos jurídicos do pedido, a causa de pedir remota abrange os fundamentos fáticos. O CPC adotou a teoria da substanciação, segundo a qual a causa de pedir deve conter as razões de fato e de direito, afastando-se da teoria da individualização, que exige apenas a descrição da fundamentação jurídica do pedido. Todavia, em matéria de ação de indenização decorrente de acidente do trabalho, movida em face do INSS, adotou-se a teoria da individualização, podendo investigar-se outras além daquela descrita na petição inicial. Para que duas ações sejam idênticas, é necessária a igualdade tanto da causa de pedir próxima quanto da remota. Em havendo

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divergência de uma dessas causas de pedir, as ações serão apenas semelhantes, não se configurando, destarte, a litispendência ou coisa julgada. Uma mesma causa de pedir remota (fato) pode originar duas causas próximas diversas. Tal ocorre, por exemplo, com a ação de separação judicial por infidelidade do cônjuge. A infidelidade, causa de pedir remota, serve para fundamentar o adultério ou a injúria grave, causas de pedir próximas. Se numa ação o cônjuge inocente alega que a infidelidade configura adultério, nada obsta que mova outra ação sustentando que esse mesmo adultério caracteriza injúria grave. Da mesma forma, como salienta Humberto Theodoro Júnior, o mesmo pedido de separação judicial, como fundamento de adultério, pode ser repetido entre os mesmos cônjuges, desde que o fato caracterizador da infidelidade seja outro. Nota-se, que nesse último exemplo, o que varia não é a causa próxima (fundamento jurídico), mas a causa remota (fundamento fático). Assim, cada fato possibilita uma nova ação. Igualmente, o mesmo fato pode gerar ações distintas, desde que se altere a fundamentação jurídica. O princípio da eventualidade, segundo o qual o réu deve alegar todos os fatos na contestação, sob pena de preclusão, também é aplicável ao autor, malgrado o silêncio do Código, preservando-se, destarte, a igualdade entre as partes. Assim, as características que integram o mesmo fato devem ser mencionadas na inicial. Numa ação de indenização em razão de acidente de veículo, por exemplo, se o autor alega a velocidade excessiva do réu, mas não consegue comprová-la, não poderá propor outra ação para alegar que o réu também estava na contramão. O princípio da eventualidade impede esse tipo de manobra jurídica. Cumpre não confundir fundamento jurídico com fundamento legal. Com efeito, a fundamentação jurídica integra a causa de pedir, sendo, pois, essencial, sob pena de carência da ação. Acrescente-se que a fundamentação jurídica consiste nos argumentos amparados pelo direito (lei, costumes, analogia, princípios gerais do direito e eqüidade). Diferentemente, a fundamentação legal nada mais é do que a norma legal em que se apóia a pretensão do autor, vale dizer, o artigo da lei. A fundamentação legal é totalmente dispensável, por força do princípio iura novit curia (o juiz conhece o direito).

FORMAÇÃO, SUSPENSÃO E EXTINÇÃO DO PROCESSO

FORMAÇÃO DO PROCESSO

INTRODUÇÃO

De acordo com Vicente Greco Filho, processo é a relação jurídica de direito público que reúne autor, juiz e réu, e que se exterioriza e se desenvolve pela seqüência ordenada de atos tendentes ao ato-fim, que é a sentença. A finalidade do processo é a composição da lide.

11CURSO À DISTÂNCIA – MÓDULO IDIREITO PROCESSUAL CIVIL I - PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS

No processo, há uma relação jurídica, isto é, um vínculo estabelecido entre pessoas. Discute-se se essa relação é linear, angular ou triangular. A teoria linear sustenta que, no processo, os direitos e deveres se estabelecem apenas entre autor e réu, tal qual ocorre com a relação de direito material. A teoria triangular preconiza que a relação jurídica processual é estabelecida entre autor, réu e juiz. A teoria angular, por sua vez, admite que o processo vincula três pessoas, isto é, autor, juiz e réu, mas salienta que as partes não mantêm vínculos entre si, mas entre elas e o juiz. Assim, o direito da parte se exerce perante o juiz e não perante a outra parte. Cândido Dinamarco adverte que não há grande interesse teórico ou prático na disputa, mas deixa claro que é inaceitável a visão do processo como relação linear entre autor e réu, com desprezo à figura do juiz. No Brasil, predomina a concepção triangular, pois há diversas hipóteses em que as partes mantêm vínculos diretos. Exemplo: o acordo para suspensão do processo previsto no art. 265, inc. II, do CPC. Observe-se, contudo, que antes da citação do réu a relação jurídica processual é ainda angular.

INÍCIO DO PROCESSO

Quanto à instauração, o processo é dispositivo, pois só começa por iniciativa da parte, por força do princípio “ne procedat iudex ex officio”. Quanto à sua impulsividade, o processo é inquisitivo, pois se desenvolve por impulso oficial do juiz (art. 262). Assim, uma vez instaurada a relação processual, o impulso do processo rumo à sentença é ordenado pelo juiz, independentemente de provocação da parte. Portanto, há uma fusão entre o princípio dispositivo e o princípio inquisitivo. Forma-se o processo com a propositura da ação. Se houver uma só vara, considera-se proposta a ação quando o juiz despacha a petição inicial; se houver mais de uma vara, com a distribuição da ação (art. 263). A propositura da ação vincula apenas o autor e o juiz, pois somente com a citação é que o réu passa a integrar a relação jurídica processual.

ESTABILIZAÇÃO DO PROCESSO

Feita a citação, é defeso ao autor modificar o pedido ou a causa de pedir, sem o consentimento do réu, mantendo-se as mesmas partes, salvo as substituições permitidas em lei (art. 264).

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Assim, a partir da citação ocorre a estabilização da relação processual, que traz as seguintes conseqüências: a. proibição da alteração do pedido ou da causa de pedir, salvo se houver a

concordância do réu. Assim, se o autor tiver outro pedido a fazer, deve mover um outro processo; antes da citação, o autor pode alterar unilateralmente o pedido ou a causa de pedir. Saliente-se que após o saneamento do processo nenhuma modificação poderá ser feita, ainda que haja a anuência do réu.

b. proibição da alteração das partes litigantes, salvo as substituições permitidas por lei.

c. proibição de alteração do juízo, por força do princípio da “perpetuatio jurisdicionis”. Nada obsta, porém, a substituição do juiz, nos casos previstos em lei, como promoção, remoção etc. Excepcionalmente, porém, ocorrerá a alteração do juízo, como nos casos de conexão e continência.

SUSPENSÃO DO PROCESSO

CONCEITO

Ocorre a suspensão do processo quando um acontecimento faz com que este deixe de fluir temporariamente, para continuar depois o seu curso normal ou pelo menos com possibilidade disso. Os atos anteriores à suspensão permanecem válidos. Os prazos iniciados antes da suspensão são respeitados, continuando a fluir de onde haviam parado tão logo o processo retome o seu curso normal. No período de suspensão do processo, em regra, nenhum ato processual pode ser praticado, sob pena de inexistência; alguns autores falam em nulidade do ato ao invés de inexistência. Todavia, o juiz poderá determinar a realização de atos urgentes, a fim de evitar dano irreparável (art. 266). Exemplos de atos urgentes: antecipação de prova cujo perecimento é iminente; citação para interromper a prescrição prestes a ocorrer etc. Por outro lado, a suspensão pode ser: a. própria: quando o processo fica suspenso até cessar a causa de

suspensão.b. imprópria: quando o processo fica suspenso aguardando a prática de um

ato processual. Exemplo: oferecida a denunciação da lide, suspende-se o processo até a citação do litisdenunciado.

CAUSAS DE SUSPENSÃO DO PROCESSO

Suspende-se o processo: I. pela morte ou perda da capacidade processual de qualquer das partes,

de seu representante legal ou de seu procurador;

13CURSO À DISTÂNCIA – MÓDULO IDIREITO PROCESSUAL CIVIL I - PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS

II. pela convenção das partes; III. quando for oposta exceção de incompetência do juízo, da câmara ou do

tribunal, bem como de suspeição ou impedimento do juiz; IV. quando a sentença de mérito:

a. depender do julgamento de outra causa, ou da declaração da existência ou inexistência da relação jurídica, que constitua o objeto principal de outro processo pendente;

b. não puder ser proferida senão depois de verificado determinado fato, ou de produzida certa prova, requisitada a outro juízo;

c. tiver por pressuposto o julgamento de questão de estado, requerido como declaração incidente;

V. por motivo de força maior; VI. nos demais casos, que este Código regula. A suspensão depende de decisão judicial, que é meramente declaratória, pois a suspensão se opera desde o momento da ocorrência de uma dessas causas. Quanto ao término da suspensão, cumpre distinguir três situações:a. os casos em que a própria lei determina esse término. Nessas hipóteses,

como por exemplo a exceção de incompetência, que suspende o processo até ser julgada pelo juiz, o término da suspensão é automático, independe de decisão judicial.

b. os casos em que a própria decisão judicial que suspende o processo já determina o termo final. Em tais situações, o término da suspensão é automático.

c. os casos em que o término da suspensão é impreciso. Exemplo: suspensão por motivo de força maior. A retomada do processo depende de decisão judicial e intimação das partes.

SUSPENSÃO POR MORTE OU PERDA DA CAPACIDADE PROCESSUAL O processo se suspende pela morte: a. de qualquer das partes. Perdura a suspensão até a habilitação dos

herdeiros; o juiz não fixa prazo para a suspensão. Se a ação for intransmissível, como, por exemplo, a separação judicial, o processo é extinto sem julgamento do mérito (art. 267, inc. IX).

b. do representante legal de qualquer das partes. Suspende-se o processo até a nomeação de novo representante.

c. do advogado de qualquer das partes. O processo não pode prosseguir, ainda que já tenha se iniciado a audiência. Assim, com a morte do advogado, o processo é suspenso e a parte intimada pessoalmente para constituir novo advogado em vinte dias. Se a morte for do advogado do réu e este não constituir novo advogado, o processo correrá à sua revelia; trata-se de uma revelia que pode ocorrer após a contestação; é o chamado

14CURSO À DISTÂNCIA – MÓDULO IDIREITO PROCESSUAL CIVIL I - PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS

réu conteste revel. Se a morte for do advogado do autor e este não constituir novo advogado, o processo será extinto sem julgamento do mérito (art. 265, § 2º, do CPC).

O processo também se suspende pela perda da capacidade processual:a. de qualquer das partes. Suspende-se o processo até nomeação do

representante legal. b. do representante legal. Suspende-se o processo até nomeação de novo

representante legal. c. do advogado. Suspende-se o processo até a nomeação de novo

procurador, aplicando-se analogicamente o §2º do art. 265, do CPC. No caso de suspensão por perda da capacidade processual ou morte de qualquer das partes ou de seu representante legal, se essa prova for produzida após o início da audiência, o juiz não suspenderá o processo, conforme ressalva o § 1º do art. 265 do CPC; o advogado continuará no processo até o encerramento da audiência e a suspensão só se verificará após a publicação da sentença, impedindo, destarte, o início do prazo de recurso. Finalmente, no caso de morte ou perda da capacidade processual do advogado, o processo é suspenso, ainda que já se tenha iniciado a audiência. Todavia, se houver mais de um advogado, não há falar-se em suspensão do processo.

SUSPENSÃO DO PROCESSO POR CONVENÇÃO DAS PARTES

As partes podem celebrar acordo para suspender o processo pelo prazo máximo de seis meses. A suspensão, porém, depende de decisão do juiz. Mas esta decisão é ato vinculado e não discricionário. Não é dado ao juiz vetar a suspensão, como adverte Humberto Theodoro Júnior. As partes não precisam mencionar no requerimento o motivo da suspensão. Findo o prazo da suspensão, o escrivão fará os autos conclusos ao juiz, que ordenará o prosseguimento do processo.

SUSPENSÃO DO PROCESSO EM RAZÃO DA OPOSIÇÃO DE EXCEÇÃO

A oposição da exceção de incompetência do juízo, outrossim, a exceção de suspeição ou impedimento do juiz, provoca a suspensão do processo até que seja julgada.

SUSPENSÃO DO PROCESSO POR PREJUDICIALIDADE

A questão prejudicial é aquela que pode ser objeto de processo autônomo, embora se apresente como antecedente lógico do mérito do pedido estampado na ação original. Deve ser decidida antes do mérito. A questão prejudicial pode ser:

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a. interna: é a que surge dentro do mesmo processo em que vai ser proferida a sentença. Antes de decretar o despejo, por exemplo, o juiz deve decidir o argumento do réu de que o contrato não é de locação, mas de comodato. A questão prejudicial interna não suspende o processo. Aliás, se for requerida como ação declaratória incidental, determina o julgamento simultâneo na mesma sentença.

b. externa: é a que é objeto de outro processo. Essa questão prejudicial externa é causa de suspensão do processo (art. 265, IV, “a” e “c”). A suspensão pode ser de ofício ou a requerimento da parte. Acrescente-se ainda que a suspensão do processo não poderá exceder a um ano. Findo este prazo, o juiz mandará prosseguir o processo (§ 5º do art. 265). Exemplo: a ação de indenização pela prática de delito pode ser suspensa até o julgamento definitivo da ação penal. Outro exemplo: numa ação de indenização por doença do trabalho movida em face do empregador, o juiz pode suspender o processo se houver uma ação trabalhista em que as mesmas partes discutem a existência do vínculo empregatício.

Cumpre acrescentar, porém, que, inexistindo obstáculo para a reunião das causas conexas, há de se aplicar a regra do art. 106 do CPC, que manda reunir as ações conexas para julgamento simultâneo. Portanto, a suspensão do processo, como salienta Humberto Theodoro Júnior, “só prevalecerá sobre a conexão prevista no citado art. 106, quando:a. a competência seja diferente em caráter absoluto, como se passa entre

ação penal e a civil, ou entre feitos afetos à justiça comum e à especial etc.;

b. as fases em que se encontram as duas causas sejam inconciliáveis, o feito prejudicado está em primeiro grau de jurisdição e o prejudicial em segundo;

c. os procedimentos são diversos e inteiramente incompatíveis, como, por exemplo, a pretensão à divisão geodésica manifestada individualmente por um dos herdeiros antes da partilha sucessória;

d. a causa petendi na ação prejudicial seja totalmente diversa da que fundamenta a causa prejudicada”.

Por outro lado, o art. 265, inc. IV, “b”, do CPC preceitua que se suspende o processo quando não puder ser proferida a sentença de mérito senão depois de verificado determinado fato, ou de produzida certa prova, requisitada a outro juízo. Tal ocorre, quando a produção da prova é feita por carta precatória ou carta rogatória. A suspensão do processo, contudo, só ocorrerá se a prova houver sido requerida antes o despacho saneador, por força do art. 338 do CPC. Ainda assim, para que haja a suspensão, é necessário que tal prova seja imprescindível, conforme nova redação do artigo 338 do CPC, dada pela Lei nº 11.280, de 16 de fevereiro de 2006. O momento da suspensão é o da expedição da carta. Ao deferir a expedição da

16CURSO À DISTÂNCIA – MÓDULO IDIREITO PROCESSUAL CIVIL I - PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS

carta, o juiz assinará prazo para seu cumprimento, que não poderá exceder a um ano.

SUSPENSÃO DO PROCESSO POR MOTIVO DE FORÇA MAIOR

Força maior é o acontecimento extraordinário que impede o funcionamento da administração da justiça. Exemplo: guerra, revolução, greve dos funcionários etc.

OUTROS CASOS LEGAIS DE SUSPENSÃO

Como destaca Humberto Theodoro Júnior, “são casos de suspensão legal do processo: a. da verificação, pelo juiz, de que ocorre incapacidade processual ou

irregularidade da representação da parte (art. 13); b. da intervenção de terceiros, sob a forma de nomeação à autoria (art. 64),

denunciação da lide (art. 72), chamamento ao processo (art. 79) e oposição (art. 60);

c. do incidente de falsidade proposto após a instrução da causa (art. 394); d. do atentado (art. 881); e. dos embargos à execução, quando concedido efeito suspensivo (Lei nº

11.382/06);f. da execução frustrada por falta de bens penhoráveis (art. 791, nº III); g. da execução em que o credor concede prazo ao devedor para cumprir

voluntariamente a obrigação (art. 792); h. do embargo de terceiro (art. 1.052) etc.”

17CURSO À DISTÂNCIA – MÓDULO IDIREITO PROCESSUAL CIVIL I - PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS

QUESTÕES

1. O que é a teoria imanentista ou clássica da ação? 2. O que é a teoria concreta da ação? 3. O que é a teoria abstrata da ação? 4. O que é ação? 5. Quem é o sujeito passivo do direito de ação? 6. Qual a diferença entre ação e demanda? 7. Por que o direito de ação é bifrontal? 8. O que são condições da ação? 9. O que é carência da ação e qual a sua conseqüência? 10. Quais as condições da ação? 11. Qual a diferença entre carência da ação e improcedência da ação? 12. O que é legitimidade ordinária? 13. Qual a diferença entre legitimidade extraordinária e substituição

processual?14. Qual é a diferença entre substituição processual e representação

processual?15. Os pais são substitutos processuais nas ações envolvendo os bens dos

filhos menores? 16. Explique o binômio que rege o interesse de agir. 17. A erronia sobre o tipo de procedimento produz o mesmo efeito da erronia

sobre o tipo de ação? 18. Presente o interesse de agir, a ação será automaticamente procedente? 19. A teoria concreta e a teoria abstrata repercutem no conceito do pedido

juridicamente possível? 20. Quais os dois pedidos que o autor formula quando propõe a ação? 21. De acordo com a teoria abstrata, a possibilidade jurídica do pedido

concentra-se no pedido imediato ou no pedido mediato? 22. Se o pedido mediato não estiver previsto no ordenamento jurídico, a

sentença será de improcedência ou de carência de ação? 23. 23.Em qual momento o magistrado deve decretar a carência da ação? 24. O que é condição superveniente da ação e qual o seu efeito? 25. O que é carência superveniente da ação e qual a sua conseqüência

quanto ao ônus da sucumbência? 26. Quais são os elementos da ação? 27. Qual é a importância do estudo dos elementos da ação? 28. Qual é a diferença entre coisa julgada e litispendência? 29. O que é conexão? 30. O que é continência? 31. Conceitue parte no sentido material e no sentido formal. 32. O que é pedido e qual o seu efeito? 33. O autor pode mudar o pedido? 34. As sentenças condenatórias, declaratórias e constitutivas atendem aos

pedidos imediato e mediato? 35. A sentença de improcedência e a sentença terminativa atendem aos

pedidos imediato e mediato?

18CURSO À DISTÂNCIA – MÓDULO IDIREITO PROCESSUAL CIVIL I - PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS

36. O réu pode formular na contestação algum pedido que amplie os limites do julgamento do magistrado?

37. O que é causa de pedir? 38. Como se subdivide a causa de pedir? 39. Qual a diferença entre a teoria da substanciação e a teoria da

individualização? O CPC adotou qual dessas teorias? 40. Haverá litispendência se apenas uma das causas de pedir for idêntica? 41. O princípio da eventualidade é aplicável ao autor? 42. Qual é a diferença entre a fundamentação jurídica e a fundamentação

legal?43. A fundamentação legal é dispensável? 44. O que é processo e qual a sua finalidade? 45. O que é a teoria linear? 46. O que é a teoria angular? 47. O que é a teoria triangular? 48. O processo é regido pelo princípio dispositivo ou pelo princípio

inquisitivo?49. Qual é o momento da formação do processo? 50. Em que momento o réu se vincula ao processo? 51. Em que momento ocorre a estabilização da relação processual e quais as

suas três principais conseqüências? 52. O autor, após a propositura da ação, pode alterar a causa de pedir? 53. Em que consiste a suspensão do processo? 54. Cessada a suspensão, os prazos processuais recomeçam a contar por

inteiro?55. No período de suspensão do processo é possível a prática de atos

processuais?56. Qual a diferença entre suspensão própria e suspensão imprópria? 57. Qual o termo inicial da suspensão do processo? 58. Qual é o termo final da suspensão do processo? 59. No caso de morte de qualquer das partes o processo é suspenso ou

extinto?60. No caso de morte do representante legal de uma das partes até quando o

processo permanece suspenso? 61. No caso de suspensão por morte ou perda da capacidade processual de

qualquer das partes ou do representante legal, a audiência é ou não realizada?

62. Com a morte do advogado, o processo é suspenso e a parte intimada pessoalmente para constituir novo advogado em 20 dias. Se a parte não constituir novo advogado, o que acontece?

63. Qual o prazo de suspensão do processo por acordo entre as partes? O juiz tem o dever ou mera faculdade de, nesse caso, suspender o processo?

64. A questão prejudicial interna é causa de suspensão do processo?65. Qual é o prazo da suspensão em razão de questão prejudicial? 66. A expedição de carta precatória sempre suspende o processo? 67. O que é a teoria da asserção?

LEGISLAÇÃO PENAL

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO I

1CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO I LEGISLAÇÃO PENAL ESPECIAL - PROF. ADRIANO RICARDO CLARO

LEI N. 8.072/90 – LEI DOS CRIMES HEDIONDOS

CONCEITO DE CRIME HEDIONDO – ORIGEM

O termo crimes hediondos surgiu pela primeira vez na Constituição Federal de 1988, no artigo 5º, inciso XLIII, que estabelece que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”. A parte final do dispositivo legal acima citado foi infeliz ao tratar da omissão nestas práticas delituosas. Com efeito, na omissão, não basta o “poder fazer algo”. Segundo Alberto Silva Franco “a omissão só tem relevância penal quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir significa que o omitente tinha a obrigação, em virtude da lei, ou da assunção da responsabilidade de impedir o resultado ou de uma situação de ingerência, em obstar o advento do resultado típico”. Dois anos mais tarde, a Lei 8.072/90 definiu quais eram os crimes hediondos e, para atender a disposição constitucional, a eles equiparou a tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo. Na mesma esteira, estabeleceu quais as conseqüências penais e processuais penais desta categoria de delitos. Note-se, porém, que a lei não conceituou o que fosse crime hediondo, sendo certo que se trata de puro processo de etiquetagem legal: é hediondo aquele crime que a lei rotulou, em rol taxativo, como tal. Não se admite, portanto, extensão do rol de crimes hediondos por criação judicial, aplicando-se a analogia, sob pena de violação ao princípio da legalidade. A Lei 8.072/90, conhecida como a “Lei dos Crimes Hediondos”, na realidade define alguns tipos contidos no Código Penal como crimes hediondos, além de incluir neste rol, o crime de genocídio (tentado ou consumado), previsto nos artigos 1º, 2º e 3º, da Lei 2.889, de 1º de outubro de 1956. Ao lado dos tipos penais definidos como crimes hediondos, a Lei 8.072/90 também cuida de outras três modalidades criminosas: a tortura; o tráfico ilícito de drogas; e o terrorismo. Assim, crimes hediondos são aqueles elencados no artigo 1º, da Lei 8.072/90, a saber: I) Do Código Penal - homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, I, II, III, IV e V); latrocínio (art. 157, § 3º, in fine); extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2º); extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput e §§ 1º, 2º e 3º); estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único); atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único); epidemia com resultado morte (art. 267, § 1º); falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou

2CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO I LEGISLAÇÃO PENAL ESPECIAL - PROF. ADRIANO RICARDO CLARO

medicinais (art. 273, caput, e § 1º, § 1ºA, § 1º B, com a redação dada pela Lei 9.677/98); II) Fora do Código Penal – genocídio (arts. 1º, 2º e 3º, da Lei 2.889, de 1º de outubro de 1956). A tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e o terrorismo não são crimes hediondos, mas estão contidos na Lei 8.072/90 e têm tratamento jurídico assemelhado a tais crimes.

ALTERAÇÕES DA LEI 8.072/90 – ATÉ O MOMENTO

A Lei 8.072/90 sofreu relevantes alterações com o advento das Leis 8.930, de 6 de setembro de 1994, e 9.695, de 20 de agosto de 1998.

LEI 8.930/94

O texto original foi bastante criticado em decorrência da proteção que fazia do patrimônio, da liberdade sexual e situações de perigo comum, olvidando-se da tutela da vida humana. Por conta das chacinas de Vigário Geral e da Candelária (ambas no Rio de Janeiro) e do homicídio da atriz Daniela Perez, a legislação foi modificada, com o advento da Lei 8.930/94. Importante observar que o crime de homicídio foi incluído no rol dos crimes hediondos em virtude da publicação da Lei 8.930/94. Todas as figuras qualificadas de homicídio constituem crime hediondo; o homicídio praticado em atividade típica de grupo de extermínio – conceito vago -, ainda que na modalidade simples, é considerado crime hediondo, mesmo que perpetrado por um só agente (aspecto que conflita com a idéia de “grupo” de extermínio). Conforme salienta Alberto Silva Franco, o que é difícil de imaginar é um homicídio praticado por grupo de extermínio ser simples, pois “é óbvio que os casos de homicídio praticado por grupo de extermínio encontram enquadramento, por sua enorme gravidade, em alguma hipótese de homicídio qualificado e nunca será ajustável ao tipo de homicídio simples”. O homicídio qualificado-privilegiado, qual seja, a conjugação de uma das três figuras descritas no § 1º, do artigo 121, do Código Penal (relevante valor moral; relevante valor social; ou, sob domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima), com alguma qualificadora de caráter objetivo, não se inclui como crime hediondo. Segundo Damásio E. de Jesus, o motivo determinante do crime (uma das causas de diminuição) tem preferência sobre a qualificadora objetiva, face ao artigo 67, do Código Penal. Também sustentam este posicionamento Alberto Silva Franco e Francisco de Assis Toledo. Ao contrário, Julio Fabbrini Mirabete e Heleno Cláudio Fragoso, seguidos por Antonio Lopes Monteiro e Edgard de Oliveira Santos Cardoso entendem que o homicídio qualificado constitui figura autônoma (ou quase autônoma, derivada do tipo fundamental) e, o privilégio, mera causa de diminuição. Por essa razão, o crime não perde sua característica de hediondez.

3CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO I LEGISLAÇÃO PENAL ESPECIAL - PROF. ADRIANO RICARDO CLARO

Aspectos secundários, mas importantes da Lei 8.930/94: a. não obstante tenha rotulado o homicídio como hediondo, não alterou a sua

pena, como fez com os demais crimes na sua versão original (artigo 6º); b. o delito descrito no artigo 270, c.c. o artigo 285, do Código Penal deixou de

ser etiquetado como hediondo, verificando-se a novatio legis in mellius (o que não se confunde com a abolitio criminis).

Pode haver recebimento parcial da denúncia por homicídio qualificado? Ou seja, pode o Juiz, no momento do recebimento da denúncia, narrada e capitulada pelo Promotor de Justiça como homicídio qualificado, recebê-la parcialmente como sendo de homicídio simples, afastando as qualificadoras liminarmente? A resposta pacífica é negativa. O juiz não pode desclassificar o delito, pois estaria violando o princípio do devido processo legal, bem como adentrando em atividade acusatória que lhe é vedada, sendo a exclusividade da titularidade da ação penal pública do Ministério Público (artigo 129, I, da Constituição Federal). Neste sentido: STF, 2ª Turma, HC 76.024-RJ, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, j. 12/12/97, Informativo STF nº 96; STJ, 6ª Turma, HC 4.881-RJ, Rel. Min. ANSELMO SANTIAGO, DJU 24/11/95, p. 44.625; TJ-SP, MS 184.218-03/0-São Paulo.

LEI 9.695/98

Em decorrência de alguns escândalos ocorridos em 1998, envolvendo falsificação de 138 medicamentos - entre os quais a pílula anticoncepcional (de farinha) Microvlar, o antibiótico Amoxil e o Androcur (para câncer de próstata) - o legislador, sempre a atender clamores populares e valendo-se do Direito Penal pontual como técnica rápida a dar uma resposta à sociedade naquilo que se entende como simbolismo penal, formulou a Lei 9.677, de 2 de julho de 1998, que alterou a rubrica, os tipos objetivos e elevou as penas dos artigos 272, 273, 274, 275, 276 e 277, do Código Penal. Nesta esteira, o que a Lei 9.695/98 fez foi incluir, no rol de crimes etiquetados como hediondos, a falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput, e § 1º, § 1ºA, § 1º B, com a redação dada pela Lei 9.677/98).

OUTRAS ALTERAÇÕES

Necessário registrar as seguintes alterações legislativas que, de forma indireta, refletem na Lei dos Crimes Hediondos:a. Lei nº 9.034, de 03 de maio de 1995 (Crime Organizado): Antonio

Scarance Fernandes salienta a hipótese de a traição benéfica envolver a prática de crime hediondo por organização criminosa. Neste caso, a colaboração levará ao desmantelamento da quadrilha ou bando e permitirá o esclarecimento do crime e de sua autoria, implicando em dupla redução da pena: uma decorrente do disposto no artigo 8º, da Lei nº 8.072/90 e outra com base no artigo 6º, da Lei nº 9.034/95.

4CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO I LEGISLAÇÃO PENAL ESPECIAL - PROF. ADRIANO RICARDO CLARO

b. Lei nº 9.269/96 (alterou a redação do parágrafo 4º, do artigo 159, que cuida da delação premiada). V. item delação premiada.

c. Lei nº 9.426, de 24 de dezembro de 1996 (alterou a pena do § 3º, do artigo 157, do Código Penal – somente em relação à primeira parte do dispositivo, roubo agravado pelo resultado lesão corporal de natureza grave – que não é hediondo).

d. Lei nº 11.464, de 28 de março de 2007, que permite a progressão de regime em condenação por crime hediondo ou assemelhado, com cumprimento de 2/5 de pena para o réu primário e 3/5 para o reincidente, e deixa de proibir a liberdade provisória.

CONSEQÜÊNCIAS DA LEI DOS CRIMES HEDIONDOS

O artigo 2º da Lei 8.072/90 enumera as principais restrições a direitos e garantias de natureza penal e processual penal , em relação aos crimes hediondos, tortura, tráfico de entorpecentes e terrorismo, a saber: tais práticas criminosas são insuscetíveis de anistia, graça e indulto e fiança (artigo 2º, incisos I e II); a pena será iniciada em regime fechado, admitida a progressão com cumprimento de 2/5 da pena, ao primário, ou 3/5, se reincidente (artigo 2º, parágrafos 1º e 2º); o prazo da prisão temporária é de 30 (trinta) dias, prorrogável por igual período (artigo 2º, parágrafo 4º); e o livramento condicional apenas será concedido após o cumprimento de mais de dois terços (2/3) da pena, se o apenado não for reincidente específico (artigo 5º).

ANISTIA, GRAÇA E INDULTO

Anistia, indulto e graça são formas de clemência soberana. A primeira consiste em medida de caráter coletivo, por ato do Congresso Nacional (vale dizer, é concedida mediante lei ordinária) e atinge, amplamente, os crimes e as condenações, subsistindo, porém o direito à indenização (efeitos civis); as duas últimas figuras consistem em atos do Presidente da República concedidos através de decreto e referem-se – em regra - a pessoas e não a fatos, pressupondo o trânsito em julgado da condenação e não extinguem os efeitos penais da condenação: enquanto o indulto é ato espontâneo do Presidente e é coletivo, a graça deve ser solicitada pelo interessado, sendo, portanto, individual, caso a caso (razão pela qual a Lei de Execução Penal, no artigo 188, refere-se a este instituto como ‘indulto individual’). Importante salientar que a Constituição Federal, no já mencionado inciso XLIII, do artigo 5º refere-se, tão-somente, à impossibilidade de concessão de graça ou anistia, não se referindo ao indulto. Foi com o advento da Lei 8.072/90 que a concessão de indulto foi, igualmente, proibida. Assim, foi criada a divergência sobre a possibilidade ou não desta proibição. Posicionamentos:

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a. Antonio Lopes Monteiro entende que, em decorrência do artigo 84, XII, da Constituição Federal, “a concessão do indulto coletivo, assim como a do indulto individual (graça), já estava proibida no texto da Carta Magna”. Com o mesmo entendimento: Fernando Capez, salientando que “a Constituição é um texto genérico, e, por essa razão, não se exige preciosismo técnico em suas disposições. Quando o constituinte menciona o termo ‘graça’, o faz em seu sentido amplo (indulgência ou clemência soberana), englobando, com isso , a ‘graça em sentido estrito’ e o ‘indulto’ ”. O Superior Tribunal de Justiça também se posicionou no sentido do não cabimento de indulto, seja pleno/total, seja restrito/parcial (comutação), aos crimes hediondos e assemelhados: HC 25.180-RJ, 6ª Turma, Rel. Min. FONTES DE ALENCAR, j. 06/02/2003, DJU 10/03/2003, RSTJ 166/558).

b. Contra: Alberto Silva Franco entende que é inconstitucional a previsão da proibição da concessão de indulto, pois a Constituição não proibiu este instituto no inciso XLIII, do artigo 5º, mas apenas a graça e a anistia. Antonio Scarance Fernandes também posicionou-se no sentido da inconstitucionalidade, haja vista que o legislador ordinário não poderia ter aumentado a restrição. Com o mesmo entendimento, posiciona-se Flávio Augusto Monteiro de Barros.

Por outro lado, no que toca ainda a questão do indulto, a Lei 9.455/97, que trata da tortura, segundo entendimento majoritário, permite a concessão de indulto para este específico crime. Como se trata de lei ordinária federal, da mesma esfera hierárquica, revogou a Lei 8.072/90 neste aspecto que conflitou (o beneplácito, porém, que não se estende às outras práticas criminosas). Contra tal posicionamento: o indulto, mesmo no caso da tortura, é proibido, seguindo a interpretação acima mencionada de que o termo “graça” utilizado no artigo 1º, § 6º, da Lei 9.455/97 deve ser compreendido em seu sentido amplo (indulto e graça em sentido estrito). Com este mesmo entendimento Paulo Juricic ressalta que o condenado não tem direito ao indulto, pois a expressão ‘graça’ deve ser interpretada como ‘indulto individual’.

FIANÇA E LIBERDADE PROVISÓRIA

Liberdade provisória é instituto de Direito Processual Penal e pode ser concedida em decorrência de prisão em flagrante, preenchidos os requisitos legais. A versão original da Lei n. 8.072/90 proibia a liberdade provisória com ou sem fiança aos crimes desta lei (hediondos ou assemelhados). Com o advento da Lei n. 11.464/2007, apenas a proibição da liberdade provisória com fiança ficou mantida, até mesmo porque a

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Constituição Federal estabelece esta proibição no artigo 5º, inciso XLIII, em dispositivo considerado cláusula pétrea. Assim, a nova redação da Lei n. 8.072/90 não faz nenhuma proibição em relação à liberdade provisória. Importante não confundir a liberdade provisória (que busca a soltura em virtude de prisão em flagrante delito) com a revogação da prisão preventiva (que busca a soltura em virtude de prisão preventiva e, analogicamente, de prisão temporária). Da mesma forma que ocorre com a liberdade provisória, entendemos que decretada a prisão temporária ou a prisão preventiva de pessoa, em decorrência de prática de algum delito previsto na Lei dos Crimes Hediondos, não há nenhum óbice legal para que sejam revogadas, se cessados os motivos que deram ensejo à decretação da medida extrema. Quanto à fiança, será difícil a ocorrência de hipótese que a admita, uma vez que não é cabível nos crimes punidos com reclusão em que a pena mínima cominada em abstrato for superior a 2 (dois) anos e praticados sem violência (artigo 323, do CPP). Tendo em vista que não há na lei sob comento quase nenhuma hipótese que preencha estes requisitos, a fiança não seria concedida de qualquer modo, com algumas exceções de tentativa. Importante observar que a Lei n. 11.343/2006, a nova Lei de Drogas, expressamente veda a liberdade provisória, o “sursis”, a anistia, a graça, o indulto, a fiança e a substituição da pena privativa de liberdade em pena restritiva de direitos, nos crimes dos artigo 33, caput, 33 § 1º e 34 até 37. Esta proibição está prevista no artigo 44, desta lei.

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QUESTÕES

1. Qual a origem do termo “crimes hediondos”? 2. O que é crime hediondo? 3. A Lei 8072/90 cuida apenas dos crimes hediondos? 4. Quais são os crimes hediondos? Todos estão previstos no Código Penal? 5. Os crimes de terrorismo, tráfico ilícito de drogas e tortura são hediondos? 6. O homicídio híbrido, isto é, qualificado-privilegiado é crime hediondo? 7. O juiz, no ato do recebimento da denúncia, pode excluir as qualificadoras

do homicídio?8. Em que consiste a delação premiada do art. 6º da Lei 9034/95?9. Quais as restrições de natureza penal e processual penal prevista na Lei

8072/90?10. O que é anistia? A anistia extingue os efeitos civis da condenação? 11. Qual a diferença entre graça e indulto? 12. A Constituição Federal proíbe a graça, anistia e indulto em relação aos

crimes hediondos, terrorismo, tortura e tráfico de entorpecentes? 13. A proibição do indulto a esses delitos é inconstitucional? 14. O crime de tortura admite indulto? 15. O que é liberdade provisória? 16. Se a prisão em flagrante for por algum crime previsto na Lei 8072/90 é

cabível a liberdade provisória? 17. Qual a diferença entre liberdade provisória e revogação da prisão

preventiva?18. Nos crimes previstos na Lei 8072/90, o juiz pode revogar a prisão

preventiva ou a prisão temporária? 19. Os crimes disciplinados na Lei 8072/90 admitem fiança? 20. O tráfico de drogas admite “sursis”?

DIREITO PENAL PARTE GERAL

TOMO I

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO I

1CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO I

DIREITO PENAL PARTE GERAL I - PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS

BREVE APANHADO SOBRE O DIREITO PENAL

INTRODUÇÃO

O direito penal tem duas funções básicas: proteção dos bens jurídicos e manutenção da paz social. Diz-se que o direito penal tem caráter fragmentário, porque não encerra um sistema exaustivo de proteção a bens jurídicos, recaindo a criminalidade apenas sobre os fatos contrastantes dos valores mais elevados do convívio social. Segundo assegura Muñoz Conde, o caráter fragmentário apresenta três aspectos: a. a lei deve incriminar apenas as condutas que atacam o bem jurídico de

forma mais grave, exigindo determinadas intenções e tendências, abstendo-se de punir a forma culposa;

b. nem todas as condutas ilícitas à luz dos outros ramos do direito devem ser tipificadas como crime;

c. a lei não deve incriminar as ações meramente imorais, como a homossexualidade ou a mentira.

Discute-se ainda se o direito penal tem caráter sancionatório ou constitutivo. A concepção autonomista, também chamada constitutiva, autônoma ou originária, afirma a independência do direito penal em relação aos demais ramos do direito. Consoante essa concepção, as normas penais nascem independentemente de outras normas jurídicas, elaborando conceitos nem sempre fixados por outros ramos do direito, como sursis, livramento condicional, maus-tratos a animais etc. De outro lado, acha-se a concepção sancionatória, que vislumbra no direito penal um complexo de normas de reforço à tutela de valores pertencentes a outros ramos do direito. Filiamo-nos a esta última corrente. O fato ilícito, quando chega ao extremo de transformar-se em crime, é porque encontra também proibição noutra norma jurídica de natureza extrapenal (constitucional, civil, administrativa, comercial etc.). O direito penal é sancionatório, no sentido de complementar a eficácia de proteção ao bem jurídico estatuída por outras normas. Assim, por exemplo, a criminalização do furto é um complemento à tutela que o direito civil confere à propriedade.

DIVISÕES DO DIREITO PENAL

Consoante a função exercida, o direito penal é dividido nas seguintes categorias: a. Direito penal fundamental: compreende o conjunto de normas e princípios

gerais, aplicáveis até mesmo às leis penais previstas fora do Código, se estas

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DIREITO PENAL PARTE GERAL I - PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS

não dispuserem de modo contrário (art. 12 do CP). É composto pelas normas da Parte Geral do Código Penal (arts. 1º a 120) e, excepcionalmente, por algumas de conteúdo abrangente, previstas na Parte Especial, como, por exemplo, a que conceitua funcionário público (CP, art. 327).

b. Direito penal complementar: compreende o conjunto das normas integrantes da legislação penal extravagante. Exemplos: Lei da Tortura e Lei dos Crimes Hediondos.

c. Direito penal comum: aplica-se a todas as pessoas. Exemplos: Código Penal e a maioria da legislação penal extravagante.

d. Direito penal especial: aplica-se apenas às pessoas que preenchem certas condições jurídicas. Exemplo: Código Penal Militar.

e. Direito penal geral: aplica-se em todo o território nacional. É o emanado da União (art. 22, I, da CF).

f. Direito penal local: aplica-se apenas em uma parte do território nacional. É o emanado dos Estados-Membros, pois, como veremos, lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas de direito penal (CF, art. 22, parágrafo único).

DIREITO PENAL OBJETIVO E SUBJETIVO

Direito penal objetivo é a legislação penal em vigor. Direito penal subjetivo é o jus puniendi, isto é, o direito de punir. Esse direito, que é exclusivo do Estado, surge quando o criminoso viola a norma penal. A noção de direito subjetivo não se esgota, porém, nesse poder punitivo do Estado, pois o criminoso também tem o direito subjetivo de liberdade, no sentido de não ser punido fora dos casos expressamente definidos como crime ou contravenção penal.

ESCOLAS PENAIS

NOÇÕES GERAIS

Dá-se o nome de “escolas penais” ao pensamento jurídico-filosófico acerca da etiologia do delito e dos fundamentos e objetivos do sistema penal. Destacam-se, a rigor, duas escolas, a clássica e a positiva, cada qual apregoando uma visão diferente sobre o fundamento da responsabilidade penal do criminoso, divergindo ainda quanto ao conceito de crime e finalidade da pena. As outras escolas, lembra Aníbal Bruno, são, em geral, posições de compromisso, que participam, com maior ou menor coerência, das duas principais. Não são propriamente novas escolas.

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Para a Escola Clássica, a responsabilidade penal do criminoso funda-se no livre-arbítrio, que é inerente à alma humana. Os homens são todos iguais; ninguém nasce vocacionado para o crime. Entende-se por livre-arbítrio o poder de escolha entre um ato e outro, isto é, o poder de decidir-se, nas mesmas circunstâncias, no sentido oposto ao deliberado. O crime decorre exclusivamente da vontade livre do delinqüente, e não da combinação de fatores biológicos, físicos e sociais. O crime não tem outra causa a não ser a vontade do delinqüente. A responsabilidade moral do homem deriva de dois fatores: inteligência (discernimento em relação aos atos praticados) e livre-arbítrio. Na verdade, só os homens psiquicamente desenvolvidos e mentalmente sãos possuem livre-arbítrio. Por outro lado, para a Escola Positiva a responsabilidade penal do criminoso não se funda no livre-arbítrio e sim em fatores biológicos do delinqüente, bem como nos resultantes de seu meio físico e social. De acordo com Ferri, o delito emana de três fatores: o biológico, o físico e o social.

PARALELO ENTRE A ESCOLA CLÁSSICA E A ESCOLA POSITIVA

Os clássicos priorizam o princípio da retribuição da pena, adotando as teorias absoluta e mista, ao passo que os positivistas justificam a pena no princípio da prevenção especial, acatando a teoria relativa, que elimina da pena toda pecha de castigo. Os clássicos não aceitam o criminoso nato. Todos os homens são iguais. Ninguém nasce vocacionado para o crime. O que o produz é a vontade do agente, isto é, o livre-arbítrio. Os positivistas apregoam a existência de um criminoso nato, isto é, de um ser anormal. Não aceitam a responsabilidade moral decorrente do livre-arbítrio. O crime é produzido por fatores biológicos, físicos e sociais. A vontade humana não é causa dos nossos atos. A Escola Clássica não estuda o perfil do criminoso, porque todos os homens são iguais, ao passo que a Escola Positiva enfatiza mais o criminoso que o delito, destacando a periculosidade como fator essencial à fixação dos problemas referentes à prevenção e repressão. Para os clássicos, o enfermo mental não responde pelo delito, porque lhe falta o livre-arbítrio. Para os positivistas, o enfermo mental deve ser sancionado, porque põe em perigo a sociedade. Assim, para a Escola Clássica, a imputabilidade decorre do livre-arbítrio, isto é, da vontade livre do homem, ao passo que para a Escola Positiva a imputabilidade é social, isto é, advém do fato de viver em sociedade, de modo que a responsabilidade penal é a responsabilidade social, tendo por base a periculosidade.

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FONTES DO DIREITO PENAL

CONCEITO

No sentido comum, fonte é o lugar onde nasce a água. No sentido jurídico, fonte indica a origem e a forma de manifestação da norma jurídica. As fontes do direito subdividem-se em: fontes materiais e formais.

FONTES MATERIAIS

Fonte material, também chamada substancial ou de produção, é o órgão encarregado de elaborar o direito penal. A norma penal nasce do Poder Legislativo da União, pois compete à União legislar privativamente sobre direito penal (art. 22, I, da CF). Todavia, os Estados-Membros, desde que autorizados por lei complementar, também podem legislar sobre questões específicas de direito penal (CF, parágrafo único do art. 22). No campo das normas penais não incriminadoras, admite-se que a consciência do povo, por refletir as necessidades sociais e a realidade cultural, edite a chamada norma costumeira. Resumindo: as fontes de produção do direito penal são a União e os Estados-Membros, que elaboram a norma escrita (lei), bem como a consciência do povo, donde provém a norma costumeira.

FONTES FORMAIS

Fonte formal ou de cognição é a maneira pela qual se exterioriza o direito penal. Distingue-se em: a. fonte formal imediata: é a lei. b. fonte formal mediata ou secundária: costume, princípios gerais do direito e

ato administrativo.

LEI PENAL

INTRODUÇÃO

A lei é a fonte formal mais importante do direito penal, pois só ela pode criar delitos e penas. A lei penal incriminadora é estruturada da seguinte forma: a. preceito primário: contém a definição da conduta criminosa; b. preceito secundário: contém a sanção penal.

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No delito de homicídio, por exemplo, o preceito primário é “matar alguém”, ao passo que o preceito secundário se expressa na fórmula “pena: reclusão de seis a vinte anos”. Binding dizia que, na técnica legislativo-penal, o criminoso não viola a lei, pois a sua conduta amolda-se na definição do crime. Quando “mata alguém”, o criminoso age em conformidade com a lei, violando, por sua vez, a norma (“não matar”). Ele distinguia a norma penal da lei penal. A primeira é a regra imperativa que está implícita na lei (ex.: “não matar”). A segunda é a regra descritiva da conduta criminosa. Dizia que enquanto a lei cria o delito, a norma cria o ilícito. Não concordamos com Binding. Com efeito, ao violar a norma o criminoso está também infringindo a lei. Não é possível dissociar a lei da norma; esta é o conteúdo daquela. Na verdade, a lei é a fonte da norma; a norma, o conteúdo da lei. Toda lei contém uma norma, que é a regra de conduta a ser observada. Finalmente, cumpre ressaltar que a impessoalidade é uma característica da lei, pois esta se dirige abstratamente a fatos futuros. Cumpre, porém, anotar que a lei de anistia e a abolitio criminis dirigem-se a fatos concretos.

LEI PENAL EM BRANCO

Lei penal em branco é aquela cuja definição da conduta criminosa é complementada por outra norma jurídica. Seu preceito secundário (sanctio juris) é completo, mas o preceito primário carece de complementação. Classifica-se em: a. Lei penal em branco em sentido lato ou fragmentária: ocorre quando o

complemento emana do mesmo órgão que elabora a norma incriminadora. Assim, no delito de apropriação de tesouro, previsto no art. 169, parágrafo único, I, do CP, o complemento da lei penal é fixado pelo Código Civil, quando define tesouro ((arts1264 a 1266).). Da mesma forma, no delito de contrair casamento com violação dos impedimentos absolutos (art. 237 do CP), o complemento é fornecido pelo Código Civil, que elenca esses impedimentos (art.1521). Note-se que o complemento, nesses dois exemplos, emana do mesmo órgão que elabora a lei penal, qual seja, a União. De acordo com o art. 22, I, da CF compete à União legislar sobre direito civil e direito penal.

b. Lei penal em branco em sentido estrito: ocorre quando o complemento emana de órgão distinto daquele que elaborou a norma penal. É o caso do delito de transgressão de tabela de preços (art. 6º, I, da Lei n. 8.137/90), cujo complemento é baixado por portarias da SUNAB que fixam os preços das mercadorias. Nos delitos da Lei n. 6.368/76, o rol das substâncias

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entorpecentes é especificado pelo Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina e Farmácia, do Ministério da Saúde.

O complemento da lei penal em branco passa a integrar a norma penal. É como se fosse “corpo e alma”. Finalmente, enquanto no tipo aberto a definição da conduta criminosa é complementada pelo magistrado, na norma penal em branco o complemento advém de outra lei ou ato administrativo.

INTERPRETAÇÃO DA LEI PENAL

CONCEITO E OBJETO

Interpretação é a atividade mental que procura estabelecer o conteúdo e o significado contido na lei. A ciência que disciplina e orienta a interpretação das leis é chamada de hermenêutica jurídica. Toda lei, por mais clara que seja, deve ser necessariamente interpretada. Sobremais, a clareza só aflora após uma interpretação. O objeto da interpretação é a busca da vontade da lei, e não do legislador. Uma vez promulgada, a lei desvincula se do pensamento daqueles que a elaboraram.

INTERPRETAÇÃO QUANTO AO SUJEITO

Quanto ao sujeito que a realiza, a interpretação pode ser: autêntica, doutrinária e judicial. Interpretação autêntica ou legislativa é a que emana do próprio legislador, quando edita uma norma com o objetivo de esclarecer o conteúdo de outra. É a chamada lei interpretativa. Essa interpretação tem força obrigatória. Exemplos: o conceito de causa (art. 13 do CP) e o conceito de funcionário público (art. 327 do CP). A interpretação autêntica pode ser: a. interpretação contextual: é a que se realiza no próprio texto da lei; b. interpretação posterior: ocorre quando a lei interpretativa surge depois da

lei interpretada. A lei interpretativa posterior tem eficácia retroativa (ex tunc),ainda que milite contra o réu; só não abrange os casos definitivamente julgados. A lei interpretativa não cria situação nova; ela simplesmente torna obrigatória uma exegese que o juiz, antes mesmo de sua promulgação, já podia adotar. Não há qualquer discrepância na doutrina no sentido de que a lei interpretativa posterior retroage até a data da entrada em vigor da lei interpretada. Se, por exemplo, esta comporta duas interpretações, uma favorável e outra prejudicial ao réu, o advento de uma lei interpretativa, adotando a exegese gravosa, torna obrigatória a sua aplicação aos processos ainda não transitados em julgado. Cumpre, porém, não confundir lei

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interpretativa, que simplesmente opta por uma exegese razoável, que já era admitida antes de sua edição, com lei que cria situação nova, albergando exegese até então inadmissível. Neste último caso, se prejudicial ao réu, não poderá retroagir. Interpretação doutrinária ou científica é a oriunda da doutrina, isto é, dos teóricos do direito penal. Não tem força obrigatória. Interpretação judicial ou jurisprudencial é a realizada pelos magistrados na decisão do caso concreto. Não tem força obrigatória, salvo para o caso concreto, quando a sentença que a adotou transitar em julgado. É também obrigatória, vinculando todos os magistrados, a decisão do STF declarando a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da lei, no controle por via de ação direta. Já no controle por via de exceção, uma vez declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF, a lei só perde a eficácia quando o Senado, por resolução, suspender sua aplicação.

Recentemente, ingressou no ordenamento jurídico pátrio o polêmico instituto da súmula vinculante do STF. Com efeito, dispõe o art. 103-A da EC n. 45/2004 que o Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. No § 1º dispõe que a Súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. O § 2º estabelece que sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação de inconstitucionalidade. E em seu § 3º que do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso. Finalmente, a Exposição de Motivos do Código Penal não é interpretação autêntica, pois não é lei. É uma simples interpretação doutrinária. Não tem, portanto, força obrigatória.

INTERPRETAÇÃO QUANTO AOS MÉTODOS

A interpretação é um processo unitário, desenvolvido, sucessivamente, por dois métodos: o gramatical e o lógico.

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A interpretação gramatical ou literal prende-se à análise sintática das palavras, esclarecendo se o termo foi empregado no sentido vulgar (ex.: animal — art. 164 do CP), jurídico (ex.: cheque — art. 171, § 2º,VI, do CP) ou jurídico-penal (ex.: funcionário público — art. 327 do CP). A interpretação lógica ou teleológica visa desvendar a finalidade da lei (ratiolegis). De acordo com o art. 5º da LICC, “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. A interpretação teleológica, na busca do verdadeiro escopo da lei, serve-se dos seguintes elementos: a. Histórico: analisa a realidade social existente ao tempo da promulgação da lei,

bem como os trabalhos, discussões e debates que a antecederam. Todavia o que importa é o significado atual da norma, e não o seu sentido pretérito.

b. Sistemático: analisa a coerência entre a lei interpretada e os outros dispositivos legais, buscando extrair uma harmonia entre ela e a ordem jurídica como um todo. Confronta-se a lei interpretada com as outras, procurando harmonizá-la com o sistema jurídico. Uma lei não deve ser interpretada isoladamente, mas em conjunto com as demais. Nessa interpretação, a rubrica, isto é, o nomen juris do delito, acaba exercendo importante papel.

c. Direito comparado: analisa a interpretação dada pelo direito estrangeiro sobre uma lei semelhante à nacional.

d. Extrajurídico: analisa o significado do termo à luz de outras ciências diversas do direito, medicina, filosofia, química etc. Exemplos: as expressões “doença mental” (psiquiatria) e “veneno” (química).

INTERPRETAÇÃO QUANTO AO RESULTADO

Quanto ao resultado ou conclusão obtida, a interpretação pode ser: declarativa, extensiva, restritiva e ab-rogante.

Interpretação declaratória é a que apresenta coincidência entre o texto e a vontade da lei. É uma interpretação normal, sem tropeços; nada há a suprimir ou acrescentar. Interpretação extensiva é a que amplia o texto da lei, adaptando-o à sua real vontade. Ocorre quando a lei disse menos do que quis (minus dixit quam voluit). Exemplo: o art. 159 do CP, que prevê o crime de extorsão mediante seqüestro, contém também, implicitamente, o delito de extorsão mediante cárcere privado. Na interpretação extensiva, o fato está implicitamente previsto no texto da lei. É admissível o seu emprego até mesmo nas normas penais incriminadoras. Aplicam-se, para justificar a interpretação extensiva, os argumentos da lógica dedutiva: a) argumento afortiori — se a lei prevê um caso deve estendê-la a outro caso em que a razão da lei se manifeste com maior vigor; b) argumento a maiori ad minus — o que é válido para o mais deve também ser válido para o menos; c) argumento a

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DIREITO PENAL PARTE GERAL I - PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS

minori ad maius — o que é proibido para o menos é proibido para o mais (ex.: se é crime a bigamia, com maior razão há de incriminar-se a poligamia). Interpretação restritiva é a que diminui a amplitude do texto da lei, adaptando-o à sua real vontade. A lei disse mais do que quis (plus dixit quam voluit). Interpretação ab-rogante é aquela em que, diante da incompatibilidade absoluta e irredutível entre dois preceitos legais ou entre um dispositivo de lei e um princípio geral do ordenamento jurídico, conclui-se pela inaplicabilidade da lei interpretada.

O PRINCÍPIO “IN DUBIO PRO REO”

O princípio in dubio pro reo é característico do campo das provas, em que o juiz, na dúvida, deve absolver o acusado. Excepcionalmente, porém, na análise das provas, vigora o princípio in dubio pro societate: a) no momento do oferecimento da denúncia; b) no momento da sentença de pronúncia; c) no julgamento da revisão criminal. No concernente à interpretação das leis, o princípio in dubio pro reo não representa papel importante. O juiz, na dúvida entre uma e outra interpretação, não é obrigado a escolher a exegese mais favorável ao réu. Desde que ambas sejam igualmente razoáveis, o magistrado é livre para decidir. Se, todavia, pairar dúvida insolúvel sobre qual entre as interpretações possíveis é a mais razoável, o juiz deve empregar o in dubio pro reo, acatando a exegese mais favorável. Frise-se, porém, que apenas na hipótese de dúvida invencível pelos métodos hermenêuticos aplica-se, como último recurso exegético, o princípio in dubio pro reo ou in dubio pro mitiore.

INTERPRETAÇÃO PROGRESSIVA

Interpretação progressiva, também chamada adaptativa ou evolutiva, é a que amolda a lei à realidade atual. Na verdade, toda interpretação deve ser progressiva, sob pena de a lei desvirtuar-se dos fins sociais e das exigências do bem comum. É claro que a interpretação evolutiva não é direito livre. Com efeito, o juiz não pode criar normas jurídicas; veda-lhe o princípio da separação dos Poderes. O intérprete, porém, deve adaptar os termos da lei às concepções atuais.

INTERPRETAÇÃO ANALÓGICA OU “INTRA LEGEM”

Admite-se a interpretação analógica quando o texto da lei abrange numa fórmula genérica os fatos semelhantes aos enunciados numa

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fórmula casuística. Nesse caso, o intérprete, ainda que se trate de norma penal incriminadora, deve estender o texto da lei ao fato semelhante. O homicídio é qualificado se cometido: à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido (art. 121, § 2º, IV, do CP). A fórmula casuística ou exemplificativa é composta pela traição, emboscada e dissimulação. A fórmula genérica é composta pela expressão “ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido”. Assim, qualquer outro recurso que assuma esse perfil, como, por exemplo, a surpresa, qualifica o homicídio.

DISTINÇÃO ENTRE ANALOGIA, INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA E INTERPRETAÇÃO ANALÓGICA

Na analogia, o fato não está focalizado em lei, aplicando-se, por isso, a lei reguladora de caso semelhante. Supre-se, destarte, a ausência ou lacuna da lei. Na interpretação analógica, o fato está previsto na fórmula genérica da lei. Não há lacuna na lei. Na interpretação extensiva, o fato está previsto implicitamente no texto da lei. Aqui também não há lacuna na lei.

ANALOGIA

CONCEITO E FUNDAMENTO

A analogia é a aplicação, ao caso não previsto em lei, de lei reguladora de caso semelhante. Não se trata de mera interpretação da lei, mas, sim, de um mecanismo de integração do ordenamento jurídico. O fundamento da analogia é o argumento pari ratione, da lógica dedutiva, segundo o qual para a solução do caso omisso aplica-se o mesmo raciocínio do caso semelhante.

ESPÉCIES DE ANALOGIA

A analogia pode ser: in malam partem e in bonam partem. Analogia in malam partem é a que aplica ao caso omisso uma lei prejudicial ao réu, reguladora de caso semelhante. É impossível empregar essa analogia no direito penal moderno, que é pautado pelo princípio da reserva legal. Sobremais, a lei que incrimina restringe direitos. De acordo com a hermenêutica, lei que restringe direitos não admite analogia.

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Analogia in bonam partem é a que aplica, ao caso omisso, lei benéfica ao réu, reguladora de caso semelhante. Admite-se o seu emprego no âmbito penal, salvo em relação às normas excepcionais. Efetivamente, normas excepcionais são as que disciplinam de modo contrário à regra geral, abrindo-lhe exceções. De acordo com a hermenêutica, a lei excepcional não admite analogia. Por exemplo, o rol do § 2º do art. 348 do CP, que, no delito de favorecimento pessoal, isenta de pena o ascendente, descendente, cônjuge ou irmão do criminoso, não pode ser ampliado para isentar também o sobrinho ou a concubina. Trata-se, sem dúvida, de lei excepcional, uma vez que disciplina de modo contrário à regra geral de que quem comete um delito deve responder por ele. Outra norma excepcional é a prevista no art. 128, II, do CP, que isenta de pena o médico que realiza aborto, quando a gravidez resulta de estupro. Deve ser vedada a sua aplicação ao aborto em que a gravidez é resultante de corrupção de menores. Se, todavia, a gravidez resulta de atentado violento ao pudor, o aborto é possível, com base na interpretação extensiva, que não se confunde com analogia. Por outro lado, as causas de exclusão da antijuridicidade ou culpabilidade, previstas na Parte Geral do Código, não são normas excepcionais, pois seus preceitos são aplicáveis a todo o ordenamento jurídico-penal. Admitem, por isso, a analogia in bonam partem. Algumas normas da Parte Especial também têm caráter geral, como, por exemplo, o perdão judicial previsto para o homicídio culposo ou lesão culposa (arts. 121, § 5º, e 129, § 8º),que, por isso mesmo, deve ser aplicado analogicamente aos delitos de homicídio culposo e lesão culposa disciplinados no Código de Trânsito. Do exposto conclui se que, no direito penal, a analogia é admitida apenas em relação às normas não incriminadoras benéficas ao réu (in bonam partem), desde que não se trate de normas excepcionais.

PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Abre-se o Código Penal com o princípio da reserva legal do crime ou da pena, redigido nos seguintes termos: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”. Verifica-se que a lei é a fonte única da criação dos delitos e das penas. O nosso Código consagra a famosa máxima nullum crimen, nulla poena sine lege. Com isso, o arbítrio judicial, a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito não podem instituir delitos ou penas. Sobre a origem do princípio da reserva legal, malgrado formulado em latim, prevalece a tese de que teria surgido na Magna Carta do

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Rei João Sem Terra, em 1215, na Inglaterra. Mas há quem proclame que as suas raízes encontram-se no direito ibérico, nas Cortes de Leão, em 1186, no reinado de Afonso IX. O princípio da reserva legal é reforçado pela regra do nullapoena sine juditio (não há pena sem julgamento). A exigência do devido processo legal obstaculiza a criação da chamada norma-sentença, que impõe pena sem julgamento. O direito penal moderno é de coação indireta, porquanto não se pode impor pena sem o due process of law.

EXCEÇÕES E REAÇÕES AO PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL

O princípio da reserva legal não existe no direito penal inglês; lá o costume é a fonte de criação das normas incriminadoras. No tocante à regra nulla poena sine lege, enfraquece-se ainda mais o princípio da reserva legal, diante da vasta amplitude discricionária conferida ao juiz na aplicação da pena. Outra exceção ao princípio da reserva legal é encontrada na Escócia, que admite o emprego da analogia como fonte criadora de infrações penais.

FUNDAMENTO POLÍTICO

O princípio da reserva legal é uma garantia constitucional dos direitos do homem. Ingressa no rol das liberdades públicas clássicas, que constituem limitações jurídicas ao poder estatal. As liberdades clássicas protegem a pessoa humana do arbítrio do Estado. Todo delito só pode ser criado por lei. Isso é uma proteção à pessoa. A supremacia da lei contém o arbítrio judicial e impede a analogia, traduzindo-se, portanto, numa garantia de liberdade do homem enquanto pessoa humana. Em suma, o princípio da reserva legal garante a proteção da pessoa contra o arbítrio do poder punitivo estatal.

FUNDAMENTO JURÍDICO. PRINCÍPIO DA TAXATIVIDADE

O princípio da reserva legal fixa o conteúdo do tipo penal incriminador. Os elementos do tipo, ensina Johannes Wessels, “devem ser descritos concretamente na lei, de tal forma que seu conteúdo de sentido e significação passa a ser averiguado através de interpretação”. O tipo penal incriminador deve conter um mínimo de determinação na definição da figura típica. Deve, porém, fixar com precisão a sanctio juris aplicável. A incriminação genérica, vaga e indeterminada de certos fatos viola o princípio da legalidade. O tipo penal deve estabelecer taxativamente o mínimo necessário para se identificar aquilo que é

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penalmente ilícito (princípio da taxatividade ou determinação). Assim, o princípio da taxatividade, também denominado princípio da determinação, ou taxatividade-determinação, ou princípio da certeza, ou ainda do mandato de certeza, consiste na obrigatoriedade de a lei descrever com clareza os elementos essenciais da conduta criminosa, abstendo-se da elaboração de tipos genéricos ou vazios. O princípio da taxatividade deve ainda irradiar sobre a cominação da pena, que deve ser determinada quanto à espécie e aos limites mínimo e máximo (margens penais). A incriminação vaga e indeterminada, desprovida do mínimo de determinação, viola o nullum crimen nulla poena sine lege. Casos há, todavia, em que a complementação da definição do crime é delegada ao magistrado ou a certos atos administrativos. É o que acontece com os tipos abertos e com as normas penais em branco em sentido estrito, surgindo, então, a necessidade de analisar a compatibilidade dessas normas com o princípio da reserva legal.

O PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL E O TIPO ABERTO

Os crimes de tipo aberto apresentam definição incompleta, transferindo ao juiz a tarefa de complementar o conteúdo da figura típica. Isso ocorre com os delitos de aborto (arts. 124 a 127), rixa (art. 137), ato obsceno (art. 233) e outros. É salutar a tarefa valorativa do magistrado em relação a certos elementos normativos variáveis no tempo e no espaço, como o conceito de honra, pois o legislador ao tentar defini-la pode apresentar-se antiquado e ridículo. Nos tipos abertos em que a definição da figura típica contém o chamado “mínimo em determinação”, o preenchimento pelo magistrado dos demais elementos conceituais do crime não afronta o princípio da reserva legal, porque não há obrigatoriedade constitucional de a lei criar todos os elementos do crime. Fundamental, no entanto, que a lei fixe os elementos essenciais, conferindo ao juiz apenas a complementação da definição legal. É o que ocorre com os delitos de aborto, rixa e ato obsceno. Outra espécie de tipo penal aberto é o que emprega cláusulas gerais na definição do crime, sem fixar um mínimo de determinação capaz de possibilitar ao intérprete a averiguação de seu conteúdo conceitual. Sobredito tipo penal contraria a velha máxima nullum crimen nulla poena sine lege, deixando completamente em aberto a definição legal da conduta incriminada: a criação completa do crime fica à mercê do arbítrio judicial, violando o princípio da separação dos Poderes. É o que ocorre com o delito de terrorismo, cuja genérica definição é a seguinte: “praticar atos de terrorismo” (art. 20 da Lei n. 7.170/83). Note-se que a lei nem sequer fixa o “mínimo em determinação”, relegando ao magistrado a função de legislar, isto é, de criar integralmente a infração penal, afrontando a um só tempo o

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princípio da reserva legal e o princípio da separação dos Poderes. É, pois, flagrante a inconstitucionalidade do crime de terrorismo.

O PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL E A NORMA PENAL EM BRANCO

Normas penais em branco são aquelas em que a definição da conduta incriminada é complementada por outra norma jurídica ou por certos atos administrativos. A norma penal em branco tem grande afinidade com o tipo penal aberto, pois em ambos o preceito primário da norma necessita de complementação. Todavia, na norma penal em branco o complemento conceitual da figura típica emana de outra lei ou de certos atos administrativos, ao passo que no tipo penal aberto o complemento da definição do crime é fornecido pelo juiz. Não há dúvida de que as normas penais em branco, cujo complemento provém de outra lei da União, são compatíveis com o princípio da reserva legal. Essas normas são conhecidas como normas penais em branco em sentido lato ou fragmento de norma. Nesse caso, o complemento advém da mesma fonte legislativa instituidora da norma penal em branco. Assim, a norma do art. 237 do CP (“contrair casamento, conhecendo a existência de impedimento que lhe cause a nulidade absoluta”) é complementada pelo art. 1.521, do Código Civil, que fixa os impedimentos que causam a nulidade absoluta do matrimônio (dirimentes públicos). Há homogeneidade das fontes legislativas, à medida que à União compete legislar sobre direito penal e direito civil (art. 22, I, da CF). A dúvida, porém, pode surgir em relação às denominadas normas penais em branco em sentido estrito, que são aquelas cujo complemento procede de órgão distinto, geralmente de ato administrativo (regulamento, portaria ou edital) emanado do Poder Executivo. Citemos dois exemplos: a. O art. 6º, I, da Lei n. 8.137/90 incrimina quem vende ou oferece à venda

mercadoria por preço superior ao oficialmente tabelado. As tabelas de preço, que são baixadas por portarias ou editais administrativos, complementam a definição da conduta incriminada.

b. O art. 12 da Lei n. 6.368/76 incrimina o tráfico ilícito de substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica. O rol dessas substâncias é especificado em lei ou em ato administrativo do Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina e Farmácia, do Ministério da Saúde (art. 36 da aludida lei).

Vê-se assim que a complementação da norma penal em branco em sentido estrito emana de atos administrativos (edital, portaria ou regulamento). Saliente-se, porém, que não há violação do princípio da reserva legal, pois os referidos tipos penais contêm um “mínimo em determinação”. O princípio da definição foi fornecido por lei, sendo perfeitamente lícita a

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complementação conceitual por meio de atos administrativos. Conforme já antes salientado, a definição do crime não precisa ser completa. Basta um “mínimo de determinação”, isto é, um princípio de definição a ser complementado pelo juiz (tipos penais abertos) ou por certos atos administrativos (normas penais em branco em sentido estrito).

O PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL E AS CONTRAVENÇÕES PENAIS

A palavra “crime” foi empregada em sentido amplo pelo art. 1º do CP, pois o princípio da reserva legal estende-se também às contravenções. Sobremais, o art. 1º da LCP determina que se apliquem às contravenções as regras gerais do Código Penal. E uma dessas regras é evidentemente a que fixa o princípio da reserva legal.

O PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL E AS PENAS

Ao legislador compete a instituição do mínimo e máximo da pena cominada, especificando a sua espécie (reclusão, detenção, prisão simples, multa, confisco, ou restritiva de direitos). Só assim estará sendo preservado o princípio da reserva legal.

O PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL E O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

Ambos são princípios de índole constitucional. Distinguem-se, porém, nitidamente. No princípio da legalidade, a expressão “lei” é tomada em sentido amplo, abrangendo todas as espécies normativas do art. 59 da CF (leis ordinárias, leis complementares, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções). Esse princípio é consagrado no art. 5º, II, da Magna Carta: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Já o princípio da reserva legal emana de cláusula constitucional especificando que determinada matéria depende de lei. Aqui a expressão “lei” é tomada em sentido estrito, abrangendo apenas a lei ordinária e a lei complementar. A doutrina penal não se tem empenhado nessa distinção, empregando as expressões como sinônimas. A diferença, porém, é nítida.

O PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL E AS MEDIDAS DE SEGURANÇA

Diverge a doutrina sobre a aplicabilidade do princípio da reserva legal às medidas de segurança. Respondem afirmativamente Celso Delmanto e Alberto Silva Franco. Argumentam que a palavra “pena” tem sentido amplo no art. 1º do CP e abrange as mais diversas restrições da

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liberdade. Inspiram-se também no fato de a reforma penal de 1984 ter cancelado o antigo art. 75, que dispensava as medidas de segurança de obediência ao princípio da reserva legal, o que, para esses autores, significa a sua submissão atual ao princípio da reserva legal. Pronuncia-se negativamente Luiz Vicente Cernicchiaro. Esposamos este último ponto de vista porque a Constituição consagra o princípio da reserva legal às penas, que ontologicamente diferem das medidas de segurança. Com efeito, a pena é retributiva, ao passo que a medida de segurança tem função terapêutica. A exemplo das Constituições portuguesa e italiana, deveria haver em nossa Constituição dispositivo expresso garantindo a aplicação do princípio da reserva legal às medidas de segurança. Assim, a disciplina da medida de segurança poderá dar-se por meio de lei delegada, pois não está sob reserva absoluta de lei ordinária ou complementar. Resumindo: às medidas de segurança aplica-se o princípio da legalidade e não o princípio da reserva legal, também denominado legalidade específica. Cumpre, porém, registrar que, com o advento da Emenda Constitucional n. 32, de 11 de setembro de 2001, modificando a redação do art. 62 da Constituição Federal, passou a ser vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria de direito penal. Portanto, a medida provisória não pode criar medida de segurança e muito menos crimes e penas.

O PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL E AS ESPÉCIES NORMATIVAS

O processo legislativo, nos termos do art. 59 da Constituição Federal, “compreende a elaboração de: I. emendas à Constituição; II. leis complementares; III. leis ordinárias; IV. leis delegadas; V. medidas provisórias; VI. decretos legislativos; VII. resoluções”. A tarefa de definir crimes e contravenções, cominando as respectivas penas, é precípua da lei ordinária. Entretanto, as emendas constitucionais e leis complementares também podem definir infrações e cominar penas. No concernente às leis complementares, cumpre lembrar que a Constituição especifica as matérias que elas podem versar (art. 61). Uma lei complementar baixada fora dos casos previstos na Constituição, na verdade, não passará de uma lei ordinária, e como tal deverá ser considerada. Já as leis delegadas, que são aquelas elaboradas pelo Presidente da República mediante solicitação de autorização ao Congresso Nacional, não podem criar delitos e penas, pois o art. 68, § 1º, II, da CF

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DIREITO PENAL PARTE GERAL I - PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS

preceitua que não serão objeto de delegação a legislação sobre “direitos individuais”. Os direitos individuais estão elencados no art. 5º da Constituição Federal. E um desses direitos é: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (art. 5º, XXXIX). A palavra “lei” está aí empregada em sentido restrito para abranger tão-somente a lei ordinária. De nada valeria a cláusula de reserva de lei se a matéria reservada pudesse ser veiculada por lei delegada ou medida provisória. Igualmente, as medidas provisórias também não podem criar infrações penais, pois, como vimos, é vedada a sua edição sobre matéria de direito penal (CF, art. 62). Se, não obstante a vedação constitucional, o Presidente da República baixar uma medida provisória e o Congresso Nacional convertê-la em lei, a nulidade será absoluta, pois o vício de inconstitucionalidade é insanável. Por outro lado, decretos legislativos e resoluções são editados apenas para disciplinar os assuntos internos das Casas Legislativas, não podendo versar sobre direito penal. Em contrapartida, emendas constitucionais podem criar delitos, porquanto situam-se num nível hierarquicamente superior à lei ordinária. Finalmente, lei estadual pode versar sobre questões específicas de direito penal, consoante se depreende do parágrafo único do art. 22 da Lei Maior. Entendem-se por questões específicas aquelas pertinentes a um determinado Estado-Membro ou a certas regiões do País. Com efeito, a destruição da Vitória Régia pode ser incriminada por leis do Estado do Amazonas. O desperdício de água pode ser incriminado pelos Estados do nordeste alcançados pela seca. Urge, porém, para que tal suceda, que uma lei complementar autorize a edição das leis estaduais. Vê-se, assim, que o direito penal perdeu o seu caráter unitário. Com efeito, admite-se a existência de dois tipos de direito penal: o geral e o local. O primeiro é privativo da União; o segundo advém dos Estados-Membros. O primeiro é pertinente a todo o território nacional, ao passo que o segundo aborda questões de interesse preponderante a determinado Estado-Membro ou região do País.

O PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL E AS NORMAS PENAIS NÃO INCRIMINADORAS

O princípio da reserva legal não se aplica às normas penais não incriminadoras. Admite-se assim a existência de causas supralegais de exclusão da antijuridicidade, que são aquelas criadas pela analogia, costumes e princípios gerais do direito, aumentando, destarte, o campo de licitude do ordenamento jurídico. Medidas provisórias e leis delegadas também podem versar sobre normas penais não incriminadoras. É certo, pois, que o art. 62, § 1º, I, b, da CF proíbe medidas provisórias sobre matéria de direito penal. A nosso ver, a Magna Carta disse

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mais do que quis, razão pela qual deve ser interpretada restritivamente, circunscrevendo-se a proibição às normas penais incriminadoras. Com efeito, as normas penais não incriminadoras podem nascer até dos costumes, de modo que nada obsta a sua veiculação pela medida provisória e lei delegada.

PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE

Dispõe o art. 1º do CP: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”. O art. 1º do CP aloja dois princípios: o da reserva legal, já comentado, e o da anterioridade. A lei que cria o crime e a pena deve ser anterior ao fato que se pretende punir. A lei penal não pode retroagir para prejudicar o réu. Esta só é aplicável aos fatos cometidos após a sua entrada em vigor. É vedada a sua aplicação até mesmo em relação aos fatos praticados durante a vacatio legis. No tocante às medidas de segurança, a máxima tempus regit actum (a lei rege o fato praticado durante a sua vigência) garante o princípio da anterioridade em relação às medidas de segurança. Sendo assim, surgindo, após o fato criminoso, nova medida de segurança prejudicial ao réu, o juiz não poderá aplicá-la.

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QUESTÕES

1. Quais as duas funções do direito penal? 2. Por que o direito penal tem caráter fragmentário? 3. O direito penal é sancionatório ou constitutivo? 4. O que é Direito Penal Fundamental? 5. O que é Direito Penal Complementar? 6. Qual a diferença entre Direito Penal Comum e Direito Penal Especial? 7. Qual a diferença entre Direito Penal Geral e Direito Penal local? 8. O que é Direito Penal Objetivo? 9. O que é Direito Penal Subjetivo? 10. O que são escolas penais e quais as duas principais? 11. Para qual escola penal o delito emana do livre arbítrio? 12. Para qual escola penal o delito emana de fatores biológicos do

delinqüente?13. Elabore um paralelo ente a Escola Clássica e a Escola Positiva. 14. Quais as fontes de produção da norma penal incriminadora? 15. A norma costumeira pode versar sobre Direito penal? 16. Os Estados-membros podem legislar sobre direito penal? 17. Quantos preceitos têm a lei penal incriminadora? 18. De acordo com Binding, o criminoso viola a lei ou norma? 19. Há alguma lei que não é impessoal? 20. O que é lei fragmentária? 21. O que é hermenêutica jurídica? 22. Qual é o objeto da interpretação? 23. O que é interpretação autêntica ou legislativa? 24. A lei interpretativa retroage? 25. A Exposição de Motivos é interpretação autêntica? 26. A interpretação judicial é obrigatória? 27. O que é interpretação teleológica sistemática? 28. Quanto ao resultado, como pode ser a interpretação? 29. O que é interpretação declaratória? 30. O que é interpretação extensiva? É possível? 31. O que é interpretação restritiva? 32. O que é interpretação ab-rogante? 33. O princípio “in dúbio pro reo” é aplicável no campo das provas ou no

campo da hermenêutica? 34. O que é interpretação progressiva? 35. O que é interpretação analógica ou “intra legem”? 36. Qual a distinção entre analogia, interpretação extensiva e interpretação

analógica?37. O que é analogia? 38. A analogia “in malam partem” pode ser empregada na área penal? 39. A analogia “in bonam partem” é sempre admissível na área penal?

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DIREITO PENAL PARTE GERAL I - PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS

40. O que é o princípio da reserva legal e qual a sua famosa máxima? 41. Qual o efeito do princípio da reserva legal? 42. Qual a origem do princípio da reserva legal? 43. O que é o princípio “nulla poena sine juditio”? 44. O que é norma-sentença? É admissível? 45. Cite dois países que não adotam o princípio da reserva legal. 46. Qual o fundamento político do princípio da reserva legal? O que são

liberdades públicas clássicas? 47. Qual o fundamento jurídico do princípio da reserva legal? O que é o

princípio da taxatividade e quais suas denominações? 48. O que é tipo aberto? Exemplifique. 49. O tipo aberto é compatível com o princípio da reserva legal? O que é tipo

aberto de cláusulas gerais? 50. O que é norma penal em branco? Como se distingue do tipo aberto? 51. A norma penal em branco é compatível com o princípio da reserva legal? 52. O princípio da reserva legal é aplicável às contravenções penais? 53. Qual a diferença entre o princípio da reserva legal e o princípio da

legalidade?54. O princípio da reserva legal é aplicável às medidas de segurança? E o

princípio da legalidade? Um decreto ou outro ato administrativo pode criar medida de segurança?

55. Somente a lei ordinária pode criar delitos e penas? 56. A lei delegada pode criar delitos e penas? 57. A medida provisória pode criar delitos e penas? 58. Os decretos legislativos e resoluções podem versar sobre direito penal? 59. O Direito Penal tem caráter unitário? 60. Quais os requisitos para os Estados-membros legislarem sobre Direito

penal?61. O princípio da reserva legal é aplicável às normas penais não

incriminadoras? O que são causas supralegais de exclusão da antijuridicidade?

62. O art. 1º do CP aloja quantos princípios? 63. O princípio da anterioridade é aplicável somente aos crimes e penas ou

também às medidas de segurança?

DIREITO PENAL PARTE GERAL

TOMO II

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO I

1CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO IDIREITO PENAL – PARTE GERAL II - PROF. FLÁVIO AUGUSTO MONTEIRO DE BARROS

SANÇÃO PENAL

CONCEITO E ESPÉCIES

Sanção penal é a medida com que o Estado reage contra a violação da norma punitiva. É, pois, a resposta dada pelo Estado ao infrator da norma incriminadora. Pena e medida de segurança são as duas espécies de sanções penais de que o Estado lança mão no seu combate à criminalidade.

O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA OU DA NECESSIDADE

Oriundo do art. 8º da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, o princípio da intervenção mínima, conquanto não previsto expressamente em nossa legislação, deve servir de diretriz ao legislador, e também ao hermeneuta, sob pena de se alargar demasiadamente a atuação do direito penal, que, a rigor, deve circunscrever-se à proteção dos bens jurídicos fundamentais ao convívio social do homem. O princípio da intervenção mínima atribui ao direito penal um caráter subsidiário, no sentido de que o fato contrastante dos valores sociais só deve ser incriminado quando os demais ramos do direito se mostrarem incapazes de proteger o bem jurídico. O princípio da reserva legal representou um grande avanço no que diz respeito à limitação do arbítrio do Estado, constituindo uma garantia de liberdade da pessoa. Todavia, o sobredito princípio não impede que se criem, através de lei, tipos penais iníquos, razão pela qual merece especial atenção o princípio da intervenção mínima, que acaba funcionando como um segundo filtro ao arbítrio do Estado.

O PRINCÍPIO DA ALTERIDADE OU TRANSCENDENTALIDADE

De acordo com esse princípio, o direito penal não pode incriminar comportamentos puramente imorais, insuscetíveis de lesar ou pôr em perigo de lesão os direitos de outras pessoas. Por essa razão, não se incrimina a pessoa que realiza o mal contra si própria, como a autolesão e a tentativa de suicídio. Da mesma forma, o uso de substância entorpecente não é tipificado como crime, pois o que a lei incrimina é a posse da droga, ainda que para uso próprio, visando-se, com isso, evitar a sua circulação, porquanto prejudicial à sociedade. Se houver uso sem a posse da droga, o fato será atípico. Com efeito, o STF já decidiu que não constitui delito de posse de droga para uso próprio a conduta de quem, recebendo de terceiro a droga, para uso próprio, incontinenti a consome.

2CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO IDIREITO PENAL – PARTE GERAL II - PROF. FLÁVIO AUGUSTO MONTEIRO DE BARROS

DAS PENAS

CONCEITO

Pena é a sanção, consistente na privação de determinados bens jurídicos que o Estado impõe contra a prática de um fato definido na lei como crime.

TEORIAS

a. Teoria absoluta: a pena é a retribuição justa do mal injusto cometido pelo criminoso. Apega-se no raciocínio de que a justiça consiste em retribuir ao criminoso um mal proporcional ao fato por ele praticado. De acordo com essa teoria, a pena não tem qualquer finalidade prática. Não visa a recuperação social do criminoso, que é punido simplesmente porque cometeu o crime.

b. Teoria relativa ou utilitária: a razão de ser da pena está na necessidade de segurança social, isto é, de prevenção do crime. A pena serve a uma dupla prevenção: a geral e a especial. Prevenção geral porque a intimidação que se supõe alcançar através da ameaça da pena surte efeitos em todos os membros da coletividade, atemorizando os virtuais infratores. Prevenção especial porque atua sobre a consciência do infrator da lei penal, fazendo-o medir o mal que praticou, inibindo-o, através do sofrimento que lhe é inerente, a cometer novos delitos. De acordo com Romagnosi, a legitimidade da pena reside na prevenção que através dela se visa alcançar, de modo que se depois do primeiro crime houvesse a certeza moral de que o agente não viria a cometer nenhum outro, a sociedade não teria o direito de puni-lo.

c. Teoria mista ou unitária: a pena tem caráter retributivo-preventivo. Retributivo porque consiste numa expiação do crime, imposta até mesmo aos delinqüentes que não necessitam de nenhuma ressocialização. Preventivo porque vem acompanhada de uma finalidade prática, qual seja, a recuperação ou reeducação do criminoso, funcionando ainda como fator de intimidação geral. É a teoria adotada em nosso sistema penal.

A MODERNA VISÃO DO CARÁTER PREVENTIVO DAS PENAS

Historicamente, as penas tinham caráter reparatório, perdurando este aspecto até da Idade Média, quando era comum o banimento, a morte e a tortura. Com o Iluminismo e o Renascimento, a pena assume o perfil utilitário, deixando para trás o seu fundamento teleológico. A prevenção geral negativa ou de intimidação significa que a pena é um contra-motivo psicológico para o criminoso. Este é usado como meio para servir de exemplo aos demais delinqüentes, violando, de uma certa forma, o princípio da dignidade da pessoa humana. Por isso, modernamente vislumbra-se na pena uma prevenção geral positiva ou de integração,

3CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO IDIREITO PENAL – PARTE GERAL II - PROF. FLÁVIO AUGUSTO MONTEIRO DE BARROS

consistente no reforço da confiança da comunidade na proteção dos bens jurídicos, propiciando-se ao criminoso oportunidade de ressocialização no processo de metanóia, preservando-se, destarte, a dignidade da pessoa humana à medida em que o delinqüente deixa de ser utilizado como meio ou objeto de exemplo para os demais. Assim, urge se fixe a quantidade da pena pela necessidade de ressocialização, atendendo-se ao grau de culpabilidade. Não se pode também olvidar a função meramente simbólica da pena, consubstanciada na função política de legitimação do poder do Estado.

FUNDAMENTO DA PENA

O fundamento da pena deve ser analisado sob três aspectos principais: a. O do fundamento legal, efetivado pelo legislador, por meio da abstrata

cominação da pena, ao editar as normas penais incriminadoras. Sob esse prisma legislativo, o fundamento da pena é a proteção dos bens jurídicos de maior valor.

b. O do fundamento judicial, operado pelo magistrado, por meio da sentença, no momento da aplicação concreta da pena. Nesse sentido, o fundamento da pena é a prática de uma conduta típica, antijurídica e culpável. A periculosidade do agente, isto é, o prognóstico de que voltará a delinqüir, não é pressuposto de aplicação da pena, pois esta, nos dias atuais, ainda não se desvinculou de seu caráter retributivo.

c. O da fundamentação administrativa ou executória, que se revela na fase da execução penal, quando, então, o condenado sofre a perda ou diminuição de certos bens jurídicos. Sob esse prisma, o fundamento da pena é a sentença condenatória transitada em julgado, pois só a partir dela é que pode ter início a execução da pena.

FINALIDADES DA PENA

Modernamente, a pena tem uma tríplice finalidade: retributiva, preventiva e reeducativa. A prevenção geral atua antes mesmo da prática de qualquer infração penal, pois a simples cominação da pena conscientiza a coletividade do valor que o direito atribui ao bem jurídico tutelado. A prevenção especial e o caráter retributivo atuam durante as fases da imposição e da execução da pena. Finalmente, o caráter reeducativo atua somente na fase da execução. Nesse momento, o escopo da pena é a ressocialização do condenado, isto é, reeducá-lo para que, no futuro, possa reingressar ao convívio social, prevenindo, assim, a prática de novos crimes.

4CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO IDIREITO PENAL – PARTE GERAL II - PROF. FLÁVIO AUGUSTO MONTEIRO DE BARROS

PRINCÍPIOS OU CARACTERES DA PENA

a. Princípio da reserva legal (CF, art. 5º, XXXIX, e art. 1º do CP): só a lei pode criar a pena. Nulla poena sine lege.

b. Princípio da anterioridade: nenhuma pena pode ser imposta sem que esteja prevista em lei anterior à prática do fato.

c. Princípio da personalidade ou intransmissibilidade (art. 5º, XLV, da CF): nenhuma pena passará da pessoa do delinqüente. A pena não pode atingir terceiros estranhos ao delito. A Magna Carta abre uma exceção a esse princípio ao estatuir que a pena de perda de bens pode ser aplicada aos sucessores (inter vivos ou causa mortis) do condenado até o limite do patrimônio transferido.

d. Princípio da proporcionalidade ou individualização (CF, art. 5º, XLVI): a pena deve graduar-se de acordo com a relevância do bem jurídico tutelado, levando-se também em conta a pessoa do delinqüente. Esse princípio está relacionado com o caráter retributivo da pena. O inciso XLVI do art. 5º da CF estatui que “a lei regulará a individualização da pena...”. Individualizar a pena nada mais é do que “retribuir o mal concreto do crime, com o mal concreto da pena, na concreta personalidade do criminoso” (Nélson Hungria). Projeta-se sob três aspectos a individualização da pena: o legislativo, o judicial e o executório ou administrativo. A individualização legislativa é operada pelo legislador quando comina a pena abstrata, de acordo com a maior ou menor gravidade do delito. A lei deve prever a espécie e quantidade da pena e, se for o caso, a sua substituição por outras penas mais leves. A individualização judicial é efetuada pelo magistrado quando, na sentença, impõe a pena concreta ao réu, dosando-a com base nos critérios previstos no art. 59 do CP. Conquanto os réus possam sofrer penas idênticas, é essencial a fixação separada da pena, a análise individual, sendo vedada a aplicação da pena de forma conjunta para todos os co-réus. A reformatio in pejus inviabiliza que, no caso de anulação da sentença por recurso exclusivo da defesa, seja ultrapassado o limite da pena anteriormente fixada.

e. Princípio da inderrogabilidade ou inevitabilidade: a pena, desde que presentes os seus pressupostos, deve ser aplicada e fielmente cumprida. Esse princípio é excepcionado por diversos institutos penais, a saber: sursis, livramento condicional, perdão judicial, anistia, prescrição etc.

f. Princípio da humanização (CF, art. 5º, XLIX): a pena não pode violar a integridade física e moral do condenado. Nenhum tratamento cruel, desumano ou degradante pode ser infligido à pessoa detida, presa ou custodiada pelo Estado. O inciso XLVII do art. 5º da CF proíbe as seguintes penas: a) de morte; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis. Abre-se exceção à pena de morte, que pode ser decretada em caso de guerra externa, declarada nos termos

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do art. 84, XIX, da Constituição Federal. g. Princípio da suficiência da necessidade: “a pena deve ser necessária e

suficiente para reprovar e prevenir o crime”, como bem salienta René Ariel Dotti153. O art. 59 do CP prevê critérios que compõem esse princípio. Em certas hipóteses, como veremos, o sistema penal admite a substituição da pena privativa de liberdade pela pena de multa ou pela restritiva de direito, quando as circunstâncias indicarem que essa substituição é suficiente.

Previsto no art. 59 do Código Penal, o aludido princípio fixa os critérios para reprovação e prevenção do crime, norteando o Juiz nas seguintes etapas da pena: a. escolha da pena, quando cominada alternativamente; b. quantidade da pena; c. regime de cumprimento da pena; d. substituições da pena privativa de liberdade por multa, restritiva de direitos

e “sursis”.

h. Princípio da relativa indeterminação da pena: No sistema da relativa indeterminação da pena, pautado pelas margens penais, fixando a pena mínima e a máxima, delega-se ao Magistrado uma razoável discricionariedade subjetiva, razão pela qual não é correto falar-se em dosimetria, expressão sugestiva de uma fixação pautada por critérios matemáticos rígidos, não condizente com o direito pátrio.

A individualização administrativa ou executiva é concretizada na fase da execução da pena, quando se confere para cada condenado um tratamento específico dentro dos estabelecimentos prisionais. Assim, de acordo com o inciso XLIX do art. 5º da CF “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”. O inciso XLVIII do aludido art. 5º prevê que o cumprimento da pena se dará em estabelecimentos distintos, atendendo a natureza do delito, a idade e o sexo do condenado. E no inciso L do art. 5ºassegura-se às presidiárias “condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação”.

O Brasil afastou-se do sistema da absoluta determinação da pena, segundo o qual não há oportunidade para o Juiz individualizar a reprimenda, diante de a pena vir fixada, de forma determinada, pela lei, violando, flagrantemente, a equidade, a separação dos poderes, neutralizando ainda a individualização da pena.

CLASSIFICAÇÃO DAS PENAS

CLASSIFICAÇÃO DOUTRINÁRIA

A doutrina, com base no bem jurídico lesado pela pena, costuma lembrar a seguinte classificação:

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a. Pena corporal: é a que atinge a integridade física do criminoso. Exemplos: açoite, morte, marca do ferro quente, mutilações etc. A Magna Carta proíbe qualquer tipo de pena corporal, devido ao seu caráter cruel (CF, art. 5º, XLVII). Abre-se exceção à pena de morte, que, no Brasil, pode ser imposta por tribunais militares, em caso de guerra externa, nas hipóteses definidas no Código Penal Militar (CF, art. 5º, XLVII, a);

b. Pena privativa de liberdade: é a que limita o poder de locomoção do condenado, mediante prisão. Admite-se a privação temporária da liberdade, pois o tempo máximo de prisão é de trinta anos, para crime, e de cinco, para contravenção (art. 75 do CP e art. 10 da LCP). A Magna Carta proíbe a prisão perpétua.

c. Pena restritiva de liberdade: é a que limita o poder de locomoção do condenado, sem submetê-lo a prisão. Exemplos: banimento (expulsão de brasileiro do território nacional); desterro (expulsão da comarca da vítima); degredo ou confinamento (fixação de residência em local determinado pela sentença). A Constituição proíbe a pena de banimento (art. 5º, XLVII, d).Mirabete invoca a interpretação extensiva para alargar a proibição ao desterro e degredo, alegando que a expressão “banimento” em sentido amplo também as compreende. Cumpre, porém, registrar a admissibilidade da deportação, expulsão e extradição de estrangeiros, pois são sanções administrativas que refogem do âmbito de incidência do direito penal.

d. Pena pecuniária: é a que recai sobre o patrimônio do condenado. Exemplos: multa e perda de bens e valores.

e. Pena privativa ou restritiva de direitos: é a que suprime ou restringe alguns direitos do condenado. Exemplos: prestação de serviços à comunidade, limitação de fim de semana e interdição temporária de direitos.

CLASSIFICAÇÃO CONSTITUCIONAL DAS PENAS

Dispõe o inciso XLVI do art. 5º da CF: “A lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a. privação ou restrição da liberdade; b. perda de bens; c. multa; d. prestação social alternativa; e. suspensão ou interdição de direitos”.

CLASSIFICAÇÃO DAS PENAS DE ACORDO COM O CÓDIGO PENAL

O Código Penal, em seu art. 32, prevê as seguintes espécies de penas: privativas de liberdade; restritivas de direitos; de multa.

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CLASSIFICAÇÃO DAS PENAS QUANTO À SUA APLICABILIDADE

Sob esse aspecto, as penas podem ser: a. únicas: quando previstas, com exclusividade, no preceito secundário do

tipo legal (ex.: art. 121 do CP — reclusão de 6 (seis) a 20 (vinte) anos); b. conjuntas: quando previstas, cumulativamente, no preceito secundário do

tipo legal (ex.: art. 155 do CP — reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa);

c. paralelas: quando, da mesma espécie, encontram-se previstas, alternativamente, no preceito secundário do tipo legal (ex.: § 1º do art. 235 do CP — reclusão ou detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos);

d. alternativas: quando, de espécies diferentes, encontram-se previstas no preceito secundário do tipo legal, podendo o magistrado optar por uma ou por outra (ex.: art. 233 do CP — detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa).

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QUESTÕES

1. O que é pena corporal? É admissível no Brasil? 2. O que é pena privativa de liberdade e qual o seu tempo máximo? Como

se distingue da pena restritiva de liberdade? 3. Qual é diferença entre banimento, desterro e degredo? Essas penas são

admitidas no Brasil? 4. O que é pena pecuniária? Cite dois exemplos. 5. Qual é a diferença entre pena restritiva de liberdade e restritiva de

direitos?6. O que são penas únicas, conjuntas, paralelas e alternativas? 7. Historicamente, quando a pena começou a perder o caráter reparatório? 8. Qual a crítica à prevenção geral negativa? 9. O que é prevenção geral positiva? 10. Qual a função simbólica da pena? 11. Os co-réus podem sofrer penas idênticas? 12. Anulada a sentença, a pena pode ser aumentada em novo julgamento? 13. Qual a distinção entre o sistema da relativa indeterminação da pena e o

sistema da absoluta determinação da pena? 14. Quais as repercussões do princípio da necessidade ou suficiência da

pena?

DIREITO PENAL ESPECIAL

I

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO I

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INTRODUÇÃO

PARTE GERAL E PARTE ESPECIAL

O Código Penal brasileiro é dividido em duas partes: uma Parte Geral (arts. 1º a 120) e uma Parte Especial (arts. 121 a 359-H). A Parte Geral compreende o estudo da aplicação da lei penal, teoria geral do crime, culpabilidade, concurso de agentes, sanção penal, ação penal e extinção da punibilidade. Os princípios estabelecidos na Parte Geral são aplicados a todo o direito penal (art. 12). A Parte Geral só contém normas penais não incriminadoras. Estas subdividem-se em:a. permissivas: são as que autorizam o cometimento de certas condutas

típicas. Exemplos: legítima defesa, estado de necessidade, exercício regular de direito e estrito cumprimento do dever legal - art.23 ;

b. exculpantes: são as que estabelecem a inculpabilidade do agente ou a impunidade de certas condutas típicas e antijurídicas. Exemplos: doença mental (art.26, “caput”) , menoridade (art.27), prescrição (art.107,IV) etc.

c. interpretativas: são as que esclarecem o conteúdo de outras leis. Exemplos: o conceito de causa (art.13 “caput”) , contagem de prazo (art.10), etc.

d. finais complementares ou de aplicação: são as que fixam os limites de validade das leis incriminadoras. Exemplos: arts.2º e 5º do Código Penal .

e. diretivas: são as que estabelecem os princípios de determinada matéria. Exemplo; princípio da reserva legal (art.1º) .

As normas penais incriminadoras, que definem infrações penais e cominam as respectivas penas, estão previstas exclusivamente na Parte Especial e na Legislação Penal Extravagante. Nem por isso, entretanto, a questão atinente à adequação típica é estranha à Parte Geral, pois os arts. 14, II, e 29 do Código Penal contêm as denominadas normas de extensão ou integrativas, que complementam a tipicidade do fato em relação à tentativa e ao partícipe. Na Parte Especial, o legislador definiu os crimes, cominando as respectivas penas. Não pense, porém, que ali só existem normas penais incriminadoras. Identifica-se, também, embora com escassez, a presença de normas penais não incriminadoras . Com efeito, o art.128 prevê uma norma penal permissiva, o art.121, § 5º uma norma exculpante e o art.327 uma norma penal interpretativa . Há ainda outros exemplos nos arts. 129, § 8º, 142, 150, § 3º etc.

O SISTEMA DA CLASSIFICAÇÃO DOS CRIMES

O Código Penal brasileiro classificou os delitos de acordo com a objetividade jurídica tutelada, distribuindo-os em onze títulos que, por sua vez, estão divididos em capítulos, sendo alguns destes subdivididos em seções.

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A objetividade jurídica compreende o bem ou interesse tutelado pela lei penal, que o crime ofende ou põe em perigo. Entende-se por bem tudo aquilo que pode satisfazer uma necessidade do homem e por interesse a avaliação subjetiva em torno desse bem. A classificação é uma técnica legislativa empregada para facilitar o estudo do direito, reunindo no mesmo título ou capítulo os crimes que guardam uma certa afinidade. No tocante aos delitos pluriofensivos, que atentam contra mais de um bem jurídico, como, por exemplo, latrocínio (CP, art. 157, § 3º, 2ª parte), que ofende simultaneamente o patrimônio e a vida, o legislador, na hora da classificação, se vê obrigado a optar por um dos vários bens ofendidos, atuando com uma certa dose de arbítrio. Os onze títulos previstos na Parte Especial estão classificados na seguinte ordem: I. Crimes contra a Pessoa (arts. 121 a 154); II. Crimes contra o Patrimônio (arts. 155 a 183); III. ICrimes contra a Propriedade Imaterial (arts. 184 a 196); IV. Crimes contra a Organização do Trabalho (art. 197 a 207); V. Crimes contra o Sentimento Religioso e o Respeito aos Mortos (arts.

208 a 212); VI. Crimes contra os Costumes (arts. 213 a 234); VII. Crimes contra a Família (arts. 235 a 249); VIII. Crimes contra a Incolumidade Pública (arts. 250 a 285); IX. Crimes contra a Paz Pública (arts. 286 a 288); X. Crimes contra a Fé Pública (arts. 289 a 311); XI. Crimes contra a Administração Pública (arts. 312 a 359-H). O Código Penal deixou à Legislação Especial a disciplina das contravenções, crimes falimentares, crimes militares, crimes contra a economia popular, crimes políticos e outros. À margem de cada artigo ou parágrafo vem uma rubrica contendo o nomen juris do delito, ou então uma síntese do conteúdo do texto ou da mens legislatoris.

TEORIA GERAL DA PARTE ESPECIAL

A Parte Especial, para muitos, constitui o verdadeiro Direito Penal porque sem ela as normas da Parte Geral permaneceriam sem vida. É na Parte Especial que se encontram descritas as infrações penais com as respectivas penas cominadas. Modernamente, tem-se generalizado a idéia de se formular uma teoria geral da Parte Especial, consistente no estudo sistemático das características comuns aos diversos tipos penais, propiciando uma melhor orientação científica, metodológica ou sistemática. Uma Parte Geral da Parte Especial, a nosso ver, seria muito salutar, pois iria propiciar um liame entre a Parte Geral e a Parte Especial, que deixariam de ser dois compartimentos estanques. Sobremais, facilitaria o

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trabalho exegético, conferindo maior harmonia ao sistema penal. De fato, há falta de entrosamento entre os estudos da Parte Geral e da Especial, que são realizados de maneira cindida, sem a devida conexão, o que poderia ser evitado com a elaboração de uma Parte Geral da Parte Especial, contendo os traços comuns a vários delitos.

CRIMES CONTRA A PESSOA

CONSIDERAÇÕES GERAIS

No Título I da Parte Especial estão os crimes contra a pessoa. O bem jurídico genericamente tutelado é a pessoa. Entretanto, o Título I é dividido em seis capítulos, tendo em vista a objetividade jurídica especificamente tutelada, a saber: I. Dos crimes contra a vida (arts. 121 a 128); II. Das lesões corporais (art. 129); III. Da periclitação da vida e da saúde (arts. 130 a 136); IV. Da rixa (art. 137); V. Dos crimes contra a honra (arts. 138 a 145); VI. Dos crimes contra a liberdade individual (arts. 146 a 154). O legislador tutela nesses capítulos, de maneira específica, os seguintes bens jurídicos: a vida, a integridade corporal, a honra e a liberdade da pessoa. Verifica-se que o delito de aborto está compreendido entre os crimes contra a vida da pessoa. Força convir que o Código Penal conferiu ao nascituro o atributo de pessoa, permitindo-lhe a aquisição do direito à vida, antecipando-lhe a personalidade para esse efeito, figurando, assim, como titular do bem jurídico e como sujeito passivo do abortamento.

PESSOA FÍSICA E PESSOA JURÍDICA

Ao lado da pessoa física ou natural, o direito reconhece a existência das pessoas jurídicas ou morais. Aludiu-se acima que no Título I do Código Penal estão os “Crimes Contra a Pessoa”. Refere-se o texto legal à pessoa natural (ser humano), uma vez que a pessoa jurídica não pode ser vítima da maioria dos delitos ali catalogados. Excepcionalmente, porém, a tutela penal estende-se também à pessoa jurídica. É o que ocorre nos seguintes crimes: a) difamação (art. 139); b) calúnia, quando se lhe imputa um crime ambiental (art.138); c) violação de domicílio (art. 150); d) violação de correspondência (art. 151); correspondência comercial (art. 152).

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CRIMES CONTRA A VIDA

OS CRIMES CONTRA A VIDA NO DIREITO PENAL BRASILEIRO

No Capítulo I do Título I da Parte Especial do Código Penal estão previstos os crimes contra a vida: homicídio, participação em suicídio, infanticídio e aborto (arts. 121 a 128).

Nos delitos de homicídio e infanticídio tutela-se a vida extra-uterina e o período de transição, desencadeado pelo início do parto, entre a vida intra-uterina e a vida extra-uterina. No delito de participação em suicídio tutela-se a vida extra-uterina. E, no delito de aborto, protege-se a vida intra-uterina, ressalvando-se, porém, que no aborto provocado sem o consentimento da gestante a tutela penal compreende também a vida e a integridade corporal da gestante (arts. l25 e 127).

COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO DOS CRIMES CONTRA A VIDA

Os crimes dolosos contra a vida, consumados ou tentados, e as infrações penais que lhes sejam conexas são julgados pelo Tribunal do Júri, cuja soberania a Constituição Federal assegura em termos peremptórios (CF, art. 5º, XXXVIII). Saliente-se, todavia, que por crimes dolosos contra a vida se compreendem apenas os previstos no Capítulo I do Título I do Código Penal: homicídio (art. 121), participação em suicídio (art. 122), infanticídio (art. 123) e aborto (arts. 124 a 127). O homicídio culposo é o único delito previsto nesse capítulo cuja competência não está afeta ao Tribunal Popular (art. 121, § 3º, do CP). Se lançarmos, porém, nossas vistas sobre o direito constitucional verificaremos que os crimes militares, mesmo os dolosos contra a vida, são julgados pelo escabinato da Justiça Castrense (CF, art. 124). Da mesma forma, tratando-se de competência ratione personae, exclui-se também a causa da apreciação do júri (por exemplo: no homicídio praticado pelo Presidente da República o foro competente é o Supremo Tribunal Federal). Cumpre, porém, ressaltar que a Justiça Militar só tem competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida cometidos por militar contra militar, pois, com o advento da Lei n. 9.299, de 7 de agosto de 1996, o crime doloso contra a vida perpetrado por militar contra civil passou a ser da competência do Tribunal do Júri. Assim, o crime doloso contra a vida cometido contra civil, à medida que se deslocou a competência para o Tribunal do Júri, deixou de ser crime militar. Essa é a melhor exegese, pois o Tribunal do Júri não pode julgar crime militar. Desse modo, o crime doloso contra a vida perpetrado por militar contra civil submete-se à disciplina do Código Penal e do Código de Processo Penal. Os delitos pluriofensivos, que lesam simultaneamente a vida e outro bem jurídico, como, por exemplo, latrocínio (art. 157, § 3º) e extorsão mediante seqüestro seguida de morte (art. 159, § 3º), ainda que a morte tenha sido dolosamente provocada, são da competência do juízo singular,

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porquanto perante o Código Penal não estão classificados entre os crimes dolosos contra a vida, mas entre os delitos contra o patrimônio.

PROIBIÇÃO DA PENA DE MORTE

A Constituição Federal veda a possibilidade de cominação e aplicação da pena de morte (art. 5º, XLVII), reforçando-se assim a tutela do direito à vida. Ressalva, no entanto, na hipótese de guerra externa formalmente declarada, a possibilidade de aplicar a pena capital. Mas, mesmo no caso de guerra externa, a pena de morte só pode ser imposta por tribunais militares. Os crimes cometidos em tempo de guerra externa que admitem a pena de morte estão presentes no Código Penal Militar. São os seguintes: a. traição (CPM, art. 355); b. favorecimento do inimigo (CPM, art. 356); c. tentativa contra a soberania do Brasil (CPM, art. 357); d. coação a comandante militar (CPM, art. 358); e. informação ou auxílio ao inimigo (CPM, art. 359); f. aliciamento de militar (CPM, art. 360); g. ato prejudicial à eficiência da tropa (CPM, art. 361); h. traição imprópria (CPM, art. 362); i. covardia qualificada (CPM, art. 364); j. fuga em presença do inimigo (CPM, art. 365); k. espionagem (CPM, art. 366); l. motim, revolta ou conspiração (CPM, art. 368); m. incitamento à desobediência em presença do inimigo (CPM, art. 371); n. rendição ou capitulação (CPM, art. 372); o. falta qualificada de cumprimento de ordem (CPM, art. 375, parágrafo

único);p. separação reprovável (CPM, art. 378); q. abandono qualificado de comboio (CPM, art. 379, § 1º);r. dano especial (CPM, art. 383); s. dano em base de interesse militar (CPM, art. 384); t. envenenamento, corrupção ou epidemia (CPM, art. 385); u. crimes de perigo comum (CPM, art. 386); v. insubordinação e violência (CPM, arts. 387 e 389); w. abandono de posto e deserção em presença do inimigo (CPM, arts. 390 e

392);x. libertação, evasão e amotinamento de prisioneiros (CPM, arts. 394 a 396); y. homicídio qualificado, genocídio, roubo, extorsão e saque (CPM, arts. 400,

III, 401, 405 e 406); z. violência carnal qualificada (CPM, art. 408, parágrafo único, b). A execução da pena de morte é por fuzilamento (arts. 707 e 708 do CPPM). A condenação judicial, uma vez transitada em julgado, deverá ser comunicada ao Presidente da República, que poderá exercer o direito de graça dentro de sete dias. Só após o decurso desse período é que a pena de morte será executada. A execução, porém, poderá ser imediata, se a pena

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tiver sido imposta em zona de operações de guerra e se o exigir o interesse da ordem e disciplina militares. Tem-se questionado sobre a cominação da pena de morte a outros delitos, fora da hipótese de guerra externa. Discussão, a nosso ver, totalmente inócua, uma vez que a proibição da pena de morte é cláusula pétrea, sendo vedada a sua introdução por via de Emenda Constitucional (CF, art. 60, § 4º, IV). O único meio de incluí-la no ordenamento jurídico é através do Poder Constituinte Originário. Todavia, introduzir a pena de morte é promover o Estado à condição de carrasco, dando vazão ao apetite da vingança, reparando o mal cometido pela violência, desconsiderando, de maneira irresponsável, a conhecida máxima de que a violência gera violência, atropelando o princípio da humanização da pena.

A RELATIVIDADE DO DIREITO À VIDA

A Magna Carta assegura a inviolabilidade do direito à vida (art. 5º da CF). No entanto, nenhum direito é absoluto. Mesmo o direito à vida pode ser licitamente sacrificado quando o agente agir acobertado por alguma causa excludente da antijuridicidade: estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular do direito (art. 23).

INDISPONIBILIDADE DO DIREITO À VIDA

A vida é um direito indisponível; considerado inviolável pela Constituição Federal (art. 5º, caput). Não se pode renunciá-la, uma vez que o ordenamento jurídico não confere às pessoas o direito de morrer. Prova disso é que o legislador torna lícito o emprego de violência para impedir o suicídio (CP, art. 146, § 3º, II). Se a pessoa tivesse o direito de morrer, ninguém poderia impedi-la de pôr termo à vida.

O caráter indisponível do bem jurídico torna inócuo o consentimento do ofendido, subsistindo integralmente os delitos previstos nos arts. 121 a 128 do CP, malgrado a aquiescência da vítima.

HOMICÍDIO

CONCEITO

Podemos repetir, na atualidade, o que foi dito anteriormente por Alimena, que homicídio é a morte de um homem causada por outro homem. Vale a pena lembrar a clássica definição de Carmignani: “é a morte violenta de um homem injustamente praticada por um outro”, definição esposada, entre nós, por Nelson Hungria. Carrara e Pessina também entendiam que a definição deveria conter o qualificativo “injusto”. Mas Impallomeni, acertadamente, à medida que todos os delitos constituem uma ação injusta, considerava

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desnecessário o acréscimo desse qualificativo. Equivocado, também, o singelo e tradicional conceito de que homicídio é a destruição do homem, pois, para diferenciá-lo do suicídio, é necessário dizer que a destruição da vida humana é praticada por outra pessoa.

OBJETIVIDADE JURÍDICA

O homicídio é o delito máximo, por excelência, pois atenta contra a vida humana, bem jurídico supremo, do qual irradiam todos os demais. A preservação da existência da raça humana, o progresso social e os bons costumes justificam o interesse do Estado em tutelar a vida humana. Trata-se, portanto, de bem jurídico indisponível, assegurado no art. 5º, caput, da Constituição Federal, sendo, pois, inadmissível o consentimento do ofendido para excluir o delito. Se lançarmos, porém, nossas vistas sobre o delito de aborto, verificaremos que o bem jurídico tutelado também é a vida humana. Aparece, destarte, o problema do início da tutela penal do homicídio. É pacífico que a eliminação da vida humana intra-uterina caracteriza aborto, enquanto a destruição da vida humana extra-uterina constitui homicídio. É falsa, no entanto para o direito penal, a assertiva de que viver é respirar, pois a vida extra-uterina pode ocorrer sem respiração, podendo, nesse caso, ser demonstrada, inclusive, pelos batimentos cardíacos. Uma interpretação sistemática do art. 123 do CP serve para identificar o início da proteção penal do homicídio. Assim se expressa, em termos peremptórios, o art. 123 do Código Penal: “Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após: pena — detenção, de 2 (dois) a 6 (seis) anos”. O dispositivo é curialmente salutar. Observe-se que durante o parto, por conseqüência, a partir do início do parto efetivado com o rompimento do saco amniótico, a eliminação do nascente não constitui mais delito de aborto. Assim sendo, nesse período de transição entre a vida intra-uterina e a vida extra-uterina, desencadeado com o início do parto, antes mesmo da expulsão do feto do útero materno, admissível é a prática do delito de infanticídio e, por identidade de razões, a do homicídio. Assim, o bem jurídico protegido é a vida humana extra-uterina e o período de transição entre a vida intra-uterina e a vida extra-uterina. Portanto, o sujeito que mata uma mulher grávida, após o rompimento do saco aminiótico, comete duplo homicídio, figurando como vítimas a mulher e a criança. Se a conduta tivesse sido realizada antes do rompimento do saco aminiótico, ter-se-ia o concurso formal entre os delitos de homicídio e aborto.

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ESPÉCIES DE HOMICÍDIOS

O Código Penal, quanto ao elemento subjetivo do tipo, ocupa-se de duas formas de homicídio: o doloso e o culposo. Subdivide-se o homicídio doloso em: I — simples ou fundamental (art. 121, caput); II — privilegiado (art. 121, § 1º); III — qualificado (art. 121, § 2º) e IV — circunstanciado (art. 121, § 4º, última parte — contra menor de 14 anos e maior de 60 anos). Já o homicídio culposo pode ser: I — simples (art. 121, § 3º);II — circunstanciado (art. 121, § 4º). Ressalte-se, ainda, que o art. 121, § 5º, do CP contém uma norma penal permissiva, aplicável exclusivamente ao homicídio culposo. Finalmente, a Lei n. 8.930, de 7 de setembro de 1994, incluiu no elenco dos crimes hediondos o homicídio doloso quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente e, também, o homicídio doloso qualificado (art. 121, § 2º, I a V).

SUJEITO ATIVO

O homicídio pode ser cometido por qualquer pessoa física. Como desde logo se percebe, trata-se de crime comum, não se exigindo atributo especial do agente. Se o sujeito ativo for militar e a vítima também, a hipótese passa a ser crime de homicídio previsto no Código Penal Militar, mas se a vítima for civil aplica-se o art.121 do CP. Observe-se, também, que os animais não têm capacidade penal para delinqüir, portanto, jamais serão sujeitos ativos de delito; no máximo, poderão funcionar como instrumento para a prática de crime. Interessante problema é o dos xifópagos (gêmeos ligados um ao outro), cumprindo, nesse passo, transcrever, na íntegra, a lição de Euclides Custódio da Silveira: “Dado que a deformidade física não impede o reconhecimento da imputabilidade criminal, a conclusão lógica é que responderão como sujeitos ativos. Assim, se os dois praticarem um homicídio, conjuntamente ou de comum acordo, não há dúvida que responderão ambos como sujeitos ativos, passíveis de punição. Todavia, se o fato é cometido por um, sem ou contra a vontade do outro, impor-se-á a absolvição do único sujeito ativo, se a separação cirúrgica é impraticável por qualquer motivo, não se podendo excluir sequer a recusa do inocente, que àquela não está obrigado. A absolvição se justifica, como diz Manzini, porque, conflitando o interesse do Estado ou da sociedade com o da liberdade individual, esta é que tem de prevalecer. Se para punir um culpado é inevitável sacrificar um inocente, a única solução sensata há de ser a impunidade”. Discordamos desse posicionamento. A nosso ver, o xifópago que cometeu o delito, contra a vontade do outro, deve ser processado e condenado por homicídio, inviabilizando-se, porém, o cumprimento da pena, tendo em vista o princípio da intransmissibilidade da pena. Se, no futuro, porém, o outro também vier a delinqüir e a ser condenado, ambos poderão cumprir a pena.

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SUJEITO PASSIVO

Dispõe o Código Penal, no art. 121, em forma lapidar: “Matar alguém: Pena — reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos”. A expressão alguém compreende indistintamente a unanimidade dos seres vivos componentes da espécie humana. Assim sendo, qualquer pessoa humana viva pode ser sujeito passivo do homicídio. Referentemente aos xifópagos, vindo os dois a morrer, o agente responderá por duplo homicídio em concurso formal.

Por fim, o homem morto (cadáver) não pode ser sujeito passivo do delito diante da inexistência do bem jurídico tutelado, caracterizando-se, destarte, crime impossível (art. 17 do CP). É o caso do agente que, pretendendo matar a vítima, aciona o gatilho do revólver, vindo, porém, depois, a verificar que ela já estava morta. Tratando-se de um neonato (recém-nascido) , com parcas chances de sobrevivência, ainda assim haverá homicídio. Como observa Cezar Roberto Bitencourt: “Condições físico-orgânicas que demonstrem pouca ou nenhuma probabilidade de sobreviver não afastam seu direito a vida, tampouco o dever de respeito à vida humana, imposto por lei”. No que tange ao feticídio, isto é, ocisão de um feto durante o parto, conforme vimos, também configura homicídio. Em três hipóteses, a pena do homicídio doloso aumenta de 1/3 : a) se a vítima for menor de 14 anos (art.121, § 4º); b) maior de 60 anos (art.121, § 4º, última parte – Lei nº 10.741/03) e c) se a vítima for índio não integrado ( art.59 da Lei nº 6001/73). Na hipótese de homicídio praticado contra o Presidente da República, do Senado Federal, da Câmara dos Deputados ou do Supremo Tribunal Federal o crime será contra a Segurança Nacional, previsto no art.29 da Lei nº 7.870/83.

NÚCLEO DO TIPO

O núcleo do tipo é o verbo “matar”, consistente em provocar a morte da vítima. Vimos que com a cessação da vida não há homicídio. Mister, portanto, a presença de vida naquele contra quem a conduta é dirigida, pois se já estava morto o crime é impossível por impropriedade absoluta do objeto (art. 17 do CP). Ressalte-se, todavia, a existência de controvérsia acerca do conceito de morte. Cumpre, a propósito, primeiramente, distinguir a morte clínica da morte cerebral. A primeira é a paralisação irreversível do batimento cardíaco e da respiração. A segunda é a cessação irreversível dos impulsos elétricos cerebrais. O silêncio cerebral é aferido pela linha reta no eletroencefalograma.

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A medicina moderna revela uniformidade de vistas ao repelir o critério da morte clínica, preponderando, na atualidade, a afirmação de que a verdadeira morte é a morte cerebral ou encefálica. Cumpre lembrar que a Associação Médica Mundial reconhece que nenhum critério tecnológico isolado é inteiramente satisfatório no presente estágio da ciência médica, e que nenhum procedimento técnico deve substituir o critério do médico. Todavia, a Lei n. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano, para fins de transplante e tratamento, autoriza a extirpação do órgão ou tecido da pessoa humana, desde que precedida do diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina. Como se vê, a legislação brasileira adotou o critério da morte cerebral encefálica. Sendo assim, o desligamento do aparelho que artificialmente mantém viva a pessoa acometida de morte cerebral não caracteriza delito de homicídio, pois não existe mais vida no paciente e, sim, vegetação mecânica. Se, porém, o cérebro ainda funcionava, caracterizar-se-á o delito de homicídio.

MEIOS DE EXECUÇÃO

O homicídio é crime de forma livre, admitindo, portanto, uma infinidade de meios executórios. Saliente-se para logo que os meios empregados devem ser idôneos a provocar a morte. Antes de entrar no seu estudo, desejamos chamar a atenção para este fator expressivo: a idoneidade do meio executório tem que ser analisada à luz de cada caso concreto. O que para uns será inidôneo, para outros não. Basta lembrar o exemplo, citado por Maggiore, da exposição de um recém-nascido ao frio, com a intenção de o matar. Este meio objetivamente inidôneo reveste-se de idoneidade em virtude das condições especiais da vítima. Os meios mais citados pela doutrina para a prática do homicídio são os seguintes: a) diretos; b) indiretos; c) materiais; d) morais; e)patológicos. Diretos são os meios executados pelo próprio agente contra o corpo da vítima, como, por exemplo, disparo de arma de fogo. Indiretos são os meios provocados pelo agente, mas por ele não executados diretamente. Por exemplo: introduzir uma tarântula venenosa no quarto da criança. Materiais são os meios que incidem sobre o corpo físico da vítima. Podem ser: mecânicos, químicos ou patológicos. Morais ou psíquicos são os meios que ocasionam a morte da vítima pela violenta emoção. São os traumas psíquicos, como, por exemplo, provocar um susto numa pessoa cardíaca.

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Meios patológicos são os provocados pela transmissão de moléstias. Interessante, nesse aspecto, a questão do aidético que, consciente da presença da doença, não hesita em manter a conjunção carnal sem fazer uso de preservativo. Contagiando ou não o seu parceiro, responderá por homicídio, consumado ou tentado, a título de dolo direto ou eventual, pois no mínimo assumiu o risco da transmissão da moléstia, aceitando, destarte, a morte da vítima. A dúvida quanto à doença caracteriza também dolo eventual. Não comungamos do posicionamento que enquadra a transmissão dolosa do virus HIV no delito de lesão corporal gravíssima, previsto no art.129,§ 2º, inciso II, do CP, porque não se pode falar em lesão corporal, quando o agente procede com “ animus necandi “. O meio executório pode ainda ser positivo ou negativo, segundo conste de ação dolosa (por exemplo, acionar o gatilho do revólver), ou omissão dolosa (por exemplo, deixar a mãe de alimentar o próprio filho). Assim, configura-se o homicídio por omissão quando o agente, com intenção de matar a vítima, abstém-se da prática de determinada conduta que lhe era juridicamente exigível. Dispõe o art. 13, § 2º, do Código Penal, que “a omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção e vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado”. Como se vê, o dispositivo deixou patenteado, com toda nitidez, a necessidade de inadimplemento de um dever jurídico. Não basta o descumprimento de dever moral. Com efeito, recusando-se a ceder o antídoto à vítima que sofreu uma picada de cobra, o agente, tendo o dever jurídico de impedir o resultado, como, por exemplo, o médico contratado pela família ou de plantão no hospital, responderá por homicídio, pois estará ao menos aceitando a morte da vítima, caracterizando-se, destarte, o dolo eventual. Ausente, porém, o dever jurídico, por tratar-se, por exemplo, de um vizinho, responderá pelo delito de omissão de socorro (art. 135, § 1º, do CP). Convém esclarecer que a simples condição de médico não impõe ao agente o dever específico de impedir o resultado. Urge, para que responda por homicídio, que tenha assumido o encargo, contratual ou não, de velar pela vítima. O médico que simplesmente passava pelo local e não a socorreu, responderá por omissão de socorro, pois não se pode olvidar que o Código de Ética Médica, que impõe ao facultativo o dever de socorrer o próximo, não é lei, mas uma mera norma de postura ética. Finalmente, no homicídio praticado com disparo de arma de fogo, impõe-se a absorção do delito de disparo de arma, previsto no art.15 , da lei nº 10.826/2003, por força do princípio da consunção. Todavia, quanto ao delito de porte ilegal de arma, previsto no art.12, “ caput“, da mencionada lei, nem sempre há a absorção. Com efeito, o delito de porte ilegal de arma é permanente, tendo se consumado muito antes da prática de homicídio, de

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modo que não há relação de meio e fim entre esses dois crimes, que na verdade são regidos pela conexão ocasional, impondo-se o concurso material de crimes. Ressalte-se, porém, que o porte de arma deve ser absorvido apenas na hipótese de a arma ter sido adquirida com fim específico de praticar o delito contra a vida, pois em tal situação integra o “iter criminis” percorrido pelo agente, caracterizando-se uma situação de progressão criminosa.

ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO

O elemento subjetivo do crime de homicídio é o dolo, consis-tente na vontade livre e consciente de provocar a morte da vítima. O dolo, traduzido na intenção de matar, é revelado pela expressão animus necandi ou occidendi. O homicídio admite dolo direto e eventual . O dolo direto de primeiro grau ocorre quando o agente quer produzir um resultado certo. O dolo direto de segundo grau, também chamado de dolo de conseqüências necessárias, se dá quando o agente quer produzir um resultado certo, sabendo que outro ou outros, em razão dos meios empregados, necessariamente ocorrerão. Exemplo: o agente atira para matar o xifópago “A”, mas sabe que o xifópago “B” também morrerá . Responderá por dois homicídios em concurso formal, dolo direto de primeiro grau em relação a “A “ e dolo direto de segundo grau em relação a “B “ .

Quanto ao dolo eventual, ocorre quando o agente com sua conduta assume o risco de produzir o resultado (art. 18, I). O dolo eventual é, pois, plenamente equiparado ao dolo direto. Como ensina Ary Azevedo Franco: “É inegável que arriscar-se conscientemente a produzir um evento vale tanto quanto querê-lo: ainda que sem interesse nele, o agente o ratifica ex ante, presta anuência ao seu evento”. No dolo eventual, o agente não quer o resultado, mas realiza a conduta na dúvida se irá ou não produzi-lo, ao passo que no dolo direto de segundo grau o agente também não quer o outro resultado, mas realiza a conduta na certeza de que irá produzi-lo . Anote-se ainda que o dolo é genérico, porque o tipo penal não menciona a finalidade específica da conduta de matar. Tratando-se, porém, do homicídio conexional, previsto no art.121,§ 2º, inciso V, o dolo é específico, porque o tipo menciona a finalidade da conduta de matar, que é praticada para assegurar a execução, ocultação, impunidade ou vantagem de outro crime. Examinemos agora a questão da prova da intenção de matar, salientando-se, desde logo, que a exteriorização desse elemento interno depende da análise das circunstâncias objetivas do crime, porquanto impossível é a captação do pensamento íntimo do agente. A doutrina ministra alguns critérios para identificação do animus necandi, extraindo-o das circunstâncias exteriores ao delito. Os mais

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lembrados são: a sede da lesão, o tipo de arma empregada, número de disparos, profundidade do golpe de faca, as precedentes relações entre o agente e a vítima e os motivos do crime. O critério mais seguro, contudo, é o da sede da lesão, pois nesse caso a própria natureza da conduta revela o propósito do agente. Se, por exemplo, o disparo atingiu o tórax ou a cabeça é porque, em princípio, houve intenção de matar. Se, diferentemente, atingiu a perna ou o pé, em tese, seria excluído o animus necandi. Saliente-se, porém, que nenhum critério, isoladamente, é absoluto, devendo o intérprete, na identificação do animus necandi, socorrer-se de todas as circunstâncias exteriores possíveis. Não havendo ânimo de matar, exclui-se o delito de homicídio, respondendo o agente por lesão corporal seguida de morte (art. 129, § 3º) ou por homicídio culposo (art. 121, § 3º), conforme tenha atuado com animus laedendi (intenção de ferir) ou não.

CONSUMAÇÃO

Consuma-se o crime com a morte da vítima, resultante da conduta praticada pelo agente. Trata-se de delito não transeunte, exigindo-se, para comprovação da materialidade, o exame de corpo de delito, sob pena de nulidade do processo. Com efeito, prova-se a morte pelo exame de corpo de delito direto denominado necrópsia. Não sendo, porém, encontrado o corpo da vítima (v. g., o agente o lançou ao mar) torna-se impossível, evidentemente, o exame necroscópico, podendo, no entanto, supri-lo o exame de corpo de delito indireto (art. 167 do CPP), não o suprindo, porém, a simples confissão do agente (art. 158 do CPP).

TENTATIVA

Trata-se de delito material, portanto, admite a possibilidade da tentativa. Ocorre esta quando, empregados os meios executórios idôneos, a morte não se verifica por circunstâncias alheias à vontade do agente. Urge, porém, que o animus necandi resulte de modo claro, induvidoso, inequívoco, sem possibilidade de impugnações, pois, na dúvida, o réu deverá ser absolvido — in dubio pro reo — pelo tribunal popular. A prova do animus necandi, como já vimos anteriormente, é extraída das circunstâncias objetivas do crime (sede da lesão, tipo de arma etc.). Às vezes, porém, malgrado o esforço do intérprete, persiste a dúvida entre o agente ter agido com animus necandi ou animus laedendi. Nesse caso, deve o promotor denunciar pelo delito mais grave (tentativa de homicídio) em virtude do princípio da necessidade da ação penal pública e, também, porque nessa fase da formação da opinio delicti vigora o princípio in

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dubio pro societate. A propósito, cumpre registrar que o princípio “in dubio pro societate “ vigora na área penal nas seguintes hipóteses: a) no momento do oferecimento da denúncia; b) no momento da pronúncia; c) no julgamento da revisão criminal.

HOMICÍDIO PRIVILEGIADO

Dispõe o Código Penal, no art. 121, § 1º, em forma lapidar: “se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de 1/6 a 1/3”.

Na acepção jurídica, homicídio privilegiado é uma causa especial de diminuição de pena, discutindo os autores o caráter obrigatório ou facultativo da redução da pena. Antigo e profundo o debate doutrinário manifestado a respeito. Segundo o ponto de vista de Magalhães Noronha, a redução é facultativa, em face do emprego da expressão: “o juiz pode reduzir a pena”. Salienta o seguinte: “A oração do artigo, a nosso ver, não admite dúvidas: poder não é dever. Dissesse a lei, por exemplo, ‘o juiz deve diminuir a pena’ ou ‘a pena será diminuída’ etc., a diminuição seria imperativa. Em face da redação do artigo, outra interpretação não nos parece possível”. Essa doutrina, que mereceu apoio de Frederico Marques, não pode ser acolhida. Ela constitui clamorosa injustiça por atentar contra a soberania do júri e a seriedade do julgamento, pois, como ensina Celso Delmanto, “a indagação do homicídio privilegiado é quesito de defesa. De acordo com a jurisprudência da Suprema Corte, se essa indagação não precede os quesitos de qualificação do homicídio, há nulidade absoluta do julgamento”. E adiante acrescenta: “Ora, se a indagação do homicídio privilegiado é tão importante que sua mera supressão torna nulo o julgamento do júri, seria sumamente incoerente impor sua formulação, mas deixar ao puro arbítrio do juiz a aplicação ou não da redução da pena decidida pelos jurados. Por isso, e em respeito à tradicional soberania do júri, entendemos que, quando for reconhecido pelos jurados o homicídio privilegiado, o juiz-presidente não deve deixar de reduzir a pena, dentro dos limites de 1/6 a 1/3. A quantidade da redução prevista no § 1º do art. 121 ficará, esta sim, reservada ao fundamentado critério do magistrado”. Três são, por conseguinte, as espécies de homicídio privilegiado reconhecidas pela ordem jurídica: 1 — por motivo de relevante valor social; 2 — por motivo de relevante valor moral; 3 — sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima.

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Motivo, preconiza Maggiore, “é o antecedente psíquico da ação, a força que põe em movimento o querer e o transforma em ato: uma representação que impele à ação”. O relevante valor social é aquele inspirado para satisfazer o interesse coletivo, como no exemplo do agente que mata o traidor da pátria ou o perigoso bandido que apavora a comunidade local. O relevante valor moral compreende o interesse individual do agente, v. g., o pai que mata o estuprador da filha. Não basta, porém, para o reconhecimento do privilégio, o valor social ou moral do motivo, mister se faz a sua relevância. A análise da relevância do valor social ou moral do motivo é aferida em função da sensibilidade do homo medius da sociedade e não conforme a subjetiva valoração do agente. Não se perca de vista, porém, que a circunstância de relevante valor moral ou social tem caráter subjetivo e, por isso, não se comunica aos demais participantes do delito que não tenham agido pelos mesmos motivos (art. 30 do CP). Por outro lado, o denominado homicídio emocional deve preencher os seguintes requisitos: a) provocação injusta da vítima; b) domínio de violenta emoção; c) reação logo após a provocação. Cuida-se inquestionavelmente de preceito salutar. Mas nem sempre é fácil a pesquisa da injustiça da provocação, por tratar-se de elemento íntimo e espiritual, variável consoante as diferenças de personalidade, cultura e educação das pessoas. Como dizia Fragoso: “o que para uns será provocação, para outros, não”. E adiante acrescentava: “Dever-se-ão considerar, porém, os padrões do homem normal, e não os do hipersensível”. Trata-se, porém, de investigação que deverá levar em conta a natureza e circunstâncias do caso concreto, a personalidade, cultura e educação do agente, exigindo-se dos jurados a máxima ponderação e equilíbrio, ao lado de perfeito conhecimento da vida, na infinidade de suas manifestações. Sim, dos jurados, porque compete ao júri, e não ao juiz, na pronúncia, a análise do homicídio privilegiado. A provocação injusta não é necessariamente antijurídica. O termo provocação, observa Aníbal Bruno, deve ser interpretado largamente. Um dito ofensivo, um gesto de insulto ou menosprezo, ofensas físicas, violações de direitos, mesmo quando não intencionais ou somente sentidos como propositados pelo agente, podem constituir-se em provocação injusta. A nosso ver, entende-se por provocação injusta a conduta ilegal ou imoral, consoante os padrões do homem normal. Segundo mencionamos anteriormente, a provocação, além de injusta, deve ser a causa da violenta emoção que domina o agente. Saliente-se, porém, que mister se faz o domínio de violenta emoção, isto é, a emoção precisa ser intensa, absorvente. Havendo mera influência de violenta emoção o privilégio será afastado, configurando-se, nesse caso, uma simples circunstância atenuante genérica (art. 65, III, c, do CP).

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Destaque-se, também, desde já, que, conquanto o Código se refira ao domínio de violenta emoção, o privilégio é igualmente aplicável quando houver domínio de violenta paixão. Como dizia Frederico Marques, por ser a paixão um estado emocional mais intenso e permanente está ela abrangida pelo dispositivo legal do art. 121, § 1º, do CP. De fato, tanto a emoção como a paixão provocam no agente um desequilíbrio psíquico, motivando-o a agir irrefletidamente, de maneira impetuosa, com a diferença de que, enquanto a emoção é transitória, a paixão é duradoura. Ainda quanto ao homicídio emocional, cumpre esclarecer que a reação deve ser quase imediata, isto é, sem demora, in continenti a injusta provocação, pois não se pode esquecer a expressão usada pelo legislador: “logo em seguida a injusta provocação da vítima” (art. 121, § 1º,CP). Desse modo, o hiato imenso entre a provocação e a reação exclui o privilégio, pois, como ensinava Aníbal Bruno, “o impulso emocional e o ato que dele resulta devem seguir-se imediatamente à provocação da vítima. O fato criminoso objeto da minorante não poderá ser produto de cólera que se recalca, transformada em ódio, para uma vingança intempestiva”. Vejamos agora a questão do homicídio passional, cometido por amor, salientando-se que, nesse caso, nem sempre configurar-se-á o privilégio, bastando, para tanto, lembrar a lição de Nélson Hungria: “Em face do novo código, os uxoricidas passionais não terão favor algum, salvo quando pratiquem o crime em exaltação emocional, ante a evidência da infidelidade da esposa. O marido que surpreende a mulher e o tertius em flagrante adultério ou in ipsis rebus venereis (quer solus cum sola in eodem lecto, quer solus cum sola in solitudine) e, num desvairo de cólera, elimina a vida de uma ou de outra, ou de ambos, pode, sem dúvida alguma, invocar o § 1º do art. 121; mas aquele que, por simples ciúme ou meras suspeitas, repete o gesto bárbaro e estúpido de Otelo, terá de sofrer a pena inteira dos homicidas vulgares. Em suma, o homicídio passional pode ou não ser privilegiado, conforme preencha ou não os requisitos do § 1º do art.121 do CP. Por outro lado, sobre a possibilidade da coexistência do homicídio privilegiado com a aberratio ictus (erro na execução), prevista no art. 73 do CP, nenhuma divergência existe. Caracteriza-se, destarte, o homicídio privilegiado com a aberratio ictus no exemplo do pai que dispara sua arma contra o estuprador da filha, vindo, porém, por desvio de pontaria, a atingir outra pessoa. Cumpre também registrar que a reação a uma agressão injusta configura legítima defesa, impondo-se a absolvição do agente. Se, porém, a reação for dolosamente desproporcional à agressão, desconfigura-se a legítima defesa, devendo o agente ser condenado por homicídio doloso, que eventualmente pode ser privilegiado pelo domínio da violenta emoção. Questão não despicienda é a de saber se seria possível a coexistência do homicídio privilegiado e do qualificado. Variam as opiniões a respeito. Antes de adentrarmos no assunto, convém abrirmos um parêntese para explicar que as circunstâncias subjetivas são as que dizem respeito aos

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motivos do crime, às qualidades pessoais do agente e seu relacionamento com a vítima, ao passo que as circunstâncias objetivas compreendem os meios e modos de execução do crime, tempo, lugar e qualidades da vítima. O homicídio privilegiado, em suas três modalidades, caracteriza-se pela existência de circunstâncias exclusivamente subjetivas, ao passo que no homicídio qualificado a natureza jurídica das circunstâncias é bem variável: no art. 121, § 2º, I, II e V, estão as circunstâncias subjetivas e nos incisos III e IV, as objetivas. Para uma corrente, haveria possibilidade de o homicídio ser ao mesmo tempo privilegiado e qualificado, desde que a qualificadora tenha natureza objetiva, como, por exemplo, o envenenamento cometido por motivo de relevante valor moral. Nesse caso, a pena base sairia do tipo legal qualificado (12 a 30 anos de reclusão) e, após a incidência das circunstâncias agravantes e atenuantes genéricas, o juiz aplicaria o privilégio, reduzindo a pena de um sexto a um terço. Para outros, porém, inadmissível é a concomitância do homicídio privilegiado e do qualificado em virtude da posição topográfica dos §§ 1º e 2º do art. 121, isto é, se o legislador quisesse estender o privilégio ao homicídio qualificado teria invertido a ordem numérica dos aludidos parágrafos. Acompanhando esse último ponto de vista, entendemos que o privilégio não se aplica ao tipo penal qualificado, valendo a pena transcrever a lição de James Tubenchlak: “Como se sabe, na ordem dos quesitos formulados pelo juiz e votados pelo júri, os privilégios situam-se antes das qualificadoras (art. 484, III). Por assim ser, quando reconhecido um privilégio,deve ficar prejudicada a votação do quesito versante sobre a qualificadora. E outra não poderia ser a solução, tomando-se em conta a própria sistematização do art. 121 do CP, que enuncia as causas de diminuição de pena no § 1º e as de aumento no § 2º, de sorte que as primeiras dizem respeito, exclusivamente, ao tipo básico ou fundamental do homicídio. Exegese em contrário, convenhamos, viria a acarretar gravames irremediáveis ao acusado”. A jurisprudência dominante filia-se a primeira corrente, admitindo o homicídio híbrido (privilegiado-qualificado), desde que a qualificadora seja objetiva, que são as do art. 121, § 2º , incisos III e IV, sendo inadmissível a coexistência do homicídio privilegiado e qualificado, quando as qualificadoras forem subjetivas, que são as do art.121,§ 2º, incisos I, II e V.

Sabe-se que na ordem dos quesitos, vota-se primeiro a tese do homicídio privilegiado e depois a do qualificado. Se o júri reconhece que o homicídio é privilegiado, o juiz deve por em votação os quesitos das qualificadoras objetivas, mas fica prejudicada os das qualificadoras subjetivas. Note-se que a segunda corrente, que rejeita a tese do homicídio híbrido, é mais vantajosa para o réu, pois se o júri reconhece o privilégio não se vota as qualificadoras, sejam elas objetivas ou subjetivas. Finalmente, cumpre esclarecer que a sentença de pronúncia não pode fazer menção ao homicídio privilegiado. Trata-se de

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tese de defesa, que deve ser suscitada em plenário do júri. Aliás, a sentença de pronúncia não pode fazer menção a atenuantes genéricas, a agravantes genéricas nem a causas de diminuição de pena, à exceção da tentativa. Note-se, porém, que as qualificadoras e causas de aumento de pena devem figurar na sentença de pronúncia.

HOMICÍDIO EUTANÁSICO OU PIEDOSO OU COMPASSIVO

O estudo da eutanásia é dos mais árduos de todo o direito penal. Talvez porque a humanidade atual passe por um estágio oscilante acerca da real finalidade da vida do homem na Terra. Acreditamos, porém, que no futuro o direito de morrer proclamado pela escola positiva de Ferri será repudiado e esquecido, trancado nas páginas amarelas do passado. “Defender a eutanásia, esclarece Nélson Hungria, é sem mais, nem menos, fazer a apologia de um crime. Não desmoralizemos a civilização contemporânea com o preconício do homicídio. Uma existência humana, embora irremissivelmente empolgada pela dor e socialmente inútil, é sagrada. A vida de cada homem, até o seu último momento, é uma contribuição para a harmonia suprema do universo e nenhum artifício humano, por isso mesmo, deve truncá-la. Não nos acumpliciemos com a morte”. Eutanásia é o homicídio praticado para alforriar, piedosamente, a pessoa dos insuportáveis sofrimentos causados por doença incurável. A eutanásia também é denominada de homicídio piedoso ou compassivo. Costuma-se também empregar as expressões homicídio médico ou caritativo. Ensina Paulo José da Costa Júnior, que são três as modalidades de eutanásia . Uma, consistente na eliminação das chamadas “vidas indignas de serem vividas“ (doentes mentais incuráveis), que configuram o homicídio. Outra, consistente na morte provocada pelo médico a paciente incurável, que esteja padecendo muito (morte piedosa) , que se trata de hipótese de homicídio privilegiado. A terceira modalidade é a ortotanásia, definida como a circunstância de o doente estar já em um processo que, segundo o conhecimento humano e um razoável juízo de prognose médica, conduzirá imediatamente e sem remissão à morte, sendo certo que o ilustre penalista considera lícita a ortotanásia . O Código Penal vigente não deixou impune a eutanásia. Conquanto não disciplinada expressamente, a sua prática constitui delito de homicídio. Na primeira modalidade o homicídio pode ser simples ou qualificado, dificilmente o júri o consideraria privilegiado. Na segunda modalidade, o homicídio é privilegiado pelo relevante valor moral (art. 121, § 1º). A polêmica maior reside em torno da ortotanásia. Com efeito, a ortotanásia consiste na supressão dos medicamentos que visavam prolongar por um pouco mais de tempo a vida do doente incurável incurso já em um estado que natural e irremissivelmente o levaria à morte. É também denominada eutanásia omissiva ou moral ou terapêutica

Suponha-se um enfermo em fase terminal, vivendo às custas de altas doses de antibióticos ou transfusões de sangue. Concluindo o juízo de prognose médica pela impossibilidade absoluta de cura, cessando os

19CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO IDIREITO PENAL ESPECIAL I - PROF. FLÁVIO AUGUSTO MONTEIRO DE BARROS

medicamentos, deixando, destarte, o moribundo morrer naturalmente, responderia o médico por delito de homicídio? Um dos argumentos para justificar a ortotanásia é o direito de não sofrer inutilmente. Os seus detratores, porém, argumentam que há sempre possibilidades de reações orgânicas do paciente, consideradas “milagres” , restabelecendo o enfermo, acrescentando ainda a possibilidade do surgimento de cura da doença . Malgrado a clareza do art. 13, § 2º, b, do CP considerando a omissão penalmente relevante a quem, como no caso do médico, tem o dever jurídico de evitar o resultado, o certo é que, no Brasil, mais difundida se tornou a tese da inexistência do delito, argumentando Aníbal Bruno, árduo defensor deste ponto de vista, o seguinte: “Nenhuma razão obriga o médico a fazer durar por um pouco mais uma vida que natural e irremissivelmente se extingue, a não ser por solicitação especial do paciente ou de parentes seus. Guilherme de Souza Nucci esclarece que a resolução nº 1246/88 considera a ortotanásia um procedimento ético (p.371). A controvérsia , porém, continua, porque a resolução não pode criar direitos e obrigações, violando o princípio da legalidade. O anteprojeto da parte especial do Código Penal, preceitua no art.121, § 4º: “ Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se previamente atestada por dois médicos, a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do paciente, ou na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão”. Finalmente, cumpre ainda fazer menção à distanásia, consistente na morte lenta e sofrida de uma pessoa, prolongada pelos recursos da medicina. Se o prolongamento objetiva a salvação não há falar-se em crime. Mas, se ao revés, tem o escopo de matar a vítima lentamente, haverá homicídio qualificado pelo meio cruel.

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QUESTÕES

1. O CP é dividido em quantas partes? 2. A Parte Geral contém que tipo de normas? 3. O que é norma penal permissiva? 4. O que é norma penal exculpante? 5. O que é norma penal interpretativa? 6. O que é norma final complementar ou de aplicação? 7. O que é norma penal diretiva? 8. O que é norma penal incriminadora? 9. O que são e quais são as normas de extensão ou integrativas? 10. Cite algumas normas penais não incriminadoras situadas na Parte

Especial do CP. 11. Qual o critério de classificação dos delitos utilizados pelo CP? 12. O que é objetividade jurídica? 13. O que é delito pluriofensivo? 14. No Código Penal, o nascituro é considerado pessoa? 15. A pessoa jurídica pode ser sujeito passivo dos “Crimes Contra a

Pessoa”?16. Quais são os crimes contra a vida e qual é o tribunal competente para

julgá-los? 17. No Capítulo I do Título I do CP há algum delito que não é julgado pelo

Tribunal do Júri? 18. O Tribunal do Júri julga apenas os crimes dolosos contra a vida? 19. Há algum homicídio doloso que não é julgado pelo Tribunal do Júri? 20. O militar que comete um homicídio doloso é julgado por qual órgão

jurisdicional?21. Qual é o órgão jurisdicional competente para o julgamento do latrocínio

e da extorsão mediante seqüestro seguida de morte? 22. Defina homicídio. 23. Qual é o bem jurídico protegido no delito de homicídio? 24. O sujeito que, ciente da gravidez, mata uma mulher grávida, e, por

conseqüência, a criança que se encontrava no ventre materno, comete quais delitos?

25. Qual é a linha divisória entre o homicídio e o aborto? 26. O homicídio é crime próprio ou crime comum? 27. Os animais têm capacidade penal? 28. O xifópago que comete homicídio contra a vontade do outro deve ser

condenado ou absolvido? 29. Quem atira em homem morto comete homicídio? 30. O que é feticídio e como é punido no ordenamento jurídico brasileiro? 31. Em que hipóteses a pena do homicídio doloso é aumentada de 1/3? 32. Em que hipóteses o autor de homicídio não responde pelo art. 121 do

CP, mas por outro delito?

21CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO IDIREITO PENAL ESPECIAL I - PROF. FLÁVIO AUGUSTO MONTEIRO DE BARROS

33. Qual a diferença entre morte clínica e morte encefálica? Qual o critério adotado pela legislação brasileira?

34. O desligamento de aparelho que artificialmente mantém viva a pessoa acometida de morte cerebral caracteriza delito de homicídio?

35. Por que o homicídio é um delito de forma livre? 36. Como se analisa a idoneidade do meio executório? 37. O que são meios morais ou psíquicos? 38. O que é homicídio patológico? O contágio doloso do vírus HIV

caracteriza qual delito? 39. É possível homicídio por omissão? 40. Aquele que se recusa a socorrer alguém que esteja morrendo, comete

homicídio ou omissão de socorro? 41. O delito de disparo de arma de fogo é absorvido pelo homicídio? E o

delito de porte ilegal de arma? 42. Em latim, como se expressa o dolo de matar? 43. O que é dolo direto de primeiro grau?44. O que é dolo direto de segundo grau? Exemplifique. 45. O que é dolo eventual e como se diferencia do dolo direto de segundo

grau?46. Por que no homicídio o dolo é genérico? Há alguma exceção? 47. Quais os critérios identificadores do “animus necandi”? 48. Não havendo “animus necandi”, exclui-se o delito de homicídio. Nesse

caso, o agente responde por qual crime? 49. Quando se consuma o crime de homicídio? 50. Por que o homicídio é delito não transeunte? 51. O princípio “in dúbio pro societate” é aplicável em que hipóteses? 52. O tribunal do júri, na dúvida, absolve ou condena o réu? 53. O homicídio privilegiado é causa obrigatória ou facultativa de redução

de pena? 54. Quais são as três espécies de homicídio privilegiado? 55. O que é motivo? 56. Qual a diferença entre relevante valor moral e relevante valor social? 57. Se apenas um dos agentes age sob relevante valor moral ou social, os

demais serão beneficiados pelo homicídio privilegiado, que prevê a redução da pena?

58. Quais os requisitos do homicídio emocional? 59. O que se entende por provocação injusta? 60. Na influência de violenta emoção o homicídio é privilegiado? 61. O privilégio é aplicável ao domínio de violenta paixão? 62. No homicídio privilegiado a reação deve ser imediata? 63. O homicídio passional é sempre privilegiado? 64. O homicídio privilegiado é compatível com a “aberratio ictus”? 65. No homicídio privilegiado, o agente reage a uma provocação injusta, ao

passo que na legítima defesa ele reage contra uma agressão injusta. Há

22CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO IDIREITO PENAL ESPECIAL I - PROF. FLÁVIO AUGUSTO MONTEIRO DE BARROS

alguma hipótese de reação a agressão injusta, que caracteriza homicídio privilegiado?

66. Qual a diferença entre circunstâncias subjetivas e objetivas? 67. No homicídio privilegiado as circunstâncias são subjetivas ou objetivas?

E no homicídio qualificado? 68. É possível o homicídio híbrido? Qual a posição da jurisprudência? 69. Se o Júri reconhece o privilégio, o juiz deve por em votação os quesitos

das qualificadoras? 70. Quais as circunstâncias que podem e as que não podem figurar na

sentença de pronúncia, isto é, na decisão que remete o réu a julgamento pelo Tribunal do Júri?

71. O que é eutanásia e quais as suas denominações? 72. Quais as três modalidades de eutanásia? 73. Na eutanásia, o agente responde por qual crime? 74. O que é ortotanásia e qual a polêmica que gira a seu respeito? 75. O que é distanásia?

DIREITOPROCESSUAL

PENAL I

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO I

1CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO I DIREITO PROCESSUAL PENAL I - PROFª. ROSANE CIMA CAMPIOTTO

INTRODUÇÃO

DIREITO DE PUNIR

Com a finalidade de tutelar bens e interesses importantes para a sociedade, o Estado edita um conjunto de normas, estabelecendo determinados fatos puníveis, bem como a respectiva sanção jurídica. Esse conjunto de normas é chamado de direito objetivo, sendo uma exteriorização da vontade do Estado. Ao definir, através das leis, quais os fatos que constituem infrações penais e cominar as sanções correspondentes, o Estado cria o direito penal objetivo, que corresponde ao conjunto de normas jurídicas que o Estado estabelece para impedir a prática de crimes. Desta forma, um determinado comportamento humano somente é lícito se estiver autorizado ou não estiver proibido pelas normas jurídicas. A possibilidade de se exercer um determinado comportamento autorizado é denominado direito subjetivo, que nada mais é do que a faculdade ou poder que se concede a um sujeito para a satisfação de seus interesses, tutelados por uma norma de direito objetivo. Quando alguém se afasta do imperativo da lei, violando a norma objetiva, ou seja, praticando a conduta típica, se submete à coação do Estado. Portanto, o detentor do direito de punir (jus puniendi) é o Estado, constituindo manifestação de sua soberania. Ao praticar um fato descrito na lei penal objetiva, o jus puniendi estatal,que se encontrava em abstrato, torna-se concreto e o Estado passa a ter o dever de impor ao autor da conduta proibida a sanção correspondente, conforme previsto em lei. A punição do autor da conduta representa a justa reação do Estado, em nome da defesa da ordem e da boa convivência entre os cidadãos. Como os interesses tutelados pelas normas penais são de natureza pública, a atuação do Estado constitui uma obrigação, através da qual realiza um dos fins essenciais de sua própria existência, qual seja, a manutenção da ordem jurídica. Desta forma, o Estado tem não só o direito de punir, mas, principalmente, o dever de punir.

Todavia, o direito de punir não é arbitrário, uma vez que é delimitado pelo princípio da reserva legal, cuja previsão tem assento constitucional, estabelecido no artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal: “Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.

Além disso, o jus puniendi, ou poder de punir, somente pode ser realizado através do processo penal.

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LIDE PENAL

A vida em sociedade acarreta o surgimento de diversos conflitos de interesses, já que por vezes os interesses de um indivíduo se opõem aos de outro. Com a prática de um ilícito penal surge um conflito de interesses entre o direito subjetivo do Estado, visando a punição do infrator (jus puniendi) e o direito de liberdade do autor da infração (jus libertatis).Surge, assim, a pretensão punitiva que é a exigência de subordinação do interesse do autor da infração penal ao interesse do Estado. Com a oposição de uma parte à pretensão da outra, surge a lide. No campo penal, opondo-se o titular do direito de liberdade à pretensão punitiva estatal, e não podendo o Estado impor, de plano, o seu interesse repressivo, surge a lide penal. Esta lide somente se soluciona pela jurisdição, que a compõe através de um processo penal.

FORMA DE COMPOSIÇÃO DA LIDE - O PROCESSO PENAL

Como visto, com a prática de um fato tido como criminoso surge o conflito de interesses entre o direito de punir do Estado e o direito de liberdade da pessoa que praticou a conduta proibida. Esse conflito não pode ser dirimido pela auto-defesa, que constitui o emprego de força e, portanto, a negação do direito, com o predomínio do mais forte sobre o mais fraco. Modernamente, o Estado soluciona os conflitos de interesses, especialmente no campo penal, através da sua função jurisdicional, ou seja, através do processo penal. A Constituição Federal consagra a necessidade da atuação de um órgão jurisdicional através do processo, estabelecendo os princípios do devido processo legal e do juiz natural. O princípio do devido processo legal, estabelecido no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal, dispõe que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Portanto, para a aplicação de sanções penais deve ser observada a lei processual. Por seu turno, o princípio do juiz natural, previsto no artigo 5º, LIII da Constituição Federal, estabelece que: “ninguém será processado, nem sentenciado senão pela autoridade competente”. Em síntese: a lei penal não pode ser aplicada senão através das formas processuais previstas na lei, ou seja, pela via do direito processual penal, de sorte que ninguém pode ser punido senão por um órgão jurisdicional estabelecido legalmente. O processo penal pode ser definido como sendo o conjunto de atos cronologicamente concatenados, regido por princípios, e destinado a compor as lides de caráter penal. Visa, portanto, a aplicação do direito penal objetivo.

3CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO I DIREITO PROCESSUAL PENAL I - PROFª. ROSANE CIMA CAMPIOTTO

Já, o Direito Processual Penal é definido, segundo José Frederico Marques, como sendo “o conjunto de princípios e normas que regulam a aplicação jurisdicional do Direito Penal, bem como as atividades persecutórias da Polícia Judiciária, e a estruturação dos órgãos da função jurisdicional e respectivos auxiliares”.

A lei processual penal prevê a existência de três órgãos públicos distintos, cada qual com uma finalidade específica: a Polícia, o Ministério Público e os juizes ou Tribunais penais.

A Polícia tem como função impedir a prática de ilícitos penais, investigando a sua ocorrência e a respectiva autoria. Para que o Estado possa propor a ação penal, normalmente, são necessárias atividades investigatórias, que consistem em atos administrativos da Polícia Judiciária, através de um inquérito policial.

O Ministério Público representa o interesse do Estado-Administração na imposição da sanção ao infrator.

Ao juiz, representante do Estado-Juiz, e que deve ser absolutamente imparcial, compete a função de decidir, dizendo se o acusado é culpado ou inocente e, conseqüentemente, impondo-lhe a pena.

A finalidade comum dos três órgãos é a prevenção e a repressão das infrações penais.

FONTES DO DIREITO PROCESSUAL PENAL

Fonte é o local de onde provém o direito, de onde ele emana.

As fontes se dividem em: a. fontes de produção (ou fontes materiais) b. fontes formais.

As fontes materiais, que constituem ou criam o direito, se encontram estabelecidas na Constituição Federal.

Com efeito, dispõe o artigo 22, inciso I, da Magna Carta que: “Compete privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeroportuário, espacial e do trabalho”.

Assim, no caso das normas de Direito Processual Penal, cabe unicamente à União elaborá-las, dada a natureza publicista desse ramo do Direito. Todavia, conforme autoriza o artigo 22, parágrafo único da Constituição Federal, lei complementar poderá autorizar os Estados-membros a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas no referido artigo, inclusive sobre Direito Processual Penal.

Por outro lado, o artigo 24, incisos X e XI, e artigo 98, I, ambos da Constituição Federal, estabelecem a competência concorrente da União, Estados e Distrito Federal para legislar sobre a criação, funcionamento e processo do juizado de pequenas causas e procedimentos em matéria processual.

4CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO I DIREITO PROCESSUAL PENAL I - PROFª. ROSANE CIMA CAMPIOTTO

Também no artigo 24, I e §§ 1º e 2º, da Constituição Federal, há a competência concorrente para legislar sobre direito penitenciário.

Ainda, no art. 24, IV, da Constituição Federal, há a competência dos Estados-membros, de acordo com suas Constituições Estaduais, para legislar sobre organização judiciária no âmbito estadual, bem como sobre custas dos serviços forenses.

As fontes formais, que constituem o modo de expressão do Direito, se subdividem em: a) fonte primária (imediata ou direta) e b) fontes secundárias (mediatas ou indiretas).

Fonte primária é lei. Fontes secundárias são: o costume, os princípios gerais do

direito e a analogia. É por meio da lei que o Estado impõe a sua vontade. Costume é a regra de conduta praticada de modo geral, constante e uniforme, com a consciência de sua obrigatoriedade. Embora não mencionado no artigo 3º, do Código de Processo Penal, que admite a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, o costume é referido no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, como uma das formas integradoras do direito, em caso de lacuna de lei. Desde que não contrarie os fins do processo, nem prejudique os sujeitos do processo, o costume pode ser aplicado no direito processual penal, como fonte do direito. É o que se denomina praxe forense. Princípios gerais do direito são premissas éticas extraídas da legislação e do ordenamento jurídico em geral. Podem suprir lacunas e omissões da lei, adaptados às circunstâncias do caso concreto. O artigo 3º, do Código de Processo Penal, considerou os princípios gerais do direito como fonte suplementar do direito processual penal. Analogia é forma de auto-integração da lei. Havendo lacuna involuntária aplica-se ao fato não regulado expressamente um dispositivo que disciplina hipótese semelhante. Consiste, portanto, na extensão de uma norma jurídica de um caso previsto a um não previsto, com fundamento na semelhança entre os dois. É necessário, entretanto, que haja real semelhança entre o caso previsto e não previsto, além de igualdade de valor jurídico e igualdade de razão entre ambos (ubi eadem ratio, ubi idem ius). Ademais, o artigo 4º, da Lei de Introdução ao Código Civil estabeleceu que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”.

PRINCÍPIOS DO DIREITO PROCESSUAL PENAL

Como uma das finalidades do processo penal é ser o instrumento de que se vale o Estado para tornar concreta a atividade jurisdicional, aplicando o direito penal ao agente infrator, deve essa finalidade ser focada nos princípios que protegem o indivíduo, que são garantidos pela Constituição.

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Segundo a doutrina, princípio pode ser definido como sendo a norma que, por sua generalidade e abrangência, irradia por todo o ordenamento jurídico, informando e norteando a aplicação e a interpretação das demais normas jurídicas, ao mesmo tempo em que confere unidade ao sistema normativo.

São princípios informadores do processo penal brasileiro os seguintes:

a. Princípio da Verdade Real (ou Verdade Material): A doutrina costuma distinguir duas espécies de verdade no

processo: a formal e a real (ou material). A verdade formal é a que surge a partir dos argumentos e

provas produzidas pelas partes. Pode, assim, não corresponder à realidade dos fatos, e nem é necessário que assim seja, uma vez que o juiz satisfaz-se com a verdade que as partes conseguiram trazer aos autos, ainda que não corresponda àquilo que efetivamente ocorreu.

Tal espécie de verdade é utilizada, como regra, no processo civil, no qual é possível ao juiz presumir verdadeiros os fatos narrados pelo autor na inicial, quando o réu, devidamente citado, tornou-se revel. A revelia, todavia, apenas faz nascer a presunção de que tais fatos são verdadeiros, o que não significa que, na realidade, o sejam.

No processo penal, ao contrário, vige a verdade real ou material. E isso se dá porque, no processo penal, estão em jogo direitos fundamentais do ser humano, como a liberdade, a vida, a integridade física e psicológica e até mesmo a honra, que constituem direitos indisponíveis.

Portanto, não pode o julgador, no processo penal, contentar-se com uma verdade formal, devendo buscar a verdade material ou real.

Verdade material ou real é aquela que mais se aproxima da realidade.

Assim, por ser a prova penal uma reconstrução histórica dos fatos, não importa se os fatos são incontroversos, devendo o juiz pesquisar, com o fim de colher a prova que possa tornar conhecidos os fatos reais e verdadeiros.

A verdade material procura, assim, produzir na mente do juiz a idéia de busca pela realidade dos fatos, a fim de que a verdade trazida pelas partes possa ser complementada por iniciativa do juiz.

Entretanto, ao buscar a verdade material, não pode o juiz se esquecer de que há uma limitação.

A busca encontra-se limitada à ilicitude dos meios probatórios, ou seja, o julgador, em nome da verdade material, não pode autorizar a realização de uma prova proibida pelo ordenamento jurídico.

Desde que não ultrapasse o limite imposto pelo legislador, o juiz, no processo penal, não só pode, como deve, pesquisar e colher as provas destinadas ao esclarecimento dos fatos, a fim de que possa formar o seu convencimento.

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Ademais, deve o julgador agir com cautela, pois não se admite qualquer meio de prova, mas somente aqueles processualmente admitidos, ainda que desta limitação resulte sacrifício à verdade material. Com a verdade real evita-se a verdade obtida com base em presunções ou ficções. Não existem limites para a busca da verdade real no processo penal e o juiz é sujeito interessado nessa busca, não se contentando com a verdade formal. Esse princípio, contudo, não vige na sua plenitude, uma vez que, em determinados casos prevalece a verdade formal. Assim, a descoberta da verdade real não altera a sentença do processo, quando o réu foi definitivamente absolvido, pois com o trânsito em julgado da sentença, esta não mais pode ser rescindida, ainda que surjam novos fatos, concludentes, contra o réu. Veda-se a revisão criminal “pro societate”

b. Princípio da Obrigatoriedade (ou da Legalidade): Com a prática de uma infração penal que se processa mediante ação pública, o Estado deve exercitar o “jus puniendi”, não sendo possível aos órgãos incumbidos da persecução penal a análise da conveniência e da oportunidade quanto à instauração da investigação e do respectivo processo. Este princípio obriga a autoridade policial, em caso de crime de ação penal pública, a instaurar o inquérito policial, e o órgão do Ministério Público, diante de indícios de autoria e de prova de materialidade, a promover a respectiva ação penal. Tal princípio contrapõe-se ao princípio da oportunidade ou conveniência, que se aplica às ações penais de iniciativa privada, nas quais há a faculdade de promover ou não a ação penal, discricionariamente. Assim, o jus accusationis fica a cargo do próprio ofendido ou de seu representante legal, que levará em conta critérios de conveniência e oportunidade. Cabe lembrar, ademais, que em caso de arquivamento de inquérito policial, o requerimento deve ser fundamentado, pois o representante ministerial (possuidor do dever de denunciar) precisa justificar porque não está dando início ao processo. O princípio da obrigatoriedade, entretanto, não é absoluto, eis que há algumas exceções. A primeira exceção se refere aos crimes de ação penal pública condicionada, nas quais caberá ao ofendido manifestar-se para que a autoridade policial e também o órgão do Ministério Público possam atuar. Essa manifestação ocorrerá ou não, de acordo com critérios de conveniência e oportunidade, próprios do titular do interesse lesado.

Além disso, o princípio da obrigatoriedade também é mitigado nos casos de infração penal de menor potencial ofensivo, para as quais se permite a transação penal. Neste caso, o princípio é o da “Discricionariedade Regrada”, podendo o representante do Ministério Público, uma vez preenchidos os requisitos legais, deixar de oferecer a denúncia,

7CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO I DIREITO PROCESSUAL PENAL I - PROFª. ROSANE CIMA CAMPIOTTO

propondo um acordo penal com o autor do fato. Todavia, essa discricionariedade não é plena, ilimitada, uma vez que depende de estarem preenchidos os requisitos legais.

c. Princípio da Indisponibilidade: É decorrência do princípio da obrigatoriedade, vigorando inclusive no inquérito policial. O inquérito policial, uma vez instaurado, não pode ser paralisado indefinidamente ou mesmo ser arquivado sem determinação judicial. Aliás, dispõe o artigo 17 do Código de Processo Penal que a autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito policial. A lei estabelece prazos para a conclusão do inquérito. Além disso, o requerimento de arquivamento, formulado pelo representante do Ministério Público, deve ser submetido ao Juiz, como fiscal do princípio da indisponibilidade, o qual, discordando das razões invocadas, deve remeter os autos ao chefe da instituição, conforme determina o artigo 28, do Código de Processo Penal. Tal princípio implica também na impossibilidade do órgão do Ministério Público desistir da ação penal instaurada (conforme estabelece o artigo 42, do Código de Processo Penal) e do recurso já interposto (nos termos do artigo 576, do Código de Processo Penal). Referido princípio, contudo, sofre algumas exceções. A primeira se refere à ação penal privada, onde vige a disponibilidade, pois, uma vez proposta a ação, o querelante pode perdoar o querelado, pode dar causa à perempção ou mesmo desistir da ação. Outra exceção se refere à possibilidade de suspensão condicional do processo, nas infrações que tenham pena mínima igual ou inferior a um ano, desde que preenchidos os demais requisitos legais previstos no artigo 89, da Lei 9.099/95. Assim, neste caso, poderá o representante do Ministério Público formular proposta visando a suspensão do processo mediante algumas condições que, se aceitas e cumpridas pelo acusado, acarretarão a extinção da punibilidade.

d. Princípio da Igualdade Processual (ou Isonomia Processual): É desdobramento do princípio da igualdade estabelecido no artigo 5º, “caput”, da Constituição Federal.

De acordo com este princípio, as partes do processo devem ser tratadas igualmente. Devem ter as mesmas oportunidades de fazer valer suas razões.

A igualdade de armas no processo (ou par conditio) consiste na necessidade de assegurar às partes um equilíbrio de forças no processo, igualando a acusação e a defesa.

Neste passo, é mister que se compreenda que a igualdade que se pretende no processo tem o significado de propiciar às partes as possibilidades de que precisam para poder tornar concretos os seus direitos,

8CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO I DIREITO PROCESSUAL PENAL I - PROFª. ROSANE CIMA CAMPIOTTO

que necessariamente não são idênticos, pois as formas de exercer a acusação e a defesa diferem. Imprescindível é, no entanto, que haja equilíbrio de situações, não idênticas, mas recíprocas, como o são, no processo penal, as funções de acusar e defender.

Quando se afirma que as duas partes devem ter tratamento paritário, isso não significa que, em determinadas situações, não se possa dar a uma delas tratamento especial, com o fim de compensar eventuais desigualdades, suprindo-se, assim, o desnível da parte inferiorizada, para que, justamente, se resguarde a paridade de armas.

Nesse sentido, eventual tratamento diferenciado entre as partes somente se justifica em razão de alguns princípios relevantes, dentre os quais se destacam o in dubio pro reo e o favor rei.

Tal tratamento diferenciado também se justifica na medida em que, estando a acusação afeta a um órgão oficial, tem ela, à sua disposição, todo um aparelhamento estatal preparado para lhe prestar auxílio, enquanto o acusado, no mais das vezes, apenas conta com suas próprias forças e o auxílio de seu advogado.

Para que a igualdade seja efetiva, tem o juiz um importante papel, cabendo-lhe o dever de resguardar o equilíbrio entre as partes, analisando com os mesmos critérios os requerimentos feitos pelas partes e interpretando as normas processuais à luz dos princípios estabelecidos na Magna Carta.

e. Princípio da Publicidade: Constitui garantia para a sociedade, servindo de freio contra eventuais fraudes, corrupções e julgamentos secretos. Encontra-se previsto no artigo 5º, LX, da Constituição Federal, que estabelece que: “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”. Além disso, de acordo com o artigo 93, inciso IX, da Magna Carta, “todos os julgamentos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”.

A doutrina costuma distinguir a publicidade plena e a publicidade restrita.

A primeira, publicidade plena, geral ou popular é aquela que permite o acesso dos autos do processo por qualquer pessoa. Já, a publicidade restrita, especial ou para as partes, é aquela em que apenas um número reduzido de pessoas pode ter acesso aos autos.

Em processo penal, a regra é a publicidade plena. A exceção é a publicidade restrita, ou para as partes, quando a defesa da intimidade ou o interesse social exigirem. São exemplos de publicidade restrita, previstas no Código de

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Processo Penal, as regras que estabelecem, por exemplo, a votação dos quesitos, pelos jurados, em sala secreta, no caso de crime de competência do Tribunal do Júri (artigo 476) e a possibilidade do juiz retirar da sala de audiência o réu, quando, verificar que a sua presença, pela sua atitude, poderá influir no ânimo da testemunha, de modo a prejudicar a verdade do depoimento (artigo 217).

f. Princípio da Necessidade de Motivação dos Atos Decisórios: Ligado ao dever da publicidade está o dever da motivação, uma vez que não se concebe um julgamento público sem motivação, isto é, sem a exposição das razões que exteriorizaram a decisão. Assim como na publicidade, a motivação encontra sua necessidade na legitimação da função jurisdicional. Como já salientado, a Constituição Federal erigiu o dever de publicidade a direito fundamental do cidadão, no artigo 5º, inciso LX. Além disso, estabeleceu também, no artigo 93, inciso IX, o dever dos juízes e tribunais de motivar suas decisões. A Constituição ainda comina a pena de nulidade para a falta de motivação das decisões, não sendo possível que tal vício seja sanado.

g. Princípio do Devido Processo Legal (due process of law):A Constituição Federal incorporou, em seu artigo 5º, inciso

LV, a garantia do devido processo legal nos seguintes termos: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

As Constituições brasileiras anteriores a 1988 não faziam referência expressa ao devido processo legal, que passou a ser de observância obrigatória não só quando se tratar da hipótese de privação da liberdade humana, mas também quando se tratar de privação de outros bens.

Referida garantia teve origem no artigo 39 da Magna Carta, imposta pelos barões feudais ao Rei João Sem-Terra, em 15 de junho de 1215, como forma de limitação do absolutismo e suas práticas, que se encontra em vigor até os dias de hoje no Reino Unido.

Encontra-se prevista, atualmente, na Declaração Universal dos Direitos do Homem, que em seu artigo XI, nº 1, estabelece que: “todohomem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que sua culpabilidade tenha sido provada, de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias a sua defesa”.

A garantia do devido processo legal implica que ninguém seja privado de sua liberdade ou de seus bens sem que, no procedimento, em que se materializa o processo, sejam verificadas todas as formalidades e exigências previstas pela lei.

Portanto, o devido processo legal constitui o conjunto de elementos indispensáveis para que o processo judicial possa atingir a sua finalidade, qual seja, a solução do conflito de interesses.

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Afirma a doutrina que o devido processo legal configura “dupla proteção ao indivíduo”, uma vez que atua em dois âmbitos, um material e outro formal. No âmbito material, o devido processo legal visa a proteger o direito de liberdade e de propriedade do cidadão, contra condutas do Poder Público, e, no âmbito formal, tem por objetivo assegurar ao indivíduo a paridade total de condições em relação do Estado-persecutor, bem como a plenitude de defesa.

Insta consignar também que do princípio do devido processo legal se extrai o fundamento para a defesa da dignidade da pessoa humana, que constitui elemento de especial importância para o direito processual penal.

h. Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa: São corolários do devido processo legal a ampla defesa e o

contraditório, que igualmente devem ser assegurados aos litigantes, em processo judicial ou administrativo e aos acusados em geral, conforme expressamente estabelece o inciso LV, do artigo 5º da Constituição Federal:“Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

Ampla defesa é a garantia constitucional que assegura ao acusado a possibilidade de trazer para o processo todos os elementos necessários ao esclarecimento da verdade, e, até mesmo, a possibilidade de calar-se, caso entenda ser essa a medida adequada.

Por sua vez, o contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa.

Para que o contraditório seja efetivo é necessário: a) a informação ou a ciência do ato processual (que se dá através da citação, intimação ou notificação) e b) possibilidade de reação (possibilidade de produzir prova em sentido contrário).

Todo ato produzido por uma das partes permite o direito da outra parte de opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que lhe convenha, ou, ainda, de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita por aquela.

Ademais, em se tratando de ação penal condenatória, o contraditório deve ser efetivo, real, a fim de que a verdade material reste devidamente apurada.

O contraditório assume, assim, no processo criminal, caráter indisponível, eis que indisponíveis são também os interesses envolvidos (jus puniendi e jus libertatis).

O contraditório e a ampla defesa, apesar de serem considerados princípios autônomos, se complementam, na medida em que a efetividade do contraditório se dá com o exercício da ampla defesa e é esta que garante aquele.

Insta consignar, ainda, que como elemento integrante da garantia da ampla defesa existe a necessidade de assegurar ao réu a defesa técnica.

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Assim, ao lado da autodefesa do acusado, que consiste na sua atuação pessoal, principalmente no momento do interrogatório judicial, necessária é também a defesa técnica, exercida por profissional habilitado e que detenha capacidade postulatória. O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, em seu artigo 14, 3, “d”, assegura a toda pessoa acusada da prática de infração penal, o direito de se defender pessoalmente ou por meio de defensor constituído ou nomeado pela Justiça, quando lhe faltar recursos suficientes para contratar algum.

Confirmando a necessidade de propiciar ao acusado a mais ampla defesa, o Código de Processo Penal estabeleceu, em seu artigo 263, que: “Se o acusado não o tiver, ser-lhe-á nomeado defensor pelo juiz, ressalvado o seu direito de, a todo tempo, nomear outro de sua confiança, ou a si mesmo defender-se, caso tenha habilitação”.

A defesa técnica é indisponível, constituindo mais do que uma garantia do acusado, pois é condição para que a igualdade processual e o contraditório se concretizem.

Por esse motivo, a Constituição da República determinou, no seu artigo 133, que o advogado é indispensável à administração da justiça, estruturando, no artigo seguinte, a Defensoria Pública.

A atividade jurisdicional do Estado pressupõe a observância irrestrita e o cumprimento efetivo dos princípios constitucionais processuais, em especial, o contraditório e a ampla defesa, pois somente dessa forma é que se estará assegurando às partes um julgamento justo e imparcial.

A doutrina menciona o contraditório diferido (ou prorrogado), que é aquele que é admitido nos casos em que se verifica o perigo de perecimento do objeto, em face da demora na prestação jurisdicional. Desta forma, torna-se possível a concessão de medidas judiciais “inaudita altera pars” (como por exemplo a ordem de busca e apreensão, interceptação telefônica, etc.). Não se trata, contudo, de exceção ao princípio do contraditório, uma vez que, antes da prolação do provimento final, a parte poderá se manifestar sobre a medida determinada.

Por fim, é importante frisar que, no inquérito policial, não há contraditório, uma vez que não há processo. Além disso, não há acusados, nem litigantes, não havendo, tampouco, instrução processual, mas mera colheita de provas.

i. Princípio da Duração Razoável do Processo (ou da Brevidade Processual): Está previsto expressamente na Constituição Federal, no artigo 5º, inciso LXXVIII, incluído pela Emenda Constitucional n.º 45/2004. Segundo tal dispositivo: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

Com isso assegura-se que o processo se desenvolva dentro do tempo necessário para atingir sua finalidade, evitando-se, assim, dilações indevidas.

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j. Princípio da Oficialidade: Como a repressão ao criminoso constitui função do Estado (jus puniendi) é indispensável que sejam instituídos órgãos encarregados da persecução penal.

De acordo com este princípio, os órgãos encarregados de deduzir a pretensão punitiva devem ser órgãos oficiais. Tais órgãos são as autoridades policiais e os representantes do Ministério Público. A Constituição Federal assegura que a apuração das infrações penais deve ser efetivada pela Polícia (artigo 144) e que a ação penal pública deve ser promovida, privativamente, pelo Ministério Público (artigo 129, I). Este princípio, entretanto, não é absoluto, pois excepcionalmente, a ação penal privada é promovida pelo ofendido ou por quem tenha qualidade para representá-lo (artigo 30, do Código de Processo Penal). Além disso, a Constituição Federal prevê a ação penal privada subsidiária (artigo 5º, LIX). Do princípio da oficialidade decorrem os princípios da autoritariedade e da oficiosidade. Autoritariedade significa que os atos de persecução penal são presididos por autoridades públicas, como são a autoridade policial e o órgão do Ministério Público. Oficiosidade, por seu turno, significa que os órgãos incumbidos da persecução penal devem agir de ofício, ou seja, por iniciativa própria, sem a necessidade de provocação.

l. Princípio da Iniciativa das Partes: Decorre do sistema processual adotado pelo nosso ordenamento jurídico, qual seja, o sistema acusatório. De acordo com esse sistema, as funções de acusar, defender e julgar cabem a pessoas distintas. Desta forma, o juiz não pode iniciar o processo de ofício (neprocedat judex ex officio). A jurisdição é inerte, somente age quando provocada, sob pena de ofensa à imparcialidade. O direito de invocar a tutela jurisdicional-penal do Estado cabe ao Ministério Público, na ação penal pública (enquanto representante do Estado-Administração – artigo 129, I, da Constituição Federal e artigo 24, do Código de Processo Penal) e ao ofendido ou seu representante legal, no caso de ação penal privada (artigos 29 e 30 do Código de Processo Penal). Como conseqüência desse princípio resulta que o juiz, ao decidir a causa, deve cingir-se aos limites do pedido do autor (Ministério Público ou ofendido) e das defesas oferecidas pelo réu (ne eat judex ultra petita partium).

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m. Princípio da Oralidade: Vários atos do processo são realizados oralmente, tais

como, interrogatório, depoimentos, acareações, reconhecimentos, etc. Todavia, a oralidade é relativa, uma vez que a legislação

mantém as regras do procedimento escrito. Da oralidade decorrem os subprincípios da concentração,

da imediatidade e da identidade física do juiz. Segundo o princípio da concentração, o julgamento deve

ser concentrado em uma ou poucas audiências, marcadas a curtos intervalos de tempo.

Pelo princípio da imediatidade, ou imediação, para poder julgar, o juiz deve ter contato direto com as partes e as provas.

Por fim, o princípio da identidade física do juiz, segundo o qual o juiz que realiza a instrução vincula-se ao processo devendo proferir decisão final, não vige, como regra, no processo penal, sendo admitido apenas como exceção, no rito do Tribunal do Júri, no momento do julgamento em Plenário. Assim, os jurados que começaram a instrução devem concluir o julgamento, proferindo veredicto final, sendo que, na hipótese de não ocorrer o julgamento, a instrução deve ser realizada novamente, perante os novos jurados sorteados.

n. Princípio da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos: Princípio previsto no artigo 5º, LVI da Constituição Federal,

segundo o qual: “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.

Desta forma, a Magna Carta estabeleceu que as provas produzidas por meios ilícitos, ou seja, com violação da lei, são provas proibidas ou vedadas. Quando produzida com violação de uma norma de direito material diz-se que a prova é ilícita. Já, quando a prova foi obtida a partir da violação de uma norma de direito processual, diz-se que a prova é ilegítima. Ambas são proibidas pela Constituição Federal.

o. Princípio do Estado de Inocência (ou Presunção de Inocência ou Presunção de Não-Culpabilidade):

Encontra-se estabelecido no artigo 5º, LVII, da Constituição Federal.

Segundo este princípio, no processo penal, o acusado é considerado inocente até que sobrevenha o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Desta forma, a restrição da liberdade de uma pessoa antes da sentença penal condenatória somente pode ser admitida a título de medida cautelar, comprovada a sua necessidade. Tal princípio não impede, portanto, que a partir de elementos probatórios colhidos nos autos, algumas medidas coercitivas sejam aplicadas ao

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réu, tais como a prisão em flagrante, a prisão decorrente de pronúncia, a prisão em razão de sentença condenatória recorrível, a prisão temporária, a prisão preventiva, a ordem de busca e apreensão, dentre outras. Assim, por ser o réu considerado inocente, eventuais medidas coercitivas somente são possíveis, desde que comprovada a extrema necessidade, como medida cautelar. Como conseqüências deste princípio temos que: 1) não é o réu que tem que provar sua inocência (vigora em seu favor um estado de inocente), cabendo ao acusador provar a sua culpa. Em outras palavras, o ônus da prova de determinado fato incumbe a quem alegou esse fato. Em se tratando de fatos constitutivos do direito de punir, cabe à acusação a sua prova; 2) para condenar o suposto autor do crime, o juiz deve se convencer da sua responsabilidade, sendo que, na dúvida, deve absolvê-lo (princípio indubio pro reo). Se cabia à acusação a prova da culpa do réu e tal prova não foi produzida, o acusado deve ser absolvido.

p. Princípio do Juiz Imparcial: Para que seja feita a justiça o juiz deve ser absolutamente imparcial. Na relação processual o juiz situa-se entre as partes e acima delas. Sua atuação deve se dar de forma desinteressada em relação ao conflito existente entre as partes Para assegurar a imparcialidade do julgador, Constituição Federal estabeleceu as garantias e as vedações aos magistrados. São garantias dos julgadores: a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de subsídio (artigo 95, da Constituição Federal). São vedações aplicáveis aos magistrados: a) exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo uma de magistério; b) receber, a qualquer título ou pretexto, custas ou participações em processo; c) dedicar-se à atividade político-partidária; d) receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei; e, e) exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração (artigo 95, parágrafo único, da Constituição Federal, com redação dada pela Emenda Constitucional n.º 45/2004. As garantias e vedações levam à independência do juiz, fazendo com que seja imparcial.

q. Princípio do Favor Rei (ou Favor Inocentiae ou Favor Libertatis): no conflito entre o jus puniendi do Estado e o jus libertatis do acusado, deve a balança inclinar-se a favor deste último.

Em razão deste princípio são atribuídos exclusivamente ao réu diversos privilégios, dentre os quais podem ser citados os seguintes: a) na dúvida impõe-se a absolvição (“in dubio pro reo”); b) proíbe-se a

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“reformatio in pejus”; c) não é possível a revisão criminal “pro societate”, d) existem recursos exclusivos da defesa, como os embargos infringentes, os embargos de nulidade e o protesto por novo júri.

r. Princípio Nemo Tenetur Se Detegere (ou Privilege Against Self Incrimination):

Segundo este princípio, ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo, ou seja, ninguém é obrigado a se auto-acusar. O direito ao silêncio e à não auto-incriminação permite que o preso ou acusado, durante a investigação criminal ou a instrução processual, permaneça em silêncio, assim como também impede que seja compelido a produzir prova ou colaborar com a formação da prova que é contrária aos seus interesses.

s. Princípio do Juiz Natural: Segundo a doutrina, juiz natural é aquele previamente conhecido, segundo regras objetivas de competência, estabelecidas anteriormente à infração penal, e investido de garantias que lhe asseguram absoluta independência e imparcialidade. Encontra-se previsto no artigo 5º, inciso LIII, da Constituição Federal, que dispõe que: “Ninguém será processado, nem sentenciado, senão pela autoridade competente”. Desta forma, quando um crime é cometido, as regras de competência, constantes da Constituição Federal das leis processuais, já apontam qual é o Juízo competente, sendo que, na hipótese de haver mais de um juiz igualmente competente, estipula-se o sistema aleatório do sorteio (distribuição), para que não haja interferência na escolha. Como conseqüência desse princípio surge a proibição dos juízes ou Tribunais de Exceção, conforme estabelecido no artigo 5º, inciso XXXVII, da Constituição Federal: “Não haverá juízo ou tribunal de exceção”.

Entende-se por Tribunal ou juízo de exceção aquele constituído após o fato criminoso, para o julgamento deste, através de uma justiça fora da estrutura orgânica e permanente do Poder Judiciário. Tal proibição, contudo, não se confunde com o chamado foro por prerrogativa de função, que existe em razão de certas funções públicas e cuja previsão se encontra na própria Constituição, nem com as denominadas Justiças Especializadas existentes na área eleitoral, militar e trabalhista, cuja previsão também se encontra na Magna Carta e que configuram simples atribuição de competência a órgãos jurisdicionais, visando uma melhor atuação da Justiça.

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QUESTÕES

1. No que consiste o jus puniendi? Quem é o seu detentor? 2. Quais as limitações ao direito de punir? 3. O que se entende por lide penal? De que forma ela é solucionada? 4. Defina processo penal. Qual a sua finalidade? 5. O que se entende por direito processual penal. 6. O que é fonte do direito? Quais as suas espécies? Explique cada uma

delas.7. Qual a diferença entre verdade formal e verdade real? Qual delas é

buscada no processo penal? Explique. 8. O princípio da verdade real é absoluto? 9. O que se entende por princípio da obrigatoriedade? Existem exceções

a esse princípio? Explique. 10. Pode o membro do Ministério Público desistir da ação penal

instaurada? E do recurso interposto? Explique. 11. Existem exceções ao princípio da indisponibilidade? Explique. 12. É possível que haja tratamento diferenciado entre as partes no

processo penal?13. A quem cabe resguardar o equilíbrio entre as partes e de que modo? 14. Qual a diferença entre publicidade plena e publicidade restrita? Que

espécie de publicidade existe no processo penal?15. Se o magistrado deixar de fundamentar sua decisão, incorrerá em

algum vício? Explique. 16. No que consiste o princípio do devido processo legal?17. Os princípios da ampla defesa e do contraditório foram consagrados

na Carta Magna (artigo 5º, inciso LV) e são corolários do devido processo legal. Em alguma parte da persecução penal esses princípios não estão presentes? Explique.

18. O que se entende por contraditório diferido ou prorrogado? 19. O que significa o princípio da duração razoável do processo? 20. No que consiste o princípio da oficialidade? É absoluto? 21. Quais órgãos são encarregados de deduzir a pretensão punitiva do

Estado?22. O que é oficiosidade e autoritariedade? 23. Por que se diz que a jurisdição é inerte? 24. No que consiste o princípio da oralidade ? Quais os subprincípios que

decorrem da oralidade? 25. O princípio da identidade física do juiz vigora no processo penal? 26. Distinguir prova ilícita de prova ilegítima. São aceitas no processo? 27. O que se entende pelo princípio da presunção de não-culpabilidade? 28. O princípio da presunção de inocência impede que medidas

coercitivas sejam aplicadas ao réu antes do trânsito em julgado da condenação? Explique.

29. No que consiste o princípio do juiz imparcial? Explique.

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30. O que significa o princípio favor rei?31. O réu não é obrigado a produzir prova contra si mesmo. Qual é o

princípio que se aplica neste caso? 32. O que se entende pelo princípio do juiz natural?

DIREITOCONSTITUCIONAL

TOMO I

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO I

1CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO IDIREITO CONSTITUCIONAL I - PROF. JOSÉ CARLOS FRANCISCO

INTRODUÇÃO

Iniciando nossos estudos de Direito Constitucional, devemos fazer alguns esclarecimentos introdutórios que podem ajudá-lo nos seus esforços de aprendizado para aprovação em concursos públicos. Considerando que as Constituições representam a estrutura básica da sociedade e do Estado, nossos estudos do Direito Constitucional serão divididos em duas grandes partes: Teoria Geral da Constituição (abrangendo temas que permitem a compreensão do surgimento, da evolução e do significado atual dos ordenamentos constitucionais) e o Direito Constitucional Positivo, subdividido em Estrutura do Estado (tratando da forma de Estado, dos mecanismos de acesso e exercício do poder político, bem como das funções e limites da ação estatal) e Estrutura da Sociedade (cuidando das normas que versam sobre direitos, garantias e deveres fundamentais às relações entre os cidadãos e entre esses e o Estado).

É fácil de ver que estamos diante de uma das matérias mais relevantes das ciências jurídicas, isso porque a importância estrutural da Constituição lhe dá superioridade hierárquica em relação a todos os demais diplomas normativos. Assim, matérias de Direito Público e de Direito Privado extraem seu fundamento de validade dos ordenamentos constitucionais, que também são úteis para a adequada interpretação dos dispositivos que estão expressos nos códigos, bem como para a integração de suas lacunas. Acrescente-se que o ordenamento constitucional é freqüentemente alterado e ampliado em temas e em quantidade (de modo formal e informal), motivo pelo qual podemos dizer que as Constituições se tornaram uma espécie de “código estrutural” dos demais códigos infraconstitucionais.

É com o mais sincero propósito de facilitar o estudo desta matéria que iniciamos nossos trabalhos.

PRIMEIRA PARTE

TEORIA GERAL DAS CONSTITUIÇÕES

Nesta parte introdutória, estudaremos os institutos necessários à compreensão das Constituições e do Direito Constitucional, iniciando pelas noções gerais (surgimento, evolução, conceito e classificação das Constituições). Após entendermos o significado moderno desses diplomas jurídicos, cuidaremos do ponto de partida para sua produção e modificação, o Poder Constituinte. Posta a Constituição, cuidaremos dos mecanismos de hermenêutica necessários à sua interpretação, integração e aplicabilidade. Agregamos à Teoria Geral da Constituição o Controle de Constitucionalidade, pois se trata de uma das maneiras mais eficazes de proteção dos ordenamentos constitucionais.

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CAPÍTULO I - NOÇÕES GERAIS SOBRE CONSTITUIÇÃO

O plano deste capítulo inicial é a compreensão do sentido das Constituições, apresentando-as desde seu surgimento, passando pelas várias espécies verificadas na experiência histórica das sociedades até chegamos ao ambiente contemporâneo. Para isso, começamos pelos antecedentes que marcam o constitucionalismo, indicando sua evolução com as modificações verificadas entre o século XVIII d.C. e sua configuração atual, com o conceito de Constituição, os princípios gerais que orientam o Direito Constitucional, e finalizando, a classificação dos ordenamentos constitucionais.

Destacamos a importância dos temas abordados nesta parte inicial para o correto entendimento dos institutos da Constituição de 1988, pois o sentido lógico de preceitos constitucionais e de vários ramos do Direito Público e Privado depende das razões que levaram à sua elaboração, vistas no contexto de contínua evolução. A união moderada de fundamentos teóricos ao conhecimento do Direito Positivo e da jurisprudência é um significativo diferencial na avaliação de candidatos em concursos públicos.1

ESTRUTURAÇÃO DA SOCIEDADE E DO ESTADO ANTES E APÓS O SÉCULO XVIII D.C.

Ao pensarmos em constituir e em constituição, imaginamos a estruturação de algo (seja de um computador, seja de uma sociedade), daí porque ao tratarmos em sentido jurídico, falamos em estruturação da sociedade e do Estado mediante regras escritas ou não escritas, e damos exemplos de documentos ou modelos de comportamento produzidos a partir do século XVIII d.C.

No entanto, muito antes do século XVIII d.C. havia documentos jurídicos que organizaram a sociedade e o poder estatal (mesmo nas formas mais primitivas de formação social), razão pela qual surge uma indagação elementar: qual a diferença entre as regras de estruturação produzidas antes e a partir do século XVIII d.C.?.2 Há dois elementos essenciais e inter-relacionados que diferenciam os ordenamentos antigos de estruturação das Constituições modernas: a origem do poder e a limitação dos que exercem o poder.

1 Para leitura complementar, recomendamos BASTOS, Celso Ribeiro, Curso de Direito Constitucional, 22ª edição, São Paulo, Ed. Saraiva, 2001; CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3a edição, Coimbra, Livraria Almedina, 1999; FAVOREU, Louis, coordonnateur, Patrick Gaïa, Richard Ghevontian, Jean-Louis Mestre, André Roux, Otto Pfersmann et Guy Scoffoni, Droit Constitucionnel, Paris, Dalloz, 1998; FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, Curso de Direito Constitucional, 29ª edição, São Paulo, Ed. Saraiva, 2002; LENZA, Pedro, Direito Constitucional Esquematizado, 5a edição, São Paulo, LTr, 2003; MORAES, Alexandre de, Direito Constitucional, 13ª ed., São Paulo, Ed. Atlas, 2003; SIÉYÈS, Emmanuel, A Constituinte burguesa, Qu’est-ce que le Tiers État?, 3ª edição, organização e introdução de Aurélio Wander Bastos, Rio de Janeiro, Ed. Lumen Juris, 1997; SILVA, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo, 21ª edição, São Paulo, Ed. Malheiros, 2002; e TAVARES, André Ramos, Curso de Direito Constitucional, São Paulo, Ed. Saraiva, 2002. 2 Desde ARISTÓTELES, A Política (tradução do grego por Mário da Gama Kury, 2ª edição, Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1988), já se cuidava de regras elementares para a estruturação da sociedade e do Estado, motivo pelo qual é possível falarmos em Constituição Antiga e Constituição Moderna, cujo divisor é o século XVIII d.C..

3CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO IDIREITO CONSTITUCIONAL I - PROF. JOSÉ CARLOS FRANCISCO

Desde a Antigüidade (p. ex., Mesopotâmia no 3º milênio a.C., Código de Hammurabi em1690 a.C. e Cristianismo), geralmente o poder esteve fundamentado em mitos, na força e, essencialmente, na tradição e na religião, de maneira que as leis divinas davam amparo e limites às leis produzidas pelos governantes (esses próprios considerados deuses em certas épocas), mas com a Idade Média, inicia-se um processo de transferência da fonte de poder capaz de produzir as regras básicas que estruturam a sociedade e o Estado, pois essa capacidade passa paulatinamente do rei para toda a sociedade, o que leva à limitação do poder estatal que passa a atuar como representante da sociedade. Esse processo é inaugurado na Inglaterra, com a Magna Carta, de 1215 d.C., seguida de vários outros antecedentes dos modernos ordenamentos constitucionais, todos marcando a transferência, do rei para a sociedade, da capacidade de elaborar os ordenamentos estruturais da sociedade e do Estado. Assim, é verdade que na antiguidade havia documentos que davam a organização fundamental da sociedade e do Estado, mas o povo estava afastado do poder, pois o Código de 1690 a.C foi produzido sob as ordens do Rei Hammurabi, tanto quanto a Magna Carta de 1215 d.C. foi elaborada pelo Rei João “Sem-Terra” (embora como conseqüência de pacto com os lordes ingleses), mas as Constituições modernas são produzidas sob as ordens da sociedade (preferencialmente de todos seus segmentos).

Portanto, a origem democrática na elaboração das regras básicas que estruturam a sociedade e a limitação do poder são características elementares das Constituições modernas. Neste ponto é necessário esclarecer que a democracia é conhecida desde a Antigüidade, inclusive experimentada na forma direta durante o auge de Atenas como Cidade-Estado, mas devemos lembrar que a democracia ateniense conferia apenas aos cidadãos a faculdade de participar do processo político (excluindo os peregrinos, escravos e libertos que representavam o maior número de habitantes), diversamente do que ocorre com a democracia moderna, ampliada para todos os seres humanos, independentemente de sexo, idade, cor ou qualquer outra forma de discriminação (ainda que a implantação concreta desse pressuposto dependa de longa evolução e de medidas complementares).

Também é necessário registrar que a realidade concreta apresenta múltiplas exceções à seqüência linear da história (medida que normalmente empregamos para facilitar a compreensão da linha evolutiva). Assim, ainda vemos surgir Constituições outorgadas (às vezes por governos rígidos e totalitários), países que amparam suas leis em fundamentos religiosos, ou limitam expressivos segmentos sociais do processo político mediante discriminações odiosas, mas como tendência dominante, podemos afirmar que as Constituições modernas surgem a partir do século XVIII d.C., caracterizando-se pela origem democrática da vontade que estrutura juridicamente a sociedade e delimita a forma e os limites das funções estatais.

4CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO IDIREITO CONSTITUCIONAL I - PROF. JOSÉ CARLOS FRANCISCO

ANTECEDENTES DAS CONSTITUIÇÕES MODERNAS

Certamente o processo de transferência do poder das monarquias para a sociedade ocorreu com muitas resistências, motivo pelo qual há vários antecedentes até a efetiva aparição dos ordenamentos constitucionais no século XVIII. Dentre esses antecedentes, encontramos os pactos ingleses, o pactum subjectionis, os forais ou cartas de franquia, os contratos de colonização, as leis fundamentais do reino e a doutrina dos pactos sociais, para então surgirem as primeiras Constituições liberais. 3

PACTOS INGLESES E O PACTUM SUBJECTIONIS

Acerca dos pactos ingleses, o mais importante é a já citada Magna Carta, de 1215, elaborada pelo Rei João “Sem-Terra” como modo de superar impasse com os lordes ingleses (que recusaram aumento de taxação apresentado pela Coroa Inglesa). Marcando o processo de transferência do poder da monarquia para a sociedade (nesse caso, representada apenas pelos lordes), a Magna Carta, mesmo que outorgada pelo Rei João, decorre de um acordo mediante o qual a monarquia reconhece limites ao seu poder, baseados em direitos imemoriais dos povos da terra inglesa, comprometendo-se a obedecer certos critérios em suas decisões (p. ex., reconhecendo a necessidade de ampla defesa aos acusados pela cláusula do due process of law, bem como a aprovação do Parlamento para a instituição e aumento de tributos).4

Também na idade média vigeu a idéia do pactumsubjectionis, pela qual haveria um acordo entre o rei e os súditos baseado no compromisso de governos justos, em face dos quais Deus seria o árbitro. Caso o rei violasse o dever de justiça, os súditos ficavam desobrigados do compromisso firmado com o rei, sendo possível a intervenção da igreja (notadamente do Papa).

FORAIS E CARTAS DE FRANQUIA

Ainda na Idade Média, a Europa conheceu os forais ou cartas de franquia, documentos escritos outorgados pelos reis a determinadas regiões (muitas vezes como modo de retribuição ao apoio dado pelos vassalos), mediante os quais também eram reconhecidos direitos imemoriais dos povos da terra manifestados pelas tradições locais (note-se, não a todos os seres humanos). Esses documentos incluíam o direito de participação dos súditos nos governos das regiões, e se mostram como antecedentes das Constituições modernas justamente pelo reconhecimento de prerrogativas da sociedade a partir de regras decorrentes de suas tradições, que poderiam ser opostas aos soberanos.

3 Para leitura a análise mais detida desta parte, recomendamos FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, Curso de Direito Constitucional, 29ª edição, São Paulo, Ed. Saraiva, 2002. 4 Há vários outros documentos relevantes para a história constitucional, que compõem o bloco que forma a Constituição não escrita da Inglaterra, como o Petition of Rights de 1628, Habeas Corpus Act de 1679, Bill of Rights de 1689 e Act of Seattlemente de 1701.

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CONTRATOS DE COLONIZAÇÃO

Com o início da colonização da América do Norte a partir dos séculos XVI e XVII, surgem os contratos de colonização, elaborados pelos imigrantes europeus para reger as relações nas novas comunidades a serem formadas. Normalmente egressos de uma mesma região, os colonos redigiam esses contratos muitas vezes ainda a bordo dos navios de imigração, razão pela qual essas circunstâncias apresentam o povo elaborando as regras pelas quais se orientariam nas novas sociedades. Obviamente a submissão à metrópole limitava os contratos de colonização, mas é importante lembrar que os instrumentos de controle da época eram bastante precários (especialmente em decorrência da distância entre o continente europeu e a América do Norte), motivo pelo qual os governados acabavam, concretamente,estabelecendo suas próprias regras. Dentre os vários documentos elaborados dessa forma, destaca-se o Compact, redigido em 1620 a bordo do navio Mayflower, oriundo da Inglaterra.

LEIS FUNDAMENTAIS DO REINO

Especialmente na França surgem as leis fundamentais do reino, consideradas superiores à vontade dos reis porque eram baseadas em direitos imemoriais, ao mesmo tempo em que serviam para a proteção da sociedade contra os abusos da coroa. Essas leis francesas eram elaboradas e alteradas pela Assembléia dos Estados Gerais, e previam modos de aquisição, exercício e transmissão do poder, sendo consideradas superiores às normas produzidas pelo Legislativo até porque eram significativamente estáveis, características visivelmente coincidentes com as futuras Constituições. 5

PACTO OU CONTRATO SOCIAL

Já no berço das Constituições modernas, a noção de pacto social é retomada, agora amparada na vontade de todo o povo e não mais sob sujeição divina (fundamento do pactum subjectionis) ou da combinação de vontades do monarca e da nobreza. Com lastro em argumentos contratualistas, os homens firmariam um pacto segundo suas vontades, estabelecendo regras para a convivência visando assegurar a paz (preocupação precípua de Hobbes, pela natureza perversa do ser humano e pelo temor da guerra de todos contra todos) e a preservação dos direitos naturais (objetivo na visão de Locke e Rousseau).

5 A Assembléia dos Estados Gerais, composta pelo alto clero, pela nobreza e pela burguesia (Terceiro Estado) era raramente convocada (às vezes com intervalo de várias décadas), e foi justamente sua reunião que acelerou a queda de Luís XVI no processo da Revolução Francesa de 1789, quando então foi publicado o manifesto O que é o Terceiro Estado?, escrito pelo abade Emmanuel Joseph Sieyès (integrante do Terceiro Estado), reclamando o direito de a burguesia ser ouvida nas decisões da Assembléia dos Estados Gerais (até então dominada pelo alto clero e pela nobreza).

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Embora a teoria contratualista seja contraposta à teoria naturalista (afirmando que a sociedade se firma naturalmente), àquele tempo filosoficamente finaliza-se o processo de transferência do poder do monarca para o povo, trazendo a conseqüente necessidade de limitação dos governantes mediante regras estabelecidas em ordenamentos jurídicos fundamentais, características inerentes às Constituições modernas que apresentamos como diferenciais em relação às regras que estruturaram a sociedade e o Estado até o século XVIII d.C..

O ILUMINISMO, AS PRIMEIRAS CONSTITUIÇÕES E O CONSTITUCIONALISMO

Acreditamos que o Direito, a economia e todos os demais segmentos do conhecimento sofrem influências dos ideais e valores dominantes nos seus respectivos momentos históricos, motivo pelo qual, no berço das Constituições, encontramos forte influência do iluminismo e do pensamento liberal.

ILUMINISMO E SUA INFLUÊNCIA NO DIREITO

O iluminismo exerce expressiva importância na ampliação da democracia e no surgimento das Constituições, pois se apóia em visão racional do universo e do indivíduo (visto como igualmente capaz e hipersuficiente), razão pela qual produziria o máximo de si se deixado livre em sociedade, que seria organizada pela harmonia natural produzida pelas relações interpessoais, produzindo progresso e felicidade, ideais que marcaram o histórico do surgimento do constitucionalismo no século XVIII (embora rapidamente corrigidos pelas evidências concretas apresentadas nos séculos seguintes). Nesse ambiente de plena liberdade é que surgem as primeiras Constituições, motivo pelo qual preconizavam o laissez-faire e o laissez-passer e a conseqüente livre concorrência como melhor modelo de otimização do processo socioeconômico, que seria ajustado de forma natural e harmônica pelo livre jogo do mercado travado entre unidades igualmente capacitadas. Nesse contexto, as funções e o poder do Estado deveriam ser apenas os necessários para garantir a liberdade da sociedade, razão pela qual o Estado deveria ser limitado e mínimo para não interferir na harmonia natural, aspecto que se manifesta como reação ao irracionalismo inerente ao absolutismo que marcou Ancien Régime (que confundia o monarca e o Estado), justificando a necessidade de separação de funções estatais em órgãos distintos como modo de controlar o exercício do poder. Fácil de ver que daí prospera a teorização de Montesquieu, definindo a separação de poderes como mecanismo racional pelo qual harmonicamente um poder controla o outro, ao mesmo tempo em que cada um se especializa em certas

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atividades, e sempre limitam suas ações segundo a vontade contida nas leis (que expressam a vontade geral do povo mediante seus representantes integrantes dos parlamentos). Substitui-se o império do monarca pelo império da lei decorrente da vontade da sociedade manifestada pelas relações interpessoais e declarada pelo Legislativo (caixa de ressonância social), que é a essência do Estado de Direito definido no ambiente liberal do século XVIII. 6

AS PRIMEIRAS CONSTITUIÇÕES MODERNAS

As primeiras Constituições surgem no século XVII, iniciando pela Constituição da Virgínia, de 1776, no processo de independência das treze colônias americanas, seguida da Constituição dos Estados Unidos da América de 1787. Porém, tendo em vista que o maior pólo difusor de cultura à época era a Europa, normalmente se dá realce aos documentos editados no curso da Revolução Francesa, particularmente a Constituição Francesa de 1791, que complementa a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.

É verdade que a Inglaterra já ostentava um conjunto de documentos que compunham sua Constituição não escrita (até porque a Revolução Gloriosa é de 1688), mas foram nos Estados Unidos e na França que inicialmente se verificaram consolidações normativas em um único documento denominado Constituição, elaborado de modo solene e democrático, organizando a sociedade e o Estado.

O CONSTITUCIONALISMO

A força das idéias liberais associadas à gênese das Constituições ganhou o mundo rapidamente, definindo um movimento político-jurídico denominado “constitucionalismo”, cujos traços exaltavam as virtudes da nova ordem marcada por governos moderados, limitados pela vontade democrática formalizada em documentos escritos. Ter ordenamento constitucional tornou-se sinônimo de evolução, sendo que um dos ícones desse movimento foi o art. 16 da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão firmado na Revolução Francesa de 1789, segundo o qual somente teria Constituição a sociedade que promovesse a garantia de direitos aos cidadãos, bem como fixasse a separação dos poderes como modo de limitar o arbítrio dos governantes.

6 Qualquer visão minimamente crítica duvida da concretização desses ideais liberais, especialmente se considerarmos que o parlamento do século XVIII era composto basicamente pela burguesia (pelo voto censitário e a outras exclusões de direitos políticos motivadas por sexo ou formação cultural), pelo clero e pela nobreza. O grande desafio da democracia representativa sempre foi a vinculação da vontade do representante à vontade do representado, problema apenas amenizado a partir do século XX com o surgimento da democracia pelos partidos e a democracia participativa, não obstante as dificuldades verificadas nesses mecanismos, o que estudaremos mais adiante, no Sistema Político.

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AS MODIFICAÇÕES DO CONSTITUCIONALISMO DO SÉCULO XVIII AO SÉCULO XXI

Tendo em vista o contínuo processo de transformação vivido pelas sociedades, naturalmente o constitucionalismo apresenta modificações desde seu surgimento no século XVIII d.C., adaptando-se às linhas filosóficas e socioeconômicas dominantes em cada período histórico, e interagindo em relação de causa e efeito com a realidade concreta. Assim, podemos dividir a evolução do constitucionalismo em três fases progressivas e inter-relacionadas, a primeira sob auspícios do pensamento liberal, a segunda sob a influência de preocupações sociais, e a terceira refletindo imperativos da internacionalização de problemas e interesses. É interessante salientar que em conseqüência da supremacia da Constituição, a evolução do constitucionalismo se irradia para todos os ramos jurídicos, seja de Direito Privado, seja de Direito Público (em face dos quais o reflexo é mais nítido).

FASE LIBERAL Substituindo o Ancien Régime marcado pelo poder monárquico, o movimento liberal surge por motivos sociais, políticos e econômicos, sob forte influência do iluminismo, como reação à concentração inerente ao absolutismo, às diferenças sociais e ao sistema de restrições que imperou durante praticamente toda a idade média (especialmente com as corporações de ofício que limitavam as atividades econômicas). Por isso, o liberalismo exerceu influência em vários segmentos da estrutura das sociedades e dos Estados, particularmente nas áreas econômicas e jurídicas.

A fase liberal estende-se do final do século XVIII (com o surgimento das Constituições) até o início do século XX, e tem como características básicas a crença na igualdade e na hipersuficiência do indivíduo (que seria capaz de satisfazer todas suas necessidades, dependendo exclusivamente de seu empenho e vontade) bem como na harmonia natural (que restaria como a melhor e mais eficiente maneira de organização socioeconômica, pois o equilíbrio ideal e o progresso seriam obtidos pelas relações inter-pessoais verificadas livremente na sociedade), razão pela qual o Estado teria funções mínimas (caracterizadas por prestações negativas ou pelo “não-fazer”, com competência apenas as necessárias para garantir as liberdades individuais, e para impedir ou punir as distorções na harmonia natural).

O pensamento liberal pressupunha mecanismos naturais de controle e equilíbrio do poder político e do econômico, o que podemos verificar, respectivamente, pelo sistema de freios e contra-pesos da separação de poderes clássica, e pela concorrência perfeita. Portanto, ao Estado caberia a função de cuidar dos desequilíbrios da vida social e do mercado, intervindo de modo excepcional para impedir, combater e punir ações contrárias às liberdades individuais e ao livre funcionamento da

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concorrência. Nesse contexto, o Direito era restrito às previsões fundamentais para assegurar o sistema de liberdades públicas (como proteção à igualdade perante a lei, à propriedade privada, à ampla liberdade, à segurança e à vida), motivo pela qual as leis seriam produzidas pelas relações interpessoais no seio da sociedade e declaradas em forma escrita pelos representantes do povo. Assim, considerando a diminuta quantidade de normas e a produção das mesmas pelas relações sociais, no sistema liberal viabilizava-se a máxima ignorantia legis neminem excusat, de modo que todos tinham condições de conhecer o que era legal ou ilegal.

Em conclusão, o Estado de Direito nasce com o propósito de evitar o arbítrio dos governantes, visando um governo de leis e não de homens, de maneira que as Constituições e as demais normas do ordenamento jurídico apresentavam-se como instrumentos de garantia dos indivíduos, fixando direitos oponíveis contra as ações de outros indivíduos ou contra o arbítrio dos governantes.

Sob influência dessa linha de pensamento foram produzidos diversos ordenamentos, dentre eles a Constituição Americana de 1787, e as Constituições Francesas efêmeras no processo da Revolução de 1789 (como a de 1791 e a de 1793), e também as Constituições Brasileiras de 1824 e 1891.

FASE SOCIAL

O modelo liberal ruiu em razão de imprecisões na sua concepção, o que está relacionado com questionamentos sobre democratização da ação política (relacionados à dificuldade de vincular os representantes aos representados) e crise na democracia econômica (tendo em vista as precárias condições de vida da população, além do que o interesse dos consumidores sucumbia em face das grandes corporações empresariais). Essas imprecisões do modelo liberal se agravam em razão da imprecisão da auto-regulação ou da harmonia natural dos mercados, da visível desigualdade e da incapacidade individual em muitas áreas.

Esses problemas do liberalismo são potencializados pela ampliação do direito de voto (que passa a ser garantido às mulheres e aos pobres em decorrência da eliminação dos mecanismos censitários), pela crescente tendência revolucionária visando implantar marxistas e socialistas (ou versões “revisionistas”), pela participação da doutrina social da igreja católica (condenando a miséria da população, especialmente com a encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, de 1891), a evolução dos meios e instrumentos de comunicação (permitindo maior divulgação de idéias e do pluralismo ideológico, político e econômico, em especial). O conjunto desses fatos gerou modificações significativas nos modelos liberais.

Assim, a fase social inicia-se no liminar do século XX, permanecendo em linhas gerais até a atualidade, apresentando como

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características básicas o reconhecimento da desigualdade e da hipossuficiência individual (já que todos somos incapazes em maior ou menor proporção, dependendo do padrão de cultura e do nível de complexidade das áreas do conhecimento que se tratar) e a necessidade de elaboração de políticas públicas de estruturação e desenvolvimento socioeconômicos (estimulando e determinando comportamentos mediante planos setoriais e regionais, bem como políticas de gestão).

Nesse ambiente social, o Estado amplia suas funções, suas dimensões e suas necessidades financeiras (caracterizadas por prestações negativas ou pelo “não-fazer”, bem como por prestações positivas ou pelo “fazer”), definindo o Estado empreendedor ou gerencial (pois além de intervenções excepcionais e subsidiárias na ordem socioeconômica, também passa a atuar permanentemente como agente que normatizador e regulador). Para que isso fosse possível, reorganizaram-se as funções estatais na separação de poderes, bem como dos instrumentos de controle entre os entes públicos.

O Direito ampliou seu universo temático, pois além das regras geradas pelas relações interpessoais no contexto social, surgiu a normatização governamental preocupada em afirmar a igualdade entre desiguais e em promover o desenvolvimento mediante políticas públicas (essencialmente técnicas e cambiantes em razão da intensa modificação exigida pela realidade). A soma das normas tradicionais com a intensa proliferação das normas governamentais gerou o fenômeno conhecido como inflação normativa, pondo em dúvida a ficção de que todos conhecem as regras jurídicas (ignorantia legis neminem excusat).

Afinal, ao Estado de Direito são agregadas preocupações sociais visando a proteção e a eficácia concreta tanto da democracia política quanto da democracia econômica, gerando novas definições (como Estado Social de Direito, Estado Democrático e Social e Estado Democrático de Direito). Influenciado por essa linha de ideais encontramos primeiramente a Constituição Mexicana de 1917, e a Constituição Alemã de Weimar, de 1919, bem como as Constituições Brasileiras de 1934 e seguintes.

INTERNACIONALIZAÇÃO

A continuidade do processo social dá início à fase da internacionalização de problemas e interesses vivida desde meados do século XX, embora a bipolarização gerada pela “guerra fria” tenha limitado seu desenvolvimento até a década de 1980. Essa fase se acentua com a formatação jurídica de agrupamentos comunitários e com a intensa “ocidentalização” de conceitos e de comportamentos vivida na década de 1990, conhecida como “globalização”, o que provoca maior influência da ordem internacional no âmbito interno dos Estados Nacionais. Dentre os problemas e interesses comuns que motivam essa tendência estão a otimização e a capacitação do processo produtivo, a utilização equilibrada do

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meio ambiente e da biodiversidade, e a acentuação das diferenças entre ricos e pobres, apontando a solidariedade e a união de esforços como caminho viável para a solução, o que reflete em instituições públicas e privadas, acentuadamente no Direito. 7

Como muitas dessas alterações ainda estão se processando, é difícil e imprudente fazermos afirmações categóricas, mas como tendência, devemos reconhecer que os indivíduos e empreendimentos nacionais (sujeitos de direito no contexto interno) passam a ser vistos como hipossuficientes no plano mundial (sujeitos de direito no contexto internacional, já que muitas vezes é o Estado Nacional que os oprimem), exigindo políticas internacionais (comunitárias e globais) para a gestão de temas de interesse regional ou global. A conseqüência natural é o delineamento de estruturas governamentais regionais (como a União Européia, o Mercosul, o Nafta e a Alca) ou globais (ONU e Organização Mundial do Comércio), com atuação prioritária nos assuntos tipicamente internacionais, mas podendo ser subsidiária nas questões internas em alguns casos (p. ex., em se tratando da proteção de direitos humanos, sempre que o ente nacional não der solução apropriada a problemas que possam repercutir nos interesses dos sujeitos de direito tutelados).8

O Direito amplia ainda mais seu campo de atuação, pois às normas internas agrega-se amplo rol de normas internacionais e comunitárias, maximizando o problema da inflação normativa. O sistema normativo supranacional manifesta-se por regulamentos e diretivas, normalmente designados como Direito Comunitário derivado, fundamentado nos tratados que estruturam a comunidade.9

Cabe destacar que algumas normas internacionais podem assumir força normativa de emendas constitucionais, tal como expressamente prevê o art. 5o, § 3o, da Constituição de 1988 (na redação dada pela Emenda Constitucional 45/2004), a respeito de tratados e demais atos internacionais sobre direitos humanos.

As Constituições dos Estados Nacionais também apresentam previsões reconhecendo a competência de organismos internacionais, independentemente de esses países integrarem a estrutura

7 A definição de globalização é complexa porque envolve conceito em formação que reúne diversos fatores, mas, em apertada síntese, indica a solidariedade de múltiplos países na conjugação de esforços para a busca de pontos de interesse comum e de solução de problemas que atingem número indeterminado de pessoas, notadamente na área social e econômica. 8 Tomando como exemplo a União Européia, a mesma é dotada dos elementos tradicionais de Estado, pois tem território definido (soma dos territórios dos países que integram a comunidade), povo (composto pelos nacionais dos países signatários, com livre trânsito), estrutura de governo (Parlamento, Primeiro-Ministro e Secretariado, além de Tribunais Comunitários, tanto para questões relativas a direitos humanos quanto para demais temas da União Européia), e a finalidades institucionais comuns. Além disso, o Banco Central Europeu detém instrumentos para emissão e controle do euro (moeda única dotada de curso forçado em todos os países que forma a União Européia), além de símbolos (como bandeira própria e documentos pessoais padronizados), aspectos que, reunidos, intensificam a polêmica acerca da natureza jurídica dessa organização como sendo confederação (ante à possibilidade de dissolução de vínculo), federação ou um novo modelo estatal sem precedentes. Outro passo marcante no sentido da definição da União Européia como novo modelo de Estado é a conclusão de sua Constituição, expressão amplamente empregada com o propósito de afirmar o elo entre os componentes dessa unidade. 9 Sobre o tema Georges Burdeau, Francis Hamon, Michel Troper, Droit Constitutionnel, 26a édition, Paris, Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence – L.G.D.J., 1999 p. 649, e Jean Rivero e Jean Waline, Droit Administratif, 18ª ed., Paris, Éditions Dalloz, 2000, p. 79.

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comunitária (como é o caso da Constituição de 1988, em seu art. 4o,parágrafo único e art. 5o, § 4o, ambos do corpo permanente, e o art. 7o, do ADCT), ao mesmo tempo foi editada a Constituição Européia, dando a estrutura básica da sociedade e da organização União Européia.

A EVOLUÇÃO E OS PROBLEMAS DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

A expressão “Estado de Direito” apresenta vários significados, embora seu emprego comumente seja feito para identificar o império da lei como expressão da vontade geral.10 Por essa razão, fala-se em Estado de Direito durante toda a evolução do constitucionalismo, inclusive na atualidade, mas é possível diferenciar três modelos de Estado de Direito, quais sejam, Estado Liberal, o Estado Social e o Estado Democrático de Direito.

Sobre o Estado de Direito na visão liberal já nos ativemos logo acima, bem como é fácil associar o Estado Social à fase social de evolução do constitucionalismo. No entanto, resta diferenciar o Estado Social do Estado Democrático de Direito, para o que inicialmente devemos lembrar que, sob o argumento da proteção dos desiguais e da valorização do trabalho, bem como do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, nas décadas de 1930/1940 proliferaram regimes arbitrários (nazismo e fascismo, além de outros não tão vigorosos, como o Estado Novo Brasileiro).

Em razão de o conceito de Estado Social ter sido associado ao arbítrio, sua noção é sucedida pela de Estado Democrático de Direito, o qual visa recuperar as liberdades civis e políticas e ao mesmo tempo em que procura concretizar a democracia econômica (diminuindo as desigualdades sociais), sintetizando justiça social, preocupações sociais, econômicas e políticas, bem como regulação estatal eficiente num contexto de preservação dos direitos fundamentais. Portanto, o sentido de “democracia” que aparece associada ao conceito de Estado de Direito ilustra preocupações tanto políticas (pertinentes ao processo de representação da vontade popular) como de liberdades civis (concernentes à manifestação do pensamento e demais itens da cidadania), além da democracia econômica (garantindo a participação de todos no produto da riqueza que ajudam a produzir), coincidindo com os Estados Sociais e Democráticos.

Nesse sentido, o Estado Democrático de Direito é o modelo de organização mais aparelhado para a concretização da justiça social, pois a Constituição fixa metas em normas programáticas a serem implementadas por planos plurianuais quadrienais, orçamentos anuais e suas

10 Há várias definições de “Estado de Direito”, como alerta Carl Schmitt, Legalidad y Legitimidad, trad. de José Díaz Garcia, Madrid, Aguilar, 1971, p. 23. Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, trad. de João Batista Machado, e revisado para a edição brasileira por Silvana Vieira, 2ª edição, São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1987, p. 328, a expressão “Estado de Direito” representa um pleonasmo, pois para ele Estado e Direito são conceitos idênticos. Sobre a evolução do antigo regime para o Estado de Direito, bem como o desenvolvimento para o Estado Democrático de Direito, conferir Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Estado de Direito e Constituição, 2ª edição, São Paulo, Ed. Saraiva, 1999, e José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, 21ª edição, Ed. Malheiros, São Paulo, 2002, págs. 112 e seguintes.

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correspondentes leis de diretrizes orçamentárias, permitindo o controle pelos interessados (inclusive da omissão, mediante a inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção). No entanto, convém observar que na origem doutrinária do conceito, o Estado Democrático de Direito seria voltado à realização do socialismo, mas ainda quando se falava nessa ideologia, ou no marxismo, esse conceito jurídico já vinha sendo adotado por países capitalistas, identificando social-democracia com Estado de Direito Democrático e Social, Estado Democrático e Social, e Estado Social e Democrático de Direito, como modo de equilibrar a valorização do trabalho e a livre iniciativa.11

Porém, as responsabilidades assumidas pelo Estado Democrático de Direito, especialmente em matéria social, de saúde e de previdência, acarretaram sobrecarga nos sistemas de financiamento estatal, criando graves dificuldades para sua viabilização. Agregue-se a isso a ineficiência dos instrumentos de gerenciamento do Estado em relação a segmentos complexos (energia e moeda, p. ex.), que exigem mecanismos mais técnicos, simples e ágeis para solucionar problemas de alta volatilidade, cujas decisões não devem ficar ao sabor da conveniência político-partidária.

Atualmente, o Estado Democrático de Direito no Brasil vive diversas crises, dentre elas uma de cunho financeiro-fiscal decorrente de sobrecarga de atribuições, outra no contexto político-institucional, além da crise no modelo político e crise de legitimidade, inclusive de moralidade. Em decorrência desses problemas, vivenciamos o debate-se sobre as reais funções do Estado contemporâneo, da separação dos poderes e do sistema federativo, bem como a modificação do sistema eleitoral e a intensificação de mecanismos de democracia participativa.12

Procurando enfrentar esse conjunto de crises, ao longo das décadas de 1980 e 1990, vivenciamos tentativas para a reorganização das atividades socioeconômicas, cujas medidas procuraram diminuir a participação direta do Estado na atividade socioeconômica, bem como alterar os instrumentos de regulação, evitando tanto quanto possível as inadequadas injunções políticas (para o que procedeu-se à agencialização, transferindo-se para autarquias dotadas de autonomia especial a execução técnica das decisões governamentais).

Além disso, dentre as indagações que aguardam resposta no início deste século XXI estão o papel do Estado Nacional na nova ordem comunitária e global, a visão do Direito Positivo e sua teoria normativista perante uma realidade policêntrica e o efeito da supranacionalidade em face da soberania nacional. Outra questão de expressiva importância é a força normativa de

11 Sobre o assunto, Elías Díaz, Estado de Derecho y Sociedad Democrática, Madrid, Editorial Cuadernos para el Diálogo, 1973, p. 29. Identificando-o com social-democracia, encontramos o Estado de Direito Democrático e Social, no art. 28, I, da Lei Fundamental de Bonn de 1949, o Estado Democrático e Social do art. 2º da Constituição francesa de 1958, e o Estado Social e Democrático de Direito, no art. 1º da Constituição espanhola de 1978. No art. 2º da Constituição portuguesa de 1976 consta o Estado de Direito Democrático, inicialmente com vocação socialista (cunhada após a Revolução dos Cravos), abandonada nas revisões constitucionais qüinqüenais. 12 Sobre o assunto, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Constituição e Governabilidade, São Paulo, Ed. Saraiva, 1995.

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tratados globais e comunitários em face das Constituições dos Estados Nacionais. Atualmente essa questão está pacificada no sistema constitucional brasileiro, em razão da introdução do § 3o no art. 5o da Constituição de 1988, promovida pela Emenda Constitucional 45/2004, atribuindo aos tratados internacionais sobre direitos humanos força normativa equivalente a emendas constitucionais, quando aprovados em dois turnos por maioria qualificada de 3/5 dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, embora ainda restem pendentes muitos outros pontos polêmicos.13

Em face de tantas dúvidas e crises, há pelo menos algumas certezas resultantes da internacionalização, tais como a globalização da economia (expressa na multinacionalização das empresas, na flexibilização do processo produtivo e na eliminação relativa de barreiras alfandegárias, o que se reflete em diversos acordos firmados no contexto da Organização Mundial do Comércio), a desconcentração do aparelho estatal (com a desformalização, deslegalização da área social, a privatização e a agencialização), a internacionalização do Estado (com o fortalecimento de organismos internacionais), e a expansão do Direito “Paralelo” àquele produzido pelos Estados (cuja natureza mercatória visa harmonizar as relações em face do pluralismo de ordenamentos nacionais).14

Perante essa nova ordem, os objetivos e desafios do Estado Democrático de Direito devem ser visualizados no contexto mais amplo, até porque as soluções necessárias para combater as crises nacionais sofrem pressões internas e internacionais, embora todas elas estejam relacionadas com o aperfeiçoamento dos instrumentos de gestão e regulação da economia.

13 Por exemplo, assumiriam força equivalente às emendas os tratados que cuidem de instituições políticas do Mercosul (tema tipicamente constitucional, mas que não versa especificamente sobre direitos humanos)? Os tratados internacionais sobre direitos humanos vigentes antes da edição da Emenda Constitucional 45/2004 devem ser “recepcionados” com força de emenda, ainda que não submetidos à votação em dois turnos, por maioria de 3/5? Nossa posição é favorável a essa “recepção”, o que fundamentamos na razão de ser desse instituto (que estudaremos na hermenêutica constitucional), mas admitimos que esse aspecto é controvertido, pois antes da Emenda Constitucional 45/2004, entendendo que os tratados sobre direitos fundamentais possuem natureza e força normativa equivalente aos preceitos constitucionais formais, havia vários acórdãos do Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, dentre eles a AC 601.880/4-SP, 1o TAC, 1a Câmara, Rel. Juiz Elliot Akel, cuidando da proibição da prisão do depositário infiel em razão do que dispõe o Pacto de San Jose da Costa Rica (Acordo Interamericano sobre Direitos Humanos). Já o Supremo Tribunal Federal, antes da Emenda Constitucional 45/2004, afirmou que esse ato internacional agregou-se ao Direito interno com força de norma infraconstitucional (p. ex., no HC 77.631/SC, Rel. Min. Marco Aurélio). Sobre o tema, CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto, Direito Internacional e Direito Interno: sua internação na proteção dos direitos humanos,em Instrumentos Internacionais de proteção dos direitos humanos, Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, p. 15 e seguintes, e PIOVESAN, Flávia, Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, 3ª edição, São Paulo, Ed. Max Limonad, 1997. 14 Sobre o assunto, José Eduardo Faria (coordenação), Direito e Globalização Econômica - Implicações e Perspectivas”, São Paulo, Ed. Malheiros, 1996; Norbert Reich, Intervenção do Estado na Economia (Reflexões sobre a Pós-Modernidade), Revista de Direito Público, n.º 94, p. 265; José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional citado,págs. 901 a 904; e Mário Pereira Neto, Direito-Política-Economia das comunidades Européias, São Paulo, Ed. Aduaneiras, 1994, p. 79 e 80.

15CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO IDIREITO CONSTITUCIONAL I - PROF. JOSÉ CARLOS FRANCISCO

QUESTÕES

1. O que diferencia os documentos jurídicos que estruturaram a sociedade e o Estado antes e após o século XVIII d.C.?

2. Quais as razões pelas quais a Magna Carta do Rei João Sem Terra é considerada o primeiro antecedente das Constituições Modernas?

3. Quais foram as primeiras Constituições que surgiram no mundo? 4. No que consiste o movimento denominado “constitucionalismo”, iniciado

no século XVIII? 5. Quais as características da fase liberal do constitucionalismo, vivida entre

o século XVIII e o início do século XX? 6. Quais as razões pelas quais o modelo liberal de organização não atingiu

seus objetivos? 7. Quais as características da fase social do constitucionalismo, iniciada no

limiar do século XX? 8. Quais Constituições no mundo e no Brasil refletem a fase social do

constitucionalismo? 9. Quais as características da internacionalização, e as tendências em face

do Direito Constitucional? 10. No que consiste o Estado Democrático de Direito?

DIREITOADMINISTRATIVO

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO I

1CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO I DIREITO ADMINISTRATIVO – PROFª CRISTINA APARECIDA FACEIRA MEDINA MOGIONI

O DIREITO ADMINISTRATIVO

CONCEITO

Para conceituar o Direito Administrativo, deve-se partir do significado e da classificação do próprio Direito. Segundo Hely Lopes Meirelles, Direito “é o conjunto de regras de conduta coativamente impostas pelo Estado”. (pág. 35). O Direito divide-se em Público e Privado. Este último regula as relações entre particulares. Vige, no Direito Privado, o princípio da autonomia da vontade, significando que as partes podem eleger livremente as finalidades a alcançar e utilizar todos os meios para atingi-las, desde que nenhum deles, finalidades e meios, sejam proibidos pelo Direito. O Direito Público, ao contrário, se ocupa dos interesses da sociedade como um todo, ou seja, dos interesses públicos. No Direito Público não vigora o princípio da autonomia da vontade, mas sim a idéia de função, de dever de atendimento do interesse público. O Direito Administrativo, como ramo do Direito Público, deve, de forma inescusável e irrenunciável, atender ao interesse público. Desempenha, com tal objetivo, uma das funções do Estado: a função administrativa. A função administrativa é desempenhada pelas diversas pessoas, órgãos e agentes que compõem a Administração Pública. É o Direito Administrativo, portanto, o ramo do direito público que cuida da função administrativa e das pessoas, órgãos e agentes que a desempenham. A máxima compreensão da função administrativa, das pessoas, órgãos e agentes incumbidos de exercê-la apresenta-se como meta a ser atingida durante todo o curso de Direito Administrativo.

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

O SENTIDO DO VOCÁBULO ADMINISTRAR

Para alguns, administrar envolve uma atividade superior de dirigir, traçar planos de ação, planejar, bem como uma atividade inferior de servir e executar. Para outros, administrar significa apenas a atividade subordinada de servir, executar. Tanto na administração privada, quanto na pública, o administrador está adstrito a uma vontade externa. Na administração privada, a vontade é de quem nomeou o administrador; na administração pública, a vontade decorre da lei. Em uma e outra, o administrador não é senhor, por isso não pratica atos de disposição, apenas de guarda, conservação e percepção de frutos.

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O SENTIDO DA EXPRESSÃO ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Retomando o conceito de administrar no sentido amplo e voltando-o para o Direito Público, pode-se identificar os atos de direção, gestão e planejamento com a função política ou de Governo, restando para os atos de execução, a função administrativa ou executiva. Assim é que, num sentido amplo, pode-se falar em Administração Pública tanto querendo significar a função política ou de Governo (direção, gestão, planejamento), como também querendo significar a função administrativa ou executiva. Num sentido estrito, no entanto, Administração Pública identifica-se apenas com a função administrativa ou executiva. A função política ou de Governo é objeto do Direito Constitucional, restando para o Direito Administrativo o estudo da função administrativa. Diante de tais considerações, conclui-se que a Administração Pública pode ser tomada num sentido amplo ou estrito, tanto objetivamente, quanto subjetivamente, bastando que se inclua ou não a função política ou de Governo e os órgãos que a desempenham, ao lado da função administrativa e de seus órgãos. No sentido subjetivo, formal ou orgânico, a Administração Pública, amplamente considerada, inclui os órgãos governamentais e os órgãos administrativos. Em sentido subjetivo estrito abrange apenas os órgãos administrativos. No sentido objetivo, material ou funcional, a administração pública amplamente considerada inclui a função política e a função administrativa. Em sentido objetivo estrito abrange somente a função administrativa. No sentido objetivo, pode-se definir a Administração Pública como faz Maria Sylvia Zanella Di Pietro: “atividade concreta e imediata que o Estado desenvolve, sob regime jurídico de direito público, para a consecução de interesses coletivos”. (pág. 61) Feitas estas considerações, resta indagar a qual ou quais Poderes de Estado cabe o exercício da função política ou de Governo e da função administrativa ou executiva. Segundo a clássica divisão de Poderes proposta pelo Barão de Montesquieu em Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário, pode-se identificar no Poder Executivo a atividade predominante ou típica de executar, traduzir a vontade da lei em ato concreto para atingir finalidade de interesse público, ou seja, a função administrativa. Todavia, não é de exclusividade do Poder Executivo o exercício da função administrativa. Também o Legislativo e o Judiciário praticam atos administrativos, isto é, desempenham a função administrativa quando, por exemplo, exercem o poder disciplinar sobre seus servidores ou quando fazem licitação para posterior contratação.

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Aliás, cada um dos Poderes tem sua função típica ou predominante, mas também funções secundárias. A função legislativa caracterizada pela elaboração de normas gerais e abstratas, que se destinam a todos indistintamente, cabe de maneira típica ou predominante ao Poder Legislativo, mas também aos Poderes Executivo e Judiciário, de forma atípica. O Executivo elabora medidas provisórias, leis delegadas (arts. 62 e 68 da CF); o Judiciário elabora seus Regimentos Internos. Por fim, a função jurisdicional. Esta se caracteriza, basicamente, pela aplicação coativa da lei para solução de casos concretos, com força de coisa julgada. Cabe o exercício desta função predominantemente (ou tipicamente) ao Poder Judiciário. No entanto, também o Legislativo e o Executivo julgam. Exemplo do exercício da função legislativa pelo primeiro é o julgamento do Presidente da República pelo Senado Federal nos crimes de responsabilidade (art. 52, I, da CF). O Executivo igualmente julga conhecendo dos recursos administrativos decorrentes de autuações fiscais, através dos Conselhos de Contribuintes, do Tribunal de Impostos e Taxas. Nestes casos, as decisões do Legislativo e do Executivo podem ser revistas no Poder Judiciário, diante do disposto no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal. Assim, não se pode atribuir com exclusividade a função administrativa a nenhum dos Poderes, embora se possa identificá-la como função predominante ou típica do Poder Executivo. Resta indagar a quem compete a função política ou de Governo, a que abrange atribuições decorrentes diretamente da Constituição e por esta se regulam; identifica-se com a noção de direção, planejamento e fixação de metas num dado Estado. Como escreve Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a função política é afeta aos Poderes Executivo e Legislativo, excluindo-se o Poder Judiciário. Essa também é a opinião de Celso Antônio Bandeira de Mello. O direcionamento de uma Nação, a escolha das metas a atingir, o planejamento, enfim, caberiam apenas a tais Poderes, já que implica função exercida de forma apriorística. Primeiramente planeja-se, após passa-se à execução. Exerce-se a função política, depois a administrativa. Neste sentido, o legislador constituinte, ao estabelecer o dever do Estado de garantir o atendimento em creche e pré-escola de crianças de zero a seis anos (art. 208, IV, da CF), exerceu a função política. Ou seja, determinou a diretriz a ser seguida. O Poder Executivo, no caso, é responsável por dar efetividade à vontade do legislador, dotando a coletividade de creches, admitindo professores, abrindo matrículas, etc., exercendo, destarte, a função administrativa. No Regime Presidencialista, em especial, também o Executivo exerce a função política. Recentemente acompanhou-se o

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lançamento de um programa de governo, o fome zero, onde se fixou uma diretriz, o ataque à miséria e à fome. Isso foi feito pelo Executivo através do exercício da função política, cabendo, em seguida, predominantemente a ele, atingir a finalidade de interesse público eleita, mediante o exercício da função administrativa. Fácil de se concluir, agora, porque o Judiciário não exerce a função política, segundo a opinião dos autores supra citados. O Judiciário, ainda que submeta os demais Poderes pelo controle de legalidade, só o faz “a posteriori” e, quando isso ocorre, está exercendo sua função típica, a de dizer a lei ao caso concreto. Não planeja, não fixa metas e não estabelece diretrizes para toda uma Nação.

CARACTERÍSTICAS DAS FUNÇÕES LEGISLATIVA, JUDICIÁRIA E EXECUTIVA

Convém, ainda, traçar as características da função administrativa, em cotejo com as funções legislativa e judiciária:

Características da função legislativa:

a. é abstrata: porque as leis se dirigem a todos, e não a uma pessoa em específico;

b. é inovadora do mundo jurídico, pois somente a lei pode criar direitos e obrigações (princípio da legalidade);

CARACTERÍSTICAS DA FUNÇÃO JURISDICIONAL

a. é concreta: porque o Juiz aplica a lei a um caso específico; b. não é inovadora do mundo jurídico, pois o direito é aplicado pelo Juiz, não

criado por ele; c. é indireta ou imparcial: porque o Estado-Juiz não é parte, mas eqüidistante

das partes; d. é irreversível ou definitiva: pois objetiva alcançar a coisa julgada, isto é,

uma situação de intangibilidade jurídica;

CARACTERÍSTICAS DA FUNÇÃO ADMINISTRATIVA

a. é concreta: porque aplica a lei ao caso concreto; em regra aplica-se a lei ao caso concreto. Excepcionalmente, porém, pode existir ato administrativo praticado diretamente com fulcro na Constituição Federal;

b. não-inovadora: os atos administrativos limitam-se a aplicar a lei ao caso concreto. Somente a atividade legislativa é que se apresenta como inovadora do mundo jurídico;

c. é direta ou parcial: porque o Estado exerce tal atividade como parte interessada;

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d. é subordinada: está sujeita a controle jurisdicional. As decisões administrativas estão sempre sujeitas à revisão pelo Poder Judiciário. A coisa julgada administrativa impede a revisão administrativa do ato, mas não a revisão pelo Judiciário. No entanto, se existir decisão administrativa final a favor do administrado, não poderá a administração pública pretender a revisão judicial do ato administrativo;

e. é sujeita a um regime jurídico de direito público: informado pelo binômio “prerrogativas e sujeições”. As prerrogativas conferem à Administração Pública, tão somente por conta do interesse público de que deve se desincumbir, uma posição de supremacia em relação aos particulares, enquanto que as sujeições, notadamente a obediência ao princípio da legalidade, visam assegurar a liberdade dos cidadãos.

f. é exercida de ofício: independe de provocação da parte.

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QUESTÕES

1. Conceitue Direito Administrativo. 2. Qual a diferença e a semelhança entre a Administração Pública e a

Administração privada? 3. Conceitue a Administração Pública em sentido amplo e em sentido

estrito.4. Qual o ramo do direito que disciplina a função política ou de governo? 5. Explique a abrangência da função administrativa nos seguintes sentidos: 6. subjetivo amplo; 7. subjetivo estrito; 8. objetivo amplo; 9. objetivo estrito. 10. Conceitue a Administração Pública no sentido objetivo. 11. A qual ou quais Poderes do Estado cabe o exercício da função

administrativa ou executiva? 12. O que é função política ou de governo? Quais os poderes que exercem

essa função? 13. Por que o Poder Judiciário não exerce função política ou de governo? 14. Cite as características da função legislativa, da função jurisdicional e da

função executiva.

DIREITOTRIBUTÁRIO

CURSO A DISTÂNCIA MÓDULO I

1CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO I DIREITO TRIBUTÁRIO- PROFºs. GUILHERME ADOLFO DOS SANTOS MENDES e

DIMAS MONTEIRO DE BARROS

DIREITO TRIBUTÁRIO - CONCEITO

Direito Tributário é o ramo da Dogmática Jurídica que estuda o conjunto de todas as normas que versem direta ou indiretamente sobre as funções de arrecadar, fiscalizar e instituir “tributos”.

Mas o que é um tributo? Sem uma clara definição deste ente, não é possível determinarmos com precisão o próprio conceito de Direito Tributário. Passamos então a este ponto.

TRIBUTO

CONCEITO

Não há grandes divergências, no País, acerca do conceito de tributo. Na verdade, o próprio direito positivo já traz uma definição, de formulação do grande Rubens Gomas de Souza, no artigo 3° do Código Tributário Nacional. É nela que iremos fixar nossas atenções:

Art. 3º – Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA

O tributo é uma prestação pecuniária, vale dizer, é em dinheiro. Quaisquer outras prestações devidas ao Poder Público pelos particulares não se enquadram no conceito de tributo.

Assim, o serviço militar obrigatório, o de mesário em eleições, o de jurado não são tributos, pois não são exigências em dinheiro, mas sim em trabalho.

COMPULSÓRIO

Para ser tributo não basta a prestação ser em dinheiro (pecuniária), há de ser compulsória, que é sinônimo de obrigatória.

Doações que algum cidadão venha a fazer ao Estado, contrapartidas contratuais, como aluguéis e aforamentos de imóveis públicos, não são tributos. Tais prestações dependem da vontade do particular. Não são, portanto, estritamente compulsórias. EM MOEDA OU CUJO VALOR NELA SE POSSA EXPRIMIR

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DIMAS MONTEIRO DE BARROS

Há quem entenda ser redundante a primeira parte desta expressão. Já que a prestação é pecuniária, não haveria por que repetir que deva ser em moeda. E o segundo trecho seria contraditório, pois jogaria por terra toda a força de estabelecer o tributo como de natureza pecuniária.

Existem ainda aqueles que entendem necessária toda a expressão, mas justificam tal necessidade apenas mediante situações casuísticas. Por exemplo, o segundo trecho possibilitaria o pagamento em cheque. Este exemplo, contudo, além de trazer um erro (não é o depósito do cheque que extingue o tributo, mas sim o seu resgate; a prestação, neste caso também é em dinheiro), não serve para sistematizar o entendimento acerca do trecho analisado.

Consideramos que a expressão deva ser entendida pelo pólo do devedor. Como a prestação é pecuniária, o credor só pode exigir dinheiro para satisfazê-la. O devedor, por outro lado, deve em regra entregar dinheiro (moeda), mas se abre a possibilidade de a lei permitir a satisfação da dívida com algo que não seja moeda, mas nela seu valor possa ser expresso.

Não pode o Poder Público, por exemplo, exigir sacos de feijão como imposto de renda do ruralista plantador desta leguminosa. Só pode exigir dinheiro.

A lei, porém, pode excepcionalmente autorizar o pagamento do tributo com algo que não seja moeda. Com efeito, algumas legislações do ICMS permitem a liquidação deste tributo com a entrega de mercadorias. Em alguns municípios, tem-se permitido o pagamento de IPTU com o próprio trabalho de seus devedores.

Cumpre ainda destacar que a execução fiscal (a cobrança judicial do tributo não pago) não é exemplo de pagamento de tributo com algo que não seja dinheiro. Não são os bens do devedor que extinguem a dívida tributária, mas sim o dinheiro fruto da sua venda em hasta pública.

NÃO CONSTITUA SANÇÃO DE ATO ILÍCITO

Tributo não é multa. Sempre que o Estado lança mão de sanções pecuniárias para coibir a ocorrência de atos ilícitos, não se tratará de tributo e ao seu regime tal sanção não pertencerá.

Assim, a multa de trânsito, as aplicáveis a empresas que causem dano ao meio ambiente não são tributos, pois constituem sanção de ato ilícito.

Isso não implica que o tributo não possa ser usado como meio para desestimular certas atividades consideradas desinteressantes pelo Poder Público. Pode ser reduzido o interesse em se manter latifúndios pelo aumento progressivo do ITR (Imposto sobre a propriedade territorial rural) em função do tamanho da área, pois possuir grandes áreas rurais não é ato ilícito (proibido pelo Direito).

Outro ponto merece destaque. Atos ilícitos não estão fora

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das hipóteses de cobrança de tributos. Se alguém aufere renda mediante a prática de atos proibidos, como o lenocínio, o jogo do bicho e até mesmo o tráfico de entorpecentes, deve pagar imposto da mesma forma como aquele que obteve seu sustento pela prática da medicina, da engenharia ou da advocacia.

Temos presente o Princípio do pecunia non olet (o dinheiro não cheira), que autoriza a cobrança de tributos, abstraindo-se completamente da licitude dos atos ou fatos que lhe deram causa.

É famoso o episódio americano da prisão definitiva de Al Capone, em 1931 –condenado a 11 anos de prisão em Alcatraz – que se deu, não em função de seus atos mafiosos, mas sim por sonegação fiscal do imposto de renda. No Brasil, há exemplos similares bem conhecidos.

INSTITUÍDA EM LEI

A instituição (criação) de tributo deve advir diretamente da lei. É o Princípio da Legalidade Tributária, que será visto com maiores detalhes adiante.

Assim, não pode o Poder Público, por exemplo, criar tributo mediante decreto, portarias e toda sorte de atos infralegais.

COBRADA MEDIANTE ATIVIDADE ADMINISTRATIVA PLENAMENTE VINCULADA

Os atos administrativos podem ser classificados em discricionários e vinculados. Estes devem respeitar estritamente o que prescreve a lei, que não autoriza qualquer margem de avaliação de conveniência e oportunidade pelo agente público.

Já a discricionariedade permite maior flexibilidade à administração, que dispõe de opções dentro de parâmetros fixados em lei.

A atividade de cobrança de tributos é vinculada. Não pode o agente fiscal deixar de cobrar um determinado valor a título de tributo por considerar pouco conveniente naquele momento. Também não dispõe de opções no cálculo do montante a ser exigido.

É por esse motivo que a maior parte da doutrina entende não serem os direitos antidumping tributos, uma vez que a autoridade administrativa competente, segundo uma análise de conveniência e oportunidade, pode dispensar o pagamento destes valores.

Isto não implica que toda a atividade administrativa voltada para a administração de tributos seja do tipo vinculada. A atividade de fiscalização, por exemplo, não o é. Seu exercício pauta-se pelos Princípios da Moralidade, da Impessoalidade e da Eficiência (deve-se evitar a realização de fiscalizações, cujo retorno em tributos seja menor que o gasto público envolvido na atividade), mas não há parâmetros estritos na legislação que fixe

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quais pessoas e em quais situações devam ser fiscalizadas. Exemplo disto são as famosas malhas do imposto de renda de pessoa física. Entregamos nossas declarações todo ano e depois ficamos ansiosos para saber se elas ficaram ou não retidas para análise por um Auditor Fiscal.

NATUREZA JURÍDICA

Saber a natureza jurídica de um determinado instituto do direito implica precisar o que ele apresenta de essencial para sua identificação. É, portanto, questão típica da doutrina. No entanto, com relação ao tributo, foi positivado no próprio CTN. Vejamos:

Art. 4º – A natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevantes para qualificá-la: I - a denominação e demais características formais adotadas pela lei; II - a destinação legal do produto da sua arrecadação.

O artigo prescreve como essencial para a fixação da natureza jurídica do tributo o seu fato gerador, que aqui é tomado como a hipótese prevista na lei para o surgimento do tributo. Por exemplo, o fato gerador do imposto de renda é a aquisição de renda. Se recebermos salário, lucros, aluguéis, etc, deveremos pagar o IR.

A natureza específica do tributo não dependerá da sua denominação, nem de qualquer outro aspecto formal. Assim, pouco importa se, ao invés de denominar de imposto de renda, a lei chamar de taxa pelo exercício de profissão o valor cobrado de alguém que receba renda pela prática de um ofício. Tal tributo será imposto de renda e como tal juridicamente será tratado. Estará submetido ao regime jurídico dos impostos e não ao de taxa.

Cumpre observar ainda que, na doutrina moderna, a natureza jurídica de um tributo não deve ser analisada apenas pelo seu fato gerador, mas também pela base de cálculo e se houver divergência entre os dois critérios, deve prevalecer o da base de cálculo.

Tal posição tem sido acolhida pela jurisprudência e positivada por diplomas mais recentes, como a própria Constituição de 1988 ao prescrever expressamente que “as taxas não poderão ter base de cálculo própria de impostos”.

A destinação legal do produto da arrecadação é outro aspecto que deve ser desconsiderado para determinação da natureza jurídica de um tributo.

Veremos adiante que impostos são cobrados

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independentemente de qualquer atividade estatal relativa ao contribuinte, enquanto taxas dependem, por exemplo, da prestação de serviços por parte do Estado. Em finanças públicas, aprende-se que a cobrança de taxas visa remunerar este serviço prestado, enquanto a de impostos visa o custeio de gastos gerais da administração. Não obstante, para a determinação da natureza jurídica pouco importa o destino legal deste dinheiro.

A Polícia Federal, por exemplo, cobra uma taxa pela expedição de passaporte. Este dinheiro, no entanto, não é direcionado para um fundo de compra de passaportes e nem mesmo para manutenção da Polícia Federal, mas sim para o caixa único do Tesouro. Nem por isso, a taxa de emissão de passaportes tem natureza jurídica de imposto.

Entendem alguns que, com o advento da Constituição de 1988, a desconsideração da destinação para identificação da natureza jurídica do tributo foi mitigada, em especial no que se refere aos empréstimos compulsórios e às contribuições especiais.

Tal posição tem sido aceita pela Jurisprudência, inclusive pela do Supremo Tribunal Federal. Adiante, ao tratarmos das espécies tributárias teceremos maiores considerações a respeito.

ESPÉCIES

O tema espécies tributárias não é relevante apenas do ponto de vista didático. O direito tributário positivo separa os tributos em espécies e, dependendo da forma como as identificamos, a interpretação de diversos institutos jurídicos é profundamente alterada.

Várias são as correntes acerca deste assunto. Umas identificam apenas duas espécies, outras três. Há ainda aquelas que assinalam quatro e até cinco.

Fixaremos nossa atenção, porém, apenas na teoria das três espécies (ou tricotômica) e na das cinco espécies.

A primeira (tricotômica) é a de maior destaque na doutrina. Já a segunda é a atualmente adotada pelo STF.

A TEORIA TRICOTÔMICA

Realmente, o CTN assevera muito firmemente que:

Art. 5º – Os tributos são impostos, taxas e contribuições de melhoria.

Com redação semelhante apresenta-se o artigo 145 da Constituição Federal:

Art. 145 – A União, os Estados, o Distrito Federal e os

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Municípios poderão instituir os seguintes tributos: I - impostos; II - taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição; III - contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas.

Tais dispositivos servem de base muito firme para aqueles que defendem a teoria tricotômica e, antes de passarmos a outra posição, faremos um breve estudo de cada uma das espécies.

IMPOSTOS

O artigo 16 do CTN traz o conceito legal de imposto:

Art. 16 – Imposto é o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte.

A cobrança de imposto não está vinculada a qualquer atividade do Poder Público em favor de quem o deve pagar.

A situação de alguém estar empregado e auferir no final do mês o seu salário não está relacionada a qualquer atividade estatal. No entanto, aos cofres públicos é dirigida uma parcela desta renda na forma de imposto.

É comum ouvir de um proprietário de automóvel: “Pago o IPVA, mas as ruas continuam esburacadas” Ou ainda: “Pago IPVA e ainda tenho que arcar com pedágios pelo uso das estradas”.

Não obstante, uma coisa não está relacionada à outra. O IPVA (Imposto sobre a propriedade de veículo automotor) tem como fato gerador a propriedade do carro. Só isso! É uma medida de grandeza da potencialidade econômica (tecnicamente: capacidade contributiva) de alguém para arcar com os custos do Estado.

A circunstância de o Poder Público disponibilizar ou não para aquele contribuinte vias transitáveis não interessa para a cobrança deste e nem de qualquer outro imposto.

TAXAS

As taxas são de dois tipos: as de serviços e as de polícia (ou de fiscalização). Além do artigo 145, inciso II, da CF, que assim o prescreve, podemos encontrar a mesma disposição no artigo 77 do CTN:

Art. 77 – As taxas cobradas pela União, pelos Estados, pelo

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Distrito Federal ou pelos Municípios, no âmbito de suas respectivas atribuições, têm como fato gerador o exercício regular do poder de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição.

Já o artigo 78 estabelece o que deve ser entendido por Poder de Polícia que possibilita a cobrança da taxa, assim como seu exercício regular:

Art. 78 – Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou a abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder.

Vemos que se trata do Poder de Polícia Administrativo, que não deve ser confundido com a atividade policial exercida pelas Polícias Civis, Militares e Federal.

São exemplos típicos de Poder de Polícia a vigilância sanitária e a fiscalização ambiental. Assim, o valor que se paga para obter uma licença de pesca é uma taxa, assim como aquele para se obter um alvará de funcionamento de um restaurante.

Quanto ao segundo tipo de taxas, que são as de serviços, o CTN também apresenta dispositivo minucioso sobre o tema:

Art. 79 – Os serviços públicos a que se refere o artigo 77 consideram-se: I - utilizados pelo contribuinte: a) efetivamente, quando por ele usufruídos a qualquer título; b) potencialmente, quando, sendo de utilização compulsória, sejam postos à sua disposição mediante atividade administrativa em efetivo funcionamento; II - específicos, quando possam ser destacados em unidades

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autônomas de intervenção, de unidade, ou de necessidades públicas;III - divisíveis, quando suscetíveis de utilização, separadamente, por parte de cada um dos seus usuários.

O primeiro ponto a ser destacado é que os serviços devem ser públicos.

Saber o que é ou não serviço público é tema dos mais controversos e amplos do Direito Administrativo. Como apenas para fins didáticos os ramos da dogmática jurídica são autônomos, toda esta controvérsia vai permear a cobrança de taxas sobre serviços. Não obstante, entendemos que ela é própria para ser discutida pelos Administrativistas.

Para nossas finalidades, basta saber que a taxa só pode ser cobrada pela prestação de serviço público.

A utilização do serviço não precisa ser efetiva para que se possa cobrar taxa. Obter um passaporte por mim solicitado à Polícia Federal é uma utilização efetiva. Já a utilização do serviço de coleta de lixo de minha residência não será efetiva, quando estou viajando de férias ou mesmo quando me recuso a deixar os dejetos para serem retirados. Mesmo assim enseja a cobrança de taxa, pois tal serviço, por ser de utilização compulsória, é considerado utilizado potencialmente.

Note-se que a obrigação de estar em pleno funcionamento impede, por exemplo, o Poder Público de cobrar taxa para implantar um serviço de coleta de lixo.

Os serviços devem ainda ser específicos e divisíveis. Não se pode cobrar taxa pela prestação de serviços gerais, caso não seja possível especificar que tipo de serviço foi exatamente prestado. Já pelo serviço de iluminação pública não se pode também cobrar taxa, uma vez que é indivisível, ou seja, não é possível verificar o quanto cada pessoa se beneficia.

TAXA, TARIFA E PREÇO PÚBLICO

Tema deveras controverso é o de fixar as fronteiras conceituais entre taxa, tarifa e preço público. Antes, porém, de o enfrentarmos, cumpre apresentar a sua relevância.

Classificar esta ou aquela figura jurídica neste ou naquele instituto é fundamental para identificar a qual regime jurídico ela irá se submeter. Por exemplo, se afirmo que o montante a ser pago pelo serviço de água e esgotos da minha residência é uma taxa, classifico-o como um tributo e, portanto, deve a ele se aplicar todo o regime jurídico tributário. Assim, o valor não pode ser aumentado senão diretamente pela lei (Princípio da Estrita Legalidade), que deve ser publicada no ano anterior (Princípio da Anterioridade). Se, por outro lado, classifico-o como um preço público, o

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aumento pode ser imediato e por ato infra-legal. Nada obstante, neste tópico não iremos apresentar o regime

jurídico das taxas, que é o tributário. Sua extensão e importância exigem ampla análise, que faremos ao longo do trabalho. Os limites ao poder de tributar, por exemplo, tratados em capítulo próprio, o compõem. Também não será abordado em minúcias o regime de preços e tarifas. Trata-se de tema do Direito Financeiro.

Muitos são os critérios apontados pelos juristas de Direito Financeiro para diferenciar taxas de tarifas e preços públicos. Dentre todos, o que mais se destaca é o da compulsoriedade, uma vez que é o adotado pelo Supremo Tribunal Federal.

Pois bem, segundo este critério, taxa decorre de serviços públicos de utilização compulsória, enquanto preço público é a remuneração paga pelo uso de serviço público não compulsório. Na verdade, o preço engloba tudo o que o Estado recebe do particular em contraprestação de algo a ele fornecido. A idéia subjacente a preço é a de venda, seja de um serviço, de um bem ou de seu uso. Já a qualificação de “público” refere-se à pessoa que recebe o valor. São preços públicos, portanto, não só o valor cobrado por serviços públicos facultativos, mas também pela venda de patrimônio público ou do seu uso (um aluguel de imóvel público, por exemplo).

Já o termo “tarifa” é comumente empregado por muitos autores e na jurisprudência simplesmente como sinônimo de preço público. No entanto, outra acepção reconhecida é o de preço cobrado do usuário de serviços públicos prestados por empresas concessionárias e permissionárias. Esta é inclusive a dicção da nossa Carta Constitucional ao usar a expressão “política tarifária” (artigo 175, parágrafo único, inciso III). Assim, podemos distinguir preço público de tarifa em função da natureza da pessoa que faz a exigência: preço pelo Estado; tarifa por concessionário ou permissionário.

Em suma, a taxa é cobrada em decorrência de serviços públicos compulsórios. Já a tarifa e o preço público, dos facultativos. Este pelo próprio Estado, aquela pelas empresas a ele associadas (concessionárias e permissionárias).

Mas o que significa exatamente um serviço público ser de natureza compulsória? Como podemos distinguir um serviço compulsório de um facultativo?

Ser compulsório não implica que o serviço deve ser necessariamente usado pelo particular e que não haveria meios de ele evitar a exigência da taxa. Significa apenas que, para usufruir de um determinado benefício, não pode fazê-lo senão mediante aquele serviço oferecido pelo Poder Público.

Ninguém está obrigado a buscar a garantia de seus direitos contra resistência alheia. Pode simplesmente deles abrir mão. O credor de quantia não paga na data aprazada, por exemplo, pode, simplesmente, conformar-se com o prejuízo. No entanto, se desejar receber o crédito, não

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poderá forçar o devedor diretamente ou mediante qualquer outra forma que não o serviço jurisdicional prestado pelo Estado. Neste caso, deverá pagar as “custas”, que são um típico exemplo de “taxa” e não de “preço” ou “tarifa”.

Já para nos locomovermos de um ponto ao outro de uma localidade, não estamos obrigados a usar o serviço de transporte público. Podemos obter o mesmo resultado pela utilização de nosso carro, uma bicicleta, enfim. Neste caso, o valor pago pelo serviço público de transporte não será uma taxa, mas sim um preço público se prestado diretamente pelo Estado, ou uma tarifa se por empresa privada autorizada.

Apenas por hipótese, caso a Lei impeça a locomoção por qualquer meio que não seja aquele prestado pelo Estado, o valor cobrado torna-se uma taxa.

CONTRIBUIÇÕES DE MELHORIA

É comum com a execução de obras públicas – tais como construção de novas vias, metrô, parques, e até pavimentação de ruas – a valorização dos imóveis próximos.

Em finanças públicas, algumas razões são apresentadas para justificar a cobrança desse tributo: (i) ressarcir os cofres públicos pela despesa com a obra, (ii) evitar a especulação imobiliária ou ainda (iii) reduzir a pressão política sobre agentes públicos para que construam neste ou naquele lugar.

Para o Direito Tributário vai interessar apenas que a cobrança só pode ser realizada se houver valorização em decorrência da obra.

Com a redação da nova Constituição que não estipula expressamente a valorização como condição para instituir Contribuição de Melhoria, mas apenas que ela seja “decorrente de obras públicas”, alguns passaram a defender que este tributo possa ser cobrado independentemente de valorização.

Essa posição, porém, não se sustenta! A valorização é inerente à natureza desse tributo, está implícita no termo “melhoria”.

Aliás, não só a valorização é condição para a instituição, como é seu limite. O valor da contribuição de melhoria não pode ser superior ao do quanto o imóvel se valorizou em decorrência da obra.

Em São Paulo, há exemplos de obras, como o “Minhocão”, que depreciaram os prédios vizinhos. Imagine que, além de ver seu apartamento desvalorizado, o proprietário ainda tenha que pagar algo por isto.

O CTN, em seu artigo 81, consagra expressamente a valorização de cada imóvel como limite individual e ainda estabelece mais um limite: o total que equivale ao montante da despesa com a obra. Ou seja, não pode o Poder Público arrecadar mais com a contribuição de melhoria do que gastou:

Art. 81 – A contribuição de melhoria cobrada pela União,

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pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios, no âmbito de suas respectivas atribuições, é instituída para fazer face ao custo de obras públicas de que decorra valorização imobiliária, tendo como limite total a despesa realizada e como limite individual o acréscimo de valor que da obra resultar para cada imóvel beneficiado.

Já o artigo 82 traça ainda diversos requisitos formais que a Lei instituidora da Contribuição de Melhoria deve estabelecer para a sua cobrança regular:

Art. 82 – A lei relativa à contribuição de melhoria observará os seguintes requisitos mínimos: I - publicação prévia dos seguintes elementos: a) memorial descritivo do projeto; b) orçamento do custo da obra; c) determinação da parcela do custo da obra a ser financiada pela contribuição; d) delimitação da zona beneficiada; e) determinação do fator de absorção do benefício da valorização para toda a zona ou para cada uma das áreas diferenciadas, nela contidas; II – fixação de prazo não inferior a 30 (trinta) dias, para impugnação pelos interessados, de qualquer dos elementos referidos no inciso anterior; III – regulamentação do processo administrativo de instrução e julgamento da impugnação a que se refere o inciso anterior, sem prejuízo da sua apreciação judicial.

§ 1º – A contribuição relativa a cada imóvel será determinada pelo rateio da parcela do custo da obra a que se refere a alínea c, do inciso I, pelos imóveis situados na zona beneficiada em função dos respectivos fatores individuais de valorização.

§ 2º – Por ocasião do respectivo lançamento, cada contribuinte deverá ser notificado do montante da contribuição, da forma e dos prazos de seu pagamento e dos elementos que integram o respectivo cálculo.

TEORIA DAS CINCO ESPÉCIES

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No seio do Sistema Tributário Nacional, há ainda os empréstimos compulsórios e as contribuições especiais, cuja natureza de tributo é hoje praticamente pacífica. O problema reside em saber se são espécies autônomas.

Tanto os empréstimos compulsórios como as contribuições especiais caracterizam-se pela peculiaridade de apresentar destinação específica. Assim, diante do preceito estabelecido no artigo 4° do CTN, que estabelece ser irrelevante para a qualificação jurídica do tributo a sua destinação legal, os adeptos da Teoria Tricotômica afirmam que tais tributos não são espécies autônomas. Ou seja, um empréstimo compulsório poderia ser de qualquer das três espécies vistas anteriormente (impostos, taxas ou contribuições de melhoria), dependendo do seu fato gerador. Assim, se o fato gerador do empréstimo compulsório fosse uma situação independente de qualquer atividade estatal específica relativa ao contribuinte, tratar-se-ia de um imposto; se fosse a prestação de um serviço público, uma taxa; e se fosse decorrente de obra pública, de contribuição de melhoria. O mesmo se daria quanto às contribuições especiais.

Já para os que adotam a teoria das cinco espécies (posição do STF), a despeito do que prescreve o CTN, a nova Constituição, ao estabelecer expressamente destinação específica ao produto arrecadado com estes tributos, os teria destacado como espécies autônomas em relação aos impostos, taxas e contribuições de melhoria. Assim, onde na Carta Constitucional se lê, por exemplo, imunidade de imposto, não estão abarcados os empréstimos compulsórios e nem as contribuições especiais.

EMPRÉSTIMOS COMPULSÓRIOS

Os empréstimos compulsórios são previstos pelo artigo 148 da Constituição Federal:

Art. 148 – A União, mediante lei complementar, poderá instituir empréstimos compulsórios: I - para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência; II - no caso de investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional, observado o disposto no art. 150, III, "b". Parágrafo único. A aplicação dos recursos provenientes de empréstimo compulsório será vinculada à despesa que fundamentou sua instituição.

Da leitura do dispositivo é importante destacar vários aspectos. Só a União pode criar empréstimos compulsórios. Os Estados, o

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Distrito Federal e os Municípios não podem em nenhuma hipótese. Em qualquer caso, a União só pode instituir este tributo

mediante Lei Complementar. Não pode fazê-lo, portanto, por lei ordinária. Só possibilitam a instituição de empréstimo compulsório as

duas hipóteses previstas nos incisos I e II. Assim, o inciso III, artigo 15 do CTN, não foi recepcionado, vale dizer, não há autorização constitucional para a União instituir empréstimo compulsório no caso de “conjuntura que exija a absorção temporária de poder aquisitivo”, como preceitua o citado dispositivo.

Empréstimo compulsório, estabelecido com base na hipótese prevista no inciso II, só pode ser cobrado no exercício financeiro seguinte ao da publicação da lei que o instituiu ou aumentou, vale dizer, sua cobrança está abarcada pelo Princípio da Anterioridade. Já o que for criado com fundamento no inciso I pode ser cobrado imediatamente.

Os valores arrecadados com este tributo devem ter destinação específica, qual seja, para cobrir as despesas que motivaram sua instituição.

Por se tratar de empréstimo, os valores arrecadados devem ser no futuro devolvidos. É o parágrafo único, artigo 15 do CTN, que trata deste aspecto, mas de forma bastante genérica: “A lei fixará obrigatoriamente o prazo do empréstimo e as condições de seu resgate”. Infelizmente não há nem na Constituição, nem no CTN, fixação de prazo máximo para o resgate.

CONTRIBUIÇÕES ESPECIAIS

As contribuições especiais estão previstas no artigo 149 da Constituição Federal e dividem-se em três tipos: (i) sociais, (ii) de intervenção no domínio econômico, e (iii) de interesse das categorias profissionais ou econômicas.

Este tema, contudo, é de enorme complexidade. Por isso sua abordagem completa será efetuada em capítulo próprio.

QUESTÕES

14CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO I DIREITO TRIBUTÁRIO- PROFºs. GUILHERME ADOLFO DOS SANTOS MENDES e

DIMAS MONTEIRO DE BARROS

1. O que é tributo e quais as suas características? 2. A lei pode permitir que o tributo seja pago em trabalho? Justifique. 3. Qual é a diferença entre multa e tributo? 4. O traficante que aufere rendimentos deve pagar tributo? O que é o

princípio do “pecúnia non olet”? 5. O tributo pode ser criado por decreto? 6. A cobrança do tributo é um ato administrativo vinculado ou discricionário? 7. Toda atividade voltada para a administração de tributos é vinculada? 8. Quais os fatores essenciais para a fixação da natureza jurídica do

tributo?9. De acordo com a teoria tricotômica, quais as espécies de tributo? 10. O que é imposto? 11. O que é taxa? 12. Quais as espécies de taxa? 13. Para a cobrança da taxa, é essencial a utilização do serviço público? 14. É possível taxa para a cobrança do serviço de iluminação pública? 15. Qual a importância da distinção entre preço público e taxa? 16. Qual a diferença entre preço público e taxa, consoante o STF? 17. O preço público refere-se apenas a valores cobrados por serviços

públicos facultativos? 18. Qual a diferença entre preço público e tarifa? 19. O que é contribuição de melhoria? 20. A valorização do imóvel é essencial para a cobrança de contribuição de

melhoria?21. Quais os limites da cobrança da contribuição de melhoria? 22. O que é a teoria das cinco espécies e qual o seu fundamento? 23. Por que a teoria tricotômica não considera o empréstimo compulsório e

as contribuições especiais categorias autônomas de tributo? 24. Quem pode instituir empréstimo compulsório? 25. Que tipo de lei pode instituir o empréstimo compulsório? 26. Em que hipóteses o empréstimo compulsório pode ser instituído? 27. O princípio da anterioridade é aplicável ao empréstimo compulsório? 28. Qual o prazo para restituição do empréstimo compulsório? 29. Quais são as espécies de contribuições especiais?

1CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO I TESTES

LICC, DIREITO CIVIL, DIREITO COMERCIAL E DIREITO PROCESSUAL CIVIL

1. Assinale a alternativa correta: a. A Lei de Introdução ao Código Civil faz parte do Código Civil. b. No Brasil, o sistema de vigência é progressivo. c. Os atos administrativos entram em vigor imediatamente. d. No Brasil, admite-se a repristinação tácita.

2. Assinale a alternativa correta: a. O nascituro é dotado de personalidade jurídica. b. A personalidade civil da pessoa física começa do nascimento. c. A personalidade é regida pela lei da nacionalidade. O Ministério Público não é pessoa jurídica.

3. Assinale a alternativa incorreta: a. Na comoriência, os comorientes não herdam entre si. b. O espólio tem legitimidade “ad processum”. c. O Código Civil adotou a teoria natalista. d. O Código Civil adotou a teoria “ultra vires”.

4. Assinale a alternativa correta: a. A família é dotada de personalidade jurídica. b. O Estado pode intervir no planejamento familiar. c. A capacidade para o casamento é adquirida aos 16 anos. d. A satisfação sexual e a prole comum integram o conceito de casamento.

5. Assinale a alternativa incorreta: a. A partir dos 16 anos o menor pode se casar mediante assistência de seus

representantes legais. b. Quem não atingiu a idade núbil pode se casar, em caso de gravidez. c. O divorciado não deve casar, enquanto não houver sido homologada ou

decidida a partilha. d. As causa suspensivas do casamento não podem ser argüida por qualquer

pessoa.

6. Assinale a alternativa correta: a. Em havendo herdeiros necessários a liberdade de testar é relativa. b. A sucessão pactícia é admitida sem restrições. c. A abertura da sucessão coincide com a abertura do inventário. d. A sucessão legítima pode ser singular.

2CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO I TESTES

7. Assinale a alternativa incorreta. a. A capacidade para suceder é regida pela lei vigente ao tempo da abertura

da sucessão. b. Os herdeiros legítimos são sempre necessários. c. Sucessão irregular é aquela ditada por normas especiais, que alteram a

ordem de vocação hereditária do Código Civil. d. A sucessão é regida pela lei do domicílio do defunto.

8. Assinale a alternativa incorreta: a. A herança é indivisível. b. A herança é bem imóvel. c. A cessão de direitos hereditários não depende de outorga do cônjuge; d. Qualquer herdeiro pode ajuizar ações petitórias e possessórias.

9. Assinale a alternativa correta: a. O novo Código Civil adotou a teoria dos atos de comércio. b. A habitualidade é requisito essencial ao conceito de empresário. c. Os membros da Magistratura e do Ministério Público não podem ser sócios

ou acionistas de sociedades. d. A pessoa legalmente impedida de exercer atividade própria de empresário,

se a exercer, responderá pelas obrigações contraídas.

10. Assinale a alternativa incorreta:a. Os atos cambiais não podem ser lançados em documentos distintos do

título.b. O título de crédito é um documento autônomo em relação à obrigação que

lhe deu origem. c. A fotocópia autenticada de um cheque é válida como título executivo

extrajudicial. d. A quitação de um título de crédito não pode ser dada em documento

separado, salvo quando se tratar de duplicata.

11. Assinale a alternativa correta: a. De acordo com a teoria abstrata, a ação é o direito à sentença favorável. b. A legitimidade extraordinária só é cabível nos casos previstos em lei. c. As condições da ação são: as partes, o pedido e a causa de pedir. d. Após o saneamento, o autor pode mudar o pedido mediante concordância

do réu.

12. Assinale a alternativa incorreta: a. Forma-se o processo com a citação. b. Antes da citação, o autor pode mudar o pedido e a causa de pedir,

independentemente da anuência do réu. c. A partir da citação, é proibida a alteração das partes litigantes. d. No caso de morte do advogado, o processo é extinto sem julgamento do mérito.

3CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO I TESTES

DIREITO PENAL E DIREITO PROCESSUAL PENAL

13. Assinale a alternativa incorreta: a. Leis diretivas são as que estabelecem os princípios de determinada

matéria.b. As leis diretivas são mais fortes que as demais. c. O princípio da identidade física do juiz vigora plenamente na esfera

processual penal. d. O princípio da verdade real atribui ao juiz o poder-dever de investigar de

ofício a realidade do fato.

14. Assinale a alternativa incorreta: a. A autoritariedade e a oficiosidade são os dois aspectos do princípio da

oficialidade. b. O princípio da indisponibilidade do processo impede que o Ministério

Público requeira a absolvição do réu. c. No processo penal, vigora o princípio da verdade real; d. No processo penal vigora o princípio da publicidade absoluta.

15. Assinale a alternativa correta: a. Na Parte Especial do Código Penal só existem normas penais

incriminadoras.b. O direito à vida é absoluto. c. O homicídio é delito transeunte. d. O homicídio passional nem sempre é privilegiado.

16. Assinale a alternativa incorreta: a. O homicídio praticado por militar contra civil é da competência do Tribunal

do Júri.b. Se a vítima for menor de 14 anos, a pena do homicídio doloso aumenta de 1/3. c. O homicídio privilegiado qualificado é possível se a qualificadora for

objetiva. d. A eutanásia é causa de exclusão da culpabilidade.

17. Assinale a alternativa incorreta:a. O terrorismo é crime hediondo. b. A anistia não extingue os efeitos civis das condenações. c. O crime de tortura admite o indulto. d. Nos crimes hediondos, o juiz pode revogar a prisão preventiva.

18. Assinale a alternativa incorreta: a. O Direito Penal têm caráter fragmentário. b. O Direito Penal Geral é composto apenas por normas da Parte Geral. c. A Escola Clássica prioriza a retribuição da pena. d. De acordo com Binding, o criminoso não viola a lei, mas a norma.

4CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO I TESTES

19. Assinale a alternativa correta: a. A medida provisória pode criar delitos. b. O princípio da anterioridade não é aplicável às medidas de segurança. c. Emenda Constitucional não pode criar delitos. d. O tipo penal deve observar o princípio do mandato certeza.

20. São princípios característicos do processo penal brasileiro: a. in dubio pro reo / indisponibilidade, como regra / iniciativa das partes b. oportunidade, como regra / verdade real / juiz natural c. obrigatoriedade, como regra / verdade formal / oralidade d. juiz natural / impulso oficial / procedimento ex officioe. oficialidade / juiz natural / disponibilidade, como regra

DIREITO CONSTITUCIONAL, DIREITO ADMINISTRATIVO E DIREITO TRIBUTÁRIO

21. Assinale a alternativa incorreta: a. Na antiguidade, geralmente o poder esteve fundamentado em mitos, na

força e na religião. b. Na democracia de Atenas todas as pessoas, sem qualquer discriminação,

podiam participar do processo político. c. A Magna Carta do Rei João Sem Terra marcou o processo de

transferência do poder da monarquia para a sociedade d. As primeiras Constituições surgiram no século XVIII

22. Assinale a alternativa incorreta:a. O constitucionalismo apregoava a garantia de direitos aos cidadãos e a

separação dos poderes. b. A fase liberal do constitucionalismo surgiu sob forte influência do

iluminismo. c. A fase social do constitucionalismo iniciou-se com a “Guerra Fria”. d. No Estado Democrático de Direito, a Constituição fixa metas em normas

programáticas a serem implementadas por planos plurianuais, quadrienais e orçamentos anuais.

23. Assinale a alternativa correta: a. No Direito Público vigora o princípio da autonomia da vontade. b. O exercício da função administrativa é exclusividade do Poder Executivo. c. O Poder Executivo, de forma atípica, também exerce função legislativa. d. A função política é exclusiva do Poder Executivo.

24. Assinale a alternativa incorreta: a. A função legislativa é abstrata e inovadora. b. A função jurisdicional é concreta, não-inovadora, indireta e reversível. c. A função administrativa é concreta não inovadora, direta e subordinada. d. A função administrativa é exercida de ofício.

5CURSO A DISTÂNCIA – MÓDULO I TESTES

25. Assinale a alternativa incorreta: a. O tributo pode ser usado como meio para desestimular certas atividades

consideradas desinteressantes pelo Poder Público. b. Os atos ilícitos estão fora das hipóteses de cobrança de tributo. c. A taxa decorre de serviços públicos de utilização compulsória. d. A atividade de cobrança do tributo é vinculada.

26. Assinale a alternativa correta: a. O princípio da anterioridade nunca é aplicável ao empréstimo compulsório. b. Os Estados-Membros podem instituir empréstimo compulsório. c. Os valores arrecadados com o empréstimo compulsório devem ter destinação

específica, qual seja, para cobrir as despesas que motivaram sua instituição. d. De acordo com o STF, as imunidades de imposto são aplicadas ao

empréstimo compulsório.

INTERESSES DIFUSOS E COLETIVOS

27. Assinale a alternativa incorreta: a. Os interesses difusos são indivisíveis. b. Os interesses coletivos são indivisíveis. c. Os interesse individuais homogêneos são divisíveis. d. Os interesses individuais homogêneos estão unidos por uma situação

jurídica.

GABARITO MÓDULO I

1- c 2- d 3- a 4- c 5- a

6- a 7- b 8- c 9- d 10- c

11-b 12- d 13- c 14- d 15- d

16- d 17- a 18- b 19- d 20- b

21- b 22- c 23- c 24- b 25- b

26- c 27- d