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Curso de Psicologia Geral Volume 1

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Curso de Psicologia GeralVolume 1

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A presente obra compõe-se de quatro volumes, a saber:I.  Introdução Evolucionista à PsicologiaII.  Sensações e PercepçãoIII. Atenção e MemóriaIV. Linguagem e Pensamento

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A. R. LuriaCurso de Psicologia GeralVolume I 2º Edição

Introdução Evolucionista. à PsicologiaTradução de PAULO BEZERRA

Sociedade Unificada Paulista de Ensino Renovado Objetivo – SUPERO  DATA 11/01/99  Nº   DA CHAMADA  159.9 – 1967 C  - 2. ED.V .1  E .3 N º   DE  VOLUME  14.013/99  REGISTRADO  POR  LILIANE 

civilização brasileira \

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Título do original em russo:EVOLYUTSIÕNNOE VVEDÊNIE VPSIKHOLÓGUIYUCapa: DOUNÊ

Diagramação: LÉA CAULLIRAUX

Revisão:UMBERTO F. PINTO

e MARIO ELBER CUNHA1991Direitos desta edição reservados àEDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.Av. Rio Branco, 99-20? andar - Centro20040 - Rio de Janeiro - RJTel.: (021) 263-2082 Telex: (21) 33798 Fax: (021) 263-61Í2Impresso no Brasil Printed in Brazil 

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SumárioI — A PSICOLOGIA COMO CIÊNCIA. O OBJETO  E AIMPORTÂNCIA PRÁTICA  1A história da Psicologia como ciência  2A Psicologia e outras ciências  7

Partes principais da Psicologia  11Os métodos em Psicologia  17A importância prática da Psicologia  23II — A EVOLUÇÃO DO PSIQUISMO  29A origem do psiquismo  29Variabilidade do comportamento dos protozoários  32Mecanismos do comportamento dos protozoários  34Origem do sistema nervoso e suas formas mais simples 36

O sistema nervoso ganglionar e o surgimento dos programas de comportamento mais simples  38Surgimento das formas complexas de programação hereditária do comportamento ("instintivo")  42O sistema nervoso central e o comportamento individualmente variável dos vertebrados  50Mecanismos do comportamento individualmente variável 56

O comportamento "intelectual" dos animais  62

Fronteiras do comportamento individualmente variável dos animais 68

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A ATIVIDADE CONSCIENTE DO HOMEM E SUAS R AÍZES HISTÓRIGO-SOCIAIS 71

Princípios gerais  71O trabalho e a formação da atividade consciente  95A linguagem e a consciência do homem  77A importância da linguagem para a formação dos

 processos psíquicos  81O CÉREBRO E OS PROCESSOS PSÍQUICOS  85O problema da relação dos processos psíquicos com o cérebro 85

Princípios da organização funcional do cérebro humano 93

Os três "blocos" principais do cérebro  94O bloco do tônus do córtex ou bloco energético do cérebro 95

Bloco do recebimento, elaboração e conservação da informação 100

O bloco da programação, regulação e controle de atividade 107

O princípio da lateralização no funcionamento dos grandes hemisférios 113

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IA Psicologia Como Ciência.O Objeto e a Importância

PráticaO HOMEM VIVE e atua em um meio social. Sente necessidades e procura satisfazê-las, recebeinformação do meio circundante e por ele se orienta, forma imagens conscientes da realidade, cria planose programas de ação, compara os resultados de sua atividade com as intenções iniciais, experimentaestados emocionais e corrige os erros cometidos.Tudo isto representa a atividade do homem no plano psicológico, que constitui o objeto de uma ciência: aPsicologia. Esta ciência se propõe a tarefa de estabelecer as leis básicas da atividade psicológica, estudar as vias de sua evolução, descobrir os mecanismos que lhe servem de base e descrever as mudanças queocorrem nessa atividade nos estados patológicos. Só uma ciência capaz de estudar as leis da atividade psicológica com uma precisão possível pode assegurar o conhecimento dessa atividade e sua direção em bases científicas. É justamente por isso que a Psicologia científica se torna uma das disciplinas mais

importantes, cujo significado crescerá cada vez mais com o1

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desenvolvimento da sociedade e o contínuo aperfeiçoamento dos seus métodos. A história da Psicologia como ciênciaÉ muito breve a história da Psicologia como ciência. No entanto remontam a um passado muito distanteas primeiras tentativas de descrever a vida psíquica do homem e explicar as causas dos seus atos. NaAntigüidade, por exemplo, os médicos já entendiam que para identificar as doenças era necessário saber descrever a consciência do homem e descobrir as causas dos seus atos.

Esse enfoque materialista do comportamento do homem foi, séculos a fio, combatido pela filosofiaidealista e a Igreja, que viam na consciência do homem uma manifestação da sua vida espiritual,considerando que esta não obedecia às mesmas leis a que se subordinava toda a natureza material e por isto sua análise não podia ser feita a partir da explicação causai dos fenômenos.Por esses motivos o mundo psicológico do homem e sua consciência foram vistos durante séculos comofenômenos de tipo especial, isolados de todos os outros processos naturais. Os filósofos assumiamdiferentes posições em relação à consciência, considerando-a manifestação da razão divina ou resultadode sensações subjetivas, onde eles viam os "elementos" mais simples que serviam de base à consciência.Mas todos os filósofos idealistas estavam imbuídos da convicção de que a vida psíquica devia ser entendida como manifestação de um mundo subjetivo especial, que podia ser revelado somente na auto-observação, sendo inacessível à análise científica objetiva ou à explicação científica.Séculos a fio esse enfoque dos processos psíquicos deteve a evolução da psicologia científicas e mesmodepois de os processos do mundo exterior se haverem tornado objeto de estudo científico preciso os

fenômenos da vida psíquica do. homem continuaram sendo vistos como manifestação de um mundoespiritual específico, acessível apenas à descrição subjetiva.A divisão de todos os fenômenos em duas grandes categorias — a categoria dos fenômenos físicos,acessíveis à explicação causai, e a dos fenômenos psíquicos, inacessíveis à análise cien-2

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tífica objetiva — foi consolidada pelas teses básicas da filosofia dualística de Descartes, para quem todosos processos físicos, incluindo-se o comportamento animal, estão subordinados às leis da mecânica, ao passo que os fenômenos psíquicos devem ser considerados como formas do espírito, cuja fonte deconhecimento pode ser encontrada apenas na razão ou intuição.O enfoque dualista se manteve até período recente na filosofia e Psicologia em muitos países. Seconsiderarmos que os pensadores do século XIX começaram a focalizar os processos elementares dos

campos físico e psíquico (incluindo sensações e movimentos) como processos naturais suscetíveis deestudo por métodos científicos exatos, os fenômenos superiores do campo psíquico (consciência, pensamento) continuavam a ser considerados manifestação do campo espiritual, que podia ser abordadosomente por meio da descrição subjetiva dos fenômenos que nele ocorrem. Essa tese levou à divisão realda Psicologia em dois campos no final do século XIX: a Psicologia naturalista científica ou Psicologia fisiologista, que tentava estudar com precisão e explicar pela causalidade os processos psicológicoselementares e definir-lhes as leis objetivas, e a Psicologia descritiva ou subjetiva, que estudava as formassuperiores do campo consciente do homem, enfocando-as como manifestações do espírito. O enfoquedualista aos fenômenos do campo psicológico refletiu-se nos trabalhos dos clássicos da psicologia comoos psicólogos alemães Wilhelm Wundt (1832^1920), Hermann Ebbinghaus (1856-1909), o psicólogoamericano "William James (1842-1910) e o representante da filosofia idealista Wilhelm Dilthey (1833-1911) e outros.A influência do enfoque dualista dos fenômenos psicológicos levou a Psicologia ao impasse e provocou

tentativas naturais de superar a estagnação surgida nessa ciência, de aplicar métodos das ciências naturaisao estudo dos processos psicológicos e fazer destes a mesma análise que se fazia de todos os outrosfenômenos da natureza.Essa tendência, que já surgira com os materialistas franceses e ganhara formulação nítida com osdemocratas revolucionários russos em meados do século XIX, teve sua patente mani festação na obra docélebre fisiologista russo Ivan Mikháylo-vitch Sétchenov (1829-1905).Em sua famosa obra, Os reflexos do cérebro, Sétchenov expôs a idéia segundo a qual até os processosmais complexos do campo psíquico devem receber tratamento materialista e ser 3

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abordados como reflexos complexos; segundo essa idéia, o pensamento é um reflexo igualmentecomplexo porém inibido, carente de fim motor externo. Para ele, os fenômenos dg mundo psíquico devemser estudados pelo naturalista com os mesmos meios empregados no estudo de outros fenômenos danatureza. Essa linha de pensamento foi seguida por outro notável fisiologista russo, Ivan Petrov Pávlov(1849-1936), criador do estudo objetivo da atividade nervosa (psíquica) superior com a aplicação dosreflexos condicionados. Outros notáveis representantes da ciência russa, como M. D. Bekhteryev (1857-

1927), A. A. Ukhtomsky (1857-1942) e outros tentaram formalizar um enfoque das bases objetivas efisiológicas da atividade psíquica e fundamentar a possibilidade de uma Psicologia objetiva e naturalista.São essas as razões pelas quais o mundo psicológico do homem e sua consciência foram tratados, duranteséculos, como fenômenos de tipo especial, isolados de todos os outros processos naturais.A doutrina dos reflexos condicionados de Pávlov, que ele mesmo via como base fisiológica da ciência psicológica, exerceu influência marcante na evolução da Psicologia americana. Em fins do século XIX, o psicólogo americano Edward Lee Thorn-dike começou a estudar o comportamento dos animais,aplicando métodos que permitiam observar como os animais adquiriam novas habilidades em laboratório.Essas pesquisas serviram de base a uma nova corrente na Psicologia, denominada behavio-rismo (ciênciado comportamento) pelo psicólogo americano J. B. Watson. Nessa corrente, Watson via a forma científicanatural da ciência psicológica, que devia substituir a Psicologia. Partindo da tese segundo a qual a"consciência" não passa de um conceito subjetivo, inacessível à pesquisa objetiva, os beha-vioristasamericanos propuseram que se considerasse objeto da pesquisa científica apenas o comportamento

externo do animal, comportamento esse que eles consideravam resultado das inclinações (necessidades) biológicas dos animais e dos reflexos condicionados a eles sobrepostos. Assim surgiu uma nova correntena ciência, que abandonava todo o estudo do mundo subjetivo e limitava-se à descrição das formasexteriores de comportamento, cujas leis eram tratadas como sistema de habilidades mecanicamenteconstituído, inteiramente suscetíveis de análise naturalista.4

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A tentativa de substituir a Psicologia pelo estudo do comportamento exterior e das leis da aquisição dehabilidades complexas era reflexo da luta por uma Psicologia científica objetiva e teve importância progressista em sua época.Mas o behaviorismo americano, como exemplo de um enfoque excessivamente mecanicista da atividade psíquica, iria revelar muito breve as suas limitações e levar a Psicologia a uma crise não menos patente doque a crise do enfoque dualista dos fenômenos psíquicos.

Por outro lado, o que ficou evidente alguns anos após a tempestuosa evolução do behaviorismoamericano, a explicação mecanicista nele dominante de processos como a formação de habilidades nãomostrava os autênticos mecanismos fisiológicos destas e substituía sua pesquisa fisiológica científica por uma descrição exterior e uma interpretação mecanicista desses fenômenos. Por outro lado, a imensa parcela de formas complexas da atividade psíquica do homem, que se manifesta na atividade conscientedos modos e procedimentos superiores de comportamento especificamente humanos, de atenção ativa, damemorização arbitrária e do pensamento lógico era geralmente mantida à margem do campo da pesquisacientífica.Era por isso que nos limites do próprio behaviorismo já começava a surgir a necessidade de ultrapassar oslimites das descrições mecanicistas simplificadas das habilidades elementares e passar a uma análisecientífica das formas mais complexas da. atividade psíquica do homem.Foi essa necessidade de criação de uma Psicologia autenticamente científica, capaz de abordar commétodos científicos objetivos as formas mais complexas da vida psíquica do homem, que se converteu na

questão fundamental que a década de 30 -do nosso século assimilou como condição que podia tirar aPsicologia do estado de crise.As vias para superar a crise na Psicologia foram formuladas pela primeira vez pelo notável psicólogosoviético Lyev Semiônovitch Vigotsky (1896-1934); elas se converteram na base para a posterior evolução da Psicologia como ciência, a princípio na URSS e em seguida além de suas fronteiras.Como já tivemos oportunidade de salientar, o sentido histórico da crise da Psicologia deveu-se ao fato daevolução desta ciência ter assumido duas direções. A primeira, que dava continuidade às tradições doenfoque científico-natural dos fenômenos, propunha-se a tarefa de explicar os processos psí-5

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quicos limitando-se de fato aos processos psicofisiológicas mais elementares e recusando-se a examinar os fenômenos complexos e especificamente humanos da atividade consciente. A segunda orientaçãotomou como objeto de sua análise justamente esses fenômenos exteriores da atividade conscienteespecificamente humanos, limitando-se, porém, à descrição das manifestações subjetivas de taisfenômenos, considerando-os manifestação do espírito e recusando-se a dar aos mesmos um enfoquecientífico causai.

Para Vigotsky, a tarefa principal para superar essa crise consistia em converter em objeto da pesquisa asformas superiores e especificamente humanas de atividade consciente e enfocá-las da ótica da análisecientífica, explicar por via causai a sua origem e definir as leis objetivas a que elas se subordinam.Mas a execução dessa tarefa exigia uma revisão radical das teses básicas da Psicologia.Como observou Vigotsky, a tentativa de enfocar o psiquismo como função imediata do cérebro e procurar a sua fonte no recôndito do cérebro é tão inútil quanto a tentativa de considerar o psiquismo como formade existência do espírito. A vida psíquica dos animais surge no processo de sua atividade e é uma formade representação da realidade, é realizada pelo cérebro mas pode ser explicada somente pelas leisobjetivas dessa atividade representativa. De modo semelhante, as formas superiores de atividadeconsciente, de atenção ativa, memorização arbitrária e pensamento lógico que são específicas do homemnão podem ser consideradas produto natural da evolução do cérebro, sendo o resultado da forma social específica de vida, que é característica do homem. Para explicar por via causai as funções psíquicassuperiores do homem, é necessário ir além dos limites do organismo e procurar-lhes as fontes não no

recôndito da ahna ou nas peculiaridades do cérebro mas na história social da humanidade, nas formasde linguagem e trabalho social que se constituíram ao longo da história da sociedade e trouxeram para avida tipos mais aperfeiçoados de comunicação e novas formas de atividade consciente.Ao procurar tornar-se ciência autêntica, a Psicologia deve estudar a origem socialmente histórica dasformas superiores de atividade consciente e assegurar uma análise científica das leis que lhes servem de base.6

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Essas teses básicas mudam radicalmente as tradições da psicologia dualista e delineiamnitidamente o objeto de uma Psicologia científica.A Psicologia do homem deve ocupar-se da análise das formas complexas de representação darealidade, que se constituíram ao longo da história da sociedade e são realizadas ]ielo cérebrohumano. Ela deve substituir a anterior descrição subjetiva das formas complexas de atividadeconsciente por uma análise científica objetiva dessas formas, sem substituir essa tarefa peloestudo dos processos fisiológicos que lhes servem de base nem limitar-se à descrição exterior dos mesmos. É essa a tarefa da ciência psicológica, que deve estabelecer as leis da sensação e

 percepção humana, regular os processos de atenção e memorização, de realização do pensamento lógico, formação das necessidades complexas e da personalidade, considerandotodos esses fenômenos como produto da história social e sem separar esse estudo da análise dosmecanismos fisiológicos que lhes servem de base. É isto que constituirá a essência da Psicologiageral no todo e da psicologia do homem no particular.

 A Psicologia e outras ciências A Psicologia só pode desenvolver-se em estreita ligação com outras ciências, que não asubstituem mas lhe asseguram informação importante para que ela possa ser bem-sucedida naelucidação do seu próprio objeto.

A biologia é a primeira ciência com a qual a Psicologia deve manter a mais estreita ligação.Se a Psicologia animal opera com as formas de comportamento dos animais que sedesenvolvem no processo de interação deles com o meio, torna-se absolutamente claro que acompleta interpretação das leis do comportamento animal é impossível sem o conhecimento dasformas básicas de vida que constituem o objeto da biologia. É necessário ter uma noçãosuficientemente nítida das diferenças que existem na vida dos vegetais e animais para perceber o principal que distingue todo tipo de comportamento ativo, baseado na orientação no meiocircundante, das formas de vida que se esgotam com os processos de metabolismo e podemocorrer fora das condições de uma orientação ativa na realidade. É necessário ter uma noção

 precisa do que muda7

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nas condições de vida com a transição da existência de unicelu-lares num meio aquático homogêneo aformas incomparavelmente mais complexas de vida multicelular, sobretudo nas condições de existênciaterrestre, que apresenta exigências imensas à orientação ativa baseada nas condições do meio, orientaçãoessa que é a única que pode assegurar sucesso na obtenção de alimentos e conjuração de perigos. Énecessário conhecer bem a diferença de princípios de vida entre o mundo dos insetos, com sólidos programas congênitos que asseguram uma sobrevivência bem-sucedida em condições estáveis e são

capazes de conservar a espécie até em condições de mudança, e o mundo dos vertebrados superiores comseus poucos descendentes, que podem sobreviver somente com a evolução de novas formasindividualmente mutáveis de comportamento, que garantem a adaptação ao meio em mudança. Sem essesconhecimentos dos princípios biológicos gerais de adaptação não se pode assegurar nenhumacompreensão nítida das peculiaridades do comportamento dos animais e qualquer tentativa de interpretar as complexas formas de atividade psíquica do homem perderá sua base biológica.Eis porque é absolutamente necessário para a Psicologia científica levar em conta as leis básicas da biologia e novas partes delas como a ecologia (doutrina que estuda as condições do meio e suasinfluências) e a etologia (doutrina das formas congênitas de comportamento). É natural que os fatosconstituintes do objeto da ciência psicológica não podem, em hipótese nenhuma, reduzir-se a fatos biológicos.A segunda ciência com a qual a Psicologia deve manter a mais estreita ligação é a jisiologia, sobretudo a parte referente à atividade nervosa superior.

A fisiologia trata dos mecanismos que exercem diferentes funções no organismo, ocupando-se daatividade nervosa superior dos mecanismos de trabalho do sistema nervoso que concretizam o"equilíbrio" do organismo com o meio.É fácil perceber a absoluta necessidade de conhecer o papel desempenhado nesse último processo pelasdiferentes fases do sistema nervoso, de conhecer as leis pelas quais realiza-se a regulação dos processosde metabolismo no organismo, pelas quais se regulam as leis de funcionamento do tecido nervoso, quematerializa os processos de excitação e inibição, e das complexas formações nervosas que executam os processos de análise e síntese, de confluência das conexões nervosas, e asseguram os processos deirradiação e concentração da excitação; é igual-8

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mente importante o^ conhecimento das formas básicas de trabalho das células nervosas, que se encontramem estado normal ou inibido (fásico). Tudo isso é absolutamente necessário para que o psicólogo, queestuda os tipos principais de atividade psíquica do homem, não se limite à simples descrição desses tiposmas saiba em que mecanismos se baseiam essas formas altamente complexas de atividade, conheça osdispositivos que as executam, os sistemas em que elas ocorrem. Desconhecer as leis da fisiologiaimplicaria em privar a Psicologia de uma das fontes mais importantes de conhecimento científico. Para a

Psicologia, tem importância decisiva a sua ligação com as ciências sociais.As formas principais de atividade psíquica do homem surgem nas condições da história social,desenvolvem-se no processo de atividade material surgido ao longo da história, baseiam-se nos meiosque se formaram no processo de trabalho, de emprego dos instrumentos de trabalho e da linguagem. Senão usasse os instrumentos de trabalho e a linguagem, o homem não disporia sequer de uma ínfima partedas possibilidades de que dispõe o seu comportamento concreto, ficaria privado da comunicação com omeio ambiente, evoluiria à margem das condições do mundo material — surgido no processo da históriada sociedade — nem assimilaria a experiência de toda a humanidade, que é transmitida por meio dalinguagem, esse receptáculo da informação. É natural que as formas de'atividade do homem sãoexecutadas pelo cérebro e se apoiam nas leis dos seus processos nervosos superiores. Por si mesmonenhum sistema nervoso é capaz de assegurar a formação da capacidade de usar instrumentos de trabalhoe linguagem e explicar o surgimento das formas altamente complexas de atividade humana, surgidas no processo da história social.

A verdadeira relação entre a Psicologia e a fisiologia consiste em que a primeira estuda as formas e meiosde atividade que surgiram no processo da história social e determinam o comportamento, enquanto afisiologia da atividade nervosa superior estuda os mecanismos naturais que materializam ou realizam essecomportamento.Tentar reduzir a Psicologia do homem à fisiologia da atividade nervosa superior — como em certa época propunham os pensadores mecanicistas — implicaria em cometer o mesmo erro do arquiteto que tentassereduzir a origem e a análise dos estilos gótico e barroco ou o estilo Império às leis da resistência9

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dos materiais que ele naturalmente deve levar em conta mas que em hipótese nenhuma podemexplicar a origem dos estilos arquitetônicos.O êxito do desenvolvimento da Psicologia depende grandemente da correta compreensão dacorrelação dessas duas ciências e tanto o desconhecimento da fisiologia como a tentativa dereduzir a Psicologia à fisiologia retardariam o desenvolvimento da ciência psicológica.O que acabamos de afirmar deixa clara a imensa importância que tem para a Psicologia a sualigação com as ciências sociais. Se na formação do comportamento do animal as condições

 biológicas de vida desempenham papel determinante, na formação do comportamento dohomem esse papel é desempenhado pelas condições da história social, que cria formas novas deuma complexa relação com a realidade, mediada pelas condições de trabalho, formas essas quesão as fontes de novas formas especificamente humanas de atividade psíquica.Adiante teremos oportunidade de ver que o primeiro emprego de instrumentos de trabalho e a

 primeira forma de trabalho social introduziram mudança radical nas principais leis biológicas deconstrução do comportamento e que o surgimento e, posteriormente, o emprego da linguagem

 — que permite conservar e transmitir a experiência de gerações — levaram ao surgimento deuma nova forma de evolução inexistente entre os animais: a forma de evolução mediante aassimilação da experiência social. A ciência psicológica atual, que estuda antes de tudo as

formas especificamente humanas de atividade psíquica, não pode dar um só passo sem levar emconta os dados que obtém das ciências sociais: do materialismo histórico, que enriquece as leis básicas do desenvolvimento da sociedade, e da lingüística, que estuda as formas básicas delinguagem, surgida na história da sociedade.Só levando minuciosamente em conta as condições sociais, que formam a atividade psíquica dohomem, pode a Psicologia obter uma sólida base científica. Encontraremos a aplicação desse

 princípio em todas as páginas seguintes, quando examinaremos todos os fatos psicológicosconcretos. É essa a relação da Psicologia científica com as outras ciências, com as quais ela sedesenvolve em estreito contato.10

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 Partes principais da PsicologiaA Psicologia, que até recentemente não era uma ciência dividida, representa hoje um sistema amplamenteramificado de disciplinas, que estudam a atividade psíquica do homem em diferentes aspectos. O que jádissemos antes deixa claro que algumas partes da Psicologia estudam as bases naturais dos processos psíquicos, aproximando-se da biologia e fisiologia, enquanto outras partes estudam os fundamentossociais da atividade psíquica, aproximando-se das ciências sociais.

A posição central cabe à Psicologia Geral, que estuda as formas básicas de atividade psíquica e constitui aviga-mestra de todo o sistema de disciplinas psicológicas. Afora a introdução teórica evolucionista, oexame de várias partes científicas faz parte da composição da Psicologia Geral. Entre essas partesincluímos a análise dos processos cognitivos (começando pelas sensações e percepções e terminando nasformas mais complexas de pensamento; compõem essa parte a análise das condições em que ocorrem os processos psíquicos e a análise das leis do pensamento, da memória, imaginação, etc), a análise dos processos afetivos (as necessidades do homem, as formas complexas de emoções), a análise da estrutura psicológica da atividade do homem e da regulação do seu desempenho e, por último, a análise da psicologia do indivíduo e das diferenças individuais.As partes aqui referidas serão objeto de exame das próximas páginas do presente livro.A elaboração dos problemas gerais da Psicologia foi objeto de trabalhos de muitos pensadores célebres,entre os quais sé situam clássicos como W. Wundt na Alemanha, W. James nos EUA, A. Binet e P. Janetna França e contemporâneos como-L. S. Vigotsky, S. L. Rubinstein, A. N. Leôntyev, A. A. Smirnov e V.

M. Têplov na URSS, A. Vallon, A. Piéron e P. Fraisse na França, E. Nolman, G. Miller e J. Bruner nos EUA,Donald Hebb no Canadá e J. Broadbent na Inglaterra, etc.É contíguo à Psicologia Geral o grupo de partes biológicas da Psicologia. Todas elas estudam as basesnaturalistas da atividade psíquica do homem.A primeira dessas disciplinas é a Psicologia comparativa ou Psicologia animal. Esta disciplina estuda as peculiaridades do comportamento animal em etapas sucessivas da evolução, aque-11

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Ias peculiaridades que dependem das condições de vida e da estrutura anatômica dos animais. Eladescreve os processos de mudança das formas de comportamento animal dependendo das exigências queo meio lhes impõe e dos principais tipos de adaptação às condições de vida, que são de caráter muitovariado quando se tornam complexas as formas de vida.A segunda das disciplinas pertencentes ao grupo biológico das ciências psicológicas é a Psicologia fisiologista ou Psico-jisiologia.

As bases dessa ciência foram lançadas na segunda metade do século XIX por pensadores que se propunham a tarefa de estudar os processos psicológicos do homem com a aplicação de diversos métodosfisiológicos, de estudar os mecanismos fisiológicos dos processos psicológicos. Foram precisamente esses pensadores que organizaram os primeiros laboratórios de Psicologia e elaboraram minuciosamente partesda Psicologia como a doutrina das sensações, sua medida e seus mecanismos básicos, a doutrina das leis básicas da memória e da atenção, a doutrina dos mecanismos psicofisiológicos do movimento, etc.É natural que a Psicologia fisiologista se aproxime da fisiologia, particularmente da fisiologia dos órgãosdos sentidos e da fisiologia da atividade nervosa superior. A diferença consiste em que os cientistas quese ocupam desse problema tomam como objeto a análise das formas concretas de atividade psíquica,estudando as sensações e percepções, a atenção e a memória do homem, bem como a estrutura dos seus processos motores e a mudança destes no processo de exercício e fadiga, procuram, empregando osmétodos mais precisos, estabelecer os mecanismos fisiológicos e as leis pelas quais esses processos serealizam. A psicofisiologia, permanecendo disciplina psicológica especial, está para a fisiologia assim

como a bioquímica está para a química ou a biofísica para a física. Ela não abstrai um instante sequer ofato de que os processos por ela estudados fazem parte da complexa atividade psíquica do homem, nãoesquece as complexas peculiaridades da estrutura desses processos e apenas tenta descobrir osmecanismos fisiológicos que lhes servem de base.Uma parcela considerável dos conhecimentos das leis de realização de processos psíquicos particularesfoi acumulada justamente por essa área da ciência psicológica, à qual estão estreitamente ligados osnomes de grandes cientistas como Gustav Fechner e Weber (os primeiros a medir as sensações), Wilhelm12

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Wundt (o primeiro a aplicar amplamente métodos psicofisioló-gicos de estudo dos processos psíquicos), Hermann Ebbinghâus e Hermann Joseph Müller (os primeiros a abordar métodosexatos de medição da memória e seus mecanismos específicos), assim como Piéron na França,Edward Titchener nos EUA, os grandes psicólogos atuais como O. R. Lindsley (EUA), Broad-bent(Inglaterra), Fraisse (França) e outros.Essa área da ciência psicológica recebeu imensa informação dos trabalhos de clássicos notáveisda fisiologia como Pávlov, criador da doutrina da atividade nervosa superior, N. E. Vve-densky,criador da doutrina da gênese patológica, A. A. Ukhtomsky, cujos trabalhos permitiramintroduzir uma aova área da ciência do comportamento: a doutrina dos dominantes, L. A.Orbeli, autor de importante contribuição à fisiologia evolu-cionista bem como fisiologistascontemporâneos como P. A. Anokhin, criador da doutrina dos sistemas funcionais, N. A.Bernstein, introdutor do novo conceito de organização do movimento, G. V. Gershuni e S. V.Kravkov, que enriqueceram a ciência com dados relativos ao funcionamento da audição e visão,etc.A terceira disciplina componente do grupo biológico das ciências psicológicas é aneuropsicologia.Esta disciplina tem por tarefa o estudo do papel que desempenham os aparelhos particulares do

sistema nervoso na estruturação dos processos psíquicos.É fácil perceber que o papel das formações subcorticais e do paleocórtex no processo daatividade psíquica é inteiramente diferente do papel do neocórtex e dos grandes hemisférioscerebrais . Há, porém, fundamentos para supor que também o papel de algumas regiões docórtex cerebral na organização dos complexos processuais psíquicos não é idêntico e que todasas áreas do cérebro — parietais, temporais e occipitais — dão sua contribuição toda especial

 para o processo de atividade psicológica.Esse novo campo da Psicologia emprega em suas pesquisas uma análise psicológica minuciosatanto das irritações como das destruições de áreas isoladas do cérebro, estuda as mudanças dos

 processos psíquicos que surgem quando ocorram afecções locais do cérebro e tira, de suasobservações, conclusões relacionadas com a estrutura interna dos processos psíquicos.Esse campo da Psicologia é representado por estudiosos de diversos países como K. S. Lashley

e K, H. Pribram (EUA),13

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A. R. Luria (URSS), O. L. Zangwill (Inglaterra), B. Milner (Canadá) e outros. Podemos colocar ao lado daneuropsicologia a psicopatologia, que estuda as peculiaridades "dos processos psíquicos observáveis nosdoentes psíquicos, e permite que nos aproximemos mais de um estudo científico das doenças mentais e dodescobrimento de algumas leis gerais da atividade psíquica que se manifesta nos estados patológicos.A psicopatologia foi elaborada com êxito por muitos psiquiatras (Kraepelin, na Alemanha, Janet, naFrança, Békhterev, na Rússia) e pelos psicólogos contemporâneos (B. V. Zeygar-nik, na URSS, Pecheau, na

França, e outros).Uma área especial, situada nas fronteiras da psicofisiologia e da neuropsicologia, é representada peloestudo dos mecanismos neurônicos da atividade psicológica. Os cientistas que elaboraram essa área (D.H. Hubel e T. N. Wiesel na Inglaterra, Jung na Alemanha, H. H. Jasper no Canadá, E. N. Sokolov e O. S.Vinográdov na URSS) se propõem a tarefa de investigar as formas de funcionamento de grupos isolados deneurônios e efetuar uma análise dos processos nervosos mais elementares, que servem de base aocomportamento. Importantes descobertas dos mecanismos fisiológicos de ativação e habituação foramobtidos no estudo das formas mais simples de comportamento em base neurônica. No sistema das ciências psicológicas, cabe posição especial à  psicologia infantil ou genética.A importância dessa área das ciências psicológicas para a Psicologia geral consiste em que a Psicologiagenética ou infantil estuda a formação da atividade psíquica no processo de evolução da criança e permiteacompanhar a formação dos complexos processos psíquicos e das etapas pelas quais eles passam em suaevolução.

A Psicologia genética permite abordar os processos psíquicos superiores do homem como produto daevolução, dando, com isto, a possibilidade de considerar as formas complexas de atividade psíquica dohomem não como "propriedades" ou "faculdades" do psiquismo primitivamente existentes mas comoresultado de uma longa formação, que deixou vestígios na estrutura dos processos psíquicos.Foi justamente por isto que a Psicologia genética, que estuda a formação (gênese) das formas superioresde atividade psíquica, adquiriu importância decisiva tanto para uma área prática14

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como a pedagogia quanto para a Psicologia geral. Foi justamente graças aos êxitos da Psicologia genética,relacionados com a contribuição dada ao estudo dessa disciplina pelos notáveis estudiosos Jean Piaget eLyév S. Vigotsky, que a Psicologia geral obteve provas convincentes de que as formas básicas dos processos psíquicos (percepção e ação, memorização e pensamento) possuem estrutura complexa que seforma no processo de evolução da criança. A importância da Psicologia genética lhe, permitiu ocupar  posição central na Psicologia atual.

Outro campo da Psicologia, que deve ser colocado ao lado da Psicologia genética e costuma ser chamadode psicologia diferencial ou psicologia das diferenças individuais, ocupa posição importante.Sabe-se que as pessoas têm traços comuns, estudados pela Psicologia geral, e revelam diferençasindividuais. Estas podem ser diferenças de propriedades do sistema nervoso, de peculiaridades individuaisdo campo emocional e do caráter, traços característicos do processo cognitivo e do talento.A Psicologia diferencial se propõe a tarefa de estudar essas diferenças individuais, descrever os tipos decomportamento e atividade psíquica das pessoas que se distinguem umas das outras por traçoscaracterísticos.A Psicologia diferencial é de importância decisiva para a avaliação do nível de evolução da criança, dasformas individuais de assimilação do trabalho e para a análise das peculiaridades tipológicas cujoconhecimento é indispensável à solução das questões práticas da Psicologia.Os fundamentos da Psicologia diferencial foram lançados em sua época pelo psicólogo alemão W. Ster (1871-1938); em nossa época os problemas das diferenças individuais foram estudados com êxito por 

cientistas como Charles Edward Spear-man, na Inglaterra, L. L. Thurstone, nos EUA, e B. M. Teplov, naURSS.Aos referidos campos da Psicologia incorpora-se um grupo de áreas intimamente vinculadas às ciências sociais. Nessas áreas examinam-se as condições histórico-sociais em que se formou a atividade psíquicado homem e as formas sociais em que essa atividade se manifesta. Nesse grupo ocupa posição essencial a etnopsicologia ou ciência das particularidades que distinguem os processos psíqui-15

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cos em diferentes formações e estruturas históricas e em diferentes culturas. Nas etapas iniciais do desenvolvimento da Psicologia, fizeram-se tentativas de criar uma"psicologia dos povos" corr.: forma especial de psicologia social e de elaborar uma ciência quefosse capaz de revelar as bases psicológicas da formação da linguagem, dos mitos, crenças, dodireito, etc. Fracassou essa tentativa, que partiu de um dos criadores da Psicologia moderna, W.Wundt, autor do livro A psicologia dos povos.Wundt tentou dar uma explicação psicológica dos fenômenos da vida social, cujas bases não são

 psicológicas mas econc-micas ou histórico-sociais. Por este motivo as tentativas de "ps:-cologizar a história" retiveram durante muito tempo o desenvolvimento desse importante campoda ciência psicológica, qa: devia investigar um processo inverso: a influência formadoraexercida pelas condições histórico-sociais sobre o desenvoh:-mento da atividade psicológica dohomem.Essa tarefa se converteu em objeto das pesquisas de grandes cientistas de diversos países(Frazer e Malinowsky, na Inglaterra, Janet e Lévy-Bruhl, na França, Turnwald, na Alemanha eM. Mead, nos EUA) e foram justamente essas pesquisas qu: lançaram as bases da etnopsicologiaatual. O estudo das peculiaridades da atividade psíquica de pessoas pertencentes -diferentesculturas constitui atualmente uma área importan:; da ciência psicológica.

A psicolingüística, disciplina que nos últimos decênios s: converteu em área independente e sesitua na fronteira entre a Psicologia e a lingüística, representa um campo especial d-Psicologia.A psicolingüística se propõe o estudo das leis básica: da linguagem enquanto meio decomunicação, dos processos d. codificação e decodificação da informação veiculada pelalinguagem e dos processos psicológicos que se baseiam nos códigos da língua e se materializamna linguagem do homem.A Psicologia social é uma área importante porém pouco desenvolvida. Esta disciplina estuda asleis psicológicas da comunicação entre os homens, as peculiaridades psicológicas da divulgaçãode informação por meios como a imprensa e o cinema, as particularidades do comportamento no

 processo de trabalho, competição, etc. Um campo especial da Psicologia social tem como objetoo estudo das inter-relações humanas em pequenos grupos, a análise dos fatores que servem de

 base a

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tipos concretos de interação entre os homens, de formação da autoridade, promoção de líderes, etc.Entre essas disciplinas, que mantêm afinidades com as ciências sociais, inclui-se a Psicologia da arte, queestuda as bases psicológicas da criação artística e as leis psicológicas que servem de base às obras de arteque aplicam diversos procedimentos e asseguram uma influência máxima das obras sobre o leitor eespectador.Tomamos conhecimento apenas dos ramos fundamentais da Psicologia, mas estes podem mostrar que

sistema ramificado de disciplina a Psicologia moderna representa.Os métodos em Psicologia É condição fundamental da evolução de toda ciência a existência de métodos suficientemente objetivos, precisos e seguros.O papel do método de uma ciência deve-se ao fato de que a essência do processo em estudo não coincidecom as manifestações em que ela aparece. São necessários procedimentos especiais, que permitam penetrar além dos limites dos fenômenos acessíveis à observação imediata, penetrar nas leis internas queconstituem a essência do processo em estudo. Esse caminho do fenômeno à essência, que lança mão detoda uma série de procedimentos objetivos de pesquisa, caracteriza as pesquisas verdadeiramentecientíficas.Em que consistem os métodos empregados pela Psicologia?Houve um longo período em que a Psicologia era definida como ciência do mundo subjetivo do homem;à definição do conteúdo da ciência correspondia a escolha dos seus métodos. Segundo a concepção

idealista, que separava o psiquismo de todos os outros fenômenos da natureza e da sociedade, aPsicologia tinha como objeto o estudo dos estados subjetivos da consciência. Segundo os psicólogosidealistas, esses- processos da consciência se distinguiam dos outros processos da realidade objetiva pelofato de que o fenômeno coincidia com a essência: as formas de consciência que o homem podia observar em si mesmo (clareza ou imprecisão de consciência, vivência da liberdade do ato volitivo, etc.) eramconsideradas por esses17

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 psicólogos como propriedades fundamentais do espírito ou como essência dos processos psíquicossubjetivos. Para eles, essa coincidência dos fenômenos com a essência constituía o fundamento da Psicologia e lhe definia o método, ou seja, consideravam como fundamental e única a descrição subjetivados fenômenos da consciência, descrição essa que se obtinha no processo de introspecção. Oreconhecimento da introspecção como método fundamental da Psicologia não apenas separava estaciência das outras como fechava de fato todos os caminhos para a evolução da Psicologia enquanto

ciência autêntica. Excluía, ainda, a explicação objetiva e causai dos processos psíquicos, reduzindo aPsicologia à descrição subjetiva de formas da vida espiritual e dos fenômenos psíquicos.É fácil entender que uma "ciência" que se negava a considerar os processos psíquicos como produtos dodesenvolvimento objetivo, que não levantava os problemas da origem e dos mecanismos objetivos desses processos não podia ter existência própria; durante muito tempo continuou sendo uma área singular dafilosofia idealista sem se incluir no círculo das ciências autênticas.Por isto mudou radicalmente o tratamento dispensado ao método básico da Psicologia desde o período emque esta disciplina passou a ser interpretada como ciência de uma forma específica de atividade psíquica,que permite ao homem orientar-se na realidade ambiente, refleti-la, formar programas de comportamentoe controlar a sua execução.A tarefa dos psicólogos consistia em criar métodos objetivos de estudo dos processos psíquicos dohomem, sem nunca se limitar ao método da introspecção, referindo-se a ele apenas como um procedimento auxiliar de sentido antes heurístico, que permitia levantar questões, o que dava a

 possibilidade de explicar por via causai os fenômenos e encontrar as leis que lhes serviam de base. Arevisão radical da introspecção como método de conhecimento científico devia-se ao fato de que a própriaintrospecção passara a ser vista como um tipo complexo de atividade psíquica, que era produto de umalonga evolução, empregava formulação discursiva dos fenômenos observados e tinha aplicação muitorestrita porque nem de longe os processos psíquicos ocorrem todos por via consciente, bem como porquea auto-observação dos seus processos psíquicos pode introduzir mudanças consideráveis na ocorrênciadesses processos.18

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A Psicologia passou a ter como tarefa fundamental a elaboração de métodos objetivos de pesquisa queusassem os mesmos procedimentos que todas as outras ciências usavam para observar odesenvolvimento desse ou daquele tipo de atividade e da mudança experimental das condições do seuexercício, de métodos que fossem capazes de ir além dos limites da descrição exterior dessa atividade nosentido das leis que lhe servem de base.O procedimento principal da Psicologia passou a ser a observação do comportamento do homem em

condições naturais e experimentais, com a análise das mudanças que ocorrem em determinadas condiçõesque podem ser mudadas pelo experi-mentador. Foi nesse caminho que surgiram os três métodos básicosde pesquisa psicológica, convencionalmente chamados de método de análise estrutural, método genético-experimental e método patológico-experimental (ou método de análise sindrô-mica).O método de análise estrutural dos processos psicológicos consiste no seguinte: o psicólogo, ao estudar essa ou aquela forma de atividade psíquica, coloca diante do sujeito experimental uma tarefacorrespondente e acompanha a organização estrutural dos processos (procedimentos, meios, formas decomportamento) mediante os quais o sujeito experimental resolve a tarefa dada.Isto significa que o psicólogo não apenas registra o- resultado final (memorização do material proposto,reação motora ao sinal, resposta à tarefa proposta) mas acompanha atentamente o processo de solução datarefa proposta, os meios auxi-liares em que ele se baseou, etc. Essa descrição da estrutura psicológica do processo estudado e a análise das suas partes componentes representam dificuldades consideráveis eexigem vários procedimentos auxiliares especiais.

Esses procedimentos, que permitem efetuar uma análise estrutural bastante completa, podem ter caráter direto ou indireto.Pertence aos procedimentos diretos a mudança da estrutura da tarefa proposta ao sujeito experimental(com dificultação paulatina, inclusão de novas exigências, que tornam necessária a inserção de novasoperações na solução da tarefa), bem como a proposta de vários procedimentos que ajudam à solução(escolha de apoios externos, procedimentos auxiliares, etc). O emprego desses procedimentos diretos deanálise estrutural muda

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o curso objetivo do processo psicológico e permite estabelecer quais dentre os procedimentosempregados surtem um efeito máximo.As referidas formas de análise estrutural se aplicam antes de tudo ao estudo objetivo de formas contíguasde atividade psíquica como a assimilação ou memorização do material, a solução das tarefas, a realizaçãode operações construtivas ou lógicas, o estudo da estrutura das formas complexas dos atos conscientes.Entre os procedimentos indiretos ou complementares situa-se o emprego de indícios, que, não sendo eles

mesmos elementos, de atividade do homem, podem ser índices do seu estado geral, das tensões por eleexperimentadas, etc. Entre esses procedimentos, por exemplo, incluímos a aplicação de métodos deregistro dos processos fisiológicos (eletroencefalogramas, eletro-miogramas, reação galvânica da pele, pletismograma), que por si mesmos não revelam as peculiaridades da realização da atividade psíquicamas podem refletir as condições fisiológicas gerais que caracterizam essa realização. Ê natural que a aplicação desses procedimentos indiretos ou complementares pode adquirir sentidosomente havendo organização precisa da própria atividade psíquica estudada pelo psicólogo.Ao lado do método analítico-estrutural, que ocupa posição central na Psicologia, podemos colocar ométodo genético-expe-rimental, que tem importância especialmente grande para a Psicologia genética.Sabe-se que todos os processos psicológicos superiores são produto de uma longa evolução. Por isto ésobretudo importante para o psicólogo acompanhar a marcha desse processo de evolução, que etapasforam incluídas nele e que fatores determinam o surgimento de processos psicológicos superiores.Pode-se obter resposta a esta questão não apenas acompanhando a execução das mesmas tarefas em fases

sucessivas do desenvolvimento da criança (esse método recebeu na Psicologia a denominação de métododos cortes genéticos) como também criando condições experimentais que permitam mostrar como seforma essa ou aquela atividade psíquica. Com este fim coloca-se em diferentes condições o sujeitoexperimental, a quem se propõe resolver essa ou aquela tarefa. Nuns casos exige-se dele soluçãoindependente da tarefa, noutros, presta-se-lhe ajuda, empregando diversos meios de apoios extremosevidentemente-20

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eficazes, sugerindo em voz alta as vias de solução, por um lado, observando como ele aproveita essaajuda, por outro.Aplicando os procedimentos que constituem a essência do método genético-experimental, o estudioso semostra capaz não apenas de revelar as condições com cujo aproveitamento o sujeito experimental podeassimilar de modo ideal dada atividade, como também de formular experimentalmente os complexos processos psíquicos e abordar mais de perto a sua estrutura. O método genético-experimental foi

amplamente aplicado na Psicologia na URSS por Vigotsky, A. V. Zaporojets, P, Y. Galpe-rina e produziumuitos fatos valiosos que se incorporaram soli-damente à Psicologia.O terceiro método da Psicologia, especialmente importante para a neuropsicologia e psicopatologia, é ométodo patológico-éxperimental ou método da análise sindrômica das mudanças de comportamento queocorrem nos estados patológicos do cérebro ou num desenvolvimento exclusivo de um setor dos processos psíquicos.Esse método é aplicável em casos relativamente raros. Conhecendo um fator que muda notoriamente ocurso dos processos psíquicos, o psicólogo pode saber qual a influência que esse fator exerce sobre ocurso de toda a atividade psíquica do sujeito.Esse método se manifesta nas formas mais claras nas pesquisas neuropsicológicas, consistindo noseguinte: o psicólogo que estuda minuciosamente os pacientes nos quais a afecção local do cérebro provoca o deslocamento ou a deformação de uma das condições do curso normal dos processos psíquicos(por exemplo, da percepção visual, da memória auditiva ou da sólida manutenção do programa de

atividade), analisa detalhadamente a realização de todo um conjunto de processos psíquicos e define quaisdesses processos se mantêm intactos e quais ficam perturbados. Semelhante análise permite estabelecer quais são precisamente os processos psíquicos internamente relacionados com o fator perturbado (ouexcluído) e quais são independentes deste; permite descrever toda uma síndrome (por outras palavras,todo um conjunto de mudanças) que surge com a mudança de uma função e dá a possibilidade de mostrar a interdependência (correlação) de processos psicológicos isolados.O mesmo método pode ser aplicado na Psicologia geral ou na>Psicologia das diferenças individuais, nasquais a superevolu-ção de um aspecto do campo psíquico (por exemplo, da memória21

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visual clara) ou alguma peculiaridade individual dos processos nervosos (por exemplo, a fraqueza ou amobilidade insuficiente dos processos nervosos) pode provocar a reestruturação de todos os processos psicológicos e tornar-se fator decisivo no surgimento de todo um conjunto de peculiaridades individuaisda pessoa.Todos os métodos que descrevemos em linhas gerais são métodos da pesquisa psicológica. A par comeles, entretanto, têm grande importância para a Psicologia os métodos breves de avaliação qualitativa e

quantitativa dos processos psíquicos (dos conhecimentos, habilidades, aptidões) e os métodos simples demedição do nível de evolução dos processos psíquicos.Esses métodos se aplicam amplamente na Psicologia e são conhecidos pela denominação de testes psicológicos. Os testes psicológicos consistem de tarefas, que se propõem a um amplo círculo de sujeitosexperimentais para estabelecer seus conhecimentos, habilidades ou aptidões. Para que esses testes possam produzir dados objetivos e mensuráveis, são feitos previamente com um grande número de sujeitosexperimentais (crianças de uma determinada idade ou pessoas do mesmo nível de educação). Entre essastarefas escolhem-se aquelas'que um número considerável (dois terços, por exemplo) de sujeitosexperimentais consegue resolver com êxito e só depois disto elas são propostas àqueles sujeitos cujosconhecimentos, habilidades ou aptidões são mensuráveis. Os resultados dessas pesquisas são avaliados por pontos ou por lugar (indica-se o lugar que um dado sujeito experimental poderia ocupar em relação aogrupo correspondente de sujeitos).A aplicação dos testes psicológicos pode ter certa importância para que se tenha uma orientação, acerca

das peculiaridades psicológicas dos grandes hemisférios. Faremos adiante uma apreciação crítica dessemétodo, quando examinarmos a sua importância para a medição das diferenças individuais de diferentessujeitos.É fácil ver que a importância de todos os referidos métodos nã.p é a mesma para as diferentes áreas daPsicologia a que nos referimos, e se o método de análise estrutural continua sendo o método básico paratodas as áreas psicológicas, o método gené-tico-experimental ocupa posição dominante na Psicologiagenética, ocupando o método de análise sindrômica posição-chave na Psicologia patológica oudiferencial.22

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 A importância prática da PsicologiaA Psicologia tem grande importância não apenas para a solução de uma série de questões teóricas docampo psicológico e da atividade consciente do homem.Ela tem importância também prática, que aumenta à medida que a direção do comportamento do homemem bases científicas e a consideração do fator humano na indústria e nas relações sociais se tornamquestão central da vida social.

A ciência psicológica é de grande importância prática para vários campos, dentre os quais mencionamosapenas os mais importantes.O primeiro desses campos é o da indústria e do trabalho; a área da Psicologia aplicada que se dedica aquestões ligadas a esses campos é denominada engenharia psicológica e psicologia do trabalho.A indústria moderna, que compreende a direção de mecanismos, do transporte, aviação, etc, subentendeuma complexa interação do sistema homem-máquina. A técnica complexa deve estar adaptada às possibilidades do homem. É necessário criar condições nas quais a direção dos sistemas transcorra numavariante ideal e possa realizar-se com a menor perda de tempo e o menor número de erros. Essasexigências devem referir-se principalmente à construção racional dos painéis de direção, que nosmecanismos modernos consistem de grande número de indicadores, que exigem revisão sumamenterigorosa e que a informação que recebem tenha a máxima acessibilidade. É natural que essas exigências podem ser atendidas somente levando-se em conta as leis da percepção humana, o volume da memóriahumana e os modos de originalizá-las, que poderiam, da melhor maneira, adaptar a máquina às

 possibilidades do homem. Por outro lado, a indústria moderna coloca uma série de questões atinen-tes àseleção de pessoas mais aptas para as condições dessas ou daquelas formas de trabalho, querendo, comisto, que se criem condições que assegurem circunstâncias ideais para a manutenção da atenção e o menor esgotamento do homem. Coloca-se a questão: que fatores psicológicos devem-se levar em conta paragarantir a máxima segurança do trabalho e o mínimo de avarias?Todas essas questões são elaboradas pela engenharia psicológica e pela Psicologia do trabalho, que estãose convertendo23

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em importante componente da organização cientifica da produção.Outra área de aplicação prática da Psicologia é o ensino e a educação da geração adolescente, em suma,a área da pedagogia.É sabido que o crescente volume de conhecimentos, que devem ser assimilados no processo de ensinoescolar, exige organização mais racional dos métodos de ensino. Isto depende substancialmente das peculiaridades psicológicas da criança, da idade e dos seus processos cognitivos na aprendizagem escolar.

A Psicologia pedagógica é a área da Psicologia aplicada que deve assegurar a argumentação científicados programas e métodos de ensino, estabelecer o círculo dos conceitos acessíveis às crianças da idadecorrespondente e os métodos de transmissão do material que garantirão sua melhor assimilação. O ensino programado (ou teoria da assimilação programada, por etapa, dos conhecimentos), nova área da pedagogia que se desenvolveu ultimamente, apresenta a base psicológica científica para a elaboração deuma seqüência otimal do material proposto bem como a'aplicação dos métodos mais eficazes de ensino.Questões como o grau de desdobramento do processo de assimilação dos conhecimentos por etapa, acorrelação dos meios direto e lógico-verbais de ensino, os modos de formulação otimal de regras, os procedimentos que asseguram assimilação adequada dos conceitos e a transferência de princípiosassimilados no processo de ensino constituem apenas uma parte das questões estudadas pela psicologia pedagógica, que dá contribuição substancial para a fundamentação científica do processo pedagógico.O segundo aspecto do emprego da Psicologia para a construção racional do ensino e da educação é aanálise das peculiaridades psicológicas das crianças, que cria obstáculo para levar-lhes instrução com

êxito.É sabido que o sucesso do ensino depende não só dos programas e métodos racionalmente organizadosmas também da própria composição dos alunos. Em toda classe, paralelamente aos alunos adiantados, háaqueles que não conseguem assimilar com êxito o programa escolar e retardam o bom rendimento dotrabalho de toda a turma.O essencial, porém, é o fato de que a falta de aproveitamento que esses alunos demonstram pode ter fundamento variado.24

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Uns alunos não acompanham o aproveitamento por serem mentalmente retardados e o atraso orgânico doseu cérebro os torna incapazes de assimilar material de complexidade mínima. Essas crianças devem ser transferidas da escola de massa para uma escola especial, auxiliar. As outras são crianças plenamentenormais, mas o seu atraso deve-se ao fato de que, não tendo assistido a determinada parte do programa,elas não podem avançar com sucesso porque a assimilação do novo material não encontra nelas anecessária base de conhecimentos. Essas crianças necessitam de aulas complementares especiais que

 possam eliminar as suas lacunas.Outros alunos (terceiros) demonstram dificuldades na aprendizagem por serem fisicamente fracos, por terem sofrido uma doença qualquer. Eles são capazes de concentrar com êxito suas atenções apenasdurante tempo limitado, ficam rapidamente exaustos e não têm condições de assimilar o materialcorrespondente. Eles devem estudar sujeitos a um regime correspondente e nessas condições podemcumprir com êxito o programa. Por último, o quarto grupo de alunos experimenta dificuldades deaprendizagem não porque as crianças que o compõem sejam mentalmente retardadas mas porqueapresentam algumas deficiências, como deficiências auditivas, que dificultam a comunicação verbaloportuna e plena e provocam retardamento temporário do desenvolvimento. Essas crianças devem ser transferidas para escolas destinadas a alunos de audição difícil, onde procedimentos e métodos especiais permitirão compensar tais deficiências.A tarefa mais importante deve ser a identificação oportuna das causas do atraso de diferentes grupos decrianças e o diagnóstico das diversas formas de atraso no programa. Essa tarefa pode ser cumprida

somente com íntima participação dos psicólogos, que possam descrever as peculiaridades psicológicasdas crianças que não conseguem acompanhar o programa, explicar as causas principais do retardamentoda sua evolução e prestar ajuda substancial na eliminação das deficiências descritas.O terceiro campo de aplicação prática da Psicologia é a medicina.15 sabido que o desenvolvimento de uma doença depende não apenas do agente patogênico e do estadodo organismo mas também de como o próprio doente encara sua doença e como a avalia; por outras palavras, depende daquilo a que os terapeu-tas chamam de "quadro interno da doença". No entanto, a pró-25

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 pria atitude em relação à doença está relacionada com uma série de fatores psicológicos, com as peculiaridades da estrutura emocional do indivíduo, com o caráter das generalizações que oindivíduo faz. O estudo das peculiaridades caracterológicas e da estrutura do indivíduo, estudoesse feito pela Psicologia, tem por isto grande importância para a medicina, permitindo focalizar mais de perto o fundamento científico da prática da psico-terapia, da psico-higiene e da

 psicoprofilaxia.A Psicologia ocupa posição especial em áreas específicas da medicina como a neurologia e a

 psiquiatria. Nessa área ela pode prestar ajuda substancial na solução de duas importantíssimas questões: odiagnóstico e a natureza da doença, por um lado, e o restabelecimento das funções perturbadas,

 por outro.Sabe-se que as afecções locais do cérebro só parcialmente se manifestam em sintomas daneurologia clássica como a mudança de sensibilidade, dos reflexos, do tônus e dos movimentos.Parte considerável dos grandes hemisférios cerebrais não tem relação direta com nenhum dosreferidos processos e a afecção dessas áreas do cérebro não provoca perturbações visíveisnestes. Essas partes dos grandes hemisférios estão relacionadas com a realização das formassuperiores de atividade psíquica como a análise do afluxo de informação, a formação de planos

e programas de ação e o controle do desenvolvimento da atividade consciente. É justamente por isto que, sem provocar sintomas fisiológicos nítidos, a afecção dessas áreas do cérebro provoca perturbações visíveis das formas complexas de atividade psíquica. Nos últimos decênios surgiu um novo campo da Psicologia — a neuropsicologia — jámencionado por nós. Este permitiu ver quais os fatores que, fazendo parte das formascomplexas de atividade psíquica, estão relacionados com determinadas áreas do cérebro,

 permitindo ver, ainda, que tipos de perturbação dos processos psíquicos se verificam na afecçãodessas áreas. Graças a isto tornou-se possível introduzir um método novo e prático dediagnóstico das afecções locais do cérebro, que aplica a análise psicológica do caráter das

 perturbações dos processos psíquicos superiores peio diagnóstico tópico das afecções cerebrais.Esse método consolidou-se na prática da neurologia e neurocirurgia clínicas. Nos capítuloscorrespondentes do presente livro mostraremos os dados de que dispõe a Psicologia para a

solução dessas questões práticas.26

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 Não é menor a importância da Psicologia para precisar o diagnóstico das doenças mentais. As perturbações da percepção e da ação, da memória e do pensamento assumem caráter absolutamente diverso sob diferentes formas de retardamento mental e diferentes doençasmentais. Por isto a aplicação dos métodos da psicopatologia experimental na psiquiatria clínica

 permite precisar substancialmente o diagnóstico das doenças mentais e se converte emcomponente essencial da Psicologia geral.É grande a importância prática da Psicologia na elaboração das bases científicas dorestabelecimento das junções perturbadas nas afecções cerebrais.Há relativamente pouco tempo ainda se considerava que as funções, perturbadas comoresultados de afecções locais do cérebro, não se restabeleciam e a afecção do cérebro(principalmente do seu hemisfério central, dominante) provocava perturbações irreversíveis econdenava o doente à total invalidez.Mas a doutrina da complexa construção sistêmica dos processos psíquicos superiores mostrouque cada forma complexa de atividade psíquica é realizada com o auxílio de todo um sistema dezonas cerebrais que trabalham conjuntamente e permitiu rever radicalmente essas teses.Mostrou que os sistemas funcionais, que se perturbam com qualquer afecção local do cérebro,

 podem ser reestruturados com base na criação de novos sistemas funcionais, baseados nas áreas

cerebrais' não-afetadas. Deste modo, as funções perturbadas podem ser restabelecidas em novas bases.A teoria do restabelecimento das funções psíquicas superiores (perturbadas durante afecçõeslocais do cérebro) por meio de um restaurador especial da aprendizagem, elaborada pelaPsicologia, tornou-se um importante componente da medicina moderna.Por último, cabe mencionar o último campo de aplicação prática da Psicologia: a psicologia

 forense. O promotor e o juiz estão constantemente diante de formas complexas de atividade psíquica do homem, dos seus motivos e traços caracterológicos, da gradação da percepção e damemória, das peculiaridades do seu pensamento. Por isto a consideração das características

 psicológicas desses processos deve ser componente obrigatório da preparação e da atividade do pessoal de atividade forense.A Psicologia elaborou um enfoque científico de duas importantes áreas da prática forense: a

análise dos depoimentos das27

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testemunhas e o diagnóstico psicológico da coparticipação no crime.Ficou demonstrado que os depoimentos de testemunhas asseguram matéria autêntica apenas emcertos limites e que o grau dessa autenticidade pode ser estabelecido mediante a aplicação deuma investigação psicológico-experimental.Por outro lado, o crime cometido deixa vestígios não só na situação externa como também no

 próprio psiquismo do criminoso, daí existirem métodos psicológicos especiais pelos quais essesvestígios podem ser descobertos.É natural que a incorporação da Psicologia à solução desses problemas permite dar umacontribuição importante para a construção da causa judicial em bases científicas e constitui áreaimportante da aplicação prática da Psicologia.Deste modo, a Psicologia não é apenas uma área importante da ciência como tem camposamplamente ramificados de aplicação prática, fornecendo bases científicas para importantescampos da prática.28

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IIA Evolução do PsiquismoCAPÍTULO anterior vimos como a ciência moderna entende o objeto da Psicologia e que aplicações

 práticas tem esse campo de atividade.

Agora enfocaremos um dos mais importantes problemas da evolução da atividade psíquica.  A origem do psiquismoA Psicologia pré-científica, que se desenvolveu nos pri-mórdios da filosofia idealista,considerava o psiquismo como uma das propriedades primárias do homem e a consciência comomanifestação direta da "vida espiritual". Por esta razão nem se colocava o problema das raízesnaturais do psiquismo, de sua origem e dos graus de sua evolução. A filosofia dua-lista supunhaque a consciência era tão eterna quanto a matéria, que aquela sempre existia paralelamente aesta.29

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A Psicologia científica parte de teses inteiramente diversas e se propõe a tarefa de encontrar uma resposta para o problema da origem do psiquismo, de descrever as condições nas quaisdeve ter surgido essa forma altamente complexa de vida.Sabe-se que a condição fundamental de surgimento da vida é o surgimento de complexasmoléculas albuminosas, que não podem existir sem um constante metabolismo com o meio.Para sobreviver, elas devem assimilar do meio ambiente as substâncias que são objeto dealimentação e necessárias para mantê-las vivas. Ao mesmo tempo, elas devem segregar para oambiente externo os produtos da desintegração cuja assimilação pode perturbar-lhes a existêncianormal. Esses dois processos — a assimilação e a eliminação — Integram o processo demetabolismo e são condição fundamental de existência dessas complexas formaçõesalbuminosas.É natural que essas moléculas albuminosas altamente complexas (às vezes são chamadascoacervaíos) possuam propriedades especiais, que respondem à ação das substâncias úteis oudas condições que contribuem para a assimilação dessas substâncias, respondendo também àinfluência nociva que lhes ameaça a existência. Deste modo, essas moléculas reagem

 positivamente tanto às substâncias alimentícias como a condições como a luz e o calor, quetambém contribuem para a assimilação. Reagem negativamente aos efeitos mecânicos ou

químicos superfortes que lhes dificultam a existência normal. Elas não reagem às influências"neutras" estranhas ao processo de metabolismo.Chama-se excitabilidade a propriedade que têm os coacervaíos de responder às influências queintegram o processo de metabolismo (sem dar resposta às influências exteriores "indiferentes" ).Essa propriedade fundamental se manifesta no processo de transformação da matéria inorgânicaem orgânica. Junta-se a ela uma segunda propriedade: a possibilidade de conservação das

 propriedades altamente especializadas da excitabilidade diante das influências, transmitindo degeração a geração as respectivas modificações das moléculas albuminosas. Essa última

 propriedade parece relacionar-se com a modificação de algumas frações dos aminoácidos(particularmente do ácido ribonucléico, que constitui o funda-30

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mento molecular da vida) e costuma ser considerada como importante processo que serve de base à memória biológica.Os processos de excitação diante de influências bióticas de importância vital, a aquisição deformas de excitação altamente especializadas e sua conservação com a transmissão imediata àsgerações seguintes caracterizam o estágio de evolução da vida habitualmente denominado vidavegetativa.Esses processos caracterizam toda a vida, começando pelas algas mais simples e terminandocom as formas complexas de vida vegetativa. Eles condicionam os chamados "movimentos dosvegetais", que, em essência, são apenas formas de uma intensa troca ou crescimento, dirigido

 pela excitação em relação às influências bióticas (umidade, iluminação, etc). Fenômenos comoo crescimento da raiz do vegetal no sentido da profundidade do solo ou o crescimento irregular do tronco dependendo da iluminação ou a inclinação dos vegetais no sentido dos raios solaresconstituem apenas o resultado do fenômenos da "excitação" diante das influências bióticas(não indiferentes para a vida).Há uma circunstância que é essencial para a vida vegetativa. O vegetal que responde com umintenso metabolismo às influências bióticas não reage às influências exteriores, que integram o

 processo imediato do metabolismo. Ele não se orienta ativamente no meio ambiente e pode, por 

exemplo, morrer por falta de luz ou umidade, mesmo que as fontes de luz e umidade estejam bem próximas mas não tenham efeito imediato sobre ele.Dessa forma passiva de vitalidade distinguem-se acen-tuadamente as formas de existência naetapa seguinte da evolução: o estágio da vida animal.Cada organismo animal, a começar pelos protozoários, caracteriza-se pelo fato de que o animal reage não só às influências bióticas, que integram o processo imediato do metabolismo, mastambém às influências "neutras", não-bióti-cas, se estas anunciam o surgimento de influências("bióticas") de importância vital. Noutros termos, os animais (mesmo os protozoários) seorientam ativamente na claridade, procuram condições de importância vital e reagem a todas asmudanças do meio, que são um sinal do surgimento dessas condições. Quanto mais intenso é ometabolismo, quanto maior é a necessidade de obter alimentação que o ser vivo simples sente,tanto mais ativos são os seus movimentos e

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tanto mais vivificadas são as formas em que se produz sua atividade de "orientação" ou"procura".Essa capacidade de reagir aos instigadores "abióticos" neutros sob a condição de que elessinalizem para o surgimento de influências de importância vital, capacidade essa que surge noestágio de transição para o mundo animal, é chamada sensibilidade, diferentemente dosfenômenos da ex-citabilidade. É o surgimento da sensibilidade que pode servir de indíciobiológico objetivo do surgimento do psiquismo.Variabilidade do comportamento dos proiozoáriosA sensibilidade aos instigadores "neutros", se estes começam a dar sinais do surgimento deinfluências de importância vital, provoca mudanças radicais nas formas de vida. O principalconsiste em que o ser vivo começa a "orientar-se" no meio ambiente, a reagir ativamente a cadamudança que neste se processa, ou seja, começa a adquirir  formas de comportamentoindividualmente variáveis, que não existiam no mundo vegetal.

 Nos primeiros períodos a aquisição desse comportamento individualmente variável se processacom relativa lentidão, mas apesar disto consegue-se observar o fenômeno até em condições deexperimento.Citemos um experimento típico, realizado pelo pesquisador alemão Bramstedt.

Sabe-se que os unicelulares, usados nesse experimento, são sensíveis ao calor (qué é para elescondição biótica de importância vital, indispensável ao metabolismo) mas são insensíveis à luz.Por isto se os colocarmos numa câmara igualmente aquecida, com uma parte clara e outraescura, eles se distribuem igualmente por toda a câmara. Se, ao contrário, aquecermos uma parteda câmara igualmente iluminada, eles se concentram no canto aquecido. Mas se durante longo

 período iluminarmos o canto aquecido e escurecermos o não-aquecido, a situação muda e osunicelulares se tornam sensíveis à luz, que agora adquire para eles o significado de sinal deelevação da temperatura e começam a concentrar-se no canto iluminado da câmara, apesar ias.diferenças de temperatura.32

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É fato característico que essa sensibilidade à claridade se forma paulatinamente entre os unicelulares, podendo desaparecer inteiramente se durante longo período a luz não for reforçada pelo calor.Essa mutabilidade individual do comportamento dos pro-tozoários pode ser provocada com base em suasreações defensivas, se mudarmos as condições que provocam essas reações. Pode servir de exemplo oexperimento do conhecido pesquisador polonês Edward Dembowski.Colocados numa proveta arredondada com água, os pro-tozoários fazem movimentos que lhes são

característicos. Co-locados.em tubo idêntico porém com uma seção quadrangular, eles começam a bater-se contra os vidros dessa proveta mas logo seus movimentos adquirem caráter modificado, que garantemo mínimo de batidas contra as paredes do vaso. Por conseguinte, a trajetória desses movimentos começa arefletir a configuração do vaso. A trajetória por eles adquirida se mantém inclusive quando eles sãorecolocados num vaso arredondado e passam algum tempo fazendo os mesmos movimentos pelatrajetória rômbica.O processo de mutabilidade do comportamento-individual dos protozoários, que os distingueacentuadamente dos vegetais, transcorre com relativa lentidão e as mudanças que surgem desaparecemcom a mesma lentidão. Mas essas mudanças são tão importantes que as novas formas de comportamentoemergentes (de adaptação às novas condições) permitem realizar as respostas necessárias de adaptação àsnovas condições de modo muito mais rápido do que se verificava em nível inferior da escada evolutiva.Exemplo típico desse processo encontramos no experimento do estudioso americano A. Smith.Um ciliado (tipo de protozoário) foi colocado num vaso estreito com seção microscópica. A seção era tão

 pequena que para sair do tubo no sentido da ação do agente biótico (a luz) o ciliado tinha de virar-se, batendo contra as paredes do tubo. No começo do teste ele gastava de 3 a 6 minutos para virar-se. Mas seesses experimentos eram repetidos várias vezes durante 10-12 horas, o ciliado começava a virar-se comrapidez bem maior e no final do teste gastava apenas 1-2 segundos para virar-se. Assim, sob a influênciadas novas condições, obtinha-se uma nova "habilidade", que33

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se processava com uma rapidez 180-200 vezes superior à reação inicial.Como vemos, a formação de um novo tipo de comportamento, que corresponde às condiçõesmudadas, exige dos protozoários bastante tempo. É característico que, uma vez surgida, amudança do comportamento se mantém entre eles durante período bastante longo, sendonecessário muito tempo para desaparecer.Isto pode ser observado tanto entre os protozoários uni-celulares como entre os pluricelulares deorganização relativamente simples.O exemplo, que mostra esse surgimento tão lento e o desaparecimento igualmente lento da novaforma de comportamento, pode ser visto no experimento realizado inicialmente pelo

 pesquisador belga Blesson, posteriormente pelo pesquisador soviético A. N. Leôntyev (cf.Leôntyev, A. N., Problemas da evolução do psiquismo).Ainda não conhecemos os mecanismos biológicos dessa manifestação de sensibilidade aoagente neutro inicial. É possível que ela esteja relacionada com a mudança paulatina das

 propriedades bioquímicas do protoplasma. No entanto o fato da manifestação, em vida, denovas formas de reação indica o surgimento de urna mutabilidade individual no comportamentodos protozoários e dá fundamento para falar-se do surgimento de um comportamento autêntico,embora muito elementar, nessa fase da evolução.

Mecanismos do comportamento dos protozoáriosA ciência ainda conhece muito pouco a respeito das condições físico-químicas docomportamento dos protozoários e das causas dos seus movimentos positivos ou negativos(movimento no sentido de uns objetos ou o movimento a partir de outros objetos,respectivamente).Sabe-se que o protoplasma, que compõe o corpo do animal protozoário (unicelular), éconstituído de uma camada exterior mais sólida (plasma-gel) e de uma camada interior maislíquida (plasma-sol). Sabe-se também que as camadas externas do protoplasma dounicelular são mais34

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excitáveis do que as camadas internas, e cada ação externa provoca intenso metabolismo, que se estende paulatinamente das camadas externas às internas, extinguindo-se conforme o tipo de.gradiente deexcitação paulatinamente decrescente. Esses gradientes de excitação, ao que parece, servem de base aosmovimentos do unicelular, que surgem tão logo a influência externa provoca intenso metabolismo no ponto correspondente de sua superfície ou quando os processos internos levam à necessidade de procurar ativamente as substâncias necessárias para assegurar semelhante metabolismo.

Alguns autores supõem que influências adequadas de força moderada provocam reação positiva dounicelular e levam a um movimento no sentido da respectiva influência, ao passo que influênciasinadequadas (ultrafortes ou nocivas) provocam movimento negativo, dirigido a partir do objeto influente.O movimento positivo leva a que o ohjeto que provoca irritação é inicialmente envolvido pelos filetes do protoplasma, que, entre os unicelulares mais simples (amebas), é depositado no lugar de metabolismomais intensivo e fecha-se em torno desse objeto, incíuindo-o na composição do corpo do unicelular. Seesse objeto é alimentício, ele é absorvido pelo corpo do unicelular, segregando-se para o meio o produtoda desintegração. Não sendo aliníen-tício, ele é rejeitado para o meio ambiente pelo mesmo caminho quefoi apanhado.Seria, entretanto, incorreto supor que todos os movimentos dos unicelulares se processam por umesquema tão simples. Uma peculiaridade do comportamento dos unicelulares é o fato de que asinfluências que chegam até eles podem, elas mesmas, sofrer as mais complexas modificações. O próprio protoplasma do unicelular nunca se encontra em estado de tranqüilidade, mas se caracteriza por sistemas

altamente diferenciados e seletivos de excitação, que mudam segundo o processo de metabolismo quenele se opera e leva ao surgimento de formas dominantes de excitação.Como mostraram os experimentos de Fogler, a influência mecânica de certa força provoca apenas reaçõesrelativamente fracas do protozoário, sendo que a excitação pela luz pode não provocar nenhuma reação.Mas se sobre o protozoário agem simultaneamente a instigação mecânica de determinada força e aexcitação por luz, esses dois estímulos se somam e levam a intensivas reações do protozoário.35

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Sabe-se que a capacidade de reação da ameba faminta é maior do que a mesma capacidade daameba saciada, e ela cria elevada disposição de responder aos estímulos positivoscorrespondentes ou às instigações que sinalizam o surgimento destes.Por último, o unicelular pode "acostumar-se" aos estímulos correspondentes, reduzindo aresposta a eles na medida do seu prenuncio repetido e longo.Os mecanismos que servem de base a esse fenômeno ainda são pouco conhecidos e só asobservações ultimamente feitas levam a pensar que o surgimento e a manutenção dessesestímulos são o resultado de certas modificações e do ácido ribonucléico, que é um doscomponentes básicos do seu plasma.Cabe observar que o corpo dos protozoários é relativamente homogêneo e que o processo dometabolismo mais intensivo pode surgir nele no lugar da excitação que surge imediatamente,formando com isto o extremo "cerebral" provisório do seu corpo.Os unicelulares mais complexos têm estrutura incomparavelmente mais complexa. Neles

 podemos distinguir "órgãos" permanentes em forma de áreas sensíveis do protoplas-ma, queformam, por exemplo, os "flagelos" das bactérias. Esses "flagelos" estão em movimento

 permanente e são agentes das funções mais importantes de orientação no meio exterior; é nelesque surgem os gradientes de excitação constante, que, espalhando-se pelo resto do corpo do

unicelular, coloca-o em movimento.A riqueza de comportamento dos unicelulares é muito grande e ainda será objeto de estudoespecial, assim como os mecanismos que lhe servem de base. Mas' o que já sabemos a seurespeito nos leva a pensar que, aqui, estão lançadas as bases da complexa atividade daorientação ativa no meio, que mais tarde constituirão traço importantíssimo da atividade

 psíquica.Origem do sistema nervoso e suas formas mais simplesOs processos descritos de irritação em face das influências bióticas, de sensibilidade àsinfluências neutras que36

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anunciam o surgimento de influências de importância vital e de conservação elementar dosvestígios são suficientes para a conservação da vida dos animais unicelulares.Mas eles se tornam insuficientes com a transição aos plu-ricelulares.A transição para os multicelulares complica substancialmente as condições de vida. Aalimentação por meio da difusão direta de substâncias alimentícias, que ocupou posição centralno nível dos protozoários, agora é substituída pelo consumo de comida discreta (concentrada);eleva-se o papel da orientação ativa no meio externo. Torna-se necessário assegurar movimentos bem mais diferenciais e uma con-dutibilidade da excitação bem mais rápida do queaquela que se obteve por meio da difusão paulatina dos gradientes de excitação no protoplasmados unicelulares. É isto que leva a uma considerável complicação da estrutura do corpo do plu-ricelular, à separação das células de uma recepção especial de irritações que chegaram ao corpodo animal, e ao surgimento das primeiras células contrativas, agentes da função que nas etapas

 posteriores da evolução será assumida pelas células musculares. Isto leva, por último, a que noslugares dos antigos gradientes de excitação comecem a formar-se passagens do protoplasmamais excitável e se constitua a forma mais elementar do sistema nervoso, qué entre essesanimais tem o caráter de sistema nervoso difuso e com forma de rede.Tudo isto pode ser visto com nitidez especial na estrutura dos pluricelulares relativamente

simples, pertencentes à classe dos celenterados, por exemplo, na estrutura do corpo da medusa,anêmona-do-mar e estrela-do-mar.Esse estágio da evolução dos pluricelulares se caracteriza pelo fato de que a condutibilidade daexcitação se acelera muitas vezes graças ao surgimento do sistema nervoso reti-cular. Se o

 processo da excitação pelo protoplasma não vai além da velocidade de 1-2 mícrons por segundo, com o surgimento do sistema nervoso mais simples (reticular) a velocidade do

 processo é igual a 0,5m por segundo (observemos que com a contínua evolução do sistemanervoso e a passagem para as etapas seguintes de sua complicação, a velocidade do processo deexcitação aumenta ainda mais, chegando nos sapos a 35 metros por segundo e a 125 metros por segundo nos vertebrados superiores).37

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 No entanto as vantagens consideráveis, que surgem com o aparecimento do sistema nervoso difuso primário (reticu-lar), têm também os seus limites. Como nas etapas da evolução já descritas, os animaiscom sistema nervoso reticular ainda não têm extremidade cerebral permanente que dirija o seucomportamento. A excitação se difunde de maneira igual pelo sistema nervoso reticular em todo o corpodo animal, e o lugar da aplicação da instigação exterior se torna c ponto principal provisório. Só entre oscelenterados mais complexos, uma parte do corpo (por exemplo, um raio da estrela-do-mar) não difere

 pela estrutura de outras partes do corpo (raios), pode tornar-se dominante e assume a função de órgãomais ativo no movimento. Se amputarmos na estrela-do-mar esse raio "dominante", o papel de"dominante" passará para outro raio, disposto ao lado dele.É natural que essa falta de um órgão dominante permanente, capaz não só de receber mas também de processar, codificar a informação recebida e criar programas de comportamento diferenciado, limitasubstancialmente as possibilidades do comportamento nesse nível. Esses defeitos são eliminados nasetapas posteriores da evolução, sobretudo com a transição para a vida terrena e com a formação de umsistema nervoso ganglionar de construção mais complexa.O sistema nervoso ganglionar e o surgimento dos programas de comportamento mais simplesA transição para a vida em terra está relacionada com uma considerável complicação das condições devida. A difusão direta de substâncias alimentícias do meio circundante torna-se impossível, tornando-seincomparavelmente menor a quantidade de comida sólida (discreta) pronta. Essa alimentação encontra-seagora num meio acentuadamente heterogêneo e a orientação necessária para obtê-la se torna bem mais

difícil.Tudo isso gera a necessidade de sucessiva complicação do organismo dos animais, criando antes de tudouma evolução posterior dos órgãos complexos de recepção e movimentos e de formação de aparelhoscomplexos e centralizados de processamento da informação e regulamento dos movimen-38

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tos. É a isto que corresponde a etapa seguinte da evolução do sistema nervoso, que leva aosurgimento do sistema nervoso em cadeia ou ganglionar, que aparece pela primeira vez nosvermes e adquire a máxima complexidade nos invertebrados superiores, principalmente nosinsetos.Tanto o surgimento do sistema nervoso ganglionar como a formação do comportamento, que se

 processa com a ajuda dele, marca um salto de suma importância na evolução da atividade vital. Nos invertebrados mais simples (vermes) já se pode observar um princípio inteiramente novo deorganização do sistema nervoso em comparação com o estágio anterior. Na extremidade frontaldo verme, concentram-se filamentos que terminam em receptores químicos e táteis, distribuídosde maneira especialmente densa. Esses aparelhos percebem mudanças químicas, térmicas e deluz que ocorrem no meio exterior, bem como mudanças de umidade. Os sinais dessas mudanças

 passam pelos filamentos e chegam ao núcleo frontal ou gânglio, onde se concentram no primeiro "centro" que surge pela primeira vez nessa fase da evolução. Aqui esses sinais sãocodificados, e os "programas" de comportamento que surgem em forma de impulsos motores sedifundem pela cadeia dos gânglios nervosos; cada um desses gânglios corresponde a umsegmento particular do corpo do verme. Os impulsos que chegam a esses gânglios provocammovimentos correspondentes cuja direção é programada e regulada pelo gânglio frontal.

Aqui surge um novo princípio: o da centraiidade do sistema nervoso, que se distingueacentuadamente do princípio da construção do sistema nervoso difuso (reticulado). Aextremidade da cabeça do verme, onde se concentra uma rede especialmente densa de hemo,-mecano,-termo,-foto e hi-dro-receptores, assume papel principal, ao passo que os gângliossegmentares conservam apenas uma autonomia relativa. Isto é facilmente verificável sedividirmos ao meio o corpo do verme. Neste caso a parte dianteira se enfiará no chão,conservando seus movimentos organizados, enquanto a parte traseira se limitará a simplescontorções, sem revelar nenhum indício de movimento organizado.A complicação da esrtutura do sistema nervoso no estágio dos vermos permite observar entreeles tipos mais perfeitos (se bem que ainda muito primitivos) "de formação de no-39

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vos modelos de comportamento individualmente adquiridos. Isso foi demonstrado em seu tempo pelofamoso psicólogo americano R. M. Yerkes, que colocou minhocas num tubo em forma de T, labirintoextremamente simples. No extremo esquerdo do tubo a minhoca recebia choque elétrico, que provocavareação defensiva. Com várias repetições desse experimento, a minhoca podia adquirir a ''habilidade" deevitar o choque elétrico e encaminhar-se para o lado direito. A lentidão com que se desenvolveu esse processo pode ser vista no seguinte: foram necessários mais de 150 testes para que o comportamento da

minhoca adquirisse caráter organizado e na grande maioria do testes ela começasse a encaminhar-se paraa direita, evitando o choque elétrico.  Processo de  "ensinamento" da minhoca  no labirinto em forma de T Testes   N" de t 1-40   — 41-80   — 81-120   — 121-160   — 161-200   — 201-240   —  Processo de "reensinamento" da minhoca no labirinto em forma de T 

'rro s

Testes JV? de erros

17  Ensinamento repetido

14 1-40  —. 19

13 41-80  —  9

9 81-120  —  4

4  Reensinamento

4 161-165  —  4

166-175  —  7

176-185  —  7

186-195  —  7

196-205  —  5

206-215  —  3

216-225  —  2

Repetindo-se esse mesmo experimento após uma longa pausa, a "aprendizagem" começa a a processar-seduas vezes mais rápido e depois de 80 experimentos o número de erros já é mínimo. Foi sintomático,ainda, que os experimentos de "reensinamento" da minhoca (nesses testes a minhoca já começava areceber choque elétrico da direita e não da esquerda) se desenvolveram de modo consideravelmente maislento e só depois de 200 testes começava a manifestar-se algum efeito do "reensinamento".40

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Isto mostra que o sistema nervoso ganglionar dos vermes permite adquirir não apenas novasformas de comportamento como também conservar as "habilidades" adquiridas, noutros termos,que a minhoca possui uma forma primitiva de memória.Ultimamente têm sido realizados experimentos que per» mitem que nos convençamos da

 possibilidade de transmissão dessa "habilidade" e demos alguns passos no sentido da elucidaçãodos mecanismos bioquímicos que servem de base à memória elementar. Nesses experimentos, o

 pesquisador americano J. V. Mc Connell "ensinou" a um grupo de vermes o comportamentonecessário num labirinto muito simples. Depois disto, ele triturou os corpos desses vermes, fezdeles um extrato e com este alimentou outros vermes que nunca haviam sido ensinados. Comomostrou o experimento, os vermes que absorveram esse extrato "assimilaram" simultaneamenteas habilidades adquiridas pelo primeiro grupo de vermes. Ao serem colocados pela primeira vezno labirinto, eles cometeram imediatamente bem menos erros do que os vermes comuns não-ensinados. Esse fato levou Mc Connell ã Supor que a aquisição de "habilidade" nessas etapas daevolução está relacionada com profundas mudanças bioquímicas do proto-plasma e que a"habilidade" adquirida pode ser "transmitida" por via humoral.A ciência não dispõe de uma apreciação definitiva e pela interpretação dos dados obtidos nesseexperimento pode-se apenas supor que as mudanças, provocadas por semelhante

"aprendizagem", estão relacionadas com a modificação do ácido ribonucléico (ARN) . Isto foimostrado pelos experimentos nos quais os corpos dos vermes "ensinados" foram previamentedepositados em solução de ribonuclease (fermento que dissolve o ARN) . Depois disto o extratodas partes posteriores do corpo dos vermes "ensinados" não provocou o efeito necessário, ao

 passo que o extrato das partes anteriores dos vermes "ensinados" (incluindo a substância degânglio frontal) continuou provocando o' mesmo efeito. Esses experimentos se referem tanto àimportância do ácido ribonucléico para a conservação da "habilidade" como à importância que

 para a conservação da "memória" do verme tem o gânglio frontal, cujas células são imunss aoefeito dis-.solvente do, ribonuclease.41

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Até hoje se discute na ciência se esses experimentos se referem à "transmissão de informação" por via humoral ou apenas ao aumento geral da "excitabilídade", verificado na assimilação dasubstância dos corpos dos vermes ensinados, Apesar de não haver uma resposta definitiva a essaquestão, os resultados dos experimentos mostram que nessa etapa da evolução é possível aaquisição de uma "habilidade" estável e que todas as células do corpo do animal parecem

 participar da conservação dessa "habilidade".Surgimento das formas complexas de programação hereditária do comportamento("instintivo")A evolução posterior do comportamento está relacionada com o surgimento de aparelhoscomplexo-diferenciados de recepção, que permitem assimilar uma informação altamenteespecializada que vem do meio exterior. Essa evolução está relacionada, ainda, com odesenvolvimento de programas sumamente complexos, que permitem ao animal adaptar-se àscondições complexas porém permanentes e estáveis do meio. Tudo isso se torna possível nasetapas posteriores da evolução do sistema nervoso ganglionar e se manifesta com nitidezespecial nos articulados.As complexas condições de vida tornam necessária a formação de órgãos multiformes desensibilidade, que permitam registrar as diversas influências do meio exterior. Vejamos isto no

exemplo da evolução dos fotorreceptores. A princípio, as células sensíveis à luz estavamsimplesmente concentradas na superfície frontal do corpo, dando ao animal a possibilidade deassimilar o efeito da luz mas não permitia localizar a fonte da luz no espaço. Na etapa seguinteda evolução, as células sensíveis à luz se concentravam em dois discos sensíveis à luz,localizados nos dois lados da extremidade frontal do corpo. Isto permitia aos animais orientar-sea respeito da posição espacial da fonte de luz e voltar o tronco para a direita ou a esquerda masainda não permitia distinguir as propriedades do objeto que agia sobre o organismo. Só naúltima etapa da evolução, os discos hipersensíveis se arqueavam, adquirindo a forma de umaesfera vazia. Um pequeno orifício, que mais tarde foi preenchido pelo meio refra-tário (ocristalino), permitia a refração da luz cadente e o efei-42

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to de objeto luminoso se imprimia na camada sensível dessa esfera vazia. Surgia o órgão docomplexo receptor fotossensível — o olho —, que pela primeira vez permitia não apenas reagir à existência da luz como também refletir as propriedades do objeto agente.A estrutura do olho, o mais importante órgão receptor de luz, é diferente em animais diferentes.

 Nos insetos ela tem o caráter de "olho de faceta", construído, às vezes, de muitos milhares decélulas independentes. Entre os vertebrados assume a forma do olho único tão familiar entrenós, que permite perceber o reflexo do objeto e mudar a nitidez do reflexo por meio' de umsistema auto-regulável de aparelho refratário. Mas em todos os casos o surgimento de um órgãocomplexo, que permite reconhecer à distância os objetos agentes, continua sendo uma dasconquistas mais importantes da evolução.Os insetos possuem um grande número de receptores altamente diferenciados. A par com ocomplexo "fotorrecep-tor (o olho), eles têm receptores químico-táteis especiais (situados nasantenas), receptores de sabor (situados na cavidade bucal, nas pernas), que captam as mínimasmudanças de sabor, receptores de vibração (situados nos tímpanos das pernas), que reagem àsmais ínfimas vibrações ultra-sônicas, às vezes até a 600.000 vibrações por segundo. É possívelque eles ainda tenham toda uma Série de órgãos receptores por nós desconhecidos, cujaespecialização foi por eles desenvolvida em um processo de milhões de gerações.

As excitações, provocadas pelos efeitos que atingem esses aparelhos receptores, difundem-se pelos filamentos nervosos e chegam ao gânglio frontal, que é um protótipo do cérebro e umaparelho que reúne (codifica) os impulsos que chegam até ele e transferem esses impulsos paraos sistemas ultracomplexos de programas congênitos de comportamento, que servem de baseaos movimentos de adaptação dos insetos .O gânglio frontal dos insetos superiores, das abelhas, por exemplo, apresenta uma estruturamuito complexa. É formado por um acúmulo de células nervosas diferenciadas, às quais chegamos impulsos dos receptores periféricos. Na parte frontal desse gânglio se situam principalmenteas células visuais, na parte média, as células olfativas, na parte posterior, as células sensíveis dacavidade bucal. É característi-43

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co que a disposição dessas células tem caráter organizado. Nelas já se pode observar umaestrutura plana de "vídeo", que permite que as excitações provocadas se difundam nas estruturasneurôniças do gânglio frontal em forma organizada, assegurando com isto o reflexo dedeterminadas influências estruturalmente organizadas.Como foi estabelecido pelas últimas pesquisas, é característico que já nessa fase da evoluçãofaçam parte da composição do gânglio frontal os neurônios altamente especializados, quereagem aos mínimos indícios particulares da informação que chega ao organismo, dividindo-aem grande número de elementos componentes e permitindo, posteriormente, reuni-los emestruturas integrais (adiante falaremos da forma de funcionamento desses neurônios).Tudo isso torna o gânglio frontal dos insetos superiores um aparelho central sumamentecomplexo, que permite captar as múltiplas influências do meio e codificar as influênciascaptáveis em sistemas integrais.Os códigos de excitações, que surgem em determinadas irritações no gânglio frontal dos insetos,são transmitidos na forma de programas complexos de comportamento ao gânglio toráxicosituado abaixo, onde surgem os impulsos dos complexos movimentos de adaptação do inseto,impulsos esses que lhe formam o comportamento.Os complexíssimos programas de comportamento dos insetos representam um interesse tão

grande que exigem análise especial e minuciosa.A peculiaridade dos programas sumamente complexos, que representam uma parcela deabsoluto predomínio no comportamento dos insetos, consiste em que tais programas sãocongênitos e transmissíveis por hereditariedade. Esses programas são produzidos por milhõesde gerações e transmitidos por hereditariedade do mesmo modo que as peculiaridades daestrutura do corpo (as formas das asas, as características da tromba, a estrutura dos órgãosreceptores. Eles estão bem adaptados às condições de existência dos insetos).São inúmeros os exemplos de programas congênitos de comportamento, entre os insetos.Freqüentemente eles são de tal forma complexos e racionais que alguns autores os consideraramexemplo de comportamento racional.É sabido que a larva do gorgulho da bétula corta-lhe a folha numa forma geométrica ideal,

 próxima da estrutura

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ideal matematicamente calculada, para em seguida transformá-la em canudo e utilizá-lo parametamorfosear-se em cri-sálida. O mosquito deita as células sobre a superfície da água e nuncana terra, onde elas secam fatalmente. A vespa esfecídea deita as células no corpo da lagarta paraque as larvas que venham a nascer não sintam falta de alimento. Para tanto ela fura previamenteo gânglio do tronco da lagarta de maneira a que esta não morra mas fique apenas semmovimento; isto ela faz com admirável precisão. Não é necessário falar dos programascongênitos de comportamento da aranha, que tece uma teia impressionante pela construção, oudos programas congênitos de comportamento da abelha, que constrói favos de formaeconomicamente ideal, enche esses favos de mel e os lacra com cera tão logo eles estejamsuficientemente cheios.Os exemplos citados de comportamento racional altamente complexo, e muitos outros, sãocongênitos, os insetos não precisam estudá-lo, nascem com essas formas de comportamentoassim como nascem com uma estrutura dos órgãos dos sentidos impressionante pelaracionalidade.Tudo isso deu a muitos autores fundamentos para falar da racionalidade dos instintos eaproximá-los do comportamento racional.Só ultimamente as pesquisas dos zoólogos, particularmente da corrente denominada etologia

(etos -— comportamento), deram certa clareza à forma misteriosa do comportamento emostraram que essa forma de atividade, que impressiona pela complexidade e a aparenteracionalidade, encobre mecanismos elementares. Essas pesquisas mostraram que oscomplexíssimos programas de comportamento "instintivo" são gerados de fato por estímuloselementares, que colocam em ação os ciclos congênitos dos atos de adaptação.Assim, o brilho da água leva o mosquito a deitar células na superfície aquosa. Por isto bastasubstituir a água por um espelho brilhante para o mosquito começar a depositar células em suasuperfície. O complexo programa congênito de atividade da aranha, que ataca a mosca que seenreda na teia e a devora, é gerado de fato pela vibração da teia; se um diapasão vibrante toca atela, a aranha se lança contra ele assim como se lança contra a mosca.Os mecanismos descritos permitem avançar consideravelmente no sentido de melhorar acompreensão dos processos que servem de base ao comportamento congênito e

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 passar da simples descrição à sua explicação, mostrar o quanto o comportamento instintivodifere do comportamento racional.Citemos apenas um exemplo, que mostra a complexidade com que se desenvolve semelhante

 pesquisa e que interessantes são os resultados a que ela conduz.É sabido que algumas variedades de minhocas, após se abastecerem de folhas para o inverno,arrastam-nas para os seus buracos pela extremidade fina. Isto se considerava manifestação da"atividade racional" das minhocas, à qual Dar-win se referiu em sua época, e levava a supor quea minhoca percebe a forma da folha e "calcula" por que extremidade é melhor arrastá-la para o

 buraco.Essa hipótese mudou substancialmente depois que o pesquisador alemão Haneli realizou oseguinte experimento: cortou de uma folha um pedaço, reproduzindo a forma dessa folha mascom a ponta para baixo. Neste caso a minhoca tentou arrastar a folha para o buraco não pela

 ponta fina, mas pela grossa. A causa desse comportamento da minhoca tornou-se objeto da pesquisa de outro cientista — Manholdt. Este supôs que o comportamento da minhoca fossedeterminado não pela percepção da forma mas por uma sensibilidade química bem maiselementar. Para verificar isto ele colocou diante da minhoca vários pauzinhos iguais, mas

 passou seiva da parte superior da folha numa ponta dos pauzinhos, fazendo o mesmo na ponta

de outros com seiva da base da folha e, ainda, seiva da parte superior numa ponta e seiva deenxerto noutra. Como testes de controle, passou seiva da parte superior ou do enxerto da folhanuma ponta dos pauzinhos, passando gelatina neutra em outra. Os resultados do teste mostraramque, nesses casos, a freqüência com que a minhoca arrastava o pauzinho para o buraco por umaou outra ponta não era a mesma e que o fator principal que resolvia a questão era a diferença dedistinção química entre a parte superior e seu enxerto.(a)  (b)  (a/b)seiva da parte superior — bases da folha (b) relação de preferên-da folha (s)cia de uma ou ou-

  parte superior da folha (s) — enxerto  (t) tra extremidade da  parte superior da folha (s) — gelatina  (g) folhaenxerto  (e) — gelatina  (g)  51:4968:32 93:7 84:16

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Assim, se uma ponta do pauzinho estava untada com seiva da parte superior da folha e a outra ponta com seiva da base, a minhoca não manifestava qualquer preferência por essa ou aquela ponta. Se uma ponta estava untada com seiva da parte superior da folha e a outra com seiva doenxerto, a minhoca preferia duas vezes mais a ponta com seiva da parte superior. No teste decontrole em que se passava* gelatina neutra numa ponta do pauzinho, essa preferência pelaseiva da parte superior da folha foi ainda mais nítida.Deste modo, a hipótese segundo a qual a minhoca reage à forma da folha foi abandonada,mostrando-se que um sentido químico bem mais simples desempenha papel decisivo no

 processo dessa complexa forma de atividade.Todas as observações descritas permitiram que nos convencêssemos de que, apesar dos

 programas de comportamento congênito muito complexos que dominam nos invertebrados(principalmente nos insetos), eles podem ser acionados por sinais relativamente simples. Essessinais, que acionam mecanismos congênitos muito complexos, refletem as condições ecológicasde vida do animal e são produtos de uma longa evolução.As condições que põem em ação os programas congênitos de comportamento, manifestaram-se .com nitidez especial na análise dos indícios a que reage o inseto (a abelha, por exemplo),quando esta pousa seletivamente sobre essas ou aquelas espécies de flores melíferas.

Verificou-se que esses indícios podem ser constituídos pela forma complexa da flor e às vezes por seu colorido.Como mostraram em pesquisa o famoso zoólogo alemão Frisch e posteriormente Hertz comseus experimentos, nos quais a abelha era treinada para pousar em xícaras com solução deaçúcar, cobertas por desenhos de diferentes formas geométricas, é com dificuldade que a abelhadistingue formas geométricas simples como o triângulo e o quadrado, mas distingue facilmenteformas complexas como a estrela pentagonal e hexagonal ou figuras cruciformes, dispostas sobângulos diversos. Por último, a abelha distingue com a mesma facilidade o círculo simples e ocortado, não pousando sobre o primeiro e reagindo seletivamente ao segundo.Essas pesquisas mostram que o fator que permite à abelha distinguir as formas correspondentesnão é constituí-47

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do pela simplicidade geométrica destas mas por sua semelhança com os instigadores naturais:a forma das flores.Deram resultados análogos experimentos em que a abelha distinguiu coloridos diferentes. Elesmostraram que a abelha distingue com dificuldade as cores puras, distingue com muito maisfacilidade as cores mistas (vermelho-amare-lo, amarelo-verde, verde-azul, etc), que reproduzemo colorido de flores diferentes.Tudo isso mostra que o fator decisivo para a distinção dos indícios que acionam os programascongênitos (instintivos) de comportamento são as condições naturais de vida (condiçõesecológicas), que determinam exatamente o indício distinguido pelo animal.É muito possível que essa elevada seletividade dos indícios a que reage o inseto estejarelacionada com o surgimento de neurônios do gânglio frontal altamente especializados, que, no

 processo de evolução, adquiriram a capacidade de responder seletivamente aos estímulos deimportância vital como as cores mistas, o aspecto estrelário ou o corte das formas, a disposiçãodas formas no espaço, etc.As pesquisas, realizadas por zoólogos e psicólogos, convenceram de mais uma importantíssima

 peculiaridade do comportamento congênito "instintivo". Verificou-se que os programascongênitos de comportamento "instintivos" são racionais apenas em determinadas condições

rigorosamente padronizadas, de acordo com as quais esses programas se formaram no processode evolução. Mas basta mudar um pouco essas condições para que os programas congênitosdeixem de ser racionais e percam seu caráter "racional".Essa tese pode ser ilustrada com dois exemplos. Sabe-se que uma espécie de vespas formou umcomportamento muito "racional". Ao chegar com a presa ao buraco onde a guada, ela deixa a

 presa junto do buraco, entra nele e depois de encontrá-lo vazio sai, traz a presa para dentro e seretira.Mas a questão muda substancialmente quando num experimento especial, aproveitando omomento em que a vespa faz seu reconhecimento no buraco, pega-se a presa que está na bocado buraco, afastando-a alguns centímetros. Neste caso, ao sair do buraco e não encontrar a presano lugar anterior, a vespa torna a arrastá-la para a posição anterior e. .. volta a entrar no buracoque acaba de inspecionar. A

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vespa pode repetir esse comportamento muitas vezes consecutivas, e sempre que a presa se deslocaalguns centímetros ela continua a repetir mecanicamente o reconhecimento do buraco, perdendo nessascondições a sua racionalidade.Observações análogas foram feitas com abelhas. É sabido que a abelha enche os favos com mel e, apósdepositar a quantidade suficiente de mel, lacra os favos. Mas se em condições de um experimentoespecial corta-se todo o fundo dos favos, derramando-se o mel neles depositados pela abelha, esta

continua a lacrar os favos vazios durante o períoSo fixado em seu programa instintivo. E aqui ocomportamento, que fora racional em condições padronizadas e permanentes de vida, perde suaracionalidade quando essas condições se modificam.Tudo isso mostra que os programas congênitos "instintivos" de comportamento, predominantes naatividade dos insetos, são programas rotineiros, mecânicos, conservando sua aparente "racionalidade"apenas sob condições padronizadas permanentes segundo as quais eles foram adquiridos no processo daevolução.A racionalidade desse predomínio de programas específicos de comportamento corresponde ao princípio biológico fundamental de vida dos insetos. Via de regra, estes depositam um imenso número de células,que se distingue por um grande excesso. £ó um pequeno número de vespas que nasce dessas célulasconsegue sobreviver, más esse número já é o suficiente para a preservação da espécie. Por isto, apesar deque grande número de vespas morre quando as mudanças das condições tornam os programas congênitosinadequados, assim mesmo conserva-se a espécie e os programas congênitos de comportamento

"instintivo" são suficientes para a preservação da espécie.Esse tipo de adaptação dos programas congênitos de comportamento, com uma mutabilidade lenta edifícil, é bio-logicamente racional sob as condições de grande excesso de reprodução que se verifica nomundo dos insetos. No entanto ele se torna biologicamente insuficiente para outro ramo da evolução — os vertebrados. Entre estes não se verifica esse excesso de reprodução, criando-se condições, que tornamracional outro tipo de comportamento: o comportamento individualmente mutável" no nível maiselevado.49

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O sistema nervoso central e o comportamento individualmente variável dos vertebradosTudo o que sabemos acerca dos modos de vida e do comportamento dos vertebrados mostra quetanto as formas de vida como as formas de comportamento dessa espécie obedecem a um

 princípio inteiramente distinto.Só os vertebrados inferiores, que habitam o meio aquo-so, apresentam um excesso dereprodução tão grande que os aproxima da classe dos insetos, pois sobrevive apenas um númerorelativamente pequeno de indivíduos que nascem de ovas fecundas. Por isto só entre os peixes a

 prevalência de formas de comportamento pouco variáveis e hereditariamen-te programadas ésuficiente para a preservação da espécie.Diferente é o quadro que observamos com a passagem dos vertebrados à vida em terra. Ascondições de alimentação se tornam mais complexas, o meio mais mutável, aumentandoinfinitamente as necessidades de orientação nesse meio em constante mudança. Mudasimultaneamente também o tipo de reprodução: cada indivíduo reproduz apenas 2-3 e maisraramente 5-6 semelhantes, e a sobrevivência dos indivíduos isolados se torna uma condição

 para a preservação da espécie.Tudo isso cria uma necessidade biológica para que, paralelamente ao comportamento"instintivo" (ou de espécie) congênito e pouco mutável, surja um novo comportamento

individualmente variável. Essa nova forma de comportamento existe em embrião nosvertebrados inferiores mas nas fases posteriores da evolução começam a ocupar posição cadavez mais destacada para nos mamíferos superiores (macacos) e, em seguida, no homem, afastar definitivamente as formas congênitas ("instintivas") inferiores de comportamento.A necessidade da complicação das formas de orientação na realidade ambiente e aquisição denovas possibilidades de orientação individual nas condições mutáveis do meio e a criação denovas formas individualmente mutáveis de adaptação levam, no processo de evolução, à criaçãode órgãos nervosos basicamente novos, que seriam capazes não apenas de receber os sinais domeio e pôr em ação os programas de comportamento "instintivo", transmissíveis pors;

hereditarieda-de, como também de analisar a informação recebida e fechar as novas ligações,assegurando novas formas individualmente50

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variáveis de comportamento. Esse órgão é o cérebro, cuja estrutura reflete o longo caminho percorrido pela evolução.A formação do cérebro do animal obedece ao tipo de série de níveis ou camadas sobrepostasumas às outras.Os níveis inferiores, situados no tronco cerebral, garantem os processos de regulagem do estadointerno do organismo — metabolismo (hipófise), respiração e circulação sangüínea (tronco) erespostas reflexas aos instigadores elementares qué do meio exterior chegam ao animal (corpoqua-drigêmeo). Esses órgãos, construídos segundo o tipo de conjuntos nervoso-secretórios ou denúcleos nervosos (gânglios), predominam entre os vertebrados inferiores e permitem-lhesrealizar programas congênitos mais elementares de atividade adaptadora, que por pouca coisadiferem dos tipos de atividade intensiva acima descritos.Exemplo típico dessa construção de cérebro é o cérebro da rã, que é constituído de formaçõesdo tronco superior com um corpo quadrigêmeo poderosamente desenvolvido e estruturas maiselevadas apenas esboçadas, assegurando acima de tudo o cumprimento dos programas"instintivos" e pouco mutáveis de comportamento que se formaram no processo da evolução.Esses programas de comportamento apresentam estrutura semelhante à acima descrita. Ao

 perceber uma mosca, a rã salta de mandíbulas abertas e a apanha com sua língua viscosa. Esse

comportamento complexo é determinado por um estímulo relativamente elementar — umacinti-iaçâo visualmente perceptível —, não sendo, absolutamente, resposta a um sinal previamente analisado. Isto pode ser facilmente visto se pendurarmos uma pequena nesga de papel num fio de cabelo e a pusermos em movimento torcendo esse fio. Neste caso a cintilaçjíoaciona os programas congênitos de comportamento e a rã se lança automaticamente contra o

 papel cintilante como o faz contra a mosca.Sobre o órgão do tronco constituem-se formações mais elevadas, que incluem inicialmente osistema talâmico-estria-do (regiões subcorticais) e o córtex primitivo (olfativo), incluindo

 posteriormente, nos vertebrados superiores, formações de uma nova camada de grandeshemisférios, que se desenvolvem cada vez mais e aos poucos vão começando a dominar inteiramente as formações de nível inferior.51

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Os órgãos do sistema talâmico-estriado, que começam a predominar nos répteis e nas aves e, posteriormente, os órgãos da camada antiga, asseguram formas de comportamento individual mais plásticas do que as formas que se observavam nos vertebrados inferiores. Mas essas formas decomportamento, que já adquirem traços de variedade individual, a^nda estão estreitamente vinculadas aformas congênitas mais elementares de comportamento e apresentam traços dos tipos de atividadeadaptadora que são congênitas no animal e refletem as peculiaridades da sua ecologia (i. e., das formas

 biológicas estáveis de sua existência).Uma análise atenta mostra que esses programas congênitos de comportamento, às vezes muitocomplexos, podem ser gerados por estímulos relativamente simples, que refletem as formas de vida doanimal.Como mostraram as observações de diversos autores, entre elas as do fisiologista soviético A. D. Slônim,os complexos movimentos de sucção do animal recém-nascido são efetivamente provocados por diferentes sinais que refletem as condições biológicas de sua vida: os movimentos de sucção do filhote decão são provocados pela maciez do pêlo (indício principal da fêmea lactante); no cordeiro, essesmovimentos são provocados pelo escurecimento da teta (que reflete o fato biológico de que o cordeiroque começa a mamar aproxima-se da ovelha e mama sacudindo a cabeça).Esse mesmo condicionamento ecológico das reações seletivas caracteriza muitos animais e depende maisdo seu modo de vida do que da classe zoológica a que eles pertencem.Assim, o pato doméstico (que se alimenta de comidas vegetais) é indiferente aos cheiros de podre mas

tem o: olfato apurado para os cheiros de vetegais, ao passo que o esmeri-lhão, que se alimenta de carniça,tem o olfato apurado para os cheiros de podre mas é indiferente aos cheiros de vegetais.É sintomático que as peculiaridades ecológicas se refletem também em formas mais complexas decomportamento animal. É fato bem conhecido que o cão começa a salivar 52

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ao ver uma ave. No entanto, o que é menos conhecido, a raposa que se prepara para obter alimento-sofreinibição ao vê-lo e retém a saliva.Todos esses exemplos mostram que as formas complexas de comportamento natural, realizado pelosórgãos das áreas mais elevadas do cérebro, mantêm a mais estreita ligação com os programas congênitosde comportamento, que se formam no processo da evolução sob a influência das condições de existência(ecologia) dos animais.

Sobre os órgãos que acabamos de descrever, edificam-se os órgãos do nível seguinte e mais elevado dosistema nervoso dos grandes hemisférios, particularmente do novo córtex cerebral cujo peso, comomostram os dados que abaixo citamos, começam a ocupar posição cada vez maior em relação ao peso docorpo. baleia  leão  cão  macaco  homem1/10.000  1/540  1/250  1/100  1/40Os grandes hemisférios cerebrais começam a adquirir não apenas um grande peso relativo no processo daevolução dos vertebrados superiores como ainda assumem grande importância. Se nos mamíferosinferiores o córtex ainda não tem papel dominante e a regulação dos processos de comportamento podeser realizada com êxito mesmo que o córtex seja destruído, já nos mamíferos superiores ele adquireimportância de maior peso e os processos de comportamento, por mais insignificante que seja a suacomplexidade, já não podem ser realizados com a destruição do córtex.Os fatos que sugerem uma grande dependência das funções em relação ao córtex cerebral, em outros

termos, que sugerem uma verticalização progressiva das junções podem ser vistos nos resultados dasobservações do pesquisador alemão Schafer, que mostram que processos de percepção e que movimentos podem permanecer em diferentes etapas da evolução dos mamíferos depois da extinção do córtex.Colocamos num quadro sinóptico os resultados das observações.53

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Influência da extirpação do córtex cerebral sobre os processos visuais e motores nas fases sucessivas daevolução (segundo Schafer)  Funções visuais    Funções motoras A ave, depois da extirpação do  A ave, depois da extirpação do córtex dos grandes hemisférios,continua a voar;córtex dos grandes hemisférios, mantendo os seus movimentos.Continua a ver, a pousar no lu-Gar marcadoO rato, depois da extirpação do O gato, depois da extirpação das áreas correspondentes dos grandes hemis-

córtex dos hemisférios, não dis- férios,recupera seus movimentos algumas horas depois.Tingue os formas e só reage à luz.O macaco fica cego após a extir- O cão, 24 horas após a extirpação das áreas correspondentes do córtex dos

 pação das ares correspondentes grandes hemisférios, pode manter-se em pé mas se desorganizam os seus movimendos grandes hemisférios, tos independentes.O macaco, após a extirpação das áreas correspondentes dos grandes hemisférios, pode manter-se em pé somenteajudado.Tudo isso mostra que os grandes hemisférios não apenas começam a ocupar posição de grande destaqueem relação ao restante do cérebro como ainda desempenham papel dominante na regulação da formascomplexas de comportamento animal.A função principal dos grandes hemisférios e do seu componente fundamental — o córtex cerebral — consiste em que este é um órgão que não só recebe os sinais e põe em ação os programas alicerçados de

comportamento da espécie como ainda permite analisar a informação recebida do meio exterior,orientar-se nas suas mudanças, fechar novas ligações e formar novos programas de comportamentoindividualmente variáveis, correspondentes a essas mudanças.A essa nova tarefa corresponde a estrutura do córtex dos grandes hemisférios cerebrais, cuja massa éconstituída de um imenso número de células (neurônios) nervosas isoladas, distribuídas em seis camadas principais; a quarta destas54

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é o ponto onde terminam os tecidos que levam a irritação dos órgãos, dos sentidos e dassuperfícies receptoras do corpo e onde as irritações se transferem para outros neurônios. Aquinta camada é o lugar de onde os impulsos motores se dirigem aos músculos e, finalmente, oúltimo grupo de camadas (a segunda e a terceira) concentra um imenso número de neurônios,que reelaboram (recodificam) os impulsos que chegam ao córtex cerebral e fecham novasligações, que asseguram a formação de novos programas de comportamento individualmentevariáveis (no IV capítulo faremos uma descrição minuciosa da estrutura do córtex dos grandeshemisférios, incluindo aí as camadas restantes) .O traço característico do córtex dos grandes hemisférios consiste em que as suas diversasregiões estão ocupadas com a projeção dos diferentes órgãos dos sentidos (tato, visão, olfato,audição e sensibilidade neuromuscular). O princípio ecológico de construção e funcionamentodo aparelho nervoso central se manifesta também aqui, e quanto maior é a importância desse oudaquele tipo de sensibilidade na vida do animal, tanto mais importante é o seu lugar no córtexcerebral.Deste modo, no córtex cerebral do ouriço (este animal se orienta predominantemente peloolfato) as regiões olfativas do cérebro ocupam quase um terço dos hemisférios, ao passo que nohomem as regiões olfativas do cérebro são acentuadamente reduzidas.

 No macaco, a orientação no mundo exterior é altamente relevante porque as áreas visuais docórtex ocupam posição de grande destaque, ao passo que no cão (animal predominantementeolfativo) as áreas dos grandes hemisférios ocupam posição bem inferior.O mesmo podemos dizer da posição relativa que ocupam no córtex cerebral as projeções dosórgãos do corpo. Isto ficou evidenciado nos experimentos do fisiologista inglês Adrian, queestabeleceu por um método eletro fisiológico especial que o território ocupado pela projeção daanca no cérebro do porco é muito pequeno, ao passo que a projeção do "focinho" do porco (queé para este o mais importante órgão do tato, do faro, etc.) ocupa um território imenso,desproporcional ao seu tamanho. É uma peculiaridade que a projeção dos lábios da ovelha — 

 principal órgão de orientação desse animal — ocupa idêntica posição desproporcional nosgrandes55

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hemisférios desse mamífero. Tudo isso mostra que o córtex dos grandes hemisférios do cérebro, que sedesenvolve de maneira potente nas etapas tardias da evolução dos vertebrados superiores, forma-se sob aação direta das condições ecológicas e é justamente esse fator que o converte em órgão principal, queassegura as formas mais complexas de análise e síntese da informação recebida do meio exterior, bemcomo em órgão fundamental de regulação do comportamento individualmente variável.Mecanismos do comportamento individualmente variável 

Se os mecanismos dos programas instintivos de comportamento se reduzissem a que um estímuloqualquer, surgido no processo de evolução de uma espécie, acionasse programas complexos decomportamento, gerados no processo da evolução, então seria bem mais complexo o mecanismo docomportamento individualmente variável, que se realiza através do córtex cerebral. Este se reduz a que,como resultado de uma ativa orientação do animal nas condições do meio, o estímulo que tenha sido deimportância essencial e dê o sinal do surgimento de condições de significado vital (alimento, perigo)começa a distinguir-se do meio ambiente e leva ao fechamento de ligações e ao surgimento de novos programas de comportamento, por meio dos quais o animal atinge o fim necessário ou evita o perigo queo ameaça.Os mecanismos fisiológicos, que levam ao surgimento de novas formas de comportamentoindividualmente variáveis, foram estudados em pormenores na escola de Pávlov e constituem a essênciada doutrina das ligações temporárias e dos reflexos condicionados.É de interesse, entretanto, a descrição das condições sob as quais surgem novas formas individualmente

modificadas de comportamento adaptador do animal e as etapas pelas quais eles passam em suaformação.As condições e etapas do surgimento de novas formas de comportamento individualmente variáveisforam estudadas minuciosamente por um grande número de pesquisadores, mas enfatizou-se a atenção namaneira como o animal atinge o fim necessário e os meios pelos quais ele adquire novas modalidades decomportamento.56

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Para resolver tais problemas, os estudiosos aplicaram métodos que receberam a denominação de"aquisição de habilidades" ou "reflexos condicionados instrumentais ou operativos". Com essa finalidadecolocou-se o animal numa célula especial (a chamada caixa problemática), separando-o do estímulo (acomida) por um obstáculo (por exemplo, uma porta fechada a ferrolho). O animal dedvia mover um pedalou puxar o ferrolho com a pata e então a porta se abria e o objetivo era atingido.Outro método de estudo do modo de surgimento de novas formas individualmente variáveis de

comportamento consistia no seguinte: colocava-se o animal num complicado labirinto, em cujo extremohavia um estímulo (objetivo). O pesquisador observava como o animal superava paulatinamente oscaminhos errados, encontrando o caminho certo para chegar ao objetivo.A diferença essencial entre os experimentos de formação de complexas habilidades ou "reflexoscondicionados instrumentais" e o método dos "reflexos condicionados clássicos", aplicado por Pávlov,consistia em que o êxito ou o fracasso do animal dependia do seu desempenho ativo, noutros termos, docaráter das tentativas que ele empreendia. Embora o método de estudo da aquisição de novas formasindividualmente variáveis de comportamento do animal perdesse em precisão fisiológica em relação aométodo dos "reflexos condicionados clássicos", sem dar as possibilidades de estudo fisiológico dos processos nervosos (sua irradiação e concentração e indução mútua) que dava o método de Pávlov, aquelemétodo ganhava no estudo dos modos concretos de comportamento que o animal aplicava para resolver as tarefas que se lhe colocavam e assim permitia acompanhar as etapas fundamentais de formação denovos atos adaptadores, condizentes com as novas condições. O processo de aquisição de novas formas

individualmente variáveis de comportamento, que levam à solução das tarefas colocadas diante doanimal, era explicado de modo diferente por diversas pesquisas. Uns explicavam esse processo a partir de posições mecanicistas (partilhavam essas posições os insignes pesquisadores americanos Thorndike,Watson e muitos representantes do behaviorismo americano), considerando que as novas formas decomportamento, que levam o animal a atingir o objetivo, surgem no processo de testes e errosdesordenados. Nesse processo de testes um dos movimentos do animal le-57

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vava casualmente à abertura da porta e o animal recebia a comida. Posteriormente, o reforço pelo êxitodesses movimentos casualmente surgidos e sua constante repetição levaram a que os movimentosinadequados fossem extintos, reforçadores os bem-sucedidos.Essa explicação do processo de aquisição de novas formas de comportamento por meio do reforço demovimentos bem-sucedidos casualmente surgidos explicava bem o reforço dessas formas mas deixava àmargem da análise o próprio processo de seu surgimento.

Outro grupo d& autores mantinha outras posições, ao tentarem examinar as regras pelas quais seformavam as buscas da solução pelo animal e que levavam ao surgimento de procedimentos bem-sucedidos de solução das tarefas colocadas diante do animal.Esse grupo de pesquisadores (ao qual pertenciam os psicólogos americanos E. Tolman, D. Krech, ofisiologista soviético V. P. Protopópov e outros) partia da tese segundo a qual os movimentos que oanimal empreende tentando resolver a tarefa não têm caráter caótico e casual mas surgem no processo deum ativo desempenho de orientação. Nesse desempenho o animal tenta atingir o objetivo, analisa asituação, escolhe a direção dos movimentos que corresponde à posição do objetivo. Essa situação da"tarefa" (que esses psicólogos entendem como objetivo dado em determinadas condições) ou comosituação "estímulo-obstáculo" leva a que as tentativas do animal, dirigidas pelo objetivo, restringem-se paulatinamente e o animal vai chegando pouco a pouco ao ponto em que surgem nele as necessáriasreações motoras adequadas ao objetivo, que são posteriormente reforçadas.A vantagem dessa teoria consiste em que ela tenta explicar o surgimento das necessárias formas de

solução da tarefa ou surgimento da "habilidade" a partir de uma análise motora da situação, abandonandoa hipótese de que os movimentos necessários surgem "por acaso".Várias observações, realizadas por pesquisadores americanos, confirmaram o fato de que, às vezes, os programas bastante complexos de comportamento do animal que tenta atingir os objetivos não sãoadquiridos por acaso mas se formam no processo de uma orientação ativa nas novas condições e sãodirigidos por essa orientação na situação e por sua análise.58

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Um desses fatos foi estabelecido numa análise minuciosa da maneira pela qual o animal (o rato)adquire a habilidade de encontrar o caminho certo nas condições de um labirinto complexo.Como mostrou o pesquisador americano Dashnul, os testes feitos pelo animal colocado emlabirinto não são casuais, via de regra vão sempre em direção ao objetivo; por isto, o animal queao menos uma vez tenha se orientado no labirinto, cria um sistema geral de direção no qual elecorre e entra nos becos sem saída do labirinto, situados na direção do caminho dado, com muitomais freqüência do que nos becos sem saída do labirinto, situados na direção oposta ao esquemado movimento.Deste modo, pode-se ver claramente que os movimentos do animal no labirinto não têm caráter casual mas são subordinados a uma direção que o pesquisador americano Crich caracterizoucomo surgimento de uma "hipótese motora", que orienta o sentido geral das tentativas dos ratosque adquirem "habilidade" no labirinto. Os testes com a chamada "aprendizagem latente"confirmam o fato de que as tentativas que o animal empreende no processo de aquisição denovos programas de comportamento não são casuais mas constituem o resultado da orientaçãoativa do animal nas condições do meio.

 Nesses testes de "aprendizagem latente", compara-se a rapidez da aquisição da habilidade nosanimais, que são imediatamente colocados no labirinto para percorrê-lo, com a rapidez dos

animais do segundo grupo, aos quais se permite simplesmente correr pelo labirinto, dandose-lhes a possibilidade de se orientarem previamente nas condições do labirinto.Como mostraram esses testes realizados por pesquisadores americanos, o segundo grupo deanimais adquiria a habilidade bem mais rapidamente do que o primeiro. Foi característico o fatode que a aquisição da habilidade eficiente era especialmente significativa quando se permitia aoanimal orientar-se ativamente nas condições do labirinto. Esse experimento foi realizado pelo

 pesquisador americano Hald, que permitiu ao animal movimentar-se ativamente pela caixa  problema, enquanto outro animal observava passiva-59

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mente essa caixa do carrinho que havia levado o primeiro animal. Também neste caso o primeiro animal,que se orientara ativamente na situação, adquiriu a habilidade motora com rapidez bem maior do que osegundo. Esse fato mostra o papel desempenhado na aquisição do novo programa de ação pela orientação prévia do animal nas condições do teste.O complexo caráter dinâmico da habilidade motora adquirida, que não é mera finalidade dos movimentosmecanicamente adquiridos, é confirmado, finalmente, por uma série especial de testes, que mostram que

essa "habilidade" readquirida pode conservar-se inclusive nos casos em que um conjunto inteiramentenovo de movimentos se faz necessário para colocá-la em prática.Uma dessas pesquisas foi realizada pelo pesquisador americano Hunter, em cujo teste o rato adquiriu ahabilidade de encontrar o caminho necessário no labirinto. Depois que essa habilidade foi adquirida, uma parte do labirinto foi excluída, colocando-se em seu lugar uma bacia com água. Neste caso o rato deviaatravessar a bacia a nado, i. e., fazendo movimentos inteiramente novos; mas com isto não perdeu ahabilidade adquirida.Fatos análogos foram registrados por outros meios por Lashley. Após formar no rato a habilidade deencontrar os caminhos no labirinto, destruiu-lhe em seguida o cerebelo. Como resultado dessa operação, orato perdeu o equilíbrio e todos os movimentos anteriores se desorganizaram. Movendo-se, porém, por cambaleios (i. e., por meio de movimentos inteiramente novos), o rato acabou se colocando no rumo certoe atingindo o objetivo.Tudo isso mostra que os programas motores, adquiridos em condições de tarefas especiais, não são, em

hipótese alguma, um fim mecânico dos reflexos; são, antes, esquemas dinâmicos complexos, que seformam no animal no processo de •sua atividade orientada.  •. J

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Dois traços são característicos da aquisição dessas novas formas de atividade adaptadora entreos vertebrados. Um deles consiste em que o processo de orientação ou busca é inseparável dosmovimentos ativos e o descobrimento da solução necessária não antecede a execução do

 programa motor mas se forma no processo dos testes motores.O segundo traço característico consiste em que o caráter dos atos de orientação do animal e ocaráter das novas formas adquiridas de comportamento dependem ao máximo das formasnaturais de comportamento, que se constituíram em estreito contato com a peculiaridade da vida(com a ecologia) do animal. Nos herbívoros, principalmente nos animais que ingeremalimentação pronta (por exemplo a galinha, a ovelha, a vaca), a atividade dirigida tem caráter 

 passivo, limitado, os programas naturais de comportamento predominam e a aquisição de novasfomas de comportamento individualmente variáveis é um processo lento. Ocorre o.contráriocom os carnívoros, que em condições naturais são obrigados a procurar a comida, a caçar a

 presa (as aves de rapina, a raposa); nestes a atividade dirigida se processa na forma de buscasativas, sendo bem mais rápida a aquisição de novas formas de comportamento, quecorrespondem a uma situação variável.É um dado essencial o fato de que o caráter das formas adquiridas de um novo comportamentoindividualmente variável conserva nesses animais uma estreita ligação com as suas formas

congênitas ("instintivas") de atividade ou "reflexos naturais". Deste modo, o leão-marinho, noqual o mergulho e a perseguição à presa fazem parte dos programas congênitos decomportamento, aprende com especial facilidade a fazer malabarismos com a bola ou agarrá-la.O guaxinim ou o urso, que se erguem freqüentemente sobre as patas traseiras, deixando livres asdianteiras, podem aprender facilmente a executar movimentos que imitam uma "lavagem deroupa", etc.Essa estreitíssima ligação dos programas congênitos de comportamento (ou "reflexos naturais")com a aquisição de novas formas de atividade individualmente variáveis continua sendocaracterística do comportamento dos vertebrados superiores em dada etapa da evolução.61

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O comportamento "intelectual" dos animaisA descrição da forma de surgimento do comportamento individualmente variável não representa o limitesupremo da evolução do comportamento no mundo animal. Nos vertebrados, que se encontram no topo da escada da evolução, particularmente os primatas, surgemnovas formas de comportamento individualmente variável, que, com pleno fundamento, podemosdenominar comportamento "intelectual".

A peculiaridade do comportamento "intelectual" dos animais consiste em que o processo de orientaçãonas condições da tarefa não ocorre nas condições dos testes motores mas começa a antecedê-los,distinguindo-se como forma especial de atividade prévia de orientação. No processo dessa atividadecomeça a formar-se o esquema (programa) de solução sucessiva da tarefa, ao passo que os movimentos setornam um simples elo executor nessa atividade de construção complexa. Assim, nas etapas superiores daevolução começam a formar-se tipos especialmente complexos de comportamento de complexa estruturadesmembrada, da qual fazem parte: — a atividade de procura c orientação, que leva à formação do esquema de solução da tarefa;» — a formação de programas plasticamente variáveis de movimentos voltados para a obtenção doobjetivo; — a comparação das ações executadas com a intenção inicial.Essa estrutura da atividade complexa se caracteriza pelo caráter auto-regu'ador. Se a ação leva ao efeitonecessário, ela cessa; se não leva a esse efeito, o cérebro do animal recebe sinais da "discordância" dos

resultados da ação com a intenção inicial e reiniciam-se as tentativas de solução da tarefa. Essemecanismo de "aceptor da ação" (P. K. Anokhin), i. e., de controle dinâmico da ação é o elo maisimportante de todo comportamento individualmente variável do animal mas se manifesta com nitidezespecial na fase mais complexa da evolução do comportamento: no comportamento intelectual.Dois fenômenos essenciais, cujos embriões já podem ser vistos nas fases primordiais da evolução dosvertebrados, antecedem a formação dessa modalidade mais elevada de compor-62

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tamento dos animais. O1 primeiro deles é o surgimento de uma forma especial de atividade orientada, àqual o pesquisador soviético L. V. Krushinsky chamou "reflexo extrapolativo". O segundo é o fato dasformas de desenvolvimento da memória dos animais, que se tornam mais complexas. Nas observações, efetuadas nos últimos anos por Krushinsky, foi estabelecido que alguns animaismostram em seu comportamento a não-capacidade de sujeitar-se à percepção imediata do objeto mas deacompanhar-lhe os movimentos e orientar-se em relação ao deslocamento esperado do objeto. Sabe-se

que o cão que atravessa uma rua não corre diretamente na frente dos carros em movimento mas dá voltas,considerando o movimento dos carros e inclusive a velocidade deles. Foi esse reflexo, que "extrapola" omovimento observado e leva em conta o deslocamento, que Krushinsky observou em vários testes. Nesses testes, colocava-se diante do animal um tubo com um furo no centro. À vista do animal, prendia-se um estimulante a um arame que passava por dentro do tubo. O estimulante aparecia aos olhos doanimal no furo do tubo e continuava em movimento, tornando a aparecer no final do tubo. O animal secolocava diante do furo e observava o movimento do estimulante.Essas observações mostraram que os animais, que se encontram numa fase inferior de evolução,sobretudo os animais que tinham apenas a propriedade de apanhar comida pronta (a galinha, por exemplo), reagiam imediatamente ao lugar onde o alimento aparecia e não se afastava dele. Ao contrário,os animais que se encontram em fase mais elevada de evolução, especialmente aqueles que levam modode vida carnívoro, observam a presa e a perseguem (o corvo, o cão), observavam os movimentos doalimento e, "extrapolando" esse movimento (ao que parece, orientando seu comportamento pelo

movimento dos olhos), contornavam o tubo e esperavam o alimento no lugar em que ele aparecia.O "reflexo extrapolativo", que tem a forma especial de comportamento "antecipante", representa uma dasimportantes fontes para a formação dos tipos "intelectuais" mais elevados de comportamentoindividualmente variável nos vertebrados superiores.O segundo fato, que cria condições essenciais para a formação do comportamento "intelectual" dosvertebrados supe-63

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riores, é a crescente complexidade do processo de percepção e a grande estabilidade da memória nasfases subseqüentes da evolução dos animais.É sabido que se os vertebrados inferiores reagem apenas a certos indícios de influências provenientes domeio exterior, já os vertebrados superiores reagem mais a complexos inteiros de indícios ou às imagensdos objetos circundantes. Essa reação dos animais foi estudada minuciosamente pelo fisiologista eacadêmico soviético I. S. Beritov e constitui a condição mais importante para a evolução das formas mais

complexas de comportamento.Simultaneamente com a formação da percepção por imagem, nas etapas superiores da evolução dosvertebrados observa-se uma crescente estabilidade da memória visual. Esse fato foi observadominuciosamente nos testes com as chamadas "reações retardadas" dos animais.Os testes com "reações retardadas' foram efetuados por muitos pesquisadores americanos, pelo psicólogosoviético N. Y. Voitonis e o fisiologista polonês Y. Konorsky. A essência do teste consistia no seguinte:Postava-se o animal diante de uma caixa hermetica-mente fechada, na qual se colocava o estimulante àvista do animal. Este se mantinha algum tempo amarrado a um pau por um cabresto, sendo depoislibertado. Se o animal retinha na memória algum vestígio do estimulante colocado na caixa, corriaimediatamente para esta, não o fazendo se o vestígio desaparecia.Em testes mais complexos, cuja tarefa consistia em verificar a precisão do vestígio conservado no animal,substituía-se o estimulante na caixa sem que o animal o percebesse. Se o animal conservava o vestígio do primeiro estimulante e ao correr para a caixa encontrava outro, ele o apanhava. Isto era indício de que o

animal conservava a imagem seletiva do estimulante que havia visto. Noutros testes, colocava-se o animal entre duas caixas, numa das quais colocava-se um estimulante aosolhos do animal. Percorrido certo tempo, libertava-se o animal do cabresto. Se o vestígio do estimulantecolocado numa das caixas se mantinha, o animal corria para essa caixa; se o vestígio não se mantinha, oanimal não apresentava movimento dirigido.64

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Os testes de "reações retardadas" mostram que, nas fases posteriores da evolução dos vertebrados,aumenta a duração da conservação das respectivas imagens. Duração da conservação dos vestígios de memória visual provocada uma só vez em animais diferenteso rato conserva o vestígio da imagem de 10 a 20 segunãos o cão  "   "   " até 10 minutoso macaco "   "  " de 16 a 48 horas.

É natural que a conservação das imagens por longo tempo aumenta na medida em que se tornamcomplexas as estruturas cerebrais e cria uma segunda condição importante para o surgimento de formas"intelectuais" superiores de comportamento do animal.O conhecido psicólogo alemão Wolfgang Kiihler inciou, no início da década de 20 do corrente século, pesquisas sistemáticas do comportamento "intelectual" dos animais superiores (os macacos). Para estudar essa forma de comportamento, Kõhler colocou macacos (chimpanzés) em condições sob as quais aobtenção imediata do objetivo era inacessível e o macaco devia orientar-se em situações complexas nasquais lhe era dado o objetivo, usando o rodeio a fim de conseguir o chamariz ou aplicando para istoinstrumentos especiais.Descrevamos três situações típicas nas quais Kõhler fez suas pesquisas do comportamento "intelectual"dos macacos. A primeira situação exigia "caminho em rodeio" . Colocava-se o macaco numa grande jaula, ao lado da qual havia sido colocado o estimulante que se encontrava a uma distância que não permitia que a mão do macaco o alcançasse. Para atingir o objetivo, o macaco devia desistir das tentativas

de obtenção imediata do objetivo, usando um contorno por uma porta situada na parede traseira da jaula.A segunda situação era idêntica à que acabamos de descrever; colocava-se o macaco numa jaula fechada,desta feita com portas. O estimulante continuava distante e o animal não conseguia alcançá-lo.Diferentemente da65

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 primeira situação, porém, em frente à jaula havia uma vara a uma distância equivalente a um braçoestirado. O macaco podia obter o estimulante se conseguisse a vara e com esta alcançasse o objetivo. Emtestes mais complexos, o estimulante se encontrava a uma distância ainda maior, mas no campo de visãodo macaco havia duas varas: uma curta, ao alcance do braço, e outra comprida, um pouco adiante. Pararesolver a tarefa, o macaco devia realizar um programa de comportamento mais complexo. A princípio,devia alcançar a vara mais próxima — a curta — e, com o auxílio desta, obter em seguida a vara

comprida, situada mais adiante e, já com ajuda desta, obter o estimulante. Por último, na terceira variantedos testes, pendurava-se o estimulante de tal modo que o macaco não conseguia alcançá-lo. Mas namesma área foram colocados caixotes; para alcançar o estimulante, o animal devia arrastá-los para pertodeste, colocá-los uns sobre os outros e trepar.As pesquisas de Kõhler permitiram-lhe observar o seguinte quadro. A princípio o macaco tentava semêxito obter o estimulante por via direta, estirando-se ou saltando em sua direção. Essas tentativas inúteis podiam durar muito, até o macaco ficar exausto e abandoná-las. Em seguida vinha o segundo período, noqual o animal permanecia sentado, imóvel, limitando-se a examinar a situação; neste caso a orientação nasituação se transferia dos testes motores bem desenvolvidos para o "campo visual" da percepção e serealizava por meio dos respectivos movimentos dos olhos. Depois disto vinha o momento decisivo, queKõhler descrevia como surgimento inesperado do insight. O macaco se dirigia imediatamente à porta,situada na parede traseira da jaula e, contornando-a, obtinha o estimulante ou desistia de suas tentativas eapanhava a vara. Com ela conseguia o alimento ou uma vara mais comprida, com a qual alcançava o

alimento. Finalmente, na última situação, o macaco abandonava todas as tentativas de alcançar a comida por via direta, olhava em torno, arrastava imediatamente os caixotes, colocava-os um sobre o outro,trepava, e obtinha o alimento. Todos esses testes apresentaram como característica o fato de que a soluçãoda tarefa se transferia do período dos testes imediatos ao período da observação antecedente da tentativa,e os alimentos do macaco se tornavam ato executivo para a realização de um "plano de solução"anteriormente adquirido.66

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Foram justamente essas observações que deram a Kõhler fundamento para considerar ocomportamento do macaco um exemplo de comportamento "intelectual".Se nos experimentos de Kõhler a descrição do comportamento dos macacos é definitiva, aexplicação das vias pelas quais o animal chega à solução "intelectual" da tarefa apresentacomplexidades consideráveis e diferentes pesquisadores dão a esse processo interpretaçãodiversa.O conhecido psicólogo americano Yerkes, que repetiu a pesquisa de Kõhler, acha possívelaproximar essas formas de comportamento do macaco do intelecto humano e considerá-las por via antropomórfica como manifestações de "iluminação criativa".O psicólogo austríaco K. Bühler cita a experiência anterior do animal para explicar essecomportamento e considera que o emprego de instrumentos pelos macacos deve ser visto comoresultado da transferência de uma experiência anterior (os macacos, que viviam em árvores,tinham de puxar os frutos para si junto com os ramos).O próprio Kõhler expressa a hipótese de que, no comportamento "intelectual" dos macacos, aanálise da situação se transfere da área dos movimentos ao plano da percepção e o macaco, aoexaminar a situação, "aproxima" os objetos que dela fazem parte no "campo visual", fechando-os em certas "estruturas visuais". A solução posterior da tarefa é, segundo Kõhler, apenas a

realização de estruturas "visuais" em movimentos reais. Kõhler vê a confirmação dessa hipóteseno fato de que, quando a vara e o alimento (uma fruta) ou mesmo as varas que o macaco deveobter sucessivamente estão dispostas de tal modo que não caem apenas no campo de visão, atarefa se torna insolúvel para o macaco.Kõhler tenta confirmar sua hipótese com experimentos nos quais o macaco deve antes preparar o instrumento que usará posteriormente para conseguir o alimento; por exemplo, o macaco deveenfiar uma vara de bambu em outra para, alongan-do-a, colher uma fruta. Essas ações se tornam

 bem mais difíceis para o macaco e podem ser realizadas somente se as pontas de ambas as varasestiverem no campo de visão direto. Segundo Kõhler, essa incidência das duas varas num únicocampo de visão é o que pode levar à solução adequada da tarefa.67

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O problema dos mecanismos que servem de base ao surgimento de comportamento "intelectual"do macaco não poce ser considerado definitivamente resolvido. Se uns pesquisada»» o opõemàs formas mais elementares de comportamento " dualmente variável dos animais, outros (por exemplo, que fez observações com o comportamento dos macacc"' possível não opô-lo àsformas mais elementares de mento e consideram o comportamento "intelec cacos como umaespécie de "pensamento maniu. , num processo de testes e erros, que adquire caráter mais r..-em decorrência do fato de que as mãos dos macacos, livres da função de andar, começam aexecutar formas mais complexas de atividade orientada.

 Fronteiras do comportamento individualmente variável dos animaisVimos que o comportamento adaptador individualmente variável dos vertebrados superiores

 pode adquirir formas muito complexas. Surge uma pergunta natural: quais são os seus traçoscaracterísticos e quais os limites que o comportamento dos animais não pode ultrapassar? Aanálise do comportamento dos animais permite indicar três traços fundamentais.O primeiro é o fato de que todo comportamento individualmente variável (mesmo o maiscomplexo) do animal conserva sua ligação com os motivos biológicos e não pode ultrapassar-lhe os limites. Todo comportamento animal tem por base as inclinações biológicas ounecessidades (necessidade de alimento, autoconservação ou necessidade sexual). Só nas etapas

mais elevadas da evolução a elas se incorpora a necessidade de orientar-se no meio ambiente, a-que Pávlov chamava de reflexo orientador e que, no macaco, atinge desenvolvimentoconsiderável. Nenhuma atividade desvinculada de todas essas necessidades biológicas é

 possível para o animal, razão por que o comportamento do animal pode ser considerado comtodo fundamento como comportamento cortical-subcortical.O segundo traço, que caracteriza o comportamento de todo animal, consiste em que essecomportamento é sempre determinado por estímulos imediatamente perceptíveis ("pelo campoexterior") ou por vestígios da experiência anterior, não podendo68

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ocorrer abstraindo-os nem muito menos entrando em conflito com eles.O psicólogo holandês Buytendijk ilustra bem essa tese com uma pesquisa famosa, de importância capital.Ele colocou diante de um animal várias caixas nas quais poder-se-ia encontrar alimento. No primeiro testeo alimento foi posto aos olhos do animal na primeira caixa, permitindo-se ao animal apanhá-lo. Nosegundo teste, o alimento (também aos olhos do animal) foi transferido para uma segunda caixa, emseguida para uma terceira. Depois, nos experimentos seguintes, começou-se (já sem que o animal o

 percebesse) a transferir sucessivamente o alimento para cada caixa seguinte, permitindo-se sempre aoanimal correr livremente para a caixa onde ele supunha encontrar o alimento.A pesquisa mostrou que o animal corre sempre para a caixa onde vira que havia sido posto o alimento, ou para a caixa onde antes se encontrava o alimento. Nenhum animal pode assimilar o princípio do"deslocamento sucessivo" e nunca corre para a caixa seguinte na qual ainda não houve alimento masonde é fácil esperá-lo caso se leve em conta um princípio abstrato.O comportamento do animal é sempre dirigido pela experiência imediata ou pela experiência passada, eele nunca pode impedir a reação ao lugar anteriormente memorizado e dirigir-se a lugar que não tinhasido memorizado. O experimento de Buytendijk realizado com animais de diferentes grupos, mostra queo animal, segundo Kõhler, é "um escravo do seu campo visual" ou "escravo da sua experiência passada",e seu comportamento nunca se liberta dessas influências diretas, não se dirige pela abstração destas,noutros termos, não se torna livre.O terceiro traço do comportamento do animal consiste nas limitações das fontes desse comportamento.

Podem ser fonte de comportamento do animal os programas alicerçados em sua experiência de espécie,que se transmitem em códigos hereditários ("comportamento instintivo") ou que se formam naexperiência imediata de dado indivíduo (comportamento individualmente variável ou reflexivo-condicionado). Os animais não têm nenhuma possibilidade de assimilação da experiência alheia e de umindivíduo transmiti-la assimilada a outro indivíduo, e muito menos de transmitir a experiência formadaem várias gerações. Os fenômenos que se descrevem como "imitação" ocupam lugar relativamentelimitado na for-69

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Mação do comportamento dos animais, sendo antes uma forma de transmissão práticadireta da própria experiência que uma transmissão de informação acumulada na hitóriade várias gerações, que lembre o mínimo sequer a assimilação da experiência materialou intelectual das gerações passadas, assimilação essa que caracteriza a história socialdo homem.

São esse três traços que constituem as peculiaridades fundamentais de todocomportamento e o distinguem radicalmente da atividade consciente do homem.70

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IIIA Atividade Consciente do Homem e Suas RaízesHistórtco-

Sociais Princípios gerais1 OR  SUAS peculiaridades fundamentais, a atividade consciente do homem difere acentuadamentedo comportamento individualmente variável dos animais.As diferenças da atividade consciente do homem sintetizam-se em três traços fundamentais,opostos àqueles pelos quais acabamos de caracterizar o comportamento dos animais.O primeiro desses traços consiste em que a atividade consciente do homem não estáobrigatoriamente ligada a motivos biológicos. Além do mais, a grande maioria dos nossos atosnão se baseia em quaisquer inclinações ou necessidades biológicas. Via de regra, a atividade dohomem é regida por complexas necessidades, freqüentemente chamadas de "superiores" ou"intelectuais". Situam-se entre elas as necessidades cognitivas, que incentivam o homem à

aquisição de novos conheci-71

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mentos, a necessidade de comunicação, a necessidade de útil à sociedade, de ocupar, nesta,determinada posição, ;Encontramos freqüentemente situações nas quais a atividade consciente do homem, além de nãose sujeitar às influencias e necessidades biológicas, ainda entra em conflito com e . e chegainclusive a reprimi-las. São amplamente conhecidas casos de heroísmo em que o homem,movido por elevados motivos de patriotismo, cobre com seu corpo bocas de fogo ou se lança àmorte sob tanques; esses casos são apenas exemplos da independência do comportamento dohomem em relação aos motivos biológicos.Entre os animais não há semelhantes formas de comportamento "desinteressado", que se

 baseiam em motivos não-biológicos.O segundo traço característico da atividade consciente do homem consiste em que, à diferençado comportamento do animal, ela não é forçosamente determinada por impressões evidentes,recebidas do meio, ou por vestígios da experiência individual imediata.Sabe-se que o homem pode refletir as condições do meio de modo imediatamente mais

 profundo do que o animal. Ele pode abstrair a impressão imediata, penetrar nas conexões edependências profundas das coisas, conhecer a dependência causai dos acontecimentos e, apósinterpretá-los, tomar come orientação não impressões exteriores porém leis mais profundas.

Assim, ao sair a passeio num claro dia de outono, c homem pode levar guarda-chuva, pois sabeque o tempo i instável no outono. Aqui ele obedece a um profundo conhecimento das leis danatureza e não à impressão imediata de um tempo de sol e céu claro. Sabendo que a água do

 poço está envenenada, o homem nunca irá bebê-la, mesmo que esteja cor muita sede; nestecaso, seu comportamento não é orientado pela impressão imediata da água que o atrai mas por um conhecimento mais profundo que ele tem da situação.A atividade consciente do homem não pode tomar come orientação a impressão imediata dasituação exterior e sim um conhecimento mais profundo das leis interiores dessa situação, razão

 por que há todo fundamento para afirmar-se que c comportamento humano, baseado noreconhecimento da necessidade, é livre.Por último, há o terceiro traço característico, que difere a atividade consciente do homem docomportamento do animal.

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Diferentemente do animal, cujo comportamento tem apenas duas fontes ■— 1) os programashereditários de comportamento, jacentes no genótipo e 2) os resultados da experiênciaindividual —, a atividade consciente do homem possui ainda uma terceira fonte: a grandemaioria dos conhecimentos e habilidades do homem se forma por meio da assimilação daexperiência de toda a humanidade, acumulada no processo da história social e transmissível no

 processo de aprendizagem.Desde o momento em que nasce, a criança forma o seu comportamento sob a influência dascoisas que se formaram na história: senta-se à mesa, come com colher, bebe em xícara e maistarde corta o pão com a faca. Ele assimila aquelas habilidades que foram criadas pela históriasocial ao longo de milênios. Por meio da fala transmitem-lhe os conhecimentos maiselementares e posteriormente, por meio da linguagem, ele assimila na escola as maisimportantes aquisições da humanidade. A grande maioria de conhecimentos, habilidades e

 procedimentos do comportamento de que dispõe o homem não são o resultado de suaexperiência própria mas adquiridos pela assimilação da experiência histórico-social de gerações.Este traço diferencia radicalmente a atividade consciente do homem do comportamento doanimal.Há muito tempo uma questão tem ocupado a filosofia e a Psicologia: como explicar os traços da

atividade consciente do homem que acabamos de numerar? Na história da filosofia e da ciência podemos distinguir duas vias inteiramente diferentes desolução dessa questão.Uma delas, típica da filosofia idealista, partia das posições do dualismo A tese básica dessacorrente reduzia-se não só ao reconhecimento de acentuadas diferenças de princípio entre ocomportamento do animal e a consciência do homem, como também à tentativa de explicar essas diferenças alegando que a consciência do homem deve ser considerada como manifes:tação de um princípio espiritual especial de que carece o animalA tese segundo a qual o animal deve ser visto como uma máquina complexa, cujocomportamento obedece as leis da mecânica, e o homem como dotado do princípio espiritualcom livre-arbítrio partiu de Descartes, tendo sido repetida posteriormente pela filosofia idealistasem mudança considerável. É fácil perceber que, apontando a diferença de princípio entre o

comportamento do animal e a atividade consciente do homem,73

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essa corrente não dá nenhuma explicação científica aos referidos fatos.A segunda via de solução do problema da originalidade da atividade consciente caracteriza o

 positivismo evolucionista. Segundo essa teoria, a atividade consciente do homem é resultadodireto da evolução do mundo animal, já se podendo observar nos animais todos os fundamentosda consciência humana. O primeiro cientista a formular essas teses foi Charles Darwin, que emvárias de suas obras tentou mostrar que, na forma embrionária, os animais já têm todas asformas de atividade racional inerente ao homem e que. não há limites precisos e basilares entreo comportamento dos animais e a atividade consciente do homem.O enfoque naturalista, que tentava estudar uma linha única de desenvolvimento da consciênciados animais ao homem, desempenhou papel positivo em seu tempo no combate às concepçõesdualistas pré-científicas. No entanto as afirmações de que os animais têm em embrião todas asformas da vida consciente do homem, o enfoque antropomórfico da "razão" e das "vivências"dos animais, bem como a falta de vontade de reconhecer as diferenças de princípio entre ocomportamento dos animais e a atividade consciente do homem continuaram a ser o ponto fracodo positivismo naturalista. Ficava sem solução o problema da origem das peculiaridades daatividade consciente do homem, que foram ressaltadas acima.A Psicologia científica, que parte dos princípios do marxismo, focaliza de posições inteiramente

diferentes o problema da origem da atividade consciente do homem.É sabido que toda a atividade psíquica dos animais, que cria a base para a orientação no meioambiente, forma-se nas condições das formas de vida que caracterizam uma espécie de animais.O que é que caracteriza as formas de vida que diferenciam a atividade consciente do homem docomportamento dos animais e nas quais devemos procurar as condições que formam essaatividade consciente?As peculiaridades da forma superior de vida, inerente apenas ao homem, devem ser procuradasna forma histórico-social de atividade, que está relacionada com o trabalho social, com oemprego de instrumentos de trabalho e com o surgimento da linguagem. Essas formas de vidanão existem nos animais, e a transição da história natural do animal à história social da74

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humanidade deve ser considerada um importante passo assim como a transição da matériainanimada à animada ou da vida vegetal à animal.

 Por isto as raízes do surgimento da atividade consciente do homem não devem ser procuradasnas peculiaridades da "alma" nem no íntimo do organismo humano mas nas condições sociaisde vida historicamente formadas.São justamente essas condições que fazem com que, com a transição para a história social,mude radicalmente a estrutura do comportamento. Junto com os motivos biológicos docomportamento, surgem os motivos superiores ("intelectuais") e necessidades, concomitantescom o comportamento que depende da percepção imediata do meio. Surgem formas superioresde comportamento, baseadas na abstração das influências imediatas do meio, e, juntamente comas duas fontes do comportamento — os programas de comportamento consolidados por viahereditária e a influência da experiência passada do próprio indivíduo —, surge uma terceirafonte formadora da atividade: a transmissão e assimilação da experiência de toda a humanidade.Abordemos mais detidamente as raízes histórico-sociais da complexa atividade consciente dohomem.O trabalho e a formação da atividade conscienteA ciência histórica destaca dois fatores, que servem de fonte à transição da história natural dos

animais à história social do homem. Um desses fatores é o trabalho social e o emprego dosinstrumentos de trabalho, o outro, o surgimento da linguagem.Examinemos o papel desempenhado por esses dois fatores na mudança radical das formas deatividade psíquica e no surgimento da consciência.Sabe-se que, à diferença do animal, o homem tanto emprega os instrumentos de trabalho como

 prepara esses instrumentos. Os remanescentes desses instrumentos, que pertencem à época maisantiga da história da humanidade, mostram que, se as lascas de pedra tosca são os instrumentosde trabalho mais primitivos, na etapa posterior já surgem os instrumentos (a lâmina, a flecha)

 preparados especialmente pelo homem. Nesses instrumentos podemos distinguir tanto o gume,com o qual o homem75

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 primitivo podia esfolar o animal morto ou cortar pedaços de árvore, como a "lombada", a partearredondada, que servia para manter-se comodamente na mão. É natural que arma dessanatureza exige preparo especial, que, pelo visto, cabia aos preferidos do grupo primitivo ou àmulher, que ficava em casa enquanto o homem ia à caça.A preparação dos instrumentos (que às vezes subentendia também a divisão natural do trabalho)

 por si só já mudava radicalmente a atividade do homem primitivo, distinguindo-a docomportamento do animal. O trabalho desenvolvido na preparação dos instrumentos já não éuma simples atividade, determinada por motivo biológico imediato (a necessidade dealimento) . Por si só a atividade de elaboração da pedra carece de sentido e não tem qualquer 

 justificativa em termos biológicos; ela adquire sentido somente a partir do uso posterior doinstrumento preparado na caça, ou seja, exige, juntamente com o conhecimento da operação aser executada, o conhecimento do futuro emprego do instrumento. É esta a condiçãofundamental, que surge no processo de preparação do instrumento de trabalho, e pode ser chamada de primeiro surgimento da consciência, noutros termos, primeira forma de atividadeconsciente.Essa atividade de preparação dos instrumentos de trabalho leva a uma mudança radical de todaa estrutura do comportamento .

O comportamento do animal fora sempre voltado imediatamente para a satisfação de urnanecessidade. Diferentemente disto, no homem que preparava seus instrumentos de trabalho, ocomportamento adquiria caráter de estrutura complexa; da atividade, voltada para a satisfaçãoimediata de uma necessidade, separa-se uma ação especial, que adquire seu sentido

 posteriormente, quando o produto dessa ação ,(preparação do instrumento) será empregado paramatar a vítima e deste modo satisfazer a necessidade de alimento. A mudança mais importanteda estrutura geral do comportamento — surgida no processo de transição da história natural doanimal à história social do homem — dá-se quando, da atividade geral, separa-se uma "ação" que não é dirigida imediatamente por motivo biológico e só adquire sentido com o emprego

 posterior dos seus resultados. Percebe-se facilmente que, na medida em que se tornam maiscomplexas a sociedade e as formas de produção, essas ações, não dirigidas imediatamente

  por motivos biológicos,

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começam a ocupar posição cada vez mais marcante na atividade consciente do homem.Contudo, a complicação da estrutura da atividade durante a transição à história social do homemnão se limita à mudança que acabamos de mencionar.A preparação dos instrumentos de trabalho requer uma série de procedimentos e modos(desbastar uma pedra com outra, friccionar dois pedaços de madeira na obtenção do fogo), por outras palavras, exige a separação de várias operações auxiliares. A separação dessas"operações" é o que constitui a sucessiva complicação da estrutura da atividade.Deste modo, a separação entre a atividade biológica geral, e as "ações" especiais não édeterminada imediatamente por motivo biológico, mas é dirigida pelo objetivo consciente, queadquire sentido apenas na comparação dessas ações com o resultado final. O surgimento devárias "operações" auxiliares por meio das quais se executa essa atividade é o que constitui amudança radical do comportamento, que é o que representa uma nova estrutura de atividadeconsciente do homem. A complexa organização de "ações" conscientes, que se separa daatividade geral, leva ao surgimento de formas de comportamento, que não são diretamentedirigidas por motivos biológicos, podendo inclusive opor-se algumas vezes a eles.Assim é, por exemplo, a caça na sociedade primitiva, durante a qual um grupo de caçadores"assusta" e afugenta a caça que deve ser apanhada, enquanto outro grupo arma emboscada para

ela; aqui poderia parecer que as ações do primeiro grupo contradizem as necessidades naturaisde apanhar a caça e só adquirem sentido a partir das ações do segundo grupo cujo resultado é acaça da vítima pelos caçadores.Torna-se claro que a atividade consciente do homem não é produto do desenvolvimento natural de propriedades jacentes no organismo mas o resultado de novas formas histórico-sociais deatividade-trabalho.

 A linguagem e a consciência do homemO surgimento da linguagem é a segunda condição que leva à formação da atividade conscientede estrutura complexa do homem.77

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Costuma-se entender por linguagem um sistema de códigos por meio dos quais são designados os objetosdo mundo exterior, suas ações, qualidades, relações entre eles, etc. Assim, na linguagem, a palavra"cadeira" designa um tipo de móvel que serve de assento, a palavra "pão" designa um objeto comestível,enquanto "dorme", "corre" designam ações, "ácido", "plano" designam qualidades dos objetos e as palavras auxiliares "sobre", "sob", "juntamente", "em conseqüência" designam relações diferentes por complexidade entre os objetos.

É natural que as palavras, unidas em frases, são os principais meios de comunicação mediante os quais ohomem conserva e transmite informação e assimila a experiência acumulada por gerações inteiras deoutras pessoas. Essa linguagem não existe entre os animais e surge somente no processo de transição à sociedadehumana. O animal possui meios muito variados de expressão de seus estados, que são percebidos por outros animais e podem exercer influência substancial sobre o comportamento destes. O guia de um bando de cegonhas, ao sentir o perigo, solta gritos alarmantes aos quais o bando reage vivamente. Numamanada de macacos podemos observar todo um conjunto de sons, que expressa satisfação, agressão,medo ao perigo, etc. Podemos observar um sistema muito complexo de movimentos expressivos naschamadas "danças" das. abelhas, que mudam de caráter dependendo de ter a abelha regressado do vôocom boa prenda e modificam-se dependendo da direção e da distância do caminho percorrido. Esses"segredos" são transmitidos a outros indivíduos e podem orientar de modos diferentes o comportamentodas abelhas.

Mas a "linguagem" dos animais nunca designa coisas, não distingue ações nem qualidades, portanto, nãoé linguagem na verdadeira acepção da palavra.O problema do surgimento da linguagem humana é o objeto de inúmeras hipóteses e teorias.Algumas delas consideram a linguagem manifestação do campo espiritual, atribuindo-lhe, de acordo coma Bíblia, "origem divina". Essas teorias são muito vagas e omitem o fato de que a linguagem é umaespecial "forma simbólica de existência", que faz distinção entre a vida intelectual e qualquer manifestação do mundo material.Outras teorias, seguindo as tradições do positivismo naturalista, tentam, inutilmente, ver a linguagemcomo resultado da evolução do mundo animal e interpretam como formas iniciais78

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da evolução da linguagem os fenômenos de "comunicação" entre os animais que descrevemos.Mas a solução científica do problema da origem da linguagem só se tornou possível quando afilosofia e a ciência abandonaram as tentativas de procurar as raízes da linguagem no âmago doorganismo e de deduzi-la diretamente das peculiaridades do "espírito" ou do cérebro,concluindo que as condições que originaram o fenômeno devem ser procuradas nas relações

 sociais do trabalho cujos primórdios de surgimento remontam ao período de tratisição dahistória natural à história humana.A ciência não dispõe de métodos que permitam observar imediatamente as condições queoriginaram a linguagem, restando para a.área da ciência, denominada "paleontologia da fala",apenas o caminho das hipóteses que se confirmam por via indireta. Há muitos fundamentos parase pensar que o surgimento da linguagem teve seus primórdios nas formas de comunicaçãocontraídas pelos homens no processo de trabalho.A forma conjunta de atividade prática faz surgir forçosamente no homem a necessidade detransmitir a outros certa informação; esta não pode ficar restrita à expressão de estadossubjetivos (vivências), devendo, ao contrário, designar os objetos (coisas ou instrumento) que

 fazem parte da atividade do trabalho conjunto. Segundo as teorias originárias da segundametade do século XIX, os primeiros sons que designam objetos surgiram no processo do

trabalho conjunto.Entretanto seria incorreto pensar que os sons, que assumiram paulatinamente a função detransmitir certa informação, eram "palavras" capazes de designar com independência os objetos,suas qualidades, ação ou relações. Os sons, que começavam a indicar determinados objetos,ainda não tinham existência autônoma. Estavam entrelaçados na atividade prática, eramacompanhados de gestos e entonações expressivas, razão por que só era possível interpretar o

 seu significado conhecendo a situação evidente em que eles surgiam. Além do mais, nessecomplexo de meios de expressão parece que, a princípio, coube posição determinante aos atos egestos; estes, segundo muitos autores, constituíam os fundamentos de uma original linguagemativa ou "linear" e só bem mais tarde o papel determinante passou a ser desempenhado pelossons, que propiciaram a base para uma evolução paulatina de uma linguagem de sonsindependente. Durante muito tempo, porém, essa linguagem manteve a mais estreita ligação

com o gesto e o ato e por isto o mesmo complexo de sons (ou "protovocábulo") podia desig-79

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nar o objeto para o qual a mão apontava, a própria mão c a ação produzida com esse objeto. Só depois demuitos milênios a linguagem dos sons começou a separar-se da ação prática e a adquirir independência. Êa essa época que pertence o surgimento das primeiras palavras autônomas, que designavam objetos e bemmais tarde passaram a servir para distinguir as ações e as qualidades dos objetos. Surgiu a língua comoum sistema de códigos independentes, que durante um longo período histórico posterior dedesenvolvimento assumiu a forma que distingue as línguas atuais.

Enquanto sistema de códigos que designam os objetos, suas ações, qualidades ou relações e serve de meiode transmissão de informação, a linguagem teve importância decisiva para a posterior reorganização daatividade consciente do homem. Por isto têm razão os cientistas que afirmam que, a par com o trabalho, alinguagem é o fator fundamental de formação da consciência.O surgimento da linguagem imprime ao menos três mudanças essenciais à atividade consciente dohomem. A primeira dessas mudanças consiste em que, designando os objetos e eventos do mundoexterior com palavras isoladas ou combinações de palavras, a linguagem permite discriminar essesobjetos, dirigir a atenção para eles e conservá-los na memória. Resulta daí que o homem está emcondições de lidar com os objetos do mundo exterior inclusive quando eles estão ausentes. É bastante a pronúncia interna ou externa de uma palavra para o surgimento da imagem do objeto correspondente e ohomem pôr-se em condições de operar com essa imagem. Por isto podemos dizer que a linguagemduplica o mundo perceptível, permite conservar a informação recebida do mundo exterior e cria ummundo de imagens interiores. Percebe-se facilmente que importância tem o surgimento desse mundo

"interior" de imagens, que surge como base na linguagem e pode ser usado pelo homem em sua atividade.O segundo papel essencial da linguagem na formação da consciência consiste em que as palavras de umalíngua não apenas indicam determinadas coisas como abstraem as propriedades essenciais destas,relacionam as coisas perceptíveis a determinadas categorias. Essa possibilidade de assegurar o processode abstração e generalização representa a segunda contribuição importantíssima da linguagem para aformação da consciência.Por exemplo, as palavras "relógio" e "mesa" designam não apenas certos objetos. A palavra "relógio"indica que esse8X>

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objeto serve para marcar as horas (do latim horologio); a palavra "mesa" indica que esse objeto serve paraser coberto (do latim mensa). Além do mais, as palavras "relógio" e "mesa" designam todas asmodalidades desses objetos, independentemente de sua forma exterior ou do tamanho. Isto significa que a palavra que distingue (abstrai) de fato os respectivos indícios do objeto e generaliza objetos diferentes pelo aspecto exterior mas pertencentes à mesma categoria transmite automaticamente ao homem aexperiência das gerações e serve de meio de representação do mundo mais poderoso que a simples

 percepção. . . Deste modo, a palavra faz pelo homem o grandioso trabalho de análise e classificação dosobjetos, que se formou no longo processo da história social. Isto dá à linguagem a possibilidade de tornar-se não apenas meio de comunicação mas também o veículo mais importante do pensamento, que asseguraa transição do sensorial ao racional na representação do mundo.O que acaba de ser dito dá fundamento para designar a terceira função essencial da linguagem naformação da consciência. A linguagem é o veículo fundamental de transmissão de informação, que seformou na história social da humanidade, ou seja, ela cria uma terceira fonte de evolução dos processos psíquicos que, no estágio do homem, aproximam-se das duas fontes (os programas de comportamentotransmissíveis por hereditariedade e as formas de comportamento resultantes da experiência de dadoindivíduo) que se verificavam nos animais.Ao transmitir a informação mais complexa, produzida ao longo de muitos séculos de prática histórico-social, a linguagem permite ao homem assimilar essa experiência e por meio dela dominar um cicloimensurável de conhecimentos, habilidades e modos de comportamento, que em hipótese alguma

 poderiam ser resultado da atividade independente de um indivíduo isolado. Isto significa que com o surgimento da linguagem surge no homem um tipo inteiramente novo de desenvolvimento psíquicodesconhecido dos animais, e que a linguagem é realmente o meio mais importante de desenvolvimento daconsciência. A importância da linguagem para a formação dos processos psíquicosA importância da linguagem para a formação da consciência consiste em que ela efetivamente penetra emtodos os81

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campos da atividade consciente do homem, eleva a um novo nível o desenrolar dos seus processos psíquicos; Por isto a análise da linguagem e do discurso (da forma de transmissão dainformação que emprega meios de linguagem) não pode ser vista apenas como capítulo especialda Psicologia mas deve ser considerada também como jatos de construção de todo o conjuntoda vida consciente do homem. É justamente por isto que o papel da linguagem ou "segundosistema de sinais da realidade", como a denominou Pávlov, deve ser enfocado como parteconclusiva da introdução evolucionista à Psicologia.A linguagem reorganiza substancialmente os processos de percepção do mundo exterior e crianovas leis dessa percepção.É sabido que existe no mundo um número imenso de objetos, formas, matizes de cores, mas émuito limitado o número de palavras que designam esses objetos, formas e matizes. Isto leva aque, quando relacionamos o objeto, a forma ou. matiz com alguma palavra ("mesa", "relógio","círculo", "triângulo" ou "vermelho", "amarelo"), nós realmente selecionamos os traçosessenciais e generalizamos os objetos, formas e cores perceptíveis em determinados grupos oucategorias. Isto dá à percepção humana traços que a distinguem radicalmente da percepção doanimal. A percepção humana se torna mais profunda, relacionada com a discriminação dosindícios essenciais do objeto, generalizada e permanente.

A linguagem muda essencialmente os processos de atenção do homem.Se a atenção do animal tinha caráter imediato, era determinada pela força, a novidade ou valor  biológico do objeto que dirigiam automaticamente (arbitrariamente) a atenção do animal, com osurgimento da linguagem e baseado nela o homem se acha em condições de dirigir arbitrariamente a sua atenção.Quando a mãe diz ao filho "isto é uma xícara", ela está distinguindo esse objeto de todos osdemais e dirigindo para ele a atenção da criança. Quando posteriormente a própria criançaassimila o discurso (a princípio exterior, depois interior), acha-se em condições de discriminar sozinha os objetos nomeados, as qualidades ou ações, tornando-se sua atenção dirigível,arbitrária.A linguagem muda essencialmente também os processos da memória do homem. É sabido que amemória do animal depende consideravelmente da orientação no meio ambiente e dos motivos

 biológicos, que servem de reforço daquilo que é lembrado com êxito. No nível humano eapoiada nos processos82

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do discurso, a linguagem se torna pela primeira vez atividade mnemônica consciente, na qual o homemcoloca fins especiais de lembrar, organiza o material a ser lembrado e acha-se em condições não só deampliar de modo imensurável o volume de informação que se mantém na memória como ainda de voltar-se arbitrariamente para o passado, selecionando nele, no processo de memorização, aquilo que em dadaetapa se lhe afigura mais importante.A linguagem do homem lhe permite desligar-se pela primeira vez da experiência imediata e assegura o

surgimento da ■imaginação, processo que não existe no animal e serve de base à criação orientada edirigida cujo estudo constitui área especial da Psicologia.É dispensável dizer que só com base na linguagem e com sua participação imediata constituem-se ascomplexas formas de pensamento abstrato e generalizado; o surgimento dessas formas representa umadas aquisições mais importantes da humanidade e garante a transição do "sensorial ao racional",considerada pela filosofia do materialismo dialético como um salto que pela importância é igual àtransição da matéria inanimada para a animada ou da vida vegetal para a animal. Não são menos importantes as mudanças introduzidas na reorganização da vivência emocional  pelosurgimento da linguagem, que eleva a um novo nível os processos psíquicos. Nos animais conhecemos apenas as reações afetivas expressas, que ocorrem com a participaçãodominante dos sistemas sub-corticais e são diretamente relacionadas com o êxito ou fracasso de suaatividade e conservam plenamente sua ligação com as necessidades biológicas. O mundo emocional dohomem não é apenas incomparavelmente mais rico nem só isolado dos motivos biológicos; a avaliação

das correlações das ações realmente exeqüíveis com as intenções iniciais, a possibilidade de umaformação generalizada do caráter e do nível dos seus acertos leva a que, paralelamente às categoriasafetivas, formem-se no homem vivências e demorados estados-de-espirito que vão muito além dos limitesdas reações afetivas imediatas e são inseparáveis do seu pensamento, que se processa com a participaçãoimediata da linguagem.Por último, não se pode omitir a última tese, cuja importância é especialmente grande.É sabido que as novas formas de comportamento individualmente variável do animal são adquiridas com base em sia orientação imediata no meio ambiente e que a aquisição de83

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formas estáveis de semelhante comportamento se baseia nas leis dos reflexos condicionados,estudadas minuciosamente pela escola de Pávlov.É fato bem conhecido que a aquisição de novas formas de comportamento exige um reforçorelativamente longo da resposta ao sinal condicional, a repetição multiplicada da coincidênciados sinais condicionais com o reforço incondicionado. Essa ligação é adquirida paulatinamente,começa a extinguir-se tão logo desaparece o reforço e se reorganiza com relativa dificuldadenum novo sistema de ligações.

 Não encontramos nada semelhante na formação de novas modalidades de comportamentoconsciente do homem. A nova forma de atividade consciente pode surgir no homem à base daformulação discursiva de uma regra, que o homem estabelece com o auxílio da linguagem.Basta instruir o homem no sentido de erguer o braço ou girar a chave em resposta a um sinalvermelho e não fazer nenhum movimento a um azul para surgir imediatamente e consolidar-seessa nova relação. O advento de qualquer ação, executável com base em instrução discursiva,dispensa qualquer reforço "incondicional" (ou biológico) . Sua formação dispensa elaboraçãolonga e se estabelece de imediato; essa ação, que se estabelece de acordo com uma regraformulada no discurso, mostra-se imediatamente sólida, dispensa repetição permanente dainstrução e não se extingue se essa instrução não se repete. Por último, a "conversão" dessa ação

numa nova não apresenta, na norma, nenhuma dificuldade, e, para que a relação anteriormentecriada seja imediatamente substituída por uma contrária, basta sugerir ao sujeito uma novainstrução, dizendo-lhe, por exemplo, que agora ele deve fazer o contrário: em resposta âo sinalazul, levantar o braço (ou girar a chave), nada fazendo ao sinal vermelho.Tudo isso se refere à imensa plasticidade e ao caráter dirifgível dos processos de atividadeconsciente do homem, que distingue acentuadamente o seu comportamento do comportamentodo animal.A análise minuciosa das formas dessa atividade consciente, dos meios de sua direção, das leisque servem de base ao seu desenvolvimento e das formas de sua perturbação nos estados

 patológicos constitui uma das tarefas fundamentais da Psicologia^84

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IVO Cérebro e os Processos Psíquicos1 ARA ENTENDER melhor a estrutura dos processos psíquicos do homem e das leis que os regem, devemosconhecer acima de tudo a maneira pela qual se construiu o órgãos principal da atividade psíquica — o

cérebro humano — e as relações dos processos psíquicos com ele.O problema da relação dos processos psíquicos com o cérebroO problema da relação dos processos psíquicos com o cérebro e dos princípios de trabalho do cérebroenquanto substrato material da atividade psíquica teve soluções diferentes em períodos diversos deevolução da ciência. O caráter da solução desse problema dependia muito da maneira como seinterpretavam os processos psíquicos do homem e como se enfocavam os seus fundamentos cerebrais. Na Idade Média já se formara na filosofia e na Psicologia a ela relacionada a concepção segundo a qualos processos psíquicos eram formas especiais de existência do espírito ou85

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"faculdades" irredutíveis a quaisquer componentes mais elementares .Estabeleceu-se a opinião segundo a qual podem-se distinguir ao menos três "faculdades" básicas: afaculdade da percepção ou imaginação, a faculdade do raciocínio e a faculdade da memória.Os pensadores, que procuravam a base material dessas faculdades, aventavam a hipótese de que elasestavam localizadas no líquido que preenche três "ventrículos cerebrais", e consideravam que noventrículo anterior estava situada a "faculdade da percepção ou imaginação", no ventrículo médio, a

"faculdade do raciocínio", e no ventrículo posterior a "faculdade da memória".A idéia de que os processos psíquicos, que são a seguir "faculdades" indivisíveis, podiam estar imediatamente "localizados" em determinadas formações cerebrais, manteve-se durante muitos séculos econtinuou basicamente imutável inclusive depois que os cientistas deixaram de considerar substrato do psiquismo o líquido que preenche os "ventrículos cerebrais" e chegaram à opinião de que o fundamentoda atividade psíquica devia ser procurado na substância sólida do cérebro, sobretudo no córtex.A primeira tentativa de semelhante "localização das faculdades psíquicas" foi empreendida no começo doséculo XIX por F. J. Gall. Ele apresentou a hipótese de que o substrato de diversas "faculdades" psíquicasé constituído por pequenas áreas do tecido nervoso do córtex cerebral, que crescem muito com odesenvolvimento dessas "faculdades". Após distinguir um grande número dessas "faculdades" congênitas(às quais, segundo ele, pertenciam "faculdades" como a "parcimônia", a "honestidade", o "respeito aos pais" e o "amor às crianças"), Gall localizou cada uma delas em determinada área do cérebro econsiderava que o intenso crescimento dessa ou daquela área cerebral, que levava à formação de

 protuberâncias no crânio, indicava uma evolução especial dessa "faculdade". Essa hipótese acabouservindo de base a um campo especial da "ciência" — a "frenologia" —, que, segundo Gall, com base noestudo das protuberâncias no crânio podia fazer conclusões relativas às capacidades individuais dohomem.Apesar de a "frenologia" de Gall ter sido considerada fantástica e sem fundamento científico ainda comseu criador vivo, a idéia da "localização" direta de certas funções psíqui-86

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cas do córtex cerebral continuou em evidência. Por isto os cientistas cujo método principal passou a ser o estudo das mudanças nos processos psíquicos, que ocorrem nos casos de afecçõeslimitadas (locais) do cérebro, continuarem por muito tempo a fazer tentativas de "localização"direta das funções psíquicas em áreas isoladas do córtex cerebral.Ao descobrir que a afecção de áreas da terceira circunvo-lução frontal do hemisfério esquerdoleva à perturbação da fala articulada, o anatomista francês Paul Broca (1861) lançou a hipótesesegundo a qual estão "localizadas" nessa região as imagens motoras da palavra, O psiquiatraalemão K. Wernicke (1873) descobriu que a afecção da parte posterior da cincun-voluçãotemporal superior do hemisfério esquerdo mantém intacta a linguagem motora mas perturba acompreensão das palavras; ele lançou a tese de que essa região do córtex é o "centro da palavrasensória".Essas tentativas de localização direta das funções psíquicas em áreas limitadas do cérebroinspiravam os estudiosos (psiquiatras e neurologistas). A partir da década de 70 do século

 passado, o estudo das observações clínicas mostrou que a afecção de áreas limitadas do córtexcerebral faz predominar a queda de "funções psíquicas" perfeitamente determinadas. Essasdescobertas deram aos pesquisadores fundamentos para distinguir, no córtex cerebral, as áreasque passaram a ser consideradas "centros da escrita", "centros do cálculo", "centro dos

conceitos", etc. Essas tentativas foram reunidas num sistema pelo psiquiatra alemão K. Kleist(1934), que, com base em observações feitas em cérebros de feridos durante a I GuerraMundial, colocou-as num "mapa sinótico localizado", no qual até as "funções" psíquicas maiscomplexas coincidiram com as áreas limitadas do córtex cerebral.Apesar de que em seu tempo eram progressistas às tentativas de "localização" direta dascomplexas "funções" psíquicas nas áreas limitadas do córtex cerebral, pois tais tentativasrefletiam o esforço de fazer um enfoque materialista dos processos psíquicos e seu substratocerebral, elas logo mostraram sua inconsistência e deixavam de satisfazer aos estudiosos.Isto tinha por base tanto considerações teóricas como as contradições do material factual emrelação a essas considerações. Por um lado, levantaram-se dúvidas legítimas de que processoscomplexos como a fala, a escrita, a leitura e o87

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cálculo, já sem falar da atividade intelectual, podiam ser entendidos como simples "faculdades"congênitas, podendo-se procurar sua "localização" em áreas limitadas do córtex cerebral. Por outro lado, aanálise minuciosa dos fatos das observações clínicas mostrou que a atribuição direta dos complexos processos psíquicos às áreas limitadas do córtex cerebral carece de fundamento. Verificou-se que perturbações de processos psíquicos tão complexos como a fala, a escrita, a leitura e o cálculo podemsurgir com afecções corticais inteiramente diferentes pela posição, fato que por si só já contrariava a idéia

da estreita "localização" das funções psíquicas nas áreas isoladas do córtex. Observou-se que a afecção deáreas limitadas do córtex cerebral leva, via de regra, à perturbação de todo um grupo de processos psíquicos, que à primeira vista parecem inteiramente diferentes. Assim, a afecção do lobo temporalesquerdo provoca a perturbação da compreensão da fala, distúrbios na escrita, dificuldades de encontrar  palavras, etc, enquanto a afecção das áreas parietais e occipitais do córtex cerebral do hemisférioesquerdo provoca distúrbios na orientação no espaço, dificuldades de percepção da luz, impossibilidadede compreender as complexas relações lógico-gramaticais e vários outros distúrbios congêneres daatividade intelectual.Isto gerou uma crise das concepções anteriores da "localização" direta dos processos psíquicos nas áreaslimitadas do córtex cerebral e levou vários pesquisadores (entre estes grandes psicólogos como K. S.Lashley e neurologistas como K. Goldstein, C. Monakow e outros) a lançarem a idéia de que os processos psíquicos são função de todo o cérebro e não podem ser "localizados" nas áreas limitadas do córtexcerebral.

Essa idéia, que levou ao surgimento de uma corrente científica conhecida como "antilocalizacionismo",era uma reação legítima às concepções simplistas do "localizacibnismo estreito". No entanto ela nãotardou a mostrar sua inconsistência.Tanto as sutis pesquisas histológicas como as observações fisiológicas mostraram que o córtex cerebral éum aparelho bastante diversificado, que áreas corticais distintas apresentam estrutura diferente e que osneurônios, integrantes do córtex cerebral, são amiúde tão especializados que dentre eles podemosdistinguir os que reagem apenas a irritações muito especiais ou a indícios muito especiais (por exemplo,só reagem aos movimentos do centro à periferia ou da periferia ao centro, às linhas retas e curvas ousomente às linhas quebradas, etc). Essas88

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linhas, parte das quais é o resultado de descobertas obtidas ultimamente como decorrência de pesquisasfisiológicas, realizadas em certos neurônios, tornaram muito pouco prováveis as hipóteses dahomogeneidade de toda a massa cerebral c as afirmações segundo as quais o cérebro sempre funcionacomo um todo único.Criou-se uma nova crise na doutrina dos princípios da organização funcional do cérebro e na doutrina da"localização" dos processos psíquicos no córtex cerebral.

A saída para essa crise estava relacionada com a revisão radical do conceito de "funções psíquicas" ecom a mudança radical dos principais enfoques dos princípios da "localização" cerebral dessas"funções".O conceito de "função" tem em biologia dois significados inteiramente diversos.Strtctu sensu, entende-se por "função" a direção de determinado tecido. Sabe-se que a função do fígado éa regulação da troca de hidrato de carbono, a função do pâncreas é a segregação de insulina, a função doalvéolo pulmonar, difusão do oxigênio e sua transmissão aos eritrócitos do sangue.Mas o conceito de "função" tem um outro significado mais amplo. Ele pode designar a atividade deadaptação de todo um organismo. Neste sentido fala-se de função da respiração, função da digestão,função da locomoção. Compreende-se perfeitamente que nesse segundo significado mais amplo, a funçãose constitui^ numa complexa atividade, exercida pelo trabalho conjunto de todo um sistema de órgãos,cada um dos quais integra esse "sistema funcional" (termo de P. K. Ano-khin) em seus próprios papéis,assegurando esse ou aquele aspecto desse sistema funcional.

Assim, a "função da respiração" é exercida pelo trabalho conjunto de todo um grupo de músculos ealvéolos pulmonares. É característico que os músculos, que participam do ato de respiração, podemsubstituir mutuamente uns aos outros, e se de um sistema funcional extingue-se a participação de umgrupo de músculos (os músculos do diafragma, por exemplo), essa falha é compensada pelo trabalhoreforçado de outro grupo de músculos (os músculos intercostais). Deste modo, o sistema funcional representa um complexo todo dinâmico, no qual o objetivo final permanente ("invariante") é realizado pelo sistema mutável ("variante") de suas partes componentes.89

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O mesmo podemos dizer da "função da digestão", que representa o mais complexo sistemafuncional de órgãos digestivos que funcionam em conjunto, bem como da "função domovimento" (ou locomoção), na qual o objetivo final (deslocamento de um lugar para outro, oacerto em dado alvo, a batida do martelo, etc.) é realizado por um complexo sistema demúsculos cuja inter-relação varia com a mudança da posição do corpo, dependendo da tensão,da consolidação da habilidade, etc.É natural que um sistema funcional tão complexo não pode ser "localizado" em determinadaárea limitada do sistema nervoso. Pávlov já indicara que "se antes o centro respiratório eraconcebido como um ponto do tamanho da cabeça de um alfinete no bulbo raquidiano, . . . agoraele está extremamente espalhado, subiu para o cérebro e desceu para a medula espinhal e hojeninguém indicará com precisão a sua fronteira" (I. P. Pávlov, Obras completas, t. III, p.127).Se tão amplo significado do conceito de "função" se refere a um grande número de atos

 biológicos de adaptação, é com maior fundamento que ele deve ser aplicado às complexas"funções psicológicas".Como mostraram pesquisas psicofisiológicas e psicológicas, até "funções" relativamentesimples como o movimento arbitrário, a marcha, o acerto no alvo, já sem falar de funções como

a fala, a escrita e o cálculo, têm estrutura sumamente complexa, compreendendo em suacomposição um número considerável de elos CQmponentes.Para executar o movimento mais simples (por exemplo, acertar um ponto com a ponta do dedoou dar uma martelada) é necessário antes de tudo manter uma profunda sensibilidade

 proprioceptiva do braço que se move dando o sinal da sua posição no espaço e do grau dasdistensões dos músculos em funcionamento. Sem essa sinalização permanente da posição doextremo que se move, garantindo a necessária correção da direção, nenhum movimentoorganizado é possível. Para a sua execução é necessário um reflexo preciso das coordenadasespaciais exteriores em cujos limites executa-se o movimento, o movimento perde sua precisãoe se torna impossível. A execução de um movimento exige a mudança harmoniosa dos seuselementos; até para se darem dois90

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 passos é necessário inicialmente enervar um sistema de músculos e, em seguida, transferindo osimpulsos para outro sistema de músculos, desenervar o primeiro e passar harmoniosamente aoelo seguinte do ato motor.Tudo isso mostra que até um movimento arbitrário relativamente simples é um complexo

 sistema funcional, que inclui em sua composição todo um conjunto de impulsos tanto senso-riais (aferentes) como motores.É ainda mais complexa a estrutura de tipos de atividade psíquica como a fala, a escrita, a leituraou o cálculo, formados no processo da história da sociedade.Tomemos como exemplo a análise da maneira como foi construído o ato da escrita e mostremosque elos complexos integram esse sistema funcional.Para escrever uma palavra, devemos discriminar antes de tudo os sons que integram a suacomposição, noutros termos, devemos fazer a sua análise acústica, decompondo fluxo

 permanente de sons nas unidades sonoras componentes da língua — os "fonemas" (que em cadalíngua podem ter caráter diverso). Amiúde a separação desses fonemas se faz não só "deouvido" mas com a participação imediata da articulação, por meio da qual é como se nós"sondássemos" os sons e os distinguíssemos de outros próximos. Somente depois desse trabalho

 prévio a composição sonora da palavra se considera definida e a palavra pronta para o registro.

Aqui o processo da escrita passa à fase seguinte: os elementos sonoros ("fonemas") devem ser recodifiçados em elementos motor-visuais da escrita ("grafemas"). Para executar essa ação énecessário dispor tanto de um esquema motor-visual de "grafemas" ou letras como manter acorreta disposição destes no espaço. No entanto a escrita não termina nesse processo. Elarepresenta um complexo programa de movimentos, nos quais um elo deve incorporar-seharmoniosamente ao seguinte. O cumprimento dessa condição exige a inclusão de dispositivosinteiramente diferentes, sem os quais a escrita harmoniosa se torna impossível. Por último, o

 processo da escrita deve sempre estar sujeito a uma tarefa geral (escrever uma frase, uma carta,expor 91

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uma idéia, etc.) e só com a sólida manutenção desse programa correspondente a necessáriatarefa pode ser cumprida.Cabe observar que em diferentes línguas a escrita pode apresentar estrutura diferente. Se nagrande maioria das línguas (indo-européias, turcas) a escrita apresenta a estrutura que acabamosde descrever, há línguas (o chinês, por exemplo) em que a escrita não é um processo detransferência das unidades sonoras ("fonemas") para as respectivas letras ("grafemas"); nelas oescrevente representa imediatamente os conceitos com determinados sinais convencionais(hieróglifos). É natural que para semelhante escrita a primeira fase (a análise sonora da palavra)se torna desnecessária e o processo da escrita adquire inteiramente outro caráter.O que acaba de ser dito mostra de modo bastante convincente que deve ser abandonada em seus

 primórdios a própria idéia de que um processo tão complexo tenha sido "localizado" emdeterminada área limitada do cérebro e realizado por um grupo relativamente insignificante decélulas. Por isto a tarefa de "localização" das funções psíquicas nas áreas limitadas do cérebro

 pode ser substituída por outra tarefa: a análise do sistema de zonas cerebrais que funcionam emconjunto, que põem em ação dado "sistema funcional", noutros termos, a análise da maneira

 pela qual esse sistema funcional se distribui pelos aparelhos do córtex cerebral segundo asrespectivas estruturas cerebrais.

Esse enfoque torna compreensível também o fato de que a afecção de determinada área limitadado cérebro pode levar à desintegração todo um sistema funcional, e sempre que haja afecçãolimitada do cérebro não será afetada um "função" mas todos os sistemas funcionais cujarealização tem a participação da área cerebral afetada. Torna-se compreensível que a mesmaafecção do cérebro pode provocar a perturbação dos mais diversos sistemas funcionais (só seforem integrados por determinado elo geral ou "fator" geral cujo funcionamento estejadiretamente relacionado com a afecção da área) e que um mesmo sistema funcional (o ato daescrita ou da fala, por exemplo) pode ser afetado com a afecção de diferentes áreas do cérebro,que asseguram elos diversos, integrantes da composição de dada função.92

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Assim, se um movimento arbitrário inclui em sua composição elementos sensórios(cinestésicos) espaço-visuais, que que criam a base "aferente" do movimento e os impulsos efe-rentes propriamente ditos, então é perfeitamente natural que esse movimento possa ser afetadotanto com a afeccção das áreas sensórias e espaço-visuais como com a afecção das áreascorticais propriamente motoras.Se o processo da escrita inclui em sua composição a análise auditiva, cinestésica (articular) daestrutura da letra, a realização do respectivo programa motor será naturalmente perturbado tantocom a afecção das áreas auditivas, cinestésicas ou visuais como das áreas motoras do cérebro eessa perturbação será cada vez diferente.A análise do caráter das perturbações dos complexos sistemas funcionais nos casos de afecçõeslocais limitadas do cérebro constitui o objeto de um campo especial da Psicologia — aneuropsicologia. Os dados desta ciência são de grande, importância tanto para o campo práticoda neurologia — definição do diagnóstico local (tópico) das afecções cerebrais — como parauma compreensão mais profunda da estrutra fisiológica dos complexos processos psicológicos.Para entender a organização cerebral dos complexos processos psíquicos, é necessário, antes detudo, ter uma noção precisa dos dados atuais atinentes à organização funcional do cérebrohumano.

 Princípios da organização funcional do cérebro humanoComo já foi dito (cap. II), o cérebro humano, sendo produto de uma longa evolução, é umcomplexo sistema construído por hierarquia, que se distingue pelo fato de que, aos aparelhos dotronco e do córtex primitivo — bastante desenvolvido já nos vertebrados superiores — sobrepõem-se os grandes hemisférios, que no homem chegam a um nível especialmente alto dedesenvolvimentoSe os aparelhos do tronco e de suas áreas superiores são aquelas partes do cérebro que incluemem sua composição os núcleos (grupos de células que regulam 'os processos de respiração,circulação sangüínea e do metabolismo bioquímico, que executa os mais importantes processosvitais), já os apa-93

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relhos do corpo quadrigêmeo e dos nós subcorticais (tálamo ótico e sistema palium estriado) sãoas primeiras instâncias que asseguram a obtenção das instigações do mundo exterior quechegam através dos órgãos superiores dos sentidos (receptores de contato e distância), ainclusão delas nos aparelhos motores (corpo quadrigêmeo) e sua integração primária com aexecução de complexas sinergias (sistema talâmico-estriado). Esses últimos aparelhosdesempenham papel dominante nos vertebrados inferiores (anfíbios, peixes, aves) mas são

 paulatinamente afastados pelas áreas superiores do cérebro anterior — os grandes hemisférios.Estes são os dispositivos mais complexos, que asseguram a análise e a síntese das excitaçõesque chegam do mundo exterior, a assimilação e elaboração da informação recebida, ofechamento de novas ligações, o processamento de programas de atividade complexa eregulação da realização das formas superiores de comportamento. As áreas superiores dosistema nervoso central são os grandes hemisférios: o córtex cerebral e a substância brancasubjacente, constituída de fibras de projeção, que ligam o córtex às formações subcorticaissubjacentes, e de fibras de associação, que ligam regiões corticais isoladas. Os grandeshemisférios começam a ocupar posição dominante nos vertebrados superiores, tornando-se oaparelho fundamental, o mais importante da atividade psíquica do homem.Pesquisas realizadas nos últimos decênios deram certa clareza não apenas à característica

morfológica dos aparelhos cerebrais como também aos princípios fundamentais de suaorganização funcional. É isto que se reveste de importância essencial para a Psicologia.Os três "blocos" principais do cérebroComo já indicamos, o cérebro humano, que assegura o recebimento e a elaboração dainformação e a criação de programas de suas próprias ações bem como o controle da execuçãodestes, trabalha sempre como um todo único. Contudo o cérebro é um aparelho complexo ealtamente diferençado, composto de várias partes; a perturbação do funcionamento normal decada parte se reflete fatalmente no seu trabalho.94

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 No cérebro humano podemos distinguir ao menos três "blocos" principais, cada um desempenhando papel especial na atividade psíquica.O primeiro mantém o necessário tônus do córtex, indispensável para o bom andamento dos processos derecebimento e elaboração da informação, bem como dos processos de formação de programas e controleda execução destes. O segundo bloco assegura o próprio processo de recebimento, elaboração econservação da informação que chega ao homem do mundo exterior (dos aparelhos do seu próprio corpo).

O terceiro bloco elabora programas de comportamento, assegura e regula sua realização e participa docontrole do seu cumprimento.Todos os três blocos se instalam em órgãos isolados do cérebro e só o trabalho bem organizado leva auma acertada organização da atividade consciente do homem.O bloco do tônus do córtex ou bloco energético do cérebroPara que o homem possa realizar normalmente o recebimento, a elaboração e conservação da informação,criar e executar os complexos programas de comportamento, acompanhar o êxito das ações executadas efazer a necessária auto-regulação do comportamento, é necessária uma permanente manutenção do tônusotimal do córtex. Só esse tônus pode assegurar a escolha acertada dos sinais essenciais, a conservação dosseus vestígios, a elaboração dos necessários programas de comportamento e um controle permanente daexecução destes.Coube a Pávlov apresentar uma característica fisiológica desse tônus otimal do córtex, indicando que os processos que ocorrem no córtex normal obedecem à "lei da força", segundo a qual um instigador forte

(ou mais significativo) provoca uma reação forte, que deixa o vestígio mais estável, ao passo que oinstigador fraco (ou menos significativo) provoca uma reação mais fraca cujo vestígio se extingue ou seinibe mais facilmente.A existência dessa "lei da força", que caracteriza a exci-tabilidade otimal do córtex, é necessária para arealização de atividade seletiva organizada, para a criação de sistemas domi-95

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nantes de exeitação, para a conservação de sistemas de informação organizados e programasestáveis de comportamento. É bem conhecido que com a redução do tônus do córtex este pode

 passar ao estado inibido ou "fásico": os instigadores fracos começam a provocar reaçõesidênticas às que provocam os instigadores fortes ("fase niveladora") ou até reações mais fortesdo que as dos instigadores fortes ("fase paradoxal"). Essa peculiaridade do trabalho surge, por exemplo, no estado de sono ou sonolência.É natural que em tais condições a atividade consciente organizada se torna impossível e o fluxoseletivo organizado de idéias é substituído pelo aparecimento de associações "casuais" (ousecundárias).Uma importante descoberta da fisiologia nos últimos vinte anos consiste em que inúmerasobservações e experimentos de vários pesquisadores célebres (Magoun K. W., Moruzzi G. Jas-

 per H. H.) mostraram que nesse processo desempenham papel substancial as formações dasáreas superiores do tronco cerebral, particularmente as formações do hipotálamo, do tá-lamoótico e do sistema de fibras reticulares ("formação re-ticular"), que une essas formações por uma ligação bilateral com o córtex cerebral. Essas formações são as componentes principais do"primeiro bloco" do cérebro-bloco humano, que assegura o tônus geral ou estado de vigília docórtex.

 A esses órgãos devemos incorporar os órgãos do córtex primitivo ou límbico, que está situadonas áreas internas (médias) dos grandes hemisférios e é estreitamente ligado aos órgãos recém-referidos do tronco superior. Eles compreendem em sua composição formações anliquíssimasdo grande cérebro como o hipocampo, o núcleo do tálamo ótico, os antimuros e os corposmamilares; o movimento da excitação nesse sistema, que recebeu a denominação de "ciclo dohipocampo" é uma das condições mais importantes de manutenção do tônus corti-cal, degarantia do estado emocional normal e cria condições para a sólida manutenção dos indíciossurgidos.Todo o complexo aparelho que integra o bloco desempenha importante papel no funcionamentonormal do córtex cerebral e merece abordagem minuciosa.A manutenção do tônus permanente do córtex tem basicamente duas fontes (às quais só maistarde acrescenta-se uma terceira, mais complexa) .

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Por um lado, para manter o estado de vigília do córtex é necessário um afluxo permanente deinformação do mundo exterior; privado dessa afluência de excitações do mundo exterior, oanimal adormece. Sabe-se, ainda, o efeito provocado pela "fome de informação", que surge nohomem após um longo período de isolamento numa cela escura à prova de som. As observaçõesefetuadas nos últimos anos mostram que? nesses casos, começam facilmente a surgir alucinaçõesno homem, qué compensam em parte essa insuficiência de afluência permanente de instigaçõesexteriores. Por isto, para manter o tônus ideal do córtex, tem importância decisiva o estado deconservação do tronco superior e do tálamo ótico que são a primeira instância do recebimentodas instigações afluentes de fora. O corte das vias que levam do tronco superior ao córtex nacomposição da "formação reticular ativa ascendente" leva inevitavelmente ao adormecimento;esse mesmo efeito pode ser provocado pela irritação das paredes do terceiro ven-trículo (quetem como componentes os órgãos do tálamo ótico): a irritação das paredes do terceiroventrículo durante operações cerebrais realizadas pelo famoso cirurgião soviético N. N.Burdenko, levou freqüentemente o paciente a adormecer.Deste modo, a primeira fonte do estado de vigília do córtex é a afluência constante de irritaçõesda periferia, no qual os órgãos do tronco, superior e a formação reticular ascendentedesempenham papel principal.

A segunda fonte igualmente importante do tônus permanente do córtex é constituída pelosimpulsos que a este chegam dos processos internos de metabolismo do organismo, que formama base das inclinações biológicas do organismo.É sabido que o estado do organismo (o nível de açúcar no sangue, por exemplo, que é um índicedo estado de fome ou saciação, o nível de oxigênio no sangue, que, caindo para um nívelinferior ao necessário, é um índice da "fome de oxigênio") é regulado pelos órgãos do troncosuperior e do hipo-tálamo. Sabe-se, ainda, que o tronco superior e o encéfalo primitivo sãocompostos também por aparelhos especiais, que regulam processos como os reflexos sexuais, osreflexos da agressão, etc.Irritando as respectivas áreas do tronco superior e do encéfalo primitivo, os pesquisadores (N.Miller, J. Olds, Mc Lean, Delgado e outros) provocaram no animal formas expressas decomportamento sexual instintivo, atos de agressão,

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fome constante e sede, etc. A existência, nas referidas zonas do encéfalo, de formações nervosas queregulam as inclinações citadas, foi utilizada por alguns pesquisadores (Olds e Delgado) para provocar nosanimais reações duradouras de "auto-estimulação". Ao fechar a corrente que se dirigia aos eletrodosintroduzidos nessas áreas do encéfalo, o animal provocava sozinho e demoradamente a excitação dessesaparelhos, considerados pelos referidos autores como "centros" sui generís, reguladores do estadoemocional do animal.

Os impulsos que partem dessas formações do hipotálamo e do tálamo ótico, que são transmitidos aocórtex através da formação reticular ascendente, constituem a segunda fonte de manutenção do tônuscortical e seu estado de vigília. A afecção desses aparelhos do hipotálamo e dos núcleos do tálamo óticono homem pode mudar substancialmente o tônus do córtex. Exemplos de mudança do tônus podemos ver nos casos de distúrbio das funções da hipófise, por um lado, e de tumores das paredes do terceiroventrículo, por outro.Aos aparelhos do tronco superior da formação reticular, que asseguram a manutenção do tônus do córtex,devemos incorporar os aparelhos do córtex primitivo ("límbico"), situados nas áreas internas (mediais)dos grandes hemisférios e participantes do trabalho do bloco "energético" do encéfalo.O córtex primitivo "límbico" foi, durante muito tempo, considerado parte essencial do "corpo olfativo".Essa hipótese se baseava no fato de que esse córtex é especialmente desenvolvido nos animais nos quais oolfato desempenha papel dominante no comportamento. Mas a existência dessa área nos animais semolfato (delfins), bem como várias observações fisiológicas levaram à mudança desse ponto de vista;

levaram a incluir na região o hipocampo e os órgãos componentes, de funções bem mais complexas, e aconsiderar o córtex primitivo e a região límbica como "encéfalo-vegetativos", tendo participaçãoessencial na regulação da ocorrência dos processos vegetativos e afetivos cujo papel é importante para aconservação dos vestígios da memória.Essas hipóteses foram formuladas pelos grandes pesquisadores americanos K. Klüver e P. Bucy que,depois da dani-ficação da região límbica (particularmente das áreas mediais do lobo temporal)observaram nos animais acentuada excitação das reações emocionais e perturbações da memória. Dadosaproximados foram obtidos também nas observações pos-98

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teriores de Mc Lean, Olds e outros, que tiveram oportunidade de presenciar mudançassubstanciais das inclinações e dos processos afetivos, que ocorrem nos animais como resultadoda danificação do hipocampo. Por último, importantes observações realizadas em pessoas comafecção bilateral do hipocampo pelos pesquisadores americanos W. Penfield, B. Milner e W.Scoville permitiram mostrar que, nesses casos, muda substancialmente o tônus do córtex eafeta-se profundamente a memória.A explicação para esses fenômenos foi encontrada quando os fisiologistas (Viesel, Jasper eoutros) descobriram que no hipocampo existe um grande número de neurônios que não reagema instigadores específicos (visuais, auditivos ou táteis) mas reagem sutilmente a cada mudançaque surge no meio ambiente. A existência desses neurônios de cujas funções faz parte acomparação dos instigadores com os vestígios antecedentes, fazendo parte também as reações à'Mescoordena-ção" destes, parece explicar o papel desempenhado pelas formações do córtex

 primitivo nos processos de reflexo orientado (atenção não-dirigida) e memorização.O papel dos aparelhos do primeiro* bloco na manutenção do tônus do córtex e do estado devigília é assegurado pelas suas estreitíssimas ligações com o córtex„ que são realizadas atravésdas fibras da formação reticular ativadora. Cabe observar que essa formação tem tecidos tantoascendentes como descendentes. Através dos primeiros ("formação reticular ativadora

ascendente") efetua-se a excitação do córtex pelos impulsos decorrentes das formações dasáreas superiores do tronco do encéfalo. Por meio dos segundos ("formação reticular ativadoradescendente") realizam-se1 aquelas influências que as áreas superiores do cérebro,

 particularmente o seu córtex, exercem sobre os segmentos do tronco encefálico. Por isto oaparelho da "formação reticular descendente" desempenha papel substancial na transmissão docolorido afetivo e na garantia do tônus para os programas de comportamento que surgem nocórtex em decorrência da informação recebida e das formas exteriores de programas enecessidades que se formam no homem com a participação da fala. É esse aparelho queassegura a terceira fonte de manutenção do estado de vigília, que apenas mencionamos e queestá ligado aos complexos programas e necessidades que surgem no homem como resultado desua atividade consciente.99

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Deste modo, o primeiro bloco do cérebro de cuja composição fazem parte os aparelhos dotronco superior, da formação reticular e do córtex primitivo, assegura o tônus geral (vigília) docórtex e a possibilidade de duradoura conservação dos vestígios da excitação. O funcionamentodesse bloco não está relacionado especialmente com os outros órgãos dos sentidos e tem caráter "modal-não-específico", assegurando o tônus geral do córtex.

 Bloco do recebimento, elaboração e conservação da informaçãoSe o primeiro bloco que acabamos de descrever assegura o tônus do córtex mas ele mesmoainda não participa do recebimento e processamento da informação nem da elaboração dos

 programas de comportamento, já o segundo bloco está imediatamente ligado ao trabalho deanálise e síntese dos sinais trazidos do mundo exterior pelos órgãos dos sentidos, noutrostermos, está relacionado com o recebimento, o processamento e a conservação da informaçãorecebida pelo homem.Esse bloco é composto de órgãos situados nas seções posteriores do córtex cerebral (áreas

 parietal, temporal e occipi-tal) e, diferentemente dos aparelhos do primeiro bloco, tem caráter modal-específico, sendo um sistema de dispositivos centrais que registra a informação visual,auditiva e tátil, processam-na ou "codificam-na" e conservam na memória os vestígios daexperiência adquirida.

Os aparelhos desse bloco podem ser considerados extremidades centrais (corticais) dos sistemas perceptivos (analisa-dores), sendo que as extremidades corticais do analisador visual estãosituadas na região occipital, as auditivas na região temporal e as táteis na região tátil-cinestésica.

 Nessas seções corticais terminam os tecidos procedentes dos respectivos aparelhos receptores,distinguindo-se e sepa-rando-se aqui indícios isolados da informação visual, auditiva e tátilafluente. Nas seções mais complexas dessas zonas eles se reúnem, sintetizam-se e combinam-seem estruturas mais complexas. A esssa tarefa corresponde a delicada estrutura celular das zonascorticais. Como todas as outras regiões do novo córtex, essas zonas têm uma estruturahexassegmentar. A mais desenvolvida nessas zonas é a seção IV do córtex, aonde100

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chegam as fibras que começam nos aparelhos sensitivos periféricos. Aqui elas se transferem para outros neurônios. Algumas fibras descem diretamente para a seção V do córtex, onde estãoinstaladas as células piramidais (motoras). As fibras se dirigem de algumas dessas células para a

 periferia e, deste modo, fecha-se o arco dos reflexos sensórios mais simples. Outros tecidos, quechegam dos órgãos sensitivos à seção IV do córtex, transferem-se ali para os neurônios de açãocurta, que servem de aparelhos de transferência das excítações para células associativas maiscomplexas. Grande parte das células associativas ou células de ação curta, que têm a forma de

 pequenas pirâmides ou células asteróides, está situada nas seções II e III do córtex, queconstituem o aparelho principal de transmissão das excitações de uns neurônios a outros. Naszonas corticais aonde chegam diretamente as fibras vindas dos órgãos sensitivos periféricos(mudando apenas nos núcleos sub-corticais), que são denominadas zonas primárias ou de

 projeção, a posição de maior destaque cabe à seção IV receptora das células. Nas zonascorticais contíguas às zonas de projeção e denominadas zonas secundária? ou de projeto eassociação, as seções celulares II e III são poderosamente desenvolvidas. As seções I e VI nãoexaminadas têm importância especial: na I estão instaladas as ligações horizontais"transcorticais", que contactam as áreas contíguas do* córtex, instalando-se na VI as projeçõesdas células vegetativas, que contactam o córtex com as áreas profundas do encéfalo.

Toda a substância branca situada sob o córtex é constituída de fibras longas, que contactam ocórtex com as formações subjacentes (tecidos de projeção) ou ligam áreas isoladas do córtex aoutras regiões corticais (tecidos transcorticais) . Os dois hemisférios do córtex são ligados entresi por um feixe especialmente potente de fibras transcorticais, denominado "corpo caloso".Quando se corta o corpo caloso, parte considerável dos grandes .hemisférios fica desconexa e osdois hemisférios começam a funcionar isoladamente.O princípio de construção hierárquica de cada zona cor-tical, integrante da composição do

 bloco por nós examinado, é um dos princípios mais importantes de estruturação do córtex■cerebral. Como mostraram as pesquisas, a informação que chega do receptor visual, auditivoou tátil às zonas primárias (ou de projeção do córtex) é aqui fracionada em grande número deindícios que a compõem. Isto se deve a que nessas101

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zonas de projeção do córtex estão instalados neurônios altamente especializados, que, como mostraram pesquisas de alguns fisiologistas, respondem somente a alguns indícios particulares das instigações.Assim, na zona de projeção do córtex occipital (visual) há neurônios que só reagem ao movimento do ponto que ilumina do centro à periferia ou da periferia ao centro, só às linhas curvas harmoniosas, àslinhas quebradas agudas, etc. Essas mesmas células, com elevadíssima especialização, existem no córtextemporal (auditivo) e tátil (parietal). Isto permite dividir a excitação em mínimos elementos isolados e os

transforma num mosaico funcional das instigações, acessível à organização posterior.Sobre cada zona primária ou de projeção do córtex estão edifiçadas zonas secundárias ou de projeto eassociação. Os tecidos que aqui chegam não são diretamente originários, via de regra, do receptor  periférico; eles ou mudam nos respectivos núcleos subcorticais e já veiculam impulsos generalizados ouchegam das zonas primárias às zonas secundárias do córtex.À diferença das zonas primárias do córtex, essas zonas se constituem basicamente das seções celulares IIe III (de associação) poderosamente desenvolvidas. A maioria esmagadora dos neurônios componentesdessas zonas não se distingue por uma especialização tão sutil como os neurônios das zonas primárias (deassociação). Eles não reagem a indícios isolados divididos, porém, mais amiúde, a todo um complexo deinstigadores específico-modais (visuais, auditivos, táteis), sendo que alguns deles têm inclusive caráter multimodal, reagindo a instigações de diversas modalidades. A importância dessas zonas secundárias parece consistir em reunir as irritações que lhes chegam dos núcleos subcorticais subjacentes ou daszonas primárias do córtex e codificá-las em determinadas estruturas dinâmicas móveis.

Esse fato é demonstrado por uma série de experimentos fisiológicos e psicofisiológicos.Como mostraram as pesquisas de Mc Culloch, a irritação das zonas primárias com estricnina, depositadanum pedaço de papel, surte efeito somente nas áreas corticais imediatamente próximas; ao contrário, airritação das zonas secundárias com estricnina provoca excitação, que se espalha a fundo nas zonascontíguas. Isto mostra que as zonas secundárias das áreas corticais de cada analisador difundem realmentea exci-102

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tação a áreas consideráveis e deste modo incorpora ao processo de excitaçâo sistemas complexos inteirosde neurônios, garantindo o funcionamento conjunto de grandes zonas do córtex.A importância psicológica das zonas primárias e secundárias do córtex da sensibilidade tornou-se claragraças aos experimentos em pacientes submetidos a cirurgia cerebral. É sabido que o córtex do cérebro,esse órgão superior da sensibilidade, é por si mesmo indolor, razão por que as cirurgias cerebrais podemser feitas sem anestesia; irritando partes isoladas do córtex, podem-se observar as reações do doente.

For isto que permitiu aos pesquisadores (O. Foerster, O. Poetzl e W. Penfield) chegarem a umaconclusão sobre as funções originais das áreas primárias e secundárias do córtex. Como mostraram as pesquisas, a irritação do córtex visual ou auditivo faz surgirem no sujeito sensações correspondentes(alucinações). No entanto varia inteiramente o caráter dessas alucinações com a irritação das zonas primárias esecundárias do córtex.Assim, as irritações das zonas primárias do córtex visual (campo 17) provocam no sujeito sensaçõesvisuais sem forma definida (o homem vê "luz colorida", "chama", "bolas luminosas", etc). Diferentementedisto, a irritação das zonas secundárias do córtex visual faz o homem começar a ver objetos de formadefinida (borboletas, feras, rostos conhecidos, etc.). Resultados análogos são obtidos com a irritação docórtex auditivo: com a irritação das zonas primárias do córtex auditivo o homem começa a ouvir tons ousons isolados, passando a ouvir melodias inteiras com a irritação das zonas secundárias desse córtex, etc.Tudo isso indica que as zonas primárias do córtex da sensibilidade têm as funções de distinguir esses e

aqueles indícios específico-modais (visuais, auditivos, táteis), noutros termos, exercem a função de fracionar (analisar) em partes componentes a informação recebida, ao passo que as zonas visuais dessasmesmas áreas corticais implicam a função de unificar (sintetizar) ou proceder a uma elaboraçãocomplexa da informação que chega ao sujeito.Cabe observar mais uma peculiaridade importante do funcionamento das zortas primárias (de projeção) esecundárias (de projeção e associação) do córtex.103

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As' zonas primárias do córtex, aonde os tecidos de projeção chegam dos respectivos receptores periféricos, apresentam uma rigorosa estrutura somatotópica. Isto significa que as fibras nervosas, quechegam das regiões receptoras ao córtex dessas zonas, não estão distribuídas por acaso mas dispostas emordem rigorosa, estando cada ponto da superfície receptora representado num ponto absolutamentedeterminado do córtex de projeção. Assim, os tecidos que vão das superfícies cutâneas das zonasinferiores do corpo, cruzando-se no tronco do encé-falo, chegam às zonas superiores da circunvolução

anterior central do hemisfério oposto, ao passo que os tecidos que conduzem os impulsos da sensibilidadecutânea das mãos se situam na parte intermediária e os tecidos que levam os impulsos sensíveis da peledo rosto e da cabeça se situam nas partes inferiores da circunvolução central anterior do hemisfériooposto; é de importância especial o fato de que a área, ocupada pela projeção dessas ou daquelas partesdo corpo, é proporcional à importância que essas regiões do corpo realmente têm. Deste modo, a áreaocupada pela projeção do quadril ou da perna no córtex cerebral é muito insignificante, ao passo que as projeções da mão (especialmente do polegar e do indicador), da boca e dos lábios, são muito grandes. Istogarante maior direção para os órgãos que devem sujeitar-se com precisão especial a uma regulaçãocentral. É característico que a destruição de determinados trechos das áreas cor-ticais da região parietal(póstero-central) leva à queda da sensibilidade nas áreas rigorosamente limitadas do lado oposto docorpo, sendo que a queda da sensibilidade na pele da perna, do braço ou do rosto dá fundamentos paraavaliar o lugar no córtex de projeção e sensibilidade ou em suas vias condutoras, destruídas por processo patológico. Ao contrário, a irritação das zonas primárias (de projeção) do córtex leva ao aparecimento de

sensações visuais ou auditivas, que surgem na ausência das respectivas influências exteriores. O típico para esses casos é a "aura" (fase inicial) dos acessos epilépticos, que surgem como resultado da influênciairritante de cicatriz localizada na zona correspondente do córtex cerebral. Assim, uma cicatriz localizadanas áreas superiores da circunvolução póstero-central provoca sensação de "choque" ou "formiga-mento"na extremidade inferior do lado oposto, a cicatriz localizada nas zonas intermediárias dessa região provoca as mesmas sensações no braço oposto, e a situada nas partes inferiores104

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do córtex dessa região provoca as mesmas sensações na face oposta do rosto.O princípio análogo da projeção somatotópica ocorre em outras áreas do córtex. Assim, as fibras que vãode áreas isoladas da retina, que constituem partes do campo visual, projetam-se em trechos absolutamentedeterminados da zorja de projeção do córtex occipital (visual), resultando que a afec-ção de determinadasáreas do córtex visual leva à eliminação de áreas perfeitamente determinadas do campo visual; a irritaçãode áreas isoladas da região occipital leva ao surgimento de sensações visuais ("fosfenos") em

determinadas áreas do campo visual.O mesmo ocorre nas áreas de projeção do córtex temporal (auditivo): os tecidos que implicamexcitação, que corresponde a tônus elevados, projetam-se nas áreas internas da zona auditiva primária docórtex, enquanto os tecidos que implicam excitações, correspondentes aos tônus baixos, projetam- se nas áreas laterais do córtex. Por isto a irritação desses setores do córtex ou de suas vias condutoras provoca sensações auditivas correspondentes, que podem ser o início (aura) de acessos epilépticos.A consideração dos referidos fatos da estrutura somatotópica das zonas primárias do córtex é de grandeimportância prática, pois os sintomas de sua afecção ou irritação servem de importante indíciodiagnóstico para a atividade tópica de suas afecções.Esse princípio da rigorosa projeção somatotópica de determinadas superfícies sensíveis (receptoras) emcertas áreas dos campos corticais de projeção (princípio esse que permite usar os sintomas de queda dasensibilidade em determinadas áreas do corpo para o diagnóstico tópico das afecções) caracteriza aorganização funcional dos campos corticais primários. No entanto ele não tem qualquer validade para a

avaliação do funcionamento dos campos corticais secundários.Como já foi dito, os campos corticais secundários do bloco por nós examinado asseguram a síntese dasexcitações que chegam ao campo primário, "codificando-as"; eles substituem o princípio de projeção somatotópica por outro princípio: o da organização fundamental das respectivas excitações. Por isto adestruição dessas zonas não leva a ocorrências de quedas de sensibilidade, levadas a coincidirem comdeterminadas regiões do corpo ou a certa parte do campo da per-105

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cepçao, mas suscita uma desintegração geral no funcionamento desse ou daquele analisador, aqual se manifesta na complexa decodificação da informação que chega ao sujeito, noutrostermos, leva à perturbação das formas complexas de percepção visual, auditiva ou tátil,conhecida na clínica pela denominação de "agnosia". Ainda voltaremos a abordar a análisedesses fenômenos quando analisarmos os processos de percepção.As zonas primárias e secundárias do córtex não esgotam os aparelhos corticais do bloco emanálise.Sobre elas estão edificados os aparelhos das zonas terciárias do córtex (ou "zonas" de coberturadas extremidades corticais de determinados analisadores), sumamente importantes para garantir as formas mais complexas de funcionamento desse bloco.As zonas terciárias do córtex cerebral surgem nas etapas mais tardias da escada filogenética esão, até certo ponto, formações especificamente humanas. Até nos carnívoros as zonas corticaisde certos analisadores estão em contato direto umas com as outras, sendo apenas esboçadas nomacaco, ao passo que no homem elas ocupam parte considerável das áreas posteriores docórtex.As zonas terciárias do cóitex cerebral amadurecem só muito tardiamente, na ontogênese. Comomostrou o anatomista alemão P. Flechsig, o processo de revestimento dos tecidos que surgem

nessas zonas — a mielina, que os torna aptos para o funcionamento — termina bem mais tardedo que em outras zonas. Tudo isso mostra que as zonas terciárias ou "zonas de cobertura" são asáreas do córtex cerebral mais jovens, que começam a funcionar mais tardiamente.Pela estrutura histológica, essas zonas pertencem àquelas em que predominam inteiramente ascamadas II e III de células de associação. Isto se refere às suas funções básicas, que consistemna unificação da informação que chega de diferentes analisadores ao córtex cerebral. As zonasterciárias das áreas posteriores do córtex cerebral estão situadas nos -limites da região parietal,occipital e temporal e compreendem os campos 39, 40, 37 das áreas parietais inferiores docórtex. Quando elas se irritam, não surgem quaisquer reações sensitivas ou observações, suaafecção não provoca a queda da sensibilidade visual, auditiva ou tátil. A importância dessasáreas do córtex106

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 para a unificação da informação, que chega de analisadores isolados, pode ser vista analisando-se os comportamentos dos doentes com afecção dessas áreas do córtex cerebral. Via de regra,surgem nesses doentes dificuldades de fazer uma codificação mais complexa da informaçãorecebida, predominando a dificuldade de unificar em esquema espaciais simultâneos asirritações sucessivas que chegam ao encéfalo. Distiguindo os objetos e sons visualmente

 perceptíveis, os doentes começam a sentir dificuldades de orientar-se no espaço, confundem adireção, não conseguem distinguir os lados direito e esquerdo, entender a posição dos ponteirosdo relógio e correlação dos países no mapa geográfico. Esses pacientes ficam sem condições defazer operações matemáticas que exigem tomar como orientação a ordem numérica, subtraçõese divisões rápidas e começam a experimentar sérias dificuldades na interpretação dascomplexas estruturas gramaticais e de operações lógicas que incluem relações complexas.Tudo isso mostra que as zonas terciárias do córtex são um importante aparelho, indispensável

 para as formas mais complexas de elaboração e codificação da informação recebida.O bloco da programação, regulução e controle da atividadeO terceiro bloco cerebral do homem faz a programação, a regulação e o controle dodesempenho ativo do homem, fi integrado por órgãos situados nas áreas anteriores dos grandeshemisférios, cabendo nele posição dominante as seções frontais do encéfalo.

A atividade consciente do homem apenas começa com a obtenção da informação e suaelaboração, terminando com a formação das intenções, do respectivo programa de ação e com arealização desse programa em atos exteriores (motores) ou interiores (mentais). Para isto énecessário um aparelho especial, capaz de criar e manter as necessárias intenções, elaborar 

 programas de ação a elas correspondentes, realizá-los nos devidos atos e, o que é de sumaimportância, acompanhar as ações em curso, comparando o efeito da ação exercida com asintenções iniciais.Todas essas funções são exercidas pelas áreas anteriores do encéfalo e seus lobos frontais.107

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Pelo caráter de sua estrutura, as áreas anteriores do córtex distinguem-se substancialmente das posteriores; se o córtex das áreas posteriores do encéfalo apresentava • como característica raiastransversais, o córtex das * áreas anteriores se caracterizava por raias verticais, o que sugere ocaráter motor das estruturas nele dominantes. Se no córtex das áreas posteriores do encéf alo(principalmente enx suas zonas primárias) predomina a camada IV (aferente) de células, nocórtex das áreas anteriores (especialmente em sua zona primária) predomina a camada eferentede células com as grandes pirâmides, cujas ações levam à periferia os impulsos formados,fazendo-os chegar aos músculos dos braços e assim provocando os movimentoscorrespondentes cujos programas foram preparados por todo o córtex cerebral, particularmente

 por sua região frontal.Como as áreas posteriores, as áreas anteriores têm as mais estreitas ligações com as formaçõessubjacentes da formação reticular, sendo importante que aqui estão poderosamenterepresentados tanto as fibras ascendentes como as descendentes da formação reticular, queacompanham os impulsos formados nos lobos frontais do córtex e deste modo regulam o estadogeral da atividade do organismo, mudando-a de conformidade com as intenções formadas nocórtex.Como os sistemas das áreas posteriores do córtex, as áreas anteriores têm estrutura hierárquica

com a única diferença de que as zonas primárias do córtex motor não são as primeiras (aondechegam os instigadores que atingem o encéf alo) mas as últimas pela ordem de funcionamento:a elas chegam os impulsos preparados nas áreas mais altas do córtex e elas dirigem essesimpulsos para a periferia, provocando movimentos correspondentes.Por uma questão de simplicidade da nossa exposição, manteremos no exame das zonas

 primárias do cérebro a mesma ordem que adotamos na abordagem das estruturashierarquicamente organizadas das áreas posteriores do córtex.É zona primária ou de projeção das áreas anteriores do encéfalo a circunvolução central anterior ou a região motora do córtex (4?- área de Brodmann), sobre a qual está construído ocampo pré-motor  secundário (6^ área de Brodmann); mais acima estão situadas as formaçõesdo córtex propriamente frontal ou região pré-frontal (áreas 9, 10, 11, 46 de Brodmann).108

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Apesar de todas essas zonas corticais apresentarem como característica a "estrutura de raiasverticais" já referida, as estruturas celulares de cada uma das referidas zonas difere muito uma.das outras.O córtex primário ou de projeção está situado em forma de uma faixa longa nos limites dacircunvolução anterior central, predominando nele a camada eferente constituída de gigantescas

células piramidais, descobertas pelo anatomista russo V. A. Bets. Essas gigantescas pirâmidesdão início a longos axônios, que, passando no tronco cerebral para o lado oposto, descem,chegam aos cornos anteriores da medula espinhal e são portadores de impulsos motores que, emsuma, levam a conhecidos grupos musculares.Como outras zonas de projeção, os campos motores primários do córtex têm precisa estruturasomatotópica: as gigantescas células piramidais das suas áreas superiores levam os impulsosmotores aos músculos das extremidades inferiores do lado oposto do corpo, as gigantescas

 pirâmides das zonas médias levam esses impulsos aos músculos das extremidades superiores, ascélulas piramidais das zonas inferiores desse campo levam os impulsos aos músculos do

 pescoço, da cabeça e do rosto. Como nas zonas sensórias de projeção, o território do campomotor primário representa os respectivos grupos musculares não pelo traço geométrico mas pelofuncional; quanto mais dirigível deve ser o respectivo grupo muscular, tanto maior território

ocupa sua projeção na zona motora primária do córtex.Essa organização somatotópica da circunvolução central anterior e suas vias condutoras é desuma importância para o diagnóstico tônico das afecções cerebrais: a destruição das áreassuperiores dessa região cerebral ou de suas vias condutoras leva à paralisia na perna oposta, aafecção das áreas médias leva à paralisia do braço oposto, a afecção das áreas inferiores leva à

 paralisia ou paresia dos nervos do lado oposto do rosto. De acordo com isto, as cicatrizessituadas nessas áreas do córtex, e que o irritam, provocam contração ou convulsões das partescorrespondentes do corpo, razão por que o caráter da aura (período inicial dos acessosepilépticos que surgem em casos semelhantes) é de grande importância diagnostica, indicando olugar da cicatriz.Sobre a zona motora primária do córtex cerebral edifica-se a região pré-motora, que tem em suacomposição a 6? área

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de Brodmann. Essa região prepara o lançamento dos impulsos motores e cria a "melodia cinética" que põeem funcionamento as "teclas" da zona motora do córtex.À diferença da zona motora de projeção, nessa região pré-motora predominam pequena^ células piramidais das camadas II e III do córtex, células essas que desempenham papel de projeção e associação;aqui o princípio da projeção somatotópica está incomparavelmente menos representado do que na zonamotora de projeção. Por isto a afecção da zona pré-motora não leva ao surgimento de paralisias em

determinados grupos musculares. A importância da zona pré-motora do córtex (ou "campo motor extrapiramidal") consiste em que ela cria condições para o funcionamento sistemático do aparelho motor e, em particular, assegura a transferência harmoniosa dos impulsos de uns elos de movimento a outros,garantindo a execução de complexas melodias motoras. A zona pré-motora do córtex adquire importânciaespecialmente grande para a criação de habilidades motoras, nas quais um elo motor deve ser harmoniosamente substituído por outro. £ por isto que, com a irritação da zona pré-motora do córtex, nãosurgem contrações de grupos musculares isolados mas complexos movimentos conjuntos (viradas dacabeça e dos olhos, movimentos de agarramento com os braços); com a afecção dessa zona surgem perdas da transferência harmoniosa de um elo a outro, ou seja, em outros termos, a perturbação das"melodias ciné-ticas" ou habilidades motoras. Nas zonas pré-motoras do córtex cabe papel especial à 8^ área de Brodmann, que é um centro anterior demovimentação dos olhos, que garante ativos movimentos harmoniosos dos olhos. Com sua afecção,mantém-se os movimentos refletores dos olhos, que acompanham os objetos em movimento,

 perturbando-se os movimentos rápidos e harmoniosos dos olhos.Sobre a zona pré-motora edificam-se as áreas terciárias do córtex frontal ou região pré-frontal, integradas pelas áreas 9, 10, 11 e 46 de Brodmann, de estrutura inteiramente diferente.À diferença da zona motora e pré-motora, essas áreas do córtex não têm entre seus componentes grandescélulas piramidais, estando toda a massa cortical ocupada por células de pequenos axônios e célulasasteróides cujos corpos são muito pequenos e constituem embriões ou grânulos (por isto a região pré-frontal é às vezes chamada de "córtex frontal granular"). Ela apenas se esboça nos vertebrados, ocupalugar relativa-110

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mente pequeno nos macacos, desenvolvendo-se poderosamente apenas no homem, no qualrepresenta quase um terço de toda a massa dos hemisférios. Por isto o córtex pré-frontal podeser considerado formação especificamente humana.Os órgãos do córtex pré-frontal amadurecem bem no final da ontogênese, ocupando pelo tempode maturação um dos últimos lugares no mapa de mieíinização de Flechsig. Por último, o que éde suma importância, as regiões pré-frontais do córtex estão ligadas a todas as áreas do cérebroe às áreas subjacentes da formação reticular. Essas ligações são especialmente significativas nasregiões mediais e basais dos lobos frontais; como já dissemos anteriormente,concomitantemente com as fibras ascendentes da formação reticular, nela se desenvolvem, comforça especial as fibras da formação reticular descendente. Isto permite aos lobos frontais doencéfalo manter permanentemente o tônus do córtex por meio de tecidos básicos, que oscontactam com as formações subjacentes do tronco.A importância dos lobos frontais do córtex cerebral é muito grande para a organização docomportamento, embora durante muito tempo ela não se tenha prestado a uma definiçãocientífica precisa.Isto se devia à impossibilidade que havia de expressar as funções dos lobos frontais do encéfalonos conceitos clássicos do raio refletor; a afecção dos lobos frontais do encéfalo não levava a

nenhuma perturbação dos movimentos elementares, não provocava paralisia, distúrbios dasensibilidade nem perturbação da fala. Isto dava a alguns autores fundamentos para considerar as regiões frontais do córtex cerebral como "zona muda" sem quaisquer funções especiais. Aquestão mudou substancialmente quando os pesquisadores passaram a enfocar o cérebro comoum sistema auto-regulador sumamente complexo, que cria complexos programas decomportamento, regula a ocorrência de atos motores e exerce controle sobre estes. À luz dessasconcepções conseguiu-se definir com precisão bem maior a função do cérebro.Dotados de poderosas ligações com a formação reticular ascendente e a descendente, os lobosfrontais do encéfalo se constituíam acima de tudo em um aparelho de poderoso papel ativador.Como mostraram os estudos, em cada tensão intelectual (expectativa do sinal, cálculocomplexo) surgem nos lobos frontais do cérebro ondas lentas especiais, que se esten-111

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dem a outras áreas do córtex e foram denominadas "ondas da expectativa" pelo fisiologistainglês Walter Gray. Essas ondas desaparecem quando começa a cessar a expectativa do sinal. Otrabalho intelectual tenso, que exige elevado tônus do córtex, provoca nos lobos frontais umelevado número de pontos de funcionamento conjunto, que se excitam sincronicamente. Comomostrou o cientista soviético M. N. Livanov, esses pontos de funcionamento sincrônico seconservam durante toda a duração do trabalho intelectual complexo e desaparecem quando estecessa.O papel dos lobos frontais na manutenção do estado ativo, provocado pela instrução do discursoou uma tarefa intelectual, foi mostrado no exame de pacientes com afecções locais (tumores outraumas) dos lobos frontais do encéfalo. Os experimentos da psicóloga soviética E. D.Chomskaya mostraram que se a instrução do discurso, que provoca tensão, leva nos sujeitosnormais ao surgimento de longos estímulos de ativação (que se expressam em reaçõesvasculares ou eletrofisioló-gicas), então esse estado persistente de elevada ativação não surge oudesaparece muito rapidamente nos doentes com afec-ção dos lobos frontais do encéfalo(especialmente das suas. regiões mediais e basais, dotadas de ligações sobretudo potentes com aformação reticular ativante).Ao manter o tônus do córtex, indispensável para a realização da tarefa colocada, as regiões

frontais do encéfalo desempenham papel decisivo na criação de intenções e formulação de programas de ação que concretizam essas intenções. Neuropsicólogos (Luria e outros) mostraram com suas observações que a afecção bilateral doslobos frontais do encéfalo impede que os pacientes fiquem em condições de conservar solidamente as intenções, manter os programas complexos de ação, inibir os impulsos não-correspondentes aos programas e regular a atividade sujeita a esses programas. Eles não podemconcentrar a atenção na tarefa que se lhes colocou' e fogem facilmente ao seu cumprimento,substituindo as ações necessárias ora por simples respostas a instigadores semelhantes, ora pelarepetição apática dos estereótipos surgidos, que continuam a reproduzir-se independentementeda tarefa colocada, dificultando-lhe o cumprimento adequado.É natural que a atividade intelectual organizada, orientada pela tarefa colocada, ésubstancialmente perturbada com a afecção dos lobos frontais do cérebro; aqui os planos com-

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 plexos de solução das tarefas são substituídos por respostas fragmentárias surgidas de modoimpulsivo ou pela reprodução apática dos estereótipos uma vez assimilados (A. Luria e L. S.Tsvetkova).É sobretudo importante o fato de que os lobos do encé-falo desempenham papel essencial narealização do controle permanente da atividade em processo. Os pacientes com afec-ção doslobos frontais do encéfalo não podem comparar os resultados das suas ações com a intençãoinicial, perdem a atitude crítica em face das suas próprias ações e ficam sem condições dereconhecer seus próprios erros e corrigi-los. Isto dá fundamento para considerar que os lobosfrontais são importante componente do mecanismo do "aceptor de ação" (P. A. Anokhin) quedesempenha papel de suma importância na garantia da atividade auto-reguladora do homem.O princípio da lateralização no funcionamento dos grandeshemisfériosA descrição dos três blocos principais cujo funcionamento conjunto é assegurado pela atividadedo cérebro humano não esgota os princípios fundamentais do seu funcionamento. Contudo essadescrição deve ser completada com mais um princípio, que serve de base ao funcionamento docérebro humano.Se os dois hemisférios dos animais são equivalentes, no homem um deles (via de regra, o

hemisfério esquerdo) é dominante e o outro, dominado. Ao que parece, o caráter dominante dohemisfério esquerdo começou com o surgimento do trabalho e o destaque do braço direito comoexecutor do papel principal na atividade de trabalho. Por isto o hemisfério esquerdodesempenha papel dominante nos destros, enquanto nos canhotos o papel dominante oblitera-seou passa para o hemisfério direito.O indício mais importante do papel dominante do hemisfério esquerdo no destro é o fato de essetrabalho estar estreitamente ligado à fala. Apesar de, em termos morfoló-gicos, a diferença entreos dois hemisférios ser muito insignificante, só o hemisfério esquerdo é aparelho cerebral dafala; as partes inferiores das áreas posteriores do hemisfério esquerdo (regiões temporal e

 panetal) estão relacionadas com113

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o discurso receptor (diferença dos sons da fala, formação de articulações da fala e codificação do discursofalado, que chega ao sujeito em complexos sistemas lógico-gramaticais), sendo as áreas inferiores da zona pré-motora um aparelho que assegura a transformação dos movimentos da fala em complexas "melodiascinéticas" do discurso e em articulação fluente da fala. É por isso mesmo que a afecção das áreas posteriores da região temporal superior esquerda leva à perturbação da capacidade de distinguir oscomplexos sons da fala, provocando a desintegração da compreensão da fala (a chamada "afasia seri-

sória"); a afecção das áreas inferiores da região pós-central leva à perturbação das articulações precisas("afasia motora aferente"); a afecção das áreas posteriores da circunvolução frontal inferior (ou áreasinferiores da zona pré-motora esquerda) leva à perturbação da fala expressiva fluente ("afasia motoraaferente"). É natural que as afecções de todas as referidas regiões do córtex do hemisfério esquerdo levamfatalmente à perturbação de formas complexas da fala como os processos de localização dos nomesnecessários, da fala independente organizada, da escrita e, em alguns casos, à perturbação da leitura,- docálculo, etc. É característico que a afecção das zonas correspondentes do hemisfério direito (subdominan-te) não provoca tais distúrbios.O caráter dominante do hemisfério esquerdo (nos destros) não se manifesta apenas na ocorrência normaldos processos da fala. Como mostraram observações clínicas, a integridade do hemisfério esquerdo éimportante também para o desenvolvimento de todas as foi mas de atividade consciente relacionada como discurso falado.Assim, a afecção das regiões do córtex cerebral, contíguas às zonas do discurso e pertencentes às regiões

terciárias do córtex, provoca a perturbação das formas complexas de percepção (agnosia), adesintegração das formas mais complexas de operações lógico-gramaticais que servem de base aos processos intelectuais ("afasia semântica"). De modo diferente, as afecções de áreas análogas dohemisfério direito (sub-dominante) não provocam semelhantes distúrbios dos processos cognitivos e serefletem em maior medida no distúrbio da percepção direta e do campo emocional do homem.Há fundamentos para supor que da íntima ligação dos processos da fala com o córtex do hemisférioesquerdo (dominante) resulta que o seu funcionamento transcorre de modo114