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CURSO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS -------------------------------------------------------------- TEORIA GERAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS - PARTE I RESUMO AULA 1 #SouOuse #TôDentro

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C U R S O D E

DIREITOSFUNDAMENTAIS

--------------------------------------------------------------TEORIA GERAL DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS - PARTE IRESUMO AULA 1

#SouOuse#TôDentro

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CURSO DE DIREITOSFUNDAMENTAIS

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TEORIA GERAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS – PARTE I

1. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais

1.1 Conceitos Iniciais

Direitos fundamentais são os direitos mais básicos do ser humano, essenciais para a garantia de uma vida com dignidade, previstos em uma dada Constituição, temporal e territorialmente especificada, distinta das demais normas constitucionais por gozar de aspectos formais e materiais caracterizadores de sua fundamentalidade.

Os direitos fundamentais são assim determinado grupo de direitos previstos na Constituição que são considerados os direitos mais básicos do ser humano. São os direitos essenciais, basilares, prioritários, sem os quais não se pode afirmar a dignidade do próprio ser humano. Assim, afirma-se que a dignidade da pessoa humana é um fundamento ético de onde surge a noção de direitos fundamentais.

Os direitos fundamentais devem, no entanto, ser diferenciados de outras gamas de direitos constitucionalmente previstos. Nesse sentido, o conceito de direitos fundamen-tais acima apresentado possui o peculiar aspecto de se diferenciar das demais normas constitucionais por se basear em um critério de especial fundamentalidade formal e mate-rial, o que segue entendimento clássico de Robert Alexy1, já tornado tradicional também no Direito Constitucional lusitano2 e brasileiro3.

No que tange à fundamentalidade material, isso decorre do especial conteúdo das normas de direitos fundamentais, relacionado com a proteção de direitos individuais, sociais e difusos, enquanto matéria inerente à estrutura do Estado e da sociedade.

Sabe-se que a noção de Constituição ressurge, no cenário global, na idade mo-derna com as revoluções liberais. Nesse cenário, a Constituição apresenta dois principais objetivos: i) limitar o poder do Estado e ii) garantir os direitos básicos dos indivíduos. Ante tais objetivos centrais da Constituição, reside a fundamentalidade material dos direitos fun-damentais, que garantem os direitos mais básicos dos indivíduos, impedindo um avanço autoritário do Estado.

1 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução Vígilio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. Pp. 65-69.

2 Por todos: CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª Edição. 2ª Reimpressão. Coimbra: Edições Almedina, 2003. Pp. 378-379.

3 Por todos: SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 10ª ed. Revista, ampliada e atualizada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. Pp. 74-78.

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A noção de fundamentalidade formal, por sua vez, implica em esses direitos pos-suírem uma estatura constitucional, o que os coloca em uma posição de prevalência em relação às normas legais consagradoras de direitos, bem como, mesmo dentro do ambiente constitucional, possuírem uma especial proteção normativa, como, no caso brasileiro, a ve-dação a revogação por meio de emenda constitucional (art. 60, §4º, IV da CF/88):

“Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: (...) § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (...) IV - os direitos e garantias individuais”.

Com efeito, além de estarem previstos na norma superior do ordenamento ju-rídico (Constituição), ainda possuem especial proteção normativa quando comparada às demais normas também previstas no texto constitucional.

“A fundamentalidade formal encontra-se ligada ao direito constitu-cional positivo e resulta dos seguintes aspectos, devidamente adap-tados ao nosso direito constitucional pátrio: a) como parte integran-te da Constituição escrita, os direitos fundamentais situam-se no ápice de todo ordenamento jurídico, de tal sorte que – neste sentido – se cuida de direitos de natureza supralegal; b) na qualidade de nor-mas constitucionais, encontram-se submetidos aos limites formais (procedimento agravado) e materiais (cláusulas pétreas) da reforma constitucional (art. 60 da CF), cuidando-se, portanto (pelo menos num certo sentido) e como leciona João dos Passos Martins Neto, de direitos pétreos, muito embora se possa controverter a respeito dos limites da proteção outorgada pela Constituinte, o que será objeto de análise na parte final desta obra; c) por derradeiro, cuida-se de normas diretamente aplicáveis e que vinculam de forma imediata as entidades públicas e privadas (art. 5º, § 2º. Da CF) que a noção da fundamentalidade material permite a abertura da Constituição e ou-tros fundamentais não constantes de seu texto e, portanto, apenas materialmente fundamentais, assim como a direitos fundamentais situados fora do catálogo, mas integrantes da Constituição formal, ainda que possa contraverter-se a respeito da extensão do regime da fundamentalidade formal a estes direitos apenas materialmente fundamentais, aspecto do qual voltaremos a nos ocupar de forma mais detida no próximo capítulo”4.

4 SARLET, Ingo Wolfgang. Ibidem. Pp. 74-75.

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Vale observar que o critério constitucional brasileiro necessita de ambos os as-pectos (formal e material), pois há normas materialmente jusfundamentais fora do texto da Constituição, por exemplo, o Estatuto da Criança e do Adolescente possui um título de-dicado aos direitos fundamentais, mas como não possuem fundamentalidade formal não gozam do status de superioridade típico das normas jusfundamentais.

1.2 Direitos Humanos e Direitos Fundamentais

Direitos humanos e direitos fundamentais são conceitos próximos, tendo em vista que os direitos fundamentais também são essenciais à garantia da vida humana digna e gozam de superioridade normativa.

Segundo André de Carvalho Ramos, a distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais passa pela compreensão dos conceitos de “Locus de Normatividade” e “Lo-cus de Exigibilidade”:

a) “Locus de Normatividade”: o local de normatividade; onde o direito está po-sitivado. Direitos Humanos: tratados internacionais. Direitos Fundamentais: nas constituições de cada país.

Assim, cada país vai ter um catálogo específico de direitos fundamentais, enquan-to que os direitos humanos serão adotados por um agrupamento de nações (signatárias do tratado internacional).

Outro critério apresentado por André de Carvalho Ramos:

b) “Locus de Exigibilidade” (critério falho): onde o direito poderá ser exigido. Por tal critério, se os direitos humanos foram estabelecidos no plano internacional, somente seriam exigíveis no âmbito internacional. Enquanto que o direito funda-mental somente seria exigível no ordenamento jurídico interno.

O Brasil, no entanto, sendo signatário, os direitos humanos decorrentes de um tratado internacional são exigíveis em nosso ordenamento jurídico interno. Assim, o “Locus de exigibilidade” não se constitui como um critério adequado para a diferenciação preten-dida, como exemplo, cite-se a exigibilidade da brevidade das audiências de custódia, que possuem previsão em tratado internacional.

Alguns autores não fazem distinção entre direitos humanos e direitos fundamen-tais. Mas prevalece na doutrina de direitos fundamentais a distinção supramencionada.

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1.3 Afirmação Histórica

Cumpre analisar, neste ponto, a origem, a formação e bases históricas dos direi-tos fundamentais, tema de grande relevância.

Conforme exposto, os direitos fundamentais e os direitos humanos possuem, his-toricamente, origem semelhante. Verifica-se que as sociedades, ao buscar a proteção de seus direitos basilares, fez surgir ambos os direitos, os quais somente foram tecnicamente diferenciados na contemporaneidade. Ante o exposto, em seu início, o estudo da origem dos direitos fundamentais se confunde com o estudo da origem dos direitos humanos.

Vale esclarecer, ainda, que há controvérsia doutrinária quanto ao momento his-tórico em que surgiram tais direitos. A literatura majoritária afirma que somente nos séculos XVII e XVIII, com as revoluções burguesas, surgiram os direitos humanos e fundamentais, tendo em vista que, somente nesse período, verifica-se a existência de um Estado a ser li-mitado por essas categorias de direitos. Lado outro, há também um forte posicionamento que defende que a origem dos direitos humanos e dos direitos fundamentais coincide com o surgimento do próprio Direito na antiguidade. Nesses termos, é válido percorrer os vários momentos históricos indicados pelos autores das diferentes correntes.

I – Antiguidade

Para os autores que entendem que o surgimento do Direito é o surgimento dos próprios direitos mais básicos do ser humano e, por via de consequência, dos direitos hu-manos e dos fundamentais, o Código de Hamurabi é sempre visto como um marco inicial.

O Código de Hamurabi5 é considerado um salto civilizatório, por ser o primeiro corpo de regras jurídicas escritas, sendo um dos primeiros vestígios da fundação do Direito, por isso, alguns autores defendem o nascimento dos direitos humanos e dos direitos funda-mentais neste instrumento inicial de comunicação do Direito.

Da antiguidade clássica, por mais que não se siga a corrente que acredita que já ali nasciam os direitos humanos e os direitos fundamentais, indubitavelmente, podem ser retirados outros elementos que influemciam decisivamente na formação de tais direitos:

Justiça e Participação Política Grega: Visto que na Grécia nascia uma ideia de Democracia (apesar da exclusão de mulheres, escravos e estrangeiros) e só exis-tem verdadeiramente direitos humanos e direitos fundamentais com democra-cia, trata-se de um fundamento filosófico importante.

5 O Código de Hamurabi é um conjunto de leis escritas oriundo da Mesopotâmia. Acredita-se que foi escrito por volta de 1772 a.c. Foi encontrado por uma expedição francesa em 1901 na região hoje correspondente à cidade de Susa no Irã. É um monumento monolítico talhado em rocha, com 46 colunas de escrita cuneiforme acádica. Ele possui 2,25 m de altura, 1,50 m de circunferência na parte superior e 1,90 m na base. Nele está a famosa lei de Talião: olho por olho e dente por dente.

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Legalidade Romana: A legalidade romana foi fundamental para o desenvolvi-mento dos direitos humanos, pois com a positivação sistemática de leis escritas haveria maior estabilidade e conhecimento geral dos padrões de comportamen-to, sendo, pois, um marco histórico do nascimento de tais direitos. Ex: Lei das XII Tábuas.

Pensamento Judaico-Cristão: O pensamento cristão de respeito e amor ao próximo estabelece uma premissa central dos direitos humanos e dos direitos fundamentais.

II – Período Medieval

Com a queda do império romano, surge a Idade Média. O período medieval foi marcado pelo domínio do pensamento cristão no ocidente, tendo com aspecto importante a fragmentação do poder político, marcado pelo nascimento dos feudos, local de constante arbítrio, o que dificulta a caracterização dos direitos fundamentais nesse período.

Alguns autores, no entanto, destacam como importante para o desenvolvimento da proteção dos direitos alguns documentos jurídicos do período que buscaram - mesmo sem um sucesso a longo prazo - limitar o poder dos monarcas. Podem ser citados:

A Declaração das Cortes de Leão de 1188: Consistiu uma manifestação da luta dos senhores feudais contra a centralização do poder nas mãos de um monarca absoluto e o consequente nascimento futuro do Estado Nacional. Foram criadas no reinado de Afonso IX, trazendo a imposição dos súditos (vassalos) ao soberano (suserano) de uma declaração mínima de direitos.

A Magna Carta de 1215: Também consistiu uma resistência dos senhores feu-dais (barões) ao poder do Monarca (João Sem Terra), impondo a este uma série de limitações em forma de direitos, quais sejam:

Liberdades Eclesiásticas; Direito de Propriedade;Vedação de confisco; Devido Processo Legal; Acesso à Justiça; Liberdade de Locomoção; Tribunal do Júri.

Essas Cartas trazem uma série de direitos que já se modelam em formato próxi-mo aos das cartas de direitos típicas dos séculos VXII e XVIII, que conformam inquestionavel-mente os direitos humanos e os direitos fundamentais no sentido moderno e que delineia

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o seu sentido até os dias atuais. Não obstante isso, essas cartas medievais não garantiam direitos a todos os indivíduos, mas apenas aos senhores feudais (vassalos), inexistindo o ca-ráter da universalidade que marca os direitos humanos. Por isso, é difícil afirmar assegurar que nesse período já existem direitos fundamentais tais como nos dias atuais.

III – Idade Moderna

A Idade Moderna possui o relevante aspecto de trazer consigo a formação dos Es-tados, capitaneados por Monarquias Absolutas, findando com o período de fragmentação política medieval. Essas mudanças estimulam o crescimento do comércio e o surgimento da classe mercantil, a qual, posteriormente, transforma-se na classe burguesa. Esta classe, detentora do poderio econômico, em um segundo momento da idade moderna (posterior a este do surgimento do Estado), busca alcançar participação no Poder Político, até então, re-servado aos membros do clero e da monarquia, surgindo com isso, as revoluções burguesas.

As revoluções burguesas, por sua vez, apresentam-se, historicamente, em dois momentos:

ÎMOMENTO 1 – Século XVII – Revolução Inglesa

As revoluções liberais surgem diante da necessidade de limitar os poderes do Es-tado, baseados na ideia de que os seres humanos possuem direitos anteriores ao próprio Estado. Tais revoluções estendem-se por todo o século XVII, sendo um dos marcos do surgi-mento dos direitos humanos e dos direitos fundamentais.

Na Revolução Inglesa, surge a Petition of Rights (1628), assegurando a soberania do Parlamento em matéria de tributos, ou seja, a competência para instituir novos tributos é do Parlamento e não do monarca. Além disso, proibiu os aprisionamentos arbitrários e assegurou o devido processo legal.

De acordo com Fabio Konder Comparato, o Habeas Corpus Act (1679) não só criou a primeira garantia de direitos humanos e fundamentais, como também serviu de matriz de todas as outras garantias.

Posteriormente, ainda no cenário Inglês, surge a Bill of Rights (1689) instituiu a Separação dos Poderes, logo após a Revolução Gloriosa, pondo fim ao Absolutismo na In-glaterra; garantiu também o reconhecimento da ilegalidade de tributos cobrados sem previ-são de aprovação pelo Parlamento; assegurou o direito de petição ao monarca e as eleições livres para formação do parlamento; e promoveu a imunidade de palavras no Parlamento. Tal documento, pode ser indicado como matriz dos direitos fundamentais.

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ÎMOMENTO 2 – Século XVIII – Revolução Americana e Revolução Francesa

Com as revoluções liberais do século XVIII, surgem os estados liberais (Estados de Direito) em detrimento do regime absolutista, sendo tal espaço histórico um terreno fértil para o fortalecimento dos direitos básicos do gênero humano.

Os documentos jurídicos das revoluções liberais visavam a limitar o poder do Es-tado, sendo pautados por: Separação dos Poderes e Garantia de Direitos.

Dentre esses documentos jurídicos mais relevantes desse período foram:

Declaração de Independência Americana (1776); Constituição Americana (1787); Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789).

De acordo com Fábio Comparato, existe um elemento básico que vai diferenciar a Revolução Americana da Revolução Francesa. Os documentos americanos foram declara-dores de direitos para o povo americano. Por sua vez, a declaração francesa foi universal, buscando estabelecer direitos para todos os seres humanos. Por isso, Comparato defende que a Constituição Americana (1787) deu origem aos direitos fundamentais, enquanto que a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) deu origem aos direitos humanos. Seria o início da distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais.

Com as revoluções burguesas da Inglaterra, Estados Unidos e França, outras re-voluções espalham-se pelo mundo. As Monarquias, aos poucos, vão caindo e as Constitui-ções vão surgindo e, com estas, os direitos fundamentais, consagrando direitos para o povo de cada país.

IV – Idade Contemporânea

MOMENTO 1

Após a evolução dos direitos fundamentais, inicialmente, individuais, civis e polí-ticos, afirma-se a liberdade, inclusive a econômica. Junto a isso, houve em período comum, a ocorrência da Revolução Industrial, o que propiciou um grande desenvolvimento econô-mico, o surgimento de fábricas de grande porte, tudo sustentando sobre o trabalho de uma grande massa de operários, tecelões etc., que formaram um proletariado urbano e carente de mínimas condições de vida.

As péssimas condições de vida dessa classe trabalhadora, a grande maioria da população, fez com que surgissem ideias para a proteção desse grupo. Foram ideologias centrais nesse sentido:

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i) Socialismo Utópico: Obra do pensamento de Proudhon e Blanc. Para eles, se-ria necessário transformar o capitalismo. Acreditavam em um capitalismo menos predatório do proletariado, a fim de melhorar a condição de vida da população.

ii) Socialismo Científico: Obra do pensamento de Marx e Engels. Para eles, o ca-pitalismo não teria salvação. Dentro do modelo capitalista, não haveria como se chegar em uma igualdade entre os indivíduos. Então, era necessário acabar com o modelo capitalista, com a ideia de propriedade, coletivizando os meios de pro-dução.

iii) Doutrina Social da Igreja: Desenvolvida por Leão X. Foi consagrada na Encí-clica Rerum Novarum, em que a Igreja Católica condenava a usura e o enriqueci-mento desmedido.

O Constitucionalismo Social surge como reação a tais movimentos. Como um modo de preservar o capitalismo, mas arrefecendo as revoltas populares (p. ex., a Primave-ra dos Povos de 1848 e a Revolução Russa de 1917) ante as péssimas condições de vida da grande maioria da população.

A ideia do Constitucionalismo Social era reestruturar o Estado, a fim de que o avanço econômico pudesse ser divido e não ficasse concentrado apenas em um pequenís-simo grupo de pessoas. Para isso, o Constitucionalismo Social buscava criar o Welfare State (ou Estado de Bem-Estar Social), ou seja, a Constituição agora seria uma promotora de bem--estar social, continuando a ser responsável pela limitação do poder e pela consagração de direitos, todavia, esses direitos também deveriam promover a melhoria das condições de vida do povo através da:

i) Intervenção do Estado na Economia;ii) Intervenção do Estado na Propriedade;iii) Consagração de Direitos Sociais;

A partir dessas Constituições, começam a consagrar, de forma sistemática, os di-reitos sociais, valores ligados à igualdade material. São os direitos sociais, econômicos e culturais.

Os documentos iniciais deste período são:

Constituição Mexicana de 1917;Constituição de Weimar de 1919.

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MOMENTO 2

Após o fim da segunda Guerra Mundial, com os massacres por ela promovidos contra a própria condição humana, verificou-se a necessidade de uma proteção em larga escala dos direitos humanos, o que se deu com a criação da ONU em 1945, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e uma consequente positivação em massa de tra-tados de direitos humanos sobre diferentes conteúdos. Essa fase de expansão é chamada de universalização ou internacionalização dos direitos humanos.

Essa grande leva de direitos positivada em tratados incluíam direitos inerentes a todo o gênero humano, os chamados direitos difusos, tais como o direito ao meio ambiente e à paz.

A universalização ou internacionalização dos direitos humanos traz consigo um fenômeno irradiação sobre as Constituições nacionais, influenciando também a criação de direitos fundamentais difusos.

1.4 Questões Terminológicas

A opção terminológica “direitos fundamentais” é tecnicamente mais adequada nos termos acima expostos. Existem, no entanto, outras terminologias utilizadas pela dou-trina. A maioria dessas terminologias, no entanto, estão historicamente ultrapassadas ou representam apenas uma parcela dos direitos aqui examinados. Cabe analisar cada uma delas:

a) Direitos Naturais: Receberam tal denominação com base em uma linha filo-sófica que defende que o ser humano é titular de direitos, antes mesmo da exis-tência do Estado. Assim, para além das leis positivadas e da existência do Estado, o ser humano é titular de direitos. É uma questão mais abstrata e filosófica, que esteve na gênese dos direitos humanos e fundamentais, mas que não é tecnica-mente exigível no âmbito jurídico.

b) Direitos do Homem: Também está ligada à origem dos direitos fundamentais, retoma ao período das revoluções liberais do século XVIII (Declaração dos Direi-tos do Homem e do Cidadão, 1789). Porém, acaba por excluir a universalidade no sentido do humano, ao enfatizar apenas a figura masculina.

c) Direitos Individuais: Trata apenas de uma parcela dos direitos fundamentais, aqueles destinados à proteção do indivíduo. Assim, ignora os direitos coletivos, sociais e difusos.

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d) Liberdades Públicas: São garantias conferidas ao indivíduo de ação na vida social, que representam apenas um fragmento dos direitos fundamentais. Tra-tam-se de garantias do exercício de direitos individuais. Ex.: O direito de manifes-tação, o direito de reunião, direito de ir e vir, decorrentes do direito de liberdade.

e) Direitos Públicos Subjetivos: É uma definição incompleta. O direito público subjetivo se traduz no direito do indivíduo de exigir algo do Estado. Todavia, em que pese os direitos públicos serem exigíveis pelo particular em face do Estado, também são deveres que independem da ação do indivíduo (dimensão objetiva), sendo, pois, uma definição incompleta. Exemplo: o dever de construir escolas e hospitais deve ser exercido pelo Estado, independente de uma provocação do indivíduo.

f) Direitos Humanos Fundamentais: A expressão gera uma confusão entre direi-tos humanos e fundamentais, sendo criticada pela literatura em geral, haja vista o locus de normatividade já estudada.

g) Direitos de Personalidade: Também uma nomenclatura de eminente vertente civilista, além disso não consegue transmitir em si toda a pluralidade de situa-ções jurídicas encartada nos direitos fundamentais, tendo em vista a existência de direitos fundamentais que não são direitos de personalidade.

h) Direitos dos Povos: Remete à expressão típica dos direitos humanos, fazendo referência a direitos de comunidades humanas com vínculos culturais próprios e que necessitam de proteção contra as maiorias hegemônicas. Embora, possua zona de confluência com direitos fundamentais também não consegue transmi-tir em si toda a pluralidade de situações jurídicas nestes encartada.

i) Garantias: São espécies de direitos fundamentais. A garantia existe não como um fim em si mesmo, mas para proteger outros direitos fundamentais. De acordo com o Prof. Jorge Miranda, as garantias são direitos em estado de defesa.

São espécies de garantias:

Limite: quando o texto constitucional estabelece um limite do Estado (Ex: Limi-tações Constitucionais ao Poder de Tributar); Institucionais: criam instituições para proteger os direitos fundamentais (Ex: Ministério Público e Defensoria Pública); Instrumentais: são instrumentos, remédios constitucionais, ações, que visam a proteger os direitos fundamentais (Ex: Habeas Corpus).

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j) Deveres Fundamentais: É bastante divergente a relação entre direitos fundamentais e deveres fundamentais. Para autores como Gierke, a todo direito corresponde um dever. Isso é controverso, todavia, em razão da matriz liberal dos direitos fundamentais. Isso porque os direitos fundamentais surgem para limitar o Estado, não o indivíduo. Nesse contexto, surge a dicotomia entre de-veres fundamentais não autônomos versus deveres fundamentais autônomos. Os primeiros associam o direito existente a um dever. Os segundos defendem que existem deveres fundamentais que não são interligados a direitos, sendo, por-tanto, autônomos.

Nos dias de hoje, prevalece um entendimento de que os deveres fundamentais têm um caráter de equivalência aos direitos fundamentais, alguns autores che-gam mesmo a trata-los como espécies de direitos fundamentais.

Nesses termos, a fim de esclarecer os conceitos aqui elencados e sua relação com o conceito de direitos fundamentais, veja-se a esquematização a seguir:

Direitos Fundamentais(Stricto Sensu)

Direitos Fundamentais (Lato Sensu) Garantias Fundamentais

Deveres Fundamentais?

Por fim, é válido ressaltar o conceito de garantias institucionais são espécies das denominadas “garantias de organização” (Einrichtungsgarantie), percebidas teoricamente por Carl Schmitt, já na primeira metade do século XX, ainda sob a regência da Constitui-ção de Weimar. São conceituadas como especiais proteções conferidas pela Constituição a certas instituições com a finalidade de impedir a supressão desses objetos protegidos pela atuação da legislação ordinária.

As garantias de organização podem ser de duas espécies:

Garantias dos institutos (Institusgarantien): protegem certos bens e preceitos fundamentais da vida privada, tais como a família, o casamento, a propriedade, a herança etc.

Garantias Institucionais (institutionelle Garantien): são garantias fundamen-tais que asseguram a existência de instituições públicas relevantes para a socie-dade, tais como a autonomia universitária, autonomia do Ministério Público e da Defensoria Pública, a liberdade de informação jornalística etc.

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1.5 Características

As características dos direitos fundamentais ainda são pouco estudadas, ape-sar de serem muito importantes para a definição desses direitos. Essas características são bastante trabalhadas na seara dos direitos humanos, sendo, por vezes, importadas para o campo dos direitos fundamentais, o que exige rigor científico para realizar as necessárias adequações.

A missão de caracterizar os direitos fundamentais, no entanto, é mais árdua do que a de caracterizar os direitos humanos, pois a disciplina constitucional dos direitos fun-damentais varia entre os Estados, dependendo de fatores culturais e históricos de cada povo, enquanto os direitos humanos são previstos em documentos internacionais com pre-tensão de universalidade. Nesses termos, para tratar dessas características é necessário ob-servar as peculiaridades dos direitos fundamentais.

Nesse contexto, surge, como característica inicial dos direitos fundamentais, a previsão constitucional, ou seja, o fato de esses direitos estarem previstos como tal em um determinado ordenamento jurídico, o que lhes confere um status diferenciado em relação às demais normas jurídicas.

Outra característica é a da inalienabilidade6, no sentido de serem vedadas as prá-ticas comerciais com direitos fundamentais, por exemplo, a venda de órgãos ou autode-gradação remunerada. A questão da inalienabilidade, no entanto, deve ser analisada com cautela, pois não se trata de uma restrição total ao proveito econômico de direitos funda-mentais, já que, em alguns casos, a própria Constituição autoriza tal benefício econômico como ocorre no art. 5º, XXVIII, “a” e “b”7 e XXIX8. Outros exemplos são os direitos autorais e os direitos de imagem que podem ser negociados. Portanto, existem exceções à inalienabi-lidade.

6 BONIFÁCIO, Artur Cortez. Direito constitucional Internacional: e a proteção dos direitos fundamentais. São Pau-lo: Editora Método, 2008. P.90.

7 “Art. 5º, XXVIII: são assegurados, nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais em obras coleti-vas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas; b) o direito de fiscalização do apro-veitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas”.

8 “Art. 5º, XXIX - a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distin-tivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País”.

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Se liga:

O mais peculiar caso de autodegradação remunerada foi o do “arremesso de anões”, decidido pelo Conselho de Estado Francês, em que foi determinado que anões não poderiam ser arremessados, mesmo que de forma consentida e remunerada, para a diversão dos frequentadores de bares. O caso foi judicializado pelos próprios anões que desejavam seguir sendo arremessados para manter sua fonte de renda, mas o Conselho de Estado manteve a atividade como ilícita ante a inalienabilidade e irrenunciabilidade dos direitos fundamentais. (C.E., Ass., 27 octobre 1995, Commune de Morsang-sur-Orge - Rec., p. 372 - Assemblée. - Req. n° 136727 - Mlle Laigneau, rapp. ; M. Frydman, c. dug.; Mes Baraduc-Bénabent, Bertrand, av.)

Mais uma característica é a da historicidade, decorrente do fato de serem os di-reitos fundamentais resultado da evolução histórica de cada Estado, sendo os direitos fun-damentais o reflexo dos eventos marcantes da história de cada povo9. Com efeito, não se pode negar a existência de uma relação entre as tragédias ocorridas durante Segunda Guer-ra Mundial e o fortalecimento dos direitos fundamentais no regime da Lei Fundamental Ale-mã. Do mesmo modo, não pode ser ignorada a influência dos eventos ocorridos durante a ditadura militar no Brasil na fecunda consagração de direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988.

Há também a irrenunciabilidade ou indisponibilidade10, pois não é possível aos indivíduos abdicarem de seus direitos fundamentais, o que engloba a vedação a lesões con-sentidas a direitos fundamentais. Tal característica está relacionada ao fato de serem os direitos fundamentais responsáveis pela garantia de uma existência minimamente respei-tável para os seres humanos, o que deve impedir, na maior medida possível, lesões a tais direitos, mesmo que tais lesões sejam consentidas pelo próprio titular do direito11.

Um tema dramático relacionado à indisponibilidade dos direitos fundamentais é o do debate sobre a legalização da eutanásia ou ortotanásia, pois nesses casos o indivíduo consentiria com a eliminação de sua própria vida para pôr fim a um sofrimento físico ou

9 “Em segundo lugar, os direitos do homem constituem uma classe variável, como a história destes últimos séculos demonstra suficientemente. O elenco dos direitos do homem se modificou, e continua a se modificar, com a mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder, dos meios dispo-níveis para a realização dos mesmos, das transformações técnicas, etc.”. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier CAMPUS, 2004. P. 38.

10 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Consti-tucional. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009. P.276.

11 Vale observar que a indisponibilidade sofre críticas por parte de vários segmentos da literatura jurídica. A teo-ria liberal dos direitos fundamentais, por exemplo, que admite o exercício negativo, considera uma reivindicação con-servadora o fato de o próprio titular de um direito fundamental não poder dispor de tal direito. Outras considerações sobre tal característica podem ser encontradas em: SILVA, Virgílio Afonso. A Constitucionalização do Direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2005. Pp. 61-63.

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mental causado por alguma enfermidade, o que implicaria em uma grave renúncia a direito fundamental12.

Outra característica é a inviolabilidade. A inviolabilidade é a impossibilidade dos direitos fundamentais serem ofendidos por leis infraconstitucionais ou atos do Poder Públi-co, ou seja, atos do Executivo, do Judiciário e do Legislativo.

Vale destacar também que o Estado deve adotar ações para buscar a máxima efetividade, ou seja, a máxima eficácia social, mudança real da sociedade. Além disso, por mais que se passe longo período de tempo, as pessoas não perdem os direitos fundamen-tais pelo seu não uso, o que se convola na característica da imprescritibilidade dos direitos fundamentais.

Destaca-se, ainda, a interdependência, que significa a existência de conexões entre os diferentes direitos fundamentais. Tais direitos possuem relações de dependência, pois a efetivação ou a violação a determinados direitos causa impacto em outros direitos.

Nesses termos, pode-se perceber, por exemplo, a relação que existe entre o direi-to à manifestação do pensamento (art. 5º, IV13) e o direito de resposta (art. 5º, V14), pois, na medida em que a Constituição assegura a liberdade de expressão, ela já prevê também uma limitação (direito de resposta) para os casos de abuso daquele direito.

Essa interdependência revela que na Constituição há um verdadeiro sistema de direitos fundamentais, baseado na dependência que tais direitos guardam entre si, o que é reforçado pelo fato de existirem direitos que têm como finalidade a proteção de outros direitos. Os direitos com missão de defesa são as chamadas garantias fundamentais. Em ra-zão desse papel diferenciado, afirma-se que as garantias fundamentais possuem um caráter instrumental em relação aos direitos fundamentais propriamente ditos15.

A Constituição, por exemplo, consagra o direito à informação de interesse parti-cular ou coletivo perante os órgãos públicos (art. 5º, XXXIII16), mas ciente de que há a possi-

12 Sobre o polêmico assunto: DWORKIN, Ronald. Domínio da Vida: aborto, eutanásia e outras liberdades indivi-duais. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

13 “Art. 5º, IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.

14 “Art. 5º, V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”.

15 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. Direitos Fundamentais. 3ª edição. Coimbra: Coim-bra Editora, 2000. P. 96.

16 “Art. 5º, XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”.

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bilidade concreta de violações a tal direito, criou a garantia do habeas data (art. 5º, LXXII17) como mecanismo para a defesa em caso de desrespeito ao direito consagrado.

Tendo em conta as demonstradas relações entre os direitos fundamentais, surge a característica da complementaridade, que significa que os direitos fundamentais não de-vem ser considerados (interpretados e/ou aplicados) de forma isolada. Isso decorre direta-mente do fato de os direitos fundamentais formarem um sistema.

Dessarte, o que se nota é que os conteúdos dos direitos fundamentais são com-plementares, sendo importante evitar interpretações e/ou aplicações que prejudiquem essa complementaridade. Nesses termos, o direito à saúde (art. 6º, caput18) e o direito à vida (art. 5º, caput19), por exemplo, são complementares, afinal, haverá prejuízo a este direito, caso aquele não seja devidamente protegido. Do mesmo modo, para que a saúde seja garanti-da é importante a existência de um meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, caput20), o que também demonstra a complementação de conteúdos.

Em razão dessa interação entre interdependência e complementaridade é que se afirma que os direitos fundamentais são indivisíveis21, ou seja, que tais direitos não admi-tem interpretações que os afastem ou dividam, causando prejuízos aos seus conteúdos22.

Por fim, deve-se falar sobre a multifuncionalidade23 ou condição polifacética24, que está ligada à ideia de polivalência dos direitos fundamentais, isto é, a possibilidade de os direitos fundamentais desempenharem diversas funções. A noção de multifuncionalida-de substituiu a antiga concepção de que os direitos fundamentais teriam como única fun-ção serem resistências do indivíduo em face do Estado.

17 “Art. 5º, LXXII - conceder-se-á ‘habeas-data’: a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pes-soa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público; b) para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo”.

18 “Art. 6º: São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constitui-ção”.

19 “Art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à proprieda-de, nos termos seguintes”.

20 “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

21 MARMELSTEIN, George. Criticas à Teoria das Gerações (ou mesmo Dimensões) dos Direitos Fundamentais. In: Opinião Jurídica - Revista do Curso de Direito da Faculdade Christus - n. 03, ano 02, 2004.1. P. 177.

22 GURGEL, Yara Maria Pereira. Direitos Humanos, Princípio da Igualdade e Não Dircriminação: sua aplicação às relações de trabalho. São Paulo: LTR, 2010. P. 69.

23 SARLET, Ingo Wolfgang. Ibidem. P. 155.

24 HESSE, Konrad. O Significado dos direitos fundamentais. In: Temas Fundamentais do Direito Constitucional. Tex-tos selecionados e traduzidos por Carlos dos Santos Almeida, Gilmar Ferreira Mendes e Inocêncio Mártires Coelho. São Paulo: Saraiva, 2009. Pp. 33 e 34.

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Dessa forma, segundo essa visão multifuncional, todos os direitos fundamentais podem ser analisados sob diversas perspectivas. Assim sendo, cada direito pode revelar di-ferentes funções: defensiva ou prestacional; subjetiva ou objetiva; preventiva ou repressiva.

A concepção de multifuncionalidade aqui apresentada aproxima os direitos fun-damentais ao conceito de “direito fundamental completo” sustentado por Robert Alexy. Se-gundo o autor, o direito fundamental completo é aquele que reúne um feixe de posições jurídicas25, ou seja, um só direito capaz de gerar diferentes relações jurídicas, como direito de defesa, de prestação, de proteção, de procedimento etc.26 Há, no entanto, uma distinção entre a concepção de multifuncionalidade aqui defendida e o conceito proposto por Alexy. Trata-se do fato de que o autor alemão faz crer que apenas alguns direitos fundamentais enquadram-se nesse conceito de “direito fundamental completo”, enquanto a concepção multifuncional abrange os direitos fundamentais de forma indistinta.

Assim sendo, pode-se observar que a perspectiva multifuncional preserva a indi-visibilidade dos direitos fundamentais, evitando a falsa dicotomia entre direitos negativos e prestacionais, típica de algumas classificações dos direitos fundamentais, como será mais bem detalhado abaixo. Não bastasse isso, a multifuncionalidade também permite uma aná-lise normativa e estrutural mais precisa dos direitos fundamentais, pois possibilita a com-preensão de que cada direito possui uma pluralidade de funções, podendo cada direito, por exemplo, revelar uma dimensão subjetiva e uma dimensão objetiva.

Com efeito, o reconhecimento da multifuncionalidade permite a abertura dos direitos fundamentais a várias e diversificadas atuações. Essa característica por estar dire-tamente relacionada com as funções dos direitos fundamentais é muito importante para a compreensão da dupla dimensão, como será observado adiante.

Os direitos fundamentais também são relativos, já que podem entrar em choque, o que fará com que um desses direitos seja, no caso concreto, ante a impossibilidade de harmonização, limitado para que o outro possa prevalecer27. Há, por exemplo, várias pos-

25 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. P. 249.

26 “Um direito fundamental ao meio ambiente corresponde mais àquilo que acima se denominou ‘direito fun-damental completo’. Ele é formado por um feixe de posições de espécies bastante distintas. Assim, aquele que propõe a introdução de um direito fundamental ao meio ambiente, ou que pretende atribuí-lo por meio de interpretação a um dispositivo de direito fundamental existente, pode incorporar a esse feixe, dentre outros, um direito a que o Estado se abstenha de determinadas intervenções no meio ambiente (direito de defesa), um direito a que o Estado proteja o titu-lar do direito fundamental frente a intervenções de terceiros que sejam lesivas ao meio ambiente (direito de proteção), um direito a que o Estado inclua o titular do direito fundamental nos procedimentos relevantes para o meio ambiente (direito ao procedimento) e um direito a que o próprio Estado tome medidas fáticas benéficas ao ambiente (direito a uma prestação fática)” Idem. Ibidem. P. 443.

27 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Ibidem. P.275.

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sibilidades de conflito entre o direito à liberdade de imprensa (art. 5º, XIV28 e art. 220, §1º29 da CF/88) e o direito à intimidade e à vida privada (art. 5º, X30). Assim sendo, em cada caso concreto, pode ser que um ou outro direito prevaleça, o que demonstra que os direitos fun-damentais são relativos, podendo ser limitados por outros direitos fundamentais. Todavia, parte da doutrina elenca como direitos fundamentais absolutos a vedação da tortura e a proibição do trabalho escravo.

Há ainda a controversa universalidade31, característica que é bastante tratada pela literatura dos direitos humanos32 e repetida pela literatura dos direitos fundamentais33, baseada na ideia de que a condição humana é o único requisito para ser titular dos direitos fundamentais34. A noção de universalidade, que é criticada até mesmo na seara dos direitos humanos35, deve ser compreendida com reservas no que tange aos direitos fundamentais, pois há direitos destinados a determinados grupos de pessoas, o que significa que os de-mais indivíduos não foram contemplados como titulares de tais direitos36.

Nesses termos, todas essas características estudadas são importantes, pois de-finem o que são os direitos fundamentais, portanto, as classificações que pretendam tratar de tais direitos e de suas funções não podem desprezá-las ou subvertê-las.

RESUMO:

a) Inalienabilidade: Não é possível transferi-los a outrem, seja a título gratuito ou oneroso;

28 “Art. 5º, XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”.

29 “Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. § 1º - Nenhuma lei conterá dispo-sitivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV”.

30 “Art. 5º, X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

31 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Ibidem. P.273.

32 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Saraiva, 2011. P. 196.

33 ALCALÁ, Humberto Nogueira. Teoría y dogmática de los derechos fundamentales. México: UNAM, 2003. P. 69.

34 SARLET, Ingo Wolfgang. Ibidem. P. 210.

35 SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma Concepção Multicultural de Direitos Humanos. Dhnet. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/ militantes/boaventura/boaventura_dh.htm>. Acesso em: 3 de jun. 2006.

36 “Do ponto de vista da dogmática, essa impressão é altamente enganosa. Com poucas exceções, a Constituição garante os direitos fundamentais a determinadas categorias de pessoas, excluindo implicitamente os demais, isto é, não lhes oferecendo proteção em nível constitucional. Além disso, depara-se aqui com uma situação complexa, já que cada categoria de direitos possui titulares diferentes”. DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Ibidem. P. 76. No mesmo sentido: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Ibidem. P. 274.

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b) Historicidade: Os direitos fundamentais não são dados pelo Estado, como uma mera concessão ou presente. Eles decorrem de lutas históricas da coletividade, fato que ampara a irrenunciabilidade por um único indivíduo.

c) Irrenunciabilidade: Uma vez tidos como conquistas históricas, não é possível sim-plesmente renunciar a um direito;

d) Inviolabilidade: Trata da impossibilidade de os direitos fundamentais serem ofen-didos por força de lei infraconstitucional ou ato do poder público, sob pena de res-ponsabilização;

e) Máxima Efetividade: Ao Estado não basta positivar os direitos fundamentais, mas deve ter uma atuação pautada em sua efetivação.

f) Imprescritibilidade: Por mais que se passe longo período de tempo, não perdem os direitos fundamentais pelo seu não uso;

g) Interdependência: Existem conexões entre os direitos fundamentais, que formam um sistema de direitos que se completam. Dessa maneira, a efetivação ou violação de um direito poderá causar impacto em outros direitos. Exemplificando, o direito à liberdade é amparado e defendido pela garantia do habeas corpus.

h) Complementaridade: Os conteúdos dos direitos fundamentais são complementa-res, sendo importante evitar interpretações e/ou aplicações que prejudiquem essa complementaridade;

i) Indivisibilidade: Em razão dessa interação entre interdependência e complementa-ridade é que se afirma que os direitos fundamentais são indivisíveis, ou seja, que tais direitos não admitem interpretações que os afastem ou dividam, causando prejuízos aos seus conteúdos;

j) Multifuncionalidade (Condição Polifacética): várias funções possíveis dos direitos fundamentais;

l) Relatividade: não há direito fundamental absoluto. Como os direitos fundamentais representam valores sociais, certas vezes tais valores podem entrar em choque, nestes casos deve haver uma compatibilização entre os direitos em jogo;

m) Universalidade: porque clama pela extensão universal dos direitos fundamentais, com a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos;

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n) Previsão Constitucional: esses direitos estão previstos como tal em um determi-nado ordenamento jurídico, o que lhes confere um status diferenciado em relação às demais normas jurídicas.

1.6 Teoria dos Status de Jellinek

Georg Jellinek, no livro “Sistema dos Direitos Subjetivos Públicos” (System der Subjektiv Öffentlichen Rechte37), trata os direitos fundamentais como direitos públicos sub-jetivos do indivíduo em relação ao Estado, demonstrando algumas das funções de tais di-reitos, que são reveladas com base na posição jurídica que o indivíduo assume em face do Estado38.

Assim sendo, um ponto muito importante, que deve, desde já, ficar claro, é que “o objeto central da teoria dos status é a estrutura formal da posição jurídica global do ci-dadão”39. Ou seja, direito subjetivo público é um direito que o cidadão detém frente ao Es-tado, direitos exigíveis pelo particular frente ao Estado. Nesse passo, a estrutura formal da posição global do cidadão analisa que tipo de demanda o cidadão possui frente ao Estado, o que Jellinek divide em quatro posicionamentos.

Desse modo, a teoria de Jellinek não analisa diretamente o conteúdo dos direitos fundamentais, mas a espécie de relação jurídica que o indivíduo manterá com o Estado em decorrência da utilização dos direitos fundamentais. Isso revela um segundo aspecto dessa teoria, que é o seu caráter formal40, já que não há necessariamente uma preocupação com o conteúdo dos direitos fundamentais, centrando-se em uma preocupação abstrata com as situações jurídicas a que as diferentes funções dos direitos fundamentais podem remeter o cidadão.

Nesses termos, Jellinek divide as relações jurídicas que o cidadão pode manter com o Estado em quatro: status negativo (status libertatis), status positivo (status civitatis), status passivo (status subiectionis) e status ativo (status da cidadania ativa). Esses quatro status revelam quatro diferentes posições jurídicas do indivíduo, decorrentes de quatro di-ferentes funções exercidas pelos direitos fundamentais, havendo uma correlação entre a situação do indivíduo e a função que está sendo desempenhada pelo direito fundamental.

O status negativo é aquele em que há uma relação jurídica baseada na não interferência do Estado na vida do cidadão, ou seja, os direitos fundamentais exercem a função de garantir ao indivíduo que o Estado não intervirá nos aspectos particulares de sua vida. Nesse sentido, o status libertatis assegura ao particular desenvolver aspectos de sua vida privada, estando o Estado impedido de avançar sobre tal seara.

37 JELLINEK, Georg. System der Subjektiv Öffentlichen Rechte. Tübingen: Verlag Von J.C.B. Paul Siebeck, 1919.

38 SARLET, Ingo Wolfagang. Ibidem. P. 156.

39 ALEXY, Robert. Ibidem. P. 273.

40 ALEXY, Robert. Ibidem. P. 273.

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Dessa forma, quando um indivíduo manifesta suas opiniões sobre arte e poesia aos colegas reunidos em um bar ou em uma praça, há implícito, nessa situação, o exercício do status negativo, originada do direito à livre a manifestação do pensamento (art. 5º, IV41). Da mesma forma, quando um estudante debate com um professor, em sala de aula, sobre algum conteúdo de uma determinada disciplina, também há o exercício do status negativo, derivado não apenas do já citado direito à livre manifestação do pensamento, mas também do direito à educação (art. 6º, caput42). Em ambos os casos, os direitos citados garantem aos cidadãos que o Estado não interferirá em suas relações pessoais, revelando assim uma importante função desses direitos fundamentais, qual seja: a limitação da atuação estatal.

Já o status positivo ocorre, quando, em decorrência do exercício de direitos fun-damentais, o particular passa a demandar determinados comportamentos por parte do Es-tado. Analisando sob outra perspectiva, pode-se afirmar que, no status civitatis, o Estado passa a ter um dever para com o cidadão, ou seja, o Estado necessita criar os meios, adotar providências materiais e/ou jurídicas para que o direito fundamental do particular possa ser efetivado43.

Pode ser usado como exemplo o direito a receber dos órgãos públicos informa-ções de interesse particular ou coletivo (art. 5º, XXXIII44), que exige do Estado um aparato mínimo (pessoal, estrutura física, organização administrativa) para poder fazer com que o direito fundamental do indivíduo seja respeitado. O direito de petição aos Poderes Públicos e o direito à obtenção de certidões (art. 5º, XXXIV, “a” e “b”45) exigem a mesma espécie de estrutura estatal. Da mesma maneira, os direitos à vida e à liberdade (art. 5º, caput46) neces-sitam de um esquema de estatal de segurança pública para sua proteção. Havendo ainda os direitos à saúde, à educação, à moradia etc. (art. 6º, caput47), que necessitam de uma forte atuação estatal, por meio de políticas públicas, para que sejam efetivados.

41 “Art. 5º, IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.

42 “Art. 6º.: São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constitui-ção”.

43 ALEXY, Robert. Ibidem. P. 264.

44 “Art. 5º, XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”.

45 “Art. 5º, XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder; b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal”.

46 “Art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à proprieda-de, nos termos seguintes:”.

47 “Art. 6º: São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constitui-ção”.

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O status passivo é aquele em que o cidadão assume um papel de sujeição em re-lação ao Estado, seja em decorrência de um dever ou de uma proibição. Esse status subiec-tionis é uma postura imposta ao particular em decorrência de deveres fundamentais48, por exemplo, votar (art. 14, § 1º, I49) e prestar serviço militar (art. 143, caput50). Trata-se de uma “posição de sujeição”51 do indivíduo em relação ao Estado.

Por fim, há o status ativo, em que o cidadão, no exercício de direitos fundamen-tais, assume uma postura participativa na vida política estatal. No presente status de cida-dania ativa, o indivíduo passa a poder influir na vida estatal, por meio do exercício de direi-tos fundamentais. Dessa maneira, o direito ao voto (já citado como um dever), por exemplo, permite ao cidadão assumir esse papel de participante da vida política estatal.

Assim sendo, pode-se notar que a teoria dos status de Jellinek permite o reco-nhecimento de diferentes funções dos direitos fundamentais, que, por sua vez, baseados em uma lógica de direito subjetivo, possibilitam diferentes formas de o indivíduo se relacio-nar com o Estado.

Desse modo, ressaltando-se, mais uma vez, o caráter formal da teoria de Jellinek, as quatro funções dos direitos fundamentais apresentadas pelo autor não necessariamente guardam relação com o conteúdo desses direitos, pois o que é relevante para a teoria é a espécie de relação jurídica que o indivíduo mantém com o Estado e não o conteúdo de cada direito fundamental.

Não obstante o citado caráter formal, em algum momento da evolução teórica desse assunto, a doutrina passou a realizar, em maior ou menor grau52, uma identificação entre o status negativo e os chamados “direitos de defesa”, entre o status positivo e os “direi-tos sociais”, entre o status ativo e os “direitos políticos”53.

Apesar do mérito acadêmico dos autores que defendem a citada correlação entre cada um dos status e específicas classes de direitos, não se revela adequada tal identifica-ção à dinâmica dos direitos fundamentais, pois, como foi possível perceber nos exemplos

48 Deve-se observar que os chamados deveres fundamentais também podem possuir uma face de direito funda-mental, no Brasil, por exemplo, votar é um dever, mas também um direito.

49 “Art. 14. (...) §1º - O alistamento eleitoral e o voto são: I - obrigatórios para os maiores de dezoito anos”.

50 “Art. 143. O serviço militar é obrigatório nos termos da lei”.

51 ALEXY, Robert. Ibidem. P. 256.

52 Em SARLET, Ingo Wolfgang. Ibidem. Pp. 162-167, realiza-se uma ampla exposição sobre as classificações dou-trinárias dos direitos fundamentais pautadas pelo aspecto funcional, sendo demonstrada a maior ou menor aproxima-ção dos diferentes autores à teoria dos status de Jellinek.

53 Essa identificação pode ser encontrada em: DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Ibidem. Pp. 58-61. MEN-DES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Ibidem. P. 289. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001. Pp. 517-518.

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citados acima, cada um dos status pode se manifestar em direitos fundamentais de diferen-tes conteúdos, sejam direitos de defesa, sociais ou políticos.

Pode-se assim usar a clássica relação entre o status negativo e os “direitos de de-fesa” para demonstrar os problemas desse tipo de correspondência54. Inicialmente, deve-se questionar a própria terminologia “direitos de defesa”, pois ela já carrega consigo a ideia de função limitadora do Estado, contudo, essa terminologia atribui tal noção apenas a um grupo de direitos, quando, de fato, essa função é inerente a todos os direitos fundamentais. Nota-se assim que, tradicionalmente, os chamados “direitos de defesa” correspondem aos direitos individuais, ou seja, aqueles com forte consagração durante o Estado Liberal, que buscam a proteção do indivíduo isoladamente considerado. Ocorre que a análise de típicos direitos individuais (“direitos de defesa”) revela que desses direitos podem derivar todas as espécies de status.

Assim sendo, a liberdade e a propriedade (art. 5º, caput55), clássicos exemplos de direitos individuais (“direitos de defesa”), possuem uma função limitadora da atividade estatal, pois, com a garantia constitucional de tais direitos, não pode o Estado privar os in-divíduos de sua liberdade ou de seus bens, salvo por meio de um devido processo legal (art. 5º, LIV56), não pode também o Estado confiscar a propriedade dos seus cidadãos (art. 150, IV57) e várias outras limitações são impostas ao Estado em razão de tais direitos.

Em decorrência dos mesmos direitos à liberdade e à propriedade, no entanto, também surge para o cidadão o status positivo, pois ele pode exigir do Estado a adoção das medidas necessárias para a proteção e efetivação desses direitos individuais. É para a pro-teção da vida, da liberdade e da propriedade, por exemplo, que o Estado necessita desen-volver políticas de segurança pública. É, em decorrência do direito à propriedade, que um indivíduo pode exigir do Estado o pagamento de indenização prévia, justa e em dinheiro, em caso de desapropriação por interesse social (art. 5º, XXIV58).

Dessa forma, percebe-se que dos direitos individuais (“direitos de defesa”) po-dem afluir diferentes status, o que veda a correlação hermética entre direitos de defesa e o

54 “Quando se fala na literatura, em status negativo, faz-se menção, na maioria das vezes, aos direitos de defesa, ou seja, aos direitos, em face do Estado, a ações negativas. No entanto, isso seria contraditório com as considerações feitas por Jellinek”. ALEXY, Robert. Ibidem. P. 258.

55 “Art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à proprieda-de, nos termos seguintes”.

56 “Art. 5º, LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

57 “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) IV - utilizar tributo com efeito de confisco”.

58 “Art. 5º, XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Consti-tuição”.

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status negativo. Da mesma maneira, dos direitos sociais e dos direitos políticos também po-dem derivar todas as espécies de status, o que impede a identificação entre determinados status e específicos grupos de direitos.

Essa ilação é compartilhada por Ingo Sarlet, que afirma “que as diferentes fun-ções (ainda que nem sempre e não todas ao mesmo tempo) dos direitos fundamentais po-dem reunir-se na mesma norma que os consagra”59. Não obstante isso, o autor opta por realizar uma classificação binária que distingue os direitos fundamentais entre “direitos de defesa” e “direitos a prestações”, baseando-se em um critério de predominância60.

Apesar de ser inegável a perspicácia com que Sarlet constrói sua classificação dos direitos fundamentais com base na predominância da função, ainda assim, essa clas-sificação não parece adequada, pois se trata de uma distinção baseada em funções, o que contraria a multifuncionalidade dos direitos fundamentais e reduz a percepção sobre as várias possibilidades de aplicação de todos os direitos fundamentais, revelando uma con-sequência prática negativa.

Com efeito, considerando a teoria dos status de Jellinek uma teoria formal, que não se baseia no conteúdo dos direitos fundamentais, mas apenas nas possíveis relações entre indivíduo e Estado derivadas desses direitos, bem como se atentando para a multifun-cionalidade, constatada nos vários exemplos acima citados, ressalta-se aqui o equívoco e a desnecessidade de classificações baseadas nos status de Jellinek, mas pautadas no conteú-do dos direitos, mormente, a distinção entre “direitos de defesa” e “direitos prestacionais”.

Não se trata apenas de uma questão de reforçar a “dignidade constitucional” de todos os direitos fundamentais61, mas de deixar expresso que as diferentes funções dos di-reitos fundamentais não residem em diferentes grupos de direitos, mas em cada norma consagradora de direito fundamental, o que é uma tênue diferença, mas uma forma inteira-mente diversa de tratar cada um desses direitos.

Além disso, é necessário observar que a própria teoria dos status de Jellinek é alvo de severas críticas por parte da doutrina. Os principais argumentos contrários à teoria de Jellinek atacam o formalismo, a abstração e a defasagem histórica de tal modelo62. Essas

59 SARLET, Ingo Wolfgang. Ibidem. P. 165.

60 “Por outro lado, há que levar em conta a circunstância de que várias das normas definidoras de direitos funda-mentais exercem simultaneamente duas ou mais funções, sendo, neste sentido, inevitável alguma superposição. Neste contexto, cumpre referir que a própria distinção entre as diversas funções dos direitos fundamentais nem sempre é cla-ra e perfeitamente delimitada. É de destacar-se, ainda, que a inclusão dos direitos fundamentais em um ou outro grupo se baseia no critério da predominância do elemento defensivo ou prestacional, já que os direitos de defesa podem, por vezes, assumir uma dimensão prestacional, e vice-versa”. Idem. Ibidem. P. 166.

61 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 3ª Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. P. 63.

62 ALEXY, Robert. Ibidem. P. 272.

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críticas, apesar de não inviabilizarem a teoria de Jellinek, são pertinentes, principalmente, quando se observa que o autor escreveu o System der Subjektiven Öffentlichen Rechte (“Sis-tema dos Direitos Subjetivos Públicos”), livro que explica a teoria dos status, no distante ano de 1892, lastreado por um positivismo jurídico clássico e pautado na lógica dos direitos fundamentais apenas como direitos subjetivos.

Konrad Hesse, um dos principais críticos da teoria dos status, afirma que o “sta-tus jurídico particular” do cidadão, originado dos direitos fundamentais, é um status mate-rial, concreto, intangível ao Estado63. Assim sendo, o autor critica o formalismo da teoria de Jellinek, atacando o fato de tal teoria se concentrar apenas no status negativo, baseando-se em abstrações distanciadas da noção real de vida do indivíduo64. Apesar da crítica pertinen-te de Hesse, assiste razão a Alexy ao observar que a análise da posição jurídica do cidadão, decorrente do exercício dos direitos fundamentais, sob a perspectiva material de Hesse, não impede a análise do mesmo problema sob a perspectiva formal de Jellinek65.

Há ainda a crítica de Peter Häberle, que, baseando-se na ideia de um atual Estado prestacional, defende a inversão da lógica de Jellinek, sustentando a prevalência dos status ativo e positivo, remetendo o status negativo ao último dos status66. Defende ainda Häberle o surgimento de um novo tipo de status: o “status activus processualis”. Essa nova espécie de status designa todos os procedimentos em matéria de direitos fundamentais, basean-do-se em uma ideia de participação do indivíduo em tais procedimentos, gerando uma “re-serva processual de prestação” para os direitos fundamentais, garantindo assim melhores efeitos materiais para esses direitos67.

A crítica de Häberle, como observa a doutrina68, é muito importante para reforçar o caráter “cívico-ativo” (caráter participativo) dos direitos fundamentais, aspecto subesti-mado pela supervalorização do status negativo realizado por Jellinek. Nada obstante isso, não se pode concordar com Häberle ao defender a prevalência dos status ativo e positivo em detrimento do negativo, pois isso implicaria repetir o equívoco de Jellinek ao dar pre-

63 “O status jurídico particular, fundamentado e garantido pelos direitos fundamentais da Lei Fundamental, é um status jurídico material, isto é, um status de conteúdo concretamente determinado que, nem para o particular, nem para os poderes estatais está ilimitadamente disponível”. HESSE, Konrad. Ibidem. P. 230.

64 “O status jurídico-constitucional, fundamentado e garantido pelos direitos fundamentais, distingue-se, funda-mentalmente, do status jurídico-fundamental da, hoje, ainda prosseguida doutrina do status de G. Jellinek. Pois o ‘sta-tus negativus’, ao qual G. Jellinek atribui, no essencial, os direitos fundamentais, é um meramente formal, secundário diante da forma básica do ‘status subjectionis’: a ‘pessoa’, à qual cabe o ‘status negativus’, não é o homem ou cidadão em sua realidade da vida, senão o indivíduo abstrato na redução a sua capacidade de ser titular de direitos e deveres”. Idem. Ibidem. P. 231.

65 ALEXY, Robert. Ibidem. P. 273.

66 HÄBERLE, Peter. Pluralismo y Constitución. Estudios de Teoría Constitucional de la sociedad abierta. Madrid: Editorial Tecnos, 2002. P. 193.

67 Idem. Ibidem. Pp. 193-201.

68 ALEXY, Robert. Ibidem. Pp. 271-273. SARLET, Ingo Wolfgang. Ibidem. Pp. 158-159.

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ferência ao status negativo. Assim sendo, todos os status devem gozar do mesmo nível de respeito constitucional, manifestando suas funções (ainda que não todas ao mesmo tem-po69), em cada caso concreto, na medida em que seja necessário para satisfação do direito fundamental exercido.

Não bastasse isso, o chamado status activus processualis pode ser considerado, o que é reconhecido pelo próprio Häberle70, como incluso no tradicional status ativo, o que preserva a teoria dos status, exigindo apenas alguns reparos.

Deve-se, no entanto, destacar que, sob a nova nomenclatura, Häberle desenvol-veu uma gama de relevantes novos conceitos para o reforço do citado caráter “cívico-ativo” dos direitos fundamentais. Além disso, Häberle, com o status activus processualis, suscita a possibilidade de novas funções para os direitos fundamentais não imaginadas originalmen-te por Jellinek, o que, sob a ótica da exploração científica, deixa margem para interessantes incursões. Esses fatos, contudo, também não esvaziam a teoria dos status, servido apenas como aperfeiçoamento da teoria tradicional.

Por fim, é inegável que a tese de Jellinek foi elaborada em outro contexto históri-co, estatal e constitucional, sendo inclusive anterior à própria noção de dimensão objetiva dos direitos fundamentais. Desse modo, o próprio reconhecimento da dupla dimensão dos direitos fundamentais faz com que se perceba que a teoria dos status não contempla todo o fenômeno das relações jurídicas dos direitos fundamentais, pois ela foi elaborada para normas de direitos fundamentais imaginadas apenas como direitos subjetivos públicos71.

1.7 A Teoria das Gerações dos Direitos Fundamentais

A teoria das gerações classifica os direitos fundamentais utilizando como critério de distinção a suposta evolução histórica de tais normas, defendendo a ideia de um proces-so cumulativo e qualitativo de consagração sucessiva de direitos fundamentais72. Com base em tal ideia, os partidários da teoria geracional reconhecem a existência de três gerações de direitos fundamentais73.

69 SARLET, Ingo Wolfgang. Ibidem. P. 165.

70 HÄBERLE, Peter. Ibidem. P. 194.

71 Há observação em sentido semelhante em: SARMENTO, Daniel. A Dimensão Objetiva dos Direitos Fundamen-tais: fragmentos de uma teoria. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (coord). Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamen-tais. Belo Horizonte: DelRey, 2003. P. 259.

72 BONAVIDES. Paulo. Ibidem. P. 517.

73 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Ibidem. P. 289. PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Las generaciones de derechos humanos. In: Revista del Centro de Estudios Constitucionales. nº. 10. Septiembre-Diciembre. 1991. Pp. 205-209.

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Há, no entanto, autores que defendem a existência de mais gerações. Paulo Bo-navides, por exemplo, defende a existência da quarta74 e da quinta75 gerações de direitos fundamentais.

Desse modo, cada geração corresponde a um momento histórico em que houve a consagração de um determinado grupo de direitos fundamentais com as mesmas carac-terísticas. Assim sendo, geração após geração, novos direitos somam-se ao grupo anterior, formando a esfera normativa dos direitos fundamentais.

A teoria das gerações apresenta os direitos fundamentais de primeira geração como sendo o produto do pensamento liberal-burguês dos séculos XVII e XVIII, resultante da necessidade de garantias individuais em face da atuação arbitrária do Estado absolutista. O jusnaturalismo deontológico é apontado por José Adércio Leite Sampaio como a matriz teórico-ideológica que lastreou o surgimento dos direitos fundamentais76. Segundo Sam-paio, nessa fase, surge a ideia de que “o homem é o valor-base da fundamentação do direito e notadamente dos direitos humanos. Kant veio afirmar de forma categórica que todo ho-mem era um fim e nunca um meio”77.

Os direitos de primeira geração referem-se assim à fase inicial do constituciona-lismo moderno, sendo, comumente, chamados de direitos civis e políticos, consagrados a partir das revoluções burguesas do século XVIII. Segundo a teoria geracional, os direitos de primeira são direitos de defesa e autonomia do indivíduo em face do Estado, demarcando liberdades individuais.

Em razão dessas características, tais direitos passaram a ser reconhecidos como direitos de defesa ou negativos, ou seja, que não exigem prestações por parte dos poderes públicos, o que gerou uma identificação entre os chamados direitos de primeira geração e o status negativo de Jellinek78, transmitindo-se a ideia de que a mera abstenção estatal seria suficiente para o respeito e preservação desses direitos.

A segunda geração, segundo a doutrina tradicional, surge em decorrência do contexto excludente e desigual característico do século XIX, mormente nas cidades indus-trializadas da Europa ocidental. O jusnaturalismo e o iluminismo foram responsáveis por grandes revoluções, derrubando o antigo regime, levando ao poder a burguesia emergente e consagrando direitos individuais, mas não lograram êxito no concernente à atenuação das graves distorções sociais.

74 BONAVIDES. Paulo. Ibidem. Pp. 524-526.

75 BONAVIDES, Paulo. A Quinta Geração de Direitos Fundamentais. In: Direitos Fundamentais & Justiça. Ano 2 - n° 3 - Abr./Jun. 2008. Pp. 82-93.

76 SAMPAIO, José Adércio Leite. Direitos Fundamentais: retórica e historicidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. P. 59

77 Idem. Ibidem. P. 60.

78 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. P. 517.

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Diante de tal cenário, doutrinas de cunho social passaram a exigir a ação estatal, fundamentando-se no princípio da igualdade, a fim de proporcionar bem estar social à cole-tividade. O movimento socialista (utópico e científico) surge nessa conjuntura, influencian-do vários eventos políticos-jurídicos daquele século, por exemplo, a Assembleia Constituin-te da Alemanha e a II Revolução Francesa, ambas em 1848, não por acaso, ano do manifesto comunista79, bem como a Comuna de Paris de 187180. Por fim, não se pode olvidar que, já no século XX, o movimento socialista alcança a sua mais significativa vitória com a Revolução Russa de 1917.

Como reação ao avanço das ideias socialistas, houve severas transformações nos países de matriz capitalista. O choque entre o liberalismo individualista e a antítese socia-lista teve como síntese as sociais democracias81. Para o constitucionalismo, os principais ícones da social democracia foram a Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919, responsáveis pela criação do modelo do welfare state82 e pela consagração dos chamados direitos fundamentais de segunda geração.

Com efeito, a segunda geração de direitos é composta pelos diretos econômicos e sociais, tais como direito à moradia, à educação, à alimentação, à saúde, à assistência social, ao trabalho etc., correspondendo ao advento do Estado Social nos séculos XIX e XX. Desse modo, conforme a teoria das gerações, enquanto a primeira geração assegura direi-tos aos indivíduos através da limitação da atuação estatal, os direitos de segunda geração são destinados a coletividades ou a toda a sociedade, mesmo que possam ser utilizados de forma individual83.

Dessarte, tornou-se comum afirmar que os direitos de segunda geração exigem uma atuação efetiva do Estado para que possam ser concretizados. Dessa maneira, os di-reitos sociais passaram a ser identificados como direitos prestacionais, pois sua efetividade estaria condicionada a ações estatais. Tal ideia teve como consequência a noção de que esses direitos implicam em custos para o Estado, criando uma barreira fática e orçamentária

79 Observação de SAMPAIO, José Adércio Leite. Ibidem. P. 213.

80 Idem. Ibidem. Pp. 211-218.

81 “A essa altura os direitos sociais legais viraram realidade, pelo menos jurídica nos países europeus desenvolvi-dos. Era, a seguir Singer, a instituição do bem-estar como direito. Até a recém unificada Alemanha baixava normas pro-tetoras dos trabalhadores. Se em 1875, Bismarck pusera na ilegalidade o partido dos socialistas, em contrapartida veio a propor em 1878 uma série de leis destinadas a tutelar, talvez seja a melhor palavra, os empregados contra acidentes de trabalho, enfermidade e velhice; em 1889, criou-se lá o sistema obrigatório de aposentadoria, custeada paritaria-mente por patrão e empregado”. Idem. Ibidem. P. 217.

82 “Este novo ‘Estado Social’ ou ‘Providencia’ ou, mais elegantemente ‘Welfare State’, foi iniciado na Alemanha de Bismarck com leis que garantiam o seguro desemprego, protegiam os acidentes de trabalho e concediam aposenta-doria por idade ou invalidez, mas somente com a Constituição do Império Alemão, em 11 de agosto de 1919, a conhe-cida Constituição de Weimar, a intervenção na ordem econômica e mais precisamente na propriedade privada, ficou instituída como preceito de estado na Europa capitalista”. MARÉS, Carlos Frederico. A Função Social da Terra. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2003. P. 84.

83 SARLET, Ingo Wolfagang. Ibidem. P. 48.

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a sua efetivação84.

O empecilho de ordem material foi justificado doutrinariamente com a afirmação de que os direitos sociais seriam normas de caráter programático, o que, na prática, signifi-cou, durante largo período de tempo, a inoponibilidade de tais normas ao Estado, fragilizan-do sensivelmente a força normativa dos direitos sociais. Nos últimos anos, no entanto, vem ocorrendo um esforço doutrinário e jurisprudencial para recuperar o desgastado sentido de programaticidade, tentando reconhecer a normatividade dos direitos sociais.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é rica em exemplos:

“A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANS-FORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconsequen-te, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsá-vel de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.” (RE 393175 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 12/12/2006, DJ 02-02-2007 PP-00140 EMENT VOL-02262-08 PP-01524)

Os direitos fundamentais de terceira geração, por sua vez, tratam-se de reivindi-cações geradas “pelo impacto tecnológico, pelo estado crônico de beligerância, bem como pelo processo de descolonização do segundo pós-guerra e suas contundentes consequên-cias, acarretado profundos reflexos na esfera dos direitos fundamentais”85.

Ainda no contexto do welfare state, ocorreram as duas grandes guerras mundiais, eventos traumáticos para a humanidade, que repercutiram diretamente na seara dos di-reitos fundamentais. Após os conflitos, houve uma forte internacionalização dos direitos humanos, principalmente, em decorrência da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 194886, acompanhada por um processo de especificação e incorporação de direitos fun-

84 Ingo Sarlet observa que a chamada segunda geração não engloba apenas direitos positivos, mas também as chamadas “liberdades sociais” (ex.: liberdade sindical e direito de greve), bem como direitos dos trabalhadores (ex.: férias, descanso remunerado etc.), ou seja, em tal geração não há apenas direitos de caráter prestacional. Idem. Ibidem. P.48.

85 SARLET, Ingo Wolfgang. Ibidem. Pp. 48-49.

86 “Ao adotar o prisma histórico, cabe realçar que a Declaração de 1948 inovou extraordinariamente a gramática dos direitos humanos, ao introduzir a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela univer-salidade e indivisibilidade desses direitos. Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, com a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser huma-

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damentais ao corpo das Constituições.

O implacável atentado ao ser humano, durante a Segunda Guerra Mundial, reve-lou a necessidade de direitos que transcendessem os interesses dos indivíduos, das socie-dades e dos Estados, ressaltando a importância da própria espécie humana. Dessa forma, os direitos da terceira geração surgem caracterizados por sua titularidade difusa ou coleti-va, sendo destinados não ao indivíduo ou a determinado grupo social, mas a todo o gênero humano. Tratam-se dos direitos à paz, à comunicação, à autodeterminação dos povos, ao meio ambiente, ao desenvolvimento e ao patrimônio comum da humanidade. Perez Luño acrescenta os direitos à qualidade de vida e à liberdade informática87.

Além das tradicionais três gerações, Paulo Bonavides defende a autonomia da quarta e da quinta gerações. A quarta seria, mais uma vez, titularizada por toda a humani-dade, mas, sob esta perspectiva, estariam os direitos capazes de proteger as pessoas em relação aos efeitos da globalização e do neoliberalismo. Segundo o autor, esses fenôme-nos contemporâneos ameaçam direitos e garantias conquistados historicamente, sendo os direitos de quarta geração limites a essa ameaça88. Tratam-se dos direitos à informação, à democracia e ao pluralismo.

Recentemente, a quinta geração foi defendida por Bonavides, sendo formada pelo direito à paz, que, segundo o autor, extrapolou os limites dos direitos de terceira gera-ção, elevando-se autônoma e paradigmaticamente como um direito fundamental de quinta geração89.

Todos os eventos históricos citados culminaram no reconhecimento de uma im-portância destacada para os direitos fundamentais dentro do constitucionalismo da segun-da metade do século XX e dos dias atuais. Tais direitos passaram a se posicionar nos siste-mas jurídicos nacionais em um patamar de superlegalidade, originando o chamado Estado Democrático de Direito, modelo estatal caracterizado por encontrar nos direitos fundamen-tais seu principal referencial de juridicidade.

no como essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade. Indivisibilidade porque, ineditamente, o catálogo dos direitos civis e políticos é conjugado ao catálogo dos direitos econômicos, sociais e culturais. A Declaração de 1948 combina o discurso liberal e o discurso social da cidadania, conjugando o valor da liberdade ao valor da igual-dade”. PIOVESAN, Flávia. Ações Afirmativas sob a Perspectiva dos Direitos Humanos. In Ações Afirmativas e Combate ao Racismo nas Américas. SANTOS, Sales Augusto (organizador). Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. P. 34.

87 PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Las generaciones de derechos humanos. Pp. 206-208.

88 “Da globalização econômica e da globalização cultural muito se tem ouvido falar. Da globalização política só nos chegam, porém, o silencio e o subterfúgio neoliberal da reengenharia do Estado e da sociedade. Imagens, aliás, anárquicas de um futuro nebuloso onde o Homem e a sua liberdade – a liberdade concreta, entenda-se – parecem ha-ver ficado de todo esquecidos e postergados”. BONAVIDES, Paulo. Ibidem. P. 526.

89 BONAVIDES, Paulo. A Quinta Geração de Direitos Fundamentais. P. 86.

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Veja-se a esquematização das estudadas gerações:

1ª geração 2ª geração 3ª geração 4ª geração

Liberdade Igualdade Fraternidade Democracia (direta)

Direitos negativos (não agir)

Direitos a prestações ????

Direitos civis e polí-ticos: liberdade po-lítica, de expressão, religiosa, comercial

Direitos sociais, econômicose culturais

Direito ao desenvol-vimento, ao

meio-ambiente sadio, direito à paz

Direito à informa-ção, à democracia

direta e ao pluralismo

Direitos individuais Direitos de uma coletividade Direitos de toda a humanidade

Estado liberal Estado social e Estado democrático e social

1.8 As Críticas à Teoria das Gerações (ou mesmo Dimensões) dos Direitos Fundamentais

Como se pode observar, a teoria das gerações revela-se como uma classificação dos direitos fundamentais que utiliza o aspecto histórico como critério de distinção entre os grupos (gerações) de direitos, aproximando aqueles que supostamente guardam seme-lhanças em relação à função e à titularidade: no primeiro momento histórico, houve a con-sagração de direitos individuais com função de defesa; no segundo momento, surgiram os direitos sociais com função prestacional; no terceiro momento, foram consagrados os direi-tos difusos e coletivos para proteção de toda a espécie humana.

Desse modo, a teoria das gerações, assim como a dupla dimensão, é uma classifi-cação baseada na inter-relação funções-titularidade dos direitos fundamentais. Ocorre que tais classificações são incompatíveis, já que a classificação realizada pela dupla dimensão, diferentemente da classificação das gerações, não compartimenta os direitos fundamen-tais, além de propor uma distinção técnica entre funções-titularidade dos direitos funda-mentais, com base na própria estrutura normativa desses direitos e não com fundamento no momento histórico de sua positivação.

A citada incompatibilidade de propostas classificatórias torna-se ainda mais evi-dente, quando são expostos os equívocos da teoria das gerações, o que será desenvolvido a seguir.

Inicialmente, deve-se mencionar a clássica crítica relativa à imprecisão termi-nológica do termo “gerações”, que conduz à ideia de substituição de uma geração pela

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subsequente90. A partir da constatação de tal imprecisão, os adeptos dessa teoria91 passa-ram a sustentar a utilização do termo “dimensões”, o que supostamente eliminaria a falsa ideia de eliminação dos direitos de uma geração antecedente pela subsequente92.

Não obstante isso, não parece recomendável a utilização do termo “dimensões” para substituir o vocábulo “gerações”, pois isso colabora com a já citada polissemia com que, em regra, a palavra “dimensão” é tratada pela literatura jurídica. Ressalte-se que, cien-tificamente, o termo “dimensões” já possui uma destinação específica, relacionada com o estudo da dupla dimensão aqui trabalhada. Desse modo, a utilização do mesmo vocábulo para designar outro fenômeno não se revela produtivo, ajudando a proliferar a indesejada polissemia.

A questão terminológica, no entanto, é a menos relevante das críticas à teoria das gerações dos direitos fundamentais. A substituição terminológica não elimina os pro-blemas estruturais e normativos da classificação em gerações ou dimensões dos direitos fundamentais93.

Apresenta-se assim a ausência de verdade histórica94 como segunda crítica à teoria das gerações, já que a teoria atacada realiza uma excessiva simplificação da realida-de, desprezando, por exemplo, o fato de haver a previsão de direitos sociais e culturais já nos primeiros documentos constitucionais do século XVIII95.

Pode-se citar a pós-revolucionária Constituição Francesa de 1791, que, em suas disposições fundamentais, já garante que “será criado e organizado um estabelecimento geral de socorros públicos para criar as crianças expostas, aliviar os pobres enfermos e pro-

90 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Ibidem. P. 31. SCHÄFER, Jairo. Classificação dos Direitos Fundamen-tais: do sistema geracional ao sistema unitário: uma proposta de compreensão. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. P. 39.

91 SARLET, Ingo Wolfgang. Ibidem. P. 45.

92 “Força é dirimir, a esta altura, um eventual equívoco de linguagem: o vocábulo ‘dimensão’ substitui, com van-tagem lógica e qualitativa, o termo ‘geração’, caso este último venha a induzir apenas sucessão cronológica e, portanto, suposta caducidade dos direitos das gerações antecedentes, o que não é verdade.” BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. P. 517.

93 Críticas mais severas foram apresentadas por Antônio Augusto Cançado Trindade em A proteção internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. São Paulo: Saraiva, 1991. P. 41 e ss. Em diferentes oportunidades, o autor também externou seu posicionamento sobre tal classificação (Transcrição do Seminário Direitos Humanos das Mulheres: A Proteção Internacional. Evento Associado à V Conferência Nacional de Direitos Humanos. Dia 25 de maio de 2000. Câmara dos Deputados, Brasília, DF. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/cancadotrindade/ cancado_bob.htm.). Essas críticas foram sistematizadas e aprofundadas por George Marmelstein em Criticas à Teoria das Gerações (ou mesmo Dimensões) dos Direitos Fundamentais. P. 171 e ss. Essas pesquisas foram im-portantes referenciais teóricos para as formulações abaixo.

94 MARMELSTEIN, George. Criticas à Teoria das Gerações (ou mesmo Dimensões) dos Direitos Fundamentais. In: Opinião Jurídica - Revista do Curso de Direito da Faculdade Christus - n. 03, ano 02, 2004.1. P. 174.

95 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Ibidem. P. 32

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ver trabalho aos pobres válidos que não o teriam achado”96. Há também a previsão de um sistema educacional: “será criada uma instrução pública comum a todos os cidadãos, gra-tuita em relação àquelas partes de ensino indispensáveis para todos os homens”97. Não bas-tasse isso, a carta constitucional assegura direitos de caráter cultural: “serão estabelecidas festas nacionais para conservar a lembrança da Revolução Francesa, manter a fraternidade entre os cidadãos, e ligá-los à Constituição, à Pátria e à lei”98. Vale também lembrar que a Constituicão Politica do Imperio do Brazil de 1824, com forte influência da carta francesa, também possuía a previsão dos socorros públicos e de um sistema educacional99.

Ademais, segundo Trindade, no âmbito do Direito Internacional, os direitos eco-nômicos e os sociais surgiram antes dos direitos individuais, pois as primeiras convenções da OIT são anteriores a criação da ONU. Dessa forma, enquanto os direitos à proteção das condições de trabalho da OIT são das décadas de 1920 e 1930, os direitos individuais são consagrados, internacionalmente, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos apenas em 1948100.

Dessa forma, nota-se que a teoria geracional apresenta a grave falha de ser uma classificação que se propõe a agrupar os direitos fundamentais utilizando o critério históri-co, mas que se revela historicamente imprecisa, já que, de fato, não houve a evolução dos direitos fundamentais na sequência apresentada pelo modelo geracional.

A terceira crítica encontra-se no aspecto funcional dos direitos fundamentais. A teoria das gerações afirma que cada geração de direitos corresponde a uma função, dis-tinguindo a primeira geração, em que os direitos possuiriam função de defesa, da segunda geração em que os direitos possuiriam função prestacional.

Ocorre que essa distinção funcional em gerações baseia-se em uma falsa duali-dade. Trata-se da equivocada noção de que os direitos de primeira geração seriam nega-tivos, que não exigiriam um fazer por parte do Estado, sendo, portanto, não onerosos, o que, supostamente, os diferenciaria dos direitos de segunda e terceira gerações, que seriam

96 Texto em: <http://www.fafich.ufmg.br/~luarnaut/const91.pdf> Acesso em 25.03.12.

97 Idem.

98 Idem.

99 “Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberda-de, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. (...) XXXI. A Constituição também garante os soccorros publicos. XXXII. A Instrucção primaria, e gratuita a todos os Cidadãos. XXXIII. Collegios, e Universidades, aonde serão ensinados os elementos das Sciencias, Bellas Letras, e Artes.”

100 “A analogia da ‘sucessão geracional’ de direitos, do ponto de vista da evolução do direito internacional nes-ta área, sequer parece historicamente correta; tudo indica haver um certo descompasso entre a evolução do direito interno e no direito internacional, evolução esta que não se deu pari passu. Assim, por exemplo, enquanto no direito interno o reconhecimento dos direitos sociais foi historicamente posterior ao dos direitos civis e políticos, no plano internacional ocorreu o contrário, conforme exemplificado pelas sucessivas e numerosas convenções internacionais do trabalho, a partir do estabelecimento da OIT”. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A proteção internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. São Paulo: Saraiva, 1991. P. 41.

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direitos prestacionais, exigindo uma conduta positiva por parte do Estado, implicando no gasto de verbas públicas101.

A distinção dos direitos fundamentais em prestacionais e não prestacionais é uma tese bastante equivocada, que não corresponde à realidade e à maneira pela qual a efeti-vação dos direitos fundamentais ocorre. É possível constatar em tal dicotomia uma forte influência ideológica. É conveniente a determinados interesses afirmar que os direitos indi-viduais são não prestacionais, podendo ter efetivação rápida, pois não envolveriam gastos estatais, enquanto os direitos sociais e difusos são prestacionais, exigindo ações estatais e, consequentemente, gastos públicos, não sendo, portanto, exigível do Estado sua efetivação imediata, o que os remete à condição de meros programas estatais, de normas desprovidas de aplicabilidade imediata, condicionadas a uma “reserva do possível”102.

Assim sendo, a afirmação de que os direitos individuais não exigem um fazer es-tatal ou gasto de dinheiro público está totalmente apartada da realidade, pois a análise dos gastos estatais com a proteção de direitos individuais revela a vultosa quantia empregada na defesa desses direitos103. As leis orçamentárias revelam, por exemplo, expressivos gas-tos com segurança pública, o que significa proteção aos diretos à vida e à propriedade. Há também os gastos no fomento de atividades econômicas, resultantes do estímulo à livre iniciativa104 etc.

101 MARMELSTEIN, George. Criticas à Teoria das Gerações (ou mesmo Dimensões) dos Direitos Fundamentais. P. 175.

102 “Essa falsa distinção, repetida sem muito questionamento por quase todos os juristas, é a responsável pela principal crítica que pode ser feita à teoria das gerações os direitos fundamentais, já que enfraquece bastante a norma-tividade dos direitos sociais”. Idem. Ibidem. P. 175.

103 “Ou seja, a liberdade pessoal não pode ser assegurada apenas por limitar a interferência do governo com a liberdade de ação e de associação. Nenhum direito é simplesmente o direito de ser deixado sozinho por funcionários públicos. Todos os direitos são reivindicações de uma resposta afirmativa do governo. Todos os direitos, descritiva-mente falando, na quantidade definida e protegida pela lei”. Livre Tradução. No original: “That is to say, personal liberty cannot be secured merely by limiting government interference with freedom of action and association. No right is sim-ply a right to be left alone by public officials. All rights are claims to an affirmative governmental response. All rights, descriptively speaking, amount to entitlements defined and safeguarded by law”. HOLMES, Stephen; SUSTEIN, Cass R. The Cost of Rights: Why Liberty depends on Taxes. New York-London: W.W. Norton & Company, 2000. P. 44.

104 “Uma simples análise do orçamento estatal no Brasil comprova que os direitos ditos de primeira geração exigem tantos gastos públicos quanto os direitos ditos de segunda geração. Basta ver o que se gasta com o Poder Judi-ciário, com as polícias e corpos de bombeiros, com os presídios, com as agências reguladoras (ANATEL, ANP etc.), com o processo eleitoral, com os conselhos de proteção da concorrência (p.ex. CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica) etc. para perceber que os chamados direitos civis e políticos também são bastante onerosos, e nem por isso é negada a possibilidade de interferência judicial para proteger esses direitos. Veja-se que aqui nem se mencionou o chamado ônus indireto, decorrente de renúncias fiscais que o Estado pratica para proteger alguns direitos de liberdade, como por exemplo, as imunidades tributárias dos templos de qualquer culto (art. 150, inc. VI, b, da CF/88) e dos livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão (art. 150, inc. VI, d, da CF/88), destinadas a assegurar, respecti-vamente, a liberdade religiosa e a liberdade de expressão. Também não se mencionou o dinheiro que os particulares gastam para poderem exercitar esses direitos (segurança particular, seguros, conselhos de regulação profissional, taxas judiciárias, campanhas eleitorais milionárias etc.)” MARMELSTEIN, George. Ibidem. Pp. 176 e 177.

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Com efeito, a realidade revela que para a concretização de quaisquer direitos fundamentais são necessárias a interação e a complementaridade de obrigações públicas e privadas, havendo a necessidade da ação estatal, em maior ou menor medida, para a efe-tivação de qualquer espécie de direito fundamental. O discurso do “fazer” versus “não fa-zer” remete os direitos sociais e difusos a condição de “subdireitos”, cuja aplicação está condicionada a fatores econômicos e orçamentários ou mesmo a uma imprecisa noção de vontade política.

Não se pode também deixar de observar que a falsa oposição entre direitos pres-tacionais e não-prestacionais decorre de uma má interpretação da teoria dos status de Jellinek, já que, como afirmado, há autores que realizam uma plena identificação entre os chamados direitos de primeira geração e o status negativo105, transmitindo a ideia de que a mera abstenção estatal seria suficiente para o respeito e preservação desses direitos.

Tal concepção não pode ser admitida, pois, como aqui já foi demonstrado, cada um dos status pode se manifestar em direitos fundamentais com diferentes conteúdos, se-jam direitos individuais, sociais ou difusos. Não se pode olvidar que os status possuem ca-ráter formal, independendo do conteúdo de tais direitos.

Como quarta crítica à teoria das gerações apresenta-se o problema da frag-mentação dos direitos fundamentais, uma vez que gera o isolamento dos direitos em gera-ções, atribuindo diferentes funções a cada grupo de direitos, o que contrasta com a caracte-rística da indivisibilidade dos direitos fundamentais. Nesses termos, não se pode ignorar o fato de tais direitos estarem permanentemente se completando e interagindo, o que torna irracional a compartimentação das normas de direitos fundamentais realizada pela teoria geracional106.

Essas críticas demonstram a fragilidade da teoria das gerações ou dimensões dos direitos fundamentais, sendo preocupante a repetição irrefletida de tal teoria no meio acadêmico e na jurisprudência, não somente em razão do aspecto científico de suas falhas metodológicas, mas, principalmente, por gerar uma hierarquização entre os direitos funda-mentais, garantindo a efetividade dos direitos da chamada primeira geração, mas causando a baixa normatividade daqueles direitos considerados de segunda e terceira gerações.

1.9 Teoria Fundamentadoras

São as teorias que inspiram filosoficamente direitos fundamentais. Assim, exis-tem diferentes formas dessas teorias. Dentre essas, destacam-se as que foram organizadas por Ernst-Wolfgang Böckenförde:

105 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. P. 517.

106 “A incindibilidade dos direitos fundamentais e a inexistência de diferenças estruturais entre variados tipos de direitos determinam a superação dos modelos teóricos embasados na separação estanque entre esferas dos direitos sociais (positivos e prestacionais) e dos direitos de liberdade (negativos)”. SCHÄFER, Jairo. Ibidem. P. 70.

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a) Liberal: Segue os postulados clássicos do Estado Liberal. Entende que os di-reitos fundamentais buscam a limitação do poder do Estado e a valorização da liberdade individual em sentido negativo, ou seja, vê a liberdade como ausência de impedimentos impostos pelo poder público. A ideia dos liberais é que o indiví-duo é livre, devendo o Estado intervir o mínimo possível na vida do cidadão.

b) Social: É uma reação à teoria liberal com base no princípio da solidariedade, compreende os direitos fundamentais como meios de desenvolvimento econô-mico dos indivíduos, permitindo que seus titulares tomem parte dos bens produ-zidos pela sociedade, gerando uma mobilidade social. Assim, além de assegurar a liberdade ao indivíduo, o Estado deve garantir um amparo mínimo ao indivíduo.

c) Institucional: É também uma reação à teoria liberal. Para a teoria institucional, os direitos fundamentais são concebidos, para além da dimensão individual-sub-jetiva, tratando-se de verdadeiros institutos constitucionais de defesa da própria ordem jurídica. Assim, os direitos fundamentais não somente defendem os direi-tos individuais, mas, em um aspecto mais objetivo, protegem a própria ordem jurídica.

d) Axiológica: Os direitos fundamentais são vistos como valores juridicamente protegidos. A teoria ganha força após a Segunda Guerra como reação ao posi-tivismo, dando proteção aos valores como forma de garantir o pluralismo. Com base em Smend, os direitos fundamentais são vistos como o resultado de opções axiológicas de uma comunidade e, por essa razão, constituem uma ordem de va-lores objetivada na Constituição.

e) Democrática-Funcional: É a mais contemporânea das teorias. Destaca os direi-tos como meios de participação da formação pública da opinião e da vontade, de modo que se confere cargas argumentativas a eles no processo democrático. São considerados funcionais, na medida em que são tidos como meios de garantia para o desenvolvimento do princípio democrático. Busca compreender os direi-tos fundamentais a partir da função pública e política. Seu caráter democrático nasce com a consagração de direitos voltados a um livre processo de produção democrática e de formação da vontade política. Já seu caráter funcional cresce na medida em que se utiliza da liberdade como meio de possibilitar e proteger referido processo.

Outra Classificação é a de Francisco Freijedo, que divide as teorias fundamenta-doras da seguinte forma:

a) Historicista: Os direitos fundamentais seriam o resultado de um processo de construção histórica.

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b) Jusnaturalista: Defende a existência de um direito anterior ao próprio Estado e ao direito positivo.

c) Juspositivista: Os direitos são exigíveis por estarem consagrados em docu-mentos jurídicos.

1.10 Norma Específica

Ao se examinar o debate científico sobre as normas de direitos fundamentais, constata-se a existência de sérias divergências conceituais em torno do tema. Para se en-tender o delineamento conceitual de tal espécie normativa, obviamente, faz-se necessário partir da própria noção de norma jurídica.

Com relação à norma jurídica, incontáveis páginas já foram escritas tentando-se alcançar um conceito preciso, no entanto, a divergência sobre tal definição parece distan-te do fim107. Assim sendo, é preciso realizar um corte epistemológico, fixando um sentido aceitável de norma jurídica para que se possa avançar na análise do que aqui se pretende analisar.

Nesse contexto, parte-se aqui do conceito semântico-deôntico de norma, ou seja, aquele que considera a norma como o resultado da interpretação da prescrição ou do man-damento formulável por meio de modais deônticos de permissão, obrigação ou proibição. O conceito aqui sustentado não almeja originalidade, coadunando-se com definições apre-sentadas por diferentes correntes normativas que vão de Kelsen108 a Alexy109.

107 Alguns exemplos podem ser citados para demonstrar a diversidade de tratamento da matéria: “O que efetiva-mente caracteriza uma norma jurídica, de qualquer espécie, é o fato de ser uma estrutura proposicional enunciativa de uma forma de organização ou de conduta, que deve ser seguida de maneira objetiva e obrigatória”. REALE, Miguel. Lições Preliminares do Direito. São Paulo: Saraiva, 2000. P. 95. “O dever-ser – a norma – é o sentido de um querer, de um ato de vontade, e – se a norma constitui uma prescrição, um mandamento – é o sentido de um ato dirigido à conduta de outrem, de um ato, cujo sentido é que um (ou outros) deve (ou devem) conduzir-se de determinado modo”. KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. (Allgemeine Theorie Der Normen). Tradução José Florentino Duarte. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1986. P. 3. “Norma jurídica (ou regra jurídica) é uma proposição de linguagem (texto de norma) incluída nas fontes do direito válidas em determinado país e lugar; seu significado é fixado no âmbito de interpretação jurídica; a norma jurídica objetiva regulamentar o comportamento social de forma imperativa, estabelecendo proibi-ções, obrigações e permissões. Na maioria dos casos, o descumprimento da norma está associado a sanções negati-vas”. DIMOULIS, Dimitri. Manual de Introdução ao Estudo do Direito. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2007. P 67.

108 Idem. Ibidem.

109 “Isso faz com que fique claro que o conceito de norma é, em face do conceito de enunciado normativo, o conceito primário. É recomendável, portanto, que os critérios para a identificação de norma sejam buscados no nível da norma, e não no nível do enunciado normativo. Tal critério pode ser formulado com o auxilio das modalidades deônticas, dentre as quais serão mencionadas, neste passo, apenas as modalidades básicas do dever, da proibição e da permissão. O que exatamente deve ser entendido por modalidades deônticas, quantas existem quais estruturas elas assumem e como se relacionam entre si é algo que será discutido mais adiante.” ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. P. 54.

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Assim sendo, a norma jurídica, sob a concepção aqui tratada, é o resultado de um processo hermenêutico que extrai um significado possível de um enunciado normativo (texto da norma) diante de um caso concreto.

Estabelecido o conceito semântico-deôntico como o conceito de norma jurídica capaz de servir de lastro para a formulação de uma definição de norma de direito funda-mental, afigura-se compatível com a teoria semântica, a noção de norma de direito fun-damental como aquela decorrente da interpretação do enunciado normativo presente em uma determinada Constituição, temporal e territorialmente especificada, distinta das de-mais normas constitucionais por gozar de aspectos formais e materiais caracterizadores de sua fundamentalidade, tal como acima já exposto.

Desse conceito de norma de direito fundamental extrai-se, portanto, como já adiantado, sua relação com o conceito semântico-deôntico de norma jurídica, sendo uma decorrência deste, restando claro que são consideradas normas de direitos fundamentais aquelas que podem ser semanticamente desdobradas, por meio da hermenêutica, dos mo-dais deônticos presentes nos enunciados normativos presentes no texto constitucional.

Assim sendo, pode-se passar a analisar a estrutura da norma de direito funda-mental com base na bastante difundida divisão de tais normas em dois grupos: as regras e os princípios.

A tese da separação entre regras e princípios é encontrada, na doutrina, sob dois enfoques: o da “demarcação forte”, que defende que a diferença é qualitativa, havendo dis-tinções tanto na estrutura como no conteúdo das normas; e o da “demarcação fraca”, que assegura que o aspecto diferenciador seria apenas estrutural, relacionado ao maior grau de generalidade dos princípios110.

A distinção entre regras e princípios com maior aceitação nos dias atuais é encontrada na obra Robert Alexy, baseando-se, em grande medida, no trabalho de Ronald Dworkin111, sendo caracterizada por defender uma diferenciação forte entre as espécies normativas. Em razão de seu alto grau aceitação, a teoria de Alexy será o fio condutor da análise estrutural das normas de direitos fundamentais aqui desenvolvida. Alexy diferencia

110 AARNIO, Aulis. Reglas y principios en el razonamiento Jurídico. Traducción: Pedro Serna In: Anuario da Facultad de Derecho de la Universidad da Coruña. Nº 4, págs. 593-602. Coruña: Universidade da Coruña, 2000. Pp. 593-594.

111 Deve-se frisar, no entanto, que há diferenças entre os trabalhos de Dworkin e Alexy. Desde a própria concep-ção das espécies normativas, pois o autor americano divide as normas em três espécies: regras, princípios e políticas (policys). Na teoria de Dworkin, princípios são diferentes de “políticas”, pois estas teriam um caráter social, enquanto aqueles um caráter individual. Nas palavras do autor: “Denomino ‘política’ aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade (...). Denomino ‘princípio’ um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação econô-mica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou eqüidade ou alguma outra dimensão da moralidade”. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução: Nelson Boeira. 3ª edição. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. P. 36.

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as duas espécies normativas com base nos seguintes critérios: grau de possibilidade de realização; forma do caráter mandamental; forma de resolução de conflitos; e aproximação de conteúdos axiológicos112.

O principal fator de distinção entre as espécies normativas, segundo Alexy, con-siste no fato de os princípios serem “mandamentos de otimização”, que significa que podem ser realizados em graus variados, ou seja, pode-se atender ao que é proposto pelo princí-pio em maior ou menor medida, dependendo das condições fáticas e jurídicas relativas ao caso113. Nesse sentido, mesmo que a efetivação de um princípio não seja plena, isso não significa que tal norma seja inválida. As regras, ao contrário, não possuem graus possíveis de realização, caso não sejam plenamente satisfeitas, estarão imediatamente violadas114. Assim sendo, nota-se que Alexy distingue regras e princípios utilizando como critério o grau de possibilidade de realização da norma. Enquanto princípios possuem graus variados de efetivação, as regras são pautadas por realização de “tudo ou nada”115.

Decorrente do fato de os princípios serem “mandamentos de otimização” emana o segundo fator distintivo, que é o da forma do caráter mandamental, pois, segundo Alexy, os princípios expressam um caráter prima facie, enquanto as regras contêm um “manda-mento definitivo”, ou seja, como os princípios determinam algo que deve ser realizado na maior medida possível (mandamento de otimização), não há maneira de o mandamento normativo apresentar toda a extensão de seu conteúdo, mas apenas indicar seu primeiro sentido. As regras, ao contrário, exigem que seja feito exatamente aquilo presente em seu mandamento normativo, por isso, necessitam externar amplamente suas possibilidades fáticas e jurídicas, o que faz com que se afirme que possuem o caráter de mandamentos definitivos116.

112 Apesar de aqui ser desenvolvida a teoria principiológica com base em Robert Alexy, não se pode deixar de mencionar original teorização nacional sobre o assunto: ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplica-ção dos princípios jurídicos. 5ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2006. Pp. 156-157.

113 ALEXY, Robert. Sobre a Estrutura dos Princípios Jurídicos. In: Revista Internacional de Direito Tributário. Associa-ção Brasileira de Direito Tributário – ABRADT. Belo Horizonte: Del Rey, vol. 3, jan./jun., 2005.

114 No mesmo sentido: ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: Ley, derechos, justicia. Traducción de Marina Gascón. Editorial Trotta: Madrid, 2009. P. 110.

115 “O decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja reali-zado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes, princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes.” ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. P. 90

116 “Uma primeira característica importante que decorre do que foi dito até agora é o distinto caráter prima facie das regras e dos princípios. Princípios exigem que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilida-des jurídicas e fáticas existentes. Nesse sentido, eles não contêm um mandamento definitivo, mas apenas prima facie. Da relevância de um principio em um determinado caso não decorre que o resultado seja aquilo que o princípio exige para esse caso. Princípios representam razões que podem ser afastadas por razões antagônicas. A forma pela qual deve ser determinada a relação entre razão e contra-razão não é algo determinado pelo próprio princípio. Os princípios, por-tanto, não dispõem da extensão de seu conteúdo em face dos princípios colidentes e das possibilidades fáticas”. Idem. Ibidem. Pp. 103-104.

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Outro critério decisivo de distinção entre regras e princípios consiste na forma de resolução de conflitos, já que, segundo o autor de Kiel, quando os princípios entram em conflito, não há a necessidade de um princípio ser declarado inválido para que o outro possa prevalecer, havendo apenas uma precedência condicionada em uma determinada situação de um dos princípios. Já as regras resolvem seus conflitos por meio da invalidação de uma das duas normas em choque, através de regras de solução de antinomia117.

Quanto ao critério da forma de resolução de conflitos, nota-se a forte influência do pensamento de Dworkin sobre Alexy, já que o autor americano ressalta que os princípios possuem uma “dimensão de peso”, que as regras não possuem, fazendo com que os princí-pios, em caso de embate normativo, exijam ponderação, enquanto as regras baseiam-se em uma lógica de “tudo ou nada”118.

Há ainda a diferença baseada no critério de aproximação da espécie normativa de conteúdos axiológicos, pois, como já foi citado no tópico acima, Alexy estabelece uma correlação entre princípios e valores, afirmando que ambos apresentam o mesmo com-portamento no que tange aos casos de “colisão”, “ponderação” e “cumprimento gradual”, funcionando os princípios como “critérios de valoração”, que são aqueles que podem ser sopesados. Nesses termos, os princípios são espécies normativas que possuem aproxima-ção com conteúdos axiológicos, enquanto as regras são desprovidas dessa característica119.

Essas são, portanto, as diferenças básicas, já tidas por muito como clássicas, entre princípios e regras, que seriam, deste modo, as duas estruturas básicas pelas quais as normas de direitos fundamentais podem se apresentar. Deve-se pontuar que, no Brasil, a distinção forte entre princípios e regras é francamente majoritária na literatura jurídica, contudo, várias críticas vêm sendo levantadas ante tal dicotomia como abaixo será exposto.

Teoricamente, direitos fundamentais podem ser princípios ou regras, em que pese, na prática, em sua maioria, serem tratados como princípios.

117 “A colisão entre princípios devem ser solucionados de forma completamente diversa. Se dois princípios coli-dem – o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um principio e, de acordo com o outro, permi-tido -, um dos princípios terá que ceder. Isso significa, contudo, nem que o principio cedente deva ser declarado invá-lido, nem que nele deverá ser introduzida uma clausula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras condições a questão da procedência pode ser resolvida de forma oposta. Isso é o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm pesos diferentes e que os princípios com o maior peso têm procedência. Conflitos entre regras ocorrem na dimensão da validade, enquanto as colisões entre princípios – visto que só princípios validos podem colidir – ocorrem, para além dessa dimensão, na dimensão do peso.” Idem. Ibidem. Pp. 94-95.

118 DWORKIN, Ronald. Ibidem. Pp. 42-43.

119 ALEXY, Robert. Ibidem. P. 144.

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ÎCríticas à distinção entre princípios e regras.

Não obstante a teoria principiológica tenha recebido ampla aceitação no cenário jurídico brasileiro120, tal tese é alvo de sérias críticas, tanto sob a formulação de Dworkin121, como nos moldes acima apresentados por Alexy122, o que encontra correspondência em âm-bito nacional123. Tendo em conta que, como acima afirmado, a exposição aqui desenvolvida está focada na teoria principiológica mais difundida e aceita, isto é, a de Alexy, as críticas a seguir apresentadas manterão tal coerência, permanecendo concentradas no trabalho de tal autor.

As críticas centrais à teoria principiológica de Alexy podem ser resumidas da se-guinte forma: ausência de limite do potencial descritivo (“crítica epistemológica: ‘irrefu-tabilidade’ do reconhecimento”); incompatibilidade com o conceito semântico de norma; incompreensão hermenêutico-metodológica; “retrocesso na conceituação de regra”; “au-tocontradição no que tange à noção de otimização”.

A primeira crítica, aqui chamada de ausência de limite do potencial descritivo, é apresentada por Leonardo Martins, com base em Ralf Poscher, sob a designação de “‘irre-futabilidade’ do reconhecimento”124. Essa crítica, lastreada no conceito epistemológico de refutabilidade ou falseabilidade, ataca o potencial descritivo quase ilimitado da teoria prin-cipiológica, o que significa que qualquer fenômeno pode ser sintetizado em um modelo de princípio. Assim sendo, por meio de tal formulação, qualquer decisão pode ser alcançada, seja o julgamento em um sentido ou no sentido diametralmente oposto, os dois entendi-mentos podem ser descritos por meio da formulação principiológica.

Leonardo Martins demonstra a crítica analisando a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 855-2, o caso da pesagem dos botijões de gás. O autor expõe que o método da ponderação de princípios, tratado como se proporcionalidade fosse pelo STF, permitia que tanto o princípio da liberdade empresarial, escolhido pelo tribunal no caso, como o da defesa do consumidor, o extremo oposto em tal situação, poderiam ter recebido preferência

120 Por todos: SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2010. P. 43 e ss.

121 RAZ, Joseph. Legal Principles and the Limits of Law. In: The Yale Law Journal. Vol. 81: 823. New Haven: Yale Uni-versity Press, 1972. PECZENIK, Aleksander. Taking Laws Seriously. In: Cornell Law Review. Vol. 68:660. 1982-1983. Ithaca: Cornell University Press, 1983.

122 POSCHER, Ralf, The Principle Theory: How Many Theories and What is Their Merit?. In: KLATT, Matthias (org.). Institutionalizing Reason: Perspectives on the Legal Philosophy of Robert Alexy. Nova York: Oxford University Press, 2009. AARNIO, Aulis. Las reglas en serio. In: AARNIO, Aulis; VALDÉS, Ernesto Garzón; UUSITALO, Jyrki (coord.). La normatividad del derecho. Barcelona: Gedisa, 1997.

123 MARTINS, Leonardo. Liberdade e Estado Constitucional: leitura jurídico-dogmática de uma complexa relação a partir da teoria liberal dos direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012. NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: princí-pios e regras constitucionais. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

124 MARTINS, Leonardo. Ibidem. P. 77.

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no julgado125.

A segunda crítica consiste na incompatibilidade de uma separação forte entre regras e princípios com o conceito semântico de norma. Como já foi acima exposto, o con-ceito semântico considera como normas o resultado do desdobramento hermenêutico dos modais deônticos presentes nos enunciados normativos. Dessarte, se a norma é o produto da interpretação, e, em tal processo hermenêutico, os aspectos linguísticos do texto nor-mativo e o conjunto dos fatos que compõe a realidade devem ser levados em consideração, chegar-se-á, ao final de tal método interpretativo, a uma regra para o caso concreto, o que dispensa a distinção apriorística entre regras e princípios.

Essa segunda crítica deriva da obra de Aulis Aarnio. Tal como afirma o autor fin-landês, os enunciados normativos – sejam correspondentes às normas chamadas de regras ou princípios – podem se apresentar prima facie (PF) de forma precisa ou imprecisa, vaga ou definida. Essas expressões textuais também podem ser mais ou menos axiologicamente abertas, por isso, sob a perspectiva linguística, não é possível sustentar a distinção entre regras e princípios.

O fato de os enunciados normativos poderem guardar ambigüidades é que faz necessária uma interpretação argumentativa “tomando em conta todos os fatores” (TCF). “Desse modo, um significado TCF de uma expressão é sempre, por definição, mais preciso que um significado PF. Tomando em consideração todos os fatores, assinala-se um certo significado (N1), a formulação da norma”126, ou seja, a regra aplicável a tal caso. Nesses ter-mos, Aarnio sustenta um conceito de regra juridicamente flexível, resultado do processo interpretativo, em oposição à distinção entre regras e princípios127.

A terceira crítica revela-se como uma consequência da segunda, asseverando que a distinção entre regras e princípios, principalmente no que tange ao critério de dis-

125 MARTINS, Leonardo. Ibidem. Pp. 78-81. Vale conferir a ementa: “Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Lei 10.248/93, do Estado do Paraná, que obriga os estabelecimentos que comercializem Gás Liquefeito de Petróleo - GLP a pesarem, à vista do consumidor, os botijões ou cilindros entregues ou recebidos para substituição, com abatimento proporcional do preço do produto ante a eventual verificação de diferença a menor entre o conteúdo e a quantidade líquida especificada no recipiente. 3. Inconstitucionalidade formal, por ofensa à competência privativa da União para legislar sobre o tema (CF/88, arts. 22, IV, 238). 4. Violação ao princípio da proporcionalidade e razoabilidade das leis res-tritivas de direitos. 5. Ação julgada procedente”. (ADI 855, Relator(a): Min. OCTAVIO GALLOTTI, Tribunal Pleno, julgado em 06/03/2008, DJe-059 DIVULG 26-03-2009 PUBLIC 27-03-2009 EMENT VOL-02354-01 PP-00108).

126 Livre tradução. No original: “De este modo, un significado TCF de una expresión es siempre, por definición, más preciso que un significado PF. Tomando en consideración todos los factores, se ha asignado un cierto significado (N1) a la formulación de norma”. AARNIO, Aulis. Ibidem. P. 26.

127 “Assim, todos os enunciados normativos e todas as normas estão TCF na mesma posição. Isto também é visto claramente em uma situação em que dois princípios valorativos entram em conflito. Ambos são PF válidos. Quando são interpretados TCF ‘entrecruzam-se’ e juntos constituem a regra que se aplica ao caso”. Livre tradução. No original. “Así, todas las formulaciones de normas y todas las normas están TCF en la misma posición. Esto también se ve claramente en una situación en la que dos principios valorativos entran en conflicto. Ambos son PF válidos. Cuando son interpre-tados TCF <<se entrecruzan>> y juntos constituyen la regla que se aplica al caso”. AARNIO, Aulis. Ibidem. P. 26.

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tinção da forma de resolução de conflitos, incorre em uma incompreensão hermenêu-tico-metodológica do sistema jurídico. Tal se afirma, pois, como já foi demonstrado, par-tindo-se de um conceito semântico de norma, a interpretação com base em todos os fatos produzirá uma regra, sendo esta norma do caso concreto a solução dos aparentes conflitos entre os enunciados normativos abstratamente considerados.

Essa terceira crítica pode também ser encontrada em Ralf Poscher128, quando o autor afirma que, no que tange aos conflitos normativos, regras e princípios comportam--se de forma estruturalmente idêntica, pois o sistema jurídico reage a tais colisões do mes-mo modo, ou seja, por meio da formulação de “regras independentes”, também chamadas “cláusulas de exceção”129. Aquilo que Poscher designa de “regras independentes” ou “clau-sulas de exceção” equivale ao que Aarnio chama de “regras juridicamente flexíveis”, isto é, o produto hermenêutico do sistema jurídico.

A quarta crítica também é apresentada por Leonardo Martins com base em Ralf Poscher. A presente censura pauta-se no “retrocesso na conceituação de regra”, decor-rente da distinção entre as duas espécies normativas. Tal oposição faz sentido, quando se observa que o conceito de regra presente na teoria principiológica de Alexy é bastante res-trito, enquadrando-se em tal definição apenas normas que exigem uma baixíssima carga argumentativa130.

O que se observa é que a tese de Alexy subestima a noção de regra, pois a trata como um mandamento definitivo, com baixa carga de abstração e generalidade, além de não guardar correspondência com o conteúdo axiológico, o que foi reservado apenas para os princípios em tal teoria. Não obstante isso, analisando-se os enunciados normativos pre-sentes no texto da Constituição e no restante do ordenamento, nota-se que esses critérios

128 POSCHER, Ralf. Ibidem. P. 20.

129 “Uma análise de como o sistema legal de fato lida com colisão entre normas mostra, no entanto, que as regras e princípios são estruturados de forma idêntica e diferem apenas em seus conteúdos contingentes dentro de uma es-trutura normativa única. Isso se torna especialmente evidente, quando examinamos como e quão diferente-colisões entre as normas são abordados. O sistema jurídico reage aos conflitos entre normas com regras de conflito, que variam consideravelmente em conteúdo. Estas regras de conflito podem ser representadas de várias formas como regras inde-pendentes ou como cláusulas de exceção integradas às regras conflitantes. Assim, essas normas de conflito conduzem a uma anulação de uma das normas conflitantes ou são incorporadas como normas excepcionais em uma ou em ambas as normas, evitando assim o conflito de normas completamente. Otimização por meio de sopesamento é apenas um possível conteúdo de tais cláusulas de exceção.”. Livre Tradução. No original: “An analysis of how legal system in fact handles collision between norms show, however, that rules and principles are structured identically and differ only in their contingent contents within a single normative structure. This becomes especially apparent when we examine how-and how differently- collisions between norms are tackled. The legal system reacts to conflicts between norms with conflict rules that vary considerably in content. These conflict rules can be depicted variously as independent rules or as exception-clauses integrated into the conflicting rules. Thus, these conflict rules lead either to the invalidation of one of the conflicting norms or are incorporated as exception clauses into one or both of the norms, thus avoiding the conflict of norms altogether. Optimization by means of balancing is merely one possible content of such an excep-tion-clause”. POSCHER, Ralf. Ibidem. P. 21.

130 MARTINS, Leonardo. Ibidem. P. 81.

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distintivos são muito pouco claros diante da pluralidade de enunciados existentes, sendo um exercício nada profícuo tentar estabelecer uma classificação rígida com base em tais elementos131.

A quinta crítica é a da autocontradição no que tange à noção de otimização, mais uma vez, apresentada por Leonardo Martins. Esta crítica resulta de uma tentativa de reparo da teoria principiológica original, desenvolvido pelos seus próprios defensores, que passaram a reconhecer que a noção de mandamento de otimização, na verdade, expressa--se sob uma lógica de tudo ou nada, ou seja, possui um formato de regra132. Nesses termos, gera-se uma contradição insustentável, afinal, como podem os princípios serem manda-mentos de otimização e os mandamentos de otimização serem regras? A conclusão é: prin-cípios são regras!

Nesses termos, houve a necessidade de se alterar o conceito de princípios, sendo não mais “mandamentos de otimização”, mas “mandamentos a serem otimizados”, ou seja, os princípios passaram a não mais ser os catalizadores da otimização, mas o objeto de tal otimização. Com isso, os princípios foram alçados a um nível ainda mais abstrato e de difícil conceituação, passando a constituir, segundo Alexy, não um elemento do mundo do “dever ser” (Sollen) 133, mas de uma esfera do “dever ser ideal” (ideales Sollen)134.

Inobstante a tentativa de salvar a teoria principiológica, resta notória a tautologia da formulação do “dever ser ideal”. Ademais, essa tese incorre no equívoco, apontado por Müller e acima tratado, de cindir Direito e realidade. Com efeito, todas as críticas aqui apre-sentadas parecem chagas fazendo a teoria principiológica sangrar.

Diante de tudo até aqui apresentado, mormente, o conceito semântico de nor-ma jurídica e seu derivado conceito de norma de direitos fundamentais, compreende-se a norma de direitos fundamentais como o significado uma peculiar força normativa formal e material extraível de determinados textos normativos.

131 Com base em motivos semelhantes, Aarnio chega a defender que os enunciados normativos podem ser apre-sentados – apenas sob o ponto de vista linguístico – de forma escalonada, havendo assim “regras”, “regras como prin-cípios”, “princípios como regras” e “princípios”. Além disso, Aarnio também afirma que mesmo as regras podem se apresentar axiologicamente abertas. Adaptando tal idéia ao direito brasileiro, um exemplo de regra aberta aos valores poderia ser o art. 128 do Código Civil: “Sobrevindo a condição resolutiva, extingue-se, para todos os efeitos, o direito a que ela se opõe; mas, se aposta a um negócio de execução continuada ou periódica, a sua realização, salvo disposição em contrário, não tem eficácia quanto aos atos já praticados, desde que compatíveis com a natureza da condição pen-dente e conforme aos ditames de boa-fé”.

132 Com destaque um dos principais alunos de Alexy: BOROWSKI, Martin. Grundrechete als Prinzipien: Die Unter-scheidung von Prima Facie position und definitive position als fundamentaler Konstruktionsgrundsatz der Grundrechte. Baden-Baden: Nomos, 1998. Pp. 76 e ss. Apud: Martins, Leonardo. Ibidem. P. 82.

133 ALEXY, Robert. Ibidem. P. 139.

134 Para uma análise mais detida sobre a idéia de “dever-ser ideal” nas palavras do próprio Alexy cfr: Idem. La construcción de los Derechos Fundamentales. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2010. Pp. 40-64.

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Além disso, não se pode aceitar uma distinção estrutural forte das normas jurídi-cas de direitos fundamentais entre princípios e regras, pois isso implicaria em um menos-prezo da própria noção de regra, bem como de uma noção imprecisa da influência axiológi-ca sobre as normas o que levaria a uma incorreta aplicação de tais normas jurídicas.

Com efeito, apenas se pode aceitar uma distinção fraca entre princípios e regras baseada na forma de apresentação de cada uma dessas hipóteses normativas, visto que, ge-ralmente, as regras são apresentadas por enunciados prescritivos, enquanto princípios são expostos através de comandos abertos não preocupados em trazer comandos expressos, compreendendo-se isso como uma noção primaz, pois se sabe que de determinados enun-ciados normativos podem ser retiradas tanto regras como princípios. Registre-se, todavia, que esta posição ainda é minoritária no Brasil.

RESUMO:

A maioria da literatura entende que a estruturação das normas de direitos fun-damentais divide-se em princípios e regras. Esses dois institutos podem ser diferenciados sob diferentes aspectos:

a) Quanto ao caráter prima facie versus mandamentos definitivos: Nesse senti-do, os princípios apresentam um caráter prima facie, demonstrando, sem gran-des detalhamentos do que tratam, diferentemente das regras que são mais es-pecificas.b) Quanto à definição ou não de comandos prescritivos: Os princípios não são prescritivos, sendo mais gerais, ou seja, não trazem uma hipótese fática, que em ocorrendo tem uma prescrição prevista. As regras, por sua vez, especificam seus comandos prescritivos, detalham o que ocorrerá em caso de incidência da da hipótese fática que trazem.c) Quanto ao grau de abstração: Os princípios apresentam alto grau de abstra-ção. As regras são mais concretas.d) Quanto ao fator mandado de otimização: Os princípios podem ser realizados em diversos graus de otimização, ao passo em que as regras não os possuem, funcionando em uma lógica de aplicação integral ou não aplicação.e) Quanto aos casos de conflito: No caso de conflitos de princípios, é possível realizar a ponderação. Por seu turno, as regras são aplicadas utilizando uma ló-gica de “tudo ou nada”. f) Quanto à carga axiológica: Os princípios possuiriam alta carga axiológica, en-quanto as regras seriam de baixa carga.

Teoricamente, direitos fundamentais podem ser princípios ou regras, em que pese, na prática, em sua maioria, serem tratados como princípios.

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Embora majoritária, a distinção forte entre princípios e regras sofre severas crí-ticas, merecem destaque:

a) Quanto à ausência de limite do potencial descritivo (“crítica epistemológica: ‘irrefutabilidade’ do reconhecimento”): por esta crítica, decisões em um sentido ou no extremamente oposto podem ser baseadas na teoria principiológica; b) Quanto à incompatibilidade com o conceito semântico de norma: A norma é aquilo que se extrai de um processo de interpretação. Assim, o resultado de um processo de interpretação, sempre vai ser algo mais detalhado, aproximando-se do conceito de regra.c) Quanto à incompreensão hermenêutico-metodológica: As normas são resul-tados do processo de interpretação e como tal, os critérios que se utilizam para distinguir princípios e regras não considerados nessa interpretação, mas sim o texto da norma, ou seja, para diferenciar os institutos se analisa o texto da nor-ma e não a norma em si.d) Quanto ao “retrocesso na conceituação de regra”: A conceituação clássica de regra diminui a importância das regras, as quais teriam baixa carga axiológica, não seriam abstratas, não seriam ponderáveis etc.e) Quanto à “autocontradição no que tange à noção de otimização”: Segundo essa crítica, o conceito de “mandamento de otimização” equivaleria a um con-ceito de regra, logo, todo princípio, em sendo um mandamento de otimização, acabaria sendo uma regra, o que é uma manifesta contradição.

1.11 Classificações Importantes

As classificações buscam organizar as noções gerais sobre os direitos fundamen-tais. A seguir, vejamos as principais classificações trazidas pela doutrina.

1.11.1 Quanto aos titulares

Esta classificação usa como critério distintivo a perspectiva do sujeito a ser bene-ficiado pelo direito fundamental:

a) Individuais: São direitos de sujeitos singularmente considerados (Ex: Direito à Integridade Física);b) Coletivos: São direitos de grupos sociais (Ex: Direito a gratuidade do transporte urbano para os idosos).c) Sociais: São direitos pensados para a sociedade como um todo, ou seja, indo além apenas dos indivíduos e dos grupos. Visam a proteger todo grupo humano de determinado Estado (Ex: Direito à Saúde).d) Difusos: São direitos que transcendem o aspecto individual, coletivo e social, buscando beneficiar toda a humanidade (Ex: Direito ao Meio Ambiente).

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1.11.2 Quanto à natureza

Esta classificação considera o conteúdo do direito fundamental que visa a proteger:

a) Civis: São direitos que visam a tutelar aspectos da vida privada do indivíduo (Ex: Direito à imagem e à honra).b) Políticos: São direitos de participação do cidadão no Estado (Ex: Direito de vo-tar e de ser votado).c) De Nacionalidade: São direitos de ser cidadão de um determinado Estado (Ex: Direito de não extradição do brasileiro nato).d) Sociais: São direitos que buscam dar acesso às pessoas a bens mínimos produ-zidos pela Sociedade (Ex.: Direito à saúde, à educação etc.)e) Econômicos: São os direitos relacionados ao desenvolvimento econômico (Ex.: Direito ao livre exercício de qualquer atividade econômica).f) Culturais: São os direitos que propiciam o acesso à arte e à cultura em geral (Ex.: Direito de acesso à cultura nacional).

1.11.3 Histórica ou Quanto às Gerações (ou dimensões):

Esta classificação divide os direitos fundamentais em:

a) 1ª Geração;b) 2ª Geração;c) 3ª Geração;d) 4ª Geração;e) 5ª Geração.

Esta classificação foi exaustivamente abordada no item 1.7 acima.

1.11.4 Classificação Constitucional (Título II)

A Constituição de 1988, por sua vez, faz a seguinte classificação:

a) Direitos Individuais e coletivos: Previstos no art. 5°;b) Direitos Sociais: Previstos do art. 6° ao art. 11;c) Direitos de Nacionalidade: Previstos nos arts. 12 e 13;d) Direitos Políticos: Previstos nos arts. 14, 15 e 16;e) Direitos de Participação em Partidos Políticos e sua existência e organização: Previstos no art. 17.

Vale destacar, no entanto, que a divisão constitucional não significa que somente são localizados direitos fundamentais no Título II da CF/88. Outros direitos básicos estão

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espalhados no texto constitucional, gozando, portanto, de fundamentalidade formal e ma-terial, logo, sendo fundamentais, por exemplo, o direito ao meio ambiente já na parte final da Constituição.

1.12 Titularidade

Inicialmente, deve-se atentar para a diferenciação entre a titularidade e a desti-nação dos direitos fundamentais. Titular é aquele que se beneficia do direito, destinatário, por sua vez, corresponde a quem está obrigado pelo direito fundamental.

De modo geral, sem adentrar nas peculiaridades de cada direito, apenas para pontuar a diferença entre titularidade e destinação, pode-se dizer que o titular de direito fundamental é a pessoa, enquanto o principal destinatário é o Estado. Ver-se-á, em momen-to oportuno, que isso é bem mais complexo.

Não bastasse essa observação inicial, vale relembrar a característica da univer-

salidade, que afirma que todo ser humano é titular dos direitos fundamentais. No entanto, como já visto, nem todo direito fundamental vai ser titularizado por todos os seres huma-nos, podendo haver direitos para grupos humanos específicos, por exemplo, direitos ape-nas para mulheres ou apenas para os indígenas etc.

Assim sendo, nota-se que não basta afirmar que todos os seres humanos são ti-tulares de direitos fundamentais. Deve-se analisar cada direito ou, o mínimo, cada grupo de direitos para delimitar essa titularidade. Aqui, por ora, será analisada a titularidade dos direitos individuais. Os demais serão analisados quando de seu trato específico.

No que diz respeito aos Direitos Individuais, assinala o Art. 5º, da CRFB/88:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer na-tureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

Diante da previsão acima, surge alguns questionamentos quanto a titularidade em casos específicos de direitos fundamentais.

1.12.1 Estrangeiros Não Residentes têm o mesmo rol de direitos do art. 5º, da CRFB/88?

Corrente minoritária, capitaneada por Dimoulis e Martins, afirma que os Estran-geiros não residentes não são titulares dos direitos individuais do art. 5º, dada a necessida-de de interpretação gramatical mínima do artigo em questão.

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A literatura majoritária, contudo, entende que todos os estrangeiros, sejam resi-dentes ou não, são protegidos pelos direitos individuais do art. 5º. Esse também é o posicio-namento pacífico do STF:

Evidencio (...) que a condição de estrangeiro sem residência no País não afasta, por si só, o benefício da substituição da pena. [HC 94.477, voto do rel. min. Gilmar Mendes, j. 6-9-2011, 2ª T, DJE de 8-2-2012.]

O súdito estrangeiro, mesmo aquele sem domicílio no Brasil, tem di-reito a todas as prerrogativas básicas que lhe assegurem a preserva-ção do status libertatis e a observância, pelo poder público, da cláu-sula constitucional do due process. O súdito estrangeiro, mesmo o não domiciliado no Brasil, tem plena legitimidade para impetrar o remédio constitucional do habeas corpus, em ordem a tornar efe-tivo, nas hipóteses de persecução penal, o direito subjetivo, de que também é titular, à observância e ao integral respeito, por parte do Estado, das prerrogativas que compõem e dão significado à cláusula do devido processo legal. A condição jurídica de não nacional do Bra-sil e a circunstância de o réu estrangeiro não possuir domicílio em nosso país não legitimam a adoção, contra tal acusado, de qualquer tratamento arbitrário ou discriminatório. [HC 94.016, rel. min. Celso de Mello, j. 16-9-2008, 2ª T, DJE de 27-2-2009.]

1.12.2 Pessoas Jurídicas têm Direitos Fundamentais?

As pessoas jurídicas de Direito Privado têm direitos fundamentais, desde que compatíveis com a sua natureza de pessoa jurídica. Nesses termos, seriam titulares de direi-to à honra e à imagem, por exemplo, mão não teriam direito de manejar um habeas corpus em nome próprio para resguardar seu direito de ir e vir, visto ser isso incompatível com sua existência técnica e não biológica.

Por sua vez, as pessoas jurídicas de Direito Público, conforme a doutrina e juris-prudência, não possuem direitos fundamentais, salvo os direitos processuais de estar em juízo defendendo suas prerrogativas e seu patrimônio, tendo em vista que estas são desti-natários e não titulares de direitos fundamentais. Esse posicionamento foi recentemente adotado pelo STJ, em destaque:

DIREITO CIVIL-CONSTITUCIONAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. INFOR-MAÇÕES VEICULADAS EM REDE DE RÁDIO E TELEVISÃO. AÇÃO INDE-NIZATÓRIA POR DANO MORAL AJUIZADA POR MUNICÍPIO CONTRA O PARTICULAR. IMPOSSIBILIDADE.DIREITOS FUNDAMENTAIS. PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO. RECONHECIMENTO LIMITADO.

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1. A tese relativa à indenização pelo dano moral decorrente de ofensa à honra, imagem, violação da vida privada e intimidade das pessoas somente foi acolhida às expressas no ordenamento jurídico brasilei-ro com a Constituição Federal de 1988 (artigo 5º, incisos V e X), que o alçou ao seleto catálogo de direitos fundamentais. Com efeito, por essa ótica de abordagem, a indagação acerca da aptidão de alguém sofrer dano moral passa necessariamente pela investigação da pos-sibilidade teórica de titularização de direitos fundamentais, especi-ficamente daqueles a que fazem referência os incisos V e X do art. 5º da Constituição Federal.2. A inspiração imediata da positivação de direitos fundamentais resulta precipuamente da necessidade de proteção da esfera indivi-dual da pessoa humana contra ataques tradicionalmente praticados pelo Estado. (...).3. Em razão disso, de modo geral, a doutrina e jurisprudência nacio-nais só têm reconhecido às pessoas jurídicas de direito público direi-tos fundamentais de caráter processual ou relacionados à proteção constitucional da autonomia, prerrogativas ou competência de enti-dades e órgãos públicos, ou seja, direitos oponíveis ao próprio Esta-do e não ao particular. Porém, ao que se pôde pesquisar, em se tra-tando de direitos fundamentais de natureza material pretensamente oponíveis contra particulares, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal nunca referendou a tese de titularização por pessoa jurídica de direito público. Na verdade, há julgados que sugerem exatamente o contrário, como os que deram origem à Súmula n. 654, assim redi-gida: “A garantia da irretroatividade da lei, prevista no art. 5º, XXXVI, da Constituição da República, não é invocável pela entidade estatal que a tenha editado”.4. Assim, o reconhecimento de direitos fundamentais - ou faculda-des análogas a eles - a pessoas jurídicas de direito público não pode jamais conduzir à subversão da própria essência desses direitos, que é o feixe de faculdades e garantias exercitáveis principalmente con-tra o Estado, sob pena de confusão ou de paradoxo consistente em se ter, na mesma pessoa, idêntica posição jurídica de titular ativo e passivo, de credor e, a um só tempo, devedor de direitos fundamen-tais, incongruência essa já identificada pela jurisprudência do Tri-bunal Constitucional Alemão (BVerfGE 15, 256 [262]; 21, 362. Apud. SAMPAIO, José Adércio Leite. Teoria da Constituição e dos direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2013 p. 639).5. No caso em exame, o reconhecimento da possibilidade teórica de o município pleitear indenização por dano moral contra o particu-lar constitui a completa subversão da essência dos direitos funda-

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mentais, não se mostrando presente nenhum elemento justificador do pleito, como aqueles apontados pela doutrina e relacionados à defesa de suas prerrogativas, competência ou alusivos a garantias constitucionais do processo. Antes, o caso é emblemático e revela todos os riscos de se franquear ao Estado a via da ação indenizatória.6. Pretende-se a responsabilidade de rede de rádio e televisão local por informações veiculadas em sua programação que, como alega o autor, teriam atingido a honra e a imagem da própria Municipalida-de. Tal pretensão representa real ameaça a centros nervosos do Es-tado Democrático de Direito, como a imprensa livre e independente, ameaça que poderia voltar-se contra outros personagens igualmen-te essenciais à democracia.7. A Súmula n. 227/STJ constitui solução pragmática à recompo-sição de danos de ordem material de difícil liquidação - em regra, microdanos - potencialmente resultantes do abalo à honra objetiva da pessoa jurídica. Cuida-se, com efeito, de resguardar a credibili-dade mercadológica ou a reputação negocial da empresa, que po-deriam ser paulatinamente fragmentadas por violações a sua ima-gem, o que, ao fim e ao cabo, conduziria a uma perda pecuniária na atividade empresarial. Porém, esse cenário não se verifica no caso de suposta violação à imagem ou à honra - se existente - de pessoa jurídica de direito público.8. Recurso especial não provido.(REsp 1258389/PB, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 17/12/2013, DJe 15/04/2014)