curso cebes 2011: gestão pública e relação público privado na saúde

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Material disponibilizado no Curso de Formação em Cidadania para a Saúde com o tema "Reforma do Estado e Gestão da Saúde", promovido pelo CEBES (Centro Brasileiro de Estudos em Saúde), ocorrido na sede da UNASUS (Universidade Aberta do SUS) nos dias 27, 28 e 29/09/11.

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Coleo Pensar em Sade

Gesto Pblica e Relao Pblico Privado na SadeOrganizadores:

Nelson Rodrigues dos Santos Paulo Duarte de Carvalho Amarante

Centro Brasileiro de Estudos de Sade (Cebes)Direo Nacional (Gesto 2009-2011)Presidente

Conselho EditorialAlicia Stolkiner Angel Martinez Hernaez Carlos Botazzo Catalina Eibenschutz Cornelis Johannes Van Stralen Diana Mauri Eduardo Maia Freese de Carvalho Giovanni Berlinguer Hugo Spinelli Jos Carlos Braga Jos da Rocha Carvalheiro Luiz Augusto Facchini Maria Salete Bessa Jorge Paulo Marchiori Buss Rubens de Camargo Ferreira Adorno Sonia Maria Fleury Teixeira Sulamis Dain

Roberto Passos Nogueira1 Vice-Presidente

Luiz Antonio NevesDiretora Administrativa

Lenaura de Vasconcelos Costa LobatoDiretor de Poltica Editorial

Paulo Duarte de Carvalho AmaranteDiretores Executivos:

Ana Maria Costa Guilherme Costa Delgado Hugo Fernandes Junior Lgia Giovanella Nelson Rodrigues dos SantosDiretor Ad-hoc:

Alcides Miranda Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira

Editora ExecutivaMarlia Fernanda de Souza Correia

Conselho FiscalAry Carvalho de Miranda Assis Mafort Ouverney Lgia Bahia

Secretaria EditorialDebora Nascimento

Conselho ConsultivoAgleildes Aricheles Leal de Queiroz Alcides Silva de Miranda Alberto Durn Gonzlez Eleonor Minho Conill Ana Ester Melo Moreira Eymard Mouro Vasconcelos Fabola Aguiar Nunes Fernando Henrique de Albuquerque Maia Julia Barban Morelli Jairnilson Silva Paim Jlio Strubing Mller Neto Mrio Scheffer Naomar de Almeida Filho Silvio Fernandes da Silva Volnei Garrafa

SecretariaSecretaria Geral

Mariana Faria TeixeiraPesquisadora

Suelen Carlos de Oliveira

Expediente do livroOrganizao

Nelson Rodrigues dos Santos Paulo Duarte de Carvalho AmaranteEdio

Marlia Correia e Paulo AmaranteReviso de textos, Diagramao e Capa

Zeppelini EditorialApoio

Editor CientficoPaulo Duarte de Carvalho Amarante

Ministrio da Sade Organizao Pan-Americana da Sade FIOCRUZ

G389

Gesto Pblica e Relao Pblico Privado na Sade/ Nelson Rodrigues dos Santos e Paulo Duarte de Carvalho Amarante (Organizadores) Rio de Janeiro: Cebes, 2010. 324p.: 18x25 cm ISBN 978-85-88422-14-8

1. Gesto Pblica, 2. Sade, 3. Relao Pblico Privado, I. Rodrigues, Nelson, II. Amarante, Paulo

Sumrio

AUTORES APRESENTAO CAPTULO 1Nelson Rodrigues dos Santos

5 9 11

O pacto interfederativo na sade e a gesto descentralizada: uma oportunidade estratgica de promover avanos no Sistema nico de Sade? Beatriz de Figueiredo Dobashi Nilo Brtas Jnior Silvio Fernandes da Silva

CAPTULO 2

O desenvolvimento federativo do sus e as novas modalidades institucionais de gerncia das unidades assistenciais Roberto Passos Nogueira

24

CAPTULO 3

Avaliao do atual modelo da gesto pblica do SUS quanto ao financiamento pblico na sade Gilson Carvalho

48

CAPTULO 4

Administrao pblica e a gesto da sade Lenir Santos

68

CAPTULO 5

Direito sade e respeito Constituio Alvaro Luis de Araujo Ciarlini

87

CAPTULO 6

SUS: o desafio de ser nico Carlos Octvio Ock-Reis

101

CAPTULO 7

A privatizao no sistema de sade brasileiro nos anos 2000: tendncias e justificao Ligia Bahia

115

CAPTULO 8

Por uma reduo nas desigualdades em sade no Brasil: qualidade e regulao num sistema com utilizao combinada e desigual Hsio de Albuquerque Cordeiro Eleonor Minho Conill Isabela Soares Santos Aparecida Isabel Bressan

129

CAPTULO 9

Relaes entre o SUS e a sade suplementar: problemas e alternativas para o futuro do sistema universal Jos Carvalho de Noronha Isabela Soares Santos Telma Ruth Pereira

152

CAPTULO 10

A reforma sanitria brasileira e as relaes entre o pblico e o privado Telma Maria Gonalves Menicucci

180

CAPTULO 11

Planejamento em sade: a armadilha da dicotomia pblico-privado Rosana Onocko Campos

198

CAPTULO 12

A relao pblico-privado e o pacto pela sade: novos desafios paraa gesto em sade Luiza Sterman Heimann Lauro Cesar Ibanhes Roberta Cristina Boaretto Jorge Kayano

208

CAPTULO 13 CAPTULO 14

Aporte de recursos pblicospara planos privados de sade

220 243

Institucionalidade e desafios da regulao na rea de sade no Brasil Marcos P

CAPTULO 15

Questionando conceitos: o pblico e o privado na sade no sculo 21 Amlia Cohn

267

CAPTULO 16

O impacto da crise econmica na sade Claudio Salm

275

CAPTULO 17

Alguns pontos para o debate sobre possveis impactos da criseeconmica na sade Jairnilson Silva Paim

284

CAPTULO 18

Mais Sade (PAC Sade) e as polticas sistmicas de investimentos setoriais Henri E. Jouval Jr.

288

CAPTULO 19

Modo de coproduo singular do Sistema nico de Sade: impasses e perspectivas Gasto Wagner de Sousa Campos

294

CAPTULO 20

Poltica pblica de sade:qual o rumo? Nelson Rodrigues Documento do Cebes

303

CAPTULO 21

Necessidade de reformar a estrutura administrativa do gerenciamento pblico dos estabelecimentos pblicos de prestao de servios de sade Documento do Cebes

320

Autores

Beatriz Figueiredo DobashiMdica Sanitarista e do Trabalho, especialista em Administrao Pblica e em Planejamento em nvel de desenvolvimento regional integrado. Secretria de Estado da Sade em Mato Grosso do Sul.

Nilo BretasDentista, especialista em Sade Publica, especialista em Superviso Hospitalar, Coordenador da Assessoria Tcnica do CONASEMS.

Silvio FernandesMdico, Doutor em Sade pblica (FSP/USP) e assessor tcnico do CONASEMS

Roberto Passos NogueiraMdico, doutor em sade coletiva, Tcnico de planejamento e pesquisa do IPEA.

Gilson CarvalhoMdico pediatra e de sade pblica, doutor em sade pblica pela faculdade sade pblica (USP).

Lenir SantosDoutoranda pela Unicamp em sade publica, especialista em direito sanitrio pela USP; ex-procuradora da Unicamp. Consultora do CONASEMS, coordenadora do curso de especializao em direito sanitrio UNICAMP-IDISA.

Alvaro Luis de Araujo CiarliniMestre em Filosofia e Doutor em Direito pela Universidade de Braslia. Juiz de Direito Titular da 2a Vara da Fazenda Pblica do Distrito Federal e Professor do Programa de Mestrado Acadmico em Direito Constitucional do Instituto Brasiliense de Direito Pblico.

Carlos Octvio Ock-ReisEconomista, Doutor em Sade Coletiva pelo IMS-UERJ Ps-doutorado pela Yale School of Management.

5

Autores

Ligia BahiaMdica, doutora e mestre em Sade Pblica pela FIOCRUZ. Professora do Instituto de Estudos em Sade Coletiva. (IESC/UFRJ). Vice presidente da ABRASCO.

Hsio de Albuquerque CordeiroDoutor em Medicina Preventivas, coordenador do Mestrado profissional em Sade da Familia da Unversidade Estacio de S.

Eleonor Minho ConillMedica, doutora em Developpement Economique Et Social - Universit Paris I (Panthon-Sorbonne).

Isabela Soares SantosCientista social, mestre e doutora em sade pblica pela ENSP/Fiocruz. Cocoordenadora do Programa de Desenvolvimento e Inovao de Tecnologias em Sade Pblica da Vice-Presidncia de Pesquisa e Laboratrios de Referncia da FIOCRUZ (PDTSP /VPPLR).

Aparecida Isabel BressanMdica sanitarista.

Jos Carvalho de NoronhaMdico, mestre em Medicina Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e doutor em Sade Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Comunicao e Informao Cientfica e Tecnolgica em Sade.

Telma Ruth PereiraMdica sanitarista.

Telma Maria Gonalves MenicucciDoutora em Sociologia e Poltica/UFMG professora da UFMG.

6

Autores

Rosana Onocko CamposMdica, Doutora em Sade Coletiva, professora do DMPS/FCM/Unicamp

Luiza Sterman HeimannMdica Sanitarista, Master in PublicHealth, Harvard University, Mestre em Medicina Preventiva pela Faculdade de Medicinada Universidade de So Paulo e Diretora Tcnica do Instituto de Sade daSecretaria de Estado da Sade de So Paulo.

Lauro Cesar IbanhesProfessor, mestre em Cincias Sociais e doutor em Sade Pblica (USP/1999). Pesquisador no Instituto de Sade da SES/SP.

Roberta Cristina BoarettoMestre em Gerontologia (Unicamp), especialista em Sade Coletiva, graduada em Psicologia (USP), pesquisadora no Ncleo de Servios e Sistemas de Sade NISIS do Instituto de Sade da SES/SP e docente da disciplina de Sade Coletiva da Faculdade de Medicina do ABC - FMABC.

Jorge KayanoMdico, Especializao em Sade Pblica pela Faculdade de Sade Pblica da Universidade de So Paulo e Administrao Hospitalar Fundao Getlio Vargas.

Marcos PDoutor em Administrao Pblico e Governo, coordenador executivo adjunto do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).

Amlia CohnSociloga, docente do Mestrado em Sade Pblica/Unisantos e pesquisadora do CEDEC.

Claudio SalmEconomista.

7

Autores

Jairnilson Silva PaimProfessor Titular em Poltica de Sade do ISC-UFBA.

Henri E. Jouval Jr.Mdico, assessor internacional do Centro de Relaes Internacionais em Sade (Cris/Fiocruz).

Gasto Wagner de Souza CamposMdico, escritor e doutor em Sade Coletiva.Professor titular em Sade Coletiva do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Cincias Mdicas da Unicamp.

8

Apresentao

A

o completar seus 20 anos, o Sistema nico de Sade (SUS) proporcionou aprofundada avaliao, anlise, posicionamento e produo de conhecimento por meio das entidades da sociedade civil h dcadas engajadas na formulao e avaliao das polticas pblicas com base nos direitos de cidadania e na reforma sanitria brasileira; das entidades dos gestores pblicos de sade; dos conselhos de sade; do Legislativo e do Judicirio; de estudiosos e especialistas reconhecidos, repassando desde as abordagens mais conjunturais em nvel de governos, coligaes partidrias que assumem aparelhos de Estado (Ministrios, Secretarias) e respostas a crises econmicas ou institucionais at as abordagens mais estruturais em nvel macroeconmico e macropoltico de polticas pblicas de Estado. Um dos consensos mais presentes refere-se ao contnuo descomprometimento do Estado com as diretrizes constitucionais da seguridade social e do SUS e, por consequncia, com a implementao planejada e pactuada junto sociedade civil de um sistema pblico efetivamente universal de ateno integral sade que faa valer a equidade, qualidade, eficcia, eficincia e a participao social. Como parte do referido consenso, o Centro Brasileiro de Estudos de Sade (Cebes) editou, em 2009, importante nmero especial da Revista Sade em Debate com vrios artigos selecionados ou encomendados sobre a avaliao dos 20 anos do SUS, ao mesmo tempo em que realizou dois seminrios com exposies e debates de elevado nvel sobre dois

9

Gesto Pblica e Relao Pblico Privado na Sade

temas reconhecidamente estratgicos: a relao pblico-privado na sade e a gesto pblica na sade; mais uma vez ficou demonstrada a interdependncia e a indivisibilidade entre essas temticas tanto sob os ngulos da operao cotidiana da oferta das aes e servios de sade e das estratgias implementadoras do disposto na Constituio e na lei, como tambm sob o ngulo terico-conceitual campo este que adquiriu caractersticas mais prprias e complexas no perodo ps-constitucional. Todos os 20 captulos abordam o campo das relaes pblico-privado/gesto pblica, que se encontra mais adensado nos 13 primeiros, introduzidos por lcida, oportuna e competente anlise e avaliao pela gesto descentralizada do SUS, e encerrados por dois documentos do Conselho Nacional de Sade, importante registro da atuao desse fundamental colegiado do controle social. Todos os textos abordam tambm as necessrias contextualizaes e aclaramentos conceituais que se encontram mais adensados nos sete seguintes, introduzidos por instigante colocao sobre a regulao na rea da sade e encerrados pelo penltimo captulo, com rica e imprescindvel reflexo em torno da genealogia do SUS. O ltimo captulo um texto debatido e aprovado preliminarmente na diretoria nacional do Cebes, voltado para a divulgao e instigao acerca dos rumos da nossa poltica pblica de sade e propostas de interveno, um processo que se encontra em curso. Quanto aos autores de todos os captulos, sejam os encomendados, os selecionados e os expostos nos seminrios, trata-se de gestores emergentes da dura e prolongada experincia de gesto pblica coerente em condies adversas que, por si, insubstituvel fonte de reflexo, formulao e produo de conhecimentos, de acadmicos hbridos com densa experincia em gesto, pesquisadores e especialistas de institutos de pesquisa e acadmicos puros engajados: encontram-se todos entre o que de melhor os 20 anos do SUS vm gerando no campo das polticas pblicas com base nos direitos de cidadania. O destaque final desta apresentao encontra-se na evidncia das concluses e proposies j dispostas e insofismveis, mais do que oportunas e suficientes para respaldar novas formulaes estratgicas, mobilizaes e tomadas de decises no espao social e poltico da implementao das polticas pblicas, em especial da sade, sem prejuzo de estimular a continuidade das anlises, avaliaes, debates e proposies. No ano eleitoral de 2010, com a emergncia de novo parlamento e novos governos nacional e estaduais, as plataformas de sade podero ensejar um salto estadista do mbito conjuntural de Governo para o mbito estrutural de Estado e sua relao com o conjunto da sociedade, reacendendo a utopia dos rumos conquistados pela sociedade mobilizada e pela Assembleia Nacional Constituinte no captulo da Ordem Social. Essa a finalidade conjuntural deste livro, ao lado da sua finalidade estrutural de contribuio para as desejadas mudanas de mdio e longo prazo. Nelson Rodrigues dos Santos Rio de Janeiro, novembro de 2010

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Captulo 1

O pacto interfederativo na sade e a gesto descentralizada: uma oportunidade estratgica de promover avanos no Sistema nico de Sade?*Beatriz de Figueiredo Dobashi Nilo Brtas Jnior Silvio Fernandes da Silva

Avaliao do Pacto pela Sade e sua implementao nos municpios brasileiros, a partir dos princpios da reforma sanitria e dos processos de construo do Sistema nico de SadeDesde o sculo 18 a economia de mercado tem gerado demandas relacionadas com a sobrevivncia das pessoas que no conseguem ser atendidas satisfatoriamente devido ao seu baixo poder aquisitivo e que, por isso, passam a depender de aes governamentais, o que no setor sade corresponde produo de bens e servios pblicos. At o final da dcada de 1980, as polticas de sade no Brasil se inseriam no modelo residual e meritocrtico, ou seja, no abrangiam toda a populao e estavam vinculadas ao sistema previdencirio s recebia atendimento quem tivesse a carteirinha do Instituto Nacional de Previdncia Social (Inps). Havia, ainda, os que podiam pagar pelos servios e aqueles que dependiam da caridade os indigentes. Essa situao tem origens nos caminhos da histria do Brasil: no perodo populista Vargas: dcada de 1930 e 1940 o desenvolvimento de polticas sociais no conseguiu eliminar a pobre-

*

Este texto foi publicado inicialmente na revista Divulgao em Sade para Debate srie Conasems/Cebes Saberes e Prticas de Gesto Municipal n. 46,

lanada no XXVI Congresso Nacional das Secretarias Municipais de Sade, nos dias 25 a 28 de maio de 2010, em Gramado/RS.

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Gesto Pblica e Relao Pblico Privado na Sade

za e promover a distribuio da renda, inclusive no que diz respeito s polticas previdencirias e da sade. Em troca do acesso ao aparato do Estado, ocorreu uma verdadeira aliana com o movimento sindical, o qual levou a subordinao dos direitos sociais dos brasileiros ao sistema de previdncia social estatal, originando a chamada cidadania regulada (santos, 1979) que entre outras coisas exclua os trabalhadores rurais e os de ocupao no-regulamentada do acesso sade. O regime autoritrio de 1964 produziu profundas alteraes no modelo de polticas sociais, anteriormente estabelecido, excluindo as oportunidades de participao da sociedade civil e criando investimentos pblicos exclusivamente calcados na viabilidade financeira (atendimento especfico aos consumidores com poder de compra) como, por exemplo, a criao das empresas estatais de saneamento. At mesmo as prticas sanitrias baseavam-se em motivaes econmicas como as que determinaram a criao da Fundao Servios Especiais de Sade Pblica (sesp), com seu sanitarismo campanhista. As consequncias foram desastrosas e, de 1964 a 1973, houve piora dos indicadores de cobertura das polticas sociais, em especial da mortalidade infantil que reverteu a tendncia de decrscimo a qual vinha ocorrendo desde 1950. De 1968 a 1974 o desenvolvimento da economia aconteceu com concentrao de renda e degradao das condies de vida e sade da populao. Paralelamente, os anos 1970 trouxeram movimentos sociais formados por trabalhadores, profissionais de sade, populao em geral, buscando o resgate de valores ligados cidadania, principalmente no setor sade. Esses movimentos e agncias internacionais passaram a exercer intensa presso sobre o governo Geisel, e a poltica governamental precisou romper com a lgica exclusiva da viabilidade econmica, o que ficou registrado com a incluso, em 1974, do setor social no II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), que criou, dentre outros programas de integrao, o PIS-pasep; poltica habitacional; ampliao de cobertura da previdncia, entre outros. So considerados avanos da poca: 20% de interveno pblica na rea habitacional; incorporao previdncia dos trabalhadores rurais (Funrural/1971), dos empregados domsticos (1972) e dos autnomos (1973); incorporao das Secretarias de Sade e dos Hospitais Universitrios para atendimento de urgncia aos previdencirios Plano de Pronta Ao: convnios globais (1974). A Previdncia Social migrou do padro seguro-sade para um desenho organizacional tpico da seguridade social, ocorrendo a criao do Sistema Nacional de Previdncia e Assistncia Social (sInpas), em 1977 e do Instituto Nacional de Assistncia Mdica da Previdncia Social (Inamps); de instituies de assistncia social como a Legio Brasileira de Assistncia (LBA) e a Fundao Nacional para o Bem-Estar do Menor (Funabem), alm de estruturas gerenciais como o Dataprev e o Iapas. Apesar disso, permaneciam na sade os problemas gerados no perodo da ditadura militar, tais como: centralizao das decises financeiras e operacionais no Inamps; financiamento base-

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O pacto interfederativo na sade e a gesto descentralizada: uma oportunidade estratgica de promover avanos no Sistema nico de Sade?*

ado em contribuies sociais; redes de atendimento no-integradas, privatizao dos servios de sade; dificuldades quanto ao acesso e qualidade. Foram justamente esses entraves que promoveram a continuidade das transformaes institucionais, dentro de um processo de abertura poltica gradual: Expanso de cobertura: Programa de Interiorizao das Aes de Sade e Saneamento, 1979 (pIass) ; VII Conferncia Nacional de Sade (1980) e elaborao do prev-Sade (que infelizmente no saiu da gaveta); criao, em 1982, do Conselho Nacional de Segurana Pblica (Conasp) , cujo plano inicial promoveu o advento das Aes Integradas de Sade (AIS), com adeso de 2.500 municpios em 1986. Naquele mesmo ano, a VIII Conferncia Nacional de Sade reuniu em Braslia (DF) cerca de 5.000 delegados de todo o pas e ratificou a sade como direito de cidadania, motivando a criao do Sistema Unificado e Descentralizado de Sade (suDs) em 1987, no contexto da instalao da Assembleia Nacional Constituinte. A partir de ento, consolidou-se o movimento da reforma sanitria: diversas universidades se engajaram nos Departamentos de Medicina Preventiva; surgiram projetos municipais de organizao dos sistemas locais de sade: Campinas (SP); Caruaru (PE); Montes Claros (MG); foram organizados importantes movimentos dos trabalhadores da sade: Centro Brasileiro de Estudos de Sade, 1976 (Cebes) e Associao Brasileira de Ps-graduao em Sade Coletiva, 1979 (abrasCo) ; aconteceram Encontros de Secretarias Municipais de Sade em nvel macrorregional e foi criado o Conselho Nacional de Secretrios de Sade (Conass) em 1982. Finalmente, a Constituio Federal promulgada em 05 de outubro de 1988, regulamentou o Sistema nico de Sade (SUS), assegurando que a sade direito de todos e dever do Estado e cujos princpios so: universalidade, integralidade e equidade, alicerados em aes governamentais submetidas ao controle social, cujo custeio se d com recursos da seguridade social (33%) nas trs esferas de governo, tendo a participao do setor privado em carter complementar e sob as regras pblicas, bem como se pautando nas diretrizes de descentralizao, com comando nico em cada esfera de governo, regionalizao e hierarquizao.

A operao e a regulamentao do novo sistemaA nova Constituio Federal, entretanto, teve contradies no processo de transio (interesses corporativos). As situaes de conflito, em geral, foram remetidas legislao infraconstitucional e, desde ento, tem sido difcil o caminho da regulamentao. A lei n. 8.080/1990, denominada Lei Orgnica da Sade, teve 24 vetos, entre eles o do artigo 35 que tratava do financiamento em sade. Tambm no foi includa a regulao do setor privado (brasIl, 1990b). Em seguida, foi editada a lei n. 8.142/1990, que tratou principalmente dos espaos do controle social e de pactuao entre gestores e que, na verdade, surgiu como reao da sociedade plenria de sade (brasIl, 1990a). Com a criao do SUS, o Ministrio da Sade (MS) assumiu o comando do setor e, tentando superar as lacunas constitucionais, comeou a editar as chamadas Normas Operacionais Bsicas

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Gesto Pblica e Relao Pblico Privado na Sade

(nobs): a NOB 1991 explicitou o processo de municipalizao; a NOB 93 caracterizou-se pela luta quanto ao financiamento; a NOB 1996 criou os diversos nveis de gesto. Em 2000, uma importante Emenda Constitucional, a EC n. 29, determinou percentuais mnimos de aplicao dos recursos prprios federais, estaduais e municipais, o que traria um considervel aporte de recursos novos para a sade, porm que at hoje est sem regulamentao, o que implica o no cumprimento por parte de muitos gestores. O processo normativo ministerial continuou mais voltado para as condies de acesso ateno especializada e disponvel em nvel regional para a maioria dos municpios brasileiros. Surgiram as Normas Operacionais da Assistncia Sade (noas), objeto de rica discusso entre as esferas de governo, porm com pactuao difcil e operacionalizao engessada pelas caractersticas cartoriais. Mesmo assim, foram responsveis por avanos considerveis como a introduo de ferramentas importantes de planejamento e programao em sade: o Plano Diretor de Regionalizao (PDR); o Plano Diretor de Investimentos (PDI) e a Programao Pactuada e Integrada (PPI). Em que pesem os avanos, os primeiros 15 anos do SUS enfrentaram uma normatizao excessiva, com a edio de inmeras portarias federais que dificultavam a operao do sistema, imobilizando, muitas vezes, a capacidade criativa e inovadora dos gestores e equipes de sade.

Um novo pacto na sadeVrios fruns, principalmente o Conass e o Conasems, comearam a discutir a necessidade de construir um novo pacto na sade, capaz de substituir a normatizao excessiva e a lgica da habilitao, por outra, de adeso e do compromisso com resultados. Houve desdobramento das discusses, de modo que o Pacto pela Sade passou a ser composto por trs grandes linhas de ao: Pacto pela Vida, Pacto em Defesa do SUS e Pacto de Gesto. O Pacto pela Vida um conjunto de compromissos sanitrios, expressos em objetivos e metas, derivados da anlise da situao de sade da populao e das prioridades definidas pelos governos federal, estaduais e municipais. Significa uma ao prioritria no campo da sade que dever ser executada com foco em resultados que para serem alcanados necessitam da explicitao dos compromissos oramentrios e financeiros. So 11 as prioridades definidas no Pacto pela Vida, 6 delas foram escritas em 2006 e 5 acrescentadas em 2008, como resultado das pactuaes realizadas nos Estados, durante a construo dos Termos de Compromisso de Gesto, bem como da discusso realizada no Conselho Nacional de Sade (CNS), as quais foram mantidas em 2009 e continuaro em 2010: sade do idoso; reduo da mortalidade materna e infantil; reduo das mortes por cncer de colo uterino e de mama; enfrentamento de endemias: dengue, malria, tuberculose, hansenase e gripe aviria; promoo da sade; fortalecimento da ateno bsica; sade do trabalhador; sade mental; fortalecimento da capacidade de resposta do sistema de sade s pessoas com deficincia; ateno integral s pessoas em situao ou risco de violncia; sade do homem.

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O pacto interfederativo na sade e a gesto descentralizada: uma oportunidade estratgica de promover avanos no Sistema nico de Sade?*

O Pacto em Defesa do SUS o compromisso inequvoco com a repolitizao do SUS, consolidando a poltica pblica de sade brasileira como uma poltica de Estado, mais do que uma poltica de governo: levar a discusso sobre a poltica pblica de sade para a sociedade organizada, tendo o financiamento pblico da sade como um dos pontos centrais. O Pacto de Gesto contempla os princpios do SUS previstos na Constituio Federal de 1988 e na lei n. 8.080/1990. Estabelece as responsabilidades solidrias dos gestores de forma a diminuir as competncias concorrentes, contribuindo, assim, para o fortalecimento da gesto compartilhada e solidria do SUS (brasIl, 1990b). Os eixos prioritrios do Pacto de Gesto so: descentralizao; regionalizao; financiamento; programao pactuada e integrada; regulao; participao e controle social; planejamento; gesto do trabalho e educao na sade. Ainda que se identifiquem as trs dimenses do pacto preciso consider-las intimamente correlacionadas e complementares entre si, integrantes de uma importante estratgia nacional determinada a retomar a responsabilidade solidria entre as instncias do SUS. O pacto busca preservar os princpios e diretrizes do SUS e a possibilidade real de avanar no processo de consolidao da reforma sanitria, mesmo considerando que o enfrentamento dos problemas que permeiam a efetivao da sade como direito de cidadania exige aes estruturais de mdio e longo prazo.

A implementao do novo pactoEsse compromisso pactuado e assumido pelos gestores de sade das trs esferas de governo visa responder aos desafios da gesto e da organizao do SUS; atender efetivamente s necessidades de sade da populao brasileira e tornar a sade uma poltica de Estado mais do que uma poltica de governo. possvel destacar algumas mudanas ocorridas imediatamente aps a implantao do Pacto pela Sade: substituiodoprocessodehabilitaopelaadesosolidriaaostermosdecompromisso de gesto; inciodoprocessoderegionalizaosolidriaecooperativacomoeixoestruturanteda descentralizao; inciodoprocessodeintegraodasvriasformasderepassedosrecursosfederais; inciodoprocessodeunificaodosvriospactosatentoexistentes. O pacto, no entanto, no termina no momento da assinatura do termo de compromisso. Seus objetivos e metas devem servir de norte para que os diferentes entes federados orientem as intervenes estratgicas e focalizem a alocao dos recursos conforme as prioridades estabelecidas. Da a importncia de estarem no Plano de Sade devidamente oramentados, com estratgias locais eficazes e factveis, alm de ser objeto de anlise e prestao de contas no Relatrio Anual de Gesto.

15

Gesto Pblica e Relao Pblico Privado na Sade

Aps a celebrao do Pacto pela Sade, todos devem assumir o compromisso de efetiv-lo e aprimor-lo. A gesto estadual, usando os instrumentos de acompanhamento e avaliao, dever desenvolver uma agenda de apoio aos municpios, a qual deve respeitar as peculiaridades locais e regionais alm de qualificar as regies seja com a instituio de mecanismos de cogesto, seja com a adoo do planejamento regional voltado para o atendimento s necessidades em sade da populao, priorizando a construo de redes de ateno apoiadas na ateno primria e pautadas pelas linhas de cuidado condizentes com as prioridades do Pacto pela Vida. Tambm se deve valorizar a cooperao tcnica solidria entre os gestores e, principalmente, o financiamento tripartite permanente. Em quase quatro anos o pacto teve a adeso de todas as Secretarias Estaduais de Sade e de 3.193 municpios (57,4%) at 7 de janeiro de 2010, segundo dados da Secretaria Tcnica da Comisso Intergestores Tripartite. Isso significa um percentual 74% maior que a adeso noas no mesmo perodo de tempo (1.836 municpios de 2001 a 2005). Essa significativa coalizo em torno do pacto, contudo, ser que acompanhou as mudanas necessrias para a consolidao do SUS e o enfrentamento dos desafios cotidianos? Avaliaes realizadas pelo MS, pelo Conass e pelo Conasems revelam que ainda so muitos os desafios a enfrentar tanto nos estados como nos municpios. Os compromissos do pacto ainda no so totalmente utilizados como norteadores das intervenes locais e no foram agregados aos Planos de Sade nem s Programaes Anuais. O financiamento tripartite no est consolidado em 100% dos Estados. So poucos os avanos na desprecarizao dos vnculos empregatcios e, embora a proliferao dos Colegiados de Gesto Regional tenha ampliado a participao dos municpios no processo de pactuao, ela nem sempre foi acompanhada pela construo da regionalizao propriamente dita, ou seja, pela definio de prioridades e pactuao de solues para a organizao de rede de ateno sade integrada e resolutiva. A questo das Redes de Ateno Sade precisa ser debatida para o estabelecimento de consensos organizacionais, conceituais e de estratgias para a sua implantao, com nfase no papel coordenador da Ateno Primria em Sade (APS). preciso tambm colocar na pauta de discusses o papel dos consrcios pblicos. Outro grande desafio o entendimento e a implantao de solues para as questes das regies interestaduais e de fronteira. A regulao, o controle, a avaliao e a auditoria so ferramentas de gesto que representaram grandes dificuldades para os municpios em funo de problemas com profissionais (indisponibilidade de mdicos desvinculados da assistncia e dedicados exclusivamente gesto, por exemplo), com a elaborao de protocolos e normas voltados para as especificidades locais, com a necessidade de regular os atendimentos prprios a partir da APS. A contratualizao ainda no conseguiu aumentar a resolutividade dos pequenos hospitais nem conferir coerncia e articulao entre esses servios e a rede de APS. O Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Sade (Cnes) no atualizado sistematicamente e, em funo disso, no serve como ferramenta no desenho das intervenes nas redes de ateno sade.

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O pacto interfederativo na sade e a gesto descentralizada: uma oportunidade estratgica de promover avanos no Sistema nico de Sade?*

Chama ateno, tambm, o fato de que a maioria dos indicadores que no atingiram a meta proposta est relacionada com a baixa qualidade e resolutividade da APS. Os municpios vm enfrentando srios problemas com a interiorizao de profissionais, em especial mdicos. A formao profissional ainda permanece fragmentada e no favorece o trabalho em equipe. H uma grande dificuldade em operar os parmetros assistenciais da Programao Pactuada Integrada (PPI) diante do quadro de insuficincia de recursos principalmente do Bloco de Mdia e Alta Complexidade. O tema est h muito tempo fora da pauta de discusso tripartite, inclusive quanto ao seu sistema de informao e efetiva implantao da PPI da ateno sade, com base na definio e organizao das redes de ateno sade.

Propostas para otimizao dos resultados da implantao do novo Pacto pela SadeImportante ressaltar que preciso dar visibilidade ao Pacto pelo SUS, comeando por intensificar as aes de mobilizao social em defesa do direito sade e do SUS, atuando politicamente para a aprovao da regulamentao da EC n. 29 at o final de 2010 e fortalecendo a relao tripartite nas aes conjuntas voltadas defesa e construo de polticas para o SUS. Tambm preciso valorizar a presena dos gestores nas instncias de controle social e construir uma agenda conjunta para aes de mobilizao social. Em relao ao processo de planejamento e programao necessrio reavaliar os indicadores de monitoramento e acompanhamento do pacto de forma a associ-los efetivamente s aes e objetivos previstos em cada prioridade; priorizar as pactuaes de polticas e aes na Comisso Intergestores Tripartite (CIT) relacionadas ao Pacto pela Sade e estabelecer coerncia entre essas metas e as estabelecidas; articular e promover a coerncia entre os Planos de Sade, as Programaes Anuais e os Termos de Compromisso de Gesto, inserindo as aes necessrias para o alcance das metas; inserir anualmente nos respectivos Relatrios de Gesto uma anlise dos resultados obtidos com base nas metas estabelecidas no Pacto pela Sade. Uma das premissas bsicas propostas na construo do pacto era a descentralizao dos processos administrativos relativos gesto para as Comisses Intergestores Bipartites (CIB), que foi chamado poca de choque de descentralizao. Pode-se afirmar que isso pouco avanou, uma vez que na prtica ainda permanece a centralizao pelo MS de muitas aes administrativas que j poderiam ter sido descentralizadas para as CIB, como, por exemplo, o credenciamento de Centros de Especialidades Odontolgicas, equipes do Servio de Atendimento Mvel de Urgncia (samu) etc. Em relao ao financiamento, preciso rever o bloco de gesto, unificando os atuais incentivos e acabando com a atual fragmentao. Seria importante construir um processo de valorizao da gesto por meio de um nico repasse de recursos que leve em considerao o cumprimento das metas estabelecidas no Pacto pela Vida e de Gesto ndice de Valorizao da Gesto (IVG) e que contemple a avaliao de processo e de resultados.

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No menos significativa a necessidade de dar sequncia ao processo de reduo das desigualdades regionais, retomando as premissas do artigo 35 da Lei Orgnica da Sade, ao considerar a interao de variveis como populao, perfil epidemiolgico, capacidade instalada, entre outras para a alocao de recursos. No que diz respeito regulao, a contratualizao de todos os prestadores de servio estava entre as metas estabelecidas, o que na prtica, em grande parte, ainda no ocorreu. Esse, alis, um tema que tambm no tem sido debatido com frequncia na CIT e sua discusso poderia ser acompanhada pela reflexo acerca do papel a ser desempenhado pela Comisso Corregedora Tripartite do Sistema Nacional de Auditoria e a pactuao do Termo de Ajuste Sanitrio (TAS). Em relao ao controle social, as aes previstas no pacto foram, de certa forma, objeto de recursos financeiros por parte do MS dentro do bloco de gesto; preciso, no entanto, uma avaliao de seu impacto. Persistem, por exemplo, questes que precisam ser superadas no que diz respeito ao papel dos Conselhos de Sade. No que se refere gesto do trabalho, necessrio desenvolver estudos sobre o financiamento tripartite de reposio da fora de trabalho anteriormente cedida aos municpios, bem como uma proposta para a sua execuo, alm de promover um debate e implementar de forma tripartite solues para a questo de recursos humanos nos SUS, de forma concomitante avaliao do efetivo impacto das diversas aes que esto em andamento. O conceito de gesto em sade introduzido pela NOB e reforado pelo pacto potencializa as questes inerentes a essa condio: ser gestor da sade implica implantar novos modos de ateno, baseados na territorialidade e voltados para atender as necessidades sociais demandadas e percebidas; significa participar de um projeto de governo como ator social envolvido no interesse coletivo; significa ter governabilidade (pacto social e sustentabilidade) e capacidade de gesto (dirigente, mediador de interesses, executor e avaliador), ou seja, compartilhar um projeto que exige competncia poltica, capacidade tcnica e sustentabilidade. Todos somos, portanto, gestores. Acima de tudo, temos responsabilidades perante a sociedade. Por isso o controle social um dos princpios que sustentam o SUS, e o Pacto pela Sade o compromisso que assumimos de fazer valer esses princpios. Assim, preciso colocar de forma inequvoca o Pacto pela Sade como item prioritrio das agendas do MS, do Conass e do Conasems, fortalecendo a CIT e as CIB como instncias fundamentais de negociao e pactuao para sua implementao, incluindo na rotina desses fruns o monitoramento permanente do pacto e das aes estratgicas definidas; definindo estratgias e desenvolvendo aes para que 100% dos municpios brasileiros tenham aderido ao pacto at o final de 2010. Essa agenda de debates deve ser feita com um olhar voltado para o futuro do SUS diante dos atuais desafios do financiamento, do aprimoramento da gesto e da comunicao com a sociedade brasileira, buscando responder a alguns questionamentos: Comogarantirosprincpiosconstitucionaisdiantedeumcenriodesubfinanciamento crnico?

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Comoaprimoraragestosemrecursossuficientesecomasrestriesimpostasmelhoria da gerncia dos servios pblicos? ComomelhoraraimagemdoSUSdiantedaopiniopblicaepromoverumaestratgia de sensibilizao da sociedade brasileira para a defesa do direito sade? ComofazerdoSUSedodireitosadeumaverdadeiraprioridadepoltica?

As respostas para essa questes so fundamentais para o futuro do SUS.

Pacto pela Sade: trajetria e perspectivas de avanosNo dilogo com os dados de desempenho apresentados, alguns tpicos precisam ser enfatizados para aprofundarmos a anlise, apontando contribuies para as respostas s perguntas colocadas: (I) Quais eram os objetivos do pacto no momento de sua publicao? (II) Qual a avaliao da trajetria percorrida? (III) Quais as propostas para que o Pacto pela Sade contribua para avanos no SUS. (IV) Quais eram os objetivos do Pacto pela Sade no momento de sua publicao? Um dos principais fatores que motivaram os gestores municipais a propor e apoiar a implantao do Pacto pela Sade foi a oportunidade, que isso poderia representar, de recuperao da autonomia de gesto municipal. Para melhor explicar esse fator, o Quadro 1 mostra as datas de edio e implementao das normas operacionais e do pacto. No transcorrer desses diferentes perodos, desde a publicao da NOB 91 a autonomia de gesto municipal apresentou profundas modificaes. A norma operacional bsica 01/1993 (NOB-SUS) foi um marco nessa mudana. De acordo com Silva (2008), uma das formas de habilitao previstas, a semiplena, (...) representou um aumento importante na autonomia da gesto dos sistemas de sade nos municpios, que passaram a ter liberdade para renegociar contratos com os prestadores de servio,

Quadro 1 Datas de edio e de incio de implementao das Normas Operacionais Bsicas (Nobs), das Normas Operacionais da Assistncia Sade (Noas) e do Pacto pela SadeNorma NOB SUS 01/1991 NOB-SUS 01/1992 NOB-SUS 01/1993 NOB-SUS 01/1996 noas-SUS 01/2001 noas-01/2002 Pacto pela Sade Edio Janeiro de 1991 Fevereiro de 1991 Maio de 1993 Novembro de 1996 Janeiro de 2001 Fevereiro de 2002 Fevereiro de 2006 Incio da implementao Janeiro de 1991 Fevereiro de 1991 Novembro de 1994 Janeiro de 1998 No-implementada* No-implementada* Novembro de 2006

*A implementao, em sua essncia, no ocorreu, apesar de algumas de suas proposies terem sido assimiladas no processo de descentralizao; SUS: Sistema nico de Sade. Fonte: Anlise de portarias ministeriais e publicaes da Comisso Intergestores Tripartite (CIT).

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reprogramar a oferta assistencial, instituir novas formas de controle e auditoria e, principalmente, reorientar o modelo de ateno sade. O perodo seguinte, no entanto, com a publicao da NOB SUS 01/96 (Brasil, 1996) modificou essa tendncia. Portarias editadas pelo MS nesse perodo limitaram a autonomia dos municpios em virtude de criar incentivos de recursos financeiros vinculados utilizao pr-determinada em programas de sade aos quais os incentivos estavam vinculados. As vinculaes, ao limitar a liberdade dos municpios na utilizao dos recursos transferidos, reduziram a autonomia dos municpios (sIlva, 2008; levCovItz et al., 2001). Como a noas no se viabilizou em sua plenitude, a implementao do Pacto pela Sade, teve, para o Conasems, como um dos principais objetivos a reduo do engessamento a que estavam submetidos os gestores municipais da sade na vigncia da NOB 01/1996, motivo pelo qual a entidade adotou, por iniciativa de seu presidente poca, o slogan SUS ps NOB como proposta de mudana. Recuperar a autonomia de gesto com a reduo da parametrizao e do excesso de portarias, e aplicao de um conjunto de diretrizes para aperfeioar o processo de gesto do SUS, por meio do componente denominado Pacto de Gesto era uma das metas; as outras estavam explicitadas nos dois outros componentes: assumir a defesa do SUS preconizado pela Reforma Sanitria e, portanto, buscar superar seus graves obstculos estruturais, entre eles os do subfinanciamento crnico, por meio do Pacto em Defesa do SUS; pactuar o enfrentamento articulado dos principais problemas de sade, baseado em indicadores epidemiolgicos, por meio do Pacto pela Vida.

Avaliao da trajetria percorridaNo artigo que ora se debate, mostrado com clareza que a adeso ao pacto foi expressiva, atingindo a totalidade das secretarias estaduais de sade e 3.193 municpios (57,4%) at janeiro de 2010. Ao questionar essa adeso, verifica-se que tal iniciativa acarretou mudanas significativas, mas no efetivas; por isso, constituem aspectos centrais deste artigo. Afinal, a formalizao do processo de adeso pode ser uma etapa necessria, mas evidentemente constitui apenas o incio de um processo de mudanas que devem ser seguidas. Reafirmamos, pois, os elementos apontados em sua avaliao: o financiamento tripartite e solidrio no est implantado na grande maioria das regies; os Colegiados de Gesto Regional CGR foram institudos, mas os planos de ao regional no foram construdos ou viabilizados; as estratgias para consolidao de redes de ateno sade, nas quais a APS coordena o cuidado e ordena a rede, no se efetivaram, e os processos de regulao pblica e contratualizao, entre outros, em geral so frgeis e insuficientes. Enfatizamos, como contribuio ao debate, que na raiz de todos esses problemas constatados na avaliao do Pacto pela Sade esto obstculos mais profundos que no foram e no esto sendo adequadamente enfrentados. A tese central do Conasems (2010) afirma justamente que se a sociedade brasileira no enfrentar os dilemas estruturantes do SUS relacionados ao

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modelo de ateno sade, ao financiamento, formao e oferta de profissionais de sade, particularmente os relacionados disponibilidade de profissional mdico para atender as necessidades dos cidados usurios, e gesto pblica da sade , ele ficar cada vez mais distante de se estruturar e se consolidar como um forte sistema nacional de sade, tal como era sua imagem-objetivo na dcada de 1980. Essa tese dialoga diretamente com o seguinte ponto de vista: o xito do pacto depender de trilharmos os caminhos mais adequados para a continuidade de implementao do SUS. Esse nos parece o aspecto essencial da avaliao do pacto e, alis, em nosso entendimento o Pacto em Defesa do SUS se posiciona diante do dilema contido na tese do Conasems, fazendo uma clara opo pelo SUS constitucional. Mesmo no sendo excessivamente rigoroso, com relao a esse componente de defesa do SUS nenhuma mudana efetiva vem de fato acontecendo. Persiste o subfinanciamento crnico e os outros grandes obstculos que dificultam a consolidao do SUS e, consequentemente, a implementao do pacto ocorre em uma conjuntura difcil, caracterizada por grave insuficincia de recursos das mais diversas ordens financeiras, de profissionais de sade, de condies de governana para a gesto descentralizada, de suporte logstico, de investimentos em infraestrutura etc. Paralelamente a isso, mesmo que a CIT, o Conasems, o Conass e o MS, tenham reafirmado o pacto como agenda prioritria e assumido o compromisso de atuar pelo seu fortalecimento como eixo da implementao do SUS, temos a impresso de que essa agenda no foi efetivamente incorporada a esse complexo processo. Sem pretender buscar culpados, necessrio reconhecer que o excesso de portarias continua acontecendo e no raro trazendo novas polticas indutrias que muitas vezes se chocam com as diretrizes organizacionais contidas no componente Pacto de Gesto, por serem contraditrias com as mudanas pretendidas. Pode-se citar a interferncia que as unidades de pronto atendimento (upas) esto ocasionando na disponibilidade de profissionais para a ateno bsica, como ilustrativa dessa situao. O mesmo acontece com outras polticas induzidas pelo MS que, por no terem um planejamento articulado que abranja o conjunto dos desafios com as quais esto relacionadas, se tornam no factveis e inviveis, tal como acontece em muitas regies do pas, para citar dois exemplos, com a expanso da estratgia de sade da famlia e com os servios substitutivos de sade mental, por falta de mdicos generalistas e de psiquiatras.

Propostas para que o Pacto pela Sade contribua para avanos no SUSManifestamos nossa concordncia com as propostas aqui contidas, por serem proposies valiosas e bem identificadas, tais como: construir maior coerncia do processo de planejamento do SUS, promovendo articulao entre os instrumentos de planejamento e gesto; avanar rapidamente na descentralizao de decises administrativas para as CIB; romper definitivamente com a fragmentao atualmente existente no bloco de gesto e criar ndices de valorizao da gesto; financiamento solidrio e tripartite para a fora de trabalho em sade, entre outras.

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Os questionamentos finais do artigo que esto relacionados com as dificuldades estruturais do SUS, com o desafio de transform-lo, e com o direito sade em verdadeira prioridade poltica , encerram, a nosso ver, as questes que nos parecem mais importantes no debate sobre o Pacto pela Sade. Afinal, como j destacado: As respostas para essas questes so fundamentais para o futuro do SUS., e com respeito a essa preocupao, sem a pretenso de produzir respostas definitivas, que trazemos nossas reflexes finais. Nossa avaliao, descrita no tpico precedente quando citamos a tese central do Conasems, no pretente defender uma postura imobilizante ou letrgica. Ao contrrio, no documento citado so detalhadas inmeras propostas defendidas para superar as dificuldades atuais. Com relao ao Pacto pela Sade, igualmente entendemos que os desvios e dificuldades para a estruturao do SUS devem ser considerados como o ponto de partida para a pactuao entre os gestores. Assim, acreditamos que preciso colocar de forma inequvoca o Pacto pela Sade como item prioritrio das agendas do MS, do Conass e do Conasems. Para os gestores municipais, o pacto a alavanca de acumulao da capacidade de gesto descentralizada, capaz de transformar a ateno bsica em ordenadora do sistema, aperfeioando as redes de ateno sade, e mobilizar o fortalecimento dos Cosems em todo o pas. Nessa perspectiva, muito mais do que constitudo de um conjunto de normas e diretrizes para organizar o sistema de sade que, alis, pode muito bem ser obedecido sem mudar grande coisa, se o for de forma meramente cartorial o pacto uma oportunidade estratgica para promover mudanas mais concretas e efetivas no funcionamento do SUS. Sobre isso, fazemos alguns apontamentos a seguir, os quais apresentam algumas das diretrizes que poderiam ser adotadas: 1. aproveitar o presente momento de avaliao do Pacto pela Sade pelos gestores pblicos das trs esferas de governo, e a conjuntura de realizao de eleies como uma oportunidade para utilizar os espaos polticos visando ao reconhecimento dos obstculos estruturais do processo de construo do SUS e aos compromissos com a retomada da universalidade com integralidade, equidade e qualidade. Isso implica objetivamente, por exemplo, compromissos dos atores polticos com mais recursos financeiros para o SUS e menor dispndio pblico para subsidiar os planos privados; 2. fortalecer o Pacto pela Sade por meio do fortalecimento dos Cosems, das CIB e especialmente dos CGR. Associar legitimao dos CGR como instncias de planejamento do SUS a construo de um processo de simplificao da gesto descentralizada, rompendo com a multiplicidade de instrumentos atualmente existentes e apoiando a formulao e implementao dos planos municipais e regionais de sade de acordo com as diretrizes e princpios do SUS. A descentralizao da gesto torna-se imprescindvel para potencializar e otimizar os recursos existentes e construir propostas viveis e factveis, coerentes com as diferentes realidades regionais; 3. fortalecer processos de regulao do sistema, incluindo transformar a programao pactuada e integrada (PPI) em instrumento de programao para a rede de sade redesenha-

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da e aproximar os processos de educao permanente com o Pacto pela Sade. Isso teria como objetivo ampliar a autonomia da gesto regional, superando a mera programao da oferta assistencial e a elaborao parametrizada de termos de compromisso de gesto que tem caracterizado a maioria dos processos de adeso ao pacto, por construo de planos estratgicos que possibilitem incremento da governana regional. A construo das redes regionalizadas de ateno sade, tal como proposto na regionalizao preconizada no pacto, depende, por um lado, de se superarem obstculos macroestruturais e de um adequado planejamento das polticas do SUS. Depende tambm, por outro, de descentralizao do processo de gesto para que os atores locais: gestores, trabalhadores de sade, prestadores de servio e usurios se tornem protagonistas mais relevantes na pactuao de novos compromissos e responsabilidades.

RefernciasBrasil. Ministrio da Sade. Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Sade (Conasems). Tese do Conasems 2010-2011. Braslia, DF: Ministrio da Sade, 2010. ______. Ministrio da Sade. Conselho Nacional da Sade. Lei n. 8.142 de 28 de dezembro de 1990. Dispe sobre a participao da comunidade na gesto do Sistema nico de Sade SUS e sobre as transferncias intergovernamentais de recursos financeiros na rea de sade e outras providncias. Braslia, DF: Ministrio da Sade, 1990a. ______. Ministrio da Sade. Conselho Nacional da Sade. Lei n. 8.080 de 19 de setembro de 1990. Dispe sobre as condies para a promoo, proteo e recuperao da sade, a organizao e o funcionamento dos servios correspondentes e d outras providncias. Braslia, DF: Ministrio da Sade, 1990b. ______. Ministrio da Sade. Portaria 2.203, de 06.11.96: redefine o modelo de gesto do Sistema nico de Sade e aprova a NOB 01/96. Dirio Oficial da Unio, Braslia, 06 nov. 1996. ______. Ministrio da Sade. Portaria 545, de 20.05.93: estabelece normas e procedimentos reguladores do processo de descentralizao das aes e servios de sade e aprova a NOB 01/93. Dirio Oficial da Unio, Braslia, 20 mai 1993. Conasems. Tese do Conasems 2010-2011. Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Sade, Braslia, 2006. levCovitz, e.; Dias l.; maChaDo l.; vieira, C. Poltica de sade nos anos 90: relaes intergovernamentais e o papel das Normas Operacionais Bsicas. Cincia & Sade Coletiva, v. 6, n. 2, p. 269-91, 2001 santos, W.G. Cidadania e Justia: a poltica social na ordem brasileira. Rio de janeiro:Editora campus, 1979 silva, S. F. Municipalizao da sade e espaos de inovao nas gestes locais. 2008. 41 p. No prelo. Artigo elaborado como parte de pesquisa Municipalizao da sade e poder local.

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Captulo 2

O desenvolvimento federativo do sus e as novas modalidades institucionais de gerncia das unidades assistenciaisRoberto Passos Nogueira*

IntroduoO Sistema nico de Sade (SUS) tem se destacado entre as demais polticas sociais por notveis avanos em sua organizao federativa. Tais avanos podem ser exemplificados pela descentralizao das funes administrativas e da prestao de aes e servios em todo o territrio nacional, pelo funcionamento contnuo de instncias de cogesto nas esferas federais e estaduais e pelos pactos promovidos entre os gestores, com vistas definio de metas comuns, inclusive em termos de indicadores de sade. Neste sentido, a articulao federativa conduzida pelo SUS usualmente tida pelos analistas de gesto de polticas pblicas como experincia muito bem-sucedida (abruCIo, 2005; arretChe, 2002). Contudo, h um setor da gesto pblica do SUS devido ao qual o sistema parece acumular mais problemas do que qualidades: o da gerncia de suas unidades assistenciais, constitudas pelos hospitais e ambulatrios, cuja misso assegurar acesso universal e igualitrio, conforme preconizado no art. 196 da Constituio Federal. Essas unidades do SUS esto longe de exibir desempenho adequado em termos de eficincia e de qualidade dos servios prestados aos seus usurios. Segundo avaliao promovida pelo Banco Mundial, esse mau desempenho atribuvel, entre outros fatores, falta de autonomia financeira e tcnico-administrativa (WorlD bank, 2007). H tambm que se considerar os nveis de financiamento do sistema pelo governo fede*

Este texto est sendo publicado simultaneamente pela DIEST/IPEA.

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ral, os quais a maioria dos gestores avalia como insuficientes e cujo impacto desfavorvel sobre a qualidade dos servios hospitalares prprios e de terceiros no pode ser subestimado. O debate sobre a necessidade de conferir maior autonomia gerncia financeiro-administrativa das unidades assistenciais do SUS pe em relevo um contraste entre dois tipos de reforma administrativa do Estado. De um lado, encontra-se a reforma de tipo clssico, de inspirao thatcheriana, que almeja, antes de tudo, a eficincia no uso dos recursos pblicos: fazer mais com menos, evitar o desperdcio. De outro lado, est aquele modo de reforma que, sem desprezar as questes de eficincia, busca primariamente alcanar efetividade, quer dizer, prestar servios pblicos com acesso garantido e mais amplo, em conformidade com as necessidades dos cidados. Trata-se, neste caso, de mudanas institucionais e gerenciais feitas na perspectiva da ampliao da cobertura e da melhoria da qualidade dos servios de proteo social brindados pelo Estado (bjrkman, 2005; abruCIo, 2007). Em sua primeira fase, o SUS desencadeou o que pode ser chamado de reforma democratizante do Estado em sua estrutura federativa (santos, 2009). Atualmente, est passando pela redefinio institucional do papel de suas unidades assistenciais, que est mais prxima do segundo tipo de reforma administrativa. Pode-se afirmar que o objetivo geral que os gestores tm em vista tornar esse sistema de proteo social mais efetivo, aumentando a capacidade de prestao de servios e dando acesso a servios integrais de sade, isto , atendendo ao conjunto das necessidades de sade das pessoas. Mas a principal mudana que vem ocorrendo nesta direo que a criao de novas modalidades institucionais de assistncia no subordinadas administrao direta do Estado, entre as quais se destacam as organizaes sociais (entes privados) e as fundaes estatais (entes estatais) tem sido objeto de intensa polmica entre os principais atores polticos do SUS e, especialmente, tem envolvido em conflitos acirrados os gestores e o controle social (isto , os conselhos de sade). Este artigo pretendeu examinar quatro questes: 1) Por que o SUS foi bem-sucedido em sua estratgia de descentralizao e de gesto em colaborao federativa e tem demonstrado desempenho desfavorvel por parte de suas unidades pblicas prestadoras de servios? 2) Em termos qualitativos e quantitativos, qual a situao atual das novas modalidades institucionais? 3) Quais so os conflitos de natureza poltica e ideolgica que restringem ou dificultam a disseminao dessas modalidades no conjunto do SUS? 4) Que futuro pode ser previsto em relao a essas modalidades?

O sucesso da articulao federativa descentralizadora e seus motivosOs resultados positivos alcanados pelo SUS na articulao federativa e no processo de descentralizao tm sido destacados por inmeros pesquisadores. Abrucio (2005) afirma que a sade , sem dvida alguma, a poltica pblica de maior destaque no quadro federativo desde a Constituio de 1988. Por sua vez, Arretche (2002) salienta que a municipalizao da gesto

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dos servios foi o elemento central da agenda de reformas do governo federal na rea da sade ao longo da dcada de 1990 e pode-se afirmar que, deste ponto de vista, a reforma foi um sucesso. Ainda mais incisivo, um respeitado jornalista de economia afirma sobre o SUS que se trata do mais bem-sucedido modo de articulao federativa at agora desenvolvido no pas (nassIF, 2009). A partir desse tipo de reconhecimento, o SUS tem servido de inspirao para a conformao do modelo federativo de outras reas de polticas pblicas como, por exemplo, a assistncia social, a segurana pblica e at para a negociao de investimentos em saneamento do Plano de Acelerao do Crescimento (PAC). So mltiplos os mecanismos de articulao federativa que foram postos em funcionamento para que a gesto do SUS pudesse se tornar realidade em praticamente todos os municpios do pas. H que se citar, em primeiro lugar, o papel exercido pela Comisso Tripartite, que atua junto ao Ministrio da Sade e formada por gestores do SUS das trs esferas do governo. Esta comisso representa a principal instncia de negociao e pactuao de critrios de distribuio de recursos, de planos e de avaliao do desenvolvimento das pactuaes realizadas em casa esfera de governo. No mbito estadual, papel similar cumprido pela Comisso Bipartite, que rene gestores municipais e estaduais e se encarrega dos planos estaduais, regionais e de regionalizao das aes e servios propostos pelos Colegiados de Gesto Regional, que, por sua vez, so integrados pelos gestores dos municpios envolvidos e por representao da gesto estadual. A essas instncias de carter permanente devem ser agregados dois outros mecanismos de carter mais informal: a) reunies com vistas formulao e aprovao de pactos de gesto, que explicitem metas administrativas e dos pactos pela sade, os quais determinam resultados a serem alcanados de acordo com indicadores; b) negociaes de carter extraordinrio e informal dos gestores com o ministro da sade e com outras autoridades da rea federal, quando se apresentam certas questes candentes, principalmente no diz respeito a aspectos de financiamento e de estratgias de ateno integral sade. Tendncia importante, que pe em relevo a capacidade de cooperao federativa do SUS, a formao de consrcios municipais para a organizao regional de aes e servios de sade que correspondam a seu nvel de atuao (rIbeIro e Costa, 2000), conforme previsto na lei orgnica (artigo 10 da lei 8.080/1990), e que garantam atendimento integral populao dos municpios associados. Em 2008, registravam-se 176 desses consrcios formados para fins de prestao integral de servios de sade sua populao, com destaque para o Estado de Minas Gerais, onde existiam nada menos que 65 consrcios em funcionamento (Tabela 1). Segundo Neves e Ribeiro (2006), o menor compromisso dos governos estaduais com investimentos e custeio dos sistemas regionais estimulou, na dcada de 1990, os municpios a buscarem compensao mediante a organizao dos consrcios intermunicipais. Neste sentido, a organizao espontnea de consrcios preencheu um vazio criado pela falta de poder diretivo dos

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O desenvolvimento federativo do sus e as novas modalidades institucionais de gerncia das unidades assistenciais

Tabela 1- Brasil e Unidades Federadas (UF), 2008: nmero de consrcios de sadeEstado CE ES MG MT PA PB PRFonte: Ministrio da Sade

Consrcios 2 8 65 15 3 7 24

Estado RJ RN RS SC SP Brasil

Consrcios 6 3 16 10 17 176

estados na organizao das suas regies e microrregies assistenciais durante esse perodo. De sua parte, a Norma Operacional de Assistncia de 2002 (NOAS/2002) no faz referncia ao papel dos consrcios, mas estabelece como requisito a formulao do Plano Diretor de Regionalizao (PDR), como instrumento de ordenamento do processo de regionalizao da assistncia em cada estado e no Distrito Federal (mInIstrIo Da saDe, 2002, p. 9). A NOAS afirma que o PDR: fundamenta-se na conformao de sistemas funcionais e resolutivos de assistncia sade, por meio da organizao dos territrios estaduais em regies/microrregies e mdulos assistenciais; da conformao de redes hierarquizadas de servios; do estabelecimento de mecanismos e fluxos de referncia e contra-referncia intermunicipais, objetivando garantir a integralidade da assistncia e o acesso da populao aos servios e aes de sade de acordo com suas necessidades. (Ministrio da sade, 2002, p. 9). A estratgia de formao de consrcios municipais facilmente pode escapar s diretrizes da poltica estadual de organizao da assistncia em microrregies, devido ao carter de cooperao espontnea dos consrcios. Portanto, esta estratgia tem de ser avaliada pelas secretarias estaduais para que possa se ajustar s diretrizes do PDR, o qual, em princpio, busca detectar o conjunto das necessidades e prioridades das microrregies dentro do territrio de cada unidade federada. A trajetria bem-sucedida da descentralizao do SUS comprovada pela Tabela 2, que exibe a evoluo do nmero de leitos hospitalares e do nmero de empregos de mdicos nas trs esferas de governo ao longo do perodo 1992-2005. Os dados evidenciam forte desconcentrao

Tabela 2 - Brasil, 1992-2005: evoluo do nmero de leitos hospitalares e de empregos mdicos nas trs esferas de governoFederal Estadual Municipal Total 1992 24.072 75.147 35.861 135.080 Leitos 2005 Var. 1992-2005 17.189 -28,6 61.699 -17,9 70.078 95,4 148.966 10,3 1992 22.418 56.649 68.968 150.027 Empregos mdicos 2005 Var. 1992-2005 19.733 -12 63.530 12,1 158.104 129,2 243.372 62,2

Fonte: Datasus/IBGE

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de recursos fsicos e humanos no sentido do fortalecimento da capacidade de assistncia pelos governos municipais. Parte desses resultados foi alcanada mediante a cesso descentralizadora de recursos humanos feita pelo Ministrio da Sade, pelas secretarias estaduais de sade e por meio da transferncia para a administrao municipal de hospitais anteriormente mantidos nessas duas esferas. Com efeito, cerca de 70% de todo o pessoal do Ministrio da Sade encontra-se cedido a outros rgos descentralizados do SUS. Mas deve ser observado que novos investimentos em leitos hospitalares e a expanso da fora de trabalho prpria, a partir da edio da Norma Operacional Bsica de 1996 (NOB/96), vieram a aumentar significativamente a capacidade de atendimento pela rede assistencial dos municpios. Em termos do alcance da cobertura das aes e servios do SUS, um indicador expressivo fornecido pela expanso da estratgia de sade da famlia, como se constata pelo Grfico 1. Em 2009, 5.251 municpios contavam com a atuao de equipes de sade da famlia, representando 94% do total de municpios do pas. sabido que esta expanso vem acarretando um custo de legalidade administrativa. Mais de 50% dos recursos humanos da estratgia de sade da famlia so mantidos mediante contratos precrios; por outro lado, em municpios pequenos, a fim de serem atrados e mantidos em seus postos de trabalhos, os mdicos costumam receber remunerao que supera a do prefeito. Esses dois fenmenos caracterizam situaes irregulares. Abrucio (2005), Arretche (2002) e Viana, Lima e Oliveira. (2002) asseveram que o principal impulso para o sucesso da cooperao federativa descentralizadora do SUS deveu-se combinao entre a obedincia s diretrizes emanadas das normas operacionais (bsicas e de assistncia) pactuadas pelas trs esferas de governo na Comisso Tripartite e o estmulo dado pelos repasses financeiros federais em conformidade com o estgio evolutivo da organizao e a complexidade dos sistemas locais de sade. Esta argumentao tem peso considervel, mas, pelo fato de se fundamentar unicamente no pressuposto da conduta racional dos gestores, deixa de levar em

Grfico 1- Brasil, 1994-2009: municpios com equipes de sade da famlia5.565 4.452

3.339 2.226

1.113 01994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

Fonte: Ministrio da Sade

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O desenvolvimento federativo do sus e as novas modalidades institucionais de gerncia das unidades assistenciais

conta a dimenso poltico-ideolgica, a qual pode favorecer alianas ou gerar conflitos entre os diversos atores envolvidos no processo de construo do SUS. preciso ter em vista que o SUS fruto de um dos mais relevantes processos de mobilizao social que ocorreram durante a redemocratizao do pas e em torno da formulao da Constituio de 1988. A reforma sanitria brasileira produziu quatro tipos principais de militantes, que vieram a consolidar suas posies ao longo dos anos 1990: 1) os docentes, os pesquisadores e os estudantes vinculados s instituies de ensino e pesquisa; 2) os gestores do sistema nas trs esferas de governo, com destaque para o movimento municipalista, liderado pelos gestores municipais; 3) os que atuam em ONGs, nos movimentos populares e nos movimentos de defesa dos direitos dos usurios, por exemplo, as entidades de defesa dos portadores de HIV/AIDS; 4) finalmente, os trabalhadores de sade do SUS e aqueles que, embora no vinculados diretamente a este sistema, o defendem enquanto poltica pblica. Esses tipos de militantes no so mutuamente exclusivos, pois, certamente, h muitas possibilidades de sobreposio, como o caso dos gestores que so docentes em instituies universitrias. A hiptese aqui adotada que, de modo geral, esses quatro tipos de atores historicamente tenderam para a convergncia poltica e atuaram em aliana estratgica para reforar os rumos oficialmente definidos na articulao federativa descentralizadora. Em torno desta questo, houve sempre mais convergncia do que divergncia. Desde a VIII Conferncia Nacional de Sade (1986) e a Constituinte (1987 a 1988), um alto grau de consenso poltico entre esses quatro atores veio a constituir o fator decisivo para a conformao federativa do SUS. Este o consenso poltico original, que defendia trs teses convergentes: 1) gesto compartilhada nos mbitos federal, estadual e municipal, com direo nica em cada esfera de governo; 2) descentralizao que concede papel destacado gesto municipal; 3) funcionamento obrigatrio do controle social, por meio dos conselhos de sade. O consenso similar no existe quando se trata de criar e implantar os novos modelos institucionais de gerncia das unidades assistenciais.

As unidades assistenciais pblicas do SUS e seu desempenhoEm 2005, estavam em operao no pas 2.752 unidades assistenciais, pertencentes ao setor pblico das esferas federal, estadual e municipal, providas de recursos de internao. Em conjunto, dispunham de 148.966 leitos, que correspondiam a 33,6% do total de 443.210 leitos para internao existentes no pas. As unidades pblicas com internao apresentavam maior concentrao na regio Nordeste, mas o maior nmero mdio de leitos por unidade encontrava-se na regio Sudeste (Tabela 3).

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Gesto Pblica e Relao Pblico Privado na Sade

Tabela 3 - Brasil e regies, 2005: unidades pblicas com internao segundo tipo de atendimento e mdia de leitos por unidadeTipo Com Regio especializado especialidades Norte 8 163 Nordeste 59 539 Sudeste 51 260 Sul 11 66 Centro-Oeste 6 54 Brasil 135 1.082Fonte: IBGE

Geral 183 654 239 182 252 1.510

Total de unidades 354 1.252 550 259 312 2.727

Total de leitos 15.667 52.492 53.428 14.859 12.520 148.966

Mdia de leitos por unidade 44 42 97 57 40 55

A manipulao dos dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Sade (CNES) permite obter uma imagem atualizada da distribuio regional de leitos pblicos e privados. Evidencia-se que a regio Sudeste concentra, proporcionalmente, quantidade maior de leitos de internao pblicos do que o Nordeste (36,9 contra 34,5%), ao mesmo tempo em que concentra expressiva proporo de leitos privados (43,8%). Contudo, o nmero absoluto de leitos pblicos no Sudeste pouco maior que no Nordeste, enquanto que, no mbito privado, h duas vezes mais leitos no Sudeste (Tabela 4). Portanto, conclui-se que o SUS obteve resultado favorvel equidade entre essas duas regies na implantao de seu sistema assistencial. Os leitos pblicos esto localizados em unidades assistenciais que variam muito em sua oferta de leitos e, portanto, na capacidade de atendimento: desde as chamadas unidades mistas, que fazem predominantemente atendimento ambulatorial e dispem de nmero reduzido de leitos de internao, at as unidades hospitalares de grande porte, que contam com mais de 300 leitos. As unidades assistenciais com internao costumam ser divididas em trs grupos: 1) atendimento especializado (unidades que admitem pacientes para uma nica especialidade, por exemplo, oncologia, traumatologia ou cardiologia); 2) atendimento com especialidades (admitem pacientes para diversos servios ou enfermarias especializadas); 3) atendimento geral de pacientes para servios clnicos e cirrgicos gerais (no tm distino organizacional de especialidades). Mas preciso ter em conta que grande parte dos hospitais especializados corresponde s tradicionais maternidades (atendimento em ginecologia e obs-

Tabela 4 - Brasil e regies, outubro de 2009: leitos pblicos e privados de internaoRegio Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste BrasilFonte: CNES

Pblicos 18.842 61.593 65.860 17.253 14.790 178.338

% 10,6 34,5 36,9 9,7 8,3 100

Privados 14.472 70.353 158.122 64.767 25.864 333.578

% 4,3 21,1 47,4 19,4 7,8 100

Total 33.314 131.946 223.982 82.020 40.654 511.916

% 6,5 25,8 43,8 16 7,9 100

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O desenvolvimento federativo do sus e as novas modalidades institucionais de gerncia das unidades assistenciais

tetrcia), as quais, em geral, tm pequeno porte e baixo grau de complexidade tecnolgica; muitas nem sequer dispem de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) para recm-nascidos. A portaria ministerial n 2.224 de 5 de dezembro de 2002 estabeleceu critrios de classificao das unidades hospitalares para os estabelecimentos pblicos e privados com leitos disponveis ao SUS, conforme discriminados no Quadro 1. De acordo com o nmero de pontos alcanados, os hospitais so classificados em 4 tipos: porte I (1 a 5 pontos); porte II (6 a 12 pontos); porte III (13 a 19 pontos) e porte IV (20 a 27 pontos). Os hospitais de porte III e IV correspondem aos estabelecimentos que se caracterizam por concentrarem procedimentos de mdia e alta complexidade hospitalar e ambulatorial. Tais procedimentos admitem grande diversidade, mas alguns dos mais importantes podem ser mencionados a ttulo ilustrao: patologia clnica, terapia renal substitutiva (dilise renal), quimioterapia, radiodiagnstico, hemoterapia e medicamentos de dispensao excepcional. Naturalmente, esse o setor de mais alto dispndio financeiro no mbito do SUS, absorvendo parcela considervel dos oramentos pblicos da sade, especialmente nas esferas federal e estadual. O Ministrio da Sade mantm unidades prprias, de alta complexidade, no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul. No Rio de Janeiro se localizam trs institutos nacionais: o de Oncologia (INCA), o de Cardiologia (INC) e o de Traumatologia e Ortopedia (INTO). Por outro lado, as transferncias do Ministrio da Sade para o pagamento de procedimentos de mdia e alta complexidade representam, em geral, o dobro do destinado s aes de ateno bsica. Em 2006, a transferncia neste item de despesa do ministrio alcanou quase 13 bilhes de reais, em comparao com 6,7 bilhes destinados ateno bsica (Tabela 5). Um dos pontos de maior debilidade do SUS como poltica social encontra-se na grande fragmentao dos seus subsistemas de ateno. Tal fragmentao abrange aspectos que so, de um lado, de natureza tcnico-financeira e, de outro, de natureza social, pois implicam a diferenciao da extrao social da sua clientela. Por exemplo, os servios de alta complexidade costumam ser utilizados pela clientela de classe mdia e mesmo a elite, que tambm so usurias dos servios de planos de sade; por outro lado, a ateno bsica s utilizada por esses grupos excepcionalmente, a no ser em relao a alguns servios de sade pblica, tais como a vacinao de crianas e de idosos. As aes e servios de alta complexidade tm altssimo custo e grande visibilidade social, o que garante a convergncia de interesses polticos e econmicos entre gestores, prestadores e usurios de classe mdia e elite. Neste caso, o SUS no funciona, de fato, como um sistema pobre para os pobres. Paradoxalmente, a alta complexidade o nico subsistema que mantm o carter originalmente previsto do SUS: relativamente universal e igualitrio1. Por outro lado, por funcionar frequentemente como instncia isolada, que se mantm, sobretudo mediante1

Pode-se interpretar que o uso continuado desse nvel de ateno pela classe mdia justificvel do ponto de vista dos objetivos de uma poltica pblica, na

medida em que constitui uma espcie de seguro provido pelo Estado em relao a riscos econmico-sociais catastrficos que podem acometer o indivduo e sua famlia.

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32ITENS DE AVALIAO B Tipo de UTI Alta complexidade 1 Pronto atendimento Servio de urgncia/ emergncia Referncia nvel I ou II Referncia nvel III ------Urgncia Emergncia Gestao de alto risco C D E F G Salas cirrgicas At 2 Mnimo 1 Pontos totais 1a4 ----5a9 Tipo II 2 Nvel I Entre 3 e 4 10 a 29 -----3 Nvel II Entre 5 e 6 Mximo 27 30 ou mais Tipo III 4 ou mais -----Acima de 8

Quadro 1 - Critrio de classificao das unidades hospitalares pelo Ministrio da Sade

Gesto Pblica e Relao Pblico Privado na Sade

Pontos por item

A

N de Leitos

Leitos de UTI

1 ponto

20 a 49

2 pontos

50 a 149

3 pontos

150 a 299

4 pontos

300 ou mais

Fonte: Ministrio de Sade. - n 2.224 de 5 de dezembro de 2002

O desenvolvimento federativo do sus e as novas modalidades institucionais de gerncia das unidades assistenciais

Tabela 5 - Brasil, 2006: recursos transferidos do Ministrio da Sade por grupo de despesasGrupo de despesa Mdia e alta complexidade Ateno bsica Aes estratgicas TOTALFonte: Datasus

Valor despendido 12.878.797.580 6.787.272.182 2.233.448.916 21.899.518.678

convnios e contratos com entidades privadas, a alta complexidade vista, s vezes, como o vilo do SUS, na medida em que seus altos custos subtraem recursos dos demais subsistemas e raramente atua de forma integrada com demais nveis de ateno. Assim, no exerccio de sua funo de assistncia direta sade (portanto, excluindo aes e servios de vigilncia sanitria), o SUS hoje composto por quatro subsistemas heterogneos e relativamente independentes: 1) os hospitais e ambulatrios, que realizam atendimentos de alta e mdia complexidade tcnica (de porte IV e III, na classificao mencionada); 2) as maternidades e pequenos hospitais de atendimento geral (majoritariamente de porte I); 3) os servios de urgncia e emergncia que podem ser hospitalares e ambulatoriais, a par dos servios de remoo de pacientes graves e atendimento imediato (Servio de Atendimento Mvel de Urgncia SAMU); 4) os servios bsicos de sade, que incluem a estratgia de sade da famlia. Essas consideraes preliminares servem tambm ao propsito de chamar ateno para a necessidade de avaliar a questo da qualidade da assistncia hospitalar no SUS, de acordo com certas condies sociais, financeiras e tcnicas, que criam fortes diferenas de efetividade (ou seja, de capacidade de atendimento) entre suas unidades assistenciais. O subsistema 2, que abrange unidades pblicas e privadas conveniadas, o que mais padece das consequncias dos nveis insuficientes de financiamento do SUS. Em geral, essas unidades hospitalares esto obrigadas a limitar sua capacidade de atendimento por escassez de recursos humanos e materiais. Para a opinio pblica, a face mais visvel desses problemas so as longas filas ou o longo tempo de espera para consultas e internaes. Como a qualidade e a presteza do cuidado deixam a desejar, mesmo no caso de procedimentos relativamente simples, como o parto, a classe mdia espontaneamente se exclui desse subsistema e utiliza os servios privados equivalentes, credenciados pelos planos de sade. preciso ter em vista o pano de fundo do financiamento do SUS para que se faa apreciao adequada dos problemas do desempenho gerencial de suas unidades operacionais. Com efeito, uma breve comparao internacional (Tabela 6) permite que se tenha ideia mais clara dos nveis

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Gesto Pblica e Relao Pblico Privado na Sade

Tabela 6 - Despesa per capita do Governo com Sade (Dlares, PPP) e como porcentagem da despesa per capita total com sade, 2006Argentina Bolvia Brasil Chile Colmbia Cuba Equador Estados Unidos Mxico Despesa do Governo - Dlares (PPP) 549 161 323 363 396 617 165 3.076 344 % Total 45,6 62,6 47,9 52,7 85,3 91,5 43,5 45,8 44,2

Fonte: WHO, World Health Statistics, 2009 PPP: Paridade de Poder de Compra (do ingls Purchasing Power Parity)

inadequados da despesa pblica com sade no Brasil, sobretudo por se tratar de um pas que, constitucionalmente, dispe de sistema de acesso universal e igualitrio2. V-se que o gasto pblico total per capita com sade no Brasil limita-se a 323 dlares e representa menos da metade (47,9%) do gasto total, que inclui o gasto privado das famlias. O gasto governamental per capita do Brasil menor que o dos pases da Amrica Latina com grau semelhante de desenvolvimento (Argentina, Chile e Mxico) e, inclusive, se situa abaixo do gasto da Colmbia. Por certo, essa condio de financiamento insuficiente afeta o desempenho das unidades hospitalares do SUS, especialmente quanto aos tipos de porte I e II, com reflexos sobre alguns indicadores de sade, dos quais cumpre salientar a mortalidade neonatal e a mortalidade materna. Aqui se tomou como referncia unicamente a mortalidade neonatal, dado que a qualidade do indicador de mortalidade materna est comprometida devido a problemas de subregistro das causas especficas de bito. No Brasil, a mortalidade infantil vem caindo em ritmo constante, o que se deve, em grande parte, queda da fecundidade e s melhorias nas condies de vida da populao e na cobertura por servios de ateno bsica de sade e saneamento. Contudo, tem sido surpreendentemente lenta a diminuio da mortalidade neonatal (bitos de recm-nascidos com menos de quatro semanas de vida) e, particularmente, da mortalidade neonatal precoce (bitos de recm-nascidos com menos de uma semana de vida). Esses indicadores dependem estreitamente de boa assistncia pr-natal e da qualidade dos servios hospitalares no momento do parto e nos dias seguintes subsequentes. Deve-se ter em conta que 98% dos partos no Brasil so realizados em hospitais (rIpsa, 2009). O Grfico 2 compara a velocidade de queda desses dois indicadores, evidenciando que, entre 2000 e 2006, a mortalidade infantil caiu 6 pontos, enquanto a mortalidade neonatal precoce caiu apenas 3 pontos (por mil).

2

Os indicadores de despesas com sade citados na Tabela 6 procedem do relatrio mundial de estatsticas de sade publicada pela Organizao Mundial da

Sade (WHO, 2009).

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O desenvolvimento federativo do sus e as novas modalidades institucionais de gerncia das unidades assistenciais

Grfico 2 - Brasil, 2000-2006: Comparao da evoluo da taxa de mortalidade infantil com a taxa de mortalidade infantil neonatal precoce (por mil nascidos vivos)35 30 25 20 15 10 5 02000 2001 2002 2003 2004 2006 2005

Taxa de Mortalidade Infantil (MI)Fonte: Datasus

Taxa MI noenatal precoce

As principais causas dos bitos neonatais so a prematuridade, as infeces e a asfixia ou hipxia do recm-nascido, causas que, ao contrrio dos defeitos congnitos, tm grande potencial de preveno por meio da assistncia qualificada do sistema de ateno s gestantes, ao parto e ao puerprio imediato. Para que se tenha ideia desse potencial de preveno, cumpre mencionar que o risco relativo de morte de crianas brasileiras por asfixia ou hipxia intraparto quase nove vezes maior que o verificado nos Estados Unidos (rIpsa, 2009). Ademais, a taxa brasileira de mortalidade neonatal mais do que o dobro da que se verifica no Chile e em Cuba. As altas taxas de mortalidade neonatal constituem evidncia de que o Brasil ainda apresenta deficiente qualidade de assistncia hospitalar ao parto. H problemas de capacitao tcnica de recursos humanos, mas no h dvidas de que os estabelecimentos gerais de menor porte, que incluem a maioria das maternidades, so justamente os mais atingidos pelos problemas de financiamento do SUS.

Situao atual das novas modalidades de gerncia e os conflitos polticos em torno delasA avaliao conduzida pelo Banco Mundial evidenciou que as principais deficincias que afetam a qualidade do cuidado nos hospitais brasileiros esto relacionadas s reas de suprimento de medicamentos, de gesto das pessoas e de equipamentos e insumos mdicos (WorlD bank, 2007). Esses problemas foram identificados pelos respondentes dos questionrios da investigao como sendo resultantes de baixa eficincia e eficcia no manejo de recursos, ou seja, como devidos ao mau desempenho gerencial. Em geral, os hospitais estaduais registraram dificuldades gerenciais mais srias do que seus congneres federais.

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Gesto Pblica e Relao Pblico Privado na Sade

A falta de autonomia na gesto de recursos humanos e materiais repetidamente referida como o fator principal que, no mbito do SUS, dificulta a prestao de servios hospitalares com agilidade e qualidade. As unidades assistenciais vinculadas administrao pblica direta enfrentam inmeros problemas criados pela falta de autonomia oramentria, financeira e administrativa, que acaba por comprometer sua efetividade. Um desses problemas a dificuldade de incorporar profissionais e especialistas de sade no nmero e na diversidade que se fazem necessrios. igualmente prejudicada a relao com o mercado de insumos de sade (medicamentos e equipamentos) e com os parceiros do setor privado, que tm em comum a caracterstica de alto dinamismo tecnolgico. Os motivos da baixa efetividade podem ser desdobrados da seguinte maneira: 1) reduzida autonomia tcnico-administrativa, devido s normas e procedimentos tpicos da administrao direta; 2) limitaes criadas pela Lei de Responsabilidade Fiscal, especialmente quanto admisso e expanso dos recursos humanos; 3) falta de agilidade nos processos licitatrios para a aquisio de equipamentos e insumos de necessidade urgente; 4) dificuldades de incorporao de pessoal mais qualificado e de certas especialidades, inclusive porque alguns profissionais, a exemplo dos anestesistas e oftalmologistas, recusamse a prestar concurso pblico ou prestam, mas no assumem as vagas disponveis. Atualmente, duas modalidades institucionais principais se apresentam aos gestores do SUS como possvel soluo para o problema da falta de autonomia gerencial das unidades assistenciais as Organizaes Sociais (OS) e as Fundaes Estatais (FE). Alm dessas duas modalidades, h as Fundaes de Apoio (FA) e as Organizaes da Sociedade Civil de Interesse Pblico (OSCIP). Contudo, as FA tm como misso precpua o apoio a atividades de pesquisa e ensino realizadas pelo hospital e, ao se imiscurem nas atividades de gesto, deixam de respeitar esse limite legal. As OS configuram-se como entidades gestoras, de carter privado, mas sem finalidade de lucro, vinculando-se s secretarias de sade por meio de contratos de gesto. J as FE constituem fundaes pblicas com estrutura de direito privado, caracterizadas por obedecerem a regras flexveis ou simplificadas de direito administrativo e por estarem adstritas ao mbito da administrao indireta do Estado3. Essas duas novas modalidades institucionais esto sendo implantadas pelos gestores em meio a conflitos com outros importantes atores do SUS. No Quadro 2, tem-se uma descrio da situao atual dessa tendncia de inovao institucional do SUS em seus aspectos qualitativos e quantitativos. til comear pela viso qualitativa, resumindo o conjunto dos aspectos legais e organizacionais das quatro modalidades. A lei federal que facultou a criao das fundaes de apoio de 1994, portanto, precede s iniciativas de reforma administrativa do Estado. O decreto regulamentador mais recente (N 5.205,3

A necessidade de encontrar uma soluo alternativa em relao ao modelo de gesto terceirizado das OS foi implicitamente reconhecida durante o governo

Lula, quando o Ministrio do Planejamento iniciou a realizao de estudo pormenorizado das bases jurdicas e administrativas das FE. A formulao do modelo das FE atendeu a uma solicitao feita em 2005 pelo Ministrio da Sade, que considerava imperativa a completa transformao institucional dos hospitais federais do Rio de Janeiro, que viviam uma constante crise de gesto de recursos humanos e materiais.

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Quadro 2 - Modalidades institucionais de flexibilizao, parceria e terceirizao da gesto pblicaOrganizao social e OSCIP Fundao estatal

Fundao de apoio

Base legal

Lei n 8.958, de 20 de dezembro de Lei n 9.637, de 15 de maio de 1998; Projeto de Lei n 92 de 2007 que Regulamenta 1994; Decreto n 5.205, de 14 de Lei n 9.790, de 23 de maro de1999 o inciso XIX do art. 37 da Constituio FedeSetembro de 2004 ral (em tramitao no Congresso Nacional) No administrao pblica Administrao indireta

Relao com a administrao pblica Direito privado No observa

No administrao pblica

Personalidade jurdica

Direito privado

Direito privado Regime administrativo mnimo

Normas de direito pblico No observa

Financiamento e fomento Convnio

Contrato de gesto/termo de parceria Contrato de autonomia Oramentria e financeira Oramentria e financeira

Autonomia

Oramentria e financeira

Superviso ministerial

Do convnio

Sobre contrato de gesto/termo de Direta parceria Dos recursos do contrato de gesto CGU e TCU

Controle interno e externo Dos recursos do convnio

O desenvolvimento federativo do sus e as novas modalidades institucionais de gerncia das unidades assistenciais

Fonte: Ministrio do Planejamento; adaptado pelo autor

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Gesto Pblica e Relao Pblico Privado na Sade

de 14 de setembro de 2004) explicita que suas atividades abrangem, em instituies federais, o gerenciamento de projetos de ensino, pesquisa e extenso, e de desenvolvimento institucional, cientfico e tecnolgico. No caso dos hospitais, os principais beneficirios so as unidades ligadas s universidades federais. Contudo, alguns dos hospitais do Ministrio da Sade e das unidades federadas enquadram-se nestas condies e, atualmente, mantm fundaes de apoio. No se tem informao, entretanto, sobre quantos hospitais contam com fundaes de apoio. Com o passar dos anos, as fundaes de apoio de grandes hospitais federais e estaduais foram diversificando suas funes e acabaram por exercer auxlio no somente s atividades de ensino e pesquisa, mas tambm gesto flexvel dessas unidades assistenciais, especialmente no campo dos recursos humanos. Por exemplo, em situaes que caracterizam patente carncia de quadros de pessoal para o funcionamento dos hospitais, as fundaes de apoio realizam contratao de celetistas ou temporrios para assumir funes assistenciais e administrativas. De sua parte, o Ministrio Pblico tem movido aes por enxergar irregularidade nessa mediao de uma entidade privada nos contratos de fora de trabalho com o poder pblico. Em concluso, as fundaes de apoio passaram a ser importante instrumento institucional para a flexibilidade da gerncia dos hospitais pblicos (maCIel, 2005). Em algumas situaes, o grau de interdependncia gerencial entre o hospital e sua fundao de apoio de tal ordem que o funcionamento do hospital torna-se invivel se a fundao se limitar a administrar projetos de pesquisa e ensino. O conceito doutrinrio de administrao pblica gerencial, em substituio ao modelo burocrtico, foi defendido no Plano Diretor da Reforma Administrativa de 1995, adotado parcialmente no primeiro mandato do governo Fernando Henrique. Em reao ao modelo gerencial burocrtico habitual, preconizou-se o processo de publicizao, por meio da modalidade institucional OS em reas de servios diretos aos cidados. Uma OS pode ser descrita como uma entidade gestora privada, sem finalidade de lucro, que opera sob controle do poder pblico mediante um contrato de resultados. As OS foram concebidas primariamente para prestar servios de educao, sade e investigao, em que supostamente h concorrncia implcita entre os setores privado e pblico. Pioneiro da implantao das OS no SUS, o governo do Estado de So Paulo adotou este modelo para fins de gesto terceirizada de mais de uma dezena de hospitais na periferia da regio metropolitana de sua capital no final da dcada de 1990. Por sua vez, em 2006, a cidade de So Paulo foi o primeiro municpio a qualificar as OS para a operao de unidades hospitalares da sua rede. Dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Sade (Tabela 7) mostram que, em 2009, havia, no pas, 106 unidades assistenciais de OS operando no SUS. Tomando-se o dado do Estado de So Paulo, esse nmero parece estar subestimado, j que, segundo informaes divulgadas pela Secretaria Estadual de Sade, estavam em funcionamento, nesse ano, nada menos que 35 estabelecimentos de OS,