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CURRÍCULO E DOCÊNCIA: UMA REFLEXÃO A PARTIR DO CONTEXTO DAS POLÍTICAS E PRÁTICAS O painel articula diferentes pesquisas que dialogam a respeito de análises de políticas curriculares como temática central, relacionadas à formação de professores, aos processos de constituição de identidade docente e às políticas de avaliação em larga escala. As pesquisas também se aproximam por analisarem discursos de documentos curriculares bem como questionarem e problematizarem a defesa do discurso hegemônico de padronização curricular. Por meio de diferentes metodologias e aportes teóricos, destaca-se a impossibilidade de padronização curricular na formação docente, tendo em vista que esse campo é marcado pela negociação de sentidos, de diferentes contextos culturais e de pluralidade nas práticas pedagógicas. Nesse sentido, entende-se que currículo é uma produção cultural, em constante recontextualização e ressignificação na prática escolar. Buscando contribuir com outras pesquisas no campo curricular, este painel busca discutir uma panorâmica de políticas curriculares de formação de professores através da metodologia do Estado da Arte privilegiando a análise discursiva de documentos curriculares da Educação Básica e da modalidade da Educação de Jovens e Adultos (EJA) com o texto: Questões Curriculares: Olhar Panorâmico sobre a Docência, uma pesquisa bibliográfica e análise documental de cursos de Licenciatura em Pedagogia e de Instituições de Ensino Superior (IES) com: A Tradução das Diretrizes Curriculares Nacionais de Pedagogia (DCNP) em MT: Entre Dissensos e Acordos Provisórios e, entrevistas com professores produzidas no âmbito do Observatório de Educação financiado pela CAPES/INEP com: Diferença Cultural e Currículo: O que Dizem os Professores Enredados na Avaliação em Larga Escala. Em síntese, os três textos trazem para o centro da discussão a problematização do currículo hegemônico e possibilidades de subversão e transgressão. Palavras-chave: Currículo, Formação Docente. Formação Docente. Padronização Curricular. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 6378 ISSN 2177-336X

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Page 1: CURRÍCULO E DOCÊNCIA: UMA REFLEXÃO A PARTIR DO … · compreensão do currículo como prática de significação e da política de currículo como um discurso, este sendo entendido

CURRÍCULO E DOCÊNCIA: UMA REFLEXÃO A PARTIR DO CONTEXTO

DAS POLÍTICAS E PRÁTICAS

O painel articula diferentes pesquisas que dialogam a respeito de análises de políticas

curriculares como temática central, relacionadas à formação de professores, aos

processos de constituição de identidade docente e às políticas de avaliação em larga

escala. As pesquisas também se aproximam por analisarem discursos de documentos

curriculares bem como questionarem e problematizarem a defesa do discurso

hegemônico de padronização curricular. Por meio de diferentes metodologias e aportes

teóricos, destaca-se a impossibilidade de padronização curricular na formação docente,

tendo em vista que esse campo é marcado pela negociação de sentidos, de diferentes

contextos culturais e de pluralidade nas práticas pedagógicas. Nesse sentido, entende-se

que currículo é uma produção cultural, em constante recontextualização e

ressignificação na prática escolar. Buscando contribuir com outras pesquisas no campo

curricular, este painel busca discutir uma panorâmica de políticas curriculares de

formação de professores através da metodologia do Estado da Arte privilegiando a

análise discursiva de documentos curriculares da Educação Básica e da modalidade da

Educação de Jovens e Adultos (EJA) com o texto: Questões Curriculares: Olhar

Panorâmico sobre a Docência, uma pesquisa bibliográfica e análise documental de

cursos de Licenciatura em Pedagogia e de Instituições de Ensino Superior (IES) com: A

Tradução das Diretrizes Curriculares Nacionais de Pedagogia (DCNP) em MT: Entre

Dissensos e Acordos Provisórios e, entrevistas com professores produzidas no âmbito

do Observatório de Educação financiado pela CAPES/INEP com: Diferença Cultural e

Currículo: O que Dizem os Professores Enredados na Avaliação em Larga Escala. Em

síntese, os três textos trazem para o centro da discussão a problematização do currículo

hegemônico e possibilidades de subversão e transgressão.

Palavras-chave: Currículo, Formação Docente. Formação Docente. Padronização

Curricular.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

6378ISSN 2177-336X

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A TRADUÇÃO DAS DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS DE

PEDAGOGIA (DCNP) EM MT: ENTRE DISSENSOS E ACORDOS

PROVISÓRIOS

Silvana de Alencar Silva- IFMT/UFMT/

Ozerina Victor de Oliveira-UFMT

Resumo: Esta pesquisa problematiza a tradução das DCNP instituídas pelo Parecer

CNE/CN nº. 05/2005 e pela Resolução CNE/CP nº. 1, de 15 de maio de 2006 realizada

em seis cursos de Licenciatura em Pedagogia, em Instituições de Ensino Superior (IES)

do estado de Mato Grosso. O objetivo é compreender o processo de tradução produzido

nestes cursos, os sentidos e significados dados ao elaborarem seus próprios projetos de

currículo a partir das DCNP. Trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa que

decide pela pesquisa bibliográfica (OLIVEIRA, 2007) e pela análise documental

(CELLARD, 2008; SANTIAGO, 2008) dos Projetos Pedagógicos de Curso (PPC) no

que diz respeito em especial a sua organização curricular. Os aportes teórico-

metodológicos que lhe dão sustentação se pautam na noção de tradução da Teoria do

Discurso de Laclau (2011), nas contribuições de Hall (1997; 2003) e em apropriações

desta noção para o campo do currículo (Lopes, Cunha e Costa, 2013). Da análise

conclui-se que a tradução das DCNP nos cursos de Licenciatura em Pedagogia em MT

se caracteriza como um processo de negociação, marcado por dissensos e acordos

provisórios, pois, os cursos estabelecem diálogo entre sua identidade originária e a

identidade proposta para a pedagogia nas DCNP. Esse processo de tradução indica que

os dissensos e a instabilidade de sentidos que o configuram dão corpo ao caráter híbrido

dos PPCs. A tradução constrói a identidade profissional num movimento agonístico, na

medida em que nunca se completa, pois sua característica é a indecidibilidade, a sempre

impossibilidade de acessar o “real” significado das DCNP.

Palavras-chave: Pedagogia; Diretrizes Curriculares; Tradução.

Desde a sua criação em 1939 o curso de Pedagogia vem sofrendo mudanças e

reformulações. Além disso, segundo Beraldo e Oliveira (2010), a polêmica acerca da

identidade da Pedagogia e do pedagogo tem influenciado diretamente a organização dos

seus currículos. Entre mudanças e polêmicas, as DCNP constituem a última legislação

vigente voltada a normatizar os cursos de Pedagogia em âmbito nacional (PARECER

CNE/CN nº. 05/2005 e RESOLUÇÃO CNE/CP nº. 1, de 15 de maio de 2006). Um dos

desdobramentos dessa legislação é a reelaboração do PPC dos cursos, por parte das

Instituições de Ensino Superior (IES).

A respeito das DCNP, muito se tem produzido acerca dos embates travados,

desde a sua concepção até sua promulgação (MAZZOTTI, 1996; PIMENTA, 1997;

AGUIAR; MELO, 2005; LIBÂNEO, 20006; AGUIAR et al., 2006; FRANCO et al.,

2007; SAVIANI, 2007; 2008; SHEIBE, 2007; BERALDO; OLIVEIRA, 2010;

SHEIBE; DURLI, 2011; DOURADO, 2013, entre outros).

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A inserção nesse debate requer ir além da discussão da promulgação de

diretrizes nacionais, abordando seus desdobramentos nos cursos de Pedagogia.

Conforme simpósios realizados em eventos nacionais, encontram-se em processo

pesquisas de âmbito nacional, mas constata-se a carência em se destacar os

desdobramentos das DCNP em realidades específicas como a do estado de Mato

Grosso. Tendo isso em vista, esta pesquisa problematiza o processo de tradução das

DCNP em IES localizadas em Mato Grosso. O objetivo foi compreender esse processo

de tradução, acessando os sentidos e significados nele produzidos.

Em termos teóricos, a pesquisa que ora se apresenta encontra-se orientada pela

compreensão do currículo como prática de significação e da política de currículo como

um discurso, este sendo entendido a partir da Teoria do Discurso de Ernesto Laclau.

A análise do processo de tradução das DCNP a partir dessa Teoria do Discurso

pressupõe uma perspectiva de acesso restrito e precário a significados e sentidos que

constituem os discursos. O acesso restrito, por sua vez, é compreendido como a

impossibilidade de acessar o „real‟ na medida em que ele é sempre construído e

reconstituído a partir de múltiplos olhares e interpretações. Portanto, esse acesso é

sempre precário, é constantemente “passível de resistência, deslocamento e contestação

por outras lógicas e discursos.” (OLIVEIRA; OLIVEIRA; MESQUITA, 2013 p.19)

Reitera-se que investigar uma política de currículo a partir da noção de tradução

implica “[...] metaforicamente, lidar com uma „fotografia‟, um quadro discursivo

(texto/contexto de significação) delimitado por antagonismo e exclusão.” (LACLAU,

2011 apud LOPES; CUNHA; COSTA, 2013, p. 400). Sob esse aspecto, o quadro

discursivo não se compõe por sentidos e significados unívocos, mas por uma

multiplicidade destes, configurado por hibridismo, que expressa, ao mesmo tempo,

negação e afirmação. O entendimento de que os textos são híbridos implica em

compreender a não possibilidade de uma única leitura. Por essa via, Hall (2003) afirma

que: “O hibridismo não se refere a indivíduos híbridos, que podem ser contrastados com

os "tradicionais" e "modernos" como sujeitos plenamente formados” (p.74)

Mesmo envolto por restrições, precariedades e hibridismos, o processo de

tradução implica hegemonia de sentidos e significados. Nessa perspectiva, a hegemonia

é “uma relação em que um conteúdo particular assume, num certo contexto, a função de

encarnar uma plenitude ausente” (LACLAU, 2002 p. 122 apud MENDONÇA, 2007, p.

76).

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Para a coleta de dados, a opção na pesquisa é pela análise documental dos

PPCs dos cursos. A escolha pelo PPC se justifica por ser este um documento que

organiza pedagogicamente o funcionamento do curso e, sobretudo, materializa

processos de significação de um currículo.

Dos PPCs disponibilizados, organizam-se as informações de modo que

nenhuma IES fosse identificada, pois a intenção é compreender as particularidades do

processo de tradução das DCNP de cada curso e não estabelecer comparações entre eles,

muito menos entre as IES. Na organização dos dados e exposição da análise, atribui-se

aleatoriamente sigla alfabética a IES e aos cursos e numérica aos seus respectivos PPCs.

Sendo assim, tem-se: IES Y, curso de Pedagogia A- PPC1 e curso de Pedagogia B-

PPC2; IES W, curso de Pedagogia C- PPC3, curso de Pedagogia D- PPC4 e curso de

Pedagogia F- PPC6; e IES Z: curso de Pedagogia E- PPC5.

Aspectos da tradução

A análise do conjunto dos seis cursos identificou que cinco PPCs se vinculam a

IES pública e um a IES privada. Em relação à nomenclatura dos PPCs, dois o

nomearam de Projeto Pedagógico de Curso (PPCs 2 e 3), dois de Projeto Político

Pedagógico de Curso (PPCs 1 e 5), outro de Projeto Político Pedagógico curricular do

curso de licenciatura em Pedagogia (PPC6). Por sua vez, o PPC4 não nomeou o referido

documento. No que tange à denominação do curso, quatro o definiram como

Licenciatura em Pedagogia (PPCs 3, 4, 5 e 6) e os outros dois (PPCs 1 e 2) como

graduação em Pedagogia. Além disso, o prazo mínimo e máximo para integralização

curricular dos cursos em análise está entre quatro e sete anos.

O diploma conferido aos egressos em todos os seis PPCs é o de Licenciatura em

Pedagogia, inclusive por parte daqueles PPCs que denominam o curso de graduação em

Pedagogia conferiram o mesmo diploma. Essa uniformidade pode indicar o atendimento

à determinação das DCNP.

Segundo o documento, o egresso do curso faz jus ao diploma de Licenciatura

em Pedagogia, podendo atuar no magistério, no planejamento, execução de programas e

projetos pedagógicos em ambientes escolares e não escolares. De acordo com as DCNP:

[...] os seus egressos recebem o grau de Licenciados (as) em Pedagogia, com

o qual fazem jus a atuar como docentes na Educação Infantil, nos anos

iniciais do Ensino Fundamental e em disciplinas pedagógicas dos cursos de

nível médio, na modalidade Normal e de Educação Profissional na área de

serviços e apoio escolar e em outras em que disciplinas pedagógicas estejam

previstas, no planejamento, execução e avaliação de programas e projetos

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pedagógicos em sistemas e unidades de ensino, e em ambientes não-

escolares. (BRASIL, 2005).

No que diz respeito ao turno de funcionamento, as IES públicas ofertam o

curso nos turnos matutino, vespertino e noturno, ao passo que a IES privada optou pelos

períodos matutino e noturno, ou seja, dos seis cursos investigados, quatro são ofertados

no período noturno.

Em relação a isso, Scheibe (2010) identificou não haver diferenças em relação

às características e condições dos cursos de Pedagogia ofertados no período diurno

(matutino/vespertino) e o noturno. Essa realidade é constatada, por exemplo, no

momento da realização dos estágios na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino

Fundamental realizados no período diurno, uma vez que essas etapas de ensino da

educação básica somente são ofertadas no referido período. A referida autora considera

isso preocupante uma vez que as DCNP priorizam a formação de professores para a

Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental. Diante dessa problemática,

como possibilitar a real participação dos estudantes, futuros professores, nos estágios e

nas práticas de ensino?

No que se refere à nota do ENADE, numa escala de 01 a 05, dois cursos (PPCs

1 e 2) apresentam a nota quatro, e quatro cursos (PPCs 3, 4, 5 e 6), respectivamente, a

nota três. Segundo o MEC, a nota quatro indica uma boa qualidade do curso. A nota três

indica que o curso atendeu minimamente a qualidade estipulada pelo MEC, não

havendo por isso a necessidade de intervenção no curso. Para o MEC a análise do

ENADE é um importante aspecto a ser considerado, porque ele avalia o conhecimento

do aluno em relação às diretrizes dos cursos de graduação, servindo de parâmetro de

escolha para os futuros acadêmicos. (MEC, 2012)

A carga horária total do curso nos PPCs 1 e 4 é das maiores, compreendendo

3.545h, seguido do PPC3, com 3.460h. Em seguida, tem-se o PPC6, com 3.400 h, e,

posteriormente, os PPCs 2 e 5, com 3.200h. Em relação à distribuição da carga horária

total do curso entre as disciplinas obrigatórias e optativas, o PPC4 aparece com sessenta

e três disciplinas, seguido do PPC3 com cinquenta e quatro disciplinas. Posteriormente

desponta o PPC6 com cinquenta e três, o PPC5 com quarenta e sete, o PPC1 com

quarenta e seis, e em menor quantidade, o PPC2 com trinta e cinco disciplinas.

No que se refere à carga horária do estágio supervisionado, os PPCs 1, 2 e 5

apresentam as mesmas e as menores carga horária (300h), seguido pelos PPCs 3 e 6,

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com 480h, finalizando com o PPC4 com 570h. Conforme determinam as DCNP, a carga

horária do estágio supervisionado compreende 300h de Estágio Supervisionado

[...] prioritariamente em Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino

Fundamental [...] b) nas disciplinas pedagógicas dos cursos de Ensino Médio,

na modalidade Normal; c) na Educação Profissional na área de serviços e de

apoio escolar; d) na Educação de Jovens e Adultos; e) na participação em

atividades da gestão de processos educativos, no planejamento,

implementação, coordenação, acompanhamento e avaliação de atividades e

projetos educativos; f) em reuniões de formação pedagógica. (BRASIL,

2006)

Segundo Alarcão (1996), o estágio deve ser considerado tão importante quanto

os outros conteúdos curriculares do curso. Para Pimenta (2010) “Aprender a profissão

docente no decorrer do estágio supõe estarem atentos às particularidades e as interfaces

da realidade escolar em sua contextualização na sociedade” (p.111).

Para Barreiro e Gebran (2006), o estágio supervisionado é um dos elementos

da política de formação do pedagogo de cada curso. Ademais, o estágio “[...] pode se

construir no lócus de reflexão e formação da identidade ao propiciar embates no

decorrer das ações vivenciadas pelos alunos, desde que efetivado com essa finalidade”.

(BARREIRO e GEBRAN, 2006, p. 20)

Para Pimenta e Lima (2004) o estágio tem de ser teórico-prático, ou seja, a

teoria é indissociável da prática. Para isso, é preciso entender o conceito de prática e de

teoria a partir do conceito de práxis, “que aponta para o desenvolvimento do estágio

com uma atitude investigativa, que envolve a reflexão e a intervenção na vida da escola,

dos professores, dos alunos e da sociedade” (p. 34).

Portanto, a importância do estágio profissional na formação do pedagogo é

inegável. Contudo, empiricamente observa-se que o grande desafio tem sido o processo

de desenvolvimento desse componente curricular pelas IES formadoras com vistas a

superar a lacuna entre teoria e prática. A respeito da prática de ensino, o PPC1 considera

que os Projetos Integradores de Prática Docente através dos componentes curriculares

“Prática de Ensino I, II, III e IV” compõe a prática. Segundo o PPC1:

Os Projetos Integradores de Prática Docente têm por finalidade o

desenvolvimento de habilidades e competências coletivas, necessárias à

atuação profissional na Educação Infantil, nos anos iniciais do Ensino

Fundamental e na gestão de processos educativos [...] (p. 29).

A carga horária de 400 horas dos Projetos Integradores de Prática Docente está

distribuída ao longo dos quatro anos do curso. No primeiro ano, estão destinadas 90h,

no segundo, 110h e nos terceiro e quarto anos, 100h cada. Segundo o PPC1, os Projetos

Integradores pretendem articular os dois núcleos propostos (Núcleos de Estudos Básicos

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e o Núcleo de Estudos Específicos) (PPC1, 2007). Portanto, a carga horária da prática

de ensino não está contabilizada na CH das disciplinas.

No PPC2, a prática de ensino está „dissolvida‟ entre as disciplinas do curso.

Desse modo, “nas disciplinas de 128 horas far-se-á uma carga-horária prática de 10% e

para as disciplinas de 64 horas far-se-á uma carga-horária prática de 12,5%.” (PPC2, p.

32). Sendo assim, a carga horária de todas as disciplinas compreende uma parte teórica

e outra prática. O PPC3 não contempla em específico a prática de ensino, pois segundo

o documento as próprias disciplinas juntamente com o estágio propiciam a relação

teoria e prática. No PPC4 a prática de ensino está distribuída nas diferentes áreas de

conhecimento ao longo do curso: I – na disciplina de Língua Portuguesa e nas

disciplinas de Metodologia de Ensino a carga horária de cada uma é de 30 horas; II –

nas demais disciplinas a carga horária é de 15 horas (PPC4, 2007). Nesse sentido, no

PPC4 a prática de ensino faz parte da CH das disciplinas, ou seja, cada disciplina conta

com uma parte teórica e outra prática.

O PPC5 compreende, ao contrário dos outros PPCs, que as atividades

complementares constituem o elemento que contribui para a articulação da teoria com a

prática. “Aqui, reconhece-se o importante papel das Atividades Complementares, [...],

pois contribui na articulação da teoria com a prática, valorizando a pesquisa individual e

coletiva.” (PPC5, 2015, p. 6). No PPC6 a prática de ensino está distribuída no interior

das disciplinas. Portanto, ela não compreende um componente curricular em específico.

Em relação à prática de ensino, as DCNP não estipulam uma carga horária

específica para esse componente curricular. Segundo o Art. 8º do Parecer nº 01 de 2006

consta que a integralização curricular compreende:

[...] II-Práticas de docência e gestão educacional que ensejem aos

licenciandos a observação e acompanhamento, a participação no

planejamento, na execução e na avaliação de aprendizagens, do ensino ou de

projetos pedagógicos, tanto em escolas como em outros ambientes

educativos; (BRASIL, 2006)

Prosseguindo a análise em relação à carga horária reservada ao TCC, no PPC5

estão destinadas 195h. Em seguida os PPCs 1, 3 e 6 com 120h, posteriormente o PPC 2

com 112h e, por fim, o PPC 5 com apenas 60h.

As análises assinalaram ainda que cinco PPCs (1, 2, 3, 4 e 6) organizam o

currículo em III núcleos e somente o PPC5 em III eixos. Desses, os PPCs 2 e 4 não

materializam a distribuição das disciplinas por núcleos. Os referidos PPCs descrevem

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ao longo do texto sobre os núcleos, mas organizaram a matriz curricular em series

anuais.

No que diz respeito ao PPC5, a justificativa em organiza-lo por eixos conforme

consta no PPC partiu de uma tentativa de se diferenciar de outros projetos organizados

em núcleo pela IES. Quanto às DCNP, estas não fazem referência a eixos, mas, sim a

núcleos de formação. A diferença entre núcleo e eixo é que o primeiro agrupa o

conhecimento da matriz curricular em torno de um centro definidor. No caso das

DCNP, existem três núcleos: o de estudos básicos, o de aprofundamento e

diversificação de estudos e um terceiro, de estudos integradores. O segundo (o eixo) é

compreendido como um elemento que perpassa toda a organização curricular. Segundo

as DCNP, a estrutura curricular por núcleos de formação:

[...] deverão proporcionar aos estudantes, concomitantemente, experiências

cada vez mais complexas e abrangentes de construção de referências teórico-

metodológicas próprias da docência, além de oportunizar a inserção na

realidade social e laboral de sua área de formação [...]. (BRASIL, 2005).

De qualquer modo, a organização curricular por núcleos ou eixos, expressas

em uma matriz curricular disciplinar, não pode, necessariamente, impedir a integração

curricular. Segundo Lopes e Macedo (2002), a organização curricular não é por si só

“[...] impedimento à busca de mecanismo de integração, tanto por disciplinas integradas

quanto pela articulação entre as diversas disciplinas de que faz parte esta estrutura” (p.

74).

Nessa direção, Lopes (2002), ao realizar a análise da organização do

conhecimento escolar nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o ensino

médio, alerta que:

A defesa do currículo integrado ao longo da história do pensamento

curricular não se desenvolveu em sentido contrário à organização das

disciplinas na escola. O foco de confronto dos defensores do currículo

integrado é com a reprodução das especializações da ciência no contexto

escolar, derivada das disciplinas científicas. (p. 149).

A problemática, segundo Lopes (1999), é que ao organizar o conhecimento

escolar por disciplinas, há uma propensão de que estas se configurem enquanto

disciplinas isoladas no contexto educacional. Para a referida autora:

[...] a especialização redimensiona, mas não exclui a disciplinarização. Ou

melhor, exclui a noção de disciplina como controle do conhecimento, limites

rígidos e atemporais, e passa a estruturar a noção de disciplina como campos

de saberes, áreas de estudos e conjuntos de problemas a serem investigados,

que inter-relacionam aspectos das disciplinas tradicionais e outros sequer

pensados tradicionalmente. (LOPES, 1999, p.196)

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Nesse entendimento, não é a organização por núcleo, eixo ou mesmo o

disciplinar que dá conta ou não de responder, de resolver as questões sociais mais

amplas. Tais questões precisam ser analisadas “[...] a partir do foco nas relações de

poder que constituem a (e são constituídas na) organização do conhecimento escolar

[...]” (LOPES, 2008, p. 46). Parafraseando esse entendimento para o campo da

formação de professores, a adoção de uma determinada forma de organização curricular

não garante que os problemas relacionados à formação sejam resolvidos, na medida em

que eles precisam ser situados nas relações de poder que o constituem e que são

constituídos.

Em relação à CH dos núcleos/eixos. No núcleo/eixo I o PPC2 apresenta

1.460h; o PPC 1 -1350h; os PPCs 4 e 5-1.120h cada; e os PPC s 3 e 6- 960h cada. No

núcleo/eixo II os PPCs 3 e 6 conferem 1.560h; no PPC4- 1350h; no PPC5- 1.320h, no

PPC1- 1.095h e no PPC2- 972h. No núcleo/eixo III consta no PPC1- 920h; nos PPCs 3

e 6- 840h; no PPC4 -795h, no PPC5- 720h e no PPC2- 532h.

Nesses pressupostos, os PPCs 1, 3, 4, 5, 6 destinam a maior parte de sua carga

horária para o núcleo/eixo II voltado para o desenvolvimento do perfil profissional,

enquanto que o PPC2 destinou a maior parte da CH para o núcleo de I destinado ao

estudo dos fundamentos da Educação.

A nomenclatura dos núcleos/eixos é diversificada. Desse modo, os PPCs 3, 4 e

6 apresentam a mesma terminologia tal qual está disposta nas DCNP. As diferenças

estão nas nomenclaturas atribuídas pelos PPCs 1, 2 e 5.

A análise desses dados indica diferenças em relação à categoria administrativa

das IES, à nomenclatura atribuída aos seus respectivos PPCs, à denominação do curso,

ao prazo mínimo e máximo para a integralização curricular do curso, ao número de

vagas ofertadas/ano, à nota do curso no ENADE (2012), à distribuição da carga horária

total entre as disciplinas das matrizes curriculares dos cursos, entre outras. Há, ainda,

diferenças em relação à organização curricular, pois no universo dos seis PPCs

analisados, um optou pela organização em eixos.

A uniformidade encontrada referiu-se tão somente ao diploma conferido aos

egressos do curso de Licenciatura em Pedagogia. Nesse contexto, compreende-se que as

diferenças são características próprias do processo de tradução das DCNP. Sendo assim,

as diferenças não representam contradições e nem oposições. Para Lopes (2005) as

diferenças são discursos ambíguos em que as marcas originais permanecem, mas são

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simultaneamente apagadas pelas interconexões estabelecidas em uma bricolagem,

visando sua legitimação. (p.9). Nessa direção, Burity (2008) compreende que tais

diferenças não são simplesmente gráficas, elas trazem consigo discursos: “A diferença

conflita, a diferença brilha, a diferença pulsa, a diferença é irredutível nome que damos

a forma como essas diferenças aparecem socialmente.” (p.14).

Algumas considerações

A análise de cada curso de Pedagogia indica contingencialmente, em seus

vários aspectos, a existência de tensões políticas configuradas nas traduções das DCNP,

ou seja, as DCNP não produziram nos cursos de Pedagogia o mesmo efeito, na medida

em que discursos foram hibridizados.

Assim sendo, o que se observa do processo de tradução das DCNP pelos cursos

de Pedagogia de MT é que os dissensos observados nos PCCs demonstram a

instabilidade de sentidos, o que enfatiza o caráter híbrido desse documento.

A partir desse processo de tradução, os sentidos e significados estabilizados em

cada curso/instituição são implicados em desestabilizações com efeitos híbridos na

medida em que mantêm marcas tanto da identidade originária quanto incorporam a

identidade proposta pelas DCNP. O que faz reverberar o caráter relacional da produção

de identidade profissional nos cursos de Pedagogia.

Trazendo essa perspectiva para a presente pesquisa, durante o processo de

tradução das DCNP, os cursos de Pedagogia têm, diante de si, uma „nova‟ cultura, uma

„nova‟ identidade que precisa dialogar com a sua identidade originária. No percurso da

tradução, os cursos não abandonam completamente sua identidade originária e nem

„absorvem‟ completamente a nova identidade proposta.

A particularidade da configuração de cada curso quanto à nomenclatura

atribuída ao mesmo e aos seus núcleos/eixos, o prazo de integralização curricular, entre

outras diferenças, sugerem que as instituições traduziam as DCNP cumprindo

contingencialmente suas exigências, ao mesmo tempo em que, precariamente,

ressignificavam sua identidade. Isso indica que, identidades plurais foram hibridizadas

para compor o PPC de cada curso. Por essa via, sinaliza-se que a construção de políticas

para a formação de professores e, em especial, do Pedagogo, requer o reconhecimento

de sua condição precária e contingente, pois só a partir desse entendimento vislumbra-se

a possibilidade de uma formação com possibilidades de materializar um projeto de

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formação de professores que implique as diferenças como uma questão ontológica do

social.

Portanto, a tradução das DCNP nos cursos de Pedagogia em IES de Mato

Grosso configura uma construção da identidade profissional num movimento que é

agonístico, na medida em que nunca se completa, pois sua característica é a

indecidibilidade, ou seja, a sempre impossibilidade de acessar o “real” significado das

DCNP, da identidade profissional e da tradução.

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QUESTÕES CURRICULARES: OLHAR PANORÂMICO SOBRE A

DOCÊNCIA

Adriano Vargas Freitas

Clarissa Craveiro

Resumo: Apresentamos recortes de duas pesquisas desenvolvidas no Grupo de

Pesquisas Curriculares (GPeC- UFF/IEAR) envolvendo a docência, sua formação e

atuação em diferentes modalidades do campo curricular, tendo como um dos objetivos

centrais a apresentação de olhar panorâmico sobre a área da educação. Para isso, a

metodologia utilizada em ambas foi o estado da arte. A primeira destaca sentidos da

formação docente a partir de análises de projetos políticos curriculares que tem sido

utilizados para o crescente processo de legitimação dos discursos em prol de avaliações

institucionais externas no contexto político de 1995 a 2011, privilegia a Teoria do

Discurso e os aportes de Lopes e Hall. A segunda envolve a formação, atuação e

avaliação do docente que atua na Educação de Jovens e Adultos, a partir de pesquisas

publicadas no período de 2000 a 2011, tendo por suporte a Análise Textual Discursiva.

A duas pesquisas se aproximam ao questionarem a padronização das propostas

curriculares de formação docente da Educação Básica por desconsiderarem as

especificidades dos contextos em que essa formação é desenvolvida, bem como as

diferenças dos processos de constituição da identidade docente e repercussão desse

desenvolvimento nas práticas pedagógicas.

Palavras-chave: currículo, docência, estado da arte.

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Considerações iniciais

Neste artigo apresentamos recortes de duas pesquisas desenvolvidas no Grupo

de Pesquisas Curriculares (GPeC- UFF/IEAR) na busca de contribuir para o melhor

conhecimento a respeito da avaliação da docência, sua formação e atuação em

diferentes modalidades do campo curricular. Embora estas pesquisas possuam aspectos

distintos em sua construção, destacam como um dos objetivos centrais a apresentação

de um olhar panorâmico sobre a área da educação, com foco sobre a docência. Para isso,

foi privilegiada a metodologia do estado da arte.

Enquanto a primeira pesquisa destaca sentidos da formação docente a partir de

análises de projetos políticos curriculares que tem sido utilizados para o crescente

processo de legitimação dos discursos em prol de avaliações institucionais externas, a

segunda destaca a avaliação sobre a formação e atuação do docente que atua em uma

modalidade de ensino ainda entendida como inferior às demais, a Educação de Jovens e

Adultos (EJA).

No que diz respeito à formação de professores, as duas pesquisas se aproximam

ao questionarem a padronização das propostas curriculares de formação docente da

Educação Básica e da modalidade da EJA por desconsiderarem as especificidades dos

contextos em que essa formação é desenvolvida, bem como as diferenças dos processos

de constituição da identidade docente e repercussão desse desenvolvimento nas práticas

pedagógicas.

Visão panorâmica dos sentidos de docência

Partimos das discussões e pesquisas realizadas no campo das políticas

curriculares brasileiras tomando por base análises dos projetos políticos desde o período

Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva por terem influenciado o campo

das políticas curriculares e da formação de professores com ênfase nos índices nacionais

e internacionais como padrão de qualidade escolar ou justificadores para novas

propostas curriculares.

Apesar de defenderem diferentes discursos de formação de professores e

buscarem marcar a diferença entre as propostas curriculares aprovadas nos contextos

desses projetos políticos, destacamos que há uma grande aproximação na forma de

concretizar e aferir aprendizagem dos alunos e/ou a formação continuada dos

professores nesses períodos. Podemos afirmar que a diferença defendida nos discursos

desses projetos políticos perde força na medida em que os discursos se aproximam a

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partir das demandas das avaliações, dos padrões internacionais e dos índices de

qualidade para a formação docente. Esse discurso que legitima as avaliações

institucionais externas para sinalizar para a sociedade como a Educação Básica está,

serve também para certificar a formação profissional dos professores e conta com o

respaldo de organismos como OCDE, FMI e UNESCO.

Sob esse olhar desenvolvemos análises em um processo metodológico de estado

da arte que, teve como objetivo analisar a flutuação de sentidos dos processos de

identificação docente, aproximações e distanciamentos nos discursos produzidos nas

políticas curriculares para a formação de professores da Educação Básica no contexto

FHC (1995 a 2002) e Lula (2003 a 2011). Para a análise dos dados optamos pela

abordagem discursiva da teoria do discurso de Laclau (2009). E, no que diz respeito às

políticas curriculares Lopes (2011) e Ball (1994).

Para isso, organizamos os documentos curriculares dos contextos FHC e Lula, a

partir de buscas e releitura de textos curriculares que dizem respeito à formação de

professores, no intuito de um refinamento na constituição dos corpora de documentos

da Educação Básica. Em pesquisas anteriores (Craveiro, 2014), o contexto FHC contava

com 13 documentos curriculares e, passou a contar com 41. O contexto Lula, antes com

22 documentos curriculares, foi ampliado para 62.

A pesquisa foi realizada no Portal MEC1 e a página do Instituto Nacional de

Estudos e Pesquisas. Ampliando a base documental de análise, decidimos revisitar

também a pesquisa bibliográfica já realizada em Craveiro (2014), iniciando então, uma

busca de trabalhos publicados entre 2009 e 2015 em revistas pertencentes à Listagem

Qualis/CAPES, qualificadas com pelo menos B1. No site da Anped, consultamos os

GTs 8 e 12, de Currículo e Formação de Professores, respectivamente, a partir da 32ª

Reunião anual, realizada em 2009, à 36ª Reunião anual, realizada em 20132.

Foram selecionados ao todo 97 artigos com a temática Formação de Professores

e 63 artigos com a temática de Currículo e Políticas Curriculares. Desses, mantivemos

36 que trazem questões a respeito da Formação de Professores, que tangenciavam a

educação básica e sentidos para a identificação docente e 15 artigos com questões

curriculares de formação de professores por estarem relacionados ao foco desta

temática.

1 Endereço da página na internet: http://portal.mec.gov.br. Acesso em setembro de 2015.

2 Desde 2013 a Anped é bienal.

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A partir dos artigos selecionados, destacamos que o discurso pedagógico nesses

últimos cinco anos mantém-se de acordo com a pesquisa inicial: “o foco na formação de

professores é marcado pelo protagonismo docente, na medida em que esse agente é

significado como “a peça-chave” nas mudanças políticas curriculares” (Craveiro,

2014b, p.2). Todavia, é possível identificar nuances e modificações com relação à

“temática das políticas de formação”, que “é destacada como emergente (André, 2009),

tendo em vista a força do discurso pedagógico nas políticas curriculares e dos enfoques

voltados para a formação docente da sala de aula” (Craveiro, 2014b, p.2). Isso se dá

pelo movimento questionador desses trabalhos com relação às políticas públicas.

Vários são os textos que questionam políticas públicas e documentos

curriculares diversos. Além dessa temática, encontramos também destaque para os

seguintes temas: a culpabilização dos professores, gerada pelas avaliações centralizadas,

e a problematização das funções do professor e do perfil docente trazendo novos

entendimentos a respeito da formação de professores (em alguns casos trazendo à tona a

discussão da formação do pedagogo).

Com base nesta coleta de dados nos é possível dizer que há um deslocamento do

discurso pedagógico do espaço da sala de aula para outros campos que envolvem a

formação de professores. Se mantém a importância da formação inicial e continuada,

com destaque para um aspecto até então pouco mencionado: a formação identitária.

Os artigos selecionados no campo do currículo trazem à tona a importância das

culturas e práticas do cotidiano que significam o “ser professor”, bem como propostas

de formação continuada no currículo praticado, a relação das mudanças curriculares na

rede estadual do Rio de Janeiro e modificações no perfil docente, a formação de

professores como espaço da diferença e construção da subjetividade. A grande maioria

dos textos focaliza políticas curriculares de formação de professores, no que diz respeito

à profissionalização docente, a cursos de Pedagogia em vários estados, a índices que

qualificam a educação básica, questões sobre a performatividade e a formação inicial

em serviço. Essas temáticas e questões de identidade caminham em consonância com o

discurso pedagógico, apontando para diálogos com políticas públicas curriculares que,

por meio de diferentes abordagens, buscam significar processos de constituição

identitária docente. Em linhas gerais, operamos buscando desconstruir projetos

naturalizados e estabilizações de sentidos que nos impedem de compreender diferentes

formas de identificação docente.

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Por mais que os apoios internacionais e investimentos em avaliações em prol de

um discurso da qualidade da formação de professores vinculem essa formação a

controles externos e estejam presentes nos contextos discursivos de FHC e de Lula,

minimizando o antagonismo defendido entre as duas propostas, há outras articulações

relacionadas às diferentes propostas de governo nesse jogo discursivo envolvendo um

antagonismo político de sentido mais amplo nesses contextos. Essas articulações são

representadas pelos sentidos para a qualificação docente como projeção de mudança

política e educacional e emancipação do sujeito na sociedade brasileira (discurso Lula)

ou como estratégia das reformas educativas de cunho neoliberal com vistas à superação

da crise do desenvolvimento capitalista dos anos 1970 (discurso FHC).

O antagonismo político entre os dois contextos é significado por meio de

projetos de governo com propostas muito distantes, ainda que nas negociações locais e

globais haja interferências de interesses e jogos de poder, modificando em dado período

as demandas defendidas. Nesse sentido, conforme a constituição dos discursos

defendidos nessa análise é possível significar o contexto FHC, em sentido amplo, como

voltado para os interesses do “mundo globalizado” e que entende os padrões de

qualidade associados ao mundo do trabalho. A atuação profissional docente é

compreendida em uma lógica da formação que deve atender “às transformações em

curso e incorporar-se na vida produtiva e sócio-política” do país (BRASIL, 2001).

Sendo assim, o discurso defendido expressa os interesses em atender à demanda social

significada como “nova” cultura necessária aos interesses do mercado, ao

desenvolvimento do país. Dessa forma, é justificada uma modificação na identidade

docente para atender às finalidades do mundo global.

Em contrapartida, os sentidos defendidos no contexto Lula apontam para uma

busca pela construção da Nação, tentando marcar um sentido social nesse discurso.

Busca articular demandas relacionadas aos espaços de participação, inclusão e debate,

tentando representar um contexto político de abertura dos espaços de democratização.

Os projetos coletivos são compreendidos como lócus de ação de mudança.

Dessa maneira, é possível afirmar que, ainda que haja aproximação entre os

sentidos de avaliação, padrões de qualidade ditados por organismos internacionais e até

a presença dos mesmos organismos internacionais nos dois contextos, os sentidos não

são os mesmos. Algumas demandas podem articular-se nos discursos, como a

qualificação pautada nos índices nacionais e internacionais, padrão nacional para a

aprendizagem dos alunos e avaliações como material de estudo e aferição da

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aprendizagem nacional, mas não igualam os sentidos endereçados nas duas cadeias

discursivas. Há aproximação de certos sentidos que não os torna iguais. Há uma

capilaridade de discursos pedagógicos que faz com que demandas sejam incorporadas

às cadeias articulatórias investigadas (FHC e Lula) tornando as políticas de formação de

professores semelhantes, com algumas finalidades comuns. Isso desfaz o antagonismo

entre os projetos de formação de professores. É possível ter em vista o que Hall (1997)

denomina “fenômeno discursivo”, constantes identificações locais e globais em que

esses discursos estão imersos, contribuindo com a provisoriedade e a fluidez das

posições assumidas nos processos de identificação docente. Esses processos de

identificação por meio dos discursos pedagógicos são sempre contingentes e são

instituídos por relações de poder.

Contudo, a força do antagonismo entre os projetos políticos mais amplos

FHC/Lula introduz demandas diferenciadas, força a constituição também de diferenças,

fazendo com que o antagonismo, mesmo que menos visível, nos projetos de formação

de professores se mantenha.

As demandas diferenciadas das cadeias discursivas desses projetos de governo,

na luta por defenderem suas posições particulares como possibilidade de constituição de

sentidos hegemônicos, contribuem para a manutenção do antagonismo mais amplo entre

os dois projetos. Por isso, a ênfase ao longo do período do contexto Lula em naturalizar

determinados discursos no ambiente escolar representa a defesa de um projeto maior, de

Nação, que também assume posições na construção do projeto político pedagógico

coletivo, participação da comunidade escolar e diversos processos de eleição no

cotidiano escolar que não garantem de fato que esses sejam espaços de vivência

democrática, todavia facilitam o processo, na medida em que esses espaços estão

abertos. Esse endereçamento de sentidos traz modificações na constituição da

identidade docente com relação aos sentidos endereçados no contexto FHC voltados

para o mercado de trabalho.

Defendemos que é possível haver deslizamentos de sentidos nas fronteiras

antagônicas desses discursos, mas esse movimento não iguala os discursos, apenas os

aproxima. Os discursos mais amplos dos diferentes projetos de governo continuam

oportunizando processos de identificação docente antagônicos.

Visão panorâmica da formação docente na EJA

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Neste tópico apresentamos recorte de nossa segunda pesquisa desenvolvida,

assim como a anterior, sob a metodologia de estado da arte. Nesta, buscamos analisar o

que tem sido produzido a respeito da formação docente, tendo como foco a modalidade

de ensino voltada para jovens, adultos e idosos. A proposta emergiu da verificação da

necessidade de pesquisas que ajudem a melhorar esta formação, da busca por caminhos

para a ampliação da qualidade do processo de ensino e aprendizagem dos estudantes

dessa modalidade e da percepção da importância de mapear as produções existentes e

identificar possíveis lacunas que orientem a comunidade de educadores em suas

investigações sobre o tema. Para isto nos propusemos a elaborar uma visão

panorâmica sobre o estado atual da formação docente com foco na Educação de Jovens

e Adultos (EJA), tomando como base para coleta de dados os artigos publicados nos

periódicos da Qualis (CAPES/MEC), na área de Ensino de Ciências e Matemática, no

período compreendido entre 2000 a 2011.

Nosso foco na EJA visa lançar luz sobre estes estudantes que, ao retornarem aos

bancos escolares, têm por hábito se diferenciar dos demais grupos por apresentarem de

forma mais acentuada um comprometimento com a sua aprendizagem, e maiores

necessidades de conhecer os motivos pelos quais devem aprender este ou aquele

conteúdo. Este comportamento faz parte de uma conscientização forjada mediante a sua

experiência cotidiana em que diversas pressões ou motivações intrínsecas e extrínsecas

o levaram a encarar novamente, ou pela primeira vez, um processo de aprendizagem

formal oferecida pelas instituições de ensino.

A escolha pelo foco em matemática deve-se ao fato de ter sido esta área a

destacada por diversos docentes como a que se sentem menos preparados para

desenvolver atividades nas propostas educacionais na EJA. Constatamos essas

percepções por meio dos resultados da pesquisa organizada pelo MEC (BRASIL, 2000),

como forma de delinear as características dos professores dessa modalidade, tais como o

fato de que, entre os professores consultados, 60% terem indicado a disciplina de

matemática como a mais difícil de lecionar. Com relação à identidade da formação do

educador que atuará na EJA, esse documento destaca que deve envolver a sensibilização

para a o cumprimento das funções atribuídas a essa modalidade de ensino. Embora os

objetivos educacionais sejam os mesmo dos Ensino Fundamental e Médio, a EJA

apresenta algumas “especificidades marcantes que precisam ser identificadas,

particularmente quando a tarefa é construir uma proposta curricular” (p.87). Por isso, os

autores indicam a importância em determinar de forma clara a identidade de um curso

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de EJA, o que pode significa promover a formulação de propostas flexíveis e adaptáveis

às realidades de seus estudantes, contemplando temas como cultura e sua diversidade,

relações sociais, necessidades dos alunos e da comunidade, meio ambiente, cidadania,

trabalho e exercício da autonomia.

Sob tais considerações nos movemos à seleção dos dados. Selecionamos 147

artigos, provenientes de Grupos de Pesquisa do Brasil e de diversos outros países. Estas

produções foram divididas em temas que consideramos complementares entre si, e,

neste recorte apresentamos resultados do tema “formação docente”. A Análise Textual

Discursiva nos propiciou uma pesquisa qualitativa envolvendo leituras criteriosas de

textos diversos, uma melhor compreensão dos fenômenos investigados, para em seguida

construirmos um metatexto representativo desse movimento (Moraes e Galiazzi, 2011).

Destacamos como pontos comuns básicos dos estudos analisados, a defesa da

necessidade de uma formação continuada específica para o professor que atua em EJA,

independente de sua área de formação. A relação entre a teoria e prática, nessa formação

deve incentivar o diálogo como forma de proporcionar ao educador da EJA discutir suas

atitudes e atos pedagógicos, reformulá-los e redirecioná-los para as complexidades,

especificidades e desejos de seus alunos. Dessa forma, o professor torna-se agente de

sua própria formação e amplia sua consciência crítica de seu papel social.

Rosa e Prado (2008) investigam os princípios norteadores de uma formação que

possibilite a esse educador desenvolver um trabalho que seja coerente com as

necessidades dos educandos, construindo na prática o processo educacional

transformador e voltado para a sua autonomização. Deve-se estimular no educador a

capacidade de solidarizar-se com os educandos, ter disposição de encarar dificuldades

como desafios estimulantes e a confiança na capacidade de aprender e ensinar. Assim, a

formação inicial e continuada do professor deveria envolver três dimensões

indissociáveis e essenciais: a política, a profissional e a pessoal. A primeira relaciona-se

à percepção da não neutralidade da educação, e de sua importância para a construção de

uma sociedade mais equalitária. A segunda volta-se para a reflexão permanente sobre a

prática educativa em favor da autonomia dos educandos. A terceira dimensão envolve a

percepção de que a formação pessoal é particular a cada indivíduo e está diretamente

ligada às relações pessoais/interpessoais e sociais.

Entretanto, atividades que envolvam a formação do professor, na modalidade de

EJA, realizadas no espaço das universidades brasileiras, ainda ocupa pouco espaço na

política educacional brasileira. Como relatam Moraes, Christofoli, Vitória, Loch e

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6398ISSN 2177-336X

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Huerga (2007), raramente as questões envolvendo EJA fazem parte da estrutura

curricular dos cursos de graduação e se tornam núcleos de pesquisa e de formação

continuada de educadores. A falta de metodologias pedagógicas específicas

direcionadas para essa parcela de indivíduos é destacada também por Puig (2007) ao

analisar os programas que visam diminuir os índices de analfabetismo na Espanha. Em

ideias próximas, Di Pierro (2000) analisa que, enquanto na América Latina a EJA

continua ocupando um lugar marginal nas políticas educacionais, a relevância dada ao

tema e os empreendimentos implementados em Portugal e em outros países europeus os

habilita a serem tomados como exemplos para a melhoria da qualidade da educação

nessa área. Castro, Guimarães e Sancho (2007) analisam que a União Europeia passou a

focar a atenção sobre a formação e aprendizagem ao longo da vida, o que fez despontar

a necessidade de que a formação de educadores de adultos envolvesse práticas

formativas e investigativas, com o objetivo de induzir transformações sociais e

estabelecer estreitas relações entre a educação formal e a informal.

Percepções semelhantes ocorreram no interior de instituições universitárias

situadas em Córdoba (Argentina), destacadas no estudo de Lorenzatti (2007). Analisa a

ausência de formação específica para os professores que atuam nessa modalidade de

ensino e a falta de textos didáticos específicos a esses alunos. A implementação de

oficinas surge como possibilidade de: formação continuada, criação de espaços de

diálogo e debates, onde estes profissionais são levados a analisar o contexto

sociopolítico das comunidades em que estão situadas suas escolas e construção social de

conhecimentos realizada na mediação entre estudantes e os próprios professores.

Buscando comparar as realidades relacionadas a EJA no Brasil e na Argentina,

as pesquisas de Pereira e Fare (2011), diagnosticaram problemas semelhantes aos

relatados no estudo anterior. Em ambos os países um ponto similar paradoxal: a

verificação de um considerável número de produções sobre a formação de professores,

mas não especificamente sobre a formação de professores de EJA.

No Brasil, Cunha, Albuquerque, Noronha e Santos (2009) analisam a

necessidade do alto grau de conscientização do significado da EJA: a percepção da

necessidade de que as políticas públicas se consolidem neste ensino para a ampliação de

possibilidades e melhorias para o público a que se destina.

Fartes e Gonçalves (2010) nos relata algumas dificuldades verificadas tanto na

formação quanto na prática dos professores de EJA. Destacando a percepção da

existência de um grande preconceito em nosso país sobre esse campo de trabalho,

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considerado como de “segunda linha”. As autoras analisam os currículos dos Projetos

Políticos Pedagógicos de cursos de Formação de Docentes para a EJA, para

compreender a ideia de formação e os princípios a ela subjacentes. Verificam que não

há a explicitação da abordagem da formação do professor, embora sugira a ideia do

“professor pesquisador” (p.52). Não existem também menções quanto à necessidade dos

saberes docentes a serem desvelados em relação às ideologias subjacentes, o que leva as

autoras a analisar que essa falta abre possibilidades “para que os valores que se opõem à

emancipação venham a fazer parte das representações dos professores” (p. 53). Foi

verificado a prevalência de um modelo curricular acadêmico comprometido com a

hierarquização e linearidade dos conteúdos, não apresentando relações abertas entre as

formas de organização do conhecimento, não possibilitando articulações desses

conhecimentos com os saberes da experiência e ocasionando uma perceptível separação

entre a teoria e a prática do professor.

Estas problemáticas são destacadas na produção de Di Pierro (2005) que mapeia

as principais polêmicas relacionadas às políticas públicas que regem esta modalidade de

ensino. Argumenta que a cultura escolar brasileira encontra-se ainda impregnada pela

concepção compensatória na EJA, levando a escola a moldar suas práticas tendo por

base currículos, metodologias, tempos e espaços voltados para crianças, subestimando

os alunos adultos e dificultando que os professores valorizem a cultura popular e

reconheçam os conhecimentos primeiros desses estudantes. Diversas políticas

contribuíram para a manutenção de seu menor status diante das outras modalidades

educacionais, pois por muitas vezes “as demandas e necessidades educativas dos jovens

e adultos, quando consideradas, foram abordadas com políticas marginais, de caráter

emergencial e transitório, subsidiárias a programas de alívio da pobreza” (p.1123).

Vale destacar a defesa contundente que encontramos em diversas produções, de

que a tendência predominante de formações modeladas em propostas curriculares

fragmentadas é inadequada à EJA, dificultando o estabelecimento de diálogos entre as

experiências de vida, seus saberes anteriores e os conhecimentos das diferentes áreas.

Ao considerar tais individualidades, o professor perceberá que não fará sentido

pressupor “um trajeto único e obrigatório para todos os sujeitos em seus processos de

aprendizagem” (OLIVEIRA, 2007, p. 87). Propõe- se que busque desenvolver um

currículo que não negligencie a vida real dos alunos de EJA, e tudo que a envolve. Um

desenvolvimento contínuo efetuado pelos próprios sujeitos das práticas pedagógicas,

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não mais seguindo modelos pré-estabelecidos, mas que se apresentem como resultado

de ampla discussão e análise crítica dos envolvidos diretamente na sua implementação.

Considerações finais

Os recortes das pesquisas apresentadas compõem partes de estados da arte, com

foco em questões curriculares, que visam contribuir para ampliar o conhecimento a

respeito da formação, atuação e avaliação da docência, em diferentes modalidades de

ensino. Dessa forma, a construção de um olhar panorâmico sobre tais temas resultou em

diversos pontos que envolveram a docência, destacando distâncias entre o prescrito em

documentos oficiais e as práticas realmente efetuadas em investimentos e ações, além

de sinalizar fragilidades em discursos, concepções e formações voltadas para

professores, das mais distintas áreas de conhecimento.

Verificamos, dentre outros diversos importantes pontos, que os sentidos da

formação direcionada à docência, de uma forma geral, tem sido utilizados para o

processo de legitimação dos discursos em prol de amplas avaliações institucionais

externas, que buscam direcionar determinadas identidades docentes, e que, ao focarmos

em especial a EJA, o quadro se agrava, e emergem diversos outras problemáticas,

inclusive relacionados à preconceitos que permeiam currículos, a formação e atuação do

professor nesta modalidade.

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DIFERENÇA CULTURAL E CURRÍCULO: O QUE DIZEM OS

PROFESSORES ENREDADOS NA AVALIAÇÃO EM LARGA ESCALA

Ruth Pavan

Universidade Católica Dom Bosco - UCDB

Resumo:

O artigo é fruto das discussões produzidas no âmbito do Observatório de Educação

financiado pela CAPES/INEP. O objetivo é mostrar como as diferenças presentes no

currículo são vistas pelos professores que estão enredados na avaliação em larga escala.

O currículo é visto como profundamente articulado com a cultura. Todos os seres

humanos são produtores, criadores e recriadores de cultura. Ela não é privilégio de um

pequeno grupo de homens, mas um processo dinâmico, plural, heterogêneo do qual

todos os homens e mulheres participam. O currículo nunca é neutro, nem um campo

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desinteressado de circulação de conhecimentos. Ele é um campo de disputa, uma arena

que autoriza/desautoriza, legitima/deslegitima, que visibiliza/invisibiliza,

conhecimentos, sujeitos, identidades e diferenças. Os professores no contexto atual,

estão enredados nas avaliações em larga escola. Essas avaliações, mais do que

produzirem rankings, que por si só já são um equívoco na perspectiva de um currículo

preocupado com as diferenças culturais, produzem/reforçam uma determinada forma de

entender a diferença cultural no currículo. Para recolher os dados foram realizadas

entrevistas com professores do nono ano de uma escola pública estadual de uma capital

de um estado do centro-oeste do Brasil que em 2011 e 2013 obteve um alto IDEB. A

análise mostrou que os professores são afetados pelo contexto da avaliação em larga

escala, produzindo/reforçando a ideia de que seria melhor que todos os alunos

partilhassem da mesma cultura, ou que houvesse uma seleção no ato da matrícula, ou

ainda, que convém formar turmas mais homogêneas possíveis, separando os “bons” dos

“maus” alunos, caso os últimos não “decidam” sair da escola.

Palavras-chave: Currículo, diferença cultural, avaliação em larga escala.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Este artigo é fruto das discussões produzidas pelas pesquisas no âmbito do

Observatório de Educação financiado pela CAPES/INEP. O Observatório já resultou em

várias pesquisas de mestrado, doutorado, iniciação científica e pesquisas docentes,

mostrando, entre outras coisas, que a forma como os professores lidam com as

diferenças étnico-raciais e de gênero e com a desigualdade social vem sendo afetada

pela avaliação em larga escala. Mais especificamente, no caso de nossas pesquisas, por

centrarem-se em escolas do sexto ao nono ano do ensino fundamental, a forma de lidar

com essas questões vem sendo afetada pela Prova Brasil, um dos elementos que compõe

o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB).

Cabe registar que apesar do Observatório da Educação desenvolver pesquisas

em quatro escolas de uma capital de um estado da região centro-oeste do Brasil que

obtiveram um alto IDEB em 2011 e em 2013, nesse artigo utilizaremos as falas de

professores do nono ano de uma dessas escolas. Escolhemos o nono ano pois é nesse

ano que a Prova Brasil é aplicada. Mas ressaltamos que as falas dos professores das

outras escolas e demais anos (sexto, sétimo, oitavo) também apontam que a avaliação

em larga escola tem contribuído para que a questão da diferença cultural continue sendo

negligenciada, somando-se aos argumentos recorrentes (necessidade de tratar todos

como iguais, normais, negação da existência do racismo e da discriminação, não ter

relação com sua disciplina) o argumento que a preocupação com a avaliação faz com

que ao projeto pedagógico da escola centre seus esforços nela, assim como a

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necessidade de trabalhar os conteúdos que serão cobrados, faz com que haja pouco

tempo ou não haja tempo para que as diferenças sejam vistas como importantes no

processo educativo.

Nesse, sentido, o objetivo desse artigo é mostrar como as diferenças presentes no

currículo são vistas pelos professores que estão enredados na avaliação em larga escala.

Para tanto, entendemos ser necessário, trazer o que estamos entendendo por currículo,

cultura, diferença cultural e avaliação em larga escala, para em seguida trazer a fala dos

professores, analisando-as com base em autores que compartilham com a ideia de que

há uma pluralidade cultural que não deve ser hierarquizada, que devemos construir um

currículo multi/intercultural, que todas as diferenças são legítimas e devem ser

contempladas e que a avaliação em larga escala é homogeneizadora, pois privilegia

apenas a cultura hegemônica (branca, heterossexual, classe média/alta). O contexto da

avaliação em larga escala, contribui para que a diferença seja vista como algo que

atrapalha a aprendizagem dos alunos, e em última instância, como algo que prejudica a

avaliação e diminui o IDEB da escola.

O LUGAR DA ANÁLISE

Situamos nossa análise, salientando que noções de alta e baixa cultura, cultura

superior e cultura inferior, erudita e popular, entre outras, são estratégias de poder por

meio das quais a cultura hegemônica tem mantido seu lugar privilegiado,

autoproclamando-se como detentora da cultura em oposição aos que não a possuem.

Essas noções, segundo nossa perspectiva teórica devem ser desconstruídas,

reconhecendo todos os seres humanos como criadores de cultura. É no campo da cultura

que os significados são atribuídos e alguns são vistos como legítimos e outros como

ilegítimos, por meio das relações de poder. Via de regra, os grupos hegemônicos

tendem a impor seus significados como válidos para os demais. Nesse processo de

imposição, por não reconhecer a multiplicidade cultural como legítima, determinadas

culturas e seus sujeitos são vistos como inferiores, “sem cultura”. Entendemos a

cultura, não como uma mera decorrência da base material da sociedade, mas como

central e constitutiva dos modos de ser e estar no mundo, isto é, como central no

processo de construção daquilo que nos tornamos. Ela é um “[...] campo de luta entre os

diferentes grupos sociais em torno da significação” (SILVA, 2000, p. 32). Com essa

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noção de cultura, todos os seres humanos são produtores, criadores e recriadores de

cultura. Ela não é privilégio de um pequeno grupo de homens, mas um processo

dinâmico, plural, heterogêneo do qual todos os homens e mulheres participam.

Cultura pode então ser entendida como tudo aquilo que é produzido

pelo ser humano. Assim sendo, toda pessoa humana é produtora de

cultura. Não é apenas privilégio de certos grupos sociais nem pode ser

apenas atribuída à escolarização formal. A cultura é um fenômeno

plural multiforme, heterogêneo, dinâmico. Envolve criação e

recriação, é atividade, ação. É considerada também como um sistema

de símbolos que fornece as indicações e contornos de grupos sociais e

sociedades específicas. Podemos, então, entendê-la como código,

como sistema de comunicação [...]. (CANDAU et al, 2002, p.72).

Reconhecer que todos os homens e mulheres são criadores, recriadores,

produtores de cultura é fundamental para reconhecer a legitimidade de todas as formas

culturais existentes, sem pretensões de hierarquizá-las. A tomarmos como base essa

caracterização, torna-se central atentar para as relações de poder, pois é por meio delas

que as culturas são posicionadas umas em relação às outras. As relações de poder

tendem a fixar uma cultura como hegemônica e as demais como marginais e inferiores.

No contexto brasileiro, nunca é demais lembrar, as relações de poder marcadas pelo

processo de colonização instituíram os negros e indígenas como inferiores e os brancos

como superiores, como a norma a ser seguida (CANDAU, 2011). Da mesma forma, em

relação a identidade de gênero, a cultura heterossexual, por meio das relações de poder,

produziu as identidades de gênero não heterossexuais como desviantes e patológicas:

“A luta no terreno cultural mostrava-se (e se mostra), fundamentalmente, como uma luta

em torno da atribuição de significados, significados produzidos em meio a relações de

poder” (LOURO, 2008, p.21).

Articulada com esta compreensão de cultura trazemos a caracterização de

currículo concebendo-o como profundamente articulado com a cultura. O currículo

historicamente tem sido a expressão da cultura hegemônica, não só no que se refere aos

conhecimentos que veicula, mas também em relação aos sujeitos que privilegia e quais

deseja fabricar e efetivamente fabrica. Nesse sentido, importa olhar para o currículo

para “[...] ver que histórias estão sendo produzidas aí e como se constroem os sentidos

de pertencimento e exclusão, bem como as fronteiras raciais e étnicas entre os diferentes

grupos sociais que ali interagem e estão representados” (MEYER, 1999, p.81).

Portanto, o currículo nunca é neutro, nem um campo desinteressado de circulação de

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conhecimentos, ele é um campo de disputa, uma arena que autoriza/desautoriza,

legitima/deslegitima, que visibiliza/invisibiliza, conhecimentos, sujeitos, identidades e

diferenças (SILVA, 2003; APPLE, 2000; MEYER, 1999; LOURO, 1999; ESTEBAN,

2012, 2015; CANDAU, 2011). O currículo “[...] é produzido pelos conflitos, tensões e

compromissos culturais, políticos e econômicos que organizam e desorganizam um

povo” (APPLE, 2000, p.53)

Considerar a cultura como elemento central no currículo é fundamental pois as

relações sociais sempre se dão num contexto cultural. O contexto cultural marca nosso

cotidiano, nossas relações com as outras pessoas, com os outros grupos. No currículo,

longe da ausência dessas relações, elas se intensificam, e não raras vezes, como

apontam as pesquisas, geram tensões, conflitos e dadas as assimetrias de poder, “[...]

provocam a construção de hierarquias, processos de subalternização, afirmam pré-

conceitos, discriminações e violências em relação a determinados atores sociais.!”

(CANDAU, 2014, p.23-24). Mas esse processo não necessariamente é uniforme. Ao

mesmo tempo em que no currículo ocorrem processos de discriminação e preconceito, é

possível construir um currículo que coloque esse processos em xeque e seja construído

na perspectiva inter/multicultural (CANDAU, 2011, 2014) preocupado em empoderar

os grupos subalternizados.

Entretanto, uma das dificuldades adicionais da construção desse currículo

inter/multicultural tem sido a avaliação em larga escala, em muitos casos aplicada em

âmbito municipal, estadual e nacional: “A inserção das provas externas, acompanhada

da pressão pela competição na busca de um melhor IDEB para a escola, fortalece a ideia

de treinamento no trabalho com o conhecimento escolar.” (ESTEBAN e FETZNER,

2015, p.80). Esse treinamento, via de regra ignora as diferenças culturais, lida com os

conhecimentos como se não tivessem sexo, raça/etnia, crença, enfim, como se fossem

neutros e desinteressados. Santomé (2013) chama a atenção para a avaliação em larga

escala, vendo-a como um obstáculo para a construção de uma educação

antidiscriminatória, pois: “A existência de políticas de avaliação externa com base em

indicadores curriculares [...] costuma obrigar à existência exclusiva do que pode ser

objeto dos itens desses testes de avaliação” (p. 287). Para Esteban e Fetzner (2015), o

projeto cultural hegemônico recorre a avaliação em larga escala, supostamente objetiva,

como forma de uniformizar o currículo. Entretanto, ao proceder dessa forma, apesar da

apregoada objetividade e ser vista como avaliação técnica, reforça a cultura hegemônica

e seus sujeitos, contribuindo para rotular, subalternizar e estereotipar a diferença,

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sobretudo porque desconsidera “[...] a complexidade dos processos escolares cotidianos

e seus entrelaçamentos com a dinâmica sociocultural” (ESTEBAN e FETZNER, 2015,

p.82). Os professores no contexto atual, estão enredados nas avaliações em larga escola.

Essas avaliações, mais do que produzirem rankings, que por si só já são um equívoco na

perspectiva de um currículo inter/multicultural, produzem/reforçam uma determinada

forma de entender a diferença cultural no currículo.

O QUE DIZEM OS PROFESSORES SOBRE A DIFERENÇA CULTURAL

Nossas pesquisas no âmbito do Observatório da Educação têm mostrado que em

todas as quatro escolas que obtiveram um alto IDEB em 2011 e mantiveram um alto

índice na avaliação de 2013, várias medidas são tomadas por parte da direção,

coordenação pedagógica e professores, interferindo na organização do conteúdos, nas

metodologias e na forma como a avaliação é realizada nas escola. Também observamos

que nos momentos de formação também há uma preocupação em refletir sobre como os

professores podem atuar para melhorar a aprendizagem de seus alunos, tendo em vista a

avaliação externa. Entretanto, cabe destacar que em todas as escolas, os professores

frisam que a escola já tinha uma preocupação com a qualidade antes da existência do

IDEB, mas que de alguma forma esse índice veio premiar, deu reconhecimento,

visibilidade e aval ao trabalho que a escola vinha fazendo.

Mas isso não significa que as escolas continuaram fazendo o mesmo trabalho.

Percebemos que o trabalho dos professores têm sido afetado pelas avaliações externas, e

de alguma forma, essa avaliação acaba somando-se a outros argumentos para desejar,

almejar e intensificar a padronização e uniformização dos seus alunos, fazendo com que

a diferença seja vista como algo que atrapalha o processo educativo.

Como já destacamos, nesse artigo, faremos apenas menção a alguns professores

de uma das escolas. Muitas falas desses entrevistados se assemelham as presentes nas

demais entrevistas (mais de cinquenta entrevistas), mas outras são muito diferentes.

Como o uso das entrevistas semiestruturadas no campo da educação é algo já bastante

consolidado, entendemos não ser necessário discorrer sobre a pertinência desse

instrumento de recolha de dados em nossas pesquisas, mas obviamente elas foram

realizadas em conformidade com os princípios éticos e de rigor científico. Citaremos de

forma direta somente algumas falas, pois o que nos interessa é problematizar o que é

recorrentemente apontado pelos professores, e em função disso, não nos preocupamos

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em citar cada fala em separado, mas explicitar algumas falas dos professores,

articulando-as com nossas reflexões teóricas.

Como já destacamos, os professores ao falarem sobre a diferença de seus alunos,

recorrem a alguns argumentos que costumam aparecer em pesquisas com essa temática.

Referimo-nos ao fato de todos os professores entenderem que devem tratar seus alunos

como iguais, entendendo que tratá-los diferentes seria ser injusto, significaria

discriminar. A expressão “aqui todos são tratados iguais” assim como a expressão

“todos são tratados como normais” apareceu em vários momentos durante as

entrevistas, vindo ao encontro das pesquisas realizadas por Candau (2011, 2014), Louro

(2007), Esteban (2004), Backes e Pavan (2011). Esses autores lembram que a igualdade

tem sido vista como oposição à diferença, motivo pelo qual os professores tendem a

defender o tratamento igual e normal para com seus alunos e a ignorar a diferença. Mas

como apontam esse mesmos autores, tratar como normal e igual tem significado tratar

os alunos conforme a norma imposta pela cultura hegemônica branca e heterossexual:

“Em nossa sociedade, a norma que se estabelece, historicamente, remete ao homem

branco, heterossexual, de classe média urbana e cristão e essa passa a ser a referência

que não precisa mais ser nomeada” (LOURO, 2007, p.16). Com Esteban (2004),

salientamos que a igualdade nos procedimentos costuma ignorar a desigualdade social e

as diferenças culturais: “A igualdade nos procedimentos não favorece a produção da

igualdade nos direitos por haver a busca do resultado comum como única expressão da

qualidade e da conquista do direito, o que atribui valor negativo à diferença, entendida

como ausência de qualidade” (ESTEBAN, 2004, p. 167).

A diferença como ausência de qualidade, se já estava presente nos professores

em outros tempos, parece ter ganho novo fôlego com a presença das avaliações em larga

escala. Porém, antes de trazermos essa problematização, cabe destacar que se a ideia de

que todos devem ser tratados como iguais e normais é algo presente na fala dos

professores de todas as escolas investigadas no âmbito do Observatório da Educação, a

diferença como ausência de qualidade foi mais visível em uma das escolas, cujas falas

passaremos a analisar.

Nesse sentido trazemos a fala de um dos professores que explica como a escola

foi “ferrada” com a adoção do sistema de matrícula on-line:

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Outra coisa que ferrou com o nosso sistema foi a matricula digital,

antigamente as escolas controlavam a matricula do aluno [...]. Aqui na

escola, por ser uma escola diferenciada, eles tinham o costume de

entrevistar os pais. Os pais não vinham aqui simplesmente para cuidar

de papel, assinar, pronto acabou, a gente nem sabe quem é. Não, então

entrevistava os pais, aqui a escola trabalha desse jeito assim, assim.

Hoje não, não existe controle nenhum, vem criança o tempo todo para

cá. [...] Então a nossa realidade, isso aqui é uma escola muito

tradicional, muito forte, os alunos que estudaram aqui, os filhos

vieram estudar, os netos os bisnetos vinham estudar aqui. Quando

entrou a central de matriculas eles expiraram daqui porque aquela

realidade feia de escola pública de periferia veio para dentro da escola,

que não tinha essa realidade e aí estragou (Professor de Língua

Estrangeira).

Cabe destacar que essa fala se deu dentro do contexto da entrevista em que se

perguntava sobre a avaliação externa e os motivos que levaram a escola a ter um bom

resultado. A escola foi “ferrada” porque não pode mais selecionar, não pode excluir os

alunos, não pode mais impedir que “a realidade feia de escola pública de periferia”

chegue na escola. A presença desses outros representou também a saída dos melhores.

Com a nova realidade, a escola “estragou”. Nesse sentido pode-se destacar que a frase

de Boaventura de Souza Santos “Temos o direito de ser iguais toda a vez que a

diferença nos inferioriza e temos o direito de ser diferentes toda vez que a igualdade nos

descaracteriza” (SANTOS, 2008, p. 462), apesar de ser citada por inúmeros textos

ligados a educação, ainda precisa produzir efeitos nas escolas e no modo de pensar dos

professores. Pode-se dizer que os dados de nossa pesquisa aproximam-se das pesquisas

realizadas por Candau (2014), quando aponta:

De fato, nas narrativas dos professores e professoras, no contexto

das pesquisas realizadas, predominam depoimentos em que a

igualdade era concebida como um processo de uniformização,

homogeneização, padronização, orientado à afirmação de uma

cultura comum a que todos e todas têm direito a ter acesso. Desde o

uniforme até os processos de avaliação, tudo parece contribuir para

construir algo que seja „igual‟, isto é, o mesmo para todos os alunos

e alunas. Nessa perspectiva, certamente impossível de ser alcançada,

as diferenças são invisibilizadas, negadas e silenciadas (CANDAU,

2014, p. 29).

Se por um lado os alunos diferentes não podem mais ser impedidos de se

matricular na escola, parece que a escola de alguma forma faz com que eles voltem para

o seu lugar: “Aqui a maioria dos alunos mora na área central e são mais selecionados,

logo os que encontram dificuldades acabam voltando para a periferia” (Professor de

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Page 34: CURRÍCULO E DOCÊNCIA: UMA REFLEXÃO A PARTIR DO … · compreensão do currículo como prática de significação e da política de currículo como um discurso, este sendo entendido

Ensino Religioso). De modo semelhante o professor de Matemática ao descrever a

situação de uma aluna que estava causando problema na escola, não estudava, tinha

problema de relacionamento com os colegas, não era uma boa aluna, disse que tudo já

estava resolvido. Perguntado como estava a aluna hoje, o professor respondeu: “ela

pediu para sair da escola”. Candau (2011) lembra-nos que os que se identificam como

pertencentes ao grupo dos bons, tendem a subjugar e discriminar os que pertencem ao

grupo dos maus, isto é, os diferentes, os periféricos. Já se formos do grupo dos “maus”,

“[...] ou internalizamos a nossa 'maldade' e nos deixamos 'salvar', passando para o lado

dos 'bons' ou nos confrontamos violentamente com estes” (CANDAU, 2011, p.22). Ou

ainda, em alguns casos, conforme mostram as falas dos professores, os “maus” alunos

voltam para seu lugar de origem ou pedem para sair da escola.

A tentativa de homogeneizar e de expulsar os alunos que não se enquadram,

como sabemos não é nova na escola, pelo contrário, a origem da escola está ligada a

ideia de homogeneização e padronização cultural, motivo pelo qual, temos tanta

dificuldade para pensarmos a diferença como uma presença que qualifica o processo

educativo. Pode-se dizer que os professores ao temerem a diminuição da qualidade em

função da presença de sujeitos diferentes, acabam contribuindo para que os diferentes

sejam responsabilizados pela sua condição, atribuindo a diferença um valor negativo,

usando-a como justificativa de sua condição social. Os grupos sociais e culturais vistos

de forma negativa são responsabilizados pela sua situação de desvantagem. Eles são

“[...] os únicos responsáveis pelo seu destino e, consequentemente, seus problemas são

fruto de uma escolha própria. Assim, são os culpados „outros‟, „eles‟ que não querem se

integrar, „nós‟ não temos culpa da sua situação (SANTOMÉ, 2013, p.273).

Cabe destacar que entendemos que essas falas dos professores, segundo a

perspectiva teórica adotada, não podem ser dissociadas do contexto que a escola vive,

um contexto marcado fortemente pela avaliação em larga escala. Essa avaliação, como

aponta Esteban (2004) por ser homogeneizadora e padronizante, contribui para que a

escola e seus professores vejam a diferença como algo que prejudica a qualidade da

educação. Mas apesar desse contexto, com base nos teóricos que sustentam nossa

reflexão e nas próprias falas dos professores podemos afirmar que as posições em

relação as diferenças não são unívocas, apesar da tendência hegemônica em associá-las

a diminuição da qualidade.

Nesse sentido trazemos a fala do professor de Língua Estrangeira, o mesmo que

falou da impossibilidade de selecionar os alunos devido a matrícula ser atualmente on-

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line: “Na sala dos professores vejo algumas frases de discriminação em relação a alunos

gays” Embora o professor não chegue a trazer a questão para o debate em sala de aula,

o fato de reconhecer que ouve “frases de discriminação”, não deixa de ser algo

relevante, visto que muitas vezes, conforme as pesquisa apontam, o que é ouvido sobre

os sujeitos diferentes é visto como brincadeira ou apenas “piada”.

Nas escolas em que temos feito nossas pesquisas ligadas ao Observatório de

Educação, percebemos inúmeras ambiguidades em relação a forma de olhar, sentir,

acolher, lidar com as diferenças. Se por um lado, reconhecemos que a forma

hegemônica é discriminatória, por outro lado, as vezes na mesma escola, com o mesmo

professor, observamos fissuras e subversões da lógica hegemônica. O professor de

Artes Visuais, da mesma escola em que há uma tendência forte em associar a diferença

à diminuição de qualidade, explicita que além de perceber as diferenças elas são

consideradas no processo educativo: “Cada aluno possui outras aprendizagens [além

daquela oferecida pela escola] que muito acrescenta em sua participação. Relação com a

natureza, com o outro, consigo mesmo, crenças, ideologias”.

Ainda que num primeiro momento essas manifestações sobre a diferença

possam parecer insignificantes, se consideramos o patrulhamento diário que é feito em

torno da qualidade da educação associada ao aumento do IDEB, isto é, na “[...]

discussão educacional brasileira atual parece que tudo se reduz a exames nacionais e

internacionais e exames sobre a aprendizagem da matemática, da língua e das ciências”

(CANDAU, 2011, p. 281, ENTREVISTADA POR CARVALHO E PLETSCH, 2011),

podemos ver nelas um indício de que os professores não se dobraram totalmente à

lógica hegemônica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Reiteramos que nossa discussão teórica vê as falas dos professores como

resultado dos contextos que os produzem, incluindo no contexto atual, a retórica da

avaliação em larga escala, que traz no seu bojo “[...] a obstinação em cobrir a qualquer

custo todos os tópicos do currículo obrigatório previsto em lei pelas administração

pública” (SANTOMÉ, 2013, 286). Nesse contexto, a preocupação com a diferença

tende a ser vista como não relevante para o processo educativo.

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Nossas pesquisas têm mostrado que os professores são afetados por esse

contexto, mais especificamente na escola em que os professores entrevistados atuam,

esse contexto tem tido uma influência maior, produzindo/reforçando a ideia de que seria

melhor que todos os alunos fossem os mesmos, ou que houvesse uma seleção no ato da

matrícula, ou ainda, que convém formar turmas mais homogêneas possíveis, separando

os “bons” dos “maus” alunos, caso os últimos não “decidam” sair da escola.

Finalizando queremos chamar a atenção que o alto IDEB pode ser conquistado

também por meio da seleção e expulsão de alunos. Se essa não é uma novidade da

escola, a avaliação em larga escala longe de combater esses processos, de alguma forma

os reforça e os induz. Felizmente, como vimos, mesmo que os professores estejam

enredados, há sempre momentos possíveis de escape, de fuga, de subversão, de criação

de outros modos de educar que não sejam apenas a reprodução do modelo hegemônico.

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