cunha, maísa faleiros da - demografia e família escrava (franca, sp, século xix)

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE DEMOGRAFIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DEMOGRAFIA DEMOGRAFIA E FAMLIA ESCRAVA. FRANCA - SP, SCULO XIX MASA FALEIROS DA CUNHA Campinas 2009 FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP Ttulo em ingls: Demography and slave family. City of Franca, State of So Paulo (Brazil), nineteenth century Palavras chaves em ingls (keywords) : rea de Concentrao: Demografia histrica Titulao: Doutor em Demografia Banca examinadora: Data da defesa: 18/02/2009 Programa de Ps-Graduao: Demografia Demography Slaves Franca (SP 19th cent.) Family demography Family Maria Silvia Casagrande Beozzo Bassanezi, Elisabete Dria Bilac, Carlos de Almeida Prado Bacellar, Jos Flvio Motta, Tarcsio Rodrigues Botelho. Cunha, Masa Faleiros da C914dDemografia e famlia escrava.Franca-SP, Sculo XIX /Masa Faleiros da Cunha .-Campinas, SP : [s. n.],2009.

Orientador: Maria Silvia Casagrande Beozzo Bassanezi. Robert Wayne Slenes (Co-orientador) Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. 1. Demografia. 2. Escravos Franca (SP) Sc. XIX. 3. Demografia da familia.4. Familia. I. Bassanezi, Maria Silvia Casagrande Beozzo. II. Universidade Estadual de Campinas.Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III.Ttulo. msh/ifch vRESUMO Opresentetrabalhotemcomoobjetodeanliseademografiaeafamliaescravano municpiodeFranca-SPnodecorrerdosculoXIX.Essemunicpiocaracterizou-sepor umaeconomiabaseadanaatividadecriatria(degadovacumesuno)enaproduode gnerosdesubsistnciadestinadosaoconsumolocaleaocomrciointerno.Aelaborao destetrabalhofoinorteadapelodesafiodeconsiderarapopulaoescravaapartirdo conceitoderegimedemogrficorestrito.Paratanto,asprincipaisfontesdocumentais utilizadasforam:aListaNominativadeHabitantesde1836,oRecenseamentoGeraldo Impriode1872,osinventriospostmortem(1811-1888)eosregistrosparoquiaisde batismo, casamento e bito (1806-1888). Dessa forma, apresentamos o contexto espacial e histrico do municpio de Franca-SP, onde a populao escrava vivenciou os eventos vitais eestabeleceurelaessociais.Traamosaevoluopopulacionale,demodoespecial, caracterizamosaeconomiaquesedesenvolveunoperodo;focalizamosaspectosda demografiaescravaeseuscondicionantes.Refinandoaanliseatravsdocruzamento nominativo de fontes, resgatamos trajetrias demogrficas e familiares de um segmento da populaoescravapertencenteaumgrupoespecficodesenhores.Essepercursopermitiu evidenciar,aindaqueemnveisdeintensidadediferenciados,osmecanismosdecontrole demogrfico (nupcialidade, fecundidade, mortalidade e manumisso), os arranjos familiares e as amplasrelaes e instituies sociais que marcaramo regime demogrfico restrito da populao escrava na localidade. viiABSTRACT ThisworkaimstoanalyzethedemographyandtheslavefamilyinFranca,Brazilduring thenineteenthcentury.Thecharacteristicofthistownwasaneconomybasedondairy cattleandswinebreeding,andtheproductionoffirst-necessityfoodsdestinedtolocal consumption and to the internal market. This work was guided by the challenge to consider theslavepopulationasfromtheconceptofarestricteddemographicregime.Forthis purpose,themainsourcesusedweretheListaNominativadeHabitantesof1836,the Recenseamento Geral do Imprio of 1872, post-mortem inventories from1811 to 1888 and the baptism, marriage and death parochial registers from 1806 to 1888. We have presented the spatial and historic context of Franca, where the slave population lived the vital events andestablishedsocialrelations.Wehavedelineatedthepopulationevolutionand,in special,characterizedtheeconomydevelopedinthatperiod;focusingslavedemography aspects and its conditionals. When refining the analysis through the nominal comparison of sources, we have recovered demographic and families trajectories of this slave population, belongingtoaspecificgroupofslavemasters.Theroutehasenabledustoprovide evidence,althoughatdifferentlevelsofintensity,tothemechanismsofdemographic control (nuptiality, fertility, mortality and manumission), to family arrangements and to the wide social relations and institutions which have marked the restricted demographic regime of the local slave population. viii Para Arlete,Eurpedes,Vanessa,Patrciae Otvio. ix Agradecimentos CAPES,peloapoiofinanceiroconcedido,oquepermitiuosuportenecessrio para a concluso deste trabalho. Aminhaorientadora,Dra.MariaSlviaBeozzoBassanezi,pelaateno incondicional dispensada ao longo detodaa pesquisa, especialmente nosmomentos finais da tese. Aoco-orientador,Dr.RobertWayneSlenesporcompartilharseusconhecimentos de forma generosa e estimulante, mostrando caminhos insuspeitados. Aos membros da banca de qualificao, os professores Dr. Carlos de Almeida Prado BacellareDr.TarcsioRodriguesBotelho,pelassugestesecomentrioscrticos,que busquei incorporar ao texto. AosprofessoresefuncionriosdoProgramadePsGraduaoemDemografiado Instituto de Filosofia e Cincias Humanas.Ao Ncleo de Estudos de Populao da Unicamp, pelo suporte ao desenvolvimento domeutrabalho;aospesquisadores,funcionriosebolsistaspeloauxlioeconvivncia sempreagradvel.Emespecial,aAdrianaFernandesquemeauxilioucomascitaese refernciasbibliogrficascompacinciaecuidado.ACarmemNogueiraporrevisaros captulos com bom humor e agilidade.Aos membros do GT Histria e Populao da ABEP, pelos comentrios e sugestes aos meus trabalhos apresentados em eventos.AosfuncionriosdoArquivoHistricoMunicipaldeFranca:GrazielaAlves Corra, Maria Consuelo de Figueiredo, Wanderlei D. Ferreira, Maria das Graas F. Primon eCarlosAssumpo,peloscafezinhoseportornaremalgunsmomentosdacoletadas fontes mais alegres e descontrados.AosamigosSimoneAzevedo,RicardoOjima,FbioHiranoeCludiaSiqueira pelasconversasedesabafosquandonoestvamosfazendoastesesdemogrficas.Com Simone dividi casa em Campinas; ao Ricardo recorri para me ajudar com tabelas e grficos. Ao Jonis Freire, pelos livros, conversas e indicaes bibliogrficas e a Karoline Carula, por xestarsempredisposio.AoCristianoCorteRestituti,peloscomentriosnapartede economia e a Dafne Sponchiado, por me atender sempre que precisei. queles que mesmo de longe torceram por mim: Salete, Geovani, Marco Aurlio e Zilda. Aosmeuspais,ArleteeEurpedes,esminhasirms,PatrciaeVanessapor compreenderemminhaausncia.Otempopodetersidoescasso,masporestarcomvocs foi muito bem compartilhado.Aomeucompanheirodetodasashoras,pelasfriasadiadaseosfinaisdesemana emcasa,pelaforaecarinho.Porcompreenderqueestarlongeseriapreciso.Seuapoio despretensioso foi muito importante ao longo dos ltimos anos e sem a sua colaborao no campo da informtica teria ficado muito mais difcil. Dedico esta tese a voc, Otvio. xi SUMRIO Introduo1 Captulo 1 Criando gado, plantando roas: populao e economia em Franca-SP, sculo XIX 15 1.1. Localizao15 1.2. Pousos e sesmarias: ocupao e povoamento19 1.3. Paulistas e mineiros24 1.4. Evoluo populacional29 1.5. Economia33 Captulo 2 Domiclios e moradores49 2.1. Domiclios53 2.2. Os moradores62 2.2.1. Caractersticas demogrficas: primeira metade do sculo XIX 62 2.2.2. Caractersticas demogrficas: segunda metade do sculo XIX 68 2.3. Nupcialidade79 2.4. Natalidade92 2.5. Mortalidade97 2.6. Manumisses103 Captulo 3 Posses e famlias escravas107 3.1. Estrutura de posse107 3.1.1. Primeira metade do sculo XIX109 3.1.2. Segunda metade do sculo XIX121 3.2. Reconstituindo famlias escravas127 3.2.1. Aspectos metodolgicos128 xii3.2.2. Os senhores135 3.2.3. Famlias escravas141 Captulo 4 Trajetrias familiares de senhores e escravos - um estudo de caso 157 4.1. Das Minas Gerais para So Paulo160 4.1.1. A famlia de Francisco Antonio Diniz Junqueira160 4.1.2. A Famlia de Francisco Antonio da Costa169 4.2. Os escravos de Francisco Antonio Diniz Junqueira e Francisco Antonio da Costa 173 4.2.1. Caractersticas demogrficas173 4.2.2. Famlias escravas178 4.2.3. Compadrio188 4.2.4. A partilha194 Consideraes finais201 Bibliografia207 ANEXO 1 - Fontes documentais219 ANEXO 2 Relao dos inventariados235 xiii Lista de Tabelas Tabela 1.1- Evoluo da populao. Serto do Rio Pardo, 1767 179729 Tabela1.2-Evoluodapopulao,FreguesiadoRioPardo/Freguesiade Franca/VilaFrancadoImperador.Populaosegundocondiosocial(1801 1836) 30 Tabela 1.3- Evoluo da populao, Franca e territrio original (1836-1886)31 Tabela1.4-SoPaulo:quadrocomparativodocomrciototaldaProvnciade So Paulo e dos distritos de Franca e Mogi Mirim, 1836 39 Tabela 1.5- Quadro estatstico de alguns estabelecimentos rurais da Provncia de SoPaulo.SoPaulo,RelatriodeJooJoaquimMachadodeOliveira,1855 (Referente a 1854), municpios selecionados 40 Tabela1.6Populao,segundocondiosocialemrelaosprofisses. Batatais, Cajuru e Franca, 1872 44 Tabela2.1-Pessoaslivreseescravosnosdomiclioscomesemescravos. Franca, 1836 55 Tabela 2.2- Pessoas escravas nos domiclios. Franca, 183655 Tabela 2.3- Composio dos domiclios segundo a presena ou no de escravos. Franca, 1836 57 Tabela2.4-Proprietriosdeescravoseescravossegundotamanhodaposse. Franca, 1836 59 Tabela 2.5- Populao escrava segundo naturalidade e sexo. Franca, 183668 Tabela2.6-Populaolivreeescravasegundosexo.Territriooriginale municpio de Franca, 1872. 70 Tabela2.7-Populaoescravasegundosexoerazodesexo.Municpiosdo antigo territrio de Franca, 1887 76 Tabela2.8-Crescimentoanualdapopulaoescrava.MunicpiodeFranca, territrio de Franca e total da Provncia de So Paulo, 1836, 1872 e 1887 78 Tabela2.9-Crescimentoanualdapopulaolivre.MunicpiodeFranca, territrio de Franca e total da Provncia de So Paulo, 1836, 1872 e 1887 78 Tabela 2.10- Populao escrava com 15 anos ou mais segundo estado conjugal e sexo. Franca, 1836 82 xivTabela 2.11- Populao escrava masculina com 15 anos ou mais segundo origem e estado conjugal. Franca, 1836 83 Tabela 2.12- Populao escrava feminina com 15 anos ou mais segundo origem e estado conjugal. Franca, 1836 84 Tabela2.13-Casamentosentreescravoseexescravossegundoaorigem.Parquia de Franca, 1087-1888 85 Tabela2.14-Casamentosentreescravoseexescravos.ParquiadeFranca, 1087-1888 86 Tabela2.15-Populaoescravacom16anosoumaissegundosexoeestado conjugal. Territrio de Franca, 1872 87 Tabela 2.16- Perodo transcorrido entre o nascimento e o batizado de escravos e filhos de escravos. Parquia de Franca, 1806-1888 94 Tabela2.17-Filiaolegtimaounaturaldosbatizandos.ParquiadeFranca 1086-1888 96 Tabela2.18-bitosdeescravoseexescravosporsexoegruposetrios. Parquia de Franca, 1806-1888 99 Tabela 2.19- Causas mortis de escravos e ex escravos. Parquia de Franca, 1806-1888 101 Tabela 3.1- Distribuio dos inventrios e escravos. Franca, 1811-1850110 Tabela 3.2- Distribuio dos escravos segundo o tamanho da posse. Franca, 1836 e 1811-1850 111 Tabela 3.3- Distribuio dos proprietrios segundo o tamanho da posse.Franca, 1836 e 1811-1850 111 Tabela3.4-Razodesexodosescravossegundotamanhodaposse.Franca, 1836 113 Tabela3.5-Populaoescravaporsexosegundotamanhodaposse.Franca, 1811-1850 113 Tabela 3.6 - Populao escrava segundo tamanho da posse e sexo. Franca, 1836113 Tabela3.7-Populaoescravasegundotamanhodaposseegruposdeidade. Franca, 1811-1850 114 Tabela3.8-Populaoescravasegundotamanhodaposseegruposdeidade. Franca, 1836 115 xv Tabela 3.9- Populao escrava com 15 anos ou mais segundo tamanho da posse e estado conjugal. Franca, 1836 117 Tabela3.10-Populaoescravacom15anosoumaissegundotamanhoda posse, estado conjugal e sexo. Franca, 1836 117 Tabela 3.11- Tamanho da posse de escravos segundo ocupao do chefe. Franca, 1836 120 Tabela 3.12- Distribuio dos inventrios e escravos. Franca, 1851-1888122 Tabela3.13-Distribuiodosescravoseinventriossegundootamanhoda posse. Franca, 1851-1888 123 Tabela3.14-Populaoescravasegundotamanhodaposse,sexoerazode sexo. Franca, 1851-1888 123 Tabela3.15-Populaoescravasegundotamanhodaposseegruposdeidade. Franca, 1851-1888 124 Tabela 3.16- Populao escrava com 15 anos ou mais segundo estado conjugal e tamanho da posse. Franca, 1851-1888 125 Tabela3.17-Populaoescravacom15anosoumaissegundosexo,estado conjugal e tamanho da posse. Franca, 1851-1888 126 Tabela3.18-Distribuiodasfamliasescravasedosproprietriossegundo tamanho da posse. Franca, sculo XIX 146 Tabela3.19-Legitimidadedosfilhosdasfamliasescravasreconstitudas. Franca, sculo XIX 148 Tabela3.20-Casamentosdeescravossegundoaorigemdocnjuge.Franca, sculo XIX 149 Tabela3.21-Escravasafricanasecrioulassegundoidadeaocasar.Franca, sculo XIX 150 Tabela3.22-Idadedameaocasareaonascimentodosfilhos.Mulheres escravas africanas. Franca, sculo XIX 151 Tabela3.23-Idadedameaocasareaonascimentodosfilhos.Mulheres escravas crioulas. Franca, sculo XIX 152 Tabela3.24-Idadedameaocasareaonascimentodosfilhos.Mulheres escravas africanas, crioulas e sem informao da origem. Franca, sculo XIX 152 Tabela3.25-Nascimentossegundoogrupoetriodame.Mulheresescravas africanas. Franca, sculo XIX 153 xviTabela3.26-Nascimentossegundoogrupoetriodame.Mulheresescravas crioulas. Franca, Sculo XIX 153 Tabela3.27-Intervalointergensico.Mulheresescravasafricanasalgumavez unidas. Franca, sculo XIX 154 Tabela3.28-Intervalointergensico.Mulheresescravascrioulasalgumavez unidas. Franca, sculo XIX 154 Tabela3.29-Intervalointergensico.Mulheresescravasalgumavezunidas. Franca, sculo XIX 155 Tabela3.30-Intervalointergensico.Mulheresescravasquenoseuniram. Franca, sculo XIX 155 Tabela4.1-Escravossegundogrupoetrio,sexoenaturalidadepertencentesa FranciscoAntonioDinizJunqueiraeMarianaConstanciadeAndrade, 1825,1829 e 1834 176 Tabela4.2-Escravossegundogrupoetrio,sexoenaturalidadepertencentesa FranciscoAntoniodaCostaeMariaZimiladeAndrade,1836,1872,1879e 1886 177 Tabela 4.3- Casamentos de escravos de Francisco Antonio Diniz Junqueira180 Tabela 4.4- Casamentos de escravos de Francisco Antonio da Costa184 Lista de Quadros Quadro 2.1- Nmero de pessoas por domiclio. Municpios paulistas, 1810-183654 Quadro3.1-Composiodasfamliasescravasreconstitudas.Franca,sculo XIX 147 Quadro 4.1- Filhos de escravos de Francisco Antonio Diniz Junqueira181 Quadro 4.2- Filhos de escravos de Francisco Antonio da Costa e Maria Zimila de Andrade 185 Lista de Grficos Grfico1.1-Tendnciadecrescimentodapopulaosegundocondiosocial. Territrio de Franca 1836 a 1886 32 xviiGrfico 2.1- Populao escrava. Vila Franca do Imperador, 183663 Grfico 2.2- Populao livre. Vila Franca do Imperador, 183663 Grfico 2.3- Populao escrava africana. Vila Franca do Imperador, 183666 Grfico 2.4- Populao escrava africana. Vila Franca do Imperador, 1811 - 185066 Grfico 2.5- Populao escrava crioula. Vila Franca do Imperador, 183667 Grfico 2.6- Populao escrava crioula. Vila Franca do Imperador, 1811 - 185067 Grfico 2.7- Populao escrava. Territrio de Franca, 187271 Grfico 2.8- Populao escrava. Franca, 1851 - 188871 Grfico 2.9- Populao livre. Territrio de Franca, 187272 Grfico 2.10- Populao escrava africana. Franca, 1851 - 188874 Grfico 2.11- Populao escrava crioula. Franca, 1851 - 188874 Grfico3.1-Populaoescravasegundotamanhodaposseeorigem.Franca, 1811-1850 116 Grfico3.2-Populaoescravasegundotamanhodaposseeorigem.Franca, 1836 116 Grfico3.3-Populaoescravamasculinacom15anosoumaisalgumavez unida segundo tamanho da posse e origem. Franca, 1836 118 Grfico 3.4- Populao escrava feminina com 15 anos ou mais alguma vez unida segundo tamanho da posse e origem. Franca, 1836 119 Grfico3.5-Populaoescravasegundoorigemetamanhodaposse.Franca, 1851-1888 123 Grfico 3.6- Bens de 14 inventariados (%). Franca SP, 1836 - 1850139 Grfico 3.7- Bens de 17 inventariados (%). Franca SP, 1853 - 1883140 Lista de Mapas Mapa 1.1- Estado de So Paulo e Regio Norte, 200116 Mapa 1.2- Regio Norte de So Paulo, 200117 Mapa 1.3- Municpios de Franca e Batatais (Regio Norte de So Paulo), 185418 Mapa 1.4- Municpios de Batatais, Cajuru e Franca (Regio Norte de So Paulo), 1872 18 Mapa1.5-MunicpiosdeBatatais,Cajuru,Franca,Igarapava,Ituveravae Patrocnio Paulista (Regio Norte de So Paulo), 1886 19 1Introduo OcasaldeafricanosPedroeVicnciasecasounaigrejamatrizdaVilaFrancado Imperador em 29 de julho de 1832, s 14 horas. Ele contava com a idade de aproximadamente 25anoseela,16anos1.Poucomaisdeumanoapsaunio,PedroAngolaeVicncia BenguelalevaramaobatismoopequenoLus,em17denovembrode1833,entocom17 dias.Nosanosseguintes,outrasduasfilhasdocasalforambatizadas,Custodia(em1837)e Antonia (em 1839). O casal teve outra filha, Ana, que localizamos apenas no registro de bito datadode28dejulhode1842.Anamorreuaossetemeses,provavelmentedealguma infeco,jqueseuregistrodebitolistouafebrecomoacausamortis.Vicnciatambm veioafaleceremmarode1848demaldeengasgo.SegundoaListaNominativade1836 PedroeVicncia,juntamentecomocriouloAntoniodeapenas12anos,eramosnicos escravosnodomicliodeAlexandrePereiradaSilva.Quandooinventriodessesenhorfoi aberto,em1853,PedrodeNaofoiarroladocomaidadede45anos,aoladodeAntonio crioulo, 28 anos e da africana Ana, 30 anos2. Sobre os filhos de Pedro e Vicncia no sabemos o que se passou (provavelmente no sobreviveram aos primeiros anos de vida).OsdocumentosconsultadosanotaramqueAlexandrePereiradaSilvaeralavradore tambmcriador,poisestavapresentenarelaodecriadoresdoAssentamentodeGadosda VilaFrancade1829,possuindo90resesemMacabas(distritodaVilaFranca).Como pudemos notar, no foi um importante senhor de escravos e recorreu ao trfico transatlntico de cativos para adquirir mo de obra, apesar da ocorrncia de nascimentos em sua posse. Esse senhoreranaturaldeMinasGeraise,assimcomomuitosoutros,devetermigradoparao norte paulista nas primeiras dcadas do sculo XIX. A trajetria familiar de Pedro e Vicncia pode ter sido semelhante de muitos outros escravoseescravasquecircularameviveramemFranca-SPnosoitocentos:eramafricanos, 1Pedrofoilistadocom30anosnaListaNominativadeHabitantesrealizadaem1836ecom45anosno inventrio post mortem (1853). Assim, teria entre 24-26 anos no ano de seu casamento (1832).2Aoqueparece,Antonionasceuemorreunamesmaescravaria.Encontramososregistrosdebatismoebito desseescravo,respectivamenteem1824e1854(esteltimotendocomoproprietriaMariaGomesMoreira, esposaeinventariantedeAlexandrePereiradaSilva).AmedeAntonio,Joaquina,secasouem1820com Joaquim e faleceu em 1831. Apesar de ter sidocasada, acreditamos que, em 1824, Joaquina j estivesseviva, pois Antonio foi arrolado como natural em seu registro de batismo. Nada sabemos sobre Joaquim, encontrado apenas no registro de casamento. 2pertenciam a um pequeno proprietrio, estavam inseridos em uma economia voltada criao degado,constituramumafamliaestvelelegalatravsdomatrimnioreligioso,tiveram filhos,batizaramsuascrianas,tornaram-secompadresdepessoaslivrese,provavelmente, lamentaram a morte de seus familiares e companheiros de cativeiro.A reconstruo da trajetria demogrfica e familiar de Pedro e Vicncia, assim como a deoutrosescravosdeFranca-SP,nosculoXIX,fazpartedenossatentativadeproporum regime demogrfico restrito da populao escrava. Regime demogrfico A elaborao desta tese foi norteada pelo desafio em considerar a populao escrava a partirdoconceitoderegimedemogrfico,comoescrevemalgunsestudiosos,ousistema demogrfico, como queremoutros. Na realidade, o que se percebe na literatura,eNadalin j chamouaatenoparaisso,asinonimizaodessasduasexpressesentreosvrios estudiosos (NADALIN, 2004). Especificamente,onossoobjetivooriginaleraodeverificaratquepontoas caractersticasdemogrficasdapopulaoescrava,emummunicpiodonortepaulista (Franca)caracterizadoporumaeconomiadiversificada,compredomniodacriaode gadoassemelhavam-seoudivergiamdaquelasqueconstituamochamadosistema demogrficodaspopulaesescravas,propostoporMarclionoinciodadcadade1980 (MARCLIO, 1984).Paratanto,comeamosporapontaraspectosdadiscussosobreregimedemogrfico, sua conceituao e emprego. Robert Rowland, estudioso das populaes do passado, partindo de uma reflexo apoiadaem uma ampla bibliografia histrica e demogrfica (principalmente europia), observa que o conceito de regime demogrfico: (...)especificaumconjuntoderelaesedemecanismosqueestonabaseda organizaosocial,querdareproduobiolgicadeumapopulao,querda reproduo do conjunto de relaes mediante as quais se regula a apropriao social (e a distribuio) dos meios de vida dessa populao (ROWLAND, 1997, p.14). 3Esteconceitoretomaasconsideraesmalthusianassobrefreiopositivoefreio preventivo,reformulando-asnasnoesderegimedemogrficodealtapresso,cuja dinmicaseriadeterminadaatravsdamortalidadeporfatoresemgrandeparteforado controlesocialouhumano;ederegimedemogrficodebaixapresso,cujadinmicaseria, pelocontrrio,socialmentecontroladaatravsdoacessoaomatrimnioereproduo legtima (ROWLAND, 1997). Malthusconsiderouanupcialidadecomofatoraobstaculizarafecundidadee consequentementeocrescimentodapopulao(infinitamentemaiordoqueopoderdaterra emproduziralimentos).Diantedaausnciadeobstculos,apopulaocrescerianuma progressogeomtricaeosmeiosdesubsistnciaapenasnumaprogressoaritmtica (MALTHUS, 1996, p.246). O crescimento exponencial da populao se daria em razo da paixo entreossexos.Masporquerazoessecrescimentonoseverificavanapocaemque MalthusredigiuoEnsaiosobreaPopulao?Devidoatuaodosobstculospreventivos (asdificuldadesematenderaosustentodeumafamliaseriamdecisivasparaono casamento) e positivos (misria efetiva de algumas das classes mais pobres da sociedade ou a incapacidadedealimentarecuidaradequadamentedaprole).Dessaforma,osobstculos preventivos se referem ao casamento (lugar legtimo do sexo e da reproduo biolgica o controledareproduoeosexoforadocasamentosovistoscomovcio)eospositivos dizem respeito mortalidade (misria, fome).O que podemos concluir diante dos exemplos citados em relao s dificuldades para a formao de uma nova famlia (o que implicava a residncia neolocal) o pressuposto de que aimpossibilidadedaindependnciadonovocasalacabavaporacarretaroadiamentodo casamentoousuanoefetivao(celibatodefinitivoparaumapartesignificativada populaoinglesaemesmodeoutrosEstadoseuropeus).Aracionalidadeeconmicaest evidente na deciso de se unir.Rowlanddestacaqueadiferenaentreaformulaocontemporneadoconceitoeo esquemainicialdeMalthusresidenofatodeatualmenteseremespecificadasalgumasdas condiessociaistidascomonecessriasparaadefiniodosmecanismosdecontroleda dinmica demogrfica, afirmando que um regime demogrfico , essencialmente, uma forma determinada de controlo social da reproduo (ROWLAND, 1997, p.35). 4No ps II Guerra Mundial alguns estudiosos retomaram o modelo de um sistema auto-reguladoatravsdoacessoaomatrimnio,destacandoanupcialidadecomoavarivel reguladora da fecundidade.Apartirdeestudoselaboradosutilizandoareconstituiodefamlias(tcnica desenvolvidaporLouisHenryeMichelFleury),ospesquisadorespassaramainterpretaros seus resultados atravs da proposio de modelos ou sistemas: modelo europeu de casamento (HAJNAL),sistemadecivilizaodacristandadelatina(CHAUNU),sistemademogrficodo Antigo Regime (DUPAQUIER apud ROWLAND, 1997, p.34).Osestudosrealizadosentolevaramproposiodoqueficouconhecidocomo sistemademogrficodoAntigoRegime.Estesistema,queseinseriaemumaeconomia comercialeagrcolabemdefinida,caracterizava-seprincipalmentepor:umpadrode casamentomarcadopelaelevadaidadeaocasareporumapropororelativamentealtade celibatodefinitivo;umafecundidadeilegtimamuitobaixa;nveisdemortalidade relativamenteelevados,comoscilaesbrutasemvirtudedesurtosepidmicosoucrises agudasdesubsistncia,queporsuavezrefletiamsobreanatalidadeeanupcialidade.Em conseqncia,amdioelongoprazo,ocrescimentonaturalapresentava-seequilibradoe baixo. Nesse sistema, a nupcialidade a proporo das mulheres que se casavam e as idades emquecasavamjogavamumpapelcrucial,comoformadecontrolesocialmaisefetivo sobreareproduonovelhocontinente,dadoqueanupcialidadeeraavariveldemogrfica mais sujeita s interferncias do contexto social, econmico e cultural.Este sistema, como Rowland chamou a ateno, se referia a um nico modelo europeu, gerandocrticasemvirtudedasvariedadesregionaisencontradasnaprpriaEuropa Ocidental.OdebatesobreoregimedemogrficodaEuropaOcidentallevouosestudiososase voltaremparaateoriadatransiodemogrfica,eatmesmonecessidadedeserev-la (SCOTT, 1999). A teoria da transio demogrfica foi elaborada por F. W. Notestein, na dcada de1940,econsideravaqueapopulaodopassadomantinharelativoequilbrioatravsde taxas elevadas de natalidade e de mortalidade. O declnio da mortalidade, a partir do final do sculoXVIII,eapermannciadastaxasdefecundidadeelevadasporcertoperodo garantiramumrpidocrescimentopopulacional.Somentecomaindustrializaoeamaior 5demandaporfamliasmenoresqueamortalidadeeafecundidadeaproximaram-sedo equilbrionovamente.Noentanto,oqueosestudosbaseadosnareconstituiodefamlias confirmaram como em determinadas sociedades pr-modernas a fecundidade j era, de certa forma,reguladaatravsdeelevadasidadesaocasarparaasmulheres(acimados25anos), evitandoassimsuaexposioaoriscodeengravidarduranteumaimportantefasefrtildo perodo reprodutivo.Diferentementedaclssicateoriadatransiodemogrfica,alimitaoda fecundidade implicava uma racionalidade econmica que antecede a industrializao e, ainda segundo alguns autores, talvez este fato tenha facilitado a modernizao (SCOTT, 1999, p.29).As proposies acerca de regimes demogrficos procuraram ento delimitar quando as mudanas(estruturais ou no) ocorreram nos padres de fecundidade emortalidade,ou seja, ajudaram a elucidar o processo de transio demogrfica.UmartigodePhilipKreager,escritoem1986,Demographicregimesascultural system (Regimes demogrficos como sistemas culturais), que trata da teoria de populao em largaescala,tendocomofocoespecialmenteapopulaoeasestruturassociaisdas sociedades rurais tradicionais, tem sido uma referncia ou ponto de partida para os estudiosos que se preocupam com esta temtica, em definir regime demogrfico ou chamar ateno para aspectosimportantesnacompreensodessesregimes.Paraesteautor,ointeresse demogrficodetaisformassociais,estemsuaspropriedadesgeraisedinmicas,ouem outraspalavras,noestudocomparativodasmudanasenaconsidervelvariedadedas mesmas(1986,p.131,traduonossa).Aocriticarateoriadatransioeateoriado desenvolvimento,queencorajamavisodequeamudanaradicalnecessria,oautor chamaaatenoparaopapelimportantedosestudosdedemografiahistrica,que demonstramcomoestruturasdefamliaecomunidadetradicionaispodemsermantidasa despeito das mudanas nas taxas vitais e hbitos procriativos (KREAGER, 1986). Com o benefcio da experincia est claro que, para definir uma transio ou curso dedesenvolvimento,devemosprimeiroesclareceranaturezadoregimedoqualo comportamentotemdivergido,ecertificar-nosqueadivergnciaestdefato ocorrendo.Logicamente,anoodetransiodemogrficarequeroconceito prvioderegimesdemogrficos.Maiorclarezaeconsistnciaso,portanto, necessriascomrespeitoaoconceitoderegime,para oqualnoexisteumanica frmula (KREAGER, 1986, p.133, traduo e grifo nossos). 6 Deformaresumida,Kreagerconsideraqueumregimedemogrficodevemodelaro caminho atravs dos quais as pessoas desenvolvem suas relaes e eventos vitais em direo aos seus prprios propsitos (KREAGER, 1986).O autor destaca como as estruturas familiares conformam a organizao da reproduo biolgicaesocial,aoconsiderarosgruposdomsticoseosindivduosqueoscompemum dos principais focos de anlise em um regime demogrfico. Essa proposta preconiza como as pessoas organizam seus eventos vitais e suas relaes no interior de uma sociedade (GOLDANI, 1999). Uma das principais contribuies do trabalho de Kreager a elaborao do que chama de regime demogrfico restrito: Regimesrestritosdoimportanterelevnciaformacomogruposfazemuso seletivodosprocessosvitaisparaenfrentarcircunstnciaslimitadas;edesua capacidadeparacontinuartomandodecisesemfacedoqueaparece,pelomenos paraos seus propsitos prticos imediatos (...) (KREAGER, 1986, p.153, traduo nossa). Ao considerar que a populao apresenta uma base de valores e estruturas sociais que noserestringemaumavila,comunidadeououtrosgrupossociais,Kreagerdestacaque possvelelaborarhiptesesgeneralizantesapartirdolocalparaaregio.Goldanidestaca aindaqueosregimesdemogrficosrestritospoderiamserpensadoseclassificadosnoem termosideaisounormativos,mastomandoemconsideraooscursosalternativosdeaes que os processos vitais abrem ou fecham para grupos em particular (GOLDANI, 1999, p.25-26).Rowlandtambmprocuraarticularoestudodosregimesdemogrficosaossistemas familiaresapartirdeumareflexosobreaorganizaosocialdareproduo,ouseja,a maneiracomoareproduobiolgicadeumapopulaosocialmenteorganizadae estruturada: (...)Noserpossvelentendermosadinmicadeumapopulaodeterminadase noindividualizarmosasrelaessociaissubjacentesestruturaodorespectivo regime demogrfico. Estas relaes esto centradas na famlia, certo, mas no se esgotam nas relaes que hoje definimos como familiares. O estudo dos regimes demogrficostemdecombinar-secomodossistemasfamiliares,masomais 7importanteasuaarticulaonombitodeumenquadramentoconceptualmais amplo (ROWLAND, 1997, p.73). ParaRowlandoconceitoderegimedemogrficodescrevetrsconjuntosde mecanismosatravsdosquaisoequilbriopopulacionalestabelecidoemantido:os mecanismos de controle demogrfico (mortalidade, nupcialidade, a combinao dos dois, ou afecundidadecontroladadentrodocasamento);osarranjosfamiliares(regrasde convenesquedizemrespeitoformao,perpetuaoedissoluododomiclio);as amplas relaes e instituies sociais (mercados, padres de propriedade da terra, regras que governamaherana,migraotemporriaoupermanente,etc.asquaissopressupostas pelo sistema de trabalho familiar e so reproduzidas com indivduos e famlias como parte de um processo regulado socialmente) (ROWLAND, 2008, p.14, traduo e grifo nossos). Apesquisaeodebatesobresistemasouregimesdemogrficos,tantodaperspectiva tericacomoemprica,aparecemmuitopoucoetardiamentenocontextodademografia histricabrasileiraemrelaodemografiahistricaeuropia.Nosanos1980,comoj salientado, Maria Luiza Marclio apresenta uma tipologia do que chama de principais sistemas demogrficosdoBrasilnosculoXIX:1.sistemademogrficodaseconomiasde subsistncia,2.daseconomiasdasplantations,3.daspopulaesescravase4.dasrea urbanas. Na realidade, no dizer da autora, tratava-se de: (...)hiptesesoudecolocaespreliminares,calcadasnosprimeirosresultados elaboradosemanlisesdemogrficasempricas,masquenecessitarodenovose multiplicadosestudossetoriaisparatest-lasecomprov-las(MARCLIO,1984, p.194). Desde ento, avanos importantes no conhecimento da demografia histrica brasileira sorealizados,masosdesdobramentosereflexesemrelaoaosregimesdemogrficos permanecemmuitotmidos,paranodizerinexistentes.MesmooapelodeCosta,nosanos 1990queficouconhecidocomodossiIracientreoshistoriadoresdemgrafos brasileirossobreanecessidadedesedarcontinuidadesreflexesdeMarclio,no alcanou a ressonncia esperada. 8Igualmente relevante parece-me ser a retomada do estudo agora lastreado em base empricamaisrica,eventualmente,comvisotericamaisabrangentedos regimesdemogrficosquevigoraramnopassadobrasileiro(MARCLIO,1980; 1984). Penso aqui, especificamente, no esforo de elaborao a ser desenvolvido no sentidodeintegrarmosnumcorpoorgnicoteoricamenteestruturadoosavanos empricosjalcanadosquantoformaodenossaspopulaes.Identificaros aludidosregimes,asespecificidadesprpriasdecadagrandesegmento populacional(livres,escravoseforros),aspeculiaridadesregionaiseos condicionantes devidos s vrias economias que se definiram no correr de nossa histria tarefa urgente na busca de generalizaes que possam transcender o largo apegoaoempricoque,necessariamente,distinguiugrandepartedo desenvolvimentodademografiahistricaentrens.Aindanombitodesta preocupao,comoestabelecimentodevisesdemaislargoalcance,parece-me muito importante a identificao dos pontos de inflexo que, certamente, marcaram nossa formao populacional (COSTA, 1994, p.7-8). Somente no incio da dcada de 2000 essa temtica foi retomada com maior nfase por Nadalin (2003; 2004). Tributrio da proposta de Marclio (1984), do aporte terico desenvolvido porKreager(1986)einspirando-seemRowland(1997)eGoldani(1999),Nadalinampliaa proposta original de Marclio ao levar em conta uma maior variedade de realidades regionais (aponta nove regimes demogrficos versus os quatro sistemas demogrficos apresentados por Marclio). Seu trabalho, como ele prprio define, uma tentativa de se chegar ao mapeamento deumeoutroregimedemogrficorestritoquevigorounoBrasilcolniaalguns, certamente, at a metade do sculo XIX, quais sejam: 1. regime demogrfico paulista, 2. das plantations, 3. da escravido, 4. daelite, 5. das sociedadescampeiras, 6. das economias de subsistncia,7.dasdrogasdoserto,8.dassecasdoserto,9.daseconomiasurbanas3.O maior nmero de regimes demogrficos se justifica: (...)Tendoemvista(...)aligaoentreasvariveispopulacionaiseasestruturas sociais,foiaventadoqueoregimecolonialdefinerestrieseoportunidades demogrficassemelhantesediferenciadasseforemconsideradososdistintos aspectosregionaiseasconfiguraeseconmicaslocais,semmencionaras distines possveis entre as diversas camadas sociais (NADALIN, 2004, p.133). Apesar do trabalho deste historiador em retomar essa temtica, ampliando seu escopo deanliseemnvelregional,temsidodestacadoqueaproduorestritaelocalizadano tempoenoespao,deanlisesdemogrficaspropriamenteditas,impediuNadalinde 3 Para maior detalhamento destas categorias ver NADALIN, 2004, p.133-142. 9aprofundarsuaproposta,permanecendonasuperfciedaquesto(BACELLAR;SCOTT; BASSANEZI, 2006, p.3). Regime demogrfico da escravido Podemosconsiderarqueemsetratandodoestudodapopulaoescrava,os constrangimentosaqueestavamsubmetidososcativosafetavamoandamentoeoresultado de seus propsitos. Talvez, mais do que qualquer outro grupo na sociedade colonial e imperial brasileira, a dinmica da populao escrava se viu impelida por presses sociais, econmicas, demogrficas e polticas. As leituras realizadas dos escritos desses autores, somadas s poucas existentes sobre regimesdemogrficoseaosmuitosestudossobrepopulaoescravarealizadosnoBrasil, foramnorteadoresparasepensaroregimedemogrficoparaapopulaoescravado municpiopaulistadeFranca.ApropostadeKreager(1986)edeRowalnd(1997;2008),dese pensar a dinmica demogrfica a partir de um conjunto de relaes, mecanismos e escolhas a partir dos sistemas familiares, nos ajudam a ver alm dos eventos vitais que marcaram a vida deescravoseescravas,apensarseuspropsitos(edosproprietrios)eacompanharsuas aventuras e desventuras.Poderamos, assim, nos perguntar se seria possvel caracterizar o regime demogrfico da escravido e regimes demogrficos restritos da escravido no Brasil? Asespecificidadesdapopulaoescravaatornamumgrupopeculiardentroda sociedade em que estava inserida e merecem um estudo pormenorizado. Pensar a escravido antesdetudoconsideraraviolnciainerenteaestesistemadeproduo.Afinal,oescravo estava na condio de mercadoria e poderia ser vendido a qualquer momento. Por outro lado, emsuacondiohumana,tinhavontadesprpriaseestratgiaspararealiz-las,emboranem sempre se concretizassem.Marcliocaracterizaosistemademogrficodaspopulaesescravascomoaqueleem que: Amortalidadeeraextremamenteelevada,emtodasaspocaseregies, notadamentenafaixadamortalidadeinfantil.Freqnciadesurtosepidmicos 10 devastadores, particularmente de varola, e depois dos anos 1850 de clera-morbo e febreamarela.Baixssimastaxasdenupcialidade,comaausnciaquasetotalda famlia estvel e legal. A fecundidade geral [...] em regime de famlia estvel ou de uniestemporriaseradasmaisbaixasdetodooBrasil.Isso,juntamentecomo desequilbrioentreossexos,dadaaprefernciapelaimportaodehomens escravos,resultavaemcrescimentopopulacionalnegativoentreoscativos (MARCLIO, 1984, p.201-202). Emparte,talcaracterizaorefleteoqueosestudiososenvolvidoscomotemada escravidonoBrasilafirmavamatentosobreapopulaocativa,ouseja,impossibilidade deconstituiodafamlia,ausnciadelaosfamiliaresevidasexualpromscuaelasciva4. Reflete,sobretudo,aausnciadeestudosataquelemomentoquemostrassemsemelhanas, diferenaseespecificidadesdademografiaescravadeacordocomaeconomia,ocontexto local e regional e as transformaes ocorridas no sistema escravista ao longo do sculo XIX. Apartirdosanos1970despontaramestudossobredemografiaescravaque comprovaramque,apesardaescravido,muitosescravostiveramaoportunidadedeviver juntoaseusfamiliares.Em1975,Graham,analisandouminventriode1791,mostrapela primeiravezaexistnciadegruposerelaesfamiliaresentreosescravosdaFazendade Santa Cruz - RJ. No entanto, tratava-se de uma colocao um tanto tmida, uma vez que nesse trabalho a palavra famlia aparece entre aspas (1979, 1.ed. 1975). Em 1976, Slenes defende sua tesededoutoradodemonstrandoapresenadefamliasescravasestveisemreasde plantation de So Paulo e Rio de Janeiro na segunda metade do sculo XIX, alm de apontar as caractersticas demogrficas do segmento cativo.Os estudos sobre a populao e famlia escrava foram se proliferando e tomando vulto cadavezmaiorcomaaproximaodascomemoraesdoscemanosdaabolioda escravidonoBrasil.Asrevelaesdecarterscio-demogrficoqueemergiramdesses estudosacabaramporquestionarerelativizarosistemademogrficodaescravidoproposto por Marclio5. 4Sobrea historiografia clssicae seus principais expoentes (Gilberto Freyre,EmliaViottida Costa,Florestan Fernandes, dentre outros) ver MOTTA, 1999, p.179-225; SLENES, 1999, p.27-68; ROCHA, 2004, p.19-63.5 Em trabalho posterior, a autora no modifica suas consideraes em relao demografia escrava para o Brasil colonial,assimcomo,refere-sescaractersticasdemogrficas dapopulaoescravapresentes particularmente em reas de grande plantao orientadas ao mercado de exportao e nas zonas mineradoras (MARCLIO, 1990, p.58). 11 OregimedemogrficodaescravidomapeadoanosmaistardeporNadalin,ej beneficiadopelosavanosdahistoriografiasobrepopulaoescrava,emparticularda demografia histrica, parte de uma perspectiva mais ampla em relao s caractersticas dessa populao,masvinculando-oaoregimedemogrficodasplantationspara,emseguida, apresentar as caractersticas do regime da demografia escrava: Qualquerconsideraoaumregimedemogrficodasplantationsdevelevarem conta o regime restrito da demografia escrava, a complexidade e as flutuaes da produoeexportaodoacar,bemcomonovolumeecustodotrfico(existe umarelaoentreaimportaoeamortalidade).Deveserconsiderado,ainda,na continuidadedofluxoeseuvolumeoreforodaculturaafricananoBrasil(com variaesregionais,Angola,Benguela,CostadaMina...),eemconseqnciaa continuidade e ou rupturas de valores relacionados. Na relao fluxo e volume (e as repercussesnafecundidadeenamorbidade/mortalidadeentreoscativos),acima mencionado,funogeralmentedodesenvolvimentodaeconomia,devemser levadasemconta,igualmente,asrazesdemasculinidadeeaestruturaetriada populaoafricana.Finalmente,importantemencionaraspossibilidadespostas pelocasamento,famliasescravasmaisoumenosestveiseasprprias caractersticas das senzalas (NADALIN, 2004, p.138-139, grifo nosso). Embora Nadalin tenha avanado na reflexo do regime demogrfico da escravido ao incorporaraspectoseconmicos,socioculturaisedemogrficos,apresentaoregime demogrfico da escravido partindo de uma realidade muito mais prxima das plantations. PaivaeLibby(1995)apontaramparaaexistnciadetrajetriasdemogrficas diversificadas emcontextos econmicoseperodosdiversos,a partir do que observaram nas MinasGeraisoitocentista.Chamaramaatenoinclusiveparaasregiesquenose alimentaramexclusivamentedotrficointernacional(oudocomrciointernodeescravos)e que estavam fortemente ligadas ao comrcio interno, destacando o papel dos nascimentos para a manuteno de escravarias, ao menos at 1872. Com efeito,parece que uma das mais importantes distines que deve ser feita ao comparar sistemas escravistas regionais ou mesmo microrregionais, diz respeito ao graudedesenvolvimentonaproduodestinadaaocomrciodeexportao. EspecialmenteapartirdosculoXVIIIboapartedosescravosnoBrasilno trabalhavadiretamentenestesetor.VastasregiesdoPas,algumasdasquais possuindoconsiderveispopulaesescravas,passaramaseespecializarem produesdestinadasaocrescentemercadointerno,demodoque,aochegarao sculo XIX, havia uma espcie de dicotomia entre economias escravistas ligadas ao mercadointernacionaleaquelasdependentesdomercadoregional.Paraasvrias 12 regiestaldistinocarregaimportantesimplicaesemtermosdaexperincia escrava, inclusive demogrfica (PAIVA; LIBBY, 1995, p.204). Areproduo biolgicae social da populaoescrava se dava, noentanto, atravs de relaessociais(familiaresecomunitrias).Nestesentido,afamliatorna-sefoco privilegiado, seja comocontexto dos eventos demogrficos, sejacomoinstituiomediadora entreindivduoesociedade.Inseridosounoemgruposfamiliares,oshomensemulheres escravizadostambmconviveramcomlivres,forroseescravos.Compartilharam(e reproduziram) deformamaisoumenos evidenteo conjunto devalores dasociedade na qual se inseriam, apesar das adversidades a que estavam submetidos.luzdabibliografiadisponveleapartirdaanlisedeumconjuntodefontes, procuramos ento conhecer os mecanismos atravs dos quais a populao escrava se manteve ao longo do sculo XIX, delineando seno na sua totalidade, mas ao menos traos do regime demogrfico da escravido em Franca no perodo.Noprimeirocaptulo,Criandogado,plantandoroas:populaoeeconomiaem Franca-SP,sculoXIX,caracterizamosocontextosocial,polticoeeconmiconoquala populaoescravaseinseria;alocalidadenomomentohistricoemquesedesenvolvee efetivamentepovoada;suaevoluopopulacionaleasatividadeseconmicasaqueseus moradores se dedicaram no decorrer do sculo XIX at a abolio da escravido. A criao de gado vacum destacou-se como a principal atividade econmica e coexistiu com a produo de gros(milho,arroz,feijo),depanosdelealgodo,dederivadosdoleiteeacriaode outrosanimais(gadosuno,cavalar,muar,langero).Nesseperodo,estemunicpiofoi entreposto do comrcio do sal e contou com a presena de engenhos de acar, aguardente.Nosegundocaptulo,Domicliosemoradores,destacamosascaractersticasda populaoescravanodecorrerdosculoXIXecomoessassemodificaramdiantedas transformaesmaisgeraisnotocanteaosistemaescravista.Naausnciadeinformaesa respeito daestrutura da famliaescrava, examinamos o tamanhoe aestrutura dosdomiclios chefiadosporlivreseasrelaesfamiliaresedesubordinaoestabelecidasentreosseus habitanteseochefe.Emseguida,realizamosumexercciometodolgicocontrapondoas informaesexistentesnosinventriospostmortemenoscensos.Posteriormente, 13 apresentamosaspectosrelativosnupcialidade,natalidade,mortalidadeemanumissoentre os escravos de Franca.Noterceirocaptulo,Possesefamliasescravas,buscamosverificarasrelaes existentesentreotamanhodaposseeascaractersticasdemogrficasdoscativosqueas constituam tendo como recorte temporal a primeira e segunda metade dos oitocentos. Atravs de um grupo de famlias escravas que conseguimos reconstituir, refinamos nossa anlise sobre a estrutura e dinmica demogrficas dos cativos. No quarto captulo, Trajetrias familiares de senhores e escravos - um estudo de caso, analisamosastrajetriasfamiliaresdedoisproprietrioseseusescravos.Dessaforma, desvendamosumpoucomaisdahistriadosatoressociaisqueparticiparamdoefetivo povoamentodaregionortepaulistaedeseudesenvolvimento.Focalizamosafamlia,o compadrio e a transmisso da posse nas escravarias dos dois senhores. Porfim,apresentamosasconsideraesfinaisemqueprocuramosretomar,deforma resumida, os resultados obtidos e os principais pontos levantados ao longo do trabalho. 15 Captulo 1 Criando gado, plantando roas: populao e economia em Franca-SP, sculo XIX AoconsiderarmosapopulaoescravadeFranca-SPapartirdoconceitoderegime demogrfico restrito da escravido, torna-se necessrio caracterizar o contexto social, poltico eeconmiconoqualestesegmentopopulacionalseinseria.Oprincipalobjetivodeste captulosituaroterritriofrancano;contextualizaralocalidadenomomentohistricoem que se desenvolve e efetivamente povoada; mostrar sua evoluo populacional e caracterizar asatividadeseconmicasdeseusmoradoresnodecorrerdosculoXIXataabolioda escravido. 1.1. Localizao LocalizadoentreorioPardoeasdivisascomMinasGerais6,nonortepaulista7,o municpio de Franca integrou o que foi chamado originalmente de Serto do Rio Pardo8 e, a partirdofinaldosculoXIX,deNovoOestePaulista9.Essaregioapresentouumgrande crescimento econmico e demogrfico no sculo XIX, mesmo antes da chegada dos trilhos da estradadeferrodaCompanhiaMogiana(quechegouaFrancaem1887)edo desenvolvimento da cafeicultura em escala comercial, o que s ocorreu nos anos 1890. 6 Os limites entre So Paulo e Minas Gerais nessa regio s foram definidos na primeira metade do sculo XX. A regioconhecidacomoSertodoRioPardo,inicialmentefezpartedeJundia(elevadaaVilaem1655).Em 1751foicriadaafreguesiadeMoji-MirimnomunicpiodeJundia.Em1769afreguesiadeMoji-Mirimfoi elevadaVila,esua jurisdioseestendia dorioAtibaiaatorioGrande(CHIACHIRIFILHO,1986,p.23). Em1805foicriadaafreguesiadeFrancanomunicpiodeMoji-Mirime,em1824,desmembrou-sedesse municpio, tornando-se Vila Franca do Imperador. Na realidade, em 1821 foi criada a Vila Franca dEl Rey, mas somenteem1824,apsaindependnciadoBrasildePortugal,foiefetivamenteimplantadaaCmarade Vereadores e alterada sua denominao para Vila Franca do Imperador. 7Nohconsensoentreosestudiososdaregiosobreadenominao,algunsautoresreferem-seaelacomo nordeste paulista e outros como noroeste. Adotaremos norte paulista. 8OtermoSertodoRioPardoencontradonosdocumentosdapoca,comoaslistasnominativasdosculo XIXeosrelatosdosviajantesestrangeirosquepercorriamointeriordoBrasilnaprimeirametadedosculo XIX. 9 O termo Oeste Paulista tem como referncia a expanso da cafeicultura a partir do Vale do Paraba. Ressalta-se que historicamente, antes do caf, o Vale do Paraba era chamado Norte Paulista. 16 Mapa 1.1- Estado de So Paulo e Regio Norte, 2001 Fonte: SO PAULO. Secretaria de Economia e Planejamento/Coordenadoria de Planejamento Regional/Instituto Geogrfico e Cartogrfico, 1995. A evoluo administrativa e poltica desse municpio modificou-se concomitantemente aocrescimentopopulacionaleexpansoeconmicadaregioaolongodosculoXIX, quandoocorreramtambmosdesmembramentosterritoriaisquealteraramsuasdivisas10. Atualmente,aregionortedeSoPaulo(correspondenteVilaFrancaemprincpiosdo sculo XIX) abarca 30municpios, nosofrendo novos desmembramentos desde 1964 (Mapa 1.2). 10 Os desmembramentos territoriais sofridos pelo municpio de Franca no sculo XIX foram: Batatais (elevado a Vilaem1839,doqualsedesmembrouCajuruem1865),Igarapava(1873),PatrocnioPaulistaeItuverava (ambos tornaram-se Vila em 1885). Santo Antnio da Alegria desmembrou-se de Cajuru em 1885 e Nuporanga (exDivinoEspritoSantodeBatatais)tambmsetornouvilanomesmoano.Noentanto,esteltimofoi reconduzidocategoriadedistritoeincorporadoaomunicpiodeOrlndiaem1909.Em1926,tornou-se novamente municpio. (BASSANEZI, 1998, v.I, p.233-234). 17 Mapa 1.2- Regio Norte de So Paulo, 2001 Fonte: SO PAULO. Secretaria de Economia e Planejamento/Coordenadoria de Planejamento Regional/Instituto Geogrfico e Cartogrfico, 1995. 18 Mapa 1.3- Municpios de Franca e Batatais (Regio Norte de So Paulo), 1854 Fonte: SO PAULO. Secretaria de Economia e Planejamento/Coordenadoria de Planejamento Regional/Instituto Geogrfico e Cartogrfico, 1995. Mapa 1.4- Municpios de Batatais, Cajuru e Franca (Regio Norte de So Paulo), 1872 Fonte: SO PAULO. Secretaria de Economia e Planejamento/Coordenadoria de Planejamento Regional/Instituto Geogrfico e Cartogrfico, 1995. 19 Mapa 1.5- Municpios de Batatais, Cajuru, Franca, Igarapava, Ituverava e Patrocnio Paulista (Regio Norte de So Paulo), 1886 Fonte: SO PAULO. Secretaria de Economia e Planejamento/Coordenadoria de Planejamento Regional/Instituto Geogrfico e Cartogrfico, 1995. 1.2. Pousos e sesmarias: ocupao e povoamento Assim como muitos municpios paulistas, Franca originou-se de um pouso que atendia s necessidades dos tropeiros os quais, da Capitania de So Paulo, se dirigiam para as minas aurferas em Gois e Mato Grosso no sculo XVIII11. Antes disso, porm, notcias do conta de que, desde meados do sculo XVII, sertanistas de So Vicente teriam percorrido a regio. Em 1673 a expedio de Anhanguera I passou pelo Serto do Rio Pardo, deixando uma trilha ligandoaCapitaniadeSoPauloaGois,queficouconhecidacomoCaminhodo AnhangueraouCaminhodosGuayazes12.Posteriormente,BartolomeuBuenodaSilva 11 Nos relatos de suas viagens pelo centro sul do Brasil, Saint Hilaire descreve o que seria um rancho (pouso): Alpendresmaisoumenosvastosdestinadosaabrigarosviajantesesuasbagagens.Encontramo-los, geralmente,nointeriordoBrasil,margemdasestradaschamadasreaes,esonumerososnaqueeuento percorria.Sooshabitantes,cujasterrasestoprximasestrada,queosfazemconstruir.Nosepaga hospedagem, mas ao p do rancho h uma venda em que o proprietrio vende o milho que serve de alimento aos animais dos itinerantes; indeniza-se assim amplamente da despesa que fez para levantar o rancho (...) (SAINT HILAIRE, 1938, p.69). 12PartindodeMojimirim,oCaminhodosGuayazescortavaosterritriosdosatuaismunicpiosde Mojiguau,CasaBranca,Tamba,Cajuru,Altinpolis,Batatais,PatrocnioPaulista,Franca,Ituverava, 20 (AnhangueraII),quejhaviaacompanhadoopainasuaprimeiraexpedio,percorreu novamenteaquelecaminhoenotificouoficialmenteacapitaniadeSoPaulosobrea descobertadoourogoiano(1725)(CHIACHIRIFILHO,1986;BACELLAR;BRIOSCHI,1999; GARAVAZO, 2006).A partir de ento, as novas regies aurferas que movimentaram a rota para se chegar a Gois e Mato Grosso, permitiram a ocupao e o povoamento do Serto do Rio Pardo. Num primeiro momento de criao de pousos e concesso de sesmarias, no sculo XVIIIoSertodoRioPardofoipovoadoporpaulistasesuaevoluodemogrficafoi pouco expressiva. A economia da regio estava voltada para a produo de gneros de primeira necessidadeparaoprprioconsumoeoabastecimentodosviajantesquepercorriamo Caminho dos Goiases. EstaprimeirafasedopovoamentodoSertodoRioPardoumarealizao inteiramentepaulista.Nohdvidaquantoaisto.Aomesmo tempoemqueiam abrindoaspicadas,osbandeirantesconstituamjuntoaelaspequenosncleos populacionais.Nestesficavamseusagregadoseseusescravosgarantindoa subsistncianoSerto.(....)Contudo,estafasenosecaracterizaunicamentepor serumdesbravamento,elaimplicatambmumpovoamentoque,apesarde reduzido e esparso, no deixava de s-lo (CHIACHIRI FILHO, 1986, p.32). Asnovasoportunidadesqueseabriramcomadescobertadaminas,inclusivea esperanadeencontrarouronocaminho,despertaramointeressedemuitosemsolicitara concesso de sesmarias (CHIACHIRI FILHO, 1986). Moradores antigos que j tinham suas roas nolocalecriavamalgumgadoutilizaram,entre1728e1735,taisatividadescomo argumentos para justificar seus pedidos de concesso de sesmarias.Fazersuasplantaese tersuascriaesdegadoparaconveninciadosmineirose andantes justificou os pedidos por sesmarias da parte de Luiz Antonio de S Queiroga, Xavier Telles da Silva e do capito mor Jose de Ges e Moraes em 1728. Igarapava,atchegaraoRio Grande.DeSoPauloata percorriam-se [sic]90lguas.SnoSertodoRio Pardo,aEstradatinhaumaextensode37lguasaproximadamente(CHIACHIRIFILHO,1986,p.49). Adotaremos a grafia atual Caminho dos Goiases. 21 Por sua vez, Joo Pimentel de Tvora alegava que havia vindo este ano [possivelmente 1728]dasMinasdeGoisatrazernotciasdaquelesdescobrimentosparaosquaisqueria voltar logo e para sustento dos seus escravos plantar.JocoronelManuelDiasdeMenezesdeclarouemseupedidoquererpovoarefazer suas plantas para convenincia dos mineiros e andantes (CHIACHIRI FILHO, 1986). Entre1727e1736,foramfeitoscercade69registrosdesesmariasaolongodo caminho,almdasconcessesfeitasaosdescobridoresdasminasdeGois.No momentoemqueaocupaoseacelerava,posseirosdelongadatatambm tratavamdelegalizar ousode suas terras(...). A maioria simplesmente alegava j seencontrarnolocalplantandoroasecriandogado,naqualidadedenovos moradores.Todosbuscavam situarsuasatividadesemalgumpontodotrajetodos viajantes, da circulao do ouro e da possibilidade de algum comrcio (BRIOSCHI in BACELLAR; BRIOSCHI, 1999, p.47 grifo nosso). Nessemomento,osmineirosdasminasdeGoiseosviajantesquepercorriamo CaminhodosGoiaseseramosprincipaiscompradoresdoqueeraproduzidonasroase pastagens13.SegundoBacellar(inBACELLAR;BRIOSCHI,1999),ospousosnoauferiamgrandes lucrosaosseusproprietrios.Osmaisrentveiseramencontradosprximosdosrios,onde podiamcobrartaxaspelatravessia.Viversmargensdosrios,noentanto,traziaseus inconvenientes. Em 1819, passando pela regio, Saint Hilaire observou: ORioGrandeeraaindaumdosrioscujopedgiotinhasidoconcedido,portrs geraes,famliadeBartolomeuBueno,oAnhanguera,(...)comorecompensa peladescobertadeGois.(...)Asterraspantanosasqueomargeiamficam inteiramenteencobertaspelasguasnaestaodaschuvas.Depoisoterrenovai secandopaulatinamente,enosmesesdeabril,maioejunho,comeaaexalar vaporespestilenciais,quecausamfebresmalignasefebresintermitentes(SAINT HILAIRE, 1975, p.154). Dequalquerforma,emmeadosdosculoXVIIIaocupaodasterrasedo povoamento do Serto do Rio Pardo, que vinha se processando em funo das descobertas das 13Mineiros,nessecaso,significaaquelespresentesnasminasdeGoisenooshabitantesdaCapitaniade MinasGerais.SaintHilaire,emsuaviagemProvnciadeGoisem1819,refere-seaoshabitantesdeMinas Gerais como geralistas (SAINT HILAIRE, 1975, p.121). 22 minasemGois,entrouemrelativaestagnaodevidoaumasriedefatores.Entreeles,a rpida exausto daquelas minas e a construo da estrada ligando o Rio de Janeiro com a zona mineradora, passando por Paracatu. De fato, as minas deGois no obtiveram a profuso do ourodaquelasencontradasemMinasGerais;suadecadnciaparalisouocomrciono Caminho dos Goiases e tornou a populao rala e dispersa14. Novas concesses de sesmarias deixaramdeserrealizadas,paraseremretomadassomentenoanode1800(BACELLAR; BRIOSCHI, 1999; BRIOSCHI et. al., 1991).Abuscapeloouro,noentanto,nodeixoudemanterseufascnioeatoinciodo sculoXIXovaliosometaleraumprodutopresentenaproduoarroladapelaslistas nominativas de ento. Nodecorrer do sculo XVIII, osmoradoresdoserto doCaminho de Gois,alm de manter suas roas e criaes nas paragens da estrada, dedicavam-se s andanas do ouro pelos afluentes do rio Grande e encostas da serra da Canastra (BRIOSCHI in BACELLAR; BRIOSCHI, 1999, p.49). OprimeiroinventriopostmortemconservadoemFranca,deCarlosBarbosade Magalhes, aberto em 1776, ilustra um pouco do cotidiano local na segunda metade do sculo XVIII. Proprietrio da paragem do Cubato, dentre seus bens estavam listados hum ranxo de pasageirosdetreslanoscobertosdepalha.Emumasesmariadeumalguaemquadra, CarlosBarbosaviviacommais17pessoas,dasquaisdezescravas.Osbensmateriaiseram escassos; as roas descritas limitavam-se mandioca (que dava sete alqueires) e um canavial novopequeno.Aisso,somava-setambmumbananal.Avidadessaspessoaserarudee raramentecontavacomapresenadeumpadre,oquesepercebepelaleituradoinventrio, quearrolaumacrianaescravadenovemesescomoaindapag(Fonte:ArquivoHistrico Municipal de Franca - AHMF, 1 Cvel, Caixa 51, n.1). Em1779,contavam-se17pousosdesdeorioPardoatorioGrande,comuma populaototalde174habitantes,dosquais73eramcomponentesdasfamliascabeasde 14Poucoapoucoapopulaosevoltouparaaproduodesubsistnciaepecuria.Assimrelataoviajante francsemsuapassagemaoarraialdeSantaLuzianaProvnciadeGois,adescobertadasminasteveo inconveniente de atrair para longe do litoral e da capital uma populao considervel, a qual, agora que as minas esto esgotadas e s poderiam ser exploradas com grande dispndio de dinheiro se acha reduzida mais extrema indigncia (SAINT HILAIRE, 1975, p.26). 23 fogo,68agregadose33escravos.Ospousoseramassimdesignados:RioPardo,Cubato, Lages,Araraquara,Batatais,Pacincia,PousoAlegre15,Sapuca,Bagres,Posse,Ressaca, Monjolinho, Ribeiro, Calo de Couro, Rio das Pedras, Rossinha e Rio Grande16. Ao longo do sculo XIX as vendas ou pousos continuaram a ser ponto de parada para os viandantes e tropeiros como o de Francisco de Paula Marques, inventariado em 184917: Pelo stio da morada no lugar denominado as Covas se compoem de huma Casa de vendadetrezlanosametadecobertodetelhaseoutrametadecobertadecapim pela frente com trez portas e duas janellas e no emterior tem quatro portas e huma janella com hum balco e parte de cima. .. (ilegvel) de negcio, hum paiol coberto decampim,humfornodebiscoitos,humRanxodetropacompreendendoesta moradahumacapoeiradequatroalqueiresemeioeporoutrohumpastinhotudo sercadodevallas,emadeirabrancaquefoivistoeavaliadopelosmesmos avaliadores pela quantia de 200$000 (Fonte: AHMF, 1 Cvel, Caixa 89, n.15). FranciscodePaulaMarquestambmeradonodeapenasumaescrava,masaparte mais significativa do valor de seu monte mor era composta de dvidas ativas. O monte partvel chegou a 4:200$176 (quatro contos, duzentos mil e cento e setenta e seis ris). Na listagem de pessoasdevedorasaessehomemqueviviadeseusdenegciosencontram-setambm escravos, como Jose Firmino (escravo de Jacinto) que devia a quantia de 26$000 (vinte e seis milris)eJoaquim(escravodoalferesLusJoseFradique)devedorde$640(seiscentose quarenta ris). DeacordocomaListadeCriadoresde1829,FranciscodePaulaMarquesera proprietriode15reses.Masacriaodegadonodevet-loatrado.SegundoaListade Habitantes, esse mineiro casado vivia de seus negcios em 1836 e possua apenas um escravo. Enfim, os pousos no Caminho dos Goiases viabilizaram a comunicao da Capitania de So Paulo com o seu interior e com outras capitanias, como a de Gois e Mato Grosso. Garantiram o povoamento e as trocas comerciais, ainda que esparsos: 15LocalizadosdorioPardoatorioSapucaforamabrangidospelaFreguesiadeBatataisapartirde1815 (CHIACHIRIFILHO,1986,p.53-54).DestacamosqueorioSapucadaregiodorioPardonoomesmo Sapuca afluente do rio Grande.16 Os pousos Sapuca em diante localizavam-se entre o rio Sapuca at o rio Grande e passaram a pertencer Freguesia de Franca em 1805 (CHIACHIRI FILHO, 1986, p.53-54). 17 Idade estimada ao falecer: 54 anos (Fonte: Lista Nominativa de Habitantes de 1836). 24 Os pousos, dentro de suas limitaes, tiveram sua importncia no sentido de ativar aeconomia.Partedolucrodosboiadeirosecomerciantesquetransitavampelo caminhodos Goyasescusteava osgastos nasparagens ao pagarem por um local paradormir,alimentao,bebidaealugueldasenvernadasparaodescansodos animais (OLIVEIRA, 1997, p.45). 1.3. Paulistas e mineiros AsterrasdoSertodoRioPardoforam,desdeoinciodesuaocupao,motivode disputas entre paulistas e mineiros. Na segunda metade do sculo XVIII, a disputa se deu em razo dos descobertos aurferos, os paulistas buscavam obter autorizao de posse dos novos descobertos no serto entre os rios Pardo e Sapuca: PedroF.Quaresma,em suas dilignciascontraosquilombosde negrosforagidos, anda por todo o SertodoRioPardo, principalmente pelo lado leste, e,aomesmo tempo que destri os quilombos, ele vai encontrando faisqueiras de ouros. Mais do que depressa, a Comarca de So Paulo manda elaborar os autos de posse: em 1755 odosertodorioSoJoo,em1761doRibeirodeSoPedrodeAlcntarae Almas, em 1762 da Barra do Sapuca, e assim por diante. Tais descobertas atraram osmoradoresdasGeraiseoproblemadasdivisasganhoucorpo(CHIACHIRI FILHO, 1986, p.24-25). Poroutrolado,cabelembrarquenoperodoentre1748e1765aCapitaniadeSo PauloperdeusuaautonomiaefoiincorporadadoRiodeJaneiro.Nessapoca,acapitania deMinasampliouoseuterritrioemdetrimentodoterritriopaulistaque,poucopovoado, enfrentava dificuldades em se defender (CHIACHIRI FILHO, 1986). A disputa entre paulistas e mineiros pela posse do Descoberto do Rio Pardo, no Serto doRioPardo,deu-seemummomentoemqueamineraoemMinasGeraisestavaem decadnciaeosnovosdescobertoscontribuamparaaliviarasobrecargafiscal18.Olado paulistaimpediuquefosselavradoumautodeposseemseusdescobertospelaCapitaniade Minas,aogarantirqueosnovosdescobertosdeveriamrenderoquintoaorei,enoserem 18ODescobertodoRioPardodeuorigemaCaconde,SP.AfreguesiadeNossaSenhoradaConceiodo Bonsucesso do Descoberto do Rio Pardo (ou freguesia de Caconde) cujo povoamento est ligado descoberta de veiosaurferosemseusribeiresfoidesmembradadafreguesiadeMoji-Guaueinstaladanoanode1775. Assim, o Serto dos Goyazes, entre os rios Pardo e Grande, ficou sob a jurisdio de Caconde. Em 1805, com o esgotamento de sua atividade aurfera, a freguesia de Caconde (que no se localizava no Caminho dos Goiases) foi substituda pela freguesia de Franca (BRIOSCHI, 1995, p.24-26). 25 includosnacotadas100arrobas(quesomadaderramaeraoqueseriacobradoemMinas Gerais).Almdisso,umofciodatadode1765dapartedeDomLusAntniodeSousa, governadorecapito-geraldaCapitaniadeSoPaulo,estipulouqueorioGrandeeorio SapucaseriamoslimitesentreaCapitaniadeSoPauloedeMinasGerais(CHIACHIRI FILHO, 1986). No entanto, a questo das divisas entre Minas e So Paulo nessa regio, iriam se estender pelo sculo XIX e seus limites estabelecidos finalmente no sculo XX.AocupaodoterritrioondehojesesituaFrancapormineiroscontinuou.graas aos mineiros, os entrantes, que se deu a elevao do arraial a freguesia19, o que significaria ter um ncleo urbano e uma igreja matriz20. Em seu ofcio de 6 de agosto de 1805, Hiplito Antonio Pinheiro suplica ao Governador e Capito General da Capitania de So Paulo, Antnio Jos de Franca e Horta, que ele patrocinasse a pretenso dos moradores daquele territrio, a qual era a da criao de uma Freguesia, porque: 1 - os intrantes que l se estabeleceram estavam descontentes com a falta de Pasto Espiritoal. 2- que se eles quisessem dar Estado a seus filhos deveriam andar 40 a 50 lguas at a Freguesia de Moji. 3- que, alm dos riscos que corriam de ataque da Gentilidade brbara deveriam transpor, nesta caminhada, quatro postos reais (CHIACHIRI FILHO, 1986, p.58). OpedidodeHiplitoPinheirosurtiuefeitoe,em29deagostode1805,obispoda cidadedeSoPaulo,D.MateusdeAbreuPereira,autorizouoreverendoJoaquimMartins 19 A doao do terreno onde seria erguida a igreja matriz veio dos irmos Vicente Ferreira Antunes e sua mulher eAntnioAntunesdeAlmeidaeem1805foifundadaafreguesiadeNossaSenhoradaConceiodeFranca, cujoterritrioabrangiaareaentreosriosPardoeGrande,oslimitesatMinasGeraiseatomunicpiode Mococa (atual) (CHIACHIRI FILHO, 1986, p.58). A criao da freguesia do Senhor Bom Jesus da Cana Verde (Batatais) em 1815 alteraria o marco limtrofe do municpio de Franca para o rio Sapuca. 20Seos pousos eram modestos ncleos populacionais,as Freguesias se esboavam como ncleosurbanos. Em torno da Matriz, no local sede da Freguesia que iro se desenvolver os ncleos urbanos do Serto do rio Pardo. AIgrejatemumaimportnciamuitograndenasuaformao.Suafunovaialmdareligiosa,tornando-se tambmumforteelementodecoesosocial.Asmissasdominicais,arrancandooshomensdesuaslidasnas fazendas,constituemtantoumanecessidadereligiosaquantosocial.Elaspossibilitamdoistiposdecontatos: com Deus e com os prprios homens. As festas, as solenidades religiosas de modo geral atraam aqueles homens, justificavam oaparecimento das mulheres,motivavam a construo de casasao redor daMatriz e,a partir da, iamexpandindo-seeformandooarraial.AIgreja,portanto,eraocentroemcujavoltagiravaavidaurbanae social(CHIACHIRIFILHO,1986,p.57-58).Devemosrelativizarosignificadodeurbanoaquiempregado. Nosabemosexatamenteoquedefiniaoespaourbano(questocontroversaatosdiasatuais),mas provavelmente o mesmo demarcava o espao prximo Matriz onde se localizava a sede da Freguesia e no qual se estabelecia algum estabelecimento comercial. 26 Rodrigues(umentrantemineiro)abenzerocemitrioeaerguerumaCasadeOrao enquanto no se edificava a igreja matriz (CHIACHIRI FILHO, 1986).A freguesia que ento surgia levara o nome de Franca em homenagem ao governador da Capitania de SoPaulo, o capitogeneral Antnio Jos deFranca e Horta, em virtude de seuempenhonacriaodafreguesia21.Isso,noentanto,parecenoserconsenso,poispara algunsestudiososonomeFrancapodetersidoescolhidoemrazodearegioseruma passagem livre, sem barreiras e impostos, com o que discorda Jos Chiachiri Filho: (...) numa poca em que o fisco era implacvel, no seriam os mineiros (que tanto tinhamsofridoosseusrigoresem sua terranatal) que iriampropagarasfranquias queosertolhespropicianonomedesuaFreguesia.OnomedeFrancafoidado em homenagem ao Capito Antonio Jos da Franca e Horta cujos esforos em prol da nova Freguesia e futura Vila foram decisivos (CHIACHIRI FILHO, 1986, p.59). NapassagemdosculoXVIIIparaoXIX,aregiodoSertodoRioPardovoltoua ser novamente objeto de interesse e novas sesmarias foram concedidas a partir dos primeiros anos de 1800.NaCapitaniadeSoPauloessapocafoimarcadapeloflorescimentodalavoura canavieiraedosengenhosdeacaremseuterritrio,decorrentedarevoluodeescravos ocorridaemumdosprincipaisfornecedoresdeacar,a(ex)colniafrancesadoHaiti.A exportaodealgododespontavanascapitaniasdonorteenordeste,especialmenteo Maranho,reflexodaGuerradeIndependnciadosEUA,oqueprejudicouavendado algodo norte-americano para as manufaturas inglesas. Nesse momento, a economia colonial congregava seus lucros com a exportao de produtos tropicais, refletindo em dinamismo para asmaisdiversasregies.Aomesmotempo,aproduodegnerosparaomercadointerno progredia, para atender e/ou complementar o abastecimento daquelas reas exportadoras e da Corte, estabelecida no Rio de Janeiro em 1808. A abertura dos portos s naes amigas, nesse mesmo ano, contribuiu para intensificar as trocas comerciais no Brasil. 21 CHIACHIRI FILHO (1986, p.59) comprova esta afirmao tendo em vista um ofcio do juiz de fora da Vila de CampanhaaoGovernadorde MinasGeraisdatadode 1814emqueafirmaque onome deFrancafoidadoem obsquio ao capito general Franca e Horta. 27 a partir dessaconjuntura,deampliao dosmercados deabastecimento e das reas agro-exportadoras,quedevemoscontextualizaropovoamentoefetivodeFranca,cuja economia no iria se modificar estruturalmente at o fim do Imprio.Na ltima dcada do sculo XVIII, acentuando-se, sobretudo, nas primeiras dcadas do sculo XIX,ofluxomigratriodeMinasGeraisgaranteoefetivopovoamentodaregionorte paulista.Os migrantes mineiros que se dirigiram para Franca e reas circunvizinhas (que deram origemaBatatais,Igarapava,PatrocnioPaulista,Ituverava,entreoutras)vinhamtantode regiesdosuldeMinas,especializadasnoabastecimentointerno,assimcomoderegiesde mineraodecadente.EssemovimentodemineirosemdireoaoSertodoRioPardo, portanto,situava-senocontextodeampliaodafronteiradepecuriaeagriculturade abastecimentodeMinasGeraisemdireoaSoPaulo,enabuscapornovasfaisqueiras, impulsionada pela decadncia da minerao aurfera nessa capitania desde 178022. Ampliar a fronteiraemummomentodeprocurainternacionalpelosprodutoscoloniaisfoiaforma encontradaparagarantiraproduoemterrasaindaescassamentepovoadaserelativamente frteis23. Em fins do sculo XVIII, o interesse pelo serto do Rio Pardo ressurgiu e pode ser percebido pelo nmero de pedidos de legitimao de posses antigas, pela requisio de novas sesmarias e pelas transaes de terra, realizadas entre os anos de 1788 at aproximadamente1820.Entreosinteressadosnaaquisiooulegalizaodo acessoterraencontravam-setantoantigosmoradoresdoCaminhodeGois, quanto paulistasemineirosrecm-chegados.(...)Asgrandesdimensesdas terras concedidas e a nfase nos campos existentes revelam a atividade pecuria de seus solicitantes (BRIOSCHI in BACELLAR; BRIOSCHI, 1999, p.63). Garavazo (2006) chamou a ateno para o fato de que no s a qualidade e quantidade das terras disponveis atraram os mineiros regio, mas outras condies fsicas e naturais, a 22 A exportao de ouro cresceu em toda a primeira metade do sculo e alcanou seu ponto mximo em torno de 1760,quandoatingiucercade2,5milhesdelibras.Entretanto,odeclnionoterceiroquarteldosculofoi rpido e, j por volta de 1780, no alcanava um milho de libras. O decnio compreendido entre 1750 e 1760 constituiu o apogeu da economia mineira, e a exportao se manteve ento em torno de dois milhes de libras (FURTADO, 2001, p.78).23 Ofluxo migratrio de mineirosem direo a So Paulo j haviasido destacadopor Caio Prado Jnior e por Celso Furtado (2001, p.132) como umaexpansoda economia mineira antes da penetraoda lavoura cafeeira em terras paulistas. 28 sua localizao e a facilidade para o escoamento e comercializao da produo das fazendas locais. Quandoosmineiros,nodesmaiardosculoXVIIIenodespertardoXIX, chegaramatasdivisasecomearamataseadentrarempelacapitaniadeSo Paulo, no eram mais, em sua maioria quase absoluta, mineradores preocupados em encontrarouro,massimagricultoresecriadoresembuscadeterrasfrteiseboas pastagens (CHIACHIRI FILHO, 1986, p.34). precisosalientarqueamigraomineiradessapocadeu-seemetapas.Alguns mineiros dirigiram-se primeiramente para as terras do Tringulo Mineiro e da Farinha Podre, localizadasnaregioentreosriosParanabaeGrande,rearicaemsalitreebemirrigada, propciapecuria.Emseguida,deslocaram-separaoSertodoRioPardo,ondese fixaram24. Nesse momento, os mineiros tambm marcharam rumo a Gois, j que na poca a regio do Tringulo Mineiro e a de Farinha Podre pertenciam Capitania e Prelazia de Gois at 1816.Osmineiros,aoexpandirasfronteirasagrcolasnonortepaulista,procuraramdar continuidadesatividadeseconmicasaquevinhamsededicando,noseinteressandopela agricultura de exportao, como ocorria em outras regies paulistas. Asfamliasmineirasquemigravam,fossemricasoupobres,noapresentavam sinais de interesse pela monocultura canavieira. A grande motivao estava voltada paraafixaodaresidnciaemreascircunvizinhasreadosengenhos,como fitoaparentedeproveroabastecimentodasmesmas.(...)Osimigrantesmineiros eram, efetivamente, derivados de reas onde predominavam setores de economia de abastecimento,centradossejanalavouradealimentos,sejanapecuria (BRIOSCHI et al., 1991, p.39-40). ,portanto,comamigraomineiraquearegiovaipoucoapoucoperdendosua caractersticadeserto.Osentrantesmineiros,aoinstalaremsuasfazendas,criandogadoe plantando roas, contriburam para o crescimento demogrfico, para a criao das freguesias e vilas no Serto do Rio Pardo. 24 Ilustrativo desse processo a trajetria do capito mor Hiplito Antonio Pinheiro e sua famlia. Esse mineiro era natural de Congonhas do Campo, alguns de seus filhos nasceram em Desemboque - MG e outros em Franca, onde a famlia finalmente se fixou (CHIACHIRI FILHO, 1986, p.36). 29 1.4. Evoluo populacional OritmodaocupaoepovoamentodafreguesiaedepoismunicpiodeFrancapode servisualizadonosdadosdastabelas1.1e1.2.Emcercadetrsdcadas(1776-1797)a populaomaisquetriplicou,enquantoapopulaoescravasfoireceberumaumento razovelemmeadosdaltimadcadadosculoXVIII,comaintensificaodasatividades econmicas. Pela pequena quantidade de escravos observada at o incio dos anos 1790 de se supor que os primeiros povoadores possuam recursos modestos (GARAVAZO, 2006).Quando o ouro (descoberto na segunda metade dos setecentos em Caconde) foi pouco apoucodiminuindosuaimportnciaeconmica,ealavouraeapecuriaampliaramseu espao na economia local, mais escravos e livres adentraram a regio25. Tabela 1.1- Evoluo da populao. Serto do Rio Pardo, 1767 1797 AnosLivresEscravosTotal N%N%N% 176781* 1776113734227155100 1782188785222240100 1790182794821230100 1797296816919365100 Fonte: Maos de Populao do Termo de Mogi Mirim Apud BRIOSCHI, 1995, p.112. *Apenas a populao livre. Essemovimentomigratrio,oriundoemgrandepartedosuldeMinasGerais, modificou a paisagem das colinas, capoeiras e matas da regio, onde em 1824 foi instalada a Vila Franca do Imperador. O crescimento populacional dessa vila, ao final do sculo XVIII e duranteamaiorpartedosculoXIX,deve-seprincipalmenteaoaumentodaimportncia econmicadasplantantions,tantonochamadoQuadrilterodoAcarcomonoValedo Parabacafeicultor,processoquegerouumflorescentemercadoparaosanimaiscriadosno norte paulista. 25 O ouro aparece pela ltima vez nas listas nominativas do Serto do Rio Pardo no comeo do sculo XIX. 30 Aentrada de africanos paraabasteceraagricultura paulistae a migraode mineiros queexpandiamsuafronteiraforam,napoca,osprincipaisfatoresresponsveisporesse incremento demogrfico na Provncia de So Paulo j nas ltimas dcadas do sculo XVIII e incio do XIX.Apopulaopaulista,queem1772eradepoucomaisde100.000habitantes,passou para 169.544 em 1800. No ano da Independncia do Brasil (1822), esse territrio contava com 244.405habitanteseem1836,suapopulaochegoua326.902.Tambmaparticipaoda populaodeSoPaulonototaldapopulaodoBrasilelevou-senoperodoconsiderado, passando de 3,92% em 1772 a 5,51% em 1836. importante destacar que no somente a populao da Capitania de So Paulo cresceu comotambmadoBrasilpassouporsignificativoacrscimo.Em1800,teriaoBrasil 3.569.000 habitantes e 5.867.000 em 1836 (MARCLIO, 2000). Nas primeiras dcadas do sculo XIX a populao se expandiu de modo acelerado na Freguesia do Rio Pardo. Os livres que, em 1801, eram 491, em 1836 chegavam a 7.224 e os escravos passaram de 80 a 3.443, respectivamente, nesses anos. Tabela 1.2- Evoluo da populao, Freguesia do Rio Pardo/ Freguesia de Franca/ Vila Franca do Imperador.Populao segundo condio social (1801 1836) AnosLivresEscravosTotal N%N%N% 1801491868014571100 1803*604888612690100 1804*6718017220843100 18071.26779338211.605100 1813*1.73371704292.437100 1814*2.04972783282.832100 1824*3.974681.853325.827100 1836**7.224683.4433210.667100 Fonte: Maos de Populao apud BACELLAR; BRIOSCHI, 1999, p.70. *CHIACHIRI FILHO, 1986, p.186.**MULLER, 1923. Em1839Batataistornou-seVila,reduzindooterritriodeFrancadoImperador. Francafoielevadacategoriadecidadeem1856.Ocrescimentodemogrficoeos desdobramentosterritoriaisintensificaram-senasegundametadedosculoXIX.Osdados 31 demogrficosdisponveispara1854soparciais26,mastrsanosdepois,oAlmanak Administrativo,MercantileIndustrialdaProvnciadeSoPaulode1857anotaquenesse anohavia5.572habitantesnomunicpio27.Noentanto,aoquetudoindica,essetotal correspondia populao livre28.Em 1872, o territrio correspondente a 1836 estava desmembrado em trs municpios: Batatais,CajurueFranca,comsuasrespectivasparquias.Em1885,PatrocnioPaulistae Ituverava desmembraram-se do municpio de Franca; Santo Antnio da Alegria do municpio de Cajuru e Nuporanga de Batatais29. Tabela 1.3- Evoluo da populao, Franca e territrio original* (1836-1886) Anos/ Localidades LivresEscravosTotal N%N%N% 1836 Franca (distrito)1.47471591292.065100 Territrio6.975673.3953310.370100 1854** Franca1.98567980332.965100 Territrio5.294791.423216.717100 1872 Franca18.021843.3981621.419100 Territrio33.816846.4611640.277100 1886 Franca8.757871.2831310.040100 Territrio***37.469913.912941.371100 Fontes: 1836 Lista Nominativa de Habitantes. 1854-1886 BASSANEZI, 1998. *Soma da populao de Franca e das populaes das localidades desmembradas desse municpio a partir de 1836. **Total parcial. ***Dados parciais. O municpio de Patrocnio Paulista no possui informaes. ApopulaoescravadoterritriodeFrancapraticamentedobroudetamanhoentre 1836e1872.Aps1872,apopulaodeclinounoapenasporcontadaextinodotrfico africano como tambm porque as crianas nascidas aps 28 de setembrode 1871 no seriam 26 As informaes que constam nesse censo so apenas para as freguesias: Carmo de Franca (atual Ituverava) e Santa Rita do Paraso (atual Igarapava) e para a freguesia de Cajuru pertencente a Batatais.27 3.207 na Cidade da Franca do Imperador, 813 na Freguesia de Santa Rita do Paraso e 1.552 na Freguesia de Nossa Senhora do Carmo. 28 Essa concluso deve-se ao fato de que, ao se referir populao da Provncia como um todo o almanaque de 1858 anota tem perto de 300 mil habitantes livres e, comparando com as informaes de 1854 para Carmo de FrancaeSantaRitadoParasocomasmostradaspeloalmanaquede1858chega-seconclusodequeos escravos no estavam inseridos nesse conjunto. 32 mais consideradas escravas. Em cinco dcadas, a populao livre, que era o dobro do tamanho da escrava em 1836, passou a ser dez vezes maior em meados de 1880. Grfico 1.1 Tendncia de crescimento da populao segundo condio social - Territrio de Franca - 1836 a 18867.22415.63033.81637. 4593.4404.7146. 4613. 91205.00010.00015.00020.00025.00030.00035.00040.0001830 1836 1842 1848 1854 1860 1866 1872 1878 1884 1890LivreEscrava

Fonte: MULLER, 1923; Quadro Estatstico da Populao da Provncia de So Paulo Recenseada no anno de 1854 (...); Recenseamento Geral do Imprio, 1872; Relatrio, 1888. Nota: Os dados da populao livre e escrava para 1854 foram obtidos atravs de clculo de projeo, uma vez que o levantamento de 1854 no traz informaes para as sedes dos municpios de Franca e Batatais, mas apenas para as Freguesias de Carmo da Franca (Ituverava), Santa Rita do Paraso (Igarapava) e Cajuru. De acordo com o Censo de 1872, a populao do municpio de Franca j era de 21.419 pessoas, das quais 15,9% eram escravas. Nesse mesmo ano, se tomarmos o territrio original deFranca,essecontavacomumapopulaoescravaquerepresentava16,0%dapopulao total.No que diz respeito demografia escrava, preciso destacar que em 1872 j refletia as diversasmudanasdosistemaescravistanasegundametadedosculoXIX:aproibio efetivadotrficotransatlnticodeescravos(1850),oconseqenteenvelhecimentoda populao escrava de origem africana e sua diminuio proporcional no total da populao, a intensificaodotrficointernodeescravosps1850(parasupriranecessidadedemode obranoSudeste),comodeslocamentodecativosdeoutrasprovnciasparaasfazendas paulistas. 29Noentanto,osdadosreferentesaSantoAntniodaAlegriaeNuporangapermanecemnoCensode1886 juntamente com os de Batatais (BASSANEZI, 1998). 33 Entre 1872 e a realizao de um novo levantamento populacional na Provncia de So Paulo,em1886,Francaperdeuumaparcelarazoveldeseuterritriocomacriaodos municpiosdeIgarapava(1873),PatrocnioPaulistaeItuverava,ambosem1885,oque justificatambmaperdadepopulaonoperodo.Comumnovoperfilterritorial,a populaodeFrancaem1886passouaserde10.040habitantes,dosquaisosescravos atingiram 12,8%; uma porcentagem maior que a verificada para o territrio original de Franca (9,5%) (Tabela 1.3). A partir da ltima dcada do sculo XIX, a populao local passou a sofrer os impactos da imigrao internacional e da cafeicultura que avanou sobre o seu territrio30. 1.5. Economia Durante todo o sculo XIX, a ocupao, o povoamento e a evoluo da populao do territrio do Serto dos Goiases sofreram o impacto e tambm impactaram o desenvolvimento daeconomialocal,queseprocessoudeformadiferentedeoutrasregiesdoterritrio paulista; como o Quadriltero do Acar, o Vale do Paraba e o Velho Oeste Paulista, por ser um plo criador, de agricultura de subsistncia, de produo de bens voltados para o mercado interno. Como as outras regies paulistas, o Serto dos Goisaes tambm se utilizou de mo de obra escrava desde o incio de seu povoamento.De fato, desde fins do sculo XVIII a expanso da agricultura paulista, aliada oferta deescravosafricanos,permitiuqueosistemaescravistafossedifundidoemSoPaulo,do litoral aos longnquos sertes, at a sua abolio em 1888. Diga-se de passagem tambm que a escravido indgena foi amplamente utilizada nos tempos iniciais da colnia31. Com oavanodas culturas deacar ecaf,nas primeiras dcadas do sculo XIX, a mo de obra escrava passou a se concentrarmais nas mos dos proprietrios voltados para a exportao: 30 Issoescapa ao escopo desta pesquisa. O principal grupo de imigrantes internacionais que sedirigiu a Franca foi o originrio da Itlia, sobre a migrao italiana em Franca ver DI GIANNI (1997). 31 A escravido indgena em So Paulo ocorreu at 1700, sendo gradualmente substituda pela africana (LUNA; KLEIN, 2005, p.107-108; MONTEIRO, 1994). 34 Porm, por mais que os escravos tenham sido desviados para o caf pelo restante do sculo,osetorprodutordealimentospermaneceuexpressivo;defato,cadavez maisintegrou-seeconomiaescravista.Assim,oalicercedaagriculturapaulista continuousendoaproduodegnerosalimentcios,queseexpandiu paralelamente s culturas de exportao na primeira metade do sculo XIX (LUNA; KLEIN, 2005, p.136). A produo de gneros de subsistncia era difundida em praticamente todas as regies doBrasil.Umaparceladessaproduotinhacarterfamiliareeradestinadaaoconsumo domstico; a comercializao do excedente ocorria apenas em colheitas mais abundantes e os ganhos eramesparsoseinsuficientes paraa aquisio deescravos.Mas esse nofoi o nico cenrioquemarcouaproduodegnerosdeprimeiranecessidadenoterritriobrasileiro, estandopresentetambmnagrandelavouraeemoutroslocaisvinculadosfortementeao abastecimento interno.Aindaquemuitosprodutoresnofossemabastadososuficienteparaacomprade escravos,aproduodealimentosedeanimaisparaosmercadoslocaiseregionaisfoiuma importante atividade econmica, coexistindo com a lavoura de exportao de cana-de-acar e caf. Como afirmam Luna e Klein, ao analisarem a evoluo econmica paulista entre 1750 e1850,mesmoaszonasresponsveispelasmaioresexportaesdeacarecaftiveram umaproduosignificativadeprodutosanimaisegnerosalimentcios(LUNA;KLEIN,2005, p.109).NamaiorpartedosculoXIXasprincipaisatividadeseconmicasdesenvolvidasem Francaforamapecuria,aproduodegnerosdaterravoltadosparaoabastecimento interno,ocomrciodosaleumaproduorazoveldetecelagem,aqualultrapassavao consumo interno, como observou o atento viajante francs Saint Hilaire: Osfrancanoscultivavam,fabricavam,emsuaspropriedades,tecidosdealgodoe del,eaplicavam-seespecialmentecriaodegadovacum,deporcosede carneiros.(...)acriaodegadovacum,nodistritodeFranca,tomougrande incremento, e,em 1838, esse distrito era um dos que forneciam mais gado bovino (SAINT HILAIRE, 1972, p.101)32. 32 Saint Hilaire passou por Franca-SP em 1819, mas atualizou seus relatos de viagem anos mais tarde utilizando-se dos dados apresentados por Daniel Pedro Muller publicados em 1836. 35 Na dcada de 1820 Franca j se destacava pela criao de gado vacum como comprova oAssentamentodeGados,realizadoem1829.Segundoessafonte,foramarrolados688 criadores que possuam juntos 37.768 cabeas de gado (OLIVEIRA, 1997)33. Segundo Mller, em 1836,naProvnciadeSoPaulo,FrancaeItapevaeramasnicaslocalidadesque ultrapassaramumacentenadefazendasdecriar,176e167respectivamente.Seosdadosde Mllerforemcorretos,deumtotalde501fazendasdecriararroladasporelenaprovncia, aproximadamente 35% delas encontravam-se em Franca (MLLER, 1923). Ogadovacum,osescravoseasterraseramosbensdemaiorvalorarroladosnos inventrios abertos em Franca no decorrer do sculo XIX. No entanto, os demais bens listados demonstram que a economia francana da poca era diversificada e dinmica.OinventriopostmortemdeJooGarciaLopesdaSilvamostraqueelefoium importante criador local, pois seu patrimnio inclua 714 cabeas de gado vacum, 150 porcos, 54 carneiros e 97 cavalos, mulas e bestas por ocasio de sua morte, em 185934. Sua escravaria eraconstitudapornadamenosdoque70cativoseoseuespliofoiavaliadoem 259:042$537 (duzentos e cinqenta e nove contos, quarenta e dois mil e quinhentos e trinta e sete ris); possuindo ainda uma olariae fornalha,dinheiro, 162 sacos desal, 1.000 queijos e casadeengenho35.Comopodemosnotar,suasatividadeserambemdiversas.Embora possusseamaiorpartedesuasterrasemSoPaulo,essemineirotambmpossuaterrasno Termo de Jacu-MG, que podem ter sido usadas como invernada de seu gado, que seguia para Minas Gerais e Rio de Janeiro.De fato, a venda de gado para o Rio de Janeiro era uma das formas de se comercializar os animais criados nas pastagens entre os rios Pardo e Grande. No s ogado produzido por essecriador,mastambmporoutrosproprietriosdeFranca,eralevadoatJacuonde invernava e de l seguia para a Corte (RESTITUTI, 2006). 33 Esta Lista de Criadores encontra-se publicada em BRIOSCHI et al., 1991, p.277-293.34 Idade estimada ao falecer: 83 anos (Fonte: Lista Nominativa de Habitantes de 1836).35Montantesignificativo, umavezquevaloresacimade10:000$000foramconsiderados como limitesuperior pordiversosestudossobreariquezaaolongodosculoXIX(OLIVEIRA,1997,p.76;ALMICO,2001apud GUIMARES,2006,p.50). Andradedividiuariquezadosproprietrios(escravistasouno)deMarianaentre 1820-1850 em trs nveis, tendo como limite superior monte-mores de 6:000$000 a 26:000$000 (2007, p.93-94). Aomencionarovalor domonte,fazemosmenoaovalorpartvel(jdescontadososcustosdoprocessoe as dvidas passivas). 36 Alm da criao de gado, Joo Garcia Lopes da Silva deveria ser dono de tropas36. Um cativo seu, Simo, foi listado em 1859 como tropeiro e outro, Fidelis, como campeiro. Foram inventariadasaindaferramentasdetropae29bestasarriadas(numtotalde97animais cavalaresemuares),queestariamtransportandogadoe,provavelmentequeijoeoutros produtos; e trazendo sal no retorno a Franca: FornecendogadoparaoabatenacapitaldoImprio,animaisdestinadosaos transportesemcarrosdeboisouaotrabalhonasmoendasnaregiocanavieira paulista, os rebanhos da vila Franca cresciam e traziam lucros para seus produtores. Quernasvendasdiretasdosgrandescriadoresaoscentrosdeconsumoouna entregadaproduoaoscomerciantesdasMinas,apraadeSoJoodel-Rei ocupava uma posio central na intermediao das trocas comerciais estabelecidas entre o Norte Paulista, Tringulo Mineiro e Gois, por um lado e a cidade do Rio de Janeiro, por outro (BRIOSCHI in BACELLAR; BRIOSCHI, 1999, p.73). Emsuapassagempelaregioem1819,SaintHilairejobservaraqueparaa comercializao do gado os fazendeiros: (...)maisricosenviamsuascrias,porsuaprpriaconta,capitaldoBrasil,eos negociantes da Comarca de So Joo del- Rei vo comprar nas prprias fazendas o gadodoscriadoresmenosprsperos.Umgrandenmerodeboisdaregio enviado tambm para as redondezas de So Paulo, onde so usados no trabalho dos engenhos de acar (SAINT HILAIRE, 1976, p.86). Paraospequenosprodutoresnohaviaalternativaqueadeentregarseugadoaos intermediriosmineiros,masparaosgrandescriadoreshaviaapossibilidadedelevarseu gadodiretamenteataCorte.AsestradasdeMinasGeraisserviamparaoescoamentodo gadodeFrancarumoCorteeaovaledorioParaba.Almdogadovacum,acriaode porcos tambm foi uma das atividades de maior destaque no norte paulista. 36Aose debruar sobreas relaesfamiliaresdeafrodescendentesnas propriedadesdeumtropeirodeJuiz de Fora,Guimares(2006)nostrazadefiniodetropeiro.Observoqueaexpressotropeirofoiamplamente utilizadaemJuizdeForacomoumaespecializaodecativos;portanto,otermonoestavanecessariamente associado ao dono da tropa. Pedro Nava tambm informa que dava-se o nome de tropeiro no s aos camaradas queconduziamastropas,comoaosqueasexploravamcomodonos(1984,p.147)(GUIMARES,2006, p.211). 37 Segundo Holanda, Franca era dos maiores produtores de sunos da Provncia por volta de 1820 (HOLANDA, 1976, p.114). Daniel Pedro Mller (1923) anotou que em 1836 o gado suno de Franca representava 8,1% do total da vara paulista. Otoucinhoeraumprodutocomgrandedemandaparaoconsumodomsticonos oitocentos e provavelmente muito rentvel, destacando-se a Provncia de Minas Gerais como umadasprincipaisexportadorasdesteproduto.Acriaodeporcosdeviaserlucrativa, mesmo que a vara fosse levada em p at outros centros. Ao se referir fronteira sudoeste de MinasGerais,regiolimtrofecomSoPauloevizinhadonortepaulista,Restitutidestacou que: AfronteiraSudoestedeMinaseragrandeimportadoradesunospaulistas.Em 1850-84 entraram mais de 230.000 porcos, mdia anual prxima a 7.000 cabeas, e saram cerca de 40.000, ou 1.000 por ano. (...)estegado,tantoolocalquantoopaulista,dirigia-seaomercadodoRiode Janeiro,eresidualmenteaomercadomineiro,queeraauto-suficientenaofertade porcos.AsentradasanuaisdesunosviaossegmentosdefronteiradePassose Samambaia correlacionam positivamente s sadas de sunos via fronteira Extremo-Sul de Minas (RESTITUTI, 2006, p.203-204). Segundoesteautor,asexportaespaulistasatravsdoterritriomineirosofreram reduo de 88% na dcada de 1880, devido ao aumento da demanda interna da provncia de MinasGerais,eprincipalmenteemrazodaexpansodamalhaferroviriapaulista,que alterou a rota do comrcio e reduziu o custo de transporte do toucinho (RESTITUTI, 2006). IncioNunesdaSilva,quepossuatrsescravos,umstio,umavaca,umanovilhae umcavalo,tinha70porcosquandofoiinventariadoem184437.Nosabemosseesse proprietrio havia abandonado a criao de gado, j que em 1829 foi listado como criador de 30reses.Onmerodeseusescravostambmsereduziu,passoudenovecativosem1836a trs em 1844.Em1838osbensdaesposadeIncioNunesforaminventariadoseapossedocasal contava com 13 escravos. A viuvez provavelmente acarretou perdas a Incio Nunes da Silva, quepodeterdivididoopatrimniocomseusherdeiros,poisseumontepartvelfoiavaliado em2:213$230(doiscontos,duzentosetrezemileduzentosetrintaris),umdosmenores 37 Idade estimada ao falecer: 83 anos (Fonte: Lista Nominativa de Habitantes de 1836). 38 dentreos31levantados.Acriaodeporcosera,naquelemomentodesuavida,uma atividade maisfavorvel, talvez por ser menos trabalhosa e empregar menor nmero de mo de obra.AeconomiafrancananosculoXIXnodependiaapenasdacriaodeanimais.O viajanteLuizDAlincourt,passandopeloCaminhodosGoiasesem1823,escreveuas seguintes consideraes a respeito dos moradores do Termo de Franca: (...) industriososetrabalhadores;fazemdiversostecidosdealgodo;boastoalhas, colchasecobertores;fabricampanoazuldelmuitosofrvel;chapus;alguma plvora;eatjtemfeitoespingardas;asuaprincipalexportaoconstadegado vacum,porcosealgodo,quelevamaMinas;plantammilho,feijoeoutros legumes para o consumo do pas (DALINCOURT, 1950, Memria sobre a viagem doportodeSantoscidadedeCuyabapudBRIOSCHIinBACELLAR; BRIOSCHI, 1999, p.75). Conjugada ou noaoutras atividades, a produo detecidos tambmesteve presente nalocalidade.Quandoodomicliodedicava-seaatividadesdiversificadas,aproduode tecidosempregavamodeobraescravaeeraumaatividadeamaisdentreoutras.Antonio MachadoDiniz,senhordeseteescravosem18356emoradornodistritodoCarmo(atual Ituverava),ocupava-sedecultura,criaoefbricadetecidos.AssimcomoJooCarlosde Figueiredo,moradornomesmodistritojuntamentecomaesposaefilhos,doisescravos adultoseumacrianacativamantinhalavoura,cultura,criaoefbricadetecidode algodo38.MariadosSantosdeJesusetrsfilhosadultos(maioresde15anos)moravamno distritodaVilaeelaviviadefiarseualgodo.Possuaumanicaescrava,apequena Francisca,crioulinhadequatroanos.MariadosSantosdeJesuseracasada,masseumarido noaparecenaListaNominativade1836.Apossedeumanicacrianaescravadosexo feminino pode indicar que a produo de tecidos permitia a compra de cativos mesmo que de menor valor, neste caso uma menina, que poderia ajudar na produo dos prximos anos. J a africana livre Maria da Costa habitava sozinha seu domiclio e vivia de fiar39. Podemos notar queatecelagemfoiumaatividadeessencialmentefemininaeestavapresentenas 38 Fonte: Lista Nominativa de Habitantes de 1836. 39 Fonte: Lista Nominativa de Habitantes de 1836. 39 propriedadesmaioresquesededicavamaatividadesdiversas(cujaproduoeramais expressivaporserdenominadafbrica),mastambmeraummeiodesobrevivnciade pessoas com menores posses (viver de fiar). A importncia da tecelagem e fiao faz-se notar nos bens inventariados: os teares e as rodasdefiarestavampresentesempraticamentetodasascasas.Encontramostambm plantaes de algodo (algudual) e peas de panos de algodo sendo avaliados. FranciscodePaulaSilveiraerasenhorde18escravoseproprietriodeengenhode cana,criava27cabeasdegadovacum,30porcose27langeros.Dentreosbensavaliados encontravam-se peas de panos de algodo, 16 arrobas de acar, 30 alqueires de feijo e 25 carrosdemilhoenquantoseuinventriotramitavanosidosde185840.Suasatividades parecemtersidobastantelucrativas,poisomontepartveldeFranciscodePaulaSilveira chegoua54:367$280(cinqentaequatrocontos,trezentosetrintaesetemileduzentose