culturas histÓricas e narrativas didÁticas

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O presente artigo tem como objetivo analisar a constituição da narrativa didática do manual escolar intitulado “História do Brasil – Das Origens à Independência”, de autoria de Sérgio Buarque de Holanda. Neste texto, busca-se compreender o livro didático de S.B Holanda em um contexto onde estes materiais pedagógicos se tornaram uma das principais políticas educacionais do Estado brasileiro. Por fim, objetivamos elucidar a participação da S.B Holanda como autor e analisaremos as relações propostas na narrativa didática da obra, entre o saber escolar e o saber acadêmico, para melhor compreender a complexidade do livro didático.

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  • REVISTA DE HISTRIA

    Bilros Histria(s), Sociedade(s) e Cultura(s)

    88 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 2, p. 88-101, jan.-jun. 2014. Seo Artigos

    CULTURAS HISTRICAS E NARRATIVAS

    DIDTICAS

    Alesson Ramon Roto

    Graduando do quinto semestre da Universidade Federal do Rio Grande, com pesquisas

    vinculados ao grupo de estudo O Ensino de Histria - Sentido e Narrativas coordenado pela

    Professora Doutora Jlia Silveira Matos, possui trabalhos realizados nas reas de Histria do

    Ensino de Histria e Historiografia, relacionando o saber escolar e o saber acadmico. Iniciou,

    recentemente, uma pesquisa na rea da Histria das Ideias, atravs de um intercmbio na

    Universidade de Coimbra, para estudar a constituio das Universidades brasileiras segundo a

    viso dos intelectuais que as pensaram.

  • REVISTA DE HISTRIA

    Bilros Histria(s), Sociedade(s) e Cultura(s)

    89 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 2, p. 88-101, jan.-jun. 2014. Seo Artigos

    CULTURAS HISTRICAS E NARRATIVAS DIDTICAS

    CULTURES HISTORIQUES ET RCITDIDACTIQUE

    Alesson Ramon Roto

    RESUMO

    O presente artigo tem como objetivo

    analisar a constituio da narrativa didtica

    do manual escolar intitulado Histria do Brasil Das Origens Independncia, de autoria de Srgio Buarque de Holanda.

    Neste texto, busca-se compreender o livro

    didtico de S.B Holanda em um contexto

    onde estes materiais pedaggicos se

    tornaram uma das principais polticas

    educacionais do Estado brasileiro. Por fim,

    objetivamos elucidar a participao da S.B

    Holanda como autor e analisaremos as

    relaes propostas na narrativa didtica da

    obra, entre o saber escolar e o saber

    acadmico, para melhor compreender a

    complexidade do livro didtico.

    PALAVRAS-CHAVE: Saber Escolar,

    Saber Acadmico, Transposio Didtica.

    RSUM

    Leprsent article vise analyser la

    constitution d'un rcit didactique largement

    utilis dans les annes 1970 et 1980 C'est

    le livre Histoire du Brsil -. Depuis ses

    origines l'indpendance, dont l'auteur est

    Srgio Buarque de Hollanda, clbre pour

    ses interprtations de l'histoire Brsil. Dans

    ce texte, on cherche comprendre le Manuel

    de S.B. Hollande dans un contexte o ces

    matriels pdagogiques sont devenus l'une

    des principales politiques de l'ducation du

    gouvernement brsilien. Enfin, nous

    chercherons lucider la participation de

    S.B. Hollande comme auteur et nous

    faisons les relations entre les connaissances

    scolaires et les connaissances acadmiques

    de mieux comprendre l'complexit du

    manuel.

    MOTS-CLS: Saber cole, Saber

    acadmique, Transposition Didactique.

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    Bilros Histria(s), Sociedade(s) e Cultura(s)

    90 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 2, p. 88-101, jan.-jun. 2014. Seo Artigos

    1. Introduo

    O presente artigo resultado das primeiras consideraes realizadas no mbito da

    pesquisa intitulada Culturas Histricas e Narrativas Didticas, a qual tem como objetivo

    compreender o livro didtico como uma das formas de narrativas histricas existentes. Em

    nosso processo de anlise, partimos do princpio de que o desenvolvimento da narrativa

    didtica do manual escolar ocorre em um meio turbulento, de intensas disputas. A confeco

    do livro didtico resultado de uma engrenagem, que segundo Jlia Matos (2013), formada

    pelo Estado, que publica o edital de convocao do Plano Nacional do Livro Didtico, as

    Editoras que se inscrevem no edital, os autores que escrevem e revisam os livros e colees e,

    por fim, os docentes/discentes da rede de educao bsica que tem expectativas e so a

    clientela desses materiais. Portanto, a produo dos manuais escolares envolve interesses

    pedaggicos, polticos, econmicos e, at mesmo, ideolgicos. Por isso, no podemos tratar o

    livro didtico apenas como um material pedaggico, pois ele polissmico.

    Segundo Tnia Regina de Luca (2009), as primeiras utilizaes do livro didtico

    no Brasil nos remetem 1827 com a fundao da Faculdade de Direito em So Paulo. Na

    Instituio desta Faculdade ficou defino que os professores deviam se encarregar de arranjar

    os livros que eram usados nas aulas, podendo ser livros j elaborados ou de suas autorias,

    desde que estivesse de acordo com as Leis do Imprio. E, em um segundo momento, estes

    livros eram aprovados por uma Assembleia Geral realizada pela prpria faculdade.

    A Fundao do Colgio Pedro II (1837) e da Academia Militar contribuiu para

    que um nmero maior de professores se dedicassem a autoria de livros didticos. Assim, a

    necessidade de padronizao dos saberes e da organizao de um cdigo disciplinar das

    matrias escolares dessas duas instituies educacionais fizeram com que os seus professores,

    na falta de livros no mercado, elaborassem seus prprios compndios. A produo de livros

    didticos se tornou, paulatinamente, lucrativa, pois o Estado apresentou-se investido do

    direito de reconhecer a autoria, permitir ou no a publicao e assegurar o monoplio do

    mercado por anos (DE LUCA, op. cit., p.157). Nessa poca, antes dos livros serem liberados

    para a utilizao nas escolas, eles eram avaliados por uma comisso, o nome do autor era um

    critrio fundamental para a aprovao ou reprovao (idem, ibidem), mas sobre esse processo

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    91 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 2, p. 88-101, jan.-jun. 2014. Seo Artigos

    avaliativo nos faltam dados para comentar, pois na poca no existia legislao especfica

    para a regulao dos livros didticos.

    A primeira regulamentao dos manuais escolares ocorreu em 1938 com a

    instituio da Comisso Nacional dos Livros Didticos (CNLD), por meio do Decreto-Lei n

    1.006. A Comisso tinha como objetivo regular e avaliar todos os livros didticos em

    circulao no territrio nacional.

    Na poca, Getlio Vargas, atravs do Estado Novo, buscava a centralizao

    administrativa e poltica do pas. Foram tomadas medidas no mbito econmico, poltico,

    social e educacional. No que tangia a Educao A centralizao das polticas de controle

    deveria padronizar a literatura didtica no pas e evitar eventuais abusos decorrentes de

    iniciativas isoladas estabelecidas por alguns estados da federao (FERREIRA, 2008, p.37).

    Por isso a CNLD era justificvel para alm da preocupao educacional, pois servia como

    aparato de regulao e normatizao do sistema educativo, alm de veculo das idias do

    Estado.

    Em 1966, foi criada a Comisso Nacional do Livro Tcnico e Didtico

    (COLTED) que visava a distribuio de livros didticos gratuitos as escolas e o treinamento

    das pessoas ligadas ao material. A COLTED foi auxiliada pela United States Agency for

    International Development (USAID), que segundo Selva Guimares Fonseca, teve influncia

    marcante (FONSECA, 2011).

    A aproximao com a USAID fez parte da poltica da poca, que teve laos fortes

    com os Estados Unidos desde o Golpe Militar de 1964. De acordo com Fonseca, O

    Programa, parte integrante do projeto educacional do governo, trouxe enormes benefcios

    financeiros ao setor industrial em consonncia com os ideais de segurana nacional

    (FONSECA, op. cit., p.51). Nesse contexto, foram dados subsdios as editoras como a iseno

    de impostos e os livros didticos propagandearam a Revoluo de 1964.

    A COLTED funcionou at 1971 quando foi absorvida pelo Instituto Nacional do

    Livro que possui suas origens em 1929. Os subsdios s editoras no cessaram, sendo os

    livros didticos a principal fonte de renda dessas empresas, pois o Estado se tornou o maior

    cliente nos dias atuais. Nessa direo, em 1985 foi criado o Programa Nacional do Livro

    Didtico (PNLD) definido pelo decreto 91.542. O Estado se comprometeu a distribuir os

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    livros gratuitamente para o ensino fundamental. Mas, o sistema conta com uma complexa

    engrenagem, na qual o Estado primeiramente publica editais nos quais as editoras inscrevem

    suas colees, publicadas de acordo com os critrios veiculados no prprio edital, assim, as

    comisses de avaliao analisam as colees de livros didticos e constituem um guia com

    resenhas das obras aprovadas. Aps a publicao do guia, abre o perodo de seleo dos livros

    didticos, no qual, os professores, coordenadorias de educao e secretarias, munidos de uma

    senha, entram na pgina do FNDE e escolhem os ttulos que pretendem utilizar nas suas

    escolas. Esse sistema permitiu, no Brasil, que os alunos de escolas pblicas tivessem acesso

    ao material didtico sem custos e, consequentemente, constituiu uma engrenagem entre

    Estado, editoras, autores e professores que dialeticamente influi diretamente na narrativa

    didtica do livro.

    Observamos, nesse histrico dos programas de regulao, avaliao e distribuio

    dos livros escolares, que a ligao entre os manuais e o Estado cresceu ano aps ano. Um dos

    principais motivos deste casamento a crescente utilizao do livro didtico como recurso

    educacional. No caso especfico do ensino de histria, o livro didtico tornou-se um dos

    principais suporte para a formao dos saberes sobre o passado em sala de aula.

    2. Culturas Histricas e Narrativas Didticas: Uma comparao da Coleo

    didtica de Srgio Buarque de Holanda com Razes do Brasil

    Entre os anos 1971 e 1989 foram publicados cinco livros didticos de Histria

    Geral e do Brasil que compunham a Coleo Srgio Buarque de Holanda. O livro utilizado

    nesta pesquisa foi o Histria do Brasil Das Origens Independncia, o qual um

    compndio alto, largo e de capa dura. Ao abrir esse livro senti que poderia l-lo rapidamente,

    pois apresenta uma leitura agradvel e instigante. A obra dividida em trs partes: na

    primeira apresentado o contedo de forma geral, relacionando economia, sociedade e as

    particularidades de cada processo histrico. Na segunda parte, denominada Panorama

    Cultural, o autor apresenta uma abordagem bastante inovadora mostrando como a cultura

    (entendida por obras de artes) sintetiza o pensamento de uma poca. Na terceira e ltima

    diviso, a menor delas, so apresentadas propostas de interdisciplinaridade entre a histria e a

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    geografia, de forma a demonstrar as relaes entre os saberes geogrficos e histricos, assim

    como aponta uma interdependncia entre os dois. Tambm, nesse mesmo recorte, so

    oferecidos esquemas para auxiliar o aluno nos seus estudos.

    Como j referido, o livro didtico um objeto que possui vrios significados. Para

    alguns, significa um produto mercadolgico devido grande demanda de compndios

    escolares que o Estado possui. Para outros, ele um objeto ideolgico que pode ser

    apropriado como ferramenta veiculadora de propaganda. E h, tambm, quem veja nele uma

    possibilidade de aprendizado, observando-o como um material pedaggico1. Essa

    conceituao ser revista mais adiante aplicada ao livro didtico analisado.

    O livro didtico seria fruto de uma transposio didtica. A autora, Ana Maria

    Monteiro, trabalha uma concepo complexa para o conceito, negando, portanto, uma

    simplificao. Parafraseando Monteiro (2007), para ela, na transposio do saber acadmico

    para o saber escolar ocorrem interferncias polticas atravs de leis que filtram o

    conhecimento mnimo e mximo a ser colocado no livro didtico. Tambm h o cunho da

    editora e do autor, que do nfase aos temas que mais lhe convm respeitando a legislao

    educacional. O conceito de transposio didtica permite ento que o campo cientfico da

    didtica se constitua, pois, alm de definir uma ruptura, ele cria um instrumento de

    inteligibilidade que possibilita a realizao das investigaes (idem, ibidem, p. 84). Portanto,

    a viso estereotipada dos saberes escolares, como uma simplificao do saber acadmico, cai

    por terra mediante o conhecimento da complexidade dos saberes pedaggicos, havendo

    decises axiolgicas que interferem na constituio do tal material.

    Vejamos agora como se expressa essa complexidade do conceito de Transposio

    Didtica dentro do livro Histria do Brasil atravs da Tese de Doutoramento de Jos Cssio

    Msculo (2008), que trabalha com a documentao da Companhia Editora Nacional, a qual

    foi a responsvel pela publicao da Coleo Holanda.

    A editora que lanou a coleo Srgio Buarque de Holanda foi a Companhia

    Editora Nacional (CEN), uma das maiores do pas na poca, com tradio e renome desde os

    1 Para algumas discusses sobre as mltiplas facetas do livro didtico ver Ensino de Histria Fundamentos e

    Mtodos de Circe Bitencourt (ANO?); Didtica e Prtica de Ensino de Histria de Selva Guimares

    Fonseca(2008); Ensino de Histria Sujeitos, saberes e prticas org. de Ana Maria Monteiro, Arlette Medeiro e Marcelo Magalhes(2007).

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    anos de 1930. Na sua direo estiveram nomes como, por exemplo, Monteiro Lobado, que

    alm de supervisionar os trabalhos, foi co-proprietrio at 1930. A Companhia surgiu na

    parceria de Monteiro Lobado e Octalles Marcondes Ferreira em 1925. Desde a fundao da

    marca at o lanamento do primeiro livro da Coleo Holanda, a principal fonte de renda

    eram os manuais escolares (MSCULO, 2008). Na dcada de 1970, a procura do Estado por

    manuais escolares aumentou substancialmente. Em disputa de mercado com outras grficas,

    Thomaz de Aquino Queiroz, diretor da CEN, decidiu confeccionar um livro didtico que teria

    como diferencial a qualidade. Assim, S. B. Hollanda foi contratado para a realizao de tal

    tarefa.

    O que chama ateno a respeito da confeco a forma com que a editora se

    envolveu com o trabalho. A equipe que elaborou a coleo foi definida da seguinte maneira:

    Virglio Noya Pinto era encarregado da elaborao do primeiro texto, Carla de Queiroz e

    Sylvia Barboza Ferraz revisavam o texto e o tornavam mais didtico, Laima Mesgravis dava

    suporte pedaggico e Srgio Buarque de Holanda fazia a leitura final concordando ou

    discordando (MSCULO, op. cit., 35). Assim, surpreendente saber que Srgio no era o

    autor, mas sim um supervisor.

    A diviso do trabalho refletia diretamente nos direitos autorais. No perodo em

    que o livro foi confeccionado a diviso dos valores pagos aos autores referente aos direitos

    autorais era feita assim: Carla de Queiroz e Sylvia Barboza Ferraz recebiam, cada uma, a

    ttulo de direitos autorais, 3% do valor das vendas do livro; Srgio Buarque de Hollanda e

    Virglio Noya Pinto tinham direito a 1,5% das vendas. Mas, em um contrato elaborado em

    1975, Virglio Noya Pinto recebe 5% dos direitos dos cadernos de exerccio, valor que

    definido como meio de restituio pelo baixo reconhecimento no trabalho nos anos anteriores.

    (idem, ibidem). J para Laima Mesgravis a remunerao referente a assessoria pedaggica era

    paga sem ter direito autoral sobre o produto.

    A seleo das imagens mostra o esforo da equipe na elaborao do manual

    didtico. Thomaz de Aquino Queiroz diretor da CEN contribuiu com 25 das imagens que

    ilustravam os livros de Histria do Brasil 1 e 2(idem, ibidem, p. 27). As demais eram obtidas

    atravs de fotgrafos contratados pelos redatores (Carla, Sylvia e Virglio). Mas, por que eles

    pagariam do prprio bolso a confeco do livro? A lgica que percebemos a seguinte:

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    quanto maior a qualidade do livro, maior as vendas e consequentemente maior o lucro dos

    mesmos. Para Jos Cssio Msculo todo esse rigor na elaborao do texto, seleo e

    aquisio de imagens e contratao de assessoria pedaggica revela no s o compromisso

    dos autores com a produo de um material didtico de qualidade, mas tambm a conscincia

    de que essa qualidade tambm iria prestigiar o aluno (op. cit., p. 37).

    Com a ajuda da tese Jos Cssio Msculo, constatamos, ento, que as relaes de

    poder existentes entre Srgio Buarque e a Editora eram mnimas. Se haviam relaes de

    poder, elas aconteciam entre Srgio Buarque de Holanda e sua equipe, mas o direito autoral

    pago aos redatores criava desconfiana dessa proposio. Podemos verificar, tambm, que

    aquela conceituao do livro didtico como material de vrios significados aplica-se a

    Coleo Hollanda, porque nela h, conforme j verificado, interesses econmicos e

    pedaggicos.

    Assim compreendemos, tambm, porque na conceituao de Ana Maria Monteiro

    (op. cit.) de transposio didtica existe as decises axiolgicas que so fundamentais para

    entender a complexidade de tal processo. Axiologia, do grego, significa estudo de valores,

    sendo esse um conceito bastante empregado para definir uma hierarquia de valores,

    geralmente, morais. Nesse sentido, existe um conjunto de valores que influenciou diretamente

    na definio dos critrios bsicos para confeco do livro didtico por parte do estado, na

    organizao da editora em torno do livro, na seleo dos contedos por parte dos professores,

    na aceitao dos contedos e materiais escolares por parte dos pais, professores e alunos. Por

    isso, a Coleo Holanda pensada com muitas imagens, dicionrios, mapas, fontes primrias

    e outros recursos inovadores. A Coleo, alm de ser organizada conforme a legislao

    vigente, precisou ser projetada para convencer o pblico.

    Mas, ainda devemos questionar qual a relao entre a obra acadmica e a escolar?

    E que tipo de conhecimento eles apresentam? Certamente a resposta destas perguntas nos

    daro noes mais claras sobre o que a narrativa escolar. Sabemos que o livro Razes do

    Brasil oriundo de um contexto bem diferente do livro didtico Histria do Brasil, mas

    podemos comparar objetos comuns abordados em ambos os textos para ter melhor dimenso

    dessa relao.

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    No primeiro captulo do livro didtico, A Era dos Descobrimentos, mostra-se as

    rotas martimas detalhadamente junto aos mapas. So especificadas as cidades, os produtos e

    at mesmo os sujeitos do processo (HOLANDA, 1971). J nos captulos Fronteiras da

    Europa e Trabalho & Aventura do livro Razes do Brasil, que, de maneira geral,

    corresponderia s Grandes Navegaes, so discutidas as mentalidades de explorao, a

    plasticidade social do portugus, a distino do trabalho pela cor, os cargos pblicos

    distribudos atravs do contato amigvel (HOLANDA,1984). A princpio, poderiamos dizer

    que o livro didtico uma simplificao do acadmico, o que seria uma interpretao fcil e

    bastante aceita. Mas, observando a articulao entre textos e imagens, a discrepncia de

    fluidez entre o texto didtico e o acadmico e os temas diferentes abordados demostram que

    no se tratam de simplificaes, mas sim de outro tipo de conhecimento.

    No que tange as Grandes Navegaes (HOLANDA, 1971) a histria do manual

    escolar mais informativo, expondo at mesmo dados dos sujeitos atuantes nos eventos. Por

    outro lado, Razes do Brasil no est preocupado com nomes e nmeros, mas sim a

    mentalidade dos atores sociais atuantes no processo histrico. Dessa forma, em Razes do

    Brasil, so deixadas lacunas que permitem o leitor interagir com o autor, havendo espao para

    a interpretao.

    O manual didtico no uma reproduo simplificada dos materiais de cunho

    acadmicos. Os manuais escolares, embora sejam embasados pela historiografia acadmica,

    so portadores de diversos saberes pedaggicos que so produzidos no ambiente escolar.

    Nesse sentido, o processo de produo de conhecimento nas salas de aula no mera

    transposio didtica dos saberes da academia, mas, reelaborao, ressignificao que no

    esto hierarquicamente acima ou abaixo dos saberes acadmicos.

    No segundo captulo do livro didtico, Explorao e Posse da Terra, so descritas

    as polticas de ocupao e os primeiros meios de produo existentes no pas. As Capitanias

    Hereditrias so entendidas como uma medida poltica de ocupar todo o territrio

    (HOLANDA,1971). J em Razes do Brasil elas so entendidas como uma maneira de

    impedir a expanso para o interior do territrio (HOLANDA,1984).

    Na obra didtica as Capitanias foram apresentadas como uma organizao

    administrativa frgil por no ter uma centralidade. Nesse sentido, fora criado o Governo

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    97 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 2, p. 88-101, jan.-jun. 2014. Seo Artigos

    Geral2, medida que possibilitou um impulso para a agricultura, para a importao, criao do

    gado e para estancar, na medida do possvel, a pirataria (HOLANDA,1971). Contrrio isto,

    em Razes do Brasil relatou a frouxa poltica portuguesa, se comparada com a espanhola

    (HOLANDA,1984).

    Em contrapartida, a opinio dos jesutas filantrpicos se repete nos dois livros

    (HOLANDA,1971; HOLANDA,1984), a qual foi apresentada como a nica diferena a maior

    riqueza de detalhes contido no material escolar. J o ponto de vista do sucesso dos meios

    agrcolas do livro didtico (HOLANDA,1971), se complementa com a anlise de Razes do

    Brasil (HOLANDA,1984).

    Vejamos que os livros possuem abordagens diferentes, mas qual o motivo destas

    disparidades que, s vezes, chegam a ser contraditrias?

    A resposta passa por uma das questes j ditas neste artigo: o reconhecimento do

    conhecimento escolar como diferente do acadmico. O livro didtico um objeto de mltiplos

    interesses. Outra hiptese, que explica as contradies apontadas na relao entre o livro

    didtico e a historiografia, a procura dos livros acadmicos em mostrar uma perspectiva

    historiogrfica inovadora em detrimento dos compndios escolares que buscam a viso

    consolidada da histria.

    At este momento do texto nossa metodologia a anlise de contedo priorizou

    mais a qualidade do que a quantidade. Contudo, daqui em diante daremos mais nfase para a

    quantidade para podermos ter uma viso mais ampla, tanto de Razes do Brasil como de

    Histria do Brasil Das Origens Independncia. Tratando-se de anlise de contedo no h

    nenhum problema em fazermos essa inverso, pois ela uma metodologia que trabalha com a

    frequncia das ideias, conceitos e palavras dentro dos textos, por isso podem ser realizadas

    anlises tanto quantitativas, quanto qualitativas (DE OLIVEIRA, et al., 2003).

    Os textos a serem trabalhados demandaram a digitalizao em uma plataforma

    eletrnica para haver maior velocidade nos trabalhos e para futuras consultas.

    2 O governo geral foi uma medida poltica que atravs da instituio de um governador geral buscava dar mais

    coeso e centralidade as polticas coloniais.

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    98 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 2, p. 88-101, jan.-jun. 2014. Seo Artigos

    As palavras de maior frequncia comuns entre os dois textos aqui trabalhados so

    Brasil, Colnia, Estado, Portugus e Terra. Vejamos a nuvem de caracteres3 de ambos os

    livros na Figura 14. Ela nos indica todas as palavras de grande repercusso utilizadas nos

    livros. Podemos ver que, embora haja palavras comuns, a grande maioria so conceitos

    diferentes. Essa constatao se deve concluso que chegamos na primeira parte deste artigo,

    de que os dois livros tem propsitos diferentes.

    As palavras utilizadas unicamente no mesmo texto e as que aparecem em ambos

    so polissmicas. Dito em outras palavras, elas so empregadas de inmeras maneiras. O

    substantivo terra, por exemplo, utilizado para se referir a territrios portugueses, domnios

    espanhis, novas terras descobertas e propriedades dos agricultores. O estudo do emprego das

    3 Em uma nuvem de caractere, quando maior a palavra maior a frequncia.

    4 As nuvens de caracteres e as outras quantificaes foram realizadas na plataforma Many Eyes. Para ter acesso

    a elas ver o link http://www-958.ibm.com/software/analytics/manyeyes/datasets/comparativo-3 A plataforma

    Many Eyes um software produzido pela Brasileira Fernanda Vigas disponibilizado online pelos servidores da

    IBM. Atravs dele podem ser feitas quantificaes e os resultados podem ser feitos de inmeras formas, como

    grficos, mapas de caracteres etc. O programa gratuito e seu nico termo de uso deixar livre acesso aos dados

    quantificados na plataforma para a comunidade ciberntica.

    Figura 1 - As palavras em azul correspondem ao livro Razes do Brasil; enquanto as palavras em marrom

    correspondem ao livro Histria do Brasil. Disponvel em: http://www-

    958.ibm.com/software/analytics/manyeyes/datasets/comparativo-3

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    99 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 2, p. 88-101, jan.-jun. 2014. Seo Artigos

    palavras no presente artigo poderia nos levar compreenso mais detalhada sobre a

    construo destes materiais. A metodologia empregada de anlise de Discurso nestes objetos

    nos revelou caractersticas mais subjetivas dos nossos autores. Contudo, por ora nos

    contentamos em analisar as palavras de maior repetio.

    A palavra Brasil aparece 179 vezes no livro Histria do Brasil Das Origens

    Independncia. Se adicionarmos suas flexes como brasileiro, brasileira, brasileiros e

    brasileiras chegamos ao nmero de 245 repeties. Enquanto isso, a mesma palavra no livro

    Razes do Brasil usada 82 vezes e com as derivaes contabiliza-se 132 aparies. O bvio

    indica o maior uso no livro didtico, mas para ter uma noo melhor sobre essa frequncia de

    repetio resolvemos trazer um terceiro dado: O livro didtico, aqui exposto, composto por

    3.929 palavras, enquanto que o livro Razes do Brasil possui 8.916. Em outras palavras, o

    compndio da Coleo Srgio Buarque de Holanda 2,26 vezes menor que o livro Razes do

    Brasil. Assim, percebemos que, embora o livro seja muito menor, ele contm maior

    frequncia da palavra estudada. O que chama a ateno saber o porqu da palavra ter maior

    frequncia em um livro menor. A resposta associada est ligada quela minha inquietao do

    incio do artigo referente escrita da Histria.

    O livro Histria do Brasil possui maior repetio da palavra Brasil porque ela

    usada de maneira didtica. Ao invs do texto usar sinnimos ou pronomes demonstrativos,

    como, por exemplo, este, essa ou aquele, ele usa o mesmo substantivo. Esse tipo de escrita

    feita para que o leitor no precise ficar voltando leitura para compreender a que objeto o

    autor est se referindo. No final de cada captulo h tambm um resumo com as principais

    ideias trabalhadas, fator que aumenta, consideravelmente, os nmeros da quantificao.

    3. Consideraes Finais

  • REVISTA DE HISTRIA

    Bilros Histria(s), Sociedade(s) e Cultura(s)

    100 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 2, p. 88-101, jan.-jun. 2014. Seo Artigos

    A nossa pesquisa mostrou que a narrativa didtica tambm possu seu carter

    histrico, seja na historicidade das narrativas, havendo portanto, diversos tipos de narrativas

    ao longo do tempo, seja na construo da narrativa enquanto escrita da histria.

    A narrativa didtica de histria e a escrita acadmica, conforme mostrou nossa

    pesquisa, possuem finalidades diferentes. Holanda (1984 e 1971), com limitaes especficas

    para cada processo, constri dois tipos de narrativas nos livros analisados, com objetivos

    diferentes. Mesmo que tenhamos somente concluses parciais, nossos apontamentos tm nos

    levado a refletir profundamente sobre a hierarquizao dessas duas formas de narrativa, que

    empurrou as pesquisas da histria do ensino de histria para os setores pedaggicos

    (SCHIMIDT, 2009).

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BITENCOURT, Circe Maria F. Ensino de Histria Fundamentos e Mtodos. So Paulo: Cortez, 2008.

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  • REVISTA DE HISTRIA

    Bilros Histria(s), Sociedade(s) e Cultura(s)

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    MSCULO, Jos Cssio. A coleo Srgio Buarque de Hollanda: livros didticos e ensino de

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    MATOS, J. S. Ensino de Histria, Diversidade e os Livros Didticos: histria, polticas e

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    Souza. (Orgs.). Ensino de Histria Sujeitos, saberes e prticas. Rio de Janeiro: MAUAD X, 2007.

    MORAES, Roque. Mergulhos discursivos, anlise textual qualitativa entendida como

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    SCHIMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel. (Orgs.). Aprender histria: Perspectivas da

    educao histrica. Iju: Editora Uniju, 2009.

    ***

    Artigo recebido em abril de 2014. Aprovado em junho de 2014.