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Memorial

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Memorial

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Jorge Dikamba

Memorial

Edições do Autor

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Copyright © 2015 by Jorge Sebastião dos Santos

Copyright © 2014 by Lori Figueiró

Revisão

Helena Freitas Prof. Dr. Eduardo Assis Duarte

Capa

Criação Jorge Dikamba Imagem: Marcos Vinicius Moreira Esteves Tamanduá/Jenipapo de Minas/MG Fotografia de Lori Figueiró © 2014 Dados Internacionais de catalogação na Publicação (CIP)

Índices para Catálogo Sistemático 1. Ficção brasileira. 2. Contos.

869.35

Direitos reservados.

D575 Dikamba, Jorge, 1972 - Memorial. Jorge Dikamba. – Belo Horizonte: Edição do Autor, 2015.

128 p.; 21 cm ISBN 00-00000-00-0 1. Ficção brasileira. 2. Contos. I. Dikamba, Jorge. II. Título.

CDD-B869.35 CDU-821.143.3(81)-3

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à memória de minha mãe, mestra e amiga, com

orgulho, respeito e amor.

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O viajante do mundo 7

A relíquia persa 12

Memorial 19

O anjo catalão 27

Na Curva do Açougue 36

Guerra civil 58

De amores e guerras 71

Palenque 83

O Meliante 91

São Gonçalo 94

Bica d’água 106

O conjurado 112

Pestilência 126

Farinha Seca 131

O cativeiro de Luís 134

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Esta é uma obra de ficção. Faz-se necessário alertar para

que não ocorra que, por desaviso, alguém se perca em

alguma passagem que semelhe o real deste mundo surreal

no qual se vive. No decurso de uns poucos anos as musas

insistiram em assoprar-me aos ouvidos essas histórias,

enriquecidas por sons, cores e odores de um mundo

provinciano, até minha quietude serrana não mais suportar

tantos entes em diálogo, forçando-me a lançá-las

despretensiosamente ao papel. São histórias de lugares. De

pessoas e lugares. E de épocas, embora estas possam no

geral não ser, diluídas em uma constante atemporalidade,

muito embora o próprio tempo seja por si só um

protagonista – misterioso e fugidio – de algumas dessas

narrativas. Pode ocorrer de as inquietas linhas dessa escrita

trazerem em suas vírgulas um pouquinho de realidade. Em

tal caso, entre esta e a fantasia haverá sempre uma fronteira

que, em sendo tênue, deverá ser demarcada pela

imaginação sagaz do leitor.

O Autor

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O viajante do mundo

As águas verdes do canal refletindo o céu de

Veneza eram como um sonho. A gôndola seguia

pelas águas cruzando com outras tantas, levando

casais enamorados, crianças sorridentes e

imigrantes solitários, lavradores de boas safras,

pequenos burgueses enfastiados e professores

cansados. Passando sob a Ponte dos Descalços viu

a dama, em trajes de festa, elegante como toda

veneziana, uma condessa talvez. Bela dama de

olhos tristes, os cabelos em coque com mechas à

francesa a penderem-lhe, joviais, pelas laterais da

face rósea qual rara flor de um jardim sublime. A

dama sobre a ponte olhava o nada, olhar perdido

sobre as águas do canal que as gôndolas riscavam

no balé ritmado dos remos e ao som dos tenores

da velha cidade. Pensou na canção cigana que

aprendera na Galícia:

...“Dança a lua sobre a tenda dela

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dorme só, sonhando com um amor...”

Da embarcação ele a via sumir-se ao longe, a

intocável beleza refletindo-se nas verdes águas do

canal. Passava agora por um parque, com

carrosséis e roda-gigante, pôneis amestrados e

retratistas ambulantes, e crianças e pais e charretes

e música. Lembrou-se de Lisboa, outro barco e

outro rio, o mesmo som das risadas às margens do

Tejo, os sinos das igrejas a anunciar um morto,

padre talvez.

Amava os barcos e o mar, cujos caminhos já

lograra percorrer. Espanha, Índia, o azul mar do

Caribe, os gelados mares do sul, as belas praias do

Brasil, a ilha de Páscoa, a pesca do atum e as

histórias das tripulações sobre tesouros e piratas,

embates de canhões e naufrágios em noites frias

sem lua, icebergs de morte cruzando a escuridão

do norte, as Bermudas e os seus mistérios, o doce

mar de Angola onde cantam sereias negras, as

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Colunas de Hércules, Malta e a Sicília, tudo vira e a

tudo amara.

Na Inglaterra enamorou-se de uma atriz, mas

meses depois ficou a ver navios, numa tarde de

chuva e vento, as vagas arrebentando no cais, as

ruas mudas. O Tamisa era uma estrada negra

seguindo para o mar, por onde saíra para não mais

retornar enquanto não lhe batesse a saudade da

fria e escura urbe, cemitério de sonhos onde os

corações das senhoras eram como os icebergs do

mar da Islândia, onde nunca tivera amigos.

Preferia as geleiras de la Tierra del Fuego aos

fiordes que os nórdicos invasores de ilhas

louvavam em suas canções saudosas de navegar.

No Ceilão, certa noite, quase ficou em terra,

seduzido pelas mãos de uma princesa em viagem

de núpcias. Tinha os olhos da dama da ponte,

olhos de ver o nada, de cismar sobre as águas

verdes de um mar sagrado. Alguns anos no Japão

entre pescadores ainos e outros tantos entre

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mercadores gregos fizeram-no esquecer a princesa

e a atriz, mas o mar de Creta fê-lo recordar-se de

Cuba, onde Dolores ensinou-o a amar como se o

amor, assim como o mar, não findasse jamais. De

novo a escuna, o vinho e o vento dos trópicos,

lendo a rota nas estrelas, filho do mar.

Voltava à gôndola errante na laguna veneziana,

outra ponte e outra dama, mesmo rosto da

condessa, apenas um pouco menos jovem e mais

bela, o mesmo olhar sem destino, sonhando talvez

o amor. Imaginou levá-la em viagens pelo oriente,

apresentá-la com as devidas pompas ao Rio onde

montanhas de pedra são como monumentos ao

mar, ou levá-la mais além, ao frio e distante mar

que os navegantes evitam citar, cujos ares dão

ganas de amar. As mãos sobre a amurada eram

como as de uma agora rainha em Singapura,

porém a gôndola seguiu seu caminho sem deter-se.

Veio a tarde e ele quis desembarcar, um pouco

do bom vinho da Itália far-lhe-ia muito bem. Ao

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descer, próximo ao parque estava a dama, a sorver

calmamente uma taça de néctar de ambrosia, o

olhar brilhante de rainha do Ceilão. Ele ofereceu-

lhe uma flor, que colhera no jardim sem que os

guardas vissem. E, conversando, saíram, entre

crianças e casais, sorveteiros e pôneis, enquanto se

recolhiam os barcos no lago de águas verdes do

Parque Municipal.

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A relíquia persa

Ao deixarem a Babilônia em direção à terra

além das grandes montanhas, os generais do

conquistador macedônio, cognominado O

Grande, anteviam as riquezas a esperá-los.

Prevendo uma vitória fácil, mandaram que se

transportasse à retaguarda do formidável exército

verdadeiras cidades ambulantes, com tudo o

necessário para proporcionar o conforto devido à

elite guerreira: baixelas para banquetes, tecidos

para ornar as tendas, odres do melhor vinho e os

mais ricos tapetes que produziram os artesãos da

Pérsia, para decorar a tenda do Imperador.

Desconhecendo o inimigo a enfrentar, sem

intimidade com a geografia e o clima, ao cruzarem

a grande cordilheira e após muitas privações

depararam com as florestas, onde um inimigo

invisível aproveitava a noite para infundir-lhes

pesadas baixas. Na savana uma arma até então

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desconhecida surgiu para arrefecer ainda mais o

ânimo das tropas: temíveis paquidermes cujo

trotar fazia tremer a terra, treinados para a guerra,

dizimava o grosso da infantaria, e a cavalaria não

encontrava espaço para as manobras, o que

obrigou o intrépido comandante a adiar seus

planos de estender seus domínios aos reinos do

sul. Combalidos retornaram, com o líder já

enfermo e seus generais a disputarem o trono do

mundo.

Os vencedores apossaram-se de tudo o que o

outrora grandioso exército em fuga não pôde

levar. A bagagem do imperador Alexandre coube

ao general Seleuco Nicator, que por vinte anos

prosseguiu com o sonho de conquista até que,

derrotado, entregou-a ao rei Chandragupta. Dentre

os despojos da longa batalha um tapete do

tamanho de uns cinco metros quadrados chamava

a atenção. Presente de um nobre da corte

babilônica, retratava uma cena da corte no palácio

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real de Sushan, onde viveu o conquistador durante

o tempo em que esteve na Pérsia, preparando-se

para novos embates. O rei de Maghada colocou-o

em seu palácio onde permaneceu por longo tempo

até que uma grande guerra mergulhou o país em

trevas. Sentindo o perigo aproximar-se Ashoka,

neto de Chandragupta, enviou a família real para o

leste, onde estabeleceu sua capital. O tapete seguiu

em meio à mudança, passando a decorar a alcova

do príncipe Dasharata. Retirado para uma faxina,

foi deixado a um canto e desapareceu quando da

morte do rei, vindo a surgir anos depois num

templo em Kesariya, onde permaneceu por cinco

séculos até que bárbaros vindos do mar atacaram a

cidade e o templo. O butim foi dividido entre os

infiéis brancos, que impuseram um duro jugo ao

povo hindu. Um oficial da Real Marinha Britânica,

Sir Thomas Wyatt, interessado na cultura local,

recolheu o tapete que os monges diziam ter vindo

das terras para além do Himalaia, muitos séculos

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atrás, junto com outros objetos de raro valor, e

com eles decorou sua nova casa, nos arredores de

Dheli. Ao dar baixa do posto, rumou para a

Inglaterra, mas, durante uma tenebrosa

tempestade, naufragou nos arredores de

Madagascar, em cujas praias as correntes do Índico

depositaram os despojos. Entre caixas abarrotadas

de seda e especiarias estava o velho tapete, que os

nativos venderam a um mercador português de

saída para Angola. Vendido a um comerciante de

peles e marfim em Luanda, foi trocado por uma

modesta carga de pólvora e alguns mosquetões

com um mercador de escravos que decorou com

ele o chão de sua cabine, no tumbeiro São

Sebastião, que aportou meses depois no Rio de

Janeiro. O tapete foi então dado ao Vice-Rei como

prova de amizade e posto em uma sala de

audiências no Paço. Quando uma das filhas do

monarca casou-se com um nobre reinol levou

consigo o tapete, que o passou ao filho que o