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VII Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Lisboa, Portugal, 8-11 Oct. 2002 Cultura nacional e o “gerente caboclo” frente os desafios da reforma do Estado no Brasil Prof. Dr. Gelson Silva Junquilho Introdução A reordenação do papel do Estado na sociedade contemporânea, por meio da busca de modelos distintos de gestão (Ferlie et al, 1996), tornou-se o pano de fundo de processos de reestruturação estatal, a partir da crise do modelo do “Estado do Bem-Estar Social” no Reino Unido, em particular, nos fins da década de 70. No entender de Ferlie et al (1996) os anos 80 marcaram a propagação de mudanças no setor público em vários países, tendo como referencial a Nova Gestão Pública (“New Public Management”). No Brasil, a partir do Governo Collor, a discussão em torno das reformas do papel do Estado se tornou central e foi refinada a partir de 1995, no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, passando a se constituir uma proposta ampla e concreta, visando mudanças inerentes a aspectos de cunho previdenciário, político e administrativo. O objetivo deste ensaio é problematizar uma das abordagens do plano administrativo das reformas, mais especificamente aquele inerente à pretensão de transformar o perfil dos administradores públicos de “burocráticos” para “gerentes” (Bresser Pereira, 1996, 1998). Dito de outra maneira, coloca-se como questão de pesquisa a seguinte indagação: será que é possível a substituição de um dado perfil gerencial, construído e reconstruído ao longo do tempo e do espaço na administração pública brasileira, por um outro, concebido à priori, desconsiderando-se que aquele mesmo perfil é resultado de um processo histórico-social complexo, responsável por determinadas condutas gerenciais que precisam ser compreendidas antes mesmo de se pensar um “gerente orgânico”? Para ilustrar essa discussão serão apresentados os resultados de um Estudo de Caso sobre a ação gerencial na administração pública de um Estado da Região Sudeste brasileira, pelos quais é possível perceber que, cotidianamente, os gerentes agem condicionados por certos traços da cultura brasileira que, ao mesmo tempo, restringem e facilitam as suas ações, configurando um certo perfil gerencial, deixando claro que qualquer mudança naquele mesmo perfil envolve uma reconstrução social de significados daquelas mesmas ações, no seio das organizações do setor público. Se é assim, as reformas administrativas carecem de uma reflexão sobre essas mesmas práticas gerenciais, como um dos pontos fundamentais para a sua própria continuidade. A “Nova Gestão Pública” no Brasil e a entrada em cena “gerente orgânico” No entender de Ferlie et al (1996) os anos 80 marcaram a propagação de mudanças no setor público em varios países, tendo como referencial a chamada Nova Gestão Pública. Reconhecendo que essas mudanças não foram exclusivas do Reino Unido, esses autores afirmam que tais processos não apresentam uma convergência comum, assumindo, assim, características distintas em cada país, dependendo das suas características históricas, culturais e políticas 1 . No caso específico do Reino Unido, escrevem Clarke e Newman (1997), a “Nova Gestão Pública” representou um conjunto ideológico de práticas que, foi apresentada como uma proposta crítica ao Estado do Bem-Estar Social britânico, desmantelando seus três arranjos básicos: o político-econômico - o compromisso entre o Estado e o capitalismo no sentido da convivência entre o livre mercado e a provisão estatal dos direitos 1 São citados como exemplos dessas diferenças a importância que assumiram, nesses processos de mudança, temas inerentes ao mercado, à eficiência e à introdução de técnicas gerenciais oriundas do setor privado em países como a Nova Zelândia, Austrália, Estados Unidos, Reino Unido, França e Suécia. Os casos do Reino Unido e Nova Zelândia são citados como processos que se movem mais rapidamente e intensamente em relação aos demais, justamente por causa de conjunturas específicas e diversas (Ferlie et al, 1996).

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VII Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Lisboa, Portugal, 8-11 Oct. 2002

Cultura nacional e o “gerente caboclo” frente os desafios da reforma do Estado no Brasil

Prof. Dr. Gelson Silva Junquilho Introdução A reordenação do papel do Estado na sociedade contemporânea, por meio da busca de modelos distintos de gestão (Ferlie et al, 1996), tornou-se o pano de fundo de processos de reestruturação estatal, a partir da crise do modelo do “Estado do Bem-Estar Social” no Reino Unido, em particular, nos fins da década de 70. No entender de Ferlie et al (1996) os anos 80 marcaram a propagação de mudanças no setor público em vários países, tendo como referencial a Nova Gestão Pública (“New Public Management”). No Brasil, a partir do Governo Collor, a discussão em torno das reformas do papel do Estado se tornou central e foi refinada a partir de 1995, no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, passando a se constituir uma proposta ampla e concreta, visando mudanças inerentes a aspectos de cunho previdenciário, político e administrativo. O objetivo deste ensaio é problematizar uma das abordagens do plano administrativo das reformas, mais especificamente aquele inerente à pretensão de transformar o perfil dos administradores públicos de “burocráticos” para “gerentes” (Bresser Pereira, 1996, 1998). Dito de outra maneira, coloca-se como questão de pesquisa a seguinte indagação: será que é possível a substituição de um dado perfil gerencial, construído e reconstruído ao longo do tempo e do espaço na administração pública brasileira, por um outro, concebido à priori, desconsiderando-se que aquele mesmo perfil é resultado de um processo histórico-social complexo, responsável por determinadas condutas gerenciais que precisam ser compreendidas antes mesmo de se pensar um “gerente orgânico”? Para ilustrar essa discussão serão apresentados os resultados de um Estudo de Caso sobre a ação gerencial na administração pública de um Estado da Região Sudeste brasileira, pelos quais é possível perceber que, cotidianamente, os gerentes agem condicionados por certos traços da cultura brasileira que, ao mesmo tempo, restringem e facilitam as suas ações, configurando um certo perfil gerencial, deixando claro que qualquer mudança naquele mesmo perfil envolve uma reconstrução social de significados daquelas mesmas ações, no seio das organizações do setor público. Se é assim, as reformas administrativas carecem de uma reflexão sobre essas mesmas práticas gerenciais, como um dos pontos fundamentais para a sua própria continuidade. A “Nova Gestão Pública” no Brasil e a entrada em cena “gerente orgânico” No entender de Ferlie et al (1996) os anos 80 marcaram a propagação de mudanças no setor público em varios países, tendo como referencial a chamada Nova Gestão Pública. Reconhecendo que essas mudanças não foram exclusivas do Reino Unido, esses autores afirmam que tais processos não apresentam uma convergência comum, assumindo, assim, características distintas em cada país, dependendo das suas características históricas, culturais e políticas1. No caso específico do Reino Unido, escrevem Clarke e Newman (1997), a “Nova Gestão Pública” representou um conjunto ideológico de práticas que, foi apresentada como uma proposta crítica ao Estado do Bem-Estar Social britânico, desmantelando seus três arranjos básicos: o político-econômico - o compromisso entre o Estado e o capitalismo no sentido da convivência entre o livre mercado e a provisão estatal dos direitos

1 São citados como exemplos dessas diferenças a importância que assumiram, nesses processos de mudança, temas inerentes ao mercado, à eficiência e à introdução de técnicas gerenciais oriundas do setor privado em países como a Nova Zelândia, Austrália, Estados Unidos, Reino Unido, França e Suécia. Os casos do Reino Unido e Nova Zelândia são citados como processos que se movem mais rapidamente e intensamente em relação aos demais, justamente por causa de conjunturas específicas e diversas (Ferlie et al, 1996).

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à cidadania; o social – o compromisso de garantir a satisfação das necessidades da sociedade britânica; e o organizacional, isto é, a construção de duas formas de coordenação baseadas na administração burocrática e no profissionalismo. As características básicas da “Nova Gestão Pública” adotadas, mesmo nos países em que essa proposição não se contrapôs ao Estado de Bem-Estar Social, podem ser assim sumariadas (Ferlie et al, 1996; Du Gay,1996a; Clarke e Newman, 1997):

• A idéia do gasto público como custo improdutivo ao contrário de investimento coletivo e social;

• A identificação dos servidores públicos como hostis à sociedade, detentores de privilégios e defensores de interesses particulares;

• A crítica à interferência negativa do Estado nos mercados e a eleição da supremacia destes últimos como mecanismos mais apropriados de distribuição de bens e serviços à sociedade;

• A definição do Estado com o papel principal de promotor/ empreendedor, ao invés de provedor de bens e serviços sociais;

• A importação de práticas gerenciais comuns ao setor privado da economia, incluindo nas agendas públicas temas como: eficiência, eficácia, produtividade, avaliação e controle de resultados, satisfação do consumidor, delegação e gestão participativa, prevenção e controle de gastos;

• A ênfase na importância do poder e na mudança de papel dos chamados administradores públicos para gerentes ou gestores públicos profissionalizados, no sentido de que passa a ser desejado um perfil voltado à noção de orientador/integrador e empreendedor, distinto do papel de supervisor ou administrador;

• A privatização de setores econômicos produtivos estatais; • A ênfase na desregulação dos mercados comerciais e de trabalho.

Na América Latina, em particular, no entender de Kliksberg (1989), as pressões políticas e sociais aumentaram consideravelmente a partir dos fins dos anos 70, passando a exigir do Estado a redefinição de políticas públicas apropriadas para fazer face às crises cada vez mais constantes. Entende Albuquerque (1996, p. 3) que essas crises eclodiram “nos anos 90, riscando a América Latina e, com muita mais razão o Brasil, do mapa mundial do comércio, dos negócios, da prosperidade”. Ainda no entender do mesmo autor, essa conjuntura em relação ao País, mudou a partir da implantação das medidas econômicas do Plano Real, em 1993, possibilitando a retomada de uma expectativa de credibilidade internacional que resultou em condições mais favoráveis para a negociação das dívidas internacionais, bem como o retorno dos investimentos estrangeiros. A partir da eleição de Fernando Henrique Cardoso, em 1995, agrega-se às reformas econômicas, iniciadas no governo Itamar Franco, um processo mais amplo de reestruturação do Estado, condensado no Plano Diretor da Reforma do Estado (Mare, 1995), abrangendo os campos administrativo, previdenciário e político. No que tange à reestruturação administrativa Bresser Pereira (1996) a definiu como uma das respostas às crises econômica, política, fiscal e burocrática, vivida pelo País de 1979 a 1994. A reforma administrativa se fazia necessária, no entender de Bresser, pois o modelo burocrático de gestão estatal havia tornado-se caro, lento, ilegítimo e incapaz de atender às crescentes demandas sociais. Sua proposta então foi a concepção de uma série de estratégias que passaram a ser denominadas de “Administração Pública Gerencial” cuja configuração pressupunha desenhar

... os contornos da nova administração pública: (1) descentralização do ponto de vista político, transferindo-se recursos e atribuições para os níveis políticos, regionais e

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locais; (2) descentralização administrativa, através da delegação de autoridade para os administradores públicos transformados em gerentes2 crescentemente autônomos; (3) organizações com poucos níveis hierárquicos ao invés da piramidal: (4) pressuposto da confiança limitada e não da desconfiança; (5) controle por resultados, ‘a posteriori’, ao invés do controle rígido, passo a passo, dos processos administrativos; e (6) administração voltada para o atendimento do cidadão, ao invés de auto-referida (Bresser pereira, 1996, p.11-12).

A “Administração Pública Gerencial” pode ser então aqui problematizada a partir de sua pretensão quanto a transformação de “administradores públicos” em “gerentes”, cunhada pelo mesmo Bresser Pereira (1996) como a dimensão cultural da reforma, pois pressupunha a mudança dos chamados valores burocráticos pelos gerenciais. Du Gay (1996a), analisando propostas semelhantes nos processos de reforma do Estado no Reino Unido, entende que mudanças em busca do “gerente” envolvem o que o autor denomina de “making up” gerencial, ou seja, novas formas de ser dos atores organizacionais, exigindo-se deles um comportamento distinto daqueles tidos como inerentes aos valores burocráticos – vinculados à regras de impessoalidade; às hierarquias e aos procedimentos padronizados – cedendo lugar ao que o autor denomina de valores empresariais, isto é, a transformação obrigatória de atores burocráticos em atores empresariais. Esses valores são voltados às idéias: da primazia do cliente e do mercado; da diversidade e flexibilidade; das habilidades multidimensionais dos profissionais; da delegação em lugar do controle; do gerente orientador; da ênfase nos resultados e da educação ao invés do treinamento; das estruturas organizacionais enxutas e ágeis (Peters and Waterman, 1982; Osborne and Gaebler, 1992; Hammer and Champy, 1993). No entender de Clarke & Newman (1997) trata-se de um processo baseado num discurso que propõe mudanças do tipo “de” “para” que negligencia o que acontece no interior daquele processo, ao mesmo tempo em que são acentuadas prescrições que mascaram o caráter normativo do “novo”, tornando o gerencialismo descolado e confuso em relação à realidade. Implícita ainda está a idéia de mudança do tipo universal e indiferenciada, tomada como inevitável, onde o “novo” descarta o que é “velho”. Não estão ditas em que condições essas mudanças vão se dar, partindo-se da premissa de que a passagem dos moldes “burocráticos” para o “gerencial” ocorre de forma homogênea e linear. Dito de outro modo, não estão consideradas a gestão e a ação social como um conjunto complexo, histórica e socialmente articulado de práticas sociais que não podem ser transformadas pela simples implantação de um novo modelo organizacional. Assim, a problematização dessa proposta de mudança de perfil gerencial pode ser dada, inicialmente, pela caracterização da gestão, bem como da ação cotidiana dos gerentes como uma prática social. Gestão, ação gerencial e suas abordagens: a alternativa da “prática social” Conhecido no início dos anos setenta pela sua obra The Nature of Managerial Work, Henry Mintzberg (1973), mostrou como a gestão e a conseqüente ação cotidiana dos gerentes era caracterizada de forma bem distinta do que pregava Fayol, no início do século XX, por meio de suas famosas funções administrativas – planejar, comandar, controlar, avaliar e organizar. Em um outro trabalho, o mesmo Mintzberg (1990), reafirma que aquelas funções devem, na verdade, ser caracterizadas como o “folclore” da gestão, pois, de “fato”, os gerentes não só têm dificuldades para o exercício de atividades sistematizadas por intermédio do planejamento, bem como tomam decisões nem sempre baseadas em sistemas formalizados de informações, estando envolvidos em ambientes dinâmicos em que são 2 Grifo nosso.

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imperiosos os contatos informais. Entretanto, ainda que trazendo uma marcante e reconhecida contribuição ao campo dos estudos sobre gestão e ação gerencial, Mintzberg (1973, 1990) não discute questões que possam explicar o vínculo daquelas duas temáticas a possíveis condicionamentos de estruturas sociais mais amplas de uma sociedade, deixando vago a compreensão de significados mais profundos daquilo que ele descreve como “fato”, ou seja, o vínculo do dia-a-dia gerencial a aspectos histórico-sociais de uma dada realidade. Uma contribuição importante nessa direção é dada por Reed (1984, 1985, 1989), ao identificar três perspectivas de análise quanto aos estudos sociológicos sobre gestão nas últimas décadas: a) A técnica − a gestão é vista como instrumento tecnológico neutro e racional que objetiva o alcance de resultados coletivos, preestabelecidos e não atingíveis sem sua aplicação. Pressupõe-se a gestão a partir de estruturas racionais formalizadas de sistemas de controle, capazes de garantir eficiência sobre a coordenação das ações humanas. As estruturas organizacionais são conceitualmente concebidas como organizações formais, tomadas essas como determinantes de comportamentos dos atores organizacionais. b) A política − em resposta ao determinismo da perspectiva técnica, a política concebe a gestão como um processo social. Daí a ênfase na questão do conflito de interesse entre grupos nas organizações, caracterizando-se o ambiente como de grandes incertezas no qual os resultados organizacionais são buscados. Os pressupostos de base são construídos a partir da noção de que as organizações são palcos de conflitos entre grupos ou coalizões (Child, 1972; Mintzberg, 1983) que disputam, entre si, processos de escolha decisória, apoiando-se, para a resolução desses conflitos, no exercício de relações de poder. A organização é tomada como uma “arena” de disputas de grupos dotados de interesses divergentes em busca do controle das decisões; A contribuição dessa perspectiva é que ela rejeita a concepção mecanicista e determinista da gestão, em troca de uma visão desta última como resultante de uma dinâmica advinda da ação humana, à medida que considera os indivíduos, em particular os gerentes, como dotados de cognoscitividade suficiente para influenciar meios e resultados organizacionais. Percebe-se aqui a ênfase na ação do ator organizacional. Assim, uma noção central é de que a gestão constitui-se como um sistema político em que imperam transações negociadas, pela constituição de coalizões que representam diferentes interesses do conjunto dos membros de uma dada organização. As estruturas organizacionais deixam de representar o aspecto determinante dos comportamentos humanos, definido pela perspectiva técnica, em troca de uma concepção que as toma como resultante de processos dinâmicos e contínuos de negociações entre interesses, advindos de interpretações distintas dos seus atores, no que tange às regras e objetivos organizacionais. Logo, por meio de processos de negociação entre interesses políticos divergentes, as estruturas organizacionais são modeladas e até mesmo transformadas. c) A crítica − segundo Reed (1989), essa perspectiva é, de certa forma, uma alternativa à perspectiva política no sentido de que essa última, ao enfatizar a ação humana, promove uma espécie de negligência dos chamados aspectos institucionais inerentes às estruturas de poder e de controle da economia política de uma dada sociedade. Assim, na perspectiva crítica, a gestão, influenciada pela abordagem organizacional marxista, é vista como mecanismo de controle social, atrelada a imperativos de ordem econômica, impostos por uma ordem capitalista de produção.

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Nessa perspectiva, a questão dos conflitos políticos entre grupos organizacionais não é negada, mas o que se acentua é que esses processos têm que ser entendidos como estando vinculados a determinadas estruturas capitalistas de produção, das quais a organização é parte, e que definem imperativos para a própria sobrevivência do sistema econômico como tal. Os gestores são concebidos como representantes da ordem capitalista a qual reproduzem por meio das estruturas organizacionais. Os estudos, sob essa perspectiva, enfatizam as contradições da gestão organizacional, ressaltando-se, entre elas, a questão da necessidade do exercício do controle e cooperação no trabalho; o papel da gestão na regulação de conflitos entre capital e trabalho; bem como os conflitos de papel dos gerentes, enquanto responsáveis pela manutenção da ordem capitalista, mas também subordinados a ela. A perspectiva crítica também permite o estudo de questões inerentes às resistências dos trabalhadores aos processos de controle capitalista, a partir da percepção de que a determinação das estruturas econômicas pode ser tomada de formas variadas e complexas nas organizações. Essas três abordagens, segundo Reed (1989) configuram problemas que, no seu entender, não se encontram resolvidos, dentre eles: a) a não-contemplação, nos modelos de análise, de uma proposta que integre, numa mesma perspectiva, as idéias de contexto institucional, estrutura organizacional e comportamento gerencial; b) a ênfase ora no determinismo das estruturas, ora na ação humana estratégica, ambas posições mutuamente excludentes. A proposta, segundo Reed (1989), passa por pensar uma abordagem que possa incorporar, ao mesmo tempo, à análise da gestão os níveis institucional, organizacional e comportamental, permitindo as interseções entre a ação gerencial, a dinâmica da organização e o contexto macroestrutural. Entende-se daí a intenção de vincular ação e estrutura, concebendo-se esta última como inerente ao que Giddens (1984) denominou de dualidade estrutural. Essa alternativa é, então, a perspectiva da gestão como “prática social” capaz de integrar, em seu bojo, questões inerentes aos dilemas éticos e políticos aos quais as organizações e os seus gestores são submetidos no dia-a-dia. Dessa forma, aqueles atores passam a ser vistos não só como agentes responsáveis pelo exercício da disciplina e dos interesses organizacionais, mas também como vivenciadores de conflitos e contradições, muitos deles inerentes às formas de atingimento daqueles mesmos objetivos, dado que as organizações são, por outro lado, tomadas como “locus” de contradições estruturais e processuais que se refletem na prática gerencial. O conceito de prática social utilizado por Reed (1989), é tomado emprestado de Harris (1980, p. 29) como sendo o engajamento num conjunto de

...ações inteligíveis através de conceitos que as informam, as quais devem ser entendidas como dirigidas à fins específicos compartilhados por todos os membros de uma comunidade, conjunto de ações este que é definido através dos meios adotados para o alcance daqueles fins, entendidos estes como determinados pelas condições sob as quais a prática é empreendida.

Em Giddens (1979, 1984), o conceito de prática social ganha ainda mais relevo no sentido de que ele reafirma a sua preocupação em destacar que a vida social, diferentemente das coisas da natureza, ocorre a partir de “skilled performances” dos agentes humanos. Daí a prática social tem a ver com procedimentos, métodos e técnicas, executados e manejados de forma apropriada por esses mesmos agentes sociais, tomando como base a consciência que eles detêm sobre os procedimentos de uma ação, isto é, aquilo que o autor chama de conhecimento mútuo (“mutual knowledge”), ou seja, um tipo de conhecimento que é compartilhado por todos aqueles atores sociais cognoscitivos que, em outras

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palavras, sabem como se comportar ou prosseguir em determinadas situações cotidianas. A prática social concilia condutas e atos de agentes humanos cognoscitivos sem, por outro lado, desconsiderar as estruturas sociais que são referências para aqueles mesmos agentes em processo de interação social (Goffman, 1983), tornando possível a dualidade macro e microssocial, sem privilégio de um nível sobre o outro ou até de sua independência mútua, mas sim como pólos complementares. Alvesson & Willmott (1996), analisando criticamente os conceitos sobre gestão, também a classificam como uma prática social no sentido de que seu conteúdo deve ser tomado como inerente a relações histórico-culturais de poder que, ao mesmo tempo, facilitam e restringem tanto sua existência como sua evolução numa dada sociedade. Nesse sentido, os autores afirmam que não se deve tomar a gestão como simples instrumento para a busca de compromissos comuns e de alcance de produtividade organizacional. Ou seja, sua redução a uma técnica neutra, imparcial, dotada de habilidades profissionais, pela qual se atinge a eficiência. Negligencia-se aí o seu aspecto político, isto é, a gestão como atividade técnica omite as relações sociais a partir das quais ela emerge e é dependente. A gestão como prática social pode ser identificada a partir de cinco fatores distintos, porém inter-relacionados (Reed, 1989, p. 22): 1. a classe de ações nas quais os praticantes estão engajados como membros de uma comunidade ou

prática; 2. os conceitos através dos quais certos objetivos ou problemas compartilhados são identificados de

um modo significativo pelos praticantes como base para o engajamento em interações recíprocas; 3. os objetivos ou problemas através dos quais a prática é tomada e como é comunicada através do

vocabulário conceitual dos seus praticantes. 4. os meios ou recursos (material ou simbólicos) através dos quais o alcance de projetos importantes

é buscado; 5. as condições situacionais ou limitadoras sob as quais atividades recíprocas, os recursos que elas

requerem e as relações que elas engendram entre os seus praticantes são configurados e conduzidos.

Da noção de prática social, Reed (1995, p. 79) define o conceito de gestão “como uma configuração frouxamente integrada de práticas sociais dirigidas à junção de e controle sobre diversos recursos e atividades requeridos à produção”. As organizações são pensadas então como conjunto de práticas nas quais seus indivíduos estão rotineiramente engajados na manutenção ou reestruturação dos sistemas de relações sociais nas quais eles estão coletivamente envolvidos (Reed, 1985). Assim, pode-se inferir que os gerentes não devem ser tomados exclusivamente como agentes imparciais e defensores dos interesses organizacionais. O trabalho gerencial deve ser percebido como dotado de tensões que são inerentes às relações de produção que pressupõem conflitos de interesses quanto à distribuição de recursos e gestão do trabalho, conflitos esses que perpassam todo o universo organizacional, incluídos aí também os gerentes. Ação gerencial e as práticas sociais de gestão : o vínculo com o nível macrossocial Na interpretação de Reed (1989) o papel dos gestores costuma assumir, nas abordagens sobre gestão por ele criticadas, distintas caracterizações, a saber: a) na perspectiva técnica, cabe aos gerentes a busca de resultados eficientes, obtidos pelos instrumentos e técnicas formais que, em determinados momentos, impõem-se às suas ações; b) na perspectiva política, o corpo gerencial é considerado como

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agente calculador que utiliza espaços de poder em ambientes de grandes incertezas, sob os quais têm pouco controle, buscando fazer valer seus objetivos e interesses nas “arenas” organizacionais; c) na perspectiva crítica, os gestores são portadores e defensores da transmissão de uma ordem econômica que é dissimulada por meio de instrumentos ideológicos. O entendimento da gestão como prática social permite a ampliação dos focos de estudos sobre as diversas práticas que os gerentes desenvolvem em seu trabalho cotidiano, visando ao controle da atividade produtiva, num contexto de complexidade e diferenciações em que eles operam. Assim, essas mesmas práticas devem ser consideradas como instáveis e até certo ponto contraditórias, tendo em vista que mecanismos de controle perpassam diversos níveis organizacionais, dotados de distintas lógicas e interesses, criando-se, a partir daí, dificuldades para o exercício daquele mesmo controle. Por outro lado, determinadas soluções para esses conflitos podem, do mesmo modo, gerar novas instabilidades e demandar distintas outras tantas alternativas (Reed, 1995). Mais ainda, pela noção de prática social, é possível, no entender de Reed (1995), ultrapassar o dualismo entre a estrutura e a ação no que diz respeito ao estudo da agência dos gerentes nas organizações, já que grande parte da literatura que versa sobre a análise do trabalho gerencial não leva em consideração a inserção dos processos histórico-sociais que são subjacentes aos comportamentos dos gerentes. Outros autores, entre eles, Willmott (1984, 1987), Whitley (1989), Harrow & Willcocks (1990), reafirmam essa tendência no sentido de que por esse viés muitos desses estudos deixam a desejar, pois • negligenciam o vínculo entre as atividades dos gerentes e os arranjos institucionais nos quais eles

atuam (regras e recursos produzidos institucionalmente); • focam, em geral, as diferenças do comportamento individual dos gerentes e não o trabalho gerencial

como expressando arranjos institucionalizados que, ao mesmo tempo, são condição e conseqüência da ação gerencial;

• não exploram, de forma crítica, as distinções entre elementos técnicos e políticos do trabalho gerencial;

• privilegiam a abordagem do relato descontextualizado da atividade gerencial sem uma perspectiva crítica.

Evidências desse tipo de abordagem podem ser demonstradas a partir de obras clássicas sobre o trabalho gerencial: Taylor (1960), Fayol (1970), Barnard (1938), Dalton (1959), Mintzberg (1973) e Kotter (1982). Resumindo esses trabalhos, Willmott (1984, 1987) aponta suas limitações: • Taylor (1960): caracteriza o trabalho gerencial como elemento funcional das organizações, sendo os

gerentes responsáveis pela apropriação das habilidades (“expertise”) dos trabalhadores, traduzindo-as e padronizando-as, expandindo o papel de controle e poder dos primeiros;

• Fayol (1970): os gerentes são encarregados do desenho racionalizado de estruturas administrativas responsáveis pela organização do trabalho. Seu papel tem a ver com o zelo das chamadas funções administrativas, destacando-se a sua autoridade formal para alcance de objetivos organizacionais;

• Barnard (1938): define a importância da autoridade superior do executivo na manutenção da cooperação organizacional;

• Dalton (1959): observa os conflitos psicológicos em nível individual dos gerentes, abstraindo do seu papel as tensões estruturais;

• Mintzberg (1973): preocupa-se em descrever o que os gerentes fazem, negligenciando o como e o porquê do trabalho gerencial, como se esse fosse determinado de uma forma mecânica e não condicionado por circunstâncias histórico-sociais;

• Kotter (1982): ressalta a questão do poder e das relações sociais, mas não faz uma discussão sobre

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as estruturas sociais que suportam a legitimidade do trabalho gerencial. Assim, esses estudos separam o trabalho gerencial do seu contexto histórico-social, privilegiando, de maneira geral, aspectos comportamentais em flagrante desconsideração ao seu aspecto político ou, quando muito, identificando o político como habilidades e estratégias utilizadas pelos gerentes para o alcance de seus objetivos. Em suma, não mostram as bases institucionais, isto é, os elementos da dimensão da estrutura, às quais se vincula o trabalho gerencial. Continuando sua apreciação crítica, Willmott (1987), assim como Reed (1989, 1995), identifica ainda três correntes preponderantes no estudo do trabalho gerencial: a) a abordagem unitária: aquela em que as relações sociais na organização são consideradas como

racionais e giram em torno da eficiência e alcance de resultados otimizados. Nela o trabalho gerencial expressa a divisão do trabalho necessária ao atingimento de objetivos da organização;

b) a abordagem pluralista: a idéia de que o resultado da divisão do trabalho nas organizações nada mais é do que a caracterização de grupos e coalizões em eterna disputa por interesses distintos e em luta pelo poder;

c) a abordagem radical: caracterizada por uma crítica as duas primeiras no sentido de que elas não vinculam a natureza político-econômica da divisão do trabalho ao papel dos gerentes. Em contraposição, essa corrente sustenta que os gerentes são condicionados e defendem interesses exclusivos do sistema capitalista de produção.

Opondo-se a essas três abordagens, no sentido de que são reducionistas, Willmott (1987) afirma que o trabalho gerencial deve ser classificado como político à medida que os gerentes não só desenvolvem habilidades interpessoais específicas para conseguirem que resultados sejam alcançados pela ação de terceiros, mas também porque envolvem a produção e reprodução de propriedades institucionais que atuam como mediadoras na relação conflituosa entre capital e trabalho. Harrow & Willcocks (1990) também insistindo nas falhas dos estudos clássicos sobre o trabalho gerencial, naquilo em que não consideram seus contextos institucionais, deixam clara a necessidade de serem realizados mais estudos sobre o tema, com o objetivo de enfocar as características das funções exercidas, os comportamentos em relação a resultados e o porquê e como o trabalho é executado, mostrando, enfim, que a ação dos gerentes não ocorre isolada dos contextos macrossociais nos quais está inserida. O trabalho gerencial, de acordo com os primeiros estudos clássicos sobre o tema (Fayol, 1970, Gulick, 1937), vem sendo descrito como composto de uma série de funções básicas. Em Fayol (1970), são definidas as conhecidas funções administrativas: planejar, coordenar, controlar, comandar e organizar. Em Gulick (1937), elas são reforçadas e ampliadas por aquilo que ele denominou ser a essência do trabalho gerencial: o POSDCORB, isto é – planejamento, organização, assessoramento (“staffing”), direção, coordenação, informação (“reporting”) controle contábil-financeiro (“budgeting”). Mintzberg (1973, 1990), constatando que essas duas concepções clássicas têm sido dominantes na literatura gerencial, afirma que, na realidade, elas dizem muito pouco sobre o que os gerentes realmente fazem no seu cotidiano, dado que suas pesquisas revelaram que elas podem, no máximo, significar alguns objetivos que são muito vagos em relação àquilo que, na verdade, é o trabalho gerencial. No seu entender, aquelas visões clássicas não respondem à pergunta fundamental sobre o conteúdo desse trabalho. A partir dessa constatação, desenvolve uma proposta distinta, chegando à conclusão de que o trabalho gerencial, no plano empírico, apresenta as seguintes características (Mintzberg, 1973):

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1. grande parte do trabalho gerencial, apesar de desafiador e não programado, proporciona ao seu praticante compartilhar de uma certa porção de obrigações mais constantes e regularizadas, tal como, o manejo de informações;

2. o gerente é, ao mesmo tempo, um generalista e especialista, no sentido de que tem que lidar com fluxos de informações diversas e incertezas generalizadas, mas, por outro lado, é forçado a dominar determinados papéis e habilidades específicos;

3. grande parte do poder que o gerente detém é originado na sua capacidade de acesso e domínio de informações que nem sempre estão disponíveis às demais categorias de uma dada organização;

4. o trabalho gerencial é caracterizado por uma grande diversidade e complexidade, tendo em vista que, devido à sua natureza ilimitada, bem como pela necessidade de o gerente processar uma quantidade grande de informação para a tomada de decisão, torna-se necessário o desenvolvimento de atividades nem sempre planejadas, bastante fragmentadas e variadas, aliadas às demandas de contextos que exigem respostas imediatas a problemas;

5. muito freqüentemente, o trabalho gerencial é mais baseado na intuição do gerente, bem como ancorado em informações verbais do que em processos formalizados de gestão.

Em outro trabalho, Mintzberg (1990), dando prosseguimento à identificação da natureza do trabalho gerencial em contraposição aos preceitos clássicos, aponta que há algumas pressuposições folclóricas sobre esse trabalho que, dificilmente, podem resistir a uma observação de cunho empírico-científica, a saber: 1. os gerentes têm no planejamento sistematizado uma ferramenta indispensável e freqüente em seu

trabalho. Suas pesquisas mostraram que a realidade é bem distinta e que, na maior parte do tempo, eles são submetidos a uma sobrecarga de atividades inerentes a visitas externas, atendimento a telefonemas, conversas e reuniões informais, continuamente pressionados por demandas de última hora, configurando um indivíduo que está mais inclinado à ação de cunho imediato e pontual do que àquela planificada e relacionada com médio e longo prazo;

2. o gerente é aquele que não se envolve com atividades repetitivas. Essa afirmação não é sustentável na prática, tendo em vista que o trabalho do gerente, via de regra, comporta atividades rotineiras, envolvendo reuniões constantes, negociações, obtenção e processamento de informações do ambiente onde a organização atua.

3. o gerente tem como fonte para a tomada de decisão um sistema formalizado de informações estratégicas. Contrastando essa afirmação folclórica, Mintzberg (1990) escreve que os gerentes preferem buscar informações por: contatos verbais, reuniões formais ou não, telefonemas, boatos, especulações; relatórios rotineiros; correspondências e inspeções “in loco”.

Vários outros autores realizaram estudos, procurando demonstrar a fragilidade dos preceitos clássicos sobre o trabalho gerencial, reafirmando, em linhas gerais, que as definições de Fayol (1970) e seus seguidores, apesar de contribuírem para o reconhecimento de aspectos distintos do trabalho gerencial, são imprecisas e demasiadamente generalizantes, ao mesmo tempo em que não permitem a percepção da relatividade das cinco funções administrativas em diferentes funções gerenciais. A partir dessas considerações, são inauguradas várias linhas de pesquisa que passaram a tratar a natureza do trabalho gerencial, levantando-se em conta aspectos que não deixam dúvidas a respeito da diversidade e complexidade das funções gerenciais: • a fragmentação da atividade gerencial – estudos empíricos, baseados em levantamentos e

anotações diárias, demonstraram que os gerentes gastam seu tempo de diversas maneiras e em distintas atividades, inclusive contatos informais com outros colegas (Carlson, 1951; Mintzberg, 1973; Stewart, 1976);

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• o caráter político da atividade gerencial – que, segundo (Dalton, 1959), é dado pela necessidade dos gerentes de influenciar terceiros, em busca de alcance de objetivos predeterminados;

• a importância do gerente como líder – vasta linha de estudos que passou a identificar as características comuns inerentes a líderes gerenciais, evidenciando os componentes da liderança e as qualidades necessárias a um bom desempenho como líder (Homans, 1950; Fleishman, 1953);

• as características empreendedoras do gerente – abordagem que preconizou o gerente como tomador de decisão (“decision-maker”) racional, maximizando benefícios, avaliando conseqüências, riscos e avaliando a melhor solução (Collins & Moore, 1970);

• as características não totalmente programáveis da decisão gerencial – perspectiva de estudos que, de certa forma, questiona a visão do gerente racional, assumindo o pressuposto de que a tomada de decisão é um fato complexo e de difícil compreensão em todos os seus aspectos, levando o gerente a nem sempre poder utilizar métodos predeterminados ou programados para a solução de problemas, dado que não é capaz de conhecer todas as variáveis que o cercam. É inaugurado, então, o conceito da “racionalidade limitada”, a partir do reconhecimento de que o contexto em que os gerentes atuam é extremamente complexo e incerto, de difícil conhecimento de todas as alternativas e conseqüências. Assim, o gerente não maximiza objetivos, mas escolhe alternativas mais satisfatórias, dentre várias possíveis. Há que se agregar também a tudo isso que, no processo de tomada de decisão, os gerentes estão sujeitos a uma gama de pressões advindas de coalizões de poder dotadas de interesses divergentes em relação a objetivos organizacionais (March & Simon, 1958; Simon, 1970; Cyert & March, 1996). Dessa abordagem, fica a noção de que o trabalho gerencial, distintamente de outros nas organizações, é mais complexo, sendo difícil considerá-lo como pré-programado, pois está sempre sujeito a ambientes incertos, informações não totalmente alcançáveis, caracterizando-se mais pela flexibilidade, sujeito a revisões e mudanças incrementais a todo momento que permitam ajustes em busca das condições mais satisfatórias.

Essas diferentes correntes sobre o trabalho gerencial demonstram a difícil tarefa de generalização quanto à sua definição universal. Stewart (1997) coloca bem essa questão ao perguntar-se, inclusive, sobre o que significa, antes de tudo, o termo gerente (“manager”), tendo em vista o seu uso tão comum. A autora, então, fazendo referências à definição clássica de Fayol (1970) e acentuando as três características elencadas por Mintzberg (1973) sobre os papéis gerenciais – a interpessoalidade, a capacidade para receber e processar informações, a tomada de decisão – chega à conclusão de que os gerentes são aqueles responsáveis pelo alcance de objetivos e resultados organizacionais por meio de outras pessoas, reforçando, ainda nessa consideração, que o trabalho gerencial é bem menos racional, ordenado, planejado do que dito por diversas correntes teóricas.

Ampliando ainda mais essa discussão, Whitley (1989) escreve que o trabalho gerencial é distinto dos demais por apresentar, em sua natureza, duas distinções básicas: ser discricionário, isto é, envolver escolhas e seleções de possibilidades por partes dos gerentes sobre emprego e transformação de recursos, bem como de resultados a alcançar para o cumprimento de objetivos, em condições de incerteza sobre a melhor maneira de consegui-los; ser organizacional, ou seja, estar vinculado a sistemas administrativos de controle e coordenação. Com base nessas duas condições, o autor identifica cinco grandes características do trabalho gerencial: a) interdependência e contextualidade – envolve não só necessidade de interconexão entre diversos

recursos e unidades organizacionais, bem como é estreitamente ligado e, de certa forma, limitado a contextos organizacionais específicos, deixando claro que soluções de problemas organizacionais dificilmente podem ser abstraídas de questões como tempo, espaço e culturas, por exemplo;

b) não-padronização – decorrente dos contextos diversos, bem como das várias formas nas quais os

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recursos podem ser arranjados e organizados; c) mutabilidade e dinamicidade – as tarefas e problemas gerenciais não são resolvidos de acordo com

procedimentos rigidamente preconcebidos, tendo em vista as incertezas às quais o gerente é submetido, exigindo respostas nem sempre constantes e rotineiras;

d) manutenção e mudanças de estruturas administrativas – têm a ver com a idéia de que a atividade gerencial está inserida numa dualidade, isto é, envolve, ao mesmo tempo, continuidade de ações administrativas corriqueiras, bem como sua inovação, ou seja, sua transformação ao longo do tempo. Essa afirmativa permite a aproximação da atividade gerencial à idéia da re/produção das práticas sociais definidas em Giddens (1984);

e) dependência de ações coletivas – tendo em vista que o trabalho gerencial não é atividade ou desempenho de uma única pessoa, mas sim inerente à soma de esforços coordenados de diversos recursos em contextos organizacionais específicos.

Assim, Whitley (1989) enfatiza que os resultados só são alcançados de forma coletiva, ou seja, numa inter-relação contínua entre todos envolvidos em determinados objetivos. Essa ênfase é também ressaltada por outros autores, por exemplo, Stweart (1997) que mostra a indissociabilidade entre o trabalho gerencial e o trato com pessoas. De acordo com as perspectivas apresentadas até aqui sobre o trabalho gerencial, fica claro que a preocupação central de grande parte delas é identificar o que o gerente faz, enfatizando suas tarefas e ainda como utiliza seu tempo, circunscrevendo o campo de análise ao aspecto microssocial, abstraindo o campo macrossocial, ou seja, a vinculação daquilo que o gerente faz às características maiores da sociedade em que está situado. À exceção de Whitley (1989), que dá um certo destaque ao contexto no qual se enquadra a organização, os demais autores estão mais preocupados com o comportamento gerencial como descolados e/ou sem condicionamentos externos. Faz-se necessário então, afirmar-se que os atores organizacionais não agem somente de acordo com normas e interesses organizacionais, mas, por participarem de uma sociedade, trazem consigo, ao entrar no mundo do trabalho, diferentes expectativas e interesses derivados de sua experiências ou de status sociais de suas vidas extra-organizacionais. Dito de outra maneira, é preciso resgatar a contribuição de Silverman (1970) que afirma que, se a sociedade define o homem, essa mesma sociedade é também definida por esse mesmo homem. Trata-se de referendar-se uma característica essencial da ação humana, qual seja a capacidade do ator em poder agir diferente, proposta inclusive por Giddens (1984), que, em conjunto com outros conceitos de sua Teoria da Estruturação, permite a visualização, no dizer de Whittington (1994, p. 61), de “um mundo que possui estrutura, mas, não é nem monolítico e nem tampouco determinado no que tange ao impedimento da ação deliberada e efetiva”. Desse modo, a idéia da gestão como uma prática social (Reed, 1989), permite o estudo da ação gerencial como ligada a estruturas mais amplas à medida que, conforme escreve Clegg (1994), a idéia de “prática” oferece uma estratégia analítica que torna viável a superação da divisão entre objetivismo e subjetivismo nos estudos organizacionais, integrando os dois pólos, dado que o engajamento “numa prática social envolve engajamento em ações que são inteligíveis através dos conceitos que a informam e que têm que ser entendidos como dirigidos a fins que indivíduos estratégicos da organização especificam como estruturas objetivas” (Clegg, 1994, p. 34). Dentro dessa lógica, as organizações são concebidas como pontos de interseção de um conjunto de práticas sociais compartilhadas por atores sociais e passíveis a arranjos e rearranjos, dentre uma gama de estratégias de cunho institucional, isto é,

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que dizem respeito ao campo das propriedades estruturais de uma dada sociedade. Em assim sendo, a transformação do “administrador burocrático” para o “gerente” torna-se pouco evidente à medida em que a proposição da Administração Pública Gerencial reduz a gestão e a ação gerencial ao plano microssocial, ou seja, desconsidera o plano da estrutura histórico-social brasileira, ou seja, traços culturais marcantes de nossa sociedade aos quais os gerentes estão condicionados, tendo em vista que aquele mesmo plano – estrutural – é o responsável por regras que guiam e orientam suas ações cotidianas. Uma segunda problematização às idéias da mudança em torno da chamada dimensão cultural da Administração Pública Gerencial pode ser ainda dada a partir da “objetividade” de sua própria concepção, mostrada a seguir. A “objetividade” da proposta do “gerente orgânico” versus a “subjetividade” inerente às práticas cotidianas dos sujeitos organizacionais Desde o advento das abordagens clássicas propostas por Taylor e Fayol no início do século XX, grande parte do chamado “pensamento administrativo vem sendo dominado por uma concepção cartesiana de gestão em que predominam “dimensões objetivas”, ou sejam, abordagens que priorizam conjuntos de técnicas e ferramentas com vistas ao alcance da eficácia e produtividade organizacionais. No entender de Chanlat (2000) o culto à essa racionalidade instrumental nas organizações deu origem ao que se pode denominar de sociedade gerencial, na qual passaram a se manifestar noções e princípios como: excelência, flexibilidade, “performance”, competências, qualidade total, reengenharia, cliente, “benchmarking”, “downsizing”, dentre outros. Essas idéias, segundo ainda aquele mesmo autor, englobam não só resultados econômico-financeiros, mas também relacionamentos diversos e complexos entre pessoas. Entretanto, o que vem marcando, majoritariamente, o encontro entre aqueles dois pólos é uma visão instrumental-operacional, ou seja, dada a exigência pelo aumento da rentabilidade organizacional, defende-se a percepção da mão-de-obra como “fator de produção ou um recurso” (Chanlat, 2000, p.39), enfatizando-se a sua maximização, tratando-se assim a gestão, como um ferramental estratégico capaz de levar o “capital humano” ao limite de seu rendimento, apropriando-se, inclusive, de alguns campos de conhecimento das Ciências Humanas, em particular a Sociologia e Psicologia, para aquele mesmo fim. Demonstrando a questão da “objetividade” no universo da gestão, Davel & Vergara (2001, p. 39), afirmam que ele tem se caracterizado por um conjunto teórico-prático de “modelos normativos e funcionais que pressupõem a busca das ‘melhores’ ferramentas e técnicas”. Assim, dotada desde caráter normativo, a gestão de pessoas carrega consigo uma distância entre o prescrito – regras, planos, estratégias, manuais – e o real – o cotidiano, as relações sociais, as experiências vividas pelos seres humanos no interior das organizações. Em contraposição àquela mesma “objetividade” aqueles mesmos autores apontam a sua necessária conjugação com uma outra dimensão, ou seja, a “subjetividade”, isto é, a inserção, nos estudos organizacionais, de uma abordagem que privilegie a compreensão da ação humana e de seus significados mais complexos e profundos. Em outras palavras, de uma noção de “subjetividade” cuja idéia não seja somente aquilo inerente à interioridade das pessoas, ou seja, não só “a um ‘eu’ individual, como também em um ‘nós’ e em uma intersubjetividade. Gestão de pessoas é, então, uma construção social baseada em uma visão particularizada de organização e de pessoa, variando no tempo e no espaço” (Davel & Vergara, 2001, p.47). No raciocínio desses dois autores o ser humano nas organizações deve ser pensado em sua experiência vivida, caracterizada por saberes e

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práticas cotidianas e inseridas em contextos histórico-sociais específicos. Desse modo, a intenção maior de Chanlat (2000, 2001) e Davel & Vergara (2001) é deixar claro que não se pode tratar o campo da gestão exclusivamente tomando-se a dimensão “objetiva” das práticas organizacionais, nem tão pouco, rejeita-la, mas sim conjuga-la, confrontá-la à dimensão “subjetiva” como dois pólos diferenciados, mas complementares e indissociáveis. Dito de outra maneira, trata-se de agregar aos estudos organizacionais reflexões que possam contribuir para o fortalecimento do conhecimento científico inerente à gestão, tomando-se como base que as diversas técnicas e ferramentas administrativas, ainda que concebidas “à priori”, são produzidas e reproduzidas nas organizações por meio da ação humana, dotada esta da capacidade de construir e reconstruir significados e interpretações que, no limite, dão vida àquelas mesmas técnicas e ferramentas. Pode-se afirmar que a “Administração Pública Gerencial”, ancorada nos pressupostos da “Nova Gestão Pública”, tendo como uma de suas plataformas de base a substituição do perfil denominado como “administrador burocrático” por aquele identificado como “gerente orgânico” enquadra-se no plano da “objetividade”, isto é, concebe um perfil gerencial voltado à racionalidade, à competição, ao sucesso, enfatizando um tipo ideal de gerente impregnado por uma “obsessão pela eficácia, pelo desempenho, pela produtividade, pelo rendimento a curto prazo” (Davel & Vergara, 2001, p. 39) ou ainda, nas palavras de Du Gay (1996a) um empreendedor de si mesmo (“self entrepreneur”) e atento ao mercado. Ainda pela ótica da “objetividade”, o discurso gerencialista na administração pública é crítico em relação à conduta burocrática, dado a que esta é identificada como conflitante em relação ao alcance da eficiência e agilidade das máquinas estatais no sentido de que a burocracia é tomada como contrária a certos valores como motivação, compromisso e auto-realização dos indivíduos, bem como vinculada a aspectos de ineficiência e inércia na prestação de serviços. O gerente do tipo “orgânico”, por outro lado, é o empreendedor responsável pela condução de seu pessoal a projetos individuais de auto-realização, encorajando-os a tornarem-se responsáveis consigo próprios, como indivíduos altamente identificados com os valores da organização em busca da eficiência dos negócios. É importante lembra-se que a concepção da burocracia em Weber (1984), se refere à uma forma histórica de racionalidade da vida social como instrumento importante de negação a modelos pré-burocráticos inerentes à patronagem, conforme reconhece o próprio Bresser Pereira (1996, 1998). A ética burocrática está, antes de tudo, baseada não na negação da motivação pessoal para o trabalho, mas sim, por intermédio das condutas baseadas em regras formas e impessoais, voltada contra a interferência de relações de favorecimento e camaradagem em um dado contexto histórico-social. O ethos do “bureau” – sua aderência impessoal à regras, à especialização, à hierarquização das relações sociais, o apego a procedimentos regularizados e rotineiros – está vinculado a comportamentos capazes de garantirem a não influência de interesses políticos e compromisso particulares, visando-se a separação entre aquilo que é de interesse público do privado, numa sociedade democrática. Se é assim, não se pode negar totalmente esse ethos na administração pública ou mesmo confundi-lo como uma das causas da ineficiência (Du Gay, 1996a; 1996b). Assim, a proposição do “novo gerente” público, capitaneada pelo Plano Diretor de Reforma do Estado no Brasil, em sua dimensão “objetiva”, traz consigo: a) a crítica à burocracia – implicando, inspirando-se em Du Gay (1996a;1996b), em considerar como

obsoleto o ethos do “bureau”, confundindo, de certo modo, a burocracia, conforme estudada por Weber (1984), instrumento de poder, controle e alienação social, no dizer de Motta (1985), com as suas “disfunções”, caracterizadas por Merton (1971), “dentre outros aspectos pelo excessivo apego

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às normas que passam a ser consideradas absolutas e não de modo relativo”, de modo semelhante aos dados revelados por Cavedon & Fachin (2000) em pesquisa realizada em uma universidade pública, retratando o modo de pensar de seus entrevistados sobre aquela mesma organização;

b) A concepção de um protótipo do tipo “novo gerente” como antítese ao “administrador burocrático” – a pressuposição de “gerente” como “homem de negócios” ou empreendedor público, guiado por valores ligados ao mercado, tomando decisões baseadas em suas capacidades de julgamento sobre o que é bom ou mal para um determinado negócio, atuando em organizações que deveriam estar inseridas em um tipo ideal “orgânico”, conforme as enquadra Wood Jr. (2001, p. 131), ou seja, aquelas direcionadas “para a flexibilidade, a agilidade, a criatividade e a capacidade de inovação”.

Desse modo, a proposição da “Administração Pública Gerencial”, naquilo que toca à sua crítica ao “administrador burocrático” e à sua substituição pelo “novo gerente”, pressupõe este último dotado de um perfil de uso universal, ou seja, capaz de ser adotado em qualquer organização pública brasileira. Logo, trata-se da dimensão “objetiva” de uma estratégia de gestão que desconsidera o fato de que “cada modo de administração é sempre enraizado em uma cultura e em uma sociedade, detendo, então, uma história” (Chanlat, 2001, p. 20). Se é assim, não se pode falar de “administrador burocrático”, nem tão pouco de sua antítese o gerente do “novo gerente”, sem considerar as diversas formas de pensar, sentir e agir dos atores organizacionais, impregnadas de valores e significados, ou ainda, desconhecer as regras e recursos de uma dada estrutura social que condicionam e habilitam a ação humana (Chanlat, 2001; Giddens, 1984) em complexos contextos do setor público estatal brasileiro. Significa, então, dizer que há que se conjugar à “objetividade” embutida no protótipo do “novo gerente” às diversas “subjetividades” presentes nas organizações do setor público, isto é, à compreensão das experiências vividas e práticas sociais que dão sentido à vida em conjunto. Tendo em vista a preocupação de ressaltar a dimensão da “subjetividade”, esquecida na proposição da “Administração Pública Gerencial”, como contribuição ao debate pelo enriquecimento da reflexão administrativa brasileira, conforme sugere Chanlat (2001), é que se propõe, então, a necessidade de se tomar consciência de como nossa realidade cultural condiciona, restringindo e/ou habilitando, a ação gerencial nas organizações públicas no País, bem como é a partir daquele mesmo contexto sócio-cultural que se pode tornar possível, dar “voz” aos atores organizacionais, compreendendo-se como articulam e rearticulam significados, podendo-se, a partir daí, buscar a construção social de “novos” perfis profissionais. Propõe-se, a seguir, a partir de um Estudo de Caso, ilustrar a importância do contexto sócio-cultural, ou das chamadas “raízes” brasileiras (Holanda, 1995) na conduta gerencial no serviço público brasileiro. A subjetividade da ação humana na administração pública: em ação o “gerente caboclo” A pesquisa, em forma de Estudo de Caso, foi feita nas Secretarias de Governo de um Estado localizado na Região Sudeste brasileira, escolhido por ter vivenciado, no período de janeiro de 1995 a dezembro de 1998, experiências ancoradas na implantação de pressupostos da chamada Administração Pública Gerencial, preconizada por Bresser Pereira (1996, 1998), tornando-se importante estudar o conhecimento das práticas sociais compartilhadas pelos seus gerentes, face às possíveis pressões em seus comportamentos, provocadas por aquelas mesmas mudanças organizacionais. As unidades de análise da pesquisa foram constituídas por servidores públicos estaduais de carreira e ocupantes de cargos de chefia nas diversas Secretarias de Estado. Assim, o universo da pesquisa

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empírica foi formado por aqueles que já viessem exercendo função gerencial por um tempo mínimo de dois anos, a partir de janeiro de 1995. Optou-se por estratificar os ocupantes de função gerencial em três níveis distintos: Alta Gerência (AG) – Chefes de Gabinete e Subsecretários; Gerência Intermediária (GI) – Superintendentes, Coordenadores e Subcoordenadores; Gerência de Linha (GL) – Chefias de Grupos Setoriais e de Departamento. Do total de cento e setenta três cargos gerenciais somente setenta e sete de seus ocupantes (44,5%) atendiam à exigência de, no mínimo, dois anos na função. A amostra definida então foi a do tipo não-probabilística, atingindo-se representantes de todas as Secretarias. A coleta dos dados deu-se por meio de entrevistas com roteiro semi-estruturado, alcançando-se a saturação e recorrência de informações na vigésima quinta entrevista. O tratamento dos dados levantados pelas entrevistas semi-estruturadas apoiou-se na concepção da análise de conteúdo. As entrevistas foram gravadas, transcritas integralmente e então codificadas e categorizadas (Bardin, 1996). Os resultados da pesquisa mostram como o contexto sócio-cultural brasileiro condiciona a ação de ocupantes de posições de chefia nas diversas Secretarias pesquisadas. A partir da uma imersão nos universos teóricos de estudos sobre a sociedade brasileira, em que autores como Ramos (1983), Faoro (1987), Da Matta (1990, 1993), Freyre (1994), Holanda (1995) e Ribeiro (1996), apontam processos histórico-sociais que deram origem a raízes e traços marcantes da cultura nacional (Motta, 1997), foi possível elencar um conjunto de práticas sociais ancoradas na realidade cultural brasileira, compartilhado pelos gestores pesquisados, permitindo a compreensão de significados dos cotidianos organizacionais vivenciados por aqueles mesmo atores. Destacaram-se como práticas: a) a boa vizinhança − universo pouco propício à cooperação e troca de informações técnicas entre unidades organizacionais, gerando a necessidade dos gerentes desenvolverem relações pessoais e amizades como propriedades indispensáveis à facilitação do convívio profissional; b) o sincretismo casa/rua − a não distinção entre o espaço em que predominam valores ligados às relações familiares, à hierarquia patriarcal e à pessoalidade – a idéia da casa – e o mundo dominado pela impessoalidade, pelos decretos e regulamentos – a rua –, caracterizando uma representação das organizações públicas para os gerentes como uma segunda casa ou uma grande família e, ao mesmo tempo, como um local de conflitos e de definição de estratégias pelas quais lutam para a própria sobrevivência nos cargos; c) o controle cordial − o uso de relações afetuosas para o controle de subordinados, buscando-se evitar ao máximo as situações de conflito direto, tendo em vista a dificuldade para a aplicação de regras impessoais para a punição de insubordinados, atos esses que passam a ser tomados como de cunho pessoal, como ilustra o depoimento marcante de um entrevistado, no qual um gerente é visto como perseguidor, até por seus próprios pares, quando se viu obrigado a transferir de setor uma funcionária que não se adaptava aos padrões estabelecidos; d) a contemporização − a transigência no dia-a-dia organizacional é comum, tornando-se habitual deixar as coisas como estão, originando-se daí atitudes próximas à acomodação, à condescendência, ao não enfrentamento de conflitos diretos, originando o “jogo de cintura” como um recurso fundamental nas situações embaraçosas; e) o plantador de coco − a dificuldade para conviver com o planejamento das atividades cotidianas, imperando as situações de emergência, o “apaga incêndio” e as prioridades que mudam ao gosto dos governantes, demonstradas muito bem pela metáfora utilizada por um dos entrevistados que comparou os gerentes e governantes públicos a plantadores de coco que, diferentes dos plantadores de carvalho, querem bons frutos a curto prazo e não a madeira de lei de longo prazo; f) o faz-de-conta − prática que sinaliza para espaços organizacionais em que não são privilegiadas avaliações formais de desempenhos individuais ou coletivos, ou seja, dificilmente são medidos metas e

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alcance de resultados, valendo mesmo a informalidade, a conversa informal; g) o manda-chuva − um conjunto de relações entre superiores e subordinados em que o “manda quem pode, obedece quem tem juízo” é o lema básico, caracterizando-se universos organizacionais marcados pelo autoritarismo e centralização do poder nos pontos mais altos da hierarquia; h) o dar a volta por cima − situação em que torna-se comum o uso do "jeitinho" como recurso indispensável para a convivência com os excessos de normas e decretos formais, caracterizando situações nas quais as relações pessoais, as amizades facilitam o contorno de dificuldades para a obtenção de resultados pelos caminhos formais. Como se viu nos resultados obtidos, os cenários organizacionais do setor público pesquisado tendem a ser marcados por um alto grau de centralização de poder; pelo baixo nível de cooperação interna entre unidades administrativas; pela não primazia da definição de metas, controle e cobrança de resultados organizacionais eficazes, predominando o imediatismo; bem como pela miscigenação entre a pessoalidade e a impessoalidade no trato cotidiano. As práticas sociais daí decorrentes representam nada mais que o resultado de como os gerentes, a partir dos “estoques de conhecimentos” (Giddens, 1984) que dispõem desses mesmos cenários, referentes a traços típicos da sociedade e da gestão pública brasileiras, criam e recriam condutas que lhes permitem prosseguir como gerentes. A partir da identificação práticas sociais compartilhadas pelos gerentes pesquisados, é possível traçar um perfil gerencial concreto que retrata as experiências por eles vividas e contrapor esse perfil ao protótipo do “burocrata” weberiano, bem como à sua antítese o “gerente orgânico”, pretendido pela “Administração Pública Gerencial”. Propõe-se então, no Quadro 1, a seguir, utilizando-se da concepção dos Tipos Ideais (Weber, 1984) que, no entender de Wood (2001, p. 121) “permitem avaliar novas idéias e avançar o conhecimento no campo” dos estudos organizacionais, a caracterização de um tipo ideal denominada de “gerente caboclo”, ou seja, aquele que configura um hibridismo entre os tipos ideais do “burocrata weberiano” e o “gerente orgânico”.

QUADRO 1 – Tipologia de perfis gerenciais e suas principais características PERFIS GERENCIAIS

“Administrador Burocrático” Fonte: a partir do Tipo Ideal

Weberiano

“O Gerente Caboclo” Fonte: dados empíricos

coletados pelo autor deste ensaio

“Gerente Orgânico” Fonte: a partir de concepções da “Nova

Gestão Pública” . Cumpridor de deveres

. Apego às regras formais . Planejador/ Metódico

. Adepto à autoridade formal . Zelo pela hierarquia

. Inflexível à informalidade

. Contemporizador . Dividido entre o “coração”

e a “razão” . Tendência à centralização . Conjuga: pessoalidade e

impessoalidade . Capaz de contornar excessos

formais via “jeitinho” . Avesso a controles formais e

planificação

. Empreendedor . Atento à competição e o mercado . Criativo/ Adaptado à mudanças

. Apto à liderança de pessoas . Gosto por resultados/metas

. Autônomo/flexível

Assim, o gerente do tipo “caboclo”, por meio daquele mesmo hibridismo navega socialmente entre seus pólos extremos – o “burocrata” e o “gerente orgânico”, constatando-se: a) o sincretismo entre a pessoalidade e a impessoalidade (Da Matta, 1990, 1993) – as amizades e a

proximidade social, cultivada entre colegas de trabalho, podem ser utilizadas para facilitar o atingimento de objetivos e as exigências para o cumprimento de tarefas por parte de subordinados,

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ao mesmo tempo que pode dificultar a aplicação de regras formais por parte do gerente, quando necessária, já que passa a ser visto como inimigo por aqueles considerados como amigos ou colegas. Logo, cabe ao gerente “caboclo” ter uma habilidade para conjugar o convívio informal com o conjunto de legislação formal que precisa seguir, contemporizando conflitos entre interesses legais e pessoais, construindo relações sociais híbridas entre esses pólos, capazes de reforçar sua legitimidade;

b) a divisão entre o “coração” e a “razão” – o gerente caboclo ao mesmo tempo em que age com afeto em relação aos subordinados, considerando o local de trabalho como uma “segunda casa” ou uma “grande família”, navega para a razão, ou seja, para o uso da hierarquia e da autoridade formal para agir com rigor em relação a um desafeto ou promover a centralização de informações ou decisões, dificultando uma configuração mais sistêmica e integrada entre unidades de trabalho. Desse modo, ele pode se considerar fraterno e amigo de um subordinado leal e, por outro lado, inimigo e duro na aplicação de mandamentos legais contra desafetos. Sua liderança é construída por meio de um misto entre carisma e autoridade formal;

c) a habilidade para contornar o “formalismo” (Ramos, 1983) no ambiente de trabalho, utilizando-se de contatos informais ou empreendendo e readaptando alguns procedimentos mais criativos, ou mesmo o “jeitinho” (Barbosa, 1992) sem, entretanto, burlar mandamentos legais;

d) a aversão a excesso de exigências oriundas de instrumentos legais de controle e planejamento de atividades, contrapondo a esse sentimento às suas intuições e capacidades criativas e/ou empreendedoras para resolução de problemas imediatos, buscando sempre o reconhecimento dessas suas capacidades por seus superiores.

Como se vê pelo Quadro 1, não é possível prescrever o “gerente orgânico” como antídoto ao “burocrata”, desconhecendo-se as bases histórico-sociais que institucionalizam o cotidiano daqueles que ocupam funções gerenciais. Fica evidente que a introdução de um novo tipo ideal de gerente, torna-se complexa sem que se possam compreender os significados de certas práticas cotidianas que constituem o trabalho gerencial nas organizações públicas e que, empiricamente, estão mais próximas de um hibridismo entre o que seria o tipo ideal weberiano − o burocrata impessoal − e a sua antítese − o “novo gerente”. Pode-se pensar que, no mundo real das organizações públicas estudadas, os ocupantes de posições de gestão “escolheram não escolher”, como diria Roberto Da Matta, isto é, estariam mais para a “Dona Flor” que, na obra de Jorge Amado, opta ficar com os dois maridos, ou seja, os gerentes estudados reproduzem um tipo de navegação social que se interpõe entre traços do perfil burocrático weberiano, sem jamais sê-lo exclusivamente, e o do “gerente orgânico”, igualmente sem assumi-lo de maneira mais contundente. Assim, não se pode pretender antepor o protótipo do “gerente orgânico” ao do “administrador burocrático”, à priori, sem que se tenha em mente, como os dados do Quadro 1 revelam, que a ação gerencial não se realiza somente por obra de mandamentos formais legais – campo da “objetividade” –, mas também pela sua conjugação com percepções e valores acerca do mundo que os indivíduos carregam consigo, fruto da sociedade na qual estão inseridos e que proporcionam a construção e reconstrução de práticas sociais de gestão que passam a configurar “culturas administrativas” (Barbosa, 1999) no seio das organizações. Desse modo, a “Administração Pública Gerencial” precisa ser “apresentada” ao “gerente caboclo”, isso porque o perfil do “novo gerente” pretendido só poderá ser digerido pelo primeiro, por meio de construção social de novos significados, por parte daqueles mesmos atores empíricos em seus universos de trabalho na administração pública brasileira, ainda que Bresser Pereira (1999, p. 5) tenha considerado que quatros anos após á sua implantação “a Reforma Gerencial da Administração Pública pode ser considerada como um verdadeiro êxito”.

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O “gerente caboclo” face ao tipo ideal do “gerente orgânico” da Administração Pública Gerencial O tipo ideal do “gerente caboclo” aqui proposto reafirma a idéia da gestão e da ação gerencial como inseridas num conjunto de práticas sociais que não podem ser descoladas do contexto histórico-social no qual os gerentes atuam. Dito de outro modo, o cotidiano dos gerentes é marcado por ações que se apoiam em “raízes” e traços marcantes da cultura brasileira, guiando os seus comportamentos, ora facilitando, ora restringindo aquelas mesmas ações. Assim, a “objetividade” das propostas da Administração Pública Gerencial, em particular, a intenção de eleger o “gerente orgânico” como o seu tipo ideal, deve ser conjugada às “subjetividades” do perfil que aproxima-se ao “gerente caboclo” aqui descrito, isto é, um esforço para a compreensão necessária de significados mais complexos e profundos das ações humanas construídas e reconstruídas, sem cessar, pelos atores organizacionais empíricos. A concepção da prática social (Reed, 1989) contribui, então, sobremaneira para essa problematização, pois permite conjugar o nível microssocial de análise ao macrossocial, imbricando-os e tornando mais enriquecida as análises organizacionais. Por outro lado, pensando-se na questão da reformulação de perfis gerenciais que possam adequar-se às mudanças nos modelos de gestão, tão em voga no universo da reestruturação produtiva (Leite, 1994; Meireles Filho, 1999), pode, o perfil do “gerente caboclo”, contribuir muito na construção de novas práticas sociais de gestão na administração pública, a partir de algumas considerações básicas: a) As propostas de Reforma do Estado, no que tange à sua “dimensão cultural”(Bresser Pereira, 1996)

de transformação do “administrador burocrático” em “gerente orgânico”, deve tomar, como princípio epistêmico-metodológico básico, o conceito de cultura “não como ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa a procura do significado” (Geertz, 1989, p. 15) e, portanto, conforme ainda esse mesmo autor, como um emaranhado complexo de símbolos e significados que são compartilhado socialmente por atores sociais em dados contextos histórico-sociais. Decorre dessa concepção o fato de que as mudanças nos comportamentos dos denominados administradores burocráticos não pode se dar de forma automática, pela via da implantação de um novo modelo de gestão, havendo que se considerar a influência de traços culturais em suas ações cotidianas e, a partir daí, a “conversação” necessária entre o que se quer como novo “versus” o que se quer transformar do passado de práticas sociais organizacionais a serem modificadas;

b) As características do “gerente caboclo” pensadas a partir de traços da(s) cultura(s) brasileira(s), identificados por autores como Ramos (1983), Faoro (1987), Da Matta (1990, 1993)3, Freyre (1994), Holanda (1995) e Ribeiro (1996), não devem ser tomadas como leis que se aplicam ao setor público brasileiro como um todo, tendo em vista que a cultura brasileira não é homogênea, assim como o próprio conceito de cultura, conforme sugerem Cavedon e Fachin (2000). Ou seja, dada a não-homegeneidade da(s) cultura(s) brasileira(s) e também da(s) cultura(s) em organizações produtivas, não é possível imaginar que o “gerente caboclo” possa agir de forma homogênea em universos distintos do setor público brasileiro. Isso porque, em primeiro lugar, a administração pública nacional apresenta-se diferenciada em três níveis de governo – federal, estadual e municipal – cada qual constituindo universos organizacionais complexos e dotados de especificidades e de práticas gerenciais distintas. Em segundo lugar porque a administração pública brasileira, em nível organizacional, divide-se entre a chamada Administração Direta – aquela em que os serviços são prestados pelos seus próprios entes (Ministérios, Secretarias) – e a Indireta – que conta com entidades criadas para atuar em nome do governo, mas dispondo de maior autonomia e

3 O próprio Da Matta, (1990, 1993) tem recebido, no dizer de Cavedon & Fachin (2000), várias críticas ao ser enxergado como que pensado a cultura brasileira de maneira homogênea.

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mandamentos legais diferenciados (empresas estatais, por exemplo), conforme ensina Meirelles (1990);

c) A não pretensão de generalizações a partir do “gerente caboclo”, mas sim a intenção de mostrar, a partir de um estudo de caso, que alguns traços que permeiam a(s) cultura(s) brasileira(s) podem levar a tipos de práticas específicas nas organizações. Cabe então, a cada pesquisador, à luz de uma visão interpretativa da cultura conforme a entendem Geertz (1989), Dupuis (1996), d’Iribarne (1989), Cavedon & Fachin (2000), dentre outros, buscar a compreensão dos diversos e distintos significados compartilhados por diferentes “gerentes caboclos” em diferentes organizações brasileiras, ainda que ancorados por “raízes” generalizantes de processos histórico-sociais da(s) cultura(s) nacional(s). No caso específico da proposta da Administração Pública Gerencial o tipo ideal do “gerente caboclo” pode ser útil para a realização de estudos que possam identificar diferenças e semelhanças entre significados construídos socialmente nos diversos universos das organizações do setor público brasileiro, tornando-se possível, após as análises de dados, serem buscadas alternativas que levem à definição de ações específicas, a cada caso, capazes de promoverem a renegociação de práticas sociais de gestão que possam, no limite, ser responsáveis por novos perfis gerenciais.

Em suma, se a ação gerencial, pelos dados levantados na pesquisa de campo deste ensaio, é mais aproximada ao tipo ideal do “gerente caboclo”, isso não deve significar que a busca pelo “gerente orgânico” não seja imprópria ao serviço público brasileiro, mas sim que a sua efetivação não será dada exclusivamente por planos de reforma bem concebidos teoricamente no nível de suas “objetividades”, como é o caso da Administração Pública Gerencial (Bresser, 1996), sem a conjugação com o nível das “subjetividades” inerentes às práticas cotidianas dos atores organizacionais envolvidos. Isso é o que recomenda o tipo ideal do “gerente caboclo”! Que tal inserir-se essa provocação aos denominados “administradores burocráticos”? Considerações finais A idéia de substituição do “administrador público burocrático” pela figura do “gerente orgânico” no Brasil do Real, gerou a problematização deste ensaio. Confrontada à abordagem da gestão e da ação gerencial como uma prática social, a “Administração Pública Gerencial”, âncora daquele ideal, pôde ser visualizada como uma proposta de Reforma do Estado fortemente apoiada ao campo da “objetividade”, ou seja, do esforço pela necessidade de transformação, em sua dimensão cultural, do perfil do “administrador burocrático” para o do “gerente orgânico”, evidenciando-se, a partir daí, a necessidade premente de sua conjugação com um outro pólo, distinto, porém complementar e indissociável, que é o da “subjetividade”, isto é, com as experiências vivenciadas no mundo real do trabalho no setor público, no qual os ocupantes de posições de gestão constróem e reconstróem práticas sociais, outorgando-lhes significados diversos, apoiados que estão, em sua ação cotidiana, em traços da(s) cultura(s) nacional(is). Admite-se ainda a dificuldade para uma generalização do perfil do “administrador burocrático” na administração pública brasileira, como ensaiam os pressupostos da “Administração Pública Gerencial”, tendo em vista que dados empíricos apresentados aqui, apontam para um “gerente caboclo”, ou seja, um perfil mais próximo do hibridismo entre o que seria influência do tipo ideal weberiano e sua antítese o “novo gerente”, em suas características universalizantes. Não se quer com isto negar a importância de se pensar mudanças no Estado, bem como no perfil de seus gestores, tendo em vista a melhoria na prestação de serviços à comunidade. O que se quer registrar é que a possível generalização

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do “administrador burocrático”, como nefasto ao serviço público, pode ser prejudicial para o próprio repensar de novas práticas gerenciais, à medida em que já se colocam, à priori, propostas de novos perfis e práticas que podem não fazer sentido para os próprios atores organizacionais envolvidos, à medida em que o ideal do “novo gerente” pode apresentar-se como descolado do mundo real e subjetivo daqueles mesmos atores. Uma outra questão importante é registrar-se que o perfil denominado no Quadro 1 como “gerente caboclo” não quer significar uma desqualificação dos gestores no serviço público, mas simplesmente evidenciar os significados de práticas que podem configurar certos traços de culturas administrativas na administração pública brasileira, como é o caso do universo aqui estudado, que, como em todo estudo de natureza interpretativa, como o presente, não pretende julgar o que é certo ou errado, o que é melhor ou pior, mas sim o que é peculiar, singular a determinados contextos organizacionais. Do mesmo modo, não há pretensão alguma de se afirmar que não há no setor público brasileiro qualquer condição de se encontrar, por meio de outras pesquisas acadêmicas, práticas e posturas gerenciais “neo-caboclas”, ou seja, mais próximas do que enseja o tipo ideal do “gerente orgânico”. Isso porque não se pretende que o perfil do “gerente caboclo” seja tomado como um estereótipo universalizante de todos aqueles que ocupam funções de gestão no setor público brasileiro, mas sim, como resultado de um estudo de caso, demonstrar a importância de se saber “ler” e interpretar distintas realidades e seus significados, oriundos das “subjetividades” de seus atores sociais. Daí que o “gerente caboclo” pode ser referência para outros estudos semelhantes, não como que para testar hipóteses de sua existência em organizações do setor público, mas sim como ponto de partida para interpretação de outras singularidades, tendo como pano de fundo os traços da rica e sincrética cultura brasileira. Assim, pode-se pensar na construção de processos de Reforma do Estado, bem como de organizações públicas mais “enraizadas” com os anseios de seus cidadãos. Eis o desafio! Referências bibliográficas ALBUQUERQUE, J. Credibilidade Internacional e Fatores Domésticos na Estabilização Política

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