cultura europeia

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CULTURA EUROPÉIA: UMA NOVA RETÓRICA DE EXCLUSÃO? Verena Stolcke “Por toda parte e, aliás, tanto em sua socieda de de origem quanto na sociedade que o acolhe, ele (o imigrante) obriga a repensar inteiramente a questão dos fundamentos legítimosda cidadania e da relação entre Estado e Nação, ou nacionalidade. Presença ausente, ele nos obriga a questionar não apenas as reações de rejeição que, tomando-se o Estado como expressão da Nação, se justificam ao pretender fundamentar a cidadania sobre a comunidade de língua e de cultura (se não de raça), mas também a ‘generosidade’ assimilacionista que, confiante em que o Estado, munido da educação, saberá produzir a Nação, poderia dissimular um chauvinismo do universal. “ P. BOURDIEU. (1991), “Introduction “, in A. SAYAD, L'immigration ou les paradoxes de 1'alterité. Paris, Eds. Universitaires, p. 9. "A cultura não pode ser hoje exclusivamente francesa, inglesa, alemã e nem sequer européia, mas plural, mestiça e bastarda, fruto do intercâmbio e da osmose, fecundada pelo contato com mulheres e homens pertencentes a horizontes distantes e diversos. " Juan GOYTISOLO, El País, 25 de. janeiro de 1993. A integração na Europa ocidental é um processo de duas faces. Enquanto os limites internos da Europa se tornam progressivamente mais permeáveis, as fronteiras externas são fechadas. Mecanismos legais mais rigorosos são criados para excluir aqueles que vêm a ser chamados de imigrantes extracomunitários, enquanto os partidos de direita ganham apoio eleitoral com o slogan "fora os estrangeiros". Existe uma expectativa de que as identidades nacionais européias possam dar lugar a uma identidade pan-européia, enquanto os não- europeus, em particular os do Sul mais pobre (e recentemente também os do Leste), que procuram abrigo no Norte mais rico, têm se tornado indesejáveis, estranhos desprezados, alienígenas. E os imigrantes extracomunitários que já estão "em nosso meio" são alvo de crescente hostilidade e violência, enquanto a direita alimenta os temores populares com uma retórica de exclusão que exalta a identidade nacional e a singularidade cultural. Enquanto isso, o antigo bloco oriental está imerso num sangrento processo de fragmentação política baseada na singularidade cultural e seus fragmentos buscam a autonomia política. Nos Bálcãs, os novos e antigos conflitos de poder estão na base de

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  • CULTURA EUROPIA: UMA NOVA RETRICA DE EXCLUSO?

    Verena Stolcke

    Por toda parte e, alis, tanto em sua socieda de de origem quanto na sociedade que

    o acolhe, ele (o imigrante) obriga a repensar inteiramente a questo dos fundamentos

    legtimosda cidadania e da relao entre Estado e Nao, ou nacionalidade. Presena

    ausente, ele nos obriga a questionar no apenas as reaes de rejeio que, tomando-se o

    Estado como expresso da Nao, se justificam ao pretender fundamentar a cidadania

    sobre a comunidade de lngua e de cultura (se no de raa), mas tambm a generosidade

    assimilacionista que, confiante em que o Estado, munido da educao, saber produzir a

    Nao, poderia dissimular um chauvinismo do universal. P. BOURDIEU. (1991),

    Introduction , in A. SAYAD, L'immigration ou les paradoxes de 1'alterit. Paris, Eds.

    Universitaires, p. 9.

    "A cultura no pode ser hoje exclusivamente francesa, inglesa, alem e nem sequer

    europia, mas plural, mestia e bastarda, fruto do intercmbio e da osmose, fecundada pelo

    contato com mulheres e homens pertencentes a horizontes distantes e diversos. " Juan

    GOYTISOLO, El Pas, 25 de. janeiro de 1993.

    A integrao na Europa ocidental um processo de duas faces. Enquanto os limites

    internos da Europa se tornam progressivamente mais permeveis, as fronteiras externas so

    fechadas. Mecanismos legais mais rigorosos so criados para excluir aqueles que vm a ser

    chamados de imigrantes extracomunitrios, enquanto os partidos de direita ganham apoio

    eleitoral com o slogan "fora os estrangeiros". Existe uma expectativa de que as identidades

    nacionais europias possam dar lugar a uma identidade pan-europia, enquanto os no-

    europeus, em particular os do Sul mais pobre (e recentemente tambm os do Leste), que

    procuram abrigo no Norte mais rico, tm se tornado indesejveis, estranhos desprezados,

    aliengenas. E os imigrantes extracomunitrios que j esto "em nosso meio" so alvo de

    crescente hostilidade e violncia, enquanto a direita alimenta os temores populares com

    uma retrica de excluso que exalta a identidade nacional e a singularidade cultural.

    Enquanto isso, o antigo bloco oriental est imerso num sangrento processo de

    fragmentao poltica baseada na singularidade cultural e seus fragmentos buscam a

    autonomia poltica. Nos Blcs, os novos e antigos conflitos de poder esto na base de

  • trgicos confrontos, mascarados por apelos a diferenas tnicas histricas, nas quais fica

    perigosamente obscuro o verdadeiro significado de etnia. Os esforos das comunidades

    tnicas do Leste europeu para se tornarem Estados, da mesma forma que o "problema" da

    imigrao no processo de construo do superestado europeu, so ambos expressos em um

    idioma poltico inspirado pela suposio de que as identidades tnica e cultural

    compartilhadas so os pr-requisitos para o acesso ao Estado e cidadania. Esse

    ressurgimento dos nacionalismos surpreende muitos de ns como um anacronismo do

    mundo moderno.

    A cultura e a identidade cultural, idias que pareciam uma obsesso peculiar apenas

    de antroplogos, tornaram-se amplamente difundidas nos ltimos amos. Alm disso, cada

    vez com mais freqncia, as manchetes dos jornais e os polticos invocam o termo

    xenofobia, aliado a racismo, para caracterizar a violncia contra os imigrantes

    extracomunitrios. Acredito que isso seja pelo menos uma indicao de que so bem pouco

    claros os fundamentos ideolgicos da disseminao do sentimento anti-imigrante. Em uma

    primeira tentativa de avaliar a extenso e o significado do crescimento da hostilidade anti-

    imigrante, o Parlamento Europeu de fato concluiu, em 1985, que "Um novo tipo de

    espectro assombra agora a poltica europia: a xenofobofilia, que descreve a xenofobia

    como um ressentimento ou sentimento latente, uma atitude que precede o fascismo ou o

    racismo e pode preparar o terreno para ambos, mas no atingida em si mesma pela

    competncia da lei e da preveno legal."(1) Conseqentemente, o termo foi incorporado,

    sem qualquer tentativa posterior de afastar sua ambigidade, nos debates do Parlamento

    Europeu. Foi essa inovao terminolgica que me fez pensar se no haveria algo novo e

    distinto para a retrica de excluso, na qual est expresso o sentimento antiimigrante da

    Europa Ocidental.

    Ao mesmo tempo, alguns cientistas sociais identificaram a emergncia de "um novo

    estilo de racismo".(2) Mas eles sugeriram, no obstante, que embora o discurso anti-

    imigrante da direita poltica parea formulado em uma linguagem tendente a evitar a idia

    de "raa", mesmo assim ele constitui uma espcie de racismo, um "racismo sem raa".(3)

    Nesta apresentao desejo porm discutir o fato de que um engano interpretar a

    retrica e a violncia anti-imigrante simplesmente como racismo disfarado. evidente que

    este no um simples debate acadmico, mas uma das polticas de reforma que precisamos

  • planejar. Quero sugerir que o discurso anti-imigrante da poltica de direita nos anos oitenta

    revela uma importante mudana conceitual, afastando-se do racismo tradicional em direo

    a um fundamentalismo cultural que se baseia em certos pressupostos que do apoio s

    modernas noes de cidadania, identidade nacional e estado-nao. A interpretao dessa

    mudana como uiva busca estratgica de respeitabilidade poltica por parte da direita, com

    vistas condenao do racismo pelos anti-racistas, no explica de fato a natureza especfica

    desse novo discurso. Tentarei responder a duas questes inter-relacionadas: que espcie de

    retrica de excluso essa e a razo dessa nova retrica.

    J no incio dos anos oitenta, Dummet identificava na Gr-Bretanha uma mudana

    nas justificativas para a rejeio e a discriminao de imigrantes, ao apontar a "tendncia a

    atribuir as tenses sociais presena de imigrantes com culturas estranhas, e no ao

    racismo".(4)

    Em geral, desde os anos setenta, o sentimento popular europeu vem manifestando

    uma crescente propenso a atribuir a culpa de todos os males scio-econmicos -

    desemprego, falta de moradia, aumento da delinqncia, deficincia dos servios sociais -

    aos imigrantes, simplesmente por sua presena, pois no possuem "nossos" valores

    culturais e morais.(5) A mdia e os defensores de uma interrupo na imigrao tm

    alimentado o antagonismo popular contra os imigrantes, inflacionando a magnitude

    quantitativa do "problema". A despeito da reconhecida necessidade do trabalho imigrante

    para compensar as to lastimadas conseqncias econmicas das baixas taxas de natalidade

    na Europa e do envelhecimento de sua populao, que ameaam o Estado de Bem-Estar,

    as aluses a um "dilvio imigratrio", "exploso emigratria", servem para intensificar

    difusos temores. Acrescente-se a isso a freqente explicao convencional do motivo pelo

    qual, em primeiro lugar, essas pessoas so compelidas a emigrar, isto , apresentando a

    "exploso populacional" do Terceiro Mundo como resultado de sua prpria imprevidncia.

    Em outras palavras, o "problema" no somos "ns", mas sim "eles". "Ns" somos a

    medida da boa vida que "eles" ameaam solapar. "Eles" so o bode expiatrio dos

    problemas scio-econmicos, embora o crescente desemprego e a crise de moradia no

    tenham sido obviamente causados pelos imigrantes. Essa linha de argumentao no

    apenas mascara as razes poltico-econmicas da recesso econmica e do crescimento da

    desigualdade entre Norte e Sul. Ela to persuasiva porque atrai e reflete a noo

    profundamente arraigada de que os estrangeiros, estranhos desvalidos, no esto

  • habilitados a partilhar dos recursos "nacionais", como por exemplo o trabalho,

    principalmente quando esses recursos esto, aparentemente, tornando-se escassos.

    Convenientemente, esquece-se que os imigrantes em geral realizam trabalhos recusados

    pelos nacionais. Se existe falta de trabalho, por que a intolerncia e a agressividade no se

    voltam contra os prprios concidados? Tal questo nunca levantada.

    Um argumento citado para justificar o ressentimento contra os imigrantes o de

    que, alm de tudo, "eles" so diferentes culturalmente, em vez de questionar qual a

    peculiaridade de "nossa" cultura que nos faz rejeit-los.

    No final dos anos sessenta, a direita j exaltava a "cultura britnica" e a

    "comunidade nacional", abstraindo categorias raciais e negando que a hostilidade contra as

    comunidades imigrantes tivesse alguma relao com o racismo. As pessoas naturalmente

    preferiam viver entre os de "sua espcie" do que em uma sociedade multicultural, atitude

    considerada como reao natural presena de pessoas de cultura e origem diferentes. Um

    dos mais ferrenhos defensores desse ponto de vista assim colocou: "A conscincia nacional

    o ltimo recurso para as lealdades incondicionais e a aceitao de deveres e

    responsabilidades, com base na identificao pessoal com a comunidade nacional, que

    supe deveres cvicos e patriotismo."(6) Um grande nmero de imigrantes destruiria a

    "homogeneidade da nao". Uma sociedade multirracial (sic) desencadearia inevitavelmente

    um conflito social, colocando em risco os valores e a cultura da maioria branca.(7) No final

    dos anos setenta, o discurso de excluso do partido tri era tambm inspirado em

    expresses de temor pela integridade da comunidade, modo de vida, tradio e lealdade

    nacionais ameaados pelos imigrantes.(8) Um exemplo desse esprito nacionalista a to

    citada frase de Margaret Thatcher em 1978: "O povo est realmente um tanto temeroso de

    que este pas possa ser inundado por pessoas de uma cultura diferente. E, vocs sabem, o

    carter britnico tem feito tanto pela democracia, pela lei, e fez tanto pelo mundo todo,

    que, se houver o temor de que possa ser submergido, o povo reagir de maneira hostil aos

    que chegam."(9)

    O maior contingente de imigrantes que chegou Gr-Bretanha no ps-guerra vinha

    das colnias e, como tal, gozava do status de sdito britnico. Um dos principais benefcios

    do status de sdito britnico consistia em livrar-se do controle de imigrao.(l0) No

    entanto, o Commonwealth Immigrants Act de 1962 transformou em imigrantes os

  • cidados da Comunidade Britnica que no fossem brancos, aplicando-lhes controles

    especiais de imigrao. O British Nationality Act aprovado pelo governo conservador em

    1983 restringiu ainda mais o acesso cidadania britnica. Dizia que devem tornar-se

    cidados britnicos aqueles cidados do Reino Unido e das colnias que possurem

    estreitos vnculos com o Reino Unido. De maneira geral, isso inclui as pessoas nascidas,

    adotadas, naturalizadas ou registradas no Reino Unido, ou ento cujos pais ou avs

    possuem tais qualificaes.(11) Essa lei acabou com a separao entre cidadania e lei de

    imigrao, concluindo o processo de "alienao" dos imigrantes, ao convert-los

    formalmente em estrangeiros. Ficou fixado em lei o apelo da direita para preservar das

    culturas estrangeiras a "nao" britnica, com seus valores e seu estilo de vida

    compartilhados. Aqueles que vinham sendo hostilizados como "sditos negros" passaram a

    ser excludos como "aliengenas culturais".(12)

    certo que a entrada e a instalao de imigrantes extracomunitrios na Europa

    levanta uma questo acerca do que constitui o moderno estado-nao e o que se concebe

    como pr-requisito para o acesso cidadania. Diferenas de tradio em relao a polticas

    nacionais, como ocorre por exemplo entre Gr-Bretanha e Frana, moldaram. diferentes

    experincias de imigrao, bem como distintas polticas e atitudes em relao aos

    imigrantes. No entanto, nos anos oitenta j possvel detectar uma crescente confluncia

    entre os dois pases quanto retrica de excluso da direita. Voltaremos a esse assunto.

    Para a direita nacionalista britnica, o problema estava em conter a ameaa que o

    novo afluxo de sditos com culturas aliengenas parecia apresentar prpria integridade da

    "nao". A soluo foi transform-los legalmente em estrangeiros. Na Frana, nos anos

    oitenta, o principal problema poltico residia em lidar com a extenso dos direitos polticos

    e sociais aos imigrantes "no meio deles", como estrangeiros culturalmente diferentes. Os

    imigrantes na Frana, com exceo daqueles provenientes das Antilhas antes dos anos

    setenta, geralmente eram e ainda so estrangeiros, no importando que sejam originrios de

    ex-colnias. As polticas francesas de cidadania e de imigrao j eram intimamente ligadas

    desde o sculo XIX.(13) Dentro da Frana, a separao entre nacionais e imigrantes, vistos

    como estrangeiros, j estava de fato claramente delineada na primeira verdadeira Lei de

    Nacionalidade, de 1983. No caso da Frana, tem sido identificada uma mudana ideolgica

    na retrica de excluso por parte da direita em elaborao desde meados dos anos

    setenta.(14) A Nova Direita na Frana comeou por orquestrar sua ofensiva antiimigrante

  • assumindo o que Taguieff chama de "um racismo diferencial", uma doutrina que exalta a

    diferena cultural irredutvel e essencial das comunidades de imigrantes no-europeus, cuja

    presena condenada por ameaar a identidade nacional original do pas "hospedeiro". Um

    elemento essencial dessa retrica de excluso o repdio ao "mtissage culturel ", em

    benefcio da preservao incondicional de sua prpria pretensa identidade biocultural

    original. Em contraste com a expresso anterior, "racismo inigualitrio" (de Taguieff), e em

    lugar de inferiorizar o "outro", exalta-se a absoluta e irredutvel diferena do "eu", a

    incomensurabilidade de diferentes identidades culturais. Um conceito chave dessa nova

    doutrina a noo de "enracinement" (enraizamento). Para preservar tanto a identidade

    francesa quanto a dos imigrantes em sua diversidade, estes deveriam permanecer em seus

    pases de origem, ou retornar para eles. Cada vez mais, a identidade coletiva passou a ser

    definida em termos de etnia, cultura, herana, tradio, memria e diferenas, a despeito de

    referncias ocasionais a "sangue" e "raa". Conforme argumentou Taguieff, o "racismo

    diferencial" constitui uma estratgia estabelecida pela Nova Direita, para mascarar o que se

    tornou um "racismo clandestino".(15)

    Tanto na Frana quanto na Gr-Bretanha existe, com efeito, uma tendncia a

    atribuir essa nova retrica de excluso a uma espcie de dialtica poltico-ideolgica entre a

    condenao ao racismo pelos anti-racistas e as tentativas da direita de disfarar os subtons

    racistas de seus programas anti-imigrantes.(16) Embora expressa em um idioma poltico

    diferente, essa nova retrica de excluso tende, no obstante, a ser interpretada como

    racista.

    Por outro lado, eu gostaria de sugerir que o racismo tradicional e a nova retrica de

    excluso, uma espcie de fundamentalismo cultural de direita, constituem duas ideologias

    distintas, tanto poltica quanto conceitualmente. A diferena entre elas reside na maneira

    como aqueles que so seu alvo so conceituados em termos scio-polticos, ou seja: se so

    concebidos como membros naturalmente inferiores ou como estranhos, aliengenas para a

    nao (polity), seja esta um Estado, um Imprio ou uma Comunidade de Naes. O que

    distingue o racismo dessa nova espcie de fundamentalismo cultural de direita a maneira

    pela qual essas doutrinas concebem tais supostos causadores de conflitos scio-polticos. O

    fundamentalismo cultural justifica a excluso de estrangeiros, estranhos que supostamente

    ameaam a identidade e a unidade culturais da nao; o racismo geralmente tem servido

    para legitimar a inferioridade scio-econmica dos desprivilegiados, com o fim de desarm-

  • los politicamente. Ambas as doutrinas constituem temas ideolgicos que "naturalizam" e,

    dessa forma, neutralizam separaes scio-polticas especficas, cujas razes reais so

    poltico-econmicas, mas fazem isso de maneiras conceitualmente diferentes. Nos dois

    casos, "igualdade" e "diferena" tendem a ser conceitos contrapostos no discurso poltico,

    porm a "diferena" evocada no a mesma, nem o mesmo seu significado.

    Antes de prosseguir, eu gostaria de observar que no estou afirmando que existe

    um claro divisor entre essas ideologias, nem que elas so sempre expressas necessariamente

    de maneira pura. Que a nova retrica de excluso contenha por vezes certas referncias a

    "raa" no invalida sua distino. O racismo uma ideologia de menosprezo muito gasta,

    usada para justificar desqualificaes scio-polticas, e pode contaminar novas. construes

    conceituais de excluso essencialista. Da mesma forma, sinto que a nova retrica de

    excluso da direita no um mero culturalismo biolgico.(17) Existe algo genuinamente

    diferente na estrutura conceitual dessa nova doutrina que tem a ver com o paradoxal

    ressurgimento, em um mundo economicamente globalizado, de um sentido de

    exclusivismo nacional que precisamos compreender para saber o que fazer a respeito.

    Conforme observei no incio, desde os anos setenta um novo argumento comeou

    a permear a linguagem poltica e popular sobre a imigrao extracomunitria. Os

    defensores de um basta imigrao argumentavam que simplesmente "natural" que as

    pessoas com culturas estranhas em "nosso" meio provoquem animosidade e ressentimento

    entre os nacionais. Quase sem refletir, a mdia e os polticos escolheram o termo xenofobia

    para caracterizar esse sentimento antiimigrante, noo esta que tomou conta da imaginao

    europia.(18) Literalmente, xenofobia significa "hostilidade contra estranhos e contra tudo

    o que estrangeiro".(19) Geralmente, a raiz dessa atitude no especificada, ou

    compreendida como se as pessoas tivessem uma propenso "natural" paia no gostar, ou

    para rejeitar estranhos que paream diferentes.(20)

    Realmente, as aluses xenofobia como uma atitude consubstancial com a

    humanidade parece estar rapidamente se tornando a base ideolgica desse novo

    fundamentalismo cultural. O fundamentalismo cultural contemporneo baseia-se em duas

    suposies: a de que culturas diferentes so incomparveis e a de que os homens so

    inerentemente etnocntricos, tornando inevitavelmente hostis as relaes entre culturas.

    Nesse sentido, a idia de xenofobia , para o fundamentalismo cultural, o que o conceito

  • biossocial de "raa" para o racismo, ou seja, a constante naturalista que d um valor real e

    legitima as respectivas ideologias.

    Uma comparao mais sistemtica entre o racismo tradicional e o que decidimos

    chamar fundamentalismo cultural pode ajudar a tornar mais clara a distino entre essas

    doutrinas alternativas de excluso.(21) As duas tm em comum o fato de chamarem a

    ateno para a contradio entre a noo universalista moderna de que todos os homens

    so naturalmente iguais e livres, e as mltiplas formas de discriminao e excluso, mas

    fazem isso de maneira diferente. As duas derivam sua fora argumentativa do mesmo

    subterfgio ideolgico, ou seja, a apresentao daquilo que resulta de conflitos especficos

    de interesse poltico-econmico - o alegado perigo apresentado por imigrantes

    extracomunitrios para a unidade "nacional" e a desigualdade scio-econmica - como

    fatos naturais e portanto incontestveis, j que vm "naturalmente".

    O moderno racismo ocidental pretende que a incapacidade inata daqueles que esto

    em nvel scio-econmico inferior tem razes em sua "raa". As marcas evocadas para

    identificar uma "raa" podem ser fenotpicas ou inventadas. O racismo tem servido para

    justificar a desqualificao scio-poltica, a explorao e a discriminao econmica de

    certos grupos ou indivduos de uma nao (polity) (seja um moderno Estadonao, um

    Imprio, ou uma Comunidade de Naes, ao atribuir-lhes certos defeitos sociais,

    intelectuais ou morais supostamente causados por sua herana "racial" que, sendo inatos,

    so inevitveis. O racismo opera assim com um critrio particularista de classificao, isto

    , a "raa", que supostamente divide a humanidade em grupos basicamente distintos,

    ordenados em uma hierarquia, sendo que um deles reivindica sua superioridade exclusiva.

    Nesse sentido, um sistema de desclassificao que categrico. Na doutrina racista, a

    constante naturalista "raa", que desafia a reivindicao de uma humanidade uniforme. A

    "raa" erigida em causa natural e suficiente para a inferioridade dos "outros". Dessa

    forma, a dominao e a desigualdade sciopoltica so atribudas ao prprio critrio de

    diferenciao, ou seja, falta de qualidade que existe nos genes "deles" e no a uma

    propenso genrica discriminao arraigada na natureza humana. O racismo como

    doutrina de classificao assimtrica provoca contraconceitos que aviltam o "outro" e o

    "outro" no pode aviltar o "eu". O reconhecimento mtuo negado precisamente porque,

    sendo relativa, a deficincia "racial" no partilhada pelo "eu". E este o ponto. Ao

  • atribuir status e tratamento desiguais s limitaes naturais inerentes s prprias vtimas,

    essa doutrina nega o carter ideolgico do prprio racismo.

    Isso certamente suscita a importante questo da idia de uni status social

    determinado pela natureza e no pelo contrato, em uma sociedade moderna que, por outro

    lado, concebida como composta de indivduos autodeterminados, nascidos iguais e livres.

    Com efeito, pode-se demonstrar que o racismo moderno uma ideologia de menosprezo,

    para conciliar o inconcilivel, ou seja, um etos meritocrtico liberal de oportunidades iguais

    para todos no mercado e a desigualdade scio-econmica que parte e parcela do

    capitalismo liberal. Os sistemas de desigualdade tm sido conceituados de distintas

    maneiras em diferentes momentos da histria. Os primeiros choques coloniais modernos

    com os "primitivos" atormentaram intensamente as mentes europias. No incio, no

    entanto, no foi a diferena fenotpica "deles" que obcecou a imaginao dos europeus. Ao

    contrrio, era sua diversidade cultural e portanto moral, que desafiava a hegemonia crist.

    Se Deus criou o homem sua imagem, como poderiam existir humanos que no eram

    cristos? O racismo cientfico do sculo XIX foi uma nova maneira de justificar a

    dominao e a desigualdade, inspirado pela busca de leis naturais que explicassem ao

    mesmo tempo a ordem na natureza e na sociedade. Surpreendente no debate do sculo

    XIX acerca do lugar dos humanos na natureza a tenso entre a f humana no livre-

    arbtrio desligado de qualquer restrio natural a seu esforo de agente livre para dominar a

    natureza e a tendncia a naturalizar o homem social. Assim como a eugenia e a

    criminologia refletem o darwinismo social, o racismo cientfico fornece .ima legitimidade

    pseudo-cientfica para consolidar a desigualdade de classes. Seus primeiros alvos foram as

    perigosas classes laboriosas nacionais.(22) Se o indivduo autodeterminado, por uma

    persistente inferioridade, incapaz de' aproveitar a maioria das oportunidades que a

    sociedade pretende oferecer, isso ento deve resultar de alguma deficincia essencial

    inerente. Ou seja: a pessoa, ou melhor, seu legado natural particular - seja ele um talento ou

    inteligncia de origem racial, gentica, sexual ou cultural - de fato responsvel por isso, e

    no a ordem scio-econmica dominante. Em uma sociedade altamente competitiva, essa

    base lgica funciona como poderoso incentivo para o esforo individual, e a mais

    eficiente para desarmar descontentamentos sociais. Mais que um resduo do passado

    colonial ou um maquiavlico estratagema para dividir as classes trabalhadoras, ela tem

    prestado um bom servio poltico nesse sentido.

  • No me compreendam mal. Embora eu esteja afirmando que o racismo

    compreendido nesses termos faz parte do legado ideolgico da moderna sociedade de

    classes, apenas em ocasies de polarizao poltico-econmica que ele se torna

    agressivamente aberto.

    A nova retrica de excluso anti-imigrante - o fundamentalismo cultural - assume

    ao contrrio uma srie de contraconceitos simtricos, como o do estrangeiro, o aliengena,

    em oposio ao nacional, ao cidado, entendidos como membros de comunidades culturais

    distintas e irredutveis. Os estrangeiros so concebidos como culturalmente distintos dos

    nacionais, que se presume compartilharem uma identidade cultural orgnica dentro do

    corpo poltico. A origem do conflito social no reside na incapacidade dos "outros", mas

    no fato de que as relaes entre membros de culturas diferentes so vistas como hostis e

    mutuamente destrutivas "por natureza", porque a xenofobia faz parte da natureza humana.

    Portanto, culturas diferentes devem ser mantidas separadas para seu prprio bem.

    Esse novo fundamentalismo cultural baseia-se na viso da humanidade como

    formada por uma multiplicidade de culturas distintas e da cultura como algo esttico,

    compacto, imutvel e homogneo. A noo totalizadora de que todos os povos so

    portadores de cultura negada, no entanto, pela idia particularizante de que culturas

    diferentes no so comparveis e pela reivindicao de exclusividade e singularidade

    cultural. Esta ltima reivindicao justificada por um trao ao qual igualmente se atribui o

    carter de universal: a propenso natural das pessoas a no gostar de estranhos. Uma

    espcie de particularismo cultural essencial deduzido de um trao humano universal, que

    a xenofobia. O fundamentalismo cultural inventa e recorre a uma nova noo da natureza

    humana, o Homo xenofobicus. Em outras palavras, no moderno etos liberal fica

    ideologicamente superada a aparente contradio entre uma humanidade compartilhada,

    que envolve uma idia generalizadora, sem excluir qualquer ser humano, e o particularismo

    cultural, que se traduz em termos nacionais. Um "outro" cultural, o imigrante como

    estrangeiro, aliengena e inimigo em potencial, ameaador de "nossa" integridade e

    especificidade cultural e portanto nacional, explicado fora dos traos compartilhados pelo

    "eu". Em mais uma distoro ideolgica, a identidade e a propriedade nacionais

    interpretadas como particularidade cultural, tornam-se assim uma barreira intransponvel

    para aquilo que, em princpio, surge naturalmente entre os humanos, isto , a comunicao.

  • Em lugar de ordenar hierarquicamente as distintas culturas, o fundamentalismo

    cultural as separa no espao. Cada cultura em seu lugar! O fato de que os estados-naes

    no so de maneira alguma culturalmente uniformes em si mesmos convenientemente

    negligenciado, pois as comunidades polticas localizadas so concebidas como

    homogneas.(23) Por um lado, a suposta propenso xenofbica do homem desafia o

    pretenso arraigamento territorial de comunidades culturais, desde que elas estejam dirigidas

    contra estrangeiros "em nosso meio"; por outro, dirigindo-se contra estrangeiros sem

    razes, elas re-territorializam as culturas.

    O fundamentalismo cultural admite uma srie de contraconceitos simtricos, como

    o de estrangeiro, aliengena, como oposio ao nacional, ao cidado, concebidos no como

    indivduos distintos, mas como membros de comunidades culturais irredutveis. Por serem

    simtricas, essas categorias so logicamente reversveis: todo nacional estrangeiro em

    outra nao, em um mundo de estados-naes. Esse par conceitual formal - nacionais

    contra estrangeiros - torna-se carregado de um sentido poltico especfico. Ao manipular

    ideologicamente o ambguo elo entre pertencimento nacional e identidade cultural, a noo

    de xenofobia infunde um contedo essencial e especfico relao entre as duas categorias.

    A suposta propenso dos nacionais a no gostar de estranhos, ou seja, estrangeiros, no

    fornece apenas um argumento antecipado para o apelo de excluso dos imigrantes vindos

    do Sul mais pobre. Como essa propenso compartilhada pelos estrangeiros, torna-se

    tambm legtimo temer que estes ltimos, com sua deslealdade, ameacem a comunidade

    nacional. Ao conceituar o "problema" colocado pela imigrao extracomunitria em termos

    de evidente diferena cultural e conseqente incompatibilidade, as causas fundamentais da

    imigrao, isto , as agravantes da desigualdade entre Norte e Sul, ficam explicadas

    satisfatoriamente e fica tambm justificada a hostilidade contra os imigrantes.

    Assim, pois, o fundamentalismo cultural da direita uma ideologia de excluso

    coletiva, baseada na idia do "outro" como estrangeiro ao corpo poltico. No ncleo dessa

    retrica est a idia de que a uniformidade cultural o pr-requisito fundamental para o

    acesso cidadania, e que a igualdade poltica formal pressupe identidade cultural. Os

    direitistas que se opem imigrao no objetam apenas a garantir aos imigrantes os

    direitos sociais e polticos implcitos na cidadania, em terrenos econmicos pragmticos. O

    "problema" da imigrao explicado como ameaa poltica integridade e identidade

    nacionais, com base na diversidade cultural dos imigrantes, porque o estado-nao

  • concebido como fundamentado em uma comunidade distinta, que com seus vnculos

    mobiliza um sentimento compartilhado de pertencimento e uma lealdade radicada em

    lngua, tradies culturais e crenas comuns. Em um contexto de recesso e retrao

    econmica nacional, caem em terreno frtil os apelos polticos da direita s lealdades

    primordiais (seja nao ou famlia).

    Os imigrantes so vistos como se ameaassem o desencadeamento de uma "crise de

    cidadania"(24), porque a cidadania, a nacionalidade e a comunidade cultural esto

    misturadas ideologicamente.(25) a superposio de nao, cultura e estado que d aos

    imigrantes, que so tambm estrangeiros, uma distino cultural com significado simblico

    e poltico e no sua presena nem sua disparidade cultural em si. claro que se pode

    objetar que nem todos os imigrantes e estrangeiros so tratados com animosidade e

    desprezo. bvio que isso verdade. Mas ento, igualdade e diferena no so categorias

    absolutas. As suposies poltico-ideolgicas sobre as quais se constri o moderno estado-

    nao produzem a matria-prima a partir da qual o fundamentalismo cultural

    interpretado. Mas so as relaes especficas de dominao e marginalizao social s quais

    os imigrantes extracomunitrios esto submetidos que explicam porque "eles", e no por

    exemplo os norte-americanos, so alvo dessa retrica de excluso que, por outro lado,

    projetada como disfarce.

    Como observei acima, talvez existam subtons racistas na hostilidade 'e violncia

    contra os extracomunitrios. Gostaria de argumentar no entanto que, em casos de

    referncia mista a cultura e "raa", o fentipo tende ento a atuar como marca de

    identificao da origem do imigrante, que de disparidade cultural e nacional. O racismo

    tradicional, ao contrrio, atribui a desqualificao scio-cultural desigualdade racial.

    Para concluir, tentarei agora apenas esboar uma explicao para o potencial

    paradoxo, no moderno estado-nao, de traduzir o pertencimento nacional em algum tipo

    de identidade essencial. "Regular o movimento das pessoas atravs das fronteiras nacionais

    uma atividade quase essencial do estado moderno"(26); porm isso pode ser feito de

    vrias maneiras. Diferenas no processo de formao do Estado, nos conceitos de

    nacionalidade e cidadania e no status poltico do imigrante, como entre a Frana e a Gr-

    Bretanha, podem ser mostradas como tendo resultado em distintas maneiras de lidar com o

    "problema" da imigrao. Com freqncia tem-se visto o contraste entre o "modelo

  • republicano de integrao" francs e o "modelo tnico de incorporao" anglo-saxnico

    para o imigrante.

    At meados dos anos oitenta, o movimento anti-racista na Frana, aliado a

    organizaes de imigrantes, defendeu um modelo multiculturalista de integrao, baseado

    no respeito diversidade cultural dos imigrantes. Depois disso, a opinio foi mudando,

    reivindicando um retorno ao antigo tema republicano de integrao, de acordo com o qual

    a qualidade de membro de uma nao no se baseia em uma identidade, mas na cidadania,

    que consiste na adeso individual a certos valores universais mnimos, porm

    precisos.(27) O "modle rpublicain dintgration ", que condiciona a cidadania a valores

    culturais compartilhados, tornou-se a alternativa poltica progressiva ao fundamentalismo

    cultural de excluso da extrema direita. Em 1991, o governo socialista criou um Ministrio

    dos Assuntos Sociais e de Integrao e uma Secretaria de Estado para a Integrao,

    destinados a promover a integrao dos imigrantes nesse sentido.(28)

    A discusso e a experincia britnicas sobre imigrao desenvolveram-se de maneira

    bem diferente. A posio liberal defendia a integrao com a devida tolerncia para a

    diversidade cultural e tratamento diferencial de acordo com as necessidades particulares

    daquelas que vieram a ser conhecidas como "minorias tnicas". A igualdade legal formal

    no foi julgada incompatvel com os valores e prticas culturais dos imigrantes enquanto

    no infringissem os direitos humanos bsicos. A educao multicultural foi um instrumento

    chave para a integrao liberal. At o finai dos anos setenta, o assimilacionismo de direita

    constituiu uma opinio minoritria. Depois disso, o governo tri empunhou a bandeira da

    imigrao controlada; converteu os imigrantes das ex-colnias em aliengenas e exigiu a

    assimilao das comunidades de imigrantes em "nosso meio", para preservar a nao

    britnica com seus valores compartilhados e seu estilo de vida.(29) Nos anos oitenta, o

    sentimento e a poltica anti-imigrante eram igualmente formulados na linguagem do

    fundamentalismo cultural.

    A tolerncia para com a diversidade cultural fez parte da histria da Gr-Bretanha

    enquanto estado multicultural at os anos oitenta, quando comeou a prevalecer uma

    reinterpretao dessa histria centrada na Inglaterra.(30) A noo britnica de sdito,

    baseada no nascimento em solo britnico, estabelecendo um vnculo vertical individual de

    lealdade Coroa e ao Parlamento, permitia que os imigrantes das colnias entrassem no

  • pas como sditos britnicos, apesar de suas diferenas fenotpicas e/ou culturais, e a

    despeito das objees racistas j ento levantadas.(31) A tradio legal britnica e a falta de

    um cdigo dos direitos de cidadania deram espao jurdico para as necessidades e os

    valores culturais dos sditos imigrantes. Isso no significa, no entanto, que a experincia de

    imigrao britnica tenha sido isenta de conflito social. Os britnicos talvez tenham sido

    culturalmente tolerantes. No entanto, os sentimentos e as agresses anti-imigrantes eram

    racistas e as controvrsias sobre imigrao at o final dos anos setenta eram expressas em

    termos racistas.(32) O preconceito e a discriminao eram ideologicamente justificados em

    termos clssicos ou liberais individualistas e racistas, at que os imigrantes vindos das ex-

    colnias fossem convertidos em estranhos culturalmente diferentes. Assim, at ento as

    providncias legais de combate discriminao eram tomadas para assegurar aos sditos

    das colnias oportunidades iguais, independentemente de sua "raa". O fundamentalismo

    cultural britnico, assim como a nova retrica conservadora de excluso, ao contrrio,

    sugerem paradoxalmente que, enquanto a Europa est evoluindo para um governo (polity)

    supranacional, um Estado-nao continental parece estar emergindo das cinzas do Imprio

    Britnico, racista porm multicultural. Na Frana, ao contrrio, o debate sobre o

    "problema" da imigrao tem sido impregnado de uma crescente incerteza acerca de como

    andar na corda bamba da "integrao dos estrangeiros",(33) uma ambivalncia que foi

    acentuada pelo incitamento da extrema direita ao fundamentalismocultural. No entanto, as

    razes para as paixes desencadeadas pela controvrsia sobre o "direito diferena" dos

    estrangeiros imigrantes no vai alm do clima poltico polarizado. Expressam a tenso

    inerente ao conceito republicano francs, tipicamente universalista, de estado-nao. Em

    um mundo de estados-naes, o esprito cosmopolita universalista fundacional foi muito

    cedo erodido pelo dilema de como construir um estado-nao dotado de uma cidadania

    distinta e limitada. No processo de centralizao poltica, a idia apoderou-se de uma nao

    culturalmente uniforme como sendo a base da repblica francesa.

    Os defensores de uma "nao" baseada no contrato de cidados soberanos

    geralmente acrescentam a clebre frase de Renan: "A existncia de uma nao um

    plebiscito cotidiano." Mas eles tendem a omitir o argumento que conduz a ela, segundo o

    qual a "nao uma alma, um princpio espiritual. Duas coisas, que na realidade so apenas

    uma, constituem essa alma, esse princpio espiritual. Uma no passado e outra no presente.

    Uma a posse compartilhada de uma rica herana de memrias; a outra o consentimento

    presente, o desejo de viver junto, a vontade de continuar mantendo inteira a herana que

  • foi recebida. (...) A nao, bem como o indivduo, a realizao de um extenso passado de

    esforos, de sacrifcios e de devoo. O culto aos ancestrais , dentre todos, o mais

    legtimo; foram os ancestrais que fizeram de ns o que somos (...)".(34) A dificuldade de

    Renan para definir a "nao" em termos puramente contratuais uma ilustrao do

    potencial de uma interpretao culturalmente essencialista da repblica.

    A nova retrica de excluso da direita francesa estabelece inequivocamente a

    cidadania e a nacionalidade em uma herana cultural compartilhada. Mas o "modle

    republicam d'intgration" tambm permeado por um universalismo chauvinista que

    concebe a cultura compartilhada como pr-requisito da cidadania.

    Em contraste com o racismo tradicional, o fundamentalismo cultural constitui

    ento, na verdade, uma nova retrica de excluso. Mas a matria-prima da qual essa retrica

    retira sua fora argumentativa, ou seja, a noo ambivalente do moderno estado-nao, no

    to original assim.

    A suposio de que a cultura e a identidade nacional se fundamentam em uma

    herana histrica nica, compacta e imutvel,(35) um poderoso ingrediente disso. No

    entanto, o fato que os povos sempre estiveram em mudana e as culturas provaram ser

    fluidas e flexveis. As culturas tornam-se entricheiradas e exclusivas apenas quando existe

    dominao e conflito. A diversidade cultural, ao contrrio, florescer e ser criativa sem

    trazer desvantagens onde a sociedade for democrtica e igualitria o suficiente para permitir

    que as pessoas resistam discriminao (enquanto imigrantes, estrangeiros, mulheres,

    negros) e desenvolvam diferenas, sem colocar em risco a si mesmos e sua solidariedade.

    Isso parece uma impossibilidade dentro dos limites do moderno estado-nao. Juan

    Goytisolo, autor espanhol, recentemente descreveu muito bem aquilo que deveramos

    almejar, para um futuro mais humano e generoso: "Hoje em dia, a cultura no pode ser

    exclusivamente francesa, inglesa, alem e nem sequer europia, mas plural, mestia e

    bastarda, fruto do intercmbio e da osmose, fecundada pelo contato e pelo dilogo com

    mulheres e homens pertencentes a horizontes distantes e diversos."(36)

    Documento preparado para o congresso sobre "Etnia, nacionalismo e cultura na

    Europa ocidental", Universidade de Amsterd, 24 a 27 de fevereiro de 1993.

  • Notas

    1.Parlamento Europeu. Relatrio compilado para subsidiar o Comit de Inqurito sobre o

    Ascenso do Fascismo e do Racismo na Europa, a partir das constataes do Comit de

    Inqurito. Dimitrios EVREGENIS, PE DOC A 2-160/85, Bruxelas, 25 de novembro de

    1985, p. 60.

    2. Martin BARKER. (1981), The New Racism, Junction Books, Londres; Martin

    BARKER. (1984), "Racism: the New Heritors". in Radical Philosophy (21); Ann DUMMET

    (1982). Pierre-Andr TAGUIEFF. (1987), La force du prjug. Essai sur le racisme et des doubles,

    Editions La Dcouverte, Paris.

    3. Etienne BALIBAR (1991) "Existe um neoracismo?", in Etienne BALIBAR & Immanuel

    WALERSTEIN (eds.), Raa, Nacin y Clase. Iepala, Madri.

    4. Ann DUMMET, 1982.

    5. Cf. Pienre-Andr TAGUIEFF, diretor (1991). Face au Racisme, vol. I, Les moyens d'agir.

    Editions La Dcouverte/Essais. Paris, para uma anlise e um desafio factual detalhado a

    essas imputaes, no caso da Frana.

    6. Alfred SHERMAN, citado por Martin BARKER (1981), op. cit.

    7. Martin BARKER & Ann BEEZER: The language of racism - an examination of Lord

    Scarman's Report on the Brixton riots. International Socialism, 2:18,1983, p.125. Barker

    repete a linha de argumentao do que ele chamou novo racismo: Os imigrantes

    ameaam inundar-nos com suas culturas estranhas; e se forem admitidos em grande

    nmero, destruiro a homogeneidade da nao. No cerne desse novo racismo est a

    noo de cultura e tradio. Uma comunidade sua cultura, seu modo de vida e suas

    tradies. Romp-los despedaar a comunidade. Eles so no-racionais (e certamente

    instintivos, em sua verso mais madura), sendo construdos em torno de sentimentos de

    lealdade e de pertencimento.

    8. Martin BARKER. (1984), op. cit.

  • 9. Citado por Peter FITZPATRICK, "Racism and the Innocence of Law".

    10. J.M. EVANS, 1983. Immigration Law Sweet and Maxwell, Londres, p. 46.

    11. British Nationality Law, 1980, aprovada em 1983, p. 3.

    12. Realmente, em 1969, Enoc Powell referiu-se aos imigrantes da Comunidade Britnica

    como aliengenas. Ann DUMMET e Andrew NICOLS, "Subjects, Citizens, Aliens and

    Others", Nationality and Immigration Law, Weidenfeld and Nicolson, Londres, 1990, p. 196.

    J.M. EVANS. (1983), op. cit., p. 18.

    13. Grard NORIEL. (1988). Le creuset franais. Histoire de 1'immigration, XIX e-XXe sicles,

    Editions du Seuil, Paris.

    14. Pierre-Andr TAGUIEFF (1987) . La force du prjug. Essai sur le racism et ses doubles.

    ditions La Dcouverte, Paris. Cf. tambm Ettienne BALIBAR (1991), op. cit.

    15. Pierre-Andr TAGUIEFF (1987), op. cit., pp. 330-337.

    16. Martin BARKER (1981), op. cit; Martin BARKER (1984), op. cit.; Andr TAGUiEFF

    (1987), op. cit.

    17. E. LAWRENCE (1982), "Just plain common sense: the 'roots' of racism", Centre for

    Contemporary Cultural Studies, University of Birmingham, in: The Empire Strikes Back. Race

    and Racism in 70s Britain: Hutchinson, Londres. p. 83.

    18. Alguns estudiosos perceberam as crescentes referncias xenofobia, porm

    identificaram o fenmeno como uma forma de racismo. No caso francs, Taguieff, por

    exemplo, ponderou que em ltima instncia a atitude xenofbica "constitui um racismo

    latente, um racismo nascente", concebido pela Nova Direita como resposta acusao de

    racismo feita pelos anti-racistas. Pierre-Andr TAGUIEFF (1987), op. cit., pg.

    337. Outros autores identificaram as declaraes xenofbicas como um outro nvel de

    discurso racista. Gavin I. LANGMUIR (1978), "Quest-ce que les Juifs signifiaient pour Ia

    socit mdivale?", in Lon POLIAKOV (ed.), Ni Juif ni Grec: entretiens sur le

  • racisme. Mouton, Paris, p.182; Christian DELACAMPAGNE (1983), L'invention du racisme.

    Anti yuit et Moyen Age. Fayard, Paris, pp. 42-43, citado por Taguieff (1987), op. cit., pp. 79-

    80 e 509.

    19. Cf. Le Petit Roberti, 1967.

    20. Como Bjin questiona em sua critica do anti-racismo: "Por que esse etnocentrismo

    natural e at saudvel gerou na Europa, em anos recentes, expresses de exasperao? So

    os prprios anti-racistas que nos fornecem uma resposta adequada e at evidente para essa

    questo, quando salientam que os polticos supostamente "racistas" vem crescer suas

    audincias em situaes e em regies nas quais existe um brutal, importante - e, em caso de

    apatia do corps social - irreversvel afluxo de imigrantes de origem extra-europia. Eles assim

    admitem, presumo que involuntariamente, que essa exasperao uma reao de defesa de

    uma comunidade que sente sua identidade ameaada, uma reao que apresenta analogias

    com a resistncia que a ocupao por foras armadas estrangeiras desencadeou no passado.

    Essa rejeio pode at, se as tenses internacionais se intensificarem, tornar-se mais

    profundas quando os imigrantes se concentram, modificando mais irreversivelmente a

    identidade de um pas do que as foras de ocupao, que no tm a inteno

    de estabelecer-se, nem de se reproduzir." Andr BJIN (1986), "Rflexions sur

    1'antiracisme", in Andr B1IN e lulien FREUND (editores), Racisme, antiracismes. Librairie

    des Mridiens, Paris, p. 306. O deputado do RPR, Michel HANNOUN, no Relatrio sobre

    Racismo e Discriminao, declara similarmente que todas comunidades so

    xenofbicas. "Quels discours sur 1'immigration?", in Plein Droit, revista do GISTI, Group

    d'Information et de Soutien des Travailleurs Immigrs (3), abril de 1988, p. 5. Mais do que

    surpreendente a recente declarao no mesmo sentido feita por Cohn-Bendit: "A

    indignao quanto xenofobia (Fremdenhass), que sugere como antdoto uma poltica de

    fronteiras abertas, de certa forma falsa e perigosa. Pois, se a histria nos ensinou alguma

    coisa, que seja esta: era nenhuma sociedade o intercurso civil com estrangeiros foi fecundo.

    H muitas indicaes de que a reserva em relao ao estrangeiro constitui uma constante

    antropolgica das espcies: e a modernidade, com sua crescente mobilidade, fez esse

    problema mais geral do que era anteriormente." Daniel COHN-BENDIT e Thomas

    SCHMID, "Wenn der Westen unwidersthlich wird", Die Zeit, 48, 22 de novembro de 199 1,

    p. 5. Um autor ingls argumentou que "(...) a imigrao um problema que historicamente

    estimulou a xenofobia, o racismo e a emergncia de grupos de extrema direita", explicando

  • o que ele queria dizer com xenofobia: "A xenofobia pode ser definida como uma averso

    por estrangeiros ou pessoas de fora e um fenmeno antigo e familiar nas sociedades

    humanas." Zig LAYTON-HENRY. (1991) "Race and Immigration", in D.W. URWIN &

    W.E. PATERSON (eds.), Politics in Western Europe Today Perspectives, Policies and Problems since

    1980. Longman, Londres, p. 169.

    21. Koselleck demonstrou que, na linguagem poltica, esto embutidos sistemas de

    classificao de "eu" e "outro", de "ns" e "eles", que tomam a forma de contraconceitos

    historicamente mutveis. Dependendo das relaes polticas que sintetizam, esses conceitos

    podem ser simtricos, no sentido de permitirem reconhecimento recproco. No entanto,

    muitos desses conceitos so assimtricos e por isso negam o reconhecimento mtuo.

    Embora contraconceitos dessa espcie atuem dotando de permanncia as relaes polticas,

    ao afirmar sua universalidade, eles podem ser profundamente polmicos quando so

    elaborados a partir de suposies histricas particulares. Reinhart KOSSELECK. (1987).

    "The historical-political semantics of assymetric counterconcepts", in Reinhart

    KOSSELECK, Futures Past. On the Semantics of Historical Time. The MIT Press, Cambridge,

    Massachusetts, pp. 159-197.

    22. Cf. Louis CHEVALIER (1984), Classes laborieuses et classes dangereuses Paris pendant la

    premire moiti du XIXe sicle. Hachette, Paris (1a edio, 1958).

    23. A suposio convencional dos antroplogos, que colocam a cultura como um pacto

    humano isolado culturalmente, ilustra esse ponto de vista.

    24. Jean LECA. (1992). "La citoyennet en question", in Pierre Andr TAGUIEFF,

    coordenador, 1992, Face au racisme, volume 2, Analyses, hypothses, perspectives. ditions La

    Dcouverte/essais. Paris, p. 314. Leca distingue duas maneiras de definir nacionalidade

    como pr-requisito da cidadania: em termos "biolgicos" ou "contratuais", mas

    infelizmente no persegue as conseqncias poltico-ideolgicas dessas distintas

    modalidades.

    25. Stphane BEAUD & Grard NORIEL, "Penser 1'intgration des immigrs", in Pierre-

    Antoine TAGUIEFF (1992), op. cit., p. 276.

  • 26. J.M. EVANS (1983), Immigration Law, Sweet and Maxwell, Londres, p. 1.

    27. "Dossier-Immigrs, les 5 tabous", L'Express, 8 de novembro de 1991, pp. 47-48. Esse

    dossi fornece uma extensa cobertura do debate atual na Frana sobre a imigrao, em uma

    perspectiva de integrao. Cf. tambm "Quels discours sur 1'immigration?", Plein Droit, op.

    cit., 3 de abril de 1988, para uma viso contrastante e de certa forma anterior, que focaliza

    criticamente a reforma da lei de nacionalidade francesa, o relatrio "Comission de

    Sage"sobre nacionalidade e o relatrio sobre racismo e discriminao na Frana, do

    deputado do RPR Michel Hannoun.

    28. Antonio PERROTI & France THPAUT, "Rvue de prense: Imigration, le fracas dans

    les discours, Ia contradiction dans les faits", in Migrations - Socit, CISME, 3 (16-17), julho/

    outubro de 1991, p. 102.

    29. Bhiku PAREKH, "La Grande-Bretagne et Ia logique sociale du pluralisme", in Les

    Temps Modernes (540-541), julho/agosto de 1991: as comunidades de imigrantes deveriam

    ser dissolvidas para que seus membros, uma vez isolados, deixassem de constituir uma

    ameaa poltica e cultural para a nao britnica - pois os imigrantes que eram sditos

    britnicos gozavam de direitos polticos. As crianas imigrantes deveriam ser educadas

    pelos padres ingleses e merecer um tratamento legal uniforme. Alm disso, a reunio da

    famlia deveria ser controlada. Todavia, conforme observou Parekh, os assimilacionistas

    chegaram quase a.celebrar - contradizendo seus prprios objetivos - o espirito ordeiro e o

    senso de iniciativa das comunidades indopaquistanesas, por exemplo.

    30. Hugh KEARNEY. "Nation-Building - British Style", in Culture & History (9-10), 1991,

    pp. 43-54.

    31. J.M. EVANS. (1983) Immigration Law. Sweet and Maxwell, Londres, p. 21: como o ex-

    secretrio de Assuntos Internos, o liberal tri Reginald Maudling, argumentava no final dos

    anos sessenta: "Enquanto se fala sempre e com razo da necessidade de evitar a

    discriminao entre brancos e negros, um simples fato da natureza humana que, para o

    povo ingls, existe uma grande diferena entre australianos e neozelandeses, por exemplo,

    originrios do tronco britnico, e o povo da frica, do Caribe e do subcontinente indiano,

    que so igualmente sditos da rainha e merecedores de total equiparao diante da lei em

  • relao aos aqui estabelecidos, mas cuja aparncia, hbitos, religio e cultura so

    completamente distintos dos nossos: No fcil equilibrar o princpio moral da no-

    discriminao com os fatos prticos da natureza humana: e os perigos originados de erros

    polticos nesse campo so com certeza muito reais."

    32. Como assinalaram Dummet e NICOLS: "Tornou-se psicologicamente impossvel para

    ambos os lados - tanto os defensores de controles estritos para a imigrao quanto os que

    apiam a liberalizao e atacam a discriminao racial - pensar em "imigrao" em qualquer

    sentido, em qualquer contexto, exceto como conveno para referir-se situao racial na

    Gr-Bretanha." Ann DUMMET & Andrew NICOLS (1990), op. cit., p. 213. A volumosa

    literatura britnica sobre "relaes raciais" outra indicao da importncia do racismo no

    relacionamento com os imigrantes.

    33. Para colocar fora da lei a discriminao racial em lugares pblicos, em situaes de

    moradia e emprego, sucessivos governos britnicos promulgaram uma srie de Atos sobre

    Relaes Raciais em 1965, 1968 e 1976. Ann DUMMET & Andrew NICOLS (1991),

    op.cit.; Zig LAYTON-HENRY, (1991), op. cit.; Bhiku PAREKH, op. cit. O Ato sobre

    Relaes Raciais de 1976 revogava os anteriores e criava uma Comisso para a Igualdade

    Racial, corpo administrativo responsvel por implementar as oportunidades iguais que a

    orientao poltica estabelecia nesse ato. Laurence LUSTGARTEN (1980), Legal Control of

    Racial Discrimination. The Macmillan Press, Londres; Richard JENKINS & John

    SOLOMOS (eds.) (1987). Racism and Equal Opportunities Policies in the 1980s. Cambridge

    Uniyersity Press; D.J. WALKER & Michael J. REDMAN (1977). Racial Discrimination, a

    Simple Guide to the Provisions of the Roce Relations Act of 1976. Show and Sons, Londres.

    34. Antonio PEROTTI & France THPAUT, op. cit., p. 107.

    35. Ernest RENAN. "Qu'est ce qu'une nation?", in Henriette PSICHARI (ed.), "Obras

    completas de Ernest Renan. CalmannLvy, Editeurs, Paris. vol. 1, pp 903-904 (1' edio,

    1882). Renan escreveu esse ensaio na poca do conflito entre a Frana e a Prssia acerca da

    Alscia-Lorena.

    36. Juan GOYTISOLO, EI Pas, 25 de janeiro de 1993.