cult 49, caetano veloso, ago de 2001

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49 REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA Pasquale Cipro Neto Caetano Veloso Carlos Adriano Moacyr Lopes Junior/Folha Imagem D o L e i t o r 64 Cartas, fax e e-mails dos leitores de CULT Um conto inédito de Sérgio SantAnna Radar CULT 29 37 D o s s i Œ Em entrevista exclusiva à CULT, Caetano Veloso fala sobre cultura e literatura N a P o n t a d a L í n g u a 26 As várias línguas da canção “Língua”, de Caetano Veloso Rio Grande do Sul, um território entre periferia e fronteira Fronteiras Culturais 22 Cult Movies 18 O cinema falado, filme experimental de Caetano Veloso As colaborações de Drummond e Paulo Rónai para a revista Sul América Memória em Revista 17 Claudio Willer reflete sobre a crise da crítica literária contemporânea E n s a i o 10 Celso F. Favaretto lança novas luzes sobre a obra de Caetano Veloso 04 E n t r e v i s t a

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49REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA

Pasquale Cipro Neto

Caetano Veloso

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D o L e i t o r 64Cartas, fax e e-mails dos leitores de CULT

Um conto inéditode Sérgio Sant’Anna

R a d a r C U L T 29

37D o s s i êEm entrevista exclusiva à CULT,

Caetano Veloso fala sobre cultura e literatura

N a P o n t a d a L í n g u a 26As várias línguas da canção

“Língua”, de Caetano Veloso

Rio Grande do Sul, um territórioentre periferia e fronteira

F r o n t e i r a s C u l t u r a i s 22

C u l t M o v i e s 18O cinema falado, filme

experimental de Caetano Veloso

As colaborações de Drummond ePaulo Rónai para a revista Sul América

M e m ó r i a e m R e v i s t a 17

Claudio Willer reflete sobre a criseda crítica literária contemporânea

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Celso F. Favaretto lança novas luzessobre a obra de Caetano Veloso

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A G O S T O D E 2 0 0 1

A o l e i t o R

Editor e jornalista responsávelManuel da Costa Pinto � MTB 27445

Editora-assistenteMaria Cristina Antiqueira Elias

Editor de arteAlmir Roberto

DiagramaçãoAgueda Cristina Guijarro

Digitalização de imagensAdriano Montanholi e Yuri Fernandes

RevisãoClaudia Padovani

ColunistasCláudio GiordanoJoão Alexandre BarbosaPasquale Cipro Neto

ColaboradoresAdriano Espínola, Aurora F. Bernardini, Bernardo Vorobow, Carlos Adriano, ClaudioWiller, Maria Helena Martins, Rinaldo Gama, Sérgio Sant�Anna

CapaCaetano Veloso fotografado por Anthony Barboza em Nova York; nos destaques, CarlosAdriano (à esquerda) e Caetano fotografados por Bernardo Vorobow durante a entrevistaque o compositor concedeu à CULT; o crítico cultural Celso F. Favaretto (A. C. d�Ávilla/Divulgação); e o professor Pasquale Cipro Neto (Moacyr Lopes Junior/Folha Imagem)

Produção gráficaAltamir França

FotolitosUnigraph

Departamento comercialDiretora ComercialRosane Cantieree-mail: [email protected] de ContasBruno Vieira Moreirae-mail: [email protected].: 11/3371-1883

Distribuição e assinaturasJosé Cardeal do CarmoRua Treze de Maio, 743 � São Paulo � SPCEP 01327-020 � tel. 11/3263-1322, fax 11/289-8421e-mail: [email protected]

Distribuição em bancasFERNANDO CHINAGLIA Distrib. S/ARua Teodoro da Silva, 907Rio de Janeiro � RJ � CEP 20563-900Tel./fax 21/575-7766/6363e-mail: [email protected] exclusivo para todo o Brasil.Assinaturas e números atrasados: tel. 0800-177899;e-mail: [email protected], Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte: 81/9905-6411Amazonas e Rondônia: [email protected]írito Santo e Rio de Janeiro: 21/9801-7136Goiás: 62/233-6907, 293-9138, 9611-9096Maranhão: 98/221-1816, 9972-7625Rio Grande do Sul: 51/395-3436São Paulo: 11/3120-5042Departamento jurídicoDr. Valdir de FreitasDepartamento financeiroRegiane Mandarino

ISSN 1414-7076

CULT – Revista Brasileira de Literaturaé uma publicação mensal da Lemos Editorial & Gráficos Ltda.Rua Rui Barbosa, 70, Bela Vista � São Paulo, SPCEP 01326-010 � Tel./fax: 11/3371-1855, e-mail: [email protected]

Diretor-presidentePaulo Lemos

Diretora executivaSilvana De Angelo

Diretor superintendenteJosé Vicente De Angelo

Vice-presidente de negóciosIdelcio Donizete Patricio

REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA

A tiragem desta edição – 30.000 exemplares – é comprovada pelaTrevisan Auditores Independentes

Manuel da Costa Pinto

Não, caro leitor, a CULT não se transformou numa revista demúsica... O fato de termos escolhido como capas do númerode julho e da presente edição o roqueiro Jim Morrison e ocompositor Caetano Veloso, respectivamente, não quer dizerque mudamos nossa linha editorial. Essa coincidência sedeve, fundamentalmente, a um acaso jornalístico. No mêspassado, completaram-se trinta anos da morte de Morrison,provavelmente o maior poeta do rock. E, neste mês de agosto,comemora-se o aniversário de Caetano, que, dentre os gran-des compositores da MPB, é possivelmente aquele que dialo-ga com maior intensidade com a poesia brasileira – a exemplodo que acontecia com o próprio líder da banda The Doors emrelação às literaturas norte-americana e francesa. Mas a coin-cidência de datas também diz muito sobre a proposta darevista de ampliar a reflexão sobre a literatura para além doscânones tradicionais. Essa abertura muitas vezes se dá dentrodo próprio domínio da literatura – caso dos dossiês sobre“Ficção científica brasileira” (CULT 6), “Futebol & Literatura”(CULT 11) ou “Literatura de testemunho” (CULT 23) –, mastambém está presente no diálogo que estabelecemos entre alinguagem escrita e outros códigos criativos e reflexivos –como no dossiê sobre a “Bienal Antropofágica” (CULT 15) enas entrevistas com os artistas plásticos Rosângela Rennó(CULT 6), Vik Muniz (CULT 16) e Cildo Meireles (CULT 31) ecom a roteirista de cinema Suso Cecchi d’Amico (CULT 19).É nesse contexto que se inserem as edições sobre Morrison eCaetano. No caso do presente número, especialmente, o de-poimento conseguido por Carlos Adriano e Bernardo Voro-bow é tão rico de informações e reflexões que decidimos,junto com os entrevistadores, ampliar o leque de abordagensdo trabalho de Caetano com uma entrevista em que Celso F.Favaretto analisa a poética tropicalista, com um ensaio dopróprio Carlos Adriano sobre o filme O cinema falado e comum texto do professor Pasquale Cipro Neto sobre a música“Língua”. O resultado, como o leitor poderá ver, é um númerode homenagem a uma personalidade que revolucionou amúsica popular brasileira com os sentidos sempre voltadospara as pesquisas formais e intelectuais que acontecem noâmbito da chamada “alta cultura”. E é esse encontro entre opopular e o erudito, prosa e poesia, música e literatura, vidae filosofia que a CULT celebra por meio da presença deCaetano Veloso.

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ASSINATURASDISQUE CULT 0800.177899

O artista suíçoAlberto Giacometti

Ernst Scheidegger/Divulgação S u r r e a l i s m o 1

O surrealismo será o tema de dois grandes eventos que acontecem em agosto, setembro e outubro nosestados de São Paulo e Rio de Janeiro. Dos dias 14 a 16 de agosto, na Unesp de Araraquara (rod. Araraquara,Jaú, km 1, tel. 16/232-0444), acontece uma série de palestras, debates e outras atividades em torno do tema“Surrealismo: Atualidade e subversão”. Esse ciclo terá continuidade, dos dias 17 a 19 do mesmo mês, emItatiba, no Sítio Mandala – Centro de Estudos e Meditação (rod. D. Pedro I, km 96, tel. 11/4538-7392).Coordenado por Raul Fiker e Renato Franco, docentes na Faculdade de Ciências e Letras da Unesp deAraraquara, e aberto ao público, o evento reúne intelectuais como Robert Ponge, Eliane Robert Moraes, VitorSosa (México), Ron Sakolski (EUA), Claudio Willer, Floriano Martins e Valentim Facioli.

S u r r e a l i s m o 2

De 20 de agosto a 28 de outubro, o Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro (r. Primeiro de Março,66, Centro, Rio de Janeiro) promove uma mostra sobre surrealismo com mais de 300 obras, entre pinturas,gravuras, esculturas, desenhos, objetos, fotografias e publicações. A exposição apresentará trabalhos deautores como Gustave Moreau, Marcel Duchamp, Giorgio De Chirico, Henri Rousseau, Max Ernst, AndréMasson, Joan Miró, Jean Arp, René Magritte, Salvador Dali, Giacometti e Man Ray, procedentes de cerca de50 coleções e instituições da Europa, Estados Unidos, México e América do Sul. O evento, que inclui umaprogramação de filmes, vídeos, palestras, leituras e atividades educativas que remontam ao período áureodo movimento (1924-1945), foi organizado em onze módulos definidos segundo os temas constantes doManifesto Surrealista de 1924. A programação completa pode ser obtida nos sites www.surrealismo. com.brou www.cultura-e.com.br, ou pelo tel. 21/3808-2020.

B a t e - p a p o c o m o a u t o r

No dia 28 de agosto, a Fnac, a CULT e a Sá Editora promovem um encontro com o escritor português Pedro RosaMendes. Durante o evento, que faz parte da série “Bate-papo com o autor”, haverá o lançamento do livro Baíados Tigres, em que Pedro Rosa Mendes narra histórias das personagens que descobriu durante uma travessia porterra do continente africano. Às 19h, na Fnac (av. Pedroso de Morais, 858, São Paulo, tel. 11/3097-0022).

R e v i s t a S e b a s t i ã o

No dia 16 de agosto, o selo Sebastião Grifo lança a revista Sebastião, em que poetas e escritores como osbrasileiros Nelson Ascher, Régis Bonvicino, Frederico Barbosa, Ademir Assunção, Paulo Henriques Britto,Sérgio Alcides e o argentino Reynaldo Jiménez refletem sobre os trabalhos uns dos outros. A partir das 19h,na Secretaria Municipal de Cultura – Sala Mário Pedrosa (r. Frei Caneca, 1.402, São Paulo).

S e m i n á r i o G u i m a r ã e s R o s a

A PUC de Minas Gerais promove, de 27 a 31 de agosto, em Belo Horizonte, o II Seminário InternacionalGuimarães Rosa com conferências, mesas-redondas, minicursos, debates e comunicações em torno do tema“Sertão, rotas e roteiros” – que propõe a análise da obra de Rosa a partir das perspectivas filosófica,psicanalítica, metalingüística, histórica, geográfica e sociológica. Informações no site www.guimarãesrosa.pucminas.br/seminario, pelo e-mail [email protected] ou pelo tel. 31/3319-4368 (das 14h às 18h).

M u l h e r & L i t e r a t u r a

O IX Seminário Nacional Mulher & Literatura acontece de 22 a 24 de agosto na Faculdade de Letras daUFMG (av. Antônio Carlos, 6.627, Campus Pampulha, Belo Horizonte, MG). O evento, que homenageia asescritoras Henriqueta Lisboa, Adélia Prado, Laís Corrêa de Araújo e Nelly Novaes Coelho, reúne, em mesas-redondas, sessões de comunicação e minicursos, intelectuais e estudiosos de diversas universidades nacionaisem torno do tema “Feminismo e Estudos Culturais”. Informações pelo tel. 31/3499-5112 ou no site www.letras.ufmg.br/mulheres.

H u m a n i d a d e s , U n i v e r s i d a d e e D e m o c r a c i a

De 28 a 31 de agosto, a Universidade Federal de Ouro Preto sediará o V Congresso de Ciências Humanas,Letras e Artes, reunindo estudiosos e alunos de sete universidades federais de Minas Gerais. O eventoacontece no Centro de Artes e Convenções de Ouro Preto (r. Diogo de Vasconcelos, 328). Informações pelotel. 31/3557-1322, ramal 227, ou no site www.ufop.br/eventos.

L i n g ü í s t i c a e F i l o l o g i a

O V Congresso Nacional de Lingüística e Filologia, que homenageia o filólogo carioca Serafim da SilvaNeto, fundador da PUC do Rio de Janeiro, acontece de 27 a 31 de agosto, no Instituto de Letras da UERJ (r.São Francisco Xavier, 524, 11o andar, Maracanã, Rio de Janeiro, RJ). Inscrições e informações no sitewww.filologia.org.br ou pelo tel. 21/ 569-0276.www.revistacult.com.br

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CELSO F.FAVARETTO

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Um dos mais finos intelectuais brasileiros,

Celso F. Favaretto é um especialista nas

questões da arte e da cultura nacionais das

últimas quatro décadas. Professor da

Faculdade de Educação e da Faculdade de

Filosofia, Letras e Ciências Humanas, ambas

da USP, é autor de Tropicália: Alegoria alegria

(Ateliê Editorial), um dos estudos seminais

sobre as revoluções do movimento, e de A

invenção de Hélio Oiticica (Edusp/Fapesp),

acurado penetrável crítico sobre o criador

de bólides e parangolés. É também um dos

coordenadores de Arte em Revista (Centro

de Estudos de Arte Contemporânea da

USP/Kairós), que, em oito números

(publicados entre 1979-84), examinou a

produção do país nos anos 1960, 1970 e

1980. Nesta entrevista, ele lança novas luzes

sobre a literal e literária contribuição de

Caetano Veloso às inovações artísticas.

Carlos Adriano

Bernardo Vorobow

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Cult Como você sintetizaria a contribuição de CaetanoVeloso para a instauração de uma nova poética na músicapopular brasileira na época do tropicalismo?Celso F. Favaretto Caetano Veloso é o pensamento nacanção. Em sua música, no seu canto, surpreende-se umareflexão que incide na forma, nos encantos e no alcancecultural deste modo tão privilegiado no Brasil de manifes-tação da sensibilidade. Certa vez, Caetano disse que otropicalismo foi �um momento de aguçamento e de expli-citação da função crítica da criação�. Ainda hoje, este é umdos crivos mais adequados para a análise de toda a suaprodução. Se, naquele momento, a criticidade provinhado destaque à negatividade da arte de vanguarda � àsquestões que envolviam a produção do novo, aos desafiosimplícitos nas relações da arte com as novas condições deprodução, em um meio artístico polarizado por discussõesacerca da arte participante e das relações com o mercado �,a função crítica, contudo, não se extinguiu posteriormente.Ela se transformou, tornou-se menos empenhada, livredas pressões daquele momento candente, traduzindo-seem discretos ou nuançados modos de enunciação, nopensamento e na sensibilidade. A função crítica permanecetanto na ênfase auto-referencial à estrutura da canção, aosseus efeitos, quanto na significação cultural e nos afetosde que é portadora. A afirmação continuada de uma posiçãocrítica tem de ser sempre surpreendida nas transformaçõesdo trabalho do artista, captando, assim, as desconti-nuidades, as reiterações e as reelaborações de temas, proce-dimentos e pensamento. É absolutamente necessário atentarà mobilidade dos processos de invenção, tanto quantotentar perceber a metamorfose da vida nas formas atravésdos processos de enunciação. De outra maneira, se pro-duziria a disjunção entre o artista, com suas criações, e ohomem público � o que, aliás, muitas vezes ocorre, inclu-sive com cobrança de posições. A coerência de um artistatem de ser buscada no desenvolvimento de seu trabalho,principalmente quando este artista é também uma perso-nalidade marcante, que faz parte do sistema do espetáculo,

sujeito, assim, a injunções, interesses e expectativas diver-sificadas, tendo o seu comportamento avaliado continua-mente. É com a atividade tropicalista que o domínio dacanção deixou de ser um objeto cultural situado quase queexclusivamente na esfera do entretenimento para alçar-seem realização propriamente artística, estética e cultural-mente em sintonia com a literatura, o cinema, o teatro e asartes plásticas � um fato hoje óbvio e banal, mas que na-quele tempo não era tão simples, como demonstram muitostrabalhos à disposição, desenvolvidos nas últimas décadas,em torno da constituição da modernidade no Brasil. Napassagem dos anos 1960 aos 1970, Caetano Veloso confi-gurou em seu trabalho, canções, declarações, atitudes egestos a profunda mudança da experiência daqueles quese associaram, em arte, política e cultura, às posições críticasque deslocaram as polarizações firmadas.Cult E como essa intervenção vem ocorrendo ao longode sua carreira e atualmente?C.F.F. O trabalho de Caetano vem se desenvolvendo emduas dimensões simultâneas. A primeira é aquela quepensa a canção brasileira, articulando um modo particularde entender a tradição � que se foi construindo com osamba e em conjunção com tudo o que o rádio e o discoforam liberando �, aí elegendo as músicas marcantes emsua formação cultural e na afetividade. Como ele tantasvezes declarou, canções que ouviu desde criança, que circu-lavam no dia-a-dia, gerando um gosto, um sentimento,um pensamento que não se define, pois configura umaexperiência de vida singular e intransferível, em que gostoe valor cultural coincidem. A outra dimensão é histórica.Insere-se naquela tendência iniciada no século XIX pelosintérpretes do nacionalismo, intensificada pelo interessedos modernistas em conhecer o Brasil e que foi marcanteaté os anos 1960. Trata-se de ver em Caetano, a partir dotropicalismo, alguém empenhado em questionar as imagensemblemáticas de Brasil, respondendo, criativa e critica-mente, à drummondiana pergunta: onde é Brasil? E, prin-cipalmente, tratando-a com uma crítica virulenta ao estreito

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nacionalismo, tanto quanto ao conservadorismo cultural.Para ele, já naquele tempo, o Brasil importa, e muito, como�ponto de ver e não de ser�. Isso fez dele, desde o início,um moderno, um cosmopolita, um pensador em quem apaixão da cultura onde surgiu como artista destacado nãoexclui a visada mais larga do existir incondicional. Aimposição modernista, �precisamos conhecer o Brasil�,converteu-se, no tropicalismo, na também drummondiana�precisamos esquecer o Brasil�, pois �nenhum Brasilexiste�. E, no entanto, o que não é um paradoxo, o seuinteresse sempre esteve voltado para o Brasil, está patenteem Verdade tropical e em outros textos, em entrevistas epolêmicas. Assim, a reflexão sobre a canção e na canção ésempre atual, levando a felizes achados, a canções logointegradas ao imaginário da tradição musical brasileiracomo elementos de uma escuta ao mesmo tempo seletiva edisseminada � o que só ocorre com artistas que inscrevemcom seu trabalho um sujeito impessoal, tradutor involun-tário, entretanto, de uma língua coletiva. Importa, antesde tudo, aquilo que está dito nas canções. As duas dimen-sões acentuadas aparecem conjugadas não por uma redu-tora e exclusiva atividade profissional. Caetano dá a impres-são de agir por uma necessidade interna, própria daquelesque têm o que dizer, ora deixando em evidência circuns-tâncias e motivações culturais próximas, ora traduzindo otrabalho em que a memória se transfigura em experiência.Cult Como se dá esta passagem entre memória e expe-riência?C.F.F. Tocamos aqui no que me parece ser o ponto centraldo processo criativo de Caetano: um trabalho conduzidopelo processo de elaboração, semelhante ao da elaboraçãoanalítica, a perlaboração (durcharbeitung) freudiana. Nasreinterpretações, nas associações, é sensível a escuta de umpensamento que sente, ou um sentimento que pensa. Cae-tano dá a idéia de que um fluxo interior articula sons epalavras configurando idéias, mas que o móvel da articu-lação é uma memória, seletiva ou involuntária, que faz doato de ouvir suas canções uma experiência que, no limite,

pergunta: existir, a que será que se destina? Há um temponas canções de Caetano que, embora possa indiciar opresente, ou um passado, é sempre, na verdade, um entre-tecimento de passado e presente, uma incorporação de tem-pos e lugares, de ações e pensamentos, de um sentir concen-trado. Presente é sempre, é agora, o que faz de sua históriauma contínua rememoração. Vejo na excelência das reinter-pretações que faz de canções, sobretudo antigas, a confir-mação deste trabalho de rememoração, de reelaboração devivências e referências culturais. Memórias do passado nopresente, fatos imediatos da história individual e social, olido, o visto, o ouvido, tudo acaba condensando imagensque, sem perder o seu teor designativo, são poéticas, emo-ção recordada na tranqüilidade. Basta que se percorra ascanções, desde as primeiras, para se ver como o que aparececomo prodígio de memória � e não deixa de sê-lo � traz àtona fragmentos, cacos, resíduos, traços de experiência,associando o vivido ao tumulto do presente. O presente ésempre o lugar da enunciação, com o que, em Caetano, nãohá qualquer nostalgia ou saudade. A sua poética é, assim,afirmativa, elaboração contínua de um fluxo existencial emque o pessoal e o histórico não se distinguem.Cult Você acha que a obra musical de Caetano opera algumasíntese entre as tradições da poesia e da música brasileiras?Quais seriam essas tradições e como se dá tal síntese? Vocêvê e ouve algum projeto literário bem nítido e delineado?C.F.F. Não me parece que a questão de Caetano seja a deestabelecer sínteses entre poesia e música e, menos ainda,delinear um projeto literário, embora esse seja um temasempre relembrado quando se trata de assinalar a maestriade sua construção textual, inclusive porque os textos dassuas canções podem ser lidos como poesia � o que, aliás, éum fato inquestionável �, situada no nível do que melhorse fez e se faz no Brasil. Desde o início de sua produção,a literatura funcionou como um implícito do sentimento edo pensamento que circula nas canções, mas não me pareceexistir nele um projeto literário, mesmo quando faz umdisco chamado Livro, em que o livro é tema, ou quando

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faz um disco como este que nasceu da leitura de Nabuco.Caetano faz canção e esta é estruturalmente híbrida, comotão bem mostram os estudos de Luiz Tatit. Caetano absorveem suas canções procedimentos literários, cuja percepçãonem sempre é fácil, dependendo do espectro cultural dosouvintes. É preciso conviver longamente com as cançõespara aos poucos ir descobrindo o que é citação e o que éabsorção, transfiguração, transpiração; sempre invenção.A sensibilidade de Caetano é apurada, cultivada por leiturasdiversificadas, de poesia, filosofia, ficção, estudos críticose culturais: João Cabral, Drummond, Clarice, Joyce, Sar-tre, Guimarães Rosa, por exemplo. De tudo sobrou, sobra,um pouco e, não se sabe como, assoma na criação. Assim,Caetano tem na história da música popular brasileira umlugar à parte: os seus textos incorporaram as poéticasmodernas, as operações vanguardistas, de modo excep-cional, o que faz com que o tratem como poeta. Não é ocaso, embora seja um grande escritor. Lembro, por exem-plo, como importante, além das canções, da escrita insti-gante, daqueles textos que escreveu em Londres, no exílio,recolhidos, não sei se na totalidade, na coletânea Alegriaalegria organizada por Waly Salomão, que clama por umareedição, acrescentada de vários textos que vieram depois.Assim, o nível excepcional da realização textual de Caetano,que o coloca com facilidade ao lado de muitos outros poetascontemporâneos, não justifica entretanto assimilá-lo àcategoria restrita de escritor; ele é um cancionista, algomais complexo estruturalmente, e mais complexo namanifestação, pois inclui, no disco ou no show, os rigores,os êxtases e a eficácia de um outro modo de manifestaçãodo artístico. É interessante notar que Caetano tenhararamente musicado poemas, em escolhas estratégicas nohorizonte de seus processos enunciativos, referências esté-ticas e adequação a momentos específicos da produção.Talvez porque, vindo antes a música ou a letra, ou ambassimultaneamente, a canção tem a particularidade de seruma linguagem motivada. O som chama a palavra e vice-versa. Uma vez aparecida a canção, o seu texto pode seralvo, como tem sido, de fruição e análises puramente literá-

rias, poéticas. Boa parte da produção de Caetano suportaa comparação com os textos nascidos como poesia: e isto éum notável fator distintivo de sua produção, por si sómerecedora de toda nossa admiração. Contudo, o mistérioda canção é ela ser outra coisa, um objeto não identificado.Cult A fase tropicalista parece concentrar de modo maisevidente as relações com outras obras e artistas da culturanacional, talvez pela própria natureza (ou projeto) do movi-mento e o contexto do momento. Com que instâncias odiálogo foi mais frutífero? Qual o papel da forma �literá-ria� das letras nesse diálogo?C.F.F. Sem dúvida, o momento tropicalista, como tantojá foi dito, notabilizou-se em grande parte por realizar aintersecção e a mistura de gêneros, referências artístico-culturais, índices político-sociais, a fusão do erudito e dopopular, a inclusão dos processos e das imagens da culturade massa. Havia consciência clara do que se fazia, do quese queria: intervir no sistema da música popular e intervirde modo específico, estridente e intensivo nas relações fixa-das entre arte e cultura. O momento tropicalista realizouaquilo que precisava ser feito e que estava obstado pelaspolarizações e preconceitos: a realização da modernidadecultural, da atualização das artes, de renovação dos modosde significação do social e de questionamento do seu usopolítico. A metáfora antropofágica, reatualizada de acordocom as novas condições de produção cultural, foi aplicadacom propriedade pelos tropicalistas, permitindo-lhes ar-ticular efeitos crítico-criativos de extrema eficácia. O usode procedimentos cinematográficos, plásticos, poéticos, tea-trais, de música contemporânea, provenientes das experi-ências de vanguarda que circulavam no ambiente artísticoem toda parte, resultou em um processo de composiçãohíbrido, inusitado, brilhante. O brilho estava fundamental-mente na construção das imagens, através de um hábilemprego da paródia, da sátira e do humor, com a produçãode uma figuração alegórica até então desconhecida noBrasil. Pois a alegoria tropicalista tanto designava o con-texto como evitava a simbolização, a proposição de umaimagem de Brasil que viesse utopicamente substituir aque-

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la criticada por todos, a do nacional populismo. A formaliterária das letras vagava entre o uso de procedimentosvanguardistas em circulação, desde os cubistas, dadaístase surrealistas até os concretistas, sem que o lirismo básico,fundamental, da canção brasileira estivesse ausente, comosuporte dos procedimentos vanguardistas, de citações, pas-tiches, colagens, bricolagens etc.Cult A obra do artista, com sua carga de informaçãoestética, se difunde no meio da comunicação de massa.Como ele transita entre (ou concilia) os repertórios denovidade (esfera da própria criação) e redundância (esferada música de consumo), arte e mercadoria, chic e kitsch?C.F.F. Para Caetano, o aspecto comercial, intrínseco àmaterialidade da canção, nunca foi um problema, ao con-trário. Esse foi um de seus combates mais importantescontra as ilusões que, nos anos 1960, fingiam que seriapossível fazer arte sem compromissos com o mercado. Aquestão nunca foi simplesmente a da difusão dos produtosculturais pelos meios de comunicação de massa; o maisimportante é considerar o mercado como um aspecto daprópria criação. Para Caetano não se tratava de conciliaros aspectos estéticos aos comerciais, mas sim de trabalharjá no nível das duas instâncias enquanto simultâneas, dadoso gênero e a destinação dos produtos. Se nesse ou naqueledisco um dos aspectos prevaleceu, se uma ou outra cançãoé mais ou menos permeável ao consumo, no todo isso éirrelevante. Interessa, entretanto, como indicativo de umaconquistada liberdade, onde muitas posições são possíveis.Importa que Caetano nunca teve medo de correr riscos,de cantar o que gosta, �o que pede para se cantar�, deviolentar o gosto estabelecido, de inovar, de discutir.Compondo, cantando, falando, Caetano está sempre pen-sando questões que se põem no fluir da existência pessoale social.Cult Em �O estrangeiro�, o compositor confessa: �sigomais sozinho caminhando contra o vento� e (no final):�some may like a soft brazilian singer/ but I�ve given upall attempts at perfection�; em �Branquinha�: �vou con-tra a via/ nado contra a maré�. Esses toques podem ser

lidos num contexto mais amplo no trajeto do compositor?Em que escala e alcance?C.F.F. Na canção, �Janelas abertas no2�, Caetano diz:�mas eu prefiro abrir as janelas pra que entrem todos osinsetos�. Essas palavras abrem-se para o incomensurávelda experiência contemporânea, para toda a imprevisibi-lidade e a indeterminação de uma trajetória que se afirmasobretudo pela coragem de seguir �sozinho caminhandocontra o vento�, nadando �contra a maré�, embora sempreacossado por vozes que cobram uma retificação de suasatitudes supostamente vinculadas a um compromisso so-cial anteriormente firmado. Mas, assim como desde cedonão quis �viver a nostalgia de tempos e lugares�, tambémnão admitiu que sua inspiração fosse circunscrita porcompromissos que um dia se manifestaram em suascanções com a força do tom justo no tempo oportuno. Nomanifesto Jóia, Caetano dizia �estar cuidadosamente entre-gue ao projeto de uma música posta contra aqueles quefalam em termos de década e esquecem o minuto e o milê-nio�. Assim, vejo em Caetano alguém que realiza na mú-sica brasileira um trabalho cujo alcance pode ser realçadorecorrendo-se a algumas idéias de Deleuze sobre a relaçãoentre literatura e vida, expostas, por exemplo, em Crítica eclínica. Diz ele que a literatura traça no interior da língua�uma espécie de língua estrangeira�, isto é, �um devir-outro da língua (...), uma linha de feitiçaria que foge aosistema dominante�. Este é um traço distintivo de Caetano;em suas canções, tensiona a língua até os seus limites, poratos de enunciação sempre singulares, uma produçãointensiva de sentido, em que o sujeito é suplantado poragenciamentos coletivos de enunciação. Nisso, acima detudo, deve-se ver o político, a significação social da arte deCaetano, e não, simplesmente, no vai e vem das declaraçõesque as circunstâncias e as paixões mobilizam nele, naimprensa e na crítica.

Carlos Adrianomestre em cinema pela USP e cineasta

Bernardo Vorobowcurador de cinema e programador cultural

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A cRisEdacRíTica

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Content out of Context (1987),obra de Kathleen Amt

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nO poeta e ensaísta Claudio Willer discute a divisão da vida literária

contemporânea em uma vertente universitária e outra antiacadêmica,

ressaltando a omissão dos cadernos literários em analisar essa

bipolaridade que remonta à oposição de termos binários como razão

e emoção, classicismo e romantismo, apolíneo e dionisíaco

Nas 24 páginas de Crítica literáriano Brasil, ontem e hoje (Rumos da crítica,organização de Maria Helena Martins,Editora SENAC/Itaú Cultural),Benedito Nunes comenta autores e ten-dências de 1870 até 2000, sem cair nacompilação, no inventário de nomes eobras. A única restrição a esse trabalhoseria o autor não constar, não se haverincluído (embora a lacuna seja corrigidapela apresentação de Flávio Aguiar).Como tantos outros textos recentes sobreo assunto, termina com um diagnósticode crise. O crescimento da produção,quantitativo e qualitativo, não o impedede registrar que a crítica, sem mais repre-sentar um pólo de tensão com a escrita dosescritores, está em crise profunda desde algumtempo nos seus princípios, na sua presençapública, na sua operatividade como leitura.Reportando-se a Leyla Perrone-Moisése Walnice Nogueira Galvão, vai maislonge: ...talvez seja mesmo a crise da críticao efeito exterior de uma crise da próprialiteratura, combalida, intoxicada, incon-fortada, maquilada dentro do sistema vigentede valores mediáticos da cultura brasileiraglobalizada. (...) se a literatura cai, a críticadespenca.

Crise da crítica, ou da literatura? Nasegunda hipótese, em qual das suas ins-tâncias? Da leitura, ou seja, na ponta darecepção (que inclui a crítica, é claro), daprodução editorial e de seu sistema de dis-tribuição, ou da própria criação? Nessa

última, de modo algum. Dos inúmerosargumentos para desmentir um refluxoda criação, um é dado pelo recente con-curso de poesia promovido por esta CULTe pelas sete horas de reunião de que WalySalomão, Nelson Ascher e eu precisamospara acabar chegando a um cordão delaureados. Quanto à primeira hipótese, deuma crise da crítica, cabe também umapergunta: de qual crítica? Há uma respostasugerida pelo próprio Benedito Nunes,ao observar a mudança nesse campo entreos anos 1950 e 1970:

Dera-se entrementes a ascensão da teoriada literatura � ambíguo nome, quase ciênciae apenas teoria, encampando a poética, aretórica e a estética, que consolidou e enobreceuo ingresso da atividade crítica na univer-sidade, convertida em parte considerável dacompetência do magistério superior habilitadoem letras, prolífico em sua incessante produçãode monografias, dissertações e teses univer-sitárias, que, dificilmente computável, embreve saturaria a bibliografia especializada.

Há, aqui, um esclarecimento quedeveria ser grifado: o ingresso da atividadecrítica na universidade. Uma das mani-festações mais fortes de ceticismo quantoao alcance de uma crítica universitáriafundada em paradigmas está em artigorecente de Massaud Moisés: ... na décadade 70, o estruturalismo irrompeu como umfuracão, destruindo tudo à sua passagem,iludindo com sua objetividade sem invenção esem graça as mentes destituídas de espírito

crítico (...). Depois veio o desconstrucionismo,em meio ao método psicanalítico, o sociológico,o sociopolítico etc. por vezes contagiados dachamada pós-modernidade. Indaga se aadesão a uma delas não resultaria, ao fim decontas, tão precária quanto a crítica impres-sionista que tencionava substituir ou aniquilarde uma vez por todas (�A difícil e esquecidaarte da crítica�, �Caderno de Leituras�do Jornal da Tarde de 9/9/2000). Nesseartigo, há um ataque a obras, tomadascomo exemplos de falsa isenção, de DaviArrigucci Jr., João Luiz M. Lafetá eRoberto Schwarz, questionável, pois essestrês autores nunca fizeram profissão defé de neutralidade científica. De qualquermodo, opiniões desse teor passarem embranco, sem respostas, é sinal de abulia,pois quem as emitiu não é um diletante,mas alguém que continua valendo comofonte sobre história da literatura brasi-leira e outros temas relevantes. O cernede sua argumentação é uma disjuntiva,pela qual de duas uma: ou se decodificaaplicando um método, forçosamenteredutor, sempre tomando a parte pelotodo, ou então se opera no eixo daqualidade, julgando (e correndo o riscode errar) com base na sensibilidade ecultura literária.

Assim, nos últimos 40 anos nãomudou só a crítica: mudaram os críticos.Teorias literárias têm, é claro, umahistória própria, ligada à ascensãodessas ramificações do positivismo, as

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ciências humanas, e daquilo queOctavio Paz chamava, já em 1970, deimperialismo da lingüística (�Literatura yLiteralidad�, El signo y el garabato,editora Joaquín Mortiz, México).Mas não se instalaram em um vazio.Justificadas por uma produção que,presumivelmente, resulta em avançosno conhecimento, ganharam impor-tância dentro de um mercado de trabalhoconstituído por universidades, faculdadese colégios. A razão é demográfica: se hámais pessoas a alfabetizar, instruir, inte-grar na sociedade letrada, aumenta (aindaassim menos que o necessário) a demandade mão-de-obra para essa função.

Ao mesmo tempo, o mercado de ondevieram os críticos, aquele do jornalismo,sofreu uma contração: basta lembrar aquantidade de jornais diários quehavia em São Paulo nos anos 1940 a 1960e observar o que existe agora. Acrítica, com os lundis de Sainte-Beuvee, logo depois, com os relatos deBaudelaire sobre suas leituras e visitasa salões de artes plásticas, nasceu dentrode jornais. Conforme já observei noensaio �Provincianismo e pluralismocultural�, publicado na revista Xilo,ano 1, no 1, de setembro de 1999(também disponível em Agulha, www.agulha.cjb.net, no 1), há pouco maisde um século, periodismo e literaturanão eram dissociados, e Zola ou Ma-chado de Assis ganhavam a vida cola-borando com jornais que, por sua vez,publicavam capítulos de suas obras.

O trânsito entre ambos ainda eratranqüilo no tempo de Sérgio Milliet,que lecionou em uma instituição deensino superior, mas ganhava a vidacomo administrador cultural e jorna-lista; e, nessa condição, como autor derodapés de crítica. Na biografia deautores da geração seguinte, como Anto-nio Candido, observa-se a passagem deuma área para outra, da crítica jorna-lística, no tempo dos rodapés reeditadosem livros como Brigada ligeira, para omagistério e a produção acadêmica.

Portanto, antes da crise houve umrefluxo, com a mudança de lugar dacrítica. E um contrafluxo, a bem dizerum revertério, representado por aqui-lo que sai na imprensa, objeto destediagnóstico de José Paulo Paes � cons-tante de um artigo sobre o centenáriode Sérgio Milliet, publicado no Jornalda Tarde, em 1998:

Nas poucas resenhas de livros que a grandeimprensa brasileira condescende ainda empublicar, a auto-suficiência do magister dixitcostuma alternar com a anodinia do pressrelease disfarçado. E das observações deMassaud Moisés: Os suplementos literáriosficaram reservados para as notícias,publicidade editorial, resenhas, entrevistas,reportagens; (...) foram desaparecendo oumudando de figurino, talvez cônscios de quedeixavam um espaço que nada preencheria.

Constatações da mudança de perfildos críticos estão, quando muito,implícitas no ensaio de BeneditoNunes, pois seu objetivo é comentar

obras, e não traçar biografias. A defesado biográfico, a personalização,digamos, de questões literárias, é feitaem outros lugares. De modo quechega a ser paroxístico, por WalySalomão em edição recente da revistaBabel (Babel � Revista de Poesia, Traduçãoe Crítica, ano I, número 3, de setembroa dezembro de 2000). Por exemplo,nesta passagem:

Kavafis nunca recebeu um Prêmio Nobel!Toda a vida dele ele escreveu foi poemas depegação, de pegação de rapazes que eleencontrava nas ruas, em bares horrendos! Ospoemas de Kavafis são pequenos lances depegação, pegação em quartos escuros de hotéisonde se entra para trepar � TREPAR! Epor aí afora.

Tais afirmações, tomadas ao pé daletra, são redutoras, e Waly sabe disso.Seu propósito foi questionar, valendo-se do exagero, a dissociação acadêmicaentre poesia e vida, o desconhecimen-to do biográfico a pretexto de examinara literatura em sua autonomia. Algosemelhante ao que, para tomar um exem-plo de maior envergadura, o surrea-lista português Mário Cesariny fezem O virgem negra � Fernando Pessoaexplicado às criancinhas naturais e estran-geiras por M. C. V. (Assírio & Alvim,Lisboa), tripudiando sobre sua me-mória para mostrar que poesia é feitapor gente de carne e osso, e não umaescritura em abstrato, um fenômeno ex-clusivamente da linguagem. O próprioWaly, no depoimento aqui citado, comen-

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ta um poema seu, �Novelha cozinhapoética�, questionado � por Manuel daCosta Pinto no Caderno �Mais!� daFolha de S. Paulo de 02/07/2000 e porSuzana Scramin na edição aqui citadade Babel, ambas as vezes no contexto,esclareça-se, de observações favoráveisao livro do qual faz parte, Tarifa deembarque � por exibir anti-semitismoe mau-gosto. Esclarece que o fez pe-gando um tipo de poeta que é totalmentebiônico, fabricado nos departamentos de Letrasdas universidades, absolutamente despido dequalquer experiência e se vangloriando disso.Meras estações repetidoras de esquemas, deprofessores, de departamentos de Letras. Areferência à fatia de Theodor Adorno, àposta de Paul Celan e à limpeza dos laivosde forno crematório seria uma sátira aosque reproduzem idéias e estilo desses ede outros autores, sem terem passado,nem de longe, pelas mesmas experiên-cias. Algo correlato ao que Roberto Pivadiz neste poema: Dante/ conhecia a gíria/da Malavita/ senão/ como poderia escrever/ sobreVanni Fucci?/ Quando nossos/ poetas/ vão cair navida?/ Deixar de ser broxas/ pra serem bruxos?(Ciclones, editora Nankin).

Talvez por fidelidade ao título, aedição aqui citada de Babel apresenta umchoque de códigos, notadamente nasrespostas a uma enquete sobre o cânone,na qual se alternam manifestações nolimiar do impropério, e outras que exi-bem as mesmas preocupações e repertó-rio das revistas dos departamentos deLetras. Permite enxergar uma divisão

em dois campos, um deles univer-sitário, outro, extra e antiacadêmico.A mesma cisão foi encenada ao vivoem algumas sessões de um ciclo dedebates, Poesia em Revista, quecoordenei em outubro de 2000 naBiblioteca Mário de Andrade, em SãoPaulo, com a finalidade de mostrarque o crescimento numérico de pe-riódicos literários (inclusive Babel eCULT), é um indício de vitalidadeno plano da criação. Por isso, convideiseus editores e lhes pedi que indicas-sem poetas, formando mesas com osrepresentantes de jornais ou revistasliterárias e seus convidados. Acabou-se mostrando algumas linhas mestrasda poesia contemporânea e, em certamedida, da crítica. A mais evidente, aponto de suscitar discussões ásperas eum certo desconforto, confrontou re-vistas e jornais encabeçados por quadrosvinculados à Universidade, estudantesou professores de Letras, e outros queexternaram críticas à instituição. A julgarpor algumas farpas dirigidas por Walyà revista Inimigo Rumor no depoimento aquicitado, o debate nessas sessões naBiblioteca Mário de Andrade não foi umepisódio isolado, porém um dos capítulosde uma polêmica que já eclodiu emoutros encontros dessa natureza.

É mais um sinal de passividade donosso jornalismo nada disso transpa-recer em seus cadernos culturais. Sefosse uns vinte anos atrás, um �Folhe-tim� da Folha de S. Paulo iria examinar,

sob diversos ângulos, esse contrasteentre uma vida literária universitáriapautada por cerebralismo, hiperteori-cismo, dissociação entre vida e umaprodução identificada à �invenção�,resultado da �pesquisa� e �experimen-tação� praticadas com �rigor� e �disci-plina�, e outra correndo por fora,extra-institucional, valorizando a informa-lidade, a tradução da experiência vividapelo autor e de suas paixões em umacriação espontânea, fruto da intuiçãoe até da revelação.

Termos binários como razão x emoçãoou classicismo x romantismo são excessiva-mente amplos. Contudo, mesmo assim,será que tais polaridades, e outras demaior substância, como apolíneo e dioni-síaco, não reapareceram na segunda me-tade do século XX, na forma de intra eextra-universitário? Difícil não dar res-posta afirmativa. Basta examinar duas si-tuações distintas. Uma delas, marcadapelo predomínio de uma cultura univer-sitária, pode ser aquela apresentada pelosEstados Unidos, do final da SegundaGuerra Mundial até os anos 1960. Noto-riamente, universidades são, naquele país,fonte de produção cultural. Contudo,oferecer cultura é, também, orientá-la,justificando essa crítica de Allen Gins-berg à ortodoxia na comunidade acadê-mica, a começar por Columbia, regidapelo New Criticism:

Não liam William Blake, nem qualqueroutro dos autores visionários da tradiçãoromântica; seguiam o formalismo de Pope e

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Driden. Não se falava em Whitman; menosainda em Hart Crane. Sabiam que Poundera importante, mas sem conseguir explicaros motivos. William Carlos Williams moravaa vinte quilômetros de Columbia, e nuncahavia sido chamado para dar uma conferêncialá (passagem extraída da coletâneafrancesa Entretiens � Beat Generation).Poetas hoje configurados como menores,como Allen Tate e John Crowe Ramson,eram modelo, e a leitura impessoal dotexto servia como paradigma para umacriação igualmente asséptica. Isso em umcontexto examinado, entre outros, pelosurrealista-beat Philip Lamantia aodenunciar (em entrevista a FernandaPivano publicada na edição italiana desuas poesias) a consciência literáriaamericana fixada no realismo e nopositivismo, tolerando uma vanguardaapenas à margem: Uma escrita de naturezaanalógica, metafórica, não-realista, foipraticamente interditada nesses cinqüentaúltimos anos, mesmo sendo uma práticacorrente, quase um hábito na França. Esseambiente fechado contribuiu para ocaráter tardio de um vanguardismo norte-americano � representado não só pelaBeat, mas por movimentos e tendênciasdos anos 1940 a 1960 afins aos que, naEuropa, eclodiram nas primeiras décadasdo século XX (conforme bem exposto emThe last avant-garde, The making of the NewYork school of poets, de David Lehman,Anchor Books, Nova York) � e para amigração rumo a Paris, como se houvesseum sistema de vasos comunicantes,

transportando fugitivos do racismo comoRichard Wright e James Baldwin, domacarthismo e do puritanismo anglo-saxão, inclusive pela oportunidadeeditorial oferecida aos Henry Miller eWilliam Burroughs ainda proibidos lá.Beber na fonte vanguardista, como ofizeram Ginsberg, Ferlinghetti e CarlSolomon, era trafegar no mundo antípodado austero academicismo norte-americano. Muito já se publicou sobreboemia literária francesa � por exemplo,À margem esquerda, de James Campbell(Record), ou Escritores americanos emParis, 1944-1960, de ChristopherSawyer-Lauçanno (José Olympio) � noperíodo em que idéias e projetos corriamsoltos pelos bares de Saint Germain,redações de revistas como Merlin ou ParisReview, sedes de pequenas editoras comoa Pauvert ou Olympia. Eram as trin-cheiras do novo, do ataque a formas e fór-mulas literárias ou às próprias institui-ções, naquele tempo de franco-atiradores,em que a cultura não estava confinada adepartamentos e salas de aula. NemCamus, nem Boris Vian, nem Simone deBeauvoir, muito menos Alex Trocchi ouMaurice Girodias, entre outros defen-sores da idéia da autodeterminação doindivíduo, foram professores universi-tários. Sartre foi professor, mas suaatuação era mais editorial, projetando-seatravés de iniciativas como Les TempsModernes e as publicações e encenaçõesde sua própria obra. O público, essesim, era predominantemente uni-

versitário: daí os pontos consagrados,bares e livrarias, serem nas imediaçõesda Sorbonne.

Desde então, acentuou-se o desloca-mento, acarretado pela instituciona-lização de órgãos públicos e da própriauniversidade como agência cultural,levando Michel Foucault a observar, jáem 1975 � em entrevista publicada nojornal Versus no 1 e republicada nojornal Muito +, de novembro de 2000�, que o grande corte que fazia com queBaudelaire não tivesse nenhuma relação comos professores da Sorbonne já não existe mais.Os Baudelaires de hoje são professores daSorbonne. Constatava ainda que a uni-versidade se tornara determinante dogosto literário: Pegando o exemplo francês:não se pode conceber Robe-Grillet, Butor,Solers, sem o auditório universitário que osexcitou, acolheu e analisou. O seu público foio universitário. Para Foucault, isso nãoera necessariamente negativo, porémum componente da mudança do inte-lectual, de �universal�, a exemplo deBaudelaire, para �específico�, comoo seria um professor, mais um entreaqueles que exercem trabalho intelec-tual (essas idéias são detalhadas nacoletânea de ensaios e entrevistas deFoucault, Microfísica do poder, publicadano Brasil pela Editora Graal). Con-tudo, de intelectual �específico� a bu-rocrata vai um passo, e bem pequeno.Se retirarmos da expressão �buro-crata� a conotação pejorativa, ambosserão, forçosamente, a mesma coisa.

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Um professor ou pesquisador uni-versitário pode até ser um aventureiro,mas fora do expediente, no qual teráde se ater à grade curricular e àsexigências da carreira.

Diagnósticos de crise da crítica ouda própria literatura aqui citados eoutros que me parecem apocalípticos� como estas afirmações feitas porLeyla Perrone-Moisés, em Altas lite-raturas (Companhia das Letras) ereiteradas em textos subseqüentes: aliteratura fundamentada em valores, tal comoconcebida pelos modernos, ainda existe? (...)A literatura, que durante séculos ocupara umpapel relevante na vida social, tornou-se cadavez menos importante. (...) A literatura nãodesapareceu, mas recolheu-se a um canto � acontextualizam como fenômeno típicode uma sociedade regida pela lógicado mercado. Acontece que o mercadosão eles! No Brasil, onde mais circulamlivros (e circulariam mais ainda, nãofosse a criminosa complacência coma xerocópia abusiva) é nas instituiçõesde ensino! Ser recomendado ou ado-tado determina o futuro comercial deuma edição. Isso foi bem observadopor Massaud Moisés, no artigo aquicitado, ao comentar o crescimento deeditoras universitárias na Bienal doLivro de São Paulo. Coisa de um anoatrás, fiz as contas de um dos númerosdo suplemento �Resenhas� da Folhade S. Paulo: dos dezesseis títuloscomentados, onze eram de editoras uni-versitárias; e todos apresentavam in-

teresse curricular, prestavam-se aalguma inserção em programas decursos. Isso, reconhecendo que desdeentão, depois de se chegar a um ponto-limite de academicização da crítica,observa-se abertura nesse e em outrossuplementos, com mais resenhistas ecomentaristas escrevendo como leito-res e não apenas como professores,dirigindo-se a um público mais am-plo e não só a colegas, alunos e orien-tador. Indício da mesma abertura éscholars , de Harold Bloom a JoãoAlexandre Barbosa, estarem escreven-do sobre suas leituras na primeirapessoa, mostrando que há um sujeitoleitor, uma sensibilidade pessoal, queprecede o instrumental teórico de queestão equipados.

A influência da universidade sobre ummercado de obras literárias possibilitaanalogias com o que ocorreu nas artesvisuais, denunciado, uns quinze anosatrás, por Tom Wolfe em A palavra pintada(L&PM). Para o jornalista norte-americano, com o crescimento de impor-tância e de sofisticação da crítica, inver-teram-se suas relações com a criação. Acada vez que um crítico ou grupo decríticos indicava algo como sendo o maismoderno, dotado de valor, artistasaderiam a essa tendência. Nada de novo,é evidente, em autores produzirem comum olho no público e outro na mediaçãomais importante para chegar lá. Con-tudo, quanto mais a crítica se siste-matiza, se apresenta como conjunto

impessoal de conceitos, tanto mais iráoferecer referências igualmente preci-sas do que se espera do aspirante àcarreira literária. Outrora, a questão,para o iniciante nessa trilha, seria per-ceber o que agradaria a Brito Brocaou Agripino Grieco. Hoje, tarefa aexigir menos da intuição e da telepatia,ou da sociabilidade, é o poeta biônico,indigitado por Waly e outros, estudara lição de casa e ajustar-se a esse ouaquele paradigma.

O uso de termos bipolares nãodeve servir a que se projete a sombrado maniqueísmo sobre essa discussão.Em primeiro lugar, não obstanteWaly haver assumido o posto de ava-tar do antiacademicismo, algo de seuprestígio se deve ao endosso pordocentes como Antonio Medina Ro-drigues. Além disso, epígonos, forma-dos ou não em Letras, não provocamdanos permanentes. Passarão, comojá foi observado antes. E a Univer-sidade consolidar-se como lugar, nãosó de transmissão, mas de produçãodo conhecimento, corresponde a umatendência secular. Mesmo com todosos problemas que qualquer pré-ves-tibulando conhece � departamentosque são perfeitas paróquias, promo-ções injustas, boicote a talentos econtribuições relevantes, produção emsérie de repetidores de fórmulas, es-forços e recursos investidos em traba-lhos tipicamente circulares, para justi-ficar esse ou aquele método e não para

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avançar no conhecimento �, quererrevertê-la pode ser um chamado aoobscurantismo, à supressão do quetem de produtivo. Seu papel, hoje, éaquele que lhe cabe em sociedadesleigas, abertas. Deixou de ser lugarde formação do clero para contribuir,não só para o desenvolvimento cien-tífico e tecnológico, mas, a partir dosanos 1960, para a formação de movi-mentos sociais.

Contudo, admitindo que exista umacrítica universitária sob forma de doxa,de corpus estruturado agora em crise, teráela sido canônica? Sim e não. Certamentenão, se tomarmos como referência aque-la particular ortodoxia que marcou opanorama norte-americano comentado aci-ma, onde todo mundo, ou quase (lem-brando que Black Mountain, reduto darenovação, também foi uma instituiçãode ensino superior), rezava pela cartilhado New Criticism. Pode-se, como exer-cício de indagação, sem desconsiderara contribuição substanciosa de autoresligados à Poesia Concreta, querer saberse a adoção do estágio seguinte ao for-malismo em cursos de Letras não am-pliou seu prestígio, enquanto realizaçãomais acabada de idéias construtivistas.Mas hoje há pluralismo nessa área, aomenos no sentido de serem muitas asorientações teóricas. O panorama ofere-cido por algumas das universidades, aomenos, não é um deserto criativo. Apropósito, tendo sido convidado, repe-tidas vezes, para julgar poesia no

concurso Nascente, da USP, sempre medei por satisfeito com o que li. Nesse eem outros lugares, existe gente escre-vendo sem se limitar à subliteratura ouaos chavões indigitados por Waly. E avalorização do modo cerebral, a frio, decriação poética, tomando João Cabral esua defesa da supressão da emoção comomodelo único e excludente, não é umviés apenas universitário, porém um com-ponente de um positivismo que impreg-na toda a elite cultural brasileira. Daíautores excêntricos, delirantes, que fo-gem ao paradigma realista, terem sidosistematicamente postos à margem, con-forme, para ficarmos só na produçãoem prosa, o que tem saído ultimamentesobre o reconhecimento tardio de Rosá-rio Fusco, Murilo Rubião, Campos deCarvalho, José Alcides Pinto, UílconPereira etc.

A propósito, ainda, de abertura,tempos atrás, Ivan Teixeira publicouuma série de artigos nesta CULT, resu-mindo e cotejando teorias literárias erespectivos métodos. Implícita na série,uma defesa do pluralismo. No entanto,a utilização de mais de um quadro dereferências não basta, pela seguinterazão: estruturalismos, abordagens so-cioculturais, o que for, são partes quenão se somam, sistemas fechados, anta-gônicos em seus fundamentos episte-mológicos. Querer simplesmente juntá-los seria igual a um psicólogo acendervelas ao mesmo tempo a Freud e aobehaviorismo: não dá, não há como fazer

isso respeitando minimamente sua inte-gridade. Mais importante é reintrodu-zir noções exteriores a esses paradigmas,arejando-os, a começar por aquelas daFilosofia (o que remete, novamente, atrabalhos como os de Benedito Nunes).Também é urgente, mais ainda aqui,onde primeiro se estuda Bakthine, paradepois, como exemplificação de seusconceitos, ler Rabelais e Dostoiévski,examinar o conhecimento de literaturacontido na criação original e o teste-munho dos próprios criadores. Nessesentido, é ótimo disseminar-se a práticade oficinas e rodas de leitura em institui-ções de ensino, desde o primeiro grauaté a pós-graduação. Mas professorese alunos envolvidos nesses programasdevem esquecer o que já aprenderam,em uma espécie de zen-budismo apli-cado à leitura, desburocratizando-a pararecuperar uma informalidade insepará-vel da sua vivência.

Felizmente, nenhuma dessas pro-postas e procedimentos é de um ine-ditismo chocante. Assim como, remon-tando ao início desse texto, não devemsurpreender a ninguém os termos uti-lizados por Benedito Nunes para fina-lizar seu balanço da crítica: No entanto,crise não é catástrofe. Crise é incerteza do quefazer agora e do que virá depois.

Claudio Willerpoeta, autor de Anotações para um apocalipse (Massao Ohno),

Jardins da provocação (Massao Ohno/Roswitha Kempf) e Volta

(Iluminuras), é ensaísta e tradutor, tendo organizado e traduzido

Lautréamont – Obra completa (editora Iluminuras)

Allen Ginsberg e Neal Cassadyem São Francisco

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M e m ó r i a e m r e v i s t A

Por empréstimo cortês de João Antônio B. de Almeida, carpineiro quecoleciona coisas de nosso passado cultural, tenho em mãos o no 137 (Ano34), jul-ago-set/1954, da Sul América, revista trimestral então editada pelaSul América Companhia Nacional de Seguros de Vida e direcionada paraclientes efetivos e em potencial da empresa.

Extremamente singela, tendo na direção Francisco de Assis Barbosa, arevista apresenta as matérias próprias de sua natureza � sociais, distração,culinária, cruzadas, moda � tudo com economia de texto e suficientesilustrações.

Diríamos surpreendentemente, não fosse Francisco de Assis Barbosa adirigi-la, destaca-se a presença de nomes notáveis de nossa cultura: LúciaMiguel Pereira, Orígines Lessa, Carlos Drummond de Andrade, Antóniode Alcântara Machado, Paulo Rónai, Gilberto Freire. Nem tudo o que essesautores escrevem terá sido inédito, mas o simples fato de estarem ali presentesimpressiona.

Em seu artigo �Uma geração sem palavras� lamenta Rónai: �A pobrezade vocabulário é uma conseqüência sobretudo da falta de leitura. Os nossosalunos de hoje não têm tempo de ler (...) Não têm tempo de ler porque orádio e o futebol, mas sobretudo as histórias em quadrinhos e o cinemaocupam-lhes todos os lazeres (e note-se que não falo nos passeios emautomóvel, nem na televisão, por enquanto privilégio de uma minoria). Todosesses divertimentos contribuem para desprestigiar a palavra escrita e, emgeral, o esforço mental (...) Trata-se uma crise geral da civilização, está certo.A cultura que nos criou, baseada toda ela na palavra escrita, está em via dese transformar, e, forçosamente transformar-se-ão também seus meios deexpressão. Mas o ritmo dessa metamorfose é menos rápido do que o doempobrecimento intelectual dos nossos jovens, que estão abrindo mão deuma ferramenta preciosa antes que a nova marca se encontre à venda.�

O texto de Drum-mond parece-nos úni-co. Sob a chamada

�mistério e poesia� intitula-se �Um pato nasceu�. Calcado emensaio fotográfico, eis o final de sua gostosa prosa poética: �Queeste sorriso [o do patinho recém-nascido], fecho da deliciosa sériede fotografias inglesas de Steve Henty, faça algum bem ao leitor.E que este, em recompensa à lição de boa vontade, abandone porduas semanas a tentação verdadeiramente sádica, de comer o seucanard à la rouennaise, cuja receita assim começa: �Estrangule-se umpatinho novo, apertando-lhe o pescoço, ou senão, enfie-se-lhe umaagulha comprida na cabeça, no lugar onde há um pequeno orifício;trate-se de depená-lo depressa, enquanto estiver quente, e corte-seo pescoço e depois a ponta das asas...��

Cláudio Giordanobibliógrafo, editor e tradutor, concebeu e dirige

a Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes

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CINEMA DEIMANÊNCIA

Caetano Veloso durantefilmagem de O cinema falado

CARLOS ADRIANO

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Muito falado e pouco visto, O cinema falado, filme experimental

de Caetano Veloso que segue a linhagem do disco Araçá azul e

de algumas canções de Velô, Uns e Outras palavras, toma

partido da vereda autoral e foge às convenções narrativas e

técnicas, afinando-se à pesquisa e à recusa de fórmulas

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primeiro e (até agora)único filme de CaetanoVeloso foi assim definidopor ele: �O cinema falado não

é um filme. É um ensaio de ensaiosde filmes possíveis para mim e paraoutros�.

Dois meses antes da estréia, noti-ciou-se o título �definitivo� Filme deensaios: O cinema falado. Demarcando seuprojeto de experimentação, faz dis-correr um mundo mental de reflexõessegundo gosto pessoal, repertório ar-tístico e princípio estético, em formasassociativas, disjuntivas e digressivas.

A fala encena o papel principal eestá no foco do tema e da ação, emestatuto quase ontológico que ecoa umverso de �Outras palavras� (�comona palavra palavra a palavra estou emmim�). É um cinema da fala. O dis-curso verbal adquire existência autô-noma da narração diegética e instauraa enunciação irredutível, de acordocom o conceito de cinema paramé-trico-estrutural (esses conceitos forampesquisados por mim na dissertaçãode mestrado Um cinema paramétrico-estrutural: Existência e incidência no cinemabrasileiro apresentada à USP, sob aorientação preciosa de Ismail Xavier).

O filme paramétrico-estrutural éo que aciona procedimentos formaisque libertam os parâmetros da gramá-tica cinematográfica (por exemplo: omovimento da câmera e o corte valempor si mesmos no jogo de significa-ções). Esses elementos constituem ocerne da experiência de percepção nocinema.

No filme de Caetano, o parâmetroda fala (monólogo, diálogo) já é e-nunciado no título e na abertura � azoom-out da boca do cineasta JulioBressane dizendo: �na língua portu-guesa, a palavra prosa também querdizer conversa, conversação�. Daí, eleaponta para uma bandeja que passana festa caseira: �dois dedos de pro-sa�, detonando o ritmo da profusãode paródias e associações de citaçõesque o filme vai levar a cabo, de bocaem boca.

Há partes anunciadas por letrei-ros compartimentando cinema, músi-ca, dança, pintura, literatura, mas asdisciplinas estanques se inquietam,contaminam-se e se interpenetram. Otexto polivocal do filme encadeia nocordão inconsútil Godard e Wenders,Webern e Cage, Tom Jobim e JoãoGilberto, Hélio Oiticica e Picasso,João Cabral e Augusto de Campos.

O cinema falado é um filme deousada radicalidade quanto à opçãoautoral.

O que é interessante (ou fácil e aomesmo tempo difícil), em se tratandode um artista que implantou umarevolução na música popular e atuano mercado do show bizz de modoparadoxal. É obra de �um dos ver-dadeiros individualistas da música�(para citar a definição da resenha deNoites do norte publicada no New YorkTimes).

Luciano Figueiredo, um dos maisinventivos artistas plásticos do Brasile diretor de arte de O cinema falado,declarou à época do lançamento: �ofilme não é escravo das citações�.

Curiosamente, é uma frase queconversa (retro e prospectivamente)com a afirmação de Caetano sobre simesmo (na entrevista publicada nestaedição): �eu sou escravo das canções�.

A estréia do filme ocorreu em 1986no FestRio, sob apupos (na estréia emSão Paulo, colheu aplausos). A ira ne-gativa angariou diretores esteticamentetão discrepantes quanto Arthur Omare Suzana Amaral.

Sem ter visto o filme nem quererfazê-lo, a diretora definiu Caetanocomo �urubu da vanguarda, que vivecopiando cadáveres� e sentenciou obordão: �se não tenho talento para umacoisa, não me atrevo a fazê-la; cadamacaco deve ficar no seu galho� (aoque ela foi aconselhada �a ficar em casapassando óleo de peroba nos móveis�e a voltar ao tanque e ao fogão).

Noticiou-se que o cineasta ArthurOmar se manifestou inexplicável eacintosamente durante a projeção,protestando contra a �estética ultra-

passada� de uma obra �que parecemofada�, como ele alegou. Ele tambémquestionou �a utilização maciça da mí-dia, que colocou o filme como inova-ção�. Omar � artista original e radicalda vanguarda brasileira � ponderou:�Não gosto do filme, mas sou solidáriocom ele na medida em que assume, deforma radical, a autoria. É um filmeradicalmente pessoal e autoral�. E com-pletou: �A palavra no cinema brasileirojá foi explorada com maior radicalismoe sutileza. Mas se trata de um filmerico, cujo potencial de discussão não foiesgotado, sequer foi tocado�.

Julio Bressane, outro cineasta radi-cal, inovador e original, um autorseminal do cinema nacional, afirmou,lapidar e contundente: �o filme causouestranheza porque é um filme mentale a platéia é pré-mental�.

No coro dos contrários e descon-tentes, fora a reação de Omar, pareceter havido um certo compadrio corpo-rativista da classe, que confundiu inva-são de áreas e inversão de competên-cias, reduzindo a apreciação ao merofato de existir o filme de um cantorfamoso da música popular (e que pa-recia ameaçar a seara alheia).

O cinema falado referendava a Belair� produtora de Bressane, Sganzerla eHelena Ignez, que perpetrou criativo�terremoto clandestino� em 1970, aofazer em três meses sete filmes de arro-jada e radical fatura � e ia na contramãoda �estética publicitária� e do �cultotecnicista� que grassavam no cinemada década de 1980.

As despojadas condições de produ-ção do filme, que muitos encaravamcomo �amadorísticas� (mas que se in-seriam numa tradição de ruptura eseguiam o esquema de produção dosdiscos do autor), sinalizavam uma ati-tude de negação à meta de um certocinema brasileiro �profissional�, an-sioso por ser legitimado pelo crivo dacompetência e da eficiência industriaiscomo produto de bilheteria.

Vale citar, no aspecto �filme casei-ro�, que um dos gêneros do undergroundamericano � movimento-chave na ra-

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dicalização e difusão da vanguarda nocinema � justamente se pautava nocaráter livre e espontâneo do home-movie. É claro que havia outras ten-dências no experimental que explora-vam o caráter rigoroso e predeter-minado das formas � como o cinemaestrutural.

Mas cineastas como Stan Brakhagee Jonas Mekas redefiniram o vocabu-lário fílmico ao subverter os expe-dientes banais do filme doméstico.Mekas registrou toda uma (sub)cul-tura no chamado filme diário. EBrakhage (um dos mais influentescineastas da avant-garde) criou umaobra monumental, de complexas con-junções, no âmbito do cinema mito-poético.

Portanto, poderia ser (além depertinente ao projeto intrínseco) umaestratégia de �mercado� de Caetano,face à sua ligação com o mundo doconsumo da música popular: um fil-me �caseiro� (e tecnicamente bem-acabado) que dá vazão à veia inovadorano circuito redundante do pop.

Filme muito falado e pouco (mal)visto, merece objetiva re-visão (e quetal lançá-lo em DVD, distribuidores?).Se, algum dia, for escrita uma históriado filme experimental no Brasil, Ocinema falado deverá ocupar um capítuloao lado de suas mais altas realizações(independentemente do fato de ter sidofeito por um compositor e cantor demúsica popular).

Longe das paixões de circunstân-cia, vale a pena tentar ver o ponto deinflexão deste filme deslumbrante na�linha evolutiva� do cinema brasileiro(para remeter a uma expressão de Cae-tano sobre o corte epistemológico deJoão Gilberto e do tropicalismo na mú-sica brasileira).

O filme dialoga com diretores e es-colas da história do cinema, sintoni-zado à vertente mais experimental (oque é uma opção não muito comumno cinema brasileiro). E, nesse viés,esbanja coragem e integridade (artigosmeio em falta no mercado cultural dasduas últimas décadas do século XX).

Sua proposta foge das convençõesnarrativas (entrecho episódico, códigosde representação, modos de identifica-ção e ilusão) e técnicas (média de �boa�produção, critérios de comércio e con-cessão popular). Assumido como fil-me de ensaios e ensaio de filmes, tomapartido da vereda autoral (o diretor dofilme na primeira pessoa do singular),afinando-se à pesquisa (metalinguagem,realidade da experiência, descontinui-dade e alusão) e à recusa de fórmulas(exigências próprias, intransigência éti-ca e compromisso estético).

Cada seqüência coloca questões nolimite confessional e o risco de interrogá-las irredutivelmente. Até por tais pre-ceitos, a irregularidade imprevisível deresultados é um dado inerente à aventurada audácia (que se traduz vulgarmenteno provérbio: �sem chute, não há gol�).

�Objeto quase artístico�, o filmeO cinema falado está na linhagem dodisco Araçá azul e de algumas cançõesde Velô, Uns e Outras palavras (e outrosdiscos de teor mais experimental). Seo visionário Abel Gance vaticinou que�o cinema é a música da luz�, Caetanofez seu solo nessa pauta, partitura devícios e virtudes dos artistas que re-gem suas ambições entre cinema emúsica.

O filme privilegia o discurso ver-bal, mas problematiza a tensão ima-gem/som. Citemos brevemente momen-tos em que a fala assume autonomia(�parâmetro-estrutural�) em relação aoutros níveis diegéticos.

Tomemos dois longos planos-se-qüências (os poucos cortes parecem tersido exigidos por eventuais erros ouporque a fala não cabia no tempo dochassis da câmera e da bobina do ne-gativo). Um texto de Thomas Mann(casamento, homoerotismo) é dito porPaulo César de Souza no originalalemão (com legendas). O tradutor estána praia, de costas para a câmera.Escassa, a decupagem é reiterativa, res-saltando o texto em sua matéria mesma,corroborada pelo impacto da línguaestrangeira naquele ambiente. Noutraseqüência de parcos cortes, um trechode Grande sertão: Veredas é dito porHamilton Vaz Pereira, após comentara adaptação televisiva. Saindo do sofá,o diretor de teatro vai para um cantoda sala, junto à parede espelhada, e

Caetano durante filmagemde seqüência de O cinemafalado baseada na novelaMelanchta, de Gertrude Stein

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passa a falar o (desdramatizado) texto.A discreta enunciação destaca entona-ções e ritmos que dão ironia e tom aoescrito.

A seqüência com o poema Orga-nismo, de Décio Pignatari, contrasta falae corpo emissor. Após a coreografiaestática de um homem negro e umamulher branca no piso em preto ebranco, ocupando as áreas de cor con-trárias à cor da pele (alusão ao filmePátio de Glauber Rocha, xadrez con-cretista de corpos), o rapaz (aparênciasimples) declama. Há um choque (pelorepertório culto do poema) e uma iden-tificação (pelo teor gozoso do texto),provocando um estranhamento seme-lhante àquele produzido por Pasoliniquando fazia proletários e prostitu-tas(os) dizerem textos clássicos da altaliteratura italiana. O filme traz aindapoemas de outros autores, lidos e audio-visualizados, em outras claves.

Voz e enunciação são conjugadosem diversos termos cotidianos. Umacena popular exibe o depoimento daatriz Regina Casé, comentando a ex-periência de ter visto Fidel Castrooperar seu discurso público-político.Como numa entrevista informal, elaimita gestos e posturas do comandantecubano, opinando sobre a eficácia dacomunicação. O dote histriônico daatriz contamina a interpretação, numaperformance que parodia a inflexãopolítica e o estilo pseudo-íntimo de ce-lebridades da mídia.

Em outra cena, Regina Casé inter-preta (distanciada e antinaturalistica-mente) trechos da novela Melanchta, deGertrude Stein (traduzidos por Cae-tano). A prosódia coloquial do textoculto-despojado ganha dimensão poéti-ca com as estranhas (e coloquiais) ima-gens, como a passagem do trem trans-formada em borrões abstratos de luz ecor na estação ou a melancolia lírica dafavela embalada por Billie Holiday.

Outro momento popular do filme,alcançando clímax de crispada beleza,é quando Dona Canô canta �Últimodesejo�, de Noel Rosa. A voz afinanoutro diapasão ao lembrar o denomi-nador comum de Noel � foi a audiçãode Aracy de Almeida sambando o pri-meiro verso de �Não tem tradução�que motivou o filme (�o cinema faladoé o grande culpado da transforma-ção�). E podemos pensar como o ci-nema (ainda mais da fala) é mesmoum agenciador de transformações emmúltiplos sentidos e esferas.

A coda do filme genial é atéprogramática (pelo devir utópico davanguarda), com uma citação deHeidegger, que Caetano dizia no show�Velô�. Depois ele resolveu, como noscontou, �usar como texto final dofilme, dito por uma criança do sexofeminino ao som de uma peça de JohnCage para piano preparado�. Para ele,�A história toda é curiosa, pois no�Velô� eu só falava duas breves vezes.Esse texto de Heidegger num dado

momento e, em outro, um trecho deO homem sem qualidades, de Musil(adoro esse livro), que era algo sobreo homem que, habituado aos pânta-nos, é incapaz de reconhecer profun-didade quando vê a imensidão brilhan-te do oceano�.

No misterioso plano final, Nina(filha do compositor Péricles Caval-canti e da produtora Lidia Chaib) falana relva: �Igualmente incerto perma-nece se a civilização mundial será embreve subitamente destruída ou se secristalizará numa longa duração quenão resida em algo permanente masque se instale, muito ao contrário, namudança contínua em que o novo ésubstituído pelo mais novo�.

O compositor de Cinema trans-cendental fez um filme de invenção eimanência. Em O cinema falado ,Caetano Veloso toca questões aborda-das por Deleuze em Imagem-tempo,como a apurada noção de tempora-lidade e o encanto da depuração dosnoosignos na esfera musical do pen-samento.

O cinema falado não é �cinema falido�nem �falhado�, como insinuou a male-dicência troça-dilhesca de seus detra-tores ignorantes. Obra-prima de rigor,é um cinema de falésia, porque de ousa-dia e desafio.

Carlos Adrianocineasta, realizador dos filmes Remanescências, A Voz e o Vazio:

A Vez de Vassourinha e A Luz das Palavras

Texto redigido com a colaboração de Bernardo Vorobow

Cena de O cinema faladoem que Paula Lavigne

regurgita palavras dofilme O exorcista

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de São Pedro. Esse ato, contudo, nãoimpediu a persistência de lutas e de-sacertos, tampouco arrefeceu o senti-mento de território periférico. O RioGrande forjou-se, pois, a partir danecessidade de afirmação em face dopoder central brasileiro e da proximi-dade, ora ameaçadora ora atraente, deterras castelhanas. Essas, aliás, em con-dições assemelhadas às nossas. Na di-nâmica de tais forças, se constituiu umamálgama cultural respeitável, a pro-por mais e mais aspectos a considerar.

Ao rechaço da Coroa se acrescentoua vivência do "drama da fronteira"envolvendo o Rio Grande e as regiõeslindeiras do Uruguai e da Argentina.Periferia e fronteira estão fadadas acompartilhar desditas, desvantagens.Mas não só isso. Devido à condição demarginalidade, tendem a usufruir deuma liberdade impossível para popula-ções próximas da �lei e da ordem�.

Dessa conjunção, emerge uma ideolo-gia vigorosa, guiada pela intuiçãopopular de luta por valores liberais elibertários. Assim, os habitantes des-sas terras identificaram-se e passarama ser vistos como contestadores, comtendências autonomistas. �La dura vidaimpuso a los gauchos la obligación deser valientes�, diz Jorge Luis Borges.O poeta corrobora a tradição oral, quefirma a imagem heróica do gaúcho, oqual, só no século XIX, passa a temade interesse literário. Um fenômenocomum tanto entre sul-rio-grandensescomo entre uruguaios e argentinos. Jáse indicia aí que fronteiras culturais elinguagem resistem às delimitações geo-políticas bem mais do que o estabelecidoem tratados. Mesclam-se em suas tri-lhas ambivalências e ambigüidades deordem social, lingüística, existencial.

A vivência do �drama da fronteira�implica, pois, complexidades que sub-

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E cada um tinha que ser um rei[pequeno...

e agüentar-se com as balas, as lunares eos chifarotes que tinha em casa!...

Foi o tempo do manda-quem-pode!...E foi o tempo em que o gaúcho,

o seu cavalo e o seu facão, sozinhos,conquistaram e defenderam estes pagos...

Simões Lopes Neto,�Contrabandista�,

Contos gauchescos e lendas do sul

situação geopolítica do territóriosulino brasileiro foi decisiva para di-ferenciar seu desenvolvimento social,econômico e cultural do restante dopaís. Primeiramente, interessara àMetrópole como potencial produtivoe, mais tarde, como espaço estraté-gico, limítrofe com os países do Prata.Mas permaneceu espécie de �terra deninguém� até 1737, quando o Briga-deiro Silva Pais fundou o Rio Grande

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Acima, Maria Helena Martins, coordenadora do projetoFronteiras Culturais e, na página oposta, xilogravurade Vasco Prado para o IV Congresso Brasileiro deEscritores ocorrido em 1951

Divulgação

Leia a seguir o último ensaio

da série que a CULT publica a

partir de conferências

apresentadas no I Encontro

Fronteiras Culturais (Brasil-

Uruguai-Argentina) � promovido em

dezembro passado pelo Centro de Estudos

de Literatura e Psicanálise Cyro Martins, de

Porto Alegre � que discute o lugar do Rio

Grande do Sul na confecção de uma trança

cultural entre Brasil, Uruguai e Argentinasistem em várias facetas da vida nocampo e nas cidades. Mas é nessasque a dramaticidade tem uma dinâmicaquem sabe insuspeitada pelo his-toriador Othelo Rosa, quando usou aexpressão, referindo-se à formação doRio Grande. A questão das frontei-ras parece hoje mais intrincada devidoa contingências socioeconômicas doque a problemas de identidade nacio-nal. Aliás, não se notam dúvidas quan-to à sua nacionalidade, por parte doshabitantes dessas cidades. Há, porém,fortes indícios de que particularidadesafloram das/nas práticas culturais daregião, aparentemente pouco perce-bidas e valorizadas por sua população.Certos costumes, o falar, o trânsitoentre o lado de cá e o de lá, a arquitetura,o cotidiano, as relações, o trabalho, olazer, o comércio, são permeados porum modo de ser fronteiriço, algo quefoge às delimitações dos mapas. Oconvívio das pessoas parece fluido efácil � natural. Essa transparência, noentanto, talvez não corresponda, paraa maioria da população fronteiriça, aconhecimento mais amplo e apro-fundado de significados que esse con-texto gerou e atualiza constantemente.

Há menos de três séculos, antepas-sados de moradores dessas cidadesliteralmente batalhavam pela sobrevi-

vência, em espaço sem cercas, naCampanha, no Pampa, num �manda-quem-pode�, pouco importando secastelhano ou se brasileiro. Mais tar-de, passaram a lutar no e pelo nacode terra que lhes concediam os donosdela. Depois, uns poucos consegui-ram conquistar, a laço e no lombo docavalo ou pelos enlaces, sua parte nassesmarias; muitos, porém, enxotadosdo campo, foram constituir as �co-roas de miséria� das vilas fronteiri-ças, onde alguns resistiram, uns fo-ram minguando, outros se fizeram eassim construíram as cidades, peque-nas cidades.

Apesar dessa notável transformação� ou talvez até por isso �, a imagem dogaúcho �monarca das coxilhas� conti-nua fascinando, alimentando o imagi-nário, tanto de quem teve quanto dequem não teve vivência campeira. Sejamdespossados, remediados ou abonados. Nobre-za e valentia permanecem seus atribu-tos, decantados por meio de um aparatoinstitucionalizado pelos Centros de Tra-dições Gaúchas (CTGs) desde a déca-da de 1950, que se alonga no tempo,se espalha pelo mundo. Afinal, mitos,lendas e façanhas são adereço da histó-ria, matéria de poesia, desafio à reflexão.

Fato é que gaúchos e gauchos atra-vessam as literaturas nacionais para

compartilhar aspectos da gauchesca,assim como o cotidiano de habilidades evícios; negócios, amores e inimizades;temores, costumes, vestuário, crenças,lendas, tradições. Apesar de definiçõesespaciais às vezes indistintas, se-moventes, parece haver um tácito acordoquanto a cada lado a seu modo, em cada umdesses aspectos, sem que uma culturasubjugue outra; ao contrário, elas sesomam, contrastam, se entreveram.

Assim o Rio Grande do Sul foi-seconstituindo como espaço privilegiadopara firmar essa �trança cultural� entreos três países. Conhecer e compreenderas relações entre as populações frontei-riças, aprofundando a investigação sobreseu contexto vivencial, é fundamentalpara potencializar essa realidade, essatrança. Desse modo, não soa como utó-pico pensar que a observação e compre-ensão de tais características possa favo-recer também acordos governamentaise empreendimentos empresariais, semos sobressaltos a que hoje estão sujeitos,em função de circunstâncias políticas eeconômicas (caso do Mercosul).

Laços culturais são profundamentearraigados, avessos a determinaçõescontratuais. Constroem-se passo a pas-so na convivência, nas esperanças e nasfrustrações cotidianas das comuni-dades envolvidas. Esses laços são fru-

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tos do esforço coletivo de gerações,enfrentando adversidades e cimen-tando a integração. Difícil dizer emque grau essas comunidades compar-tilham essa visão. Mais parece queainda não pensaram, suficientemente,a respeito. Por isso, um olhar forasteirotalvez provoque nos habitantes dessecontexto uma outra leitura de si, domundo em que vivem e, assim, im-pulsione-os ao reconhecimento do di-ferencial de sua própria existência.

Ser periférico e valiente é do gaúcho;algo sabido e alardeado (�Ah! Eu sougaúcho!�). Mas em que medida atrajetória que forjou essa imagempertence à história pessoal e familiardos moradores atuais das cidades fron-teiriças? Como as marcas históricas semanifestam hoje? Essa populaçãourbana seria menos afoita que oscampeiros da primeira hora, na lutapela obtenção de seus direitos sociaise políticos, pela sua cidadania? Comose processaram os entrecruzamentosde tantos componentes contextuais eaté que ponto o �drama da fronteira�foi superado, transformando prejuí-zos em vantagens e possibilidades aserem desenvolvidas? Que relaçõessignificativas os leitores estabelecemcom a literatura e a história que tomouo cenário e a gente da Campanha ou

de sua própria cidade como referen-ciais? Como as representações ficcio-nais do gaúcho � o �centauro dospampas� � e seu oposto � o �gaúchoa pé� � são incorporadas pelo imagi-nário, se mesclam à realidade, im-pregnam mentalidades, interferem nalinguagem, nos costumes, nas relaçõessociais, nos procedimentos dos cida-dãos?

Essas questões, dentre outras, le-varam à concepção do projeto Fron-teiras Culturais (Brasil-Uruguai-Ar-gentina), em que se trata de identificar,fomentar e difundir características decidades fronteiriças do Rio Grande doSul com uruguaias e argentinas, pro-pondo simultaneamente pesquisa depráticas culturais e incentivo às mes-mas; investigação de suas especifi-cidades e similitudes, promovendo oautoconhecimento e o intercâmbio. Talproposta pretende assinalar aspectos davida dessas populações, cultivados atra-vés da história compartilhada e de laçossociais (quando não familiares), abor-dando-os a partir de sua literatura, sualinguagem, seus costumes, sua histó-ria, sua geografia, suas fronteiras cul-turais, enfim.

No processo de busca, outras per-guntas certamente vão surgir, antesmesmo de se encontrarem algumas

respostas. Até porque, ao nos apro-ximarmos mais do contexto a estudar,questões prepostas vão assumindonovas configurações, tornando aindamais complexo o que se pretenda es-clarecer.

Iniciamos agora o confronto entreconjeturas e realidades. O projeto vaia campo nas cidades de Livramento(Brasil) e Rivera (Uruguai). Já aí de-paramos algo extraordinário: uma fron-teira seca, na qual o meio-fio de cadalado de uma rua indica a LinhaDivisória entre os países, sem qual-quer sinalização. Ao andar para umlado ou para outro dessa demarcaçãoquase virtual, observam-se aspectosdiversificados, indiciando serem ci-dades irmanadas não por identidade,mas por complementaridade. Inte-gração é palavra que seus habitantesparecem conhecer de nascença.

Esse é um veio a explorar. Atéonde e ao que ele pode levar? Noscruzamentos de imaginário e reali-dade; no diálogo do passado com opresente; nas visões de velhos e jovens� que futuro se projeta?

Maria Helena Martinsdoutora em teoria literária e literatura comparada pela USP, é

consultora do Itaú Cultural e autora de Agonia do heroísmo –Contexto e trajetória de “Antônio Chimango”, O que é leitura,

Crônica de uma utopia – Leitura e literatura infantil em trânsito; crioue dirige o Centro de Estudos de Literatura e Psicanálise Cyro Martins

e coordena o projeto Fronteiras Culturais (Brasil-Uruguai-Argentina)

representa cruzamento de fronteirasA globalização levanta questões de fronteiras, envolve acordos como o Mercosul e repercute em diferentes

setores da vida nacional. Mas ainda não despertou maior atenção quanto a fronteiras culturais e suas

transformações. O caso do Rio Grande do Sul, limítrofe com Uruguai e Argentina, é peculiar: formação histórica

e geográfica, constituição cultural e social, língua e literatura se mesclam nas fronteiras. Daí a importância

de examinar esse contexto, repensando seu passado e projetando seu futuro possível. Esse quadro motivou o I

Encontro Fronteiras Culturais (Brasil-Uruguai-Argentina), realizado em dezembro do ano passado pelo Centro

de Estudos de Literatura e Psicanálise Cyro Martins (Porto Alegre), com conferências, mesas-redondas e

círculos de debates que reuniram diversos especialistas em torno dos temas Fronteiras culturais e globalização,

Multiculturalismo e identidade nacional, Gauchesca: Entre sul-rio-grandenses e castelhanos, Intercâmbio cultural

e mercado editorial entre países platinos e Brasil, Instituições culturais e o Mercosul, Imaginário, memória,

criação na psicanálise e na literatura do Rio Grande do Sul, O papel da mídia e dos eventos culturais nas zonas

de fronteira e Linguagem literária: Desafios e limites na criação e na tradução. Os textos na íntegra serão

publicados em livro. Versão sintetizada de cinco das conferências está sendo publicada pela CULT desde abril

deste ano. Informações no site www.celpcyro.org.br e pelo e-mail [email protected]. O projeto é

coordenado por Maria Helena Martins, diretora-presidente do CELP Cyro Martins.

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26 Cult - agosto/200126

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�GOSTO DE SENTIRA MINHA LÍNGUA...�

Pasquale Cipro Neto

Vários dicionários (o Aurélio, o deCaldas Aulete, o etimológico de Ante-nor Nascentes, entre outros) dão co-mo hipotética esta origem de �roçar�:do latim �ruptiare�, proveniente de�ruptus�, particípio passado de �rum-pere� (�dilacerar�, �arrancar�, �ras-gar�, �abrir�, �varar� etc.). Estes sãoalguns dos significados que os dicio-nários enumeram para �roçar�: �1. Pôrabaixo; cortar, derrubar/ 2. Gastar como atrito/ 3. Atritar, esfregar, friccionar/4. Tocar de leve, brandamente/ 5.Passar junto de; rentear�.

Todas essas acepções de �roçar�cabem na leitura de �Gosto de sentira minha língua roçar a língua de Luísde Camões�. Mestre Manuel Said Ali(apud Evanildo Bechara) diz queCamões, �não sendo propriamente ocriador do português moderno (...),libertou-o de alguns arcaísmos e foium artista consumado e sem rival emburilar a frase portuguesa, descobrin-do e aproveitando todos os recursosde que dispunha o idioma para re-presentar as idéias de modo elegante,enérgico e expressivo. Reconhecida a

�da rosa no Rosa�), Caetano cita comoafluentes desse mar glotológico um por-tuguês, essencialmente poeta, castiço(Fernando Pessoa), e um brasileiro,romancista, lingüisticamente inovador(Guimarães Rosa). Rosa, por sinal, ins-pirou um verdadeiro monumento dalíngua, a belíssima �A terceira margemdo rio�, texto com que Caetano �le-trou� a primorosa música de MiltonNascimento.

Esse encontro Rosa/Pessoa talvezdefina bem o que sempre marcou atrajetória lingüística da obra de Cae-tano Veloso. Do rigor quase parnasia-no de �Livros� (obra-prima do anto-lógico disco Livro) ao coloquialismode �Vamo comer�, do experimenta-lismo do genial disco Araçá azul (e deoutras obras que têm forte relaçãocom a poesia concreta) e da erudiçãode �O estrangeiro� à informalidadede �Eu sou neguinha?� e de �Não en-che�, o trabalho de Caetano nos dáum substancioso extrato do que há deinteligente e inovador na linguagem dapoesia brasileira destas últimas quatrodécadas.

superioridade da linguagem camonia-na, a sua influência fez-se sentir naliteratura de então em diante até osnossos dias�.

A �língua de Camões� invariavel-mente nos remete ao português dePortugal, embora se saiba que o ritmocamoniano está mais próximo da ver-tente brasileira do português do quedo idioma hoje falado em Portugal, oque se explica pela consonantização deque se impregnou a língua da metró-pole. Se �roçar� de fato vem de �rup-tiare�, de �ruptus� e de �rumpere�,tem a mesma origem de �romper�.O roçar de que fala Caetano inclui aidéia de ruptura, inevitável num casocomo o da relação do português dePortugal com o português do Brasil.Ao fim e ao cabo, a nossa línguarealmente �roça� a língua de Camões:é e não é essa língua, fez-se e faz-sedela e nela, é-lhe fiel e trai-a, roça suaspernas nas dela e (às vezes, muitasvezes) copula com ela...

Não é por acaso que, sem perder aoportunidade de criar belos efeitos me-talingüísticos (�do Pessoa na pessoa�,

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agosto/2001 - Cult 27

Pasquale Cipro Netoprofessor do Sistema Anglo de Ensino, idealizador e

apresentador do programa Nossa Língua Portuguesa, da TV Cultura,

autor da coluna Ao Pé da Letra, do Diário do Grande ABC e de

O Globo, consultor e colunista da Folha de S. Paulo

Gosto de sentir a minha língua roçarA língua de Luís de CamõesGosto de ser e de estarE quero me dedicarA criar confusões de prosódiaE uma profusão de paródiasQue encurtem doresE furtem cores como camaleõesGosto do Pessoa na pessoada rosa no RosaE sei que a poesia está para a prosaAssim como o amor está para a amizadeE quem há de negar que esta lhe é superior?E deixa os portugais morrerem à míngua“Minha pátria é minha língua”Fala, Mangueira!Flor do Lácio, SambódromoLusamérica, latim em póO que querO que podeEsta língua?

“Língua”, Caetano Veloso

Em antológico texto, FernandoPessoa afirma que Portugal poderiadesaparecer, desde que nada ocorresseà língua portuguesa (�Minha pátriaé a língua portuguesa�). Açambarcan-do o texto de Pessoa e expandindo ouniverso daquilo que o poeta por-tuguês diz que pode sumir (�por-tugais�, no plural e com inicial minús-cula), Caetano também declara seuamor à língua (�A língua é minhapátria�) e convoca como testemunhaa Mangueira (�Fala, Mangueira!�),prova viva do que o poeta afirma em�Flor do Lácio, Sambódromo�.

�Flor do Lácio� é alusão explícitaao memorável poema �Língua Por-tuguesa�, de Olavo Bilac (�Últimaflor do Lácio, inculta e bela...�).�Lácio� é o nome português doLatium, região em que fica Roma. Alíngua do �Latium�, obviamente, é olatim. Por ser a mais jovem das lín-guas neolatinas, o português é a �últi-ma flor do Lácio�. �Sambódromo� épalavra do português brasileiro, masé o encontro de um elemento africano(�samba�) com um grego (�dromo�).

Caetano vai de Roma (�Flor doLácio�) ao Rio de Janeiro (�sambó-dromo�) em uma linha! Viaja por doismil anos de história em uma linha!

Bem, afinal, o que quer, o que po-de esta língua, em que �to be� se podetraduzir por �ser� ou �estar� (�Gostode ser e de estar�)? Quer muito. Epode muito! Pode ser instrumentopara que se cumpra o desejo expressoem alguns versos de �Língua� (�Alíngua é minha pátria/E eu não tenhopátria: tenho mátria/ E quero frátria�),ou seja, pode ser elemento de união,de igualdade, de fraternidade. Pode-se até filosofar com essa língua, con-quanto alguns doutos não consigamentender a ironia de Caetano em �Estáprovado que só é possível filosofar emalemão�, frase do ideário nazista dofilósofo alemão Heidegger. Imagine,caro leitor, que um luminar de umadas nossas escolas de Letras perdeu oseu precioso tempo para escrever-meuma carta em que desancava a mim e aCaetano, aos quais chamava �precon-ceituosos e retrógrados�. A mim, porter dito em um programa de televisão

que existe determinada regência verbal(�pensar um ferimento�, ou seja, �co-bri-lo com curativo�); a Caetano, por�dizer� que em português não é pos-sível filosofar. �Mas essa criatura nãoentendeu a ironia?�, disse-me Caetano,rindo desbragadamente.

Ignaras e paranóicas, as patrulhas(e as há, como as há!) não se cansamde perseguir Caetano. E até no ofíciode livrar-se delas ele é criativo. O úl-timo tapa de Caetano nessas tropas éjustamente o tapinha, que dói, comodói. Engatado em �Dom de iludir�,o refrão (�Só um tapinha não dói�)soa como algo rodriguiano e é repetidoaté perder o �não�.

A cultura brasileira e a língua por-tuguesa devem muito a Caetano. Nãoseria difícil fazer o �inventário� dessadívida, mas talvez faltasse espaço. Muitoobrigado, caro Caetano, por ter lançadoe lançar tantos mundos no mundo.

Até a próxima. Um forte abraço.

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C A E T A N OV E L O S O

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CAETANO VELOSO

EM IMAGEM REALIZADA ESTE

ANO EM NOVA YORK PELO

FOTÓGRAFO ANTHONY

BARBOZA, DE CABO VERDE

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BERNARDO VOROBOW

curador de cinema e programador cultural; criou e dirigiu o setor de cinema do Museu daImagem e do Som e o departamento de programação da Cinemateca Brasileira, foiprogramador de filmes no Museu de Arte Contemporânea e diretor da Sociedade Amigos daCinemateca; realizou os filmes Depois da Lua (ou Obrigado, Chacrinha), O Discursoe Cinema Paulista � Ovo de Codorna

CARLOS ADRIANO

mestre em cinema pela USP e cineasta; realizou os filmes A Luz das Palavras, A Voz e OVazio: A Vez de Vassourinha (melhor documentário Festival de Chicago; convidado: Roterdã,Toronto, Lussas, Nova York), Remanescências (aquisição/coleção The New York PublicLibrary); projetos premiados: Ministério da Cultura, Itaú Cultural, Petrobrás Cinema,Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo

Os entrevistadores hospedaram-se no Hotel Caesar Park Ipanema (Rio de Janeiro) aconvite de Caesar Park Hotels & Resort

ouvinte privilegiado de outros sentidos. Odisco Livro até seria uma boa coda como atrilha sonora desta leitura.Leitor voraz e variado, dotado de curiosi-dade, inteligência e sensibilidade singulares,Caetano transita por um amplo repertório,sem arrogância ou pretensão. No intervalode um dia entre dois encontros, por exemplo,ele lera um novo livro (além dos outrosalguns que lê simultaneamente) e, no calorda leitura, trouxe às respostas exemplos darecente colheita literária.O tom franco de entrega e confessional-mente direto das declarações não elide umvago desejo de manter (em algumas oca-siões) o mistério até certo ponto intacto (oua vontade de que ele se expresse por si só).Já no final do texto de contracapa do pri-

OUTRAS PALAVRAS

NO MÊS DO ANIVERSÁRIO DE CAETANO VELOSO,A CULT PUBLICA UMA ENTREVISTA EXCLUSIVA EM

QUE O COMPOSITOR QUE REVOLUCIONOU A MPBFALA DAS REFERÊNCIAS LITERÁRIAS DE SUAS

CANÇÕES, DE SUAS LEITURAS PREFERIDAS DE

FILOSOFIA, PROSA E POESIA, E DE SEU LIVRO DE

MEMÓRIAS, VERDADE TROPICAL

meiro disco solo, Caetano afirma: �porqueeu não quero, porque eu não devo explicarabsolutamente nada�. São as palavras�tentando roubar os nomes às coisas� (comoele escreveu no texto da revista Navilouca).Além de saborosas histórias e instigantesreflexões � e vamos, por que não? �, estaconversa (natural e despojada, plena degraça e bossa) é um manifesto entusiasma-do e entusiasmante, evidente e contundente,do amor à literatura (como instânciamediadora de nossa relação com o mundo eas pessoas, o ato de ler tão vital quantorespirar e conviver).E é uma prova da luz e da felicidade quemoram nos livros, do conhecimento e doprazer que podemos encontrar na(s)leitura(s).

CARLOS ADRIANO E BERNARDO VOROBOW

OUTRAS PALAVRASCCaetano Veloso sempre projetou em suas

canções um apurado sentido literário. Nãoapenas as letras de sua música exalam poesiae imaginação. O cotidiano do cantor ecompositor baiano está impregnado pelaexperiência da leitura e da literatura, de ummodo vivo e profundo.Caetano nos recebeu no Rio de Janeiro,cidade em que mora, com exclusividade egenerosidade (dado o tempo exíguo e osmuitos compromissos de um cantor popu-lar dos mais célebres do Brasil). Foramquatro encontros que vararam uma semanae resultaram no registro de quase sete horasde gravação.Nesta conversa que virou entrevista histó-rica, o leitor poderá entender como a leiturae a literatura (de um modo geral) estão pre-sentes na vida e na obra de Caetano Veloso.E vai se deparar com aspectos inéditos erevelações. Mesmo os mais ardorosos fãs efiéis aficcionados vão encontrar nessaspáginas uma miríade de surpresas, desco-nhecidas até para os que colecionam suas en-trevistas e para os que leram seu livro de me-mórias e trajetória, Verdade tropical, lançadoem 1997 pela Companhia das Letras.A pauta inédita sobre literatura comportououtras notas numa pauta que não deixou deser musical. Da literatura, a conversa aindapercorreu cinema, filosofia e cultura,esclarecendo e informando fatos relevantesdo processo de formação e de criação doartista. Talvez a entrevista possa iluminar aaudição das músicas (embora estas sejamirredutíveis), convertendo o leitor num

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CULT Você afirmou que a leitura de JoaquimNabuco mudou a concepção de seu novo disco,que veio a se chamar Noites do norte, e queoriginalmente você pensara em fazer experiênciascom som. O que eram essas experiências e comoa leitura de um livro mudou um projeto musical?CAETANO VELOSO A experiência doque viria a ser, nós não podemos ter umaidéia, porque não foi propriamente o que euterminei fazendo. Mas o que eu sonhava �e do que tem alguma coisa que permaneceuno disco que finalmente eu fiz � era umacombinação de percussões com voz. Eu que-ria usar a minha própria voz sem palavras,uma coisa como eu já fiz um pouco no Araçáazul e vez por outra faço. Eu tinha muitavontade de pesquisar mais, e tenho ainda.Alguma coisa ficou no disco, embora ascanções tivessem finalmente ganho seulugar. Porque outro dia falei: �Mas eu achoque sou escravo das canções�. A formacanção termina me dominando, me subju-gando. Então eu não sei exatamente comoseriam esses sons, mas há indícios delesnaquela longa coda de �Cantiga de boi� eem �Tempestades solares�. São algunsindícios do que eu estava sonhando em fa-zer predominar no disco.Mas realmente a leitura de Joaquim Nabucochegou numa hora em que aquilo me causouuma impressão tão grande que eu quasedesviei as minhas energias todas para tentarmusicar o trecho que elegi. Eu me apaixo-nei pelo livro Minha formação como um todoe pelo autor em geral. Dali extraí aqueletrecho que eu musiquei e que me impressio-nou muitíssimo. O fato de eu ter decididoou ter sido levado a musicá-lo fez com queeu me dedicasse a composições fechadas. Éengraçado, porque é um gesto de grandeabertura � musicar um texto em prosa e re-lativamente reflexivo, que aparentementeseria hostil à música. Curiosamente, parecia

um desafio, mas não foi vivido tanto comoum desafio. Foi uma coisa que me arrebatou,foi irresistível e terminei musicando.CULT Esses termos verbais afetaram a con-cepção de percussão e voz?CAETANO VELOSO Justamente, essaforma é o contrário, porque eu queriatrabalhar com sons, com a materialidade dossons, sobretudo com timbres de voz e debatuque, combinações várias desseselementos, algumas brincadeiras nas própri-as vozes, tanto de timbre quanto de altura,quase que de microtons também. Isso eraum pouco o sonho... E eu não pensava empalavras. As primeiras idéias que me vierampara o disco eram todas nesse sentido queeu acabei de descrever. Eu não pensava empalavras. Mas nesta altura, eu ganhei de pre-sente Minha formação e justamente foram aspalavras que me arrebataram e eu termineitrabalhando com elas. Eu acho que oJoaquim Nabuco é um grande escritor euma grande figura histórica no Brasil. Eufiquei maravilhado pelo contato com aexistência intelectual de Joaquim Nabuco.CULT Você nos disse que �as canções desse disconovo têm letras muito modestas do ponto de vistaliterário (embora �Zera a reza�, que abre o CD,seja feita em anagramas, e �Cantiga de boi� te-nha certa engenhosidade). Qual seria este disco?CAETANO VELOSO Não sei. Mas seique tanto Livro quanto Caetano ou Jóia ouOutras palavras ou Velô o são mais do queNoites.CULT Antes deste Noites do norte, seu últi-mo disco com músicas próprias e inéditas foi Li-vro. É coincidência ou pode ser lido como umaprova de que a literatura participa de seu proces-so criativo o fato de seus mais recentes discos comcomposições pessoais e novas serem tributários daliteratura?CAETANO VELOSO É um fato. Eutinha acabado de escrever um livro quando

eu estava começando a fazer o disco anteriora esse, então resolvi colocar o nome Livro.Eu ia colocar o nome do disco Prenda mi-nha, que veio a ser o disco tirado do show dodisco Livro. Mas o título que eu tinha ima-ginado primeiro era Prenda minha, sem quea canção �Prenda minha� estivesse presente.Era uma piada muito enviesada com o ne-gócio do Miles Davis e Gil Evans, quetinham dado aquele tratamento à canção�Prenda minha� e esse tipo de tratamentoera o que eu estava dando a muitas das can-ções do disco, meio imitando, meio home-nageando aquele estilo da colaboração entreGil Evans e Miles Davis. E como eu faziacom freqüência, queria fazer e fiz isso nodisco, eu ia colocar o nome Prenda minhasem grandes explicações. Mas a Paulinha[Lavigne], minha mulher, disse: �Puxa, masfica muito hermético, ninguém vai saberporque chama Prenda minha�. E eu: �Todomundo vai me perguntar e eu vou dizer.�[ri]Mas depois veio a idéia de colocar o nomesimplesmente Livro. Eu fiz uma cançãochamada �Livros�, por causa de eu terescrito um livro. O livro saiu mais ou menosna mesma altura do disco, então dava umabrincadeira. É uma brincadeira do mercado;uma brincadeira de considerar as duas coisascomo produto para o mercado. E essabrincadeira é curiosa, porque eu sou umapessoa sem nenhuma vocação para omercado, para o mundo dos negócios, oupara a competitividade capitalista. Eu nãotenho vocação nem formação. Eu sou filhode funcionário público que adorava serfuncionário público, e meu pai era umhomem que eu adorava. Então, a minhaidéia do mundo era muito pautada porvalores humanistas e universais, do universodo funcionário público honesto e que teve avida inteira orgulho de ser funcionário

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Anthony Barboza/Divulgação

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público. Eu entrei na música popular semquerer propriamente ser um profissional damúsica popular, não que eu me sentissesuperior a ela, ao contrário, eu me sentiapouco dotado para exercer a função demúsico popular. Ainda me sinto, mas achoque dá para fazer uma porção de coisas in-teressantes, que regeneram certas áreas daatividade, vitalizam certas visões da realidadeda canção popular, apontam coisas, enfimdá para fazer um negócio interessante, maseu mesmo assim não me sentia capaz paraisso. E, como competidor no mercado, eume sinto muito aristocrático, eu me sintomuito fora dessa questão. Eu sempre mesenti. O próprio tropicalismo começou comuma admissão consciente de que a gente es-tava produzindo coisas para o mercado deentretenimento. Era uma espécie deautocrítica sem culpa, sem julgamento devalor, era um reconhecimento neutro, umaconstatação dessa realidade.CULT Mas essas canções críticas traziamformas criativas que não eram incompatíveis coma coisa do mercado, dentro daquela noção de�produssumo� do Décio Pignatari...CAETANO VELOSO Justamente. Euachava muito interessante essa idéia de�produssumo�. Mas ela é, mesmo na época,um pouco mais otimista do quepropriamente eu sentia que estava sefazendo. Mas isso não é problemático. Aidéia é boa e na época exatamente isso estavase dando com muita freqüência. O meu casoindividual não é o caso de Gil, que estavatrabalhando comigo. O Gil fazia jingles naBahia, estudou administração de empresas,trabalhou na Gessy Lever. A idéia domercado, para ele, era uma coisa vivida. Elequeria dizer aquilo. Eu vi aquilo, mas comoquem vê de muito fora, uma pessoa quejamais se identificaria com aquilo, seconfundiria com aquilo. Esse sentimento eu

tenho até hoje. Quando eu faço essabrincadeira de livro, disco, e chamo o discode Livro quando estou lançando um livro,há uma certa manutenção espontânea dessadistância. Há um reconhecimento, que eupreciso externar, dessa distância. Essa brin-cadeira expressa a distância. Há umabrincadeira que vai em dois sentidos, porquea palavra �livro� aponta � não neces-sariamente é claro, mas na organização geraldas coisas � para uma região da alta cultura,enquanto disco � não necessariamente � jáapontaria na direção da indústria cultural.Embora, evidentemente, haja milhões delivros que são produtos comerciais de baixís-simo nível e que vendem milhões no mundointeiro. E há muitos discos de grande refina-mento, e há discos que vieram justamenteda área mais comercial e que se tornaramfocos de informação importantes. Isso é umproblema que é complexo, é um negócio denosso tempo. É curioso, você ouve os discosde Elvis Presley, lê aquela biografia dele,muito bem feita e precisa, de Peter Guralnik,e você fica pensando como um negócio dessevem a ser informação e vem a ter conseqüên-cias tão duradouras, tão complicadas, comoesse negócio de rock and roll. O Chuck Berrytem algumas obras-primas e um estilo pes-soal admiravelmente econômico, seco, umartista admirável que não faria nada que nãofosse por dinheiro...CULT E daí veio o John Lennon, com suascanções pop e escrevendo à la Joyce...CAETANO VELOSO E gostava deLewis Carroll. Mas nessa época houve muitaconfusão de alta e baixa cultura. Eu me lem-bro que, àquela altura, a primeira coisa queli de reação violenta a essa atração pela coisados Beatles e pela coisa pop � por parte deescritores, professores, estudiosos � foi otexto do Anthony Burgess, autor de La-ranja mecânica e daquele ótimo livro sobre

Joyce [Homem Comum Enfim]. Eu estavaacostumado a ver no Brasil uma reação pré-compreensão daquilo, uma reação antiqua-da de uma esquerda intelectual, de bom gos-to e nacionalista, porque achavam que erainvasão da cultura do imperialismo, da cul-tura de massas estrangeira. E uma reação aopróprio rock, porque o rock era muito pri-mário harmonicamente, comparado com ojazz e a música erudita. Eu já conhecia essetipo de reação, mas um negócio como o doBurgess eu não tinha visto. Foi uma reação(posterior) à aprovação e ao reconhecimen-to que muitos intelectuais estavam tendodessa onda de Beatles, Rolling Stones. Elefoi o primeiro a querer botar de novo cadamacaco no seu galho. Mais tarde, entre to-dos os brasileiros de alta cultura que estive-ram próximos disso, quem mais quis botarcada macaco no seu galho de volta foi o Dé-cio. Foi o que falou em �produssumo� nosanos 60. Depois reclamou, dizendo que oTorquato Neto era intelectualmente líder dotropicalismo porque era sociólogo e não mú-sico popular, queria fazer poesia e não mú-sica popular, e colaborou com os músicospopulares, mas era de uma extração mais ele-vada. Nessa interpretação que o Décio deunão havia um bom argumento. Torquato eraum sujeito maravilhoso, mas ele não foi líderdo movimento tropicalista em nenhumsentido, não é fato. Ele tinha estudado soci-ologia na faculdade, eu estudei filosofia, maseu saí da faculdade, ele também saiu da fa-culdade. O Gil se formou em administraçãode empresas, e o Mick Jagger estudava naLondon School of Economics; uma pessoanão entra na London School of Economicsassim, ficou uns anos e depois saiu porquequeria fazer rock and roll, mas estava bem lá.Acho que o Décio estava querendo se livrardesse negócio de música popular. Eu en-tendo... Por exemplo, nos anos 70, quando

À DIREITA, CAETANO

FOTOGRAFADO POR

BERNARDO VOROBOW

DURANTE ENTREVISTA

À CULT. NA PÁGINA

OPOSTA, O CANTOR EM

NOVA YORK EM SESSÃO

DE FOTOS REALIZADAS

POR ANTHONY BARBOZA.

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voltei de Londres, eu fiquei fascinado com atelevisão colorida, quando a televisão brasi-leira começou a ficar colorida, e com as no-velas novas brasileiras, que não eram máscomo tinham sido antes, imitação das nove-las cubanas, mexicanas e dos dramalhõesconvencionais. Tinha dramalhão, mas mui-ta novidade. E a novela brasileira na televi-são inovou muito e criou um público demassa muito mais sofisticado do que se es-peraria. Aliás � já que nós estamos falandode literatura e falamos em indústria cultural�, a televisão brasileira precisaria conhecerum fato histórico, da sua história. Pelo me-nos desde que eu tenho consciência das coi-sas, a televisão brasileira só teve sucessosespetaculares e marcantes, em todos os sen-tidos, inclusive comercialmente, quando elasubiu de qualidade. Isso é um fato que aspessoas hoje parecem ter esquecido, inclu-sive as que fazem televisão. Isso foi fato quan-do a Record dominava e também foi toda ahistória da Globo. É uma coisa que a televi-são brasileira precisa se lembrar, porque elaestá pensando que precisa fazer o contráriopara ver se funciona do outro jeito. Eu te-nho impressão de que não é a vocação histó-rica da televisão no Brasil. Ela tem de me-lhorar para poder ter público grande. É cu-rioso, aconteceu assim.Eu sei que a configuração social hoje é ou-tra, os fatores são outros, o número de tele-visores nas casas é infinitamente maior, onúmero de pessoas que não têm acesso àeducação formal e que têm televisão em casaé muito maior do que era naquele tempo,mas ainda assim são as novelas pretensiosas,interessantes, inovadoras, que formaram opúblico de massa da televisão brasileira. Erao que as empregadas da minha casa viam,eram as novelas que a mim também interes-savam. Havia um apelo histórico e culturalpara mim de grande importância, então eu

via. Mas, depois de um tempo, parece queaquilo deu o máximo que tinha que dar. Eeu � como tenho muita curiosidade intelec-tual � não posso perder tempo continuandoa assistir a todas as novelas, que não estãomais dando outros passos interessantes e nemsignificam mais o que significavam naquelaépoca. É bem possível que, para uma pessoacomo Décio, seja assim: houve um períodoque a música popular estava interessantepara o nosso momento histórico e para odeles, mas agora não tem mais interesse paranós. Pode ser.CULT O disco Livro foi lançado simultanea-mente ao livro Verdade tropical, em 1997.Houve alguma intenção literária ou literal nessesincronismo? Como avalia hoje essa conjunção?CAETANO VELOSO Foi casual, mascomo lhes disse, eu senti a ironia da coisa eresolvi assumir e externar. E essa ironia setorna possível porque eu me sinto muitodistante do ser de mercado; eu não sou nemconsumidor nem produtor com o olho nomercado. Mas não tenho horror ao mercado,eu acho que o mercado trouxe esse mundodas liberdades individuais, trouxe asociedade moderna.CULT Sobre fazer um outro filme você já nosconfidenciou, mas qual a possibilidade de vocêescrever outro livro?CAETANO VELOSO É mais fácil doque fazer um outro filme. Do ponto de vistalogístico, é logo mais fácil. Basta eu sentar eescrever.CULT Tem algum projeto burilado?CAETANO VELOSO Não há nenhumprojeto burilado nem nada. Acontece que euescrevo às vezes, mas para coisas pontuais.E uma ou outra anotação que eu faço, parameu governo, de coisas que eu pensei, queeu observei, que eu quero dar tempo. Sealgum dia eu vou usar isso para algumacoisa, eu não sei. Mas tenho vontade de

escrever, porque eu gostei de escrever e gos-to do meu livro. Como também tenho vonta-de de fazer outros filmes, porque eu gosteide filmar e gosto do meu filme.CULT Nos agradecimentos de Verdade tro-pical, você fala que a assinatura da revista Se-nhor feita por seu irmão Rodrigo Velloso e o livrode Unamuno dado a você por Luís Tenório deOliveira Lima levaram-no �a amar os livroscom uma profundeza que supera a falta de inti-midade que ainda hoje tenho com eles�. Fale desua formação literária.CAETANO VELOSO Meu pai erafuncionário público, agente postal telegráficodos Correios e Telégrafos em Santo Amaro.Ele evidentemente teve na juventude umambiente boêmio e literário, do qualguardava alguns poemas de que gostava,sendo que um deles ele adorava e sabia decor e de vez em quando dizia. Era um poemado poeta baiano Artur de Sales, domovimento simbolista, da geração mais velhaque meu pai...CULT Contemporâneo de Pedro Kilkerry?CAETANO VELOSO Pode ter sidocontemporâneo de Kilkerry. Meu paitambém se lembrava de Kilkerry. Os amigosde juventude de meu pai continuavam sendoamigos dele, mas meu pai morava em SantoAmaro e essas pessoas moravam em Salva-dor, e algumas até se mudaram para SãoPaulo. Quando qualquer um deles aparecia,eles falavam de literatura. Mas depois quemeu pai casou e deixou de ter aquela vidamais boêmia de juventude, ele dedicou suavida ao casamento, à criação dos filhos e aotrabalho. Minha casa não tinha uma biblio-teca. Diante do casamento, ele não trouxe,para dentro de casa e para a vida que eleconstruiu para si mesmo, nada das aventurasliterárias e intelectuais da juventude. O queé uma pena, eu acho uma coisa curiosa.Um amigo de meu pai casou-se com uma

19421942194219421942 No dia 7 de agosto, nasce, em Santo Amaroda Purificação (Bahia), Caetano EmanuelVianna Telles Velloso, o quinto dos sete filhosde José Telles Velloso e de Claudionor ViannaTelles Velloso (seu Zezinho e dona Canô, comosão conhecidos).

19601960196019601960 Muda-se com a família para Salvador. Come-ça a escrever críticas de cinema para a seçãocultural do Diário de Notícias, dirigida porGlauber Rocha.

19631963196319631963 Ingressa na Faculdade de Filosofia da Univer-sidade Federal da Bahia. Realiza a trilha sonorada peça O boca de ouro de Nelson Rodrigues,

em montagem do diretor baiano ÁlvaroGuimarães.

19651965196519651965 Em Salvador, conhece João Gilberto. Abandonaa faculdade e viaja ao Rio de Janeiro. Participa,com Gil, Gal, Bethânia e Tom Zé, do espetáculoArena canta Bahia, dirigido por Augusto Boale apresentado no TBC, em São Paulo. Músicassuas são incluídas no curta-metragemViramundo, dirigido por Geraldo Sarno.

19671967196719671967 Compõe a trilha do filme Proezas de Satanásna terra do leva-e-traz, de Paulo Gil Soares.Assina contrato com a gravadora Philips elança, com Gal Costa, Domingo, seu LP de

CR

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IAC R O N O L O G I A

Com Minha Daiae Maria Bethâniaem 1948

Álbum de família

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sobrinha dele (Lurdes), uma sobrinha maisvelha, da idade de minha mãe. Ele se chama-va Antonio de Souza Castro. Era um dessesamigos de meu pai que mantinha esse gostopela literatura. Ele teve muitos filhos, a mai-oria dos quais ainda está vivo, morando naBahia. Eram primos nossos, porque a mãedeles era nossa prima carnal e o pai era ami-go de meu pai, e também funcionário dosCorreios e Telégrafos, mas trabalhava em Sal-vador. E ele � que a gente chamava deTotonho � tinha em sua casa, em Salvador,uma estante com muitos livros. Aquilo euachava bonito. Eles tiveram 13 filhos, a mai-oria mais velhos do que eu, alguns da minhaidade, outros mais novos. Os filhos erampessoas com ambição intelectual, todos que-riam ser escritores e eram versados em poe-sia e literatura; uns vieram a ser professorese um é escritor. Eu tinha ao mesmo tempoum fascínio grande por esse pessoal e umcerto desalento porque eu achava que eu nãoteria...Ficava envergonhado porque minha casa eraintelectualmente muito modesta, emboramuito refinada. Todo mundo bem educado,todo mundo posto na escola para estudar,falava-se e escrevia-se um português muitobom. Meu pai, minha mãe e Minha Ju (umairmã dele, nossa tia, que morava em casaconosco) exigiam que assim fosse.Mas não havia livros na minha casa. Aquelafrase na minha canção �Livros� é quase umdesabafo, um lamento autobiográfico. Nãohavia livros na minha casa. Nossa casa eraimensa, um sobradão daqueles enormes,antigos, do recôncavo da Bahia, apenas coma frente sendo usada como agência postaldos Correios e Telégrafos. Na verdade, umsobrado de seis andares, com pátio suspenso,um pátio embaixo, um quintal enorme,muitos quartos, muitas salas e um pianoonde eu aprendi a tocar.

Mas não tinha uma biblioteca. Nem sequeruma estante com livros. Mas havia livrosem minha casa. Uns livros fugazes que es-tavam sempre nas mãos de minha mãe � queera a única pessoa que eu via dentro de casalendo. É a única pessoa de minha infânciade quem eu me lembro com um livro na mão� quase sempre com um livro na mão. Mi-nha mãe lia esses livros para moças, comoM. Delly, livros de divertimento para se-nhoras � mas ela gostava da leitura, ficavamuitas horas lendo. A única figura que, naminha cabeça, dentro de minha casa, estavacom um livro na mão é minha mãe. Maseram livros aos quais ela própria não davaimportância, porque sabia que meu pai nãodava, nem que ninguém dava. Ela compra-va para ler como quem compra revista emquadrinhos. E não sei o que fazia deles, nãosei se ela metia num baú lá no sótão, ou sedava depois para outras pessoas de que gos-tava ou que conhecia, ou se havia um sumi-douro lá em casa, ou se jogava fora...CULT Como aquele gesto desprendido deGodard, com o qual você simpatiza...CAETANO VELOSO Ou se jogavapela janela... Havia muitas mulheres moran-do em minha casa. Minha mãe casou e foimorar na casa de meu pai, que era cheia demulheres. Meu pai era o filho mais moço deuma família cujas irmãs, mais velhas do queele, tinham se casado. Uma irmã ficou viúva edepois morreu e a outra ficou viúva e ficou láem casa morando com várias filhas. Essasmulheres todas eram mais ou menos da idadede minha mãe e moravam com ele, meu pai ascriava. Então, havia três filhas de uma dasirmãs, mais três filhas de outra das irmãs,mais duas irmãs dele quando minha mãe semudou para casa de meu pai.Vejam que coisa curiosa, meu pai tinha quegerir esse negócio todo e deixou os livros paralá. Ele gravou apenas na memória aquele

poema de Artur de Sales [recita]: �Lúcia che-gou quando do inverno o tredo vento/ balan-çava o coqueiral vetusto/ ainda a recordo pá-lida de susto/ trêmula de medo (...)�. Masuma das filhas de uma dessas minhas tias,que ainda é viva (não a tia, mas a filha) �Minha Daia, que tem 80 e tantos anos � pen-sava muito e também lia com uma certafreqüência. E ela lia coisas mais sérias ou am-biciosas do que minha mãe. Minha mãe liapara se divertir, para se sentir feliz. Até hojeminha mãe lê. Lê livro com histórias decowboy, desses livros que vendem em bancade jornal...CULT Pulp fiction...CAETANO VELOSO É, pulp fiction.Quando ela era jovem, minha mãe lia ro-mances cor-de-rosa, hoje minha mãe lê pulpfiction. Coisas leves, só de divertimento.Mas lê, ela gosta de ler. Mas eu nunca viMinha Daia com um livro na mão, comoeu via minha mãe (minha mãe sentada len-do, as tardes inteiras). Eu acho que MinhaDaia só lia no quarto dela. Ela tinha umquarto sozinha, mas as conversas dela tra-ziam... Eu me lembro de algumas coisas.No meu livro Verdade tropical, eu relato ofato de que ela, comentando comigo (eupequenininho), disse: �Meu filho, eu te-nho vontade de sair daqui dessa terra e irmorar em Paris, para viver com os filósofosexistencialistas.� Eu falei: �Minha Daia, oque são existencialistas?� Ela falou: �Ah,são os filósofos que só fazem o que que-rem, que não têm essa falsidade dessa vidatacanha de Santo Amaro.�CULT A marchinha Chiquita Bacana...CAETANO VELOSO A marchinha nãomencionava que eles eram filósofos. [canta]�Existencialista/ com toda razão/ só faz o quemanda/ o seu coração.� A marchinha não jus-tifica... Minha Daia lia coisas em revistas �sabia que eram filósofos. Ela sabia mais do

estréia. Em outubro, apresenta no 3º FMPB daTV Record a marcha “Alegria, alegria”, que seclassifica em quarto lugar. No dia 21 de no-vembro, casa-se com a baiana Dedé Gadelha.

19681968196819681968 Grava seu primeiro LP individual intitulado Cae-tano Veloso; lança Tropicália ou Panis etcircensis, de que participam Caetano, Gil, Gale Tom Zé. Em setembro, apresenta naeliminatória paulista do 3º Festival Internacio-nal da Canção (FIC) da TV Globo, realizado noTeatro da Universidade Católica de São Paulo,a canção “É proibido proibir”, que, em meio avaias e após o histórico discurso contra a

platéia e o júri, é desclassificada. Estréia na TVTupi de São Paulo com o programa de vanguarda“Divino, maravilhoso”. No dia 27 de dezembro,Caetano e Gil são presos em São Paulo sob opretexto de terem desrespeitado o hino nacio-nal e a bandeira brasileira.

19691969196919691969 Em fevereiro, Caetano e Gil são soltos e se-guem para Salvador. Em julho, partem para oexílio na Inglaterra. Lança, no Brasil, o álbumCaetano Veloso.

19701970197019701970 Lança Caetano Veloso na Inglaterra, pelo selo“Famous” da Paramount Records.

19711971197119711971 Lança o LP Transa pelo mesmo selo.

Com a família em Santo Amaro, em 1952

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que a marchinha dizia. E ela estava querendodizer que ela queria ter uma vida autêntica, oque tem que ver realmente com osexistencialistas. Outra coisa nunca mais saiuda minha cabeça � ela disse com tanto entusi-asmo, conversando com outra pessoa adulta:�O melhor livro que eu já li na minha vida foiMinha vida de Isadora Duncan� [�Dúncan�,pronuncia como se escreve]. E eu fiquei impres-sionado, �O que será Minha vida de IsadoraDuncan?� Eu ficava conversando com meusirmãos mais velhos, Rodrigo e Roberto, e di-zia: �O que será isso que Minha Daia fa-lou?� E Rodrigo, imitando-a, repetia: �Mi-nha vida de Isadora Duncan!� Aquilo mar-cou o ouvido da gente.Por outro lado, ela falava muito em livrosesotéricos, espíritas e ocultistas. Ela erafuncionária do banco Rural e havia umsujeito que também trabalhava lá, foi até meuprofessor no ginásio, um autodidata incrível,um homem muito pobre e que queria saber,dominar o conhecimento, e se esforçou enor-memente. Era um mulato, professorGustavo Viana. Ele se fez professor, não seformou em nada, não teve oportunidade nemuma educação formal. Mas ele estudousozinho e lia literatura inglesa em inglês,francesa em francês, espanhola em espanhol,lia latim, conhecia os autores. Tudo porqueestudou sozinho; era um homemimpressionante. E Minha Daia tinha muitaadmiração por ele e ele gostava muito delaporque a achava muito inteligente. Elepróprio tinha muita tendência paraespiritismo, ocultismo. E, através dele, elatomou contato com livros dessa natureza,que ela também lia. Mas nunca vi MinhaDaia com um livro na mão. Ouvi-a falardessas três coisas a que eu me referi aqui:existencialistas, Isadora Duncan e ocultis-mo. Ela é uma mulher muito interessante emuito inteligente. Mas eu me sentia muito

tímido diante dos livros. Eu tinha inveja demeus primos Souza Castro. Eu sonhava etinha vontade de, quando crescesse, ter umabiblioteca em casa, como via em filmes ou nacasa de Totonho.CULT Naquela época que você veio morar noRio, essa situação se manteve?CAETANO VELOSO Quando eu mo-rei um ano no Rio, em Guadalupe, entre os13 e os 14 anos, havia um pessoal de SantoAmaro que morava no Engenho de Dentro.Às vezes, eu ia com Minha Inha passar ofim de semana em Engenho de Dentro,porque ela era amiga desse pessoal. Era umasenhora, Dona Maria, sozinha com osfilhos. Ali, só escutavam a Rádio Ministérioda Educação, porque só se ouvia nessa casamúsica clássica. Eu gostava disso, porquena minha casa não se ouvia. Eu me lembroque Nicinha � minha irmã mais velha, quetem muito ouvido musical, tocava piano etem muito gosto para música � reclamavaquando tocava música clássica no rádio ouem algum lugar: �Quem morreu?� Porquemúsica clássica só tocava no rádio que agente conhecia quando alguém tinha mor-rido, era luto. Quando Getúlio morreu, arádio não tocava nem bolero nem samba, sótocava música clássica. Então ficou vincula-da à idéia de que aquilo parecia ser sério,sisudo e triste. Quando não necessariamen-te, mas havia a idéia de que, como músicaclássica, aquilo era tristeza. O pessoal aquino Rio de Janeiro só ouvia música clássica.Os discos que eles tinham em casa tambémeram só de música clássica. Eu ficava fasci-nado com isso. Queria ouvir tanto quantoeles, mas achava muito artificial eu fazeraquilo no meu ambiente, na minha casa. Eugostava de estar na casa deles porque aquiloacontecia ali e eu aí tirava uma casquinha.Mas igualmente a isso que eu estou lhesdescrevendo com relação à música, eu criei

com relação aos livros, durante muito tempo.Eu tinha vontade de ter livros, de comprar eorganizar meus livros, mas aquilo eu achavatão distante e pensava: �Todo mundo vai meachar falso, vai ser estranho eu fazer isso�.Não fiz, demorei muito. Só depois de casado,já depois de estar trabalhando com músicapopular, essa minha biblioteca foi se forman-do, sem que eu me decidisse a escolher e acomprar os livros que eu ia ter. Eu comecei aganhar livros de presente. Então comecei ater que colocá-los em algum lugar em minhacasa. Mas até hoje eu tenho uma certa timi-dez para comprar livros. Eu preciso criar umpouquinho de intimidade com uma livraria,se não eu fico envergonhado. Eu não me sin-to 100% à vontade. Eu não me sinto 100% àvontade para comprar nem camisa nem meia,não gosto. Mas livro, que eu gosto de com-prar, eu fico... Hoje já está mais legal, mas eutenho 58 anos [ri].CULT E como foi superada tal aparente bar-reira nesse período?CAETANO VELOSO Quando eramenino e jovem, eu não quis artificialmentefurar essa barreira. Eu tenho uma maneirade viver que eu não sei se me faz bem oumal (ou se me faz mais bem do que mal),mas eu acolho o que acontece. Se nãoacontecer... Eu acho que se partir de umadeliberação minha, é como se fosse falso,como se fosse ser uma vida falsa. Eu tenhoque conduzir porque sou eu, mas tem queme acontecer. Aquilo tem que ter sido naturalna minha vida. Eu não sou mais tanto as-sim. Eu acho que me fez muito mal, melimitou muito, mas também me deu algu-mas coisas que as pessoas às vezes perdemquando tomam a decisão de serem muitodeliberadas na condução de sua vida. Euganhei algumas coisas com essa minhadesvantagem. Mas, talvez, predominante-mente uma desvantagem. Eu não faria isso,

19721972197219721972 Em janeiro, retorna ao Brasil. Lança Barra 69 eTransa. Compõe a trilha sonora de São Bernardo,filme de Leon Hirszman a partir do romancehomônimo do escritor Graciliano Ramos. Nodia 22 de novembro, nasce em Salvador seufilho Moreno Veloso. Em dezembro, lança Cae-tano e Chico juntos e ao vivo.

19731973197319731973 Lança o disco Araçá azul.19741974197419741974 Lança o álbum Temporada de verão.19751975197519751975 Lança um compacto simples com os poemas

“dias, dias, dias” e “Pulsar”, de Augusto deCampos, musicados.

19761976197619761976 Com Gil, Gal e Bethânia apresenta o show

Doces Bárbaros.19771977197719771977 A editora Pedra Q Ronca publica o livro Alegria,

alegria – compilação de artigos, manifestos epoemas de Caetano, além de entrevistas comele, organizada pelo poeta baiano WalySalomão. Lança os discos Bicho e Muitos car-navais.

19791979197919791979 Lança o disco Cinema transcendental pelo seloPolygram.

19811981198119811981 Lança o álbum Outras palavras.19821982198219821982 Lança o álbum Cores, nomes. Participa do filme

Tabu, de Julio Bressane, em que representa apersonagem de Lamartine Babo. Caetano com amigos em Salvador, em 1952

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19831983198319831983 Inaugura o programa “Conexão internacional”,da TV Manchete, entrevistando Mick Jagger(entrevista que gerou polêmica entre Caetanoe Paulo Francis, registrada na Folha de S.Paulo). Lança o compacto simples com “Luzdo sol” e o disco Uns. No dia 13 de dezembro,José Telles Velloso, seu pai, morre aos 82 anos.

19861986198619861986 Separado de Dedé Veloso, une-se à cariocaPaula Lavigne. Dirige o filme O cinema falado,que tem sua estréia no 3º Festival de Cinema,Televisão e Vídeo do Rio de Janeiro. A RedeGlobo estréia “Chico e Caetano”, programaapresentado mensalmente pelos dois artistas.

Lança o álbum Totalmente demais.19871987198719871987 Lança o LP-CD Caetano e relança Araçá azul.19881988198819881988 Aparece no filme Os sermões – A história de

António Vieira, de Julio Bressane, no papel dopoeta Gregório de Mattos.

19901990199019901990 É lançado no Brasil Caetano Veloso, o ál-bum de 1986 destinado ao público norte-americano.

19911991199119911991 Publica artigo sobre a cantora Carmen Mirandano jornal The New York Times. Lança o CDCirculadô, cuja canção-título foi composta apartir de fragmento de Galáxias, de Haroldode Campos.

19921992199219921992 No dia 7 de março, nasce Zeca Lavigne Veloso,segundo filho de Caetano. Lança o CD duploCirculadô vivo, gravado a partir do programa“O tempo não pára e no entanto ele nunca en-velhece”, apresentado pela TV Manchete edirigida pelo cineasta Walter Salles porocasião dos cinqüenta anos de Caetano.

19931993199319931993 A Polygram lança Tropicália 2. O cineasta es-panhol Pedro Almodóvar inclui no filme A flordo meu segredo a gravação “Tonada de lunallena” (de Simón Diaz) do CD Fina estampa,que reúne clássicos latinos.

19951995199519951995 Lança Fina estampa – Ao vivo.

de violentamente dizer: �Agora vou comprarlivros, vou ser diferente de todos os meusirmãos, de toda casa, ter um tom de intelec-tual�. Mas gostava dos livros. Mesmo antesde eu ter livros postos numa estante, comovim a ter depois de casado, eu li livros.Eu li livros. Às vezes me emprestavam noginásio, ou alguém da família ou os meninosSouza Castro. Eu me lembro do pessoal emminha casa dizer, às vezes sem saber que euestava ouvindo, que me achavam muito inte-ligente. Mas nem isso os levou a pensarassim: �Vamos comprar uns livros para ele�.Eles não fizeram isso tampouco. Mas eu liauma coisa ou outra. Quando estava no Rio,já com treze anos, eu li coisas de MonteiroLobato. Li mais intensamente porque eufiquei um ano sem ir para a escola e minhaprima (na casa de quem eu estava) tinha já,ou comprou para mim, uns livros do Mon-teiro Lobato. Eu mais ouvia rádio do quetudo, mas eu lia os livros de Monteiro Loba-to, ficava interessado, achava bonito, bemescrito. Eu tinha uma noção quase que pré-via do que era bem escrito ou não. Mas jáhavia lido alguma coisa de Jorge Amado,antes de sair de Salvador, com doze paratreze anos. Acho que já havia lido Mar morto.Depois voltei, li de novo Mar morto, que éum livro do qual eu gosto muito ainda hoje.É um livro ao qual eu me sinto ligado, talvezpor ter sido um dos primeiros livros que euli. Mas também gostei muito de ler Capitãesda areia. E li também uns livros de Cassan-dra Rios, como A lua escondida, que era ahistória de uma adolescente com um profes-sor, tinha muita coisa de sexo e tambémalguma coisa de lesbianismo, que havia emoutros livros dela. No ginásio, a gente liaescondido esses livros, porque eram desacanagem.CULT Houve algum fato, ainda em SantoAmaro, que prenunciou aquela revelação descrita

no pórtico do livro?CAETANO VELOSO No meio disso,antes da chegada da revista Senhor, houveum episódio que me impressiona muitoainda hoje, por diversas razões. Primeiroporque, como eu disse, em minha casa nãohavia livros. Havia umas revistas antigas,com um livro ou outro ali no meio, dentrode um baú. Daí havia num outro lugar umoutro baú. Aquelas casas velhas... Sabequando você cresce numa casa que você achaque ainda tem pedaços que ainda nãoconhece? Depois a gente mudou para umaoutra casa, onde minha mãe ainda hoje moraem Santo Amaro, que é muito grande tam-bém, com oito quartos e um quintal imenso.E, nessa casa, um dia, eu me deparei comum livro que se chamava O jovem audaz notrapézio volante. Eu não sei a quem atribuira presença daquele livro em minha casa. Tal-vez os primos Souza Castro tivessem deixa-do na mão de uma das minhas irmãs (maisvelhas que eu). Quando adolescentes,minhas irmãs foram fazer o secundário emSalvador, embora houvesse ginásio em SantoAmaro. Eu fiquei fazendo ginásio em SantoAmaro. Os homens faziam o ginásio emSanto Amaro, mas as meninas todas foramfazer o ginásio em Salvador, inclusive Bethâ-nia. O dinheiro não dava para todo mundo,meu pai e minha mãe tiveram mais carinhocom as meninas, mais cuidado. O fato é queelas talvez tivessem trazido o livro de Salva-dor, nas férias, tivessem deixado ali, não sei.O fato é que eu me deparei com um livro,que se chamava O jovem audaz no trapéziovolante, de um escritor americano de origemarmênia chamado William Saroyan. Haviaesse conto, �O jovem audaz no trapéziovolante�, e alguns outros, como �Setenta milarmênios�. E eu fiquei maravilhado comesses textos, por uma razão que você vaigostar muito, Carlos Adriano � era a ousadia

formal, para mim, a transgressão das con-venções da narrativa. Saroyan abria comen-tários como se estivesse falando com o leitor,contava a história aos pedaços, tomavaliberdades na estruturação da narrativa,coisas que me impressionaram muito. Masme impressionaram, e isso me impressionaaté hoje, de uma maneira tão profunda, comose eu já conhecesse, pelo fato de ter lido umacoisa ou outra... Não sei o que eu já tinhalido nessa altura, porque acho que foi antesde eu vir para o Rio, antes de ter esses trezeanos. Não sei, ou foi logo depois. Mas eunão tinha lido muito. Mas quando eu liaquilo, eu tinha uma noção precisa, pensavana época mesmo, parecia que eu já tinha lidomuito da literatura tradicional, parecia queeu conhecia muito bem todas as variaçõesde possibilidades da narrativa convencional,que eu tinha uma tradição de leitura de anose que entendia perfeitamente quais eram asnovidades, o que havia de moderno e derevolucionário nos contos de WilliamSaroyan. Isso é impressionante.Isso me marcou enormemente e vou lhesdizer aqui: isso me deu uma idéia do moder-no que me serviu para sempre... Para sem-pre. O Augusto [de Campos] sabe disso.Quando contei, ele ficou muito contenteporque disse que os contos de WilliamSaroyan também o impressionaram. Depois,quando se discutia esse negócio de artemoderna � porque arte moderna é uma coisasobre a qual até o citado Monteiro Lobatofez aquelas piadas e escreveu contra � aindano final dos anos 40, início dos anos 50, emSanto Amaro, a desconfiança com relação aela era tão grande quanto quando apareceu.E vou lhes dizer, essa desconfiança nuncadesapareceu de todo no imaginário coletivo,e eu não sei direito se nos imaginários indivi-duais de cada um, por mais cultos e radicaisque sejam os sujeitos. Essa questão da arte

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moderna ainda continua. Tanto que há essesgrandes intelectuais conservadores que es-crevem contra a arte moderna. Há vários,como o próprio Lévi-Strauss, que foi ummilitante cubista quando jovem e é hoje umverdadeiro cruzado contra a arte modernaem toda linha. Hoje, para ele, tudo o queaconteceu nos modernismos, nas vanguar-das, foi um desastre. Ele começou reagindocontra a música contemporânea, contra amúsica atonal, dodecafônica, concreta, ele-trônica, numa defesa brilhante da músicatonal, na abertura de O cru e o cozido, e depoisseguiu e, nos últimos anos, vem nitidamenteargumentando contra a arte moderna na pin-tura, na literatura, em toda parte. Ele achaque até o impressionismo dava paraagüentar...CULT Para quem falou em bricolagem pri-mitiva...CAETANO VELOSO Não, ele nãogosta, não quer saber nada disso. Elejustamente não quer ser confundido comisso. Ele quer ser, do ponto de vista estético,profundamente conservador. Essa idéia daarte moderna não está estabelecida, não estáresolvida. Queria completar dizendo que aleitura do William Saroyan me fez intuir oque era o mundo de possibilidades dessaidéia das rupturas do modernismo. Eu eramuito garoto, mas aquilo me engajou, eu meengajei com aquilo, eu me tornei um torce-dor daquela atitude, me tornei um moder-nista [ri], de imediato, ao ler WilliamSaroyan. E fiquei na minha, com aqueleacaso, com aquilo na cabeça. Passou a seruma referência que mudou minha perspec-tiva, mas nem por isso fui atrás, não tiveaquele desembaraço de procurar uma pessoaculta e dizer: �Quem é William Saroyan?Quais são os outros escritores? Como era aliteratura?� Eu ficava pensando sozinho, nãotinha com quem dialogar, e talvez teria, mas

não tinha desembaraço para fazer, eu me sen-tia tímido.Com 17 anos, aconteceu um negócio queme deixou à vontade, porque era numa áreaque eu dominava o tempo todo, com a qualeu convivia, que era na área de música po-pular: eu ouvi o João Gilberto. E é incrível,porque era em 1959. Neste mesmo ano, ain-da morando em Santo Amaro, eu ouvi o JoãoGilberto e achei tudo aquilo que eu falei so-bre o que eu senti com o texto do WilliamSaroyan. O João Gilberto bateu como umsol. Era uma ruptura numa área que estavaali à minha mão, sobre a qual eu podia falarsem parecer pedante, sem parecer artificial.Com João Gilberto, eu me via na condiçãode entender e comentar, porque todo mun-do ouvia. Mas a experiência com WilliamSaroyan foi seminal para que isso fosse pos-sível. Algo em mim pedia que aquelas coisasviessem daquele jeito, senão eu teria lidoWilliam Saroyan e não teria acontecido nadacomigo [ri]. E muito menos a audição deJoão Gilberto depois, que veio a ser umacoisa que me deu uma espécie de norte, por-que o João Gilberto foi um encontro com aminha capacidade de acompanhar com todaa minha mente o que estava se passandonaquela revolução.E nesse mesmo ano, apareceu em SantoAmaro um vendedor com algumas revistas� era a revista Senhor. Ele falou com meuirmão Rodrigo, que é mais velho do que eu(dois irmãos acima de mim) e muito queri-do, e Rodrigo me chamou: �Cate, venha cá,esse moço está querendo vender essa revis-ta�. Eu fui olhar, achei aquilo tudo tão bo-nito e tão moderno, a capa e os desenhos.Eu pintava e desenhava � casas, rostos, fi-guras humanas, casarios, com tinta óleo eguache, porém ainda figurativo. Mas co-mecei a querer fazer uma coisa moderna, jáquis fazer uma pintura abstrata. E fiquei

interessado na revista por causa dessas coi-sas. Como Rodrigo já trabalhava, ele me feza assinatura e foi uma verdadeira maravilhapara mim. Logo tomei contato, no primeironúmero que eu tive na mão, com um contolindíssimo da Clarice Lispector, �A imitaçãoda rosa�. Pensei: �Isso é mais bonito que oWilliam Saroyan, e é uma mulher, no Bra-sil�, eu não acreditava. E havia uns textoscurtos, muito perspicazes e modernos eirônicos e bem-feitos do Paulo Francis, queme encantavam. O Paulo Francis tinha umasofisticação e uma informação sobre as coi-sas que aconteciam no mundo de Nova Yorkque eu achava espetacular, e de fato era. E,finalmente, meses mais tarde, um conto doGuimarães Rosa (talvez tenha sido Meu tio,o Iauaretê), e eu fiquei maravilhado. No anoseguinte (1960), eu me mudei para Salva-dor, com esse acervo imenso para mim naverdade, embora eu não tivesse uma infân-cia num ambiente literário.CULT Qual foi o livro de Unamuno que LuísTenório lhe deu e por que �mudou sua relaçãocom as palavras�?CAETANO VELOSO Na verdade,vocês estão tocando num ponto engraçadoaí... Eu sou muito veraz. Todo tempo, mi-nha tendência é ser muito verdadeiro. Eu játinha incluído o nome de Tenório nessa de-dicatória porque ele me deu de presente,quando eu voltei de Londres, Em busca dotempo perdido, de Proust, pelo qual ele estavaapaixonado. E eu não tinha planos, nemantes, na minha vida, de ler Proust. Eu ou-via falar como uma coisa tão superior, tãogenial, pensava que não ia ler. Eu não gosta-va muito de romance. Na verdade, depois,desenvolvi um pouco mais de discernimentodas coisas, sempre tateando, sempre meiotímido diante de meus amigos que tinhamlivros e que liam com mais freqüência. Daíeu li O grande Gatsby, e achei maravilhoso; é

19961996199619961996 Compõe a trilha sonora de Tieta do Agreste,filme do diretor Cacá Diegues, baseado na obrade Jorge Amado, e lança, com Gal, o CD Tietado Agreste (Natasha Records).

19971997199719971997 No dia 25 de janeiro, aniversário de Tom Jobim,nasce em Salvador Tom Lavigne Veloso,segundo filho do casal (terceiro de Caetano).Em outubro, convidado por Madalena Fellini,irmã de Federico Fellini (1921-1993), faz umshow na República de San Marino, próxima aRimini (Itália), cidade natal do cineasta. Publicao livro Verdade tropical (Companhia das Letras)e lança o CD Livro.

19981998199819981998 Lança o CD Prenda minha.19991999199919991999 Lançamento do CD Omaggio a Federico Fellini

e Giulietta Masina, a partir degravação do showde 1997.

2000 2000 2000 2000 2000 Lança o CD Noites do norte.

DA ESQUERDA PARA A DIREITA, A ESCRITORA

CLARICE LISPECTOR, CAPA DA REVISTA SENHOR

FEITA PELO ARTISTA PLÁSTICO CARLOS SCLIAR E OJORNALISTA PAULO FRANCIS

Esta cronologia foi extraída dosite oficial do compositor,www.site.caetanoveloso.com.br

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um livro ao qual eu também me sinto muitoligado, já reli umas três ou quatro vezes aolongo da vida. Tanto que eu li Hemingwaye nunca consegui gostar de Hemingwaytanto quanto eu gosto de Fitzgerald, o queé uma coisa que deve estar, do ponto de vistacrítico, não correta... Mas é verdade. Nesseperíodo, eu li um livro de Faulkner (The OldMan), aquele da enchente, que saiu no Bra-sil com o nome de O velho e o rio, para poderparecer com O velho e o mar de Hemingway,que eu tinha lido e achado muito bonito,com aquelas frases curtas e tal...CULT O som e a fúria, Enquanto ago-nizo...CAETANO VELOSO Não, eu não soumuito de Faulkner, por não ter lido muito.Eu gostava do Guimarães Rosa, da ClariceLispector. Nesse meio tempo, encontrei opessoal do Teatro dos Novos em Salvador.Era uma turma de teatro que tinha ido aSanto Amaro se apresentar em 1959também e, quando nós nos mudamos em1960 para Salvador, eles conviviam muitoconosco. Por isso terminamos indo cantarno Teatro Vila Velha, que é o teatro que elesconstruíram. Tanto os atores quanto odiretor ficaram amigos nossos e eles nosmostravam, ou emprestavam ou davam livrose discos, como Billie Holiday e Chet Baker,que eu não conhecia. Eles falavam muito emLorca, porque tinham feito, quando ainda naescola de teatro, A casa de Bernarda Alba, e selembravam e comentavam muito. E eles que-riam fazer Yerma. Então falavam muito emLorca. Écchio Reis, que é um dos atores, medeu o Romanceiro cigano, traduzido em por-tuguês, dizendo que Lorca era o poeta maismaravilhoso. Li algumas vezes... Bom, a gentetem que contar as coisas com um mínimo decronologia, se não as coisas não são entendi-das, né? A essa altura, todo pessoal que co-nhecia, em Salvador, todos os amigos que fiz

já liam Bandeira, Drummond, CecíliaMeireles, Vinícius de Moraes...CULT E João Cabral?CAETANO VELOSO O João Cabralveio logo em seguida. E um pouco FernandoPessoa também. João Cabral terminou sendopara mim a presença, do ponto de vista dapoesia, mais forte. Mas antes de eu conhecera poesia de João Cabral, e já tendo lido muitoVinícius, Drummond, Cecília e Bandeira,como todos amigos... Aliás, esse é um hábi-to que eu não vejo hoje em dia no pessoaljovem � ler poesia na quantidade e com afreqüência que a gente lia. Quando éramosnovos, todo mundo que eu conhecia liapoesia. O fato de saber dois ou três poemasde Vinícius inteiros de cor, quatro de Drum-mond de cor, um de Cecília Meireles de cor...Meu irmão Rodrigo, por exemplo, tem decor, até hoje, poesias lindas e longas da Ce-cília Meireles, aquela do punhal de prata,que ele sabe dizer toda, lindamente, de cor.Curiosamente, a gente tinha o hábito decomentar, quase como se comenta hoje osdiscos que saíram, as poesias de que gostavamais. A gente lia esses poetas brasileiros eum pouco de Fernando Pessoa, sobretudoÁlvaro de Campos (mas não era ainda umaentrada forte no Fernando Pessoa).O Écchio me deu o livro do Lorca e eu, quejá conhecia esses poetas brasileiros, quandoli aquele do Romanceiro cigano, não acheinada: �Meu Deus, como dizem que é umgrande poeta, o maior poeta que existe? Euleio e é uma coisa tão simplória, não vejonada, é quase nada, qualquer um faz�. Nãosenti, não sei por quê. Vocês vejam o que é apoesia... A poesia é uma coisa muitomisteriosa, muito mais estranha... Um dia,lendo e relendo um dos poemas, uma outravez, tentando ver o que era, já sem esperançade que aquele Lorca tivesse graça alguma ouque eu fosse entender que graça é que as pes-

soas achavam naquele Lorca.... De repente...Eu vi o que era a graça que tinha naquilo!Num momento assim, tudo se iluminou. Euvi que aquilo era lindo, eu vi por que aquiloera lindo, mas por um tudo ou nada eu podianão ter percebido aquilo. Mas eu fiquei todoarrepiado! Porque até os poemas que eu játinha lido e relido, e dos quais eu pensava quenão iria nunca mais me lembrar, porque nãome tinham parecido nada, ganharam,retroativamente, uma dimensão � uma luz �que eu não imaginava e que eu descobri numrelance, no meio de uma releitura de um da-queles poemas. Eu vi o que era, peguei a cha-ve, de repente. Aí eu fui reler tudo apaixona-damente.CULT E qual era sua gazua?CAETANO VELOSO Eu não sei, é tãoimpalpável. Não é que eu pudesse lhes dizerassim: foi aquele verso ou tal aspecto. O queeu senti está em todos os poemas o tempotodo, poderia ser em qualquer lugarzinho.Não é que houvesse uma característica quese destacasse, que eu pudesse dizer qual foi.É a chave de tudo aquilo. De repente eu vi,num momento, que poderia ser qualqueroutro. E eu entendi isso na mesma hora. Euvi que simplesmente tudo aquilo era assim.Eu posso mais ou menos lhes descrever oque era... Mais ou menos, porque é muitodifícil... O que era a descoberta, mas, na ver-dade, era a descoberta do encanto, queencanto tinha aquilo, que eu não estavapercebendo. Entendia todas as palavras, viaque tinha aquelas rimas, que não são rimasperfeitas, mas que dava para ver que eramrimas, achava muito simplório e acabava semdizer nada. Diferentemente das poesias deDrummond, Vinícius, ou mesmo de ManuelBandeira, que às vezes tinham aquele�simples�... Mas o simples do Manuel Ban-deira era um over-simples, um simples que ésimples demais. A graça está nisso, você sabe

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onde está a graça, onde está o deslocamento.No Lorca, eu não achava suficientemente es-tranho nem suficientemente bem-feito...CULT Não era um claro enigma...CAETANO VELOSO Não era, masdepois eu vi que era muito isso. Fiquei umtempo apaixonado por aquilo. É como se aalma do poeta que tinha escrito aquiloestivesse o tempo todo numa outra instância.Como se houvesse uma visão quase dolorosamas também prazerosa, externa ao poema.Não era o que era dito no poema, mas eracomo se fosse visto. Você entrar nesse lugardava toda a graça. É como se os poemasfossem ingênuos, mas não excessivamenteingênuos, é como se eles fossem exemplosde algo que não era o que aquele poetasobriamente faria, mas algo que ele via quese dava e que ele sabia anotar e transmitir.Era como se fosse alguém que capta o tomde uma produção anônima ou de umaprodução folclórica e que vê o encantodaquilo, mas como que meio de fora. Esselugar acima dava àquelas imagens a forçaque elas têm e dava à própria atmosfera po-pular dos poemas um excedente de graça.Aí eu vi a imensidão da beleza daquelascoisas, e aí começou tudo a ficar lindo.Aquela coisa [recita]: �Suas pernas escapa-vam como peixes surpreendidos/ metadefeitas de lume/ metade feitas de frio�.Quando você não sabe que isso é deslum-brante, você não vê e não sabe nada disso. Eainda traduzido em português; depois eu vima ler em espanhol, que ainda é mais bonito[recita]: �Sus muslos se me escapaban/ comopeces sorprendidos�. Esses �muslos� que sãoas �coxas�, �suas coxas me escapavam�... Mas�coxas� não é bonito como �muslos�. [recita]�Sus muslos se me escapaban/ como pecessorprendidos/ la mitad llenos de lumbre / lamitad llenos de frío�... O ritmo era como sefosse uma coisa que ele ouvia e ele sentia e se

entregava ao sentimento de prazer e dor deouvir aquele ritmo. E como as idéias que vi-nham eram as necessárias para aquele ritmo...Enfim, a poesia. E eu fiquei maravilhado ecomecei a entender melhor. E tanta coisa queVinícius fez, que era imitação até desse poe-ma aqui. Isso foi um acontecimento muitoimportante também.Nesse período, quando comecei a distinguiras coisas, eu já tinha lido poesia, e, por esseencontro importante com Lorca (por ter sedado essa virada), eu entrei numas de queme agradava mais ler ensaios e poesia do queliteratura de ficção (romance, conto etc.).Quando se tratava de Clarice Lispector ouGuimarães Rosa, eu gostava, porque é prosamas é poesia, é tão bom quanto poesia.CULT Faltou concluir por que o livro deUnamuno �mudou sua relação com as pala-vras�...CAETANO VELOSO A história quevocês mencionaram me levou a essa grandedigressão. Faço uma retrospectiva: eu soumuito veraz, mas o que vocês citaram, essetrecho da dedicatória, é um momento nãomuito verdadeiro. Na dedicatória, aprimeira coisa que eu tinha posto foi o fatode Tenório ter me dado de presente Embusca do tempo perdido, quando eu voltei deLondres. Essa digressão se deu porque eunem pensava que ia ler Em busca do tempoperdido. Primeiro, porque era muito ele-vado; e segundo, porque era literatura deficção. Eu já estava decidido que não gos-tava de ler romance. Eu gostava de ler en-saio. Antes de ir para Londres, eu lia Lévi-Strauss e adorava ler Sartre, gostava dainteligência daqueles argumentos bri-lhantes.Eu gosto até hoje de ler filósofos e ensaístas.Gostava de ensaio e poesia de preferência aromance e ficção. Então eu não tinha planosde ler Em busca do tempo perdido. Mas o

Glauber [Rocha] me tinha dito em Londres:�Você tem que ler Proust. Antigamente eutambém reagia contra.� E eu falei para ele:�Acho que não vou ler, é romance, são oitovolumes.� Ele disse: �É, todo mundo falavaProust, Proust, grande literatura, eu pensavaque era opressão cultural. Mas eu fui ler, ra-paz... Você tem que ler, é maravilhoso, aquiloé maravilhoso mesmo.� O Glauber falou, eufiquei com uma pulga atrás da orelha, masnem por isso saí para comprar o livro deProust. Quando eu voltei ao Brasil, o LuísTenório estava apaixonado por Proust e, fa-lando nisso, eu contei: �O Glauber me disseque era uma maravilha, que realmente elepensava que era opressão cultural, mas quenão, que é beleza pura.� Tenório ficou caladoe quando chegou meu aniversário (agosto de1972), ele me deu de presente Em busca dotempo perdido, toda a coleção. E eu pensei:�Bom, vou começar a ler.� E li todo.Eu terminei colocando Unamuno porque oTenório também me apresentou o livro deUnamuno, Viagem por terras de Espanha ePortugal, em 1976 ou 1978. E ali há algumasreflexões sobre a língua portuguesa que sãomaravilhosas. Ele apresenta uma seleção depalavras que são realmente encantadoras.Tem um negócio sobre a palavra �luar�, queele diz que é uma palavra intraduzível, quesó tem em português. E de fato, porque vocêtem luz de la luna e moonlight e clair de lune echiaro de luna, mas �luar� só em português.Mais especificamente do que �saudade�,�luar� é uma palavra unicamente da línguaportuguesa. Não há, nas outras línguasocidentais, um caso de uma palavra inven-tada só para isso. �Luar� é uma palavramaravilhosa, é a luz da lua. Mas ele fala �luar�e �noivado� e �nevoeiro�. Ele chama deintraduzíveis não porque não se encontremequivalentes nas outras línguas, mas por cau-sa do som, a combinação da semântica com o

DEPOIS DESSE

ENCONTRO IMPORTANTE

COM LORCA, ENTREI

NUMAS DE QUE ME

AGRADAVA MAIS LER

ENSAIOS E POESIA

DO QUE LITERATURA

DE FICÇÃOO POETA ESPANHOL

FEDERICO GARCIA LORCA

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som, que é uma coisa do gosto da língua por-tuguesa. Isso me impressionou muito no li-vro de Unamuno. E eu tinha muito que agra-decer isso ao Tenório também. Mas quandoeu escrevi a dedicatória, pensei: �Pô, a pessoavê essa dedicatória pequeninha, está antes dolivro, esse livro grandão, de memórias, eu falode Em busca do tempo perdido logo no início...Mas eu não quero deixar de agradecer aoTenório [ri], tem também o negócio deUnamuno.� Aí eu peguei e substituí o Proustpelo Unamuno. Eu quis manter um agrade-cimento ao Tenório por esse livro, mas na ver-dade eu primeiro tinha pensado em agrade-cer a Tenório o presente que foi Em busca dotempo perdido. Então isso não é muito verda-deiro, nada é mentira, mas não é veraz o sufi-ciente como eu gosto de ser.CULT E você se reconciliou com os romances?CAETANO VELOSO Antes do Tenó-rio me dar o Proust � e por isso o Proust foilido como deveria ser e me apaixonou comome apaixonou �, eu tinha feito uma aposta.A Dedé, que era minha mulher e é a mãe deMoreno, gosta de ler romances. É engraça-do, porque já minha mãe lia romances... EDedé dizia: �Puxa, Caetano, tem romancesque são bonitos e você fica com esse negóciode que não gosta de ler romance. Você vailer.� E me fez ler O vermelho e o negro [deStendhal]. Ela comprou dois exemplares,para ela ler e eu ler também ao mesmotempo. Ela lê mais rápido do que eu e fezuma aposta que ela leria mais rápido. Eudisse: �Claro que você vai ler mais rápido,mas eu vou me virar aqui para ver se agüentoesse negócio � �quando a condessa abriu aporta�...� Eu acho sempre isso chato � �fula-na abriu a janela e viu a ... � Eu pensava queisso ia ser sempre chato. Não gostava, pensa-va que não gostava. Mas eu li O vermelho e onegro e eu vou lhes dizer: esse é o romance deque eu mais gosto de todos os romances que

eu já li. Eu acho aquilo lindo. O jeito que éescrito, o tamanho das frases, fiquei apaixo-nado pelo romance. Já li umas duas ou trêsvezes em português e reli em francês. Então,quando Tenório me deu Em busca do tempoperdido, eu já não estava tão de mal com aprosa de ficção como antes.Mas tem uma ressalva que devo fazertambém, de caráter cronológico, e é impor-tante. Por causa do contato com Augustode Campos, Haroldo de Campos, DécioPignatari, sobretudo com Augusto (euconheci os outros através dele), eu li a poesiae os manifestos de Oswald de Andrade. Efiquei maravilhado, porque eu já tinha feitoo meu disco tropicalista todo; então me sentireafirmado, reassegurado, confirmado nasminhas intenções, e aquilo me deu um gran-de estímulo. E o Augusto também foi medando umas coisas outras � Sousândrade,Kilkerry, os artigos deles, a poesia deles, edaí os romances do Oswald de Andrade. Eufiquei maravilhado. E uma tradução detrechos do Joyce, do Finnegans wake, que memaravilharam. Aquele Panaroma doFinnegans wake eu acho uma das coisas maislindas que já foram publicadas no Brasil.Aquilo é uma coisa maravilhosa. Eu termi-nei o Finnegans wake na casa de Cabrera In-fante em Londres. Ele tinha uma ediçãomuito bonita e eu lia muitos trechos eminglês, diretamente no original. É bom por-que é um livro que é prosa mas é poesiamesmo. Precisava ter uma erudição parasaber todas as referências, mas sem todas asreferências já é muito bonito também.Eu tinha escrito um texto chamadoAcrilírico, sem conhecer a prosa de Joyce, co-nhecia alguma coisa do Panaroma, eu acho. Eo Augusto ficou muito impressionado com otexto de Acrilírico. De uma certa forma, eraum caminho um pouco gozado, um poucofácil, porque eu, com naturalidade, se me de-

dicasse a fazer muito daquilo, eu ia enveredarpor aquele caminho. Curiosamente, há algu-ma coisa em mim que responde àquela ade-são entusiástica, que está viva até hoje, quecomeçou quando li William Saroyan. É umanecessidade, talvez por minha própria igno-rância, de eu entrar em contato com as con-venções da narrativa clássica. Eu não quis fi-car fazendo aquele negócio só assim paraaquele lado, eu não sei o que é... Sinceramen-te, não sei o que é... Mas me parecia mais fácilficar fazendo coisas assim mais para aquelelado, experimental. Mas esse �mais fácil� jásignificaria que eu não faria talvez coisas pro-priamente boas. Eu acho que Acrilírico é bom,mas porque foi feito assim despretensiosa-mente. Há um texto meu, mais ou menosdessa mesma natureza, que eu escrevi maistarde para a Navilouca, que eu acho bacanatambém. Mas eu não sei... Por alguma razãoque eu não sei explicar muito bem, eu achavaque era uma certa facilidade.CULT No livro você fala algo assim...CAETANO VELOSO Como no casodo Araçá azul. No meu texto em Verdade Tro-pical sobre Araçá azul, eu digo muito do queé essa sensação, mas ali havia vários outrosfatores que não seriam o caso da literatura.Ali havia o negócio de eu me sentir mimado ��volta de Londres, pode fazer tudo, e tam-bém fazer aqueles discos experimentais, devanguarda só� � aquilo não sei... E eu tenhohorror a quem é cético com relação a essacoisa das vanguardas. Eu sou entusiasta.Como já disse a vocês, certa vez: eu sintomuita atração por esse ambiente mental doexperimental, que é uma espécie de radicali-zação da condição da modernidade na arte doséculo XX. Eu sempre tenho uma relaçãomuito desconfiada, e antipática mesmo, dian-te das pessoas que gostariam de se livrar des-sas experiências radicais, de voltar atrás e deapagá-las, fingindo que não aconteceram e

O VERMELHO EO NEGRO, DE STENDHAL,É O ROMANCE

DE QUE EU MAIS GOSTO.JÁ LI UMAS DUAS

OU TRÊS VEZES

EM PORTUGUÊS

E RELI EM FRANCÊS.O ROMANCISTA

FRANCÊS STENDHAL

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não querendo assumir as conseqüências quepossam ter vindo delas ou que possam delasadvir. Eu tenho uma certa ojeriza a quem éreacionário quanto a isso. É curioso, porqueao mesmo tempo eu faço música para as mas-sas. Mas eu próprio não quero fazer dissouma facilidade para mim. Acho que não te-nho o direito! Prefiro enfrentar todas dificul-dades, de diálogo ou crítica, mas eu tenho... Éuma questão de honestidade comigo mesmo.Para mim, eu temo uma facilidade, uma facili-tação, é estranho.Eu li Ulisses nesse meio tempo, por causa dainfluência dos concretos, antes de ir paraLondres. Depois comprei em Londres, limuitos trechos em inglês. É um livro muitointeressante e fascinante. Mas é curioso, háum aspecto do Ulisses que na verdade eu nãoacho no Finnegans wake � sempre muito bemescrito e dá muito show de bola em váriasdireções, é muito estranho e muito interes-sante, mas tem alguma coisa de chato. OFinnegans wake nunca é chato, porque nuncadá a impressão de que você precisa realmenteler tudo [ri]. Você lê qualquer pedacinho, éum relâmpago de beleza, de luz literária.Ulisses é bonito, mas como é narrativo... Émuito estranho que apareça essa contradição.Curiosamente, eu me ressinto, me agasta queo Joyce não seja ficcionista. É curioso, euacho que ele é escritor, mas não é ficcionista.E eu justamente não gostava de que osescritores fossem ficcionistas, mas quandoeu encontro um que de fato não é... Porqueo Guimarães Rosa é um grande poeta mas éum ficcionista, mas o Joyce não é. Ele nuncaescreveu nada que não fosse sobre ele mesmoem Dublin, é o tempo todo aquilo. Ele nãoimaginava alguém que fez isso ou aquilo, elesimplesmente só sabia aquele negocinho davida dele em Dublin. Naturalmente, ele vêque, dali, ele vai mexer com toda a literaturado mundo, vai botar os professores para es-

tudar, ele que enchia a cara... Eu adoro aque-la biografia dele, dá uma visão muito diferen-te do que a gente pensava, um sujeitodesbundado, bêbado, muito desorganizado,com a vida familiar desorganizadíssima, vaificando cego, mas muito quente sexualmen-te, com uma mulher ignorante, e um poucodepravado, e um pouco perverso. Mas mui-to sexo e muito álcool.CULT E cuja arte formalmente, estrutural-mente...CAETANO VELOSO Espetacular. Eé engraçado que tem aquele encontro delecom Proust, fugaz, em Paris. Aquilo éincrível. E um não gostava da literatura dooutro. Ele tinha lido alguma coisa de Prouste não tinha achado nada, achou que nãotinha nada. E depois Proust leu alguma coisadele e também achou que não valia nada.CULT Qual a atração do barroco e o que vocêacha de Gregório de Matos e do Padre AntónioVieira?CAETANO VELOSO O que atrai nobarroco é que ele resulta ser uma arte maisdo código do que da mensagem. Muita gen-te acha incoerente que os enxutos poetasconcretos saúdem o barroco. Mas é com eleque eles têm mais profunda identificação.Não é a enxutez do clássico que orienta ocritério deles: a economia equilibrada, o bomsenso, o horror ao horrível, ao exagerado,ao extremo e ao insensato. É claro queAugusto é mais clássico do que Haroldo eDécio; Décio é mais romântico do queAugusto e Haroldo; e Haroldo é maisbarroco do que os outros dois juntos. Maso grupo é do código e não da mensagem, emesmo Augusto não se deixa enganar pormedidas elegantes ou meras boas maneirasliterárias. �Todos os sons�, ele diz, e admira omais extremo de Nelson Rodrigues assimcomo o mais extremo de João Gilberto. Aprópria escolha que ele fez, em música popu-

lar, preferindo os tropicalistas a Chico, vemdo mesmo impulso que o leva a elegerLupicínio e desprezar Caymmi. Eu, que pre-firo Caymmi, valho-me mais da ignorânciado que da modéstia para admitir que minhavisão põe a obra do Chico acima da minha.Essas reviravoltas que faço aqui são, no en-tanto, barrocas, o que me leva de novo paraperto deles. Adoro o Seqüestro do barroco deHaroldo. É um texto de grande força. Quan-to ao Imperador da Língua Portuguesa e aoBoca do Inferno, são um deslumbramento.CULT O que você acha de Machado de Assis?CAETANO VELOSO Que posso di-zer? É um dos melhores escritores que já li.Ele é como João Gilberto. Tão grande e tãoconcentrado (e tão �clássico� sem ter abertomão do escândalo estético) que dá aimpressão de estar sozinho.CULT E Oswald de Andrade?CAETANO VELOSO Oswald é, comose diz na gíria de hoje, �tudo�. Oswald foi oponto que uniu todos os envolvidos diretaou indiretamente nas atividades quecercaram o tropicalismo. Tanto os Camposquanto Zé Celso, Oiticica como ZéAgrippino, Antônio Cícero e Zé Almino,Duprat, Rogério Duarte, Torquato, Waly,todos concordavam a seu respeito. Opatriarca do matriarcado de Pindorama, oantropófago indigesto, o modernista maisconseqüente porque mais irresponsável. SóGlauber tomava uma certa distância. Não onegava ou contradizia. Apenas contava quenunca tinha se aproximado muito e não iafazê-lo agora que todos estavam falando nele.CULT Numa certa época, muitos poetas ecompositores acreditaram, quase como um de-sejo utópico, na música popular brasileiracomo um meio efetivo de comunicação de mas-sa para a poesia. Como você lê isso, já quevocê foi, para certos escritores e quase todauma geração de poetas, um depositário desse

O FINNEGANS WAKE

DE JOYCE NUNCA É CHATO,PORQUE NÃO DÁ A IMPRESSÃO

DE QUE VOCÊ PRECISA

REALMENTE LER TUDO.QUALQUER PEDACINHO

É UM RELÂMPAGO DE

BELEZA, DE LUZ LITERÁRIA.O ESCRITOR IRLANDÊS

JAMES JOYCE

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�princípio esperança�?CAETANO VELOSO [ri] Eu não sa-bia que isso se chamava �princípio espe-rança�.CULT Nós pegamos uma frase do ensaio pós-utópico de Haroldo...CAETANO VELOSO Ah bom, eu melembro desse artigo, mas está tão longe destaquestão da música popular que eu não ligueiuma coisa à outra. Eu entendo... No finaldos anos 60, houve muitas movimentaçõesassim, misturaram-se pessoas e áreasdiferentes. Nós já falamos na palavra�produssumo� que o Décio cunhou. Masessa própria palavra, hoje, já oscila, treme,por causa de vários fatores que a atingemcom a experiência que nós temos dopensamento crítico como se desenvolveudaquela época para cá. Por exemplo, se vocêchama � como eu chamei, e chamei de pro-pósito, repetidas vezes, nessa entrevista quedei para o lançamento do Noites do norte �aquilo que você apresenta para julgamento,para fruição pública de produto, isso causaum mal-estar em todas as pessoas envolvidas.Eu acho que não houve nenhum crítico quenão mencionasse com certa ironia que euestava quase que desavisadamente usando apalavra �produto� e por isso me traindo,traindo uma postura de mero mercador,quando queria me dizer artista livre. Fala-se em produção e consumo... Mas quandoo Décio falava isso naquela época, ele estavafalando em nome dos artistas que maislivremente queriam atuar. Justamente essaspalavras, hoje, só ressoam conformismo edão a impressão de que você merece tudo oque Adorno falou sobre a indústria cultural[ri]. Talvez nós mereçamos mesmo tudoaquilo... Acho que nós merecemos tudo aqui-lo. Porém, merecer tudo aquilo não significao que Adorno pensava que significa. E talvezsignifique ou talvez venha a ser outra coisa.

Naquela época, essa colaboração de gente daalta cultura com a cultura de massas e a in-dústria cultural era uma mostra de inde-pendência e coragem, como na arte pop e nocinema de Godard. E também no caminhoinverso, saindo do popular para o erudito,como nas experiências dos Beatles e dostropicalistas. Mas evidentemente as coisasnão são assim fáceis e lineares. Mais tarde,houve uma necessidade e um refluxo daidéia de volta aos cânones mais tradicionaise um cuidado com a idéia de alta cultura ebaixa cultura. Nos Estados Unidos, mistu-raram muito e depois houve muita reação,�high�, �low�... Mas me lembro de que,quando era menino, eu ouvia os High Lows,aquele grupo vocal adorado pelo CarlosCoquejo, que era juiz do trabalho, tambémfez algumas canções populares e era amigode João Gilberto. Mas o meu caso pessoalterminou pondo o João Gilberto no centroda resolução das perspectivas estéticas,críticas, criativas e receptivas.CULT Queríamos partir de João Gilberto echegar a João Cabral, que parecem ter sidoreferências centrais para você num dadomomento, citando um trecho do texto De músicapopular e poesia, do Antônio MedinaRodrigues: �O canto a palo seco seria umaespécie de arkhé de todo canto, filosofia vocal ouexperiência do canto antes do próprio canto. Commuita distância, a voz de João Gilberto faz algoparecido, mas o faz mais por sua semelhançanatural com uma das vertentes da poesia de JoãoCabral de Melo Neto, dada a maneira com quetanto o poeta quanto o cantor parecem mastigar eremastigar as mesmas palavras, levando-as auma lisura espectral, a uma quase-neblina geo-métrica. Ambos estão na corrente que busca idéiaspuras, um depuramento do concreto que, no fim eao cabo, acaba dando um certo pitagorismo esté-tico�.CAETANO VELOSO Eu tenho im-

pressão de que esses dois artistas podem terme atraído, em grande parte, por caracterís-ticas semelhantes a essas escritas pelo Medina.Mas o fato é que são dois artistas que meinteressaram muito. E nós não falamos mes-mo de João Cabral de Melo Neto, que é omais importante, porque foi no âmbito dapoesia; por um momento ele representou paramim uma verdadeira monomania. Ele pare-ceu centralizar tudo e resolver todos os pro-blemas. Houve um momento em que ele mepareceu ser o maior poeta vivo do mundo.João Gilberto adora poesia. No texto �JoãoGilberto e os jovens baianos� (Balanço dabossa), Augusto conta seu encontro com Joãoem 1968 em Nova Jersey. Ele relata aconversa com João, que falou: �Para mim, éCaetano e Drummond�. E aí o Augustodisse: �O Caetano fala que, para ele, é Joãoe João�. [ri] Porque, para mim, era JoãoCabral e João Gilberto. Nessa época, quandoAugusto me conheceu, em 1967, eu diziaisso todo o tempo: para mim, o negócio eraJoão Gilberto e João Cabral.Mas mais do que procurei � ao fazer Ocinema falado � não apresentar sotaquesgodardianos no ritmo ou na feitura ou noque quer que fosse, eu procurava � na minhalírica [ri] e nas minha letras de música �fugir o mais que pudesse dos cabralismos.Eu me lembro de que, quando ainda estavano secundário em Salvador, no final do cursoclássico, eu fazia uns negócios debrincadeira, escrevendo � imitava a ClariceLispector, imitava o Guimarães Rosa e imita-va o João Cabral. Certa vez, eu fui ver umasmeninas lutarem capoeira com aqueles velhoscapoeiristas da Bahia. Eram amigas minhas,que estavam na escola de dança e entraram naescola de capoeira. Achei aquilo maravilhoso:elas jogando com os caras e depois entre si.Eu descrevi a cena primeiro como se fosse oGuimarães Rosa, depois como se fosse a

OSWALD DE ANDRADE FOI

O PONTO QUE UNIU TODOS OS

ENVOLVIDOS NO TROPICALISMO,O PATRIARCA DO MATRIARCADO DE

PINDORAMA, O ANTROPÓFAGO

INDIGESTO, O MODERNISTA MAIS

CONSEQÜENTE PORQUE MAIS

IRRESPONSÁVELO POETA MODERNISTA

OSWALD DE ANDRADE

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Clarice Lispector e depois como se fosse umpoema do Cabral, com aquelas rimas toantes,aquele ritmo que é uma métrica às vezes umpouco quebrada, mas uma métrica de versosde oito sílabas, sem as cesuras nos lugaresconfortáveis, que o Cabral procurava na edu-cação dele pela pedra... Se bem que na Educa-ção pela pedra já não são versos de oito sílabas,e sim versos mais longos. Eu fiz um negócioassim, imitando. Mas eu perdi isso, eu fiz sópara brincar e mostrar a elas. Então, nas mi-nhas letras de música, eu procurava não medeixar, de forma nenhuma, parecer com aquilonem por nada, nem na forma nem nas idéias.No Cinema falado tem um pastiche... Isso eudisse ao João Cabral e ele ficou impassível,olhando para mim, com os olhos duros, co-mo quem diz: �Não vou lhe perguntar nadasobre isso, não quero nem saber.� Eu faleipara ele: �João, eu fiz um filme, e no filmeeu escrevi um falso poema, um pastiche depoema seu sobre você, sobre a sua poesia.�No início do filme, na hora que alguém as-sobia O cinema falado, aparece o LuizZerbini, sentado, na festa, e diz: �João Cabralde Melo Neto/ tentando limpar a poesia/ detoda rosa/ toda merda/ e fazendo-a aindamais ridícula/ mas, não poetizar o poema /sim, mas e quanto a poetizá-lo?/ seu fado demagia e música o acossa de todos os lados�.É metacrítico, é Cabral e é uma coisa quepõe em dúvida a decisão do Cabral, e de umacerta forma critica a crítica que ele faz... Masé besteira, porque isso também já está incluí-do na poesia dele � uma resposta crítica à pró-pria crítica a ele feita. É que o meu é feito defora, o meu é pastiche, como disse a ele.Ele era muito firme, muito engraçado, umhomem fascinante. Eu o vi numa das cenasque eu tenho na cabeça como uma das maisdeslumbrantes desse mundo, e tão parecidacom os poemas dele! Foi em Dacar, quandoele era embaixador. Eu e Gil estávamos sain-

do de sua casa, que tinha um jardim grandecom um gramado bonito. Estávamos con-versando, e ele muito afável, atencioso, sim-pático, direto. Então ele mostrou dois grouscoroados. Aquela ave alta, e ele baixinho. EJoão disse assim: �É, são muito bonitos. Umé macho e a outra é fêmea. Mas são absoluta-mente iguais. Sabe como a gente sabe qual éo macho e qual é a fêmea? Se você se aproxi-mar, o macho ataca, e a fêmea não ataca. Ou éao contrário, não sei... Talvez seja a fêmea queataca e o macho não ataca. Mas é assim que sedescobre qual dos dois é o macho e qual dosdois é a fêmea.� Então ele disse: �Vocês que-rem ver?� E andou diretamente para o gra-mado, reto assim. E um dos grous atacou, e ooutro saiu timidamente de perto dele. Ele pa-recia um toureiro, porque ele ficou 100% con-centrado nos movimentos do grou e se apro-ximava até o máximo de risco e logo voltava.E o grou desarmava, e ele de novo, umas trêsvezes. Parecia a cena de uma tourada... Es-tranho, o pássaro quase da altura dele. E daíele voltou, reto, como quem não tivesse feitonada. E continuou a conversa: �Viu? É as-sim. Ou é o macho ou é a fêmea, é um dosdois. Mas é assim que se sabe.� E mudoude assunto e falou de outras coisas [ri].CULT É espantoso mesmo, dá outra dimen-são àquele fascínio que você nutria por ele, quan-do jovem...CAETANO VELOSO A gente gosta-va das poesias de Drummond, e eu fiqueiapaixonado depois por Cabral, e mais tarde(devido a Mensagem), por Fernando Pessoa,que eu já conhecia. Mas quando li Mensa-gem, eu fiquei muito impressionado, e acheique aquilo era superior a tudo o que haviaem língua portuguesa, mas sempre com oCabral ali me segurando...CULT O guardião do museu de tudo...CAETANO VELOSO O guardião domuseu de tudo. Porque o Cabral, para mim,

era o maior poeta... Mas eu procurava nãocolocar nada nas letras das músicas que fossediretamente disso. Embora, às vezes, eu pu-desse pegar uma coisa ou outra � mas, emgeral, mais de prosa erudita � e citar assimdiretamente. Como �nada no bolso ou nasmãos�, que é de Sartre, e está em �Alegria,alegria�. Há várias coisas assim. �Desejo teudesejo� é Hegel, que eu estava lendo comCícero, a partir de umas aulas de Kojève; eraminterpretações bonitas sobre a dialética dosenhor e do escravo, �a realidade é uma su-cessão de desejos desejados e você deseja odesejo...�. Essa forma de desejar o desejo fi-cou na minha cabeça e terminou saindo naletra do �Menino do rio�, que é uma coisaassim amena, que não tem nada a ver...CULT Esse procedimento é muito comum emsuas canções. Cite outros exemplos.CAETANO VELOSO �Peter Gast�: acanção inteira é já um caso absurdo. Eu meenvergonhava muito dela. Mas não pudeevitar de fazê-la. Além do tema geral, háfrases lembradas do livro de Daniel Alévysobre Nietzsche (�voa, tem as fibrastensas�...). Só deixei de me envergonhar deladepois de ouvi-la pela cantora argentinaSilvina Garré. Esta é a razão por quedediquei Verdade tropical também a ela.Lembro da citação de uma frase do conto�Um homem célebre� de Machado de Assisna contracapa de Circuladô (�Mas as polcasnão quiseram ir mais fundo�), que é justa-mente sobre um autor de canções popularesde sucesso que anseia pela criação de peças�sérias�. A �raposa bêbada� de �Ele me deuum beijo na boca� repete uma imagem deSousândrade, embora aqui eu tenha seguidouma idéia popular de que raposas e guaráschupam cana e se embriagam. Mas eu já co-nhecia o poema e Augusto me alertou. Devehaver outras de que não me lembro.Mas uma ligação mais direta da feitura de

“JOÃO CABRAL DE MELO NETO/TENTANDO LIMPAR A POESIA/ DE

TODA ROSA/ TODA MERDA/ EFAZENDO-A AINDA MAIS RIDÍCULA/

MAS, NÃO POETIZAR O POEMA /SIM,MAS E QUANTO A POETIZÁ-LO?/ SEU

FADO DE MAGIA E MÚSICA OACOSSA DE TODOS OS LADOS”

O POETA PERNAMBUCANO

JOÃO CABRAL DE MELO NETO

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poesia brasileira com... Eu vivencio como sefosse em outra instância, para não haver umtipo de confusão... É estranho, porque aomesmo tempo que eu não respeito essa idéiade (tal como me foi oferecida) alta cultura ebaixa cultura, eu não acho que seja saudáveluma confusão desse tipo que eu evitei � devalorizar por uma parecença exterior ou dedicção com a poesia respeitável... A cançãopopular tem uma dialética interna própria euma história própria, tem um fazer consigomesma e esses elementos poderão entrar deuma forma ou de outra, mas não podemnortear. Não se pode confundir as perspecti-vas críticas que olham o que está se passandona música popular com as que olham o queestá se passando nos livros de poesia.CULT Você colaborou em publicações margi-nais, como Verbo Encantado, Ta-ta-ta, Flordo Mal, Pólem, Navilouca. Você tinha algumaatração especial por esses trabalhos?CAETANO VELOSO Eu tenho mui-to apreço por isso, mas dependeu de convitesque me apareceram. E à medida que osconvites apareceram, pediam que eu cola-borasse, porque seria bom para a publicaçãoe também estavam reconhecendo que eu,sendo um compositor de música popular,podia participar daquelas publicações depoesia ou literatura. O que também me hon-rava, mas também o meu prestígio e a minhafama poderiam ajudar as revistas. Eu aceitavade bom grado e fiz esses textos com muitafacilidade e rapidez em geral. É uma rapidezde quem no fundo parece que está sempretrabalhando com aquilo porque, na hora queprecisa fazer, já vem muita coisa... Porque eutrabalho o resto do tempo com aquilo, jogan-do fora sem usar nem transformar em obrapara ser apreciada pelos outros. Mas é as-sim... Eu não sei... Eu não tenho vocaçãopara... Eu poderia me calar mais para poderconcentrar a atenção sobre coisas que eu fi-

zesse e que fossem mais bonitas. Mas eu nãotenho esse temperamento e eu sou um poucocético em relação ao que eu faço. Eu não que-ro levar... Eu não acho que seja tão sério as-sim fazer essas coisas... Eu acho que a gentefaz justamente porque é uma coisa que vocêpode fazer.CULT Alegria, alegria, coletânea de textosdispersos e publicados entre 1966 e 1976,organizada por Waly Salomão, contém muitosdesses textos experimentais...CAETANO VELOSO Waly quis fa-zer esse livro. Eu gosto. Há meu artigo de1965 para a revista Ângulos, há algumas coi-sas bonitas escritas para o Pasquim, há aquelaentrevista dada ao Carlos Acuio para aManchete. E não há nada de que eu meenvergonhe muito.CULT Nesse livro, há textos como �Boleros eSifilização�, �De noite...�, �deus, brotas�, �Nãoverás um Paris como este�. São textos experi-mentais, repletos de paronomásias, escritos entre1969 e 1972, cujos ecos encontramos em muitascanções, como �Outras palavras�. Você acha queesses textos guardam relações com sua música?CAETANO VELOSO Sobretudo com�Outras palavras�, mas com muitas outrascanções também. �Jeito de corpo�, algumascanções de Velô. �Podres poderes� temmuitas coisas assim: �tons e tins e bens e taise tons e tins�. O próprio nome �Podres po-deres�... Essas coisas são curiosas, porque àsvezes dá a impressão de que essas descober-tas formais têm um caráter de descobertamesmo. É como se não fosse alguém, nãonecessariamente... Termina sendo que é mes-mo alguém dizendo alguma coisa que nãopoderia dizer de outro jeito, a não ser fazen-do aqueles jogos formais. Mas as própriasdescobertas de coincidências, de espelha-mentos etc. às vezes parecem meras desco-bertas de coisas que estão aí, na língua, e que,uma vez descobertas, não instituem necessa-

riamente uma autoria. É quase como se o au-tor pudesse patentear aquilo, mais como uminventor do que como um autor. Inventormesmo. A palavra que o Pound escolheu émuito adequada, mas eu não a estou toman-do com o mesmo valor semântico que ele to-mou. Eu acho que às vezes parece mesmouma invenção, no sentido de que aquilo pas-sa a ser universalmente utilizado. Você des-cobre que...CULT Podre é um anagrama de poder...CAETANO VELOSO Podre é umanagrama de poder. É como alguém lembrarde que uma palavra tal rima com outra, mas arima propriamente não pode ser... De umarima, ninguém pode alegar autoria, �fulano éautor da rima de janela com estrela�, não sevive isso... Essa ênfase na descoberta de jo-gos formais e estruturais se parece um poucocom isso. É como se tivesse tomando algo,por exemplo, uma rima, como se fosse umacriação, quando a rima está ali, poderia estarem outro poema... Mas acontece que de fato...Aí vem: uma rima, naquele poema, dizendoaquelas coisas, naquele lugar, passa a ser umacoisa que só aquele poema pode dizer, comaquela rima, que dá aquele resultado e pro-duz aquela sensação no leitor. Assim tam-bém, um poema que tira partido do aspectovisual de uma tal palavra com o significadodela, com o valor semântico, e joga com isso,termina que � quando são bons e verdadei-ros poemas � eles não são meramente umadescoberta de um negócio que está aí, mas éalguém dizendo algo que não foi dito, de umjeito que se apresenta como necessário.Tem horas que é uma coisa incrível, que éuma coisa divina mesmo... Você vê um poe-ma como �Pulsar� [de Augusto de Campos],com aquela página preta, aquelas estrelas,aquilo como as estrelas vão... Aquela estrelaque vai ficando longe, e a própria página jácomo um todo, estrelada, e com aquelas luas

SARTRE E SIMONE DE BEAUVOIR

DESEMBARCAM NO BRASIL EM 1960

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que crescem, e a estrela que nos esquece esome. E no �eco oco� o �o�, a lua fica ocaporque tem um buraco que é uma estrela,que é o �e� em negativo, tem o �o� e o �e�.Aí já é uma elaboração, são tantas coisas... Onegócio dos poetas concretos vem de umagrande coragem de criar elaborações inte-lectualmente muito ambiciosas com essematerial que era um material... Aquela defe-sa do Manuel Bandeira, no lançamento dapoesia concreta, dizendo: �Podem dizer queé trocadilho, que o trocadilho é a coisa maisfraca�, não sei o quê, �ou que é escrita decriança, mas justamente às vezes é no troca-dilho que dá o negócio�. Eu me lembro deter lido faz anos um texto dele assim simpá-tico, um pouco leve. Eu tenho muito amorpor aquela produção de poesia e tenho umaverdadeira fascinação pela radicalidade e pelacoerência do Augusto.CULT Em 1966, o Augusto leu o depoimentodado por você à Revista Civilização Brasileirae publicou o artigo �Boa palavra sobre a músicapopular�. Daí, ele procurou um contato pessoal,fixando um longo diálogo de afinidades. Comenteessa relação entre vocês.CAETANO VELOSO No livro Verda-de tropical saiu bem-feito tanto o retrato delequanto a idéia do que representa para mim oencontro com ele. Mas eu tenho de lhes dizero que está no livro e o que permanece até hoje.É uma coisa de grande amor, de grande afini-dade, numa área muito rarefeita das persona-lidades. Mas é muito estranho, coloquialmentetambém nos damos bem, há uma certa doçu-ra no trato, pois somos duas pessoas afáveis,delicadas e discretas; eu sou mais falastrão,mas não quando estou com ele. Ele é muitodiferente de mim. Eu vejo como fascinanteessa capacidade do Augusto de concentraçãoe de manutenção de uma coerência. Mas elese lançou como um bólido naquela direção enão há nada que possa mexer, e é muito bom

que seja assim.CULT Quais foram suas primeiras impres-sões com a leitura dos poemas concretos? E qualsua leitura posterior da poesia de Augusto, Décio,Haroldo?CAETANO VELOSO Creio que con-tei sucintamente isso em Verdade tropical. Nãodigo que tudo me pareceu imediatamentemaravilhoso. As conversas com Augustomais as revistas e os livros que ele me deufaziam, com os poemas, um conjuntocomplexo, coerente e fascinante. Sobretudoas traduções de trechos de Joyce (Finneganswake) me mostravam o brilhantismo dosirmãos Campos no campo da palavra. Ehavia o texto-manifesto escrito por Décio.Os poemas apareciam nesse contexto e as-sim o risco de eles parecerem simplistas eraevitado. Porque quando temos um re-pertório limitado, certas coisas complexasnos parecem obviedades triviais. Luxo/Lixo,aquele do Haroldo que diz �nascemorre�,certos poemas me impressionavam mais queoutros. Eu adorava (adoro) os poemas deE. E. Cummings. Às vezes achava que algoque havia nele faltava aos concretos deSampa. Depois entendi melhor. De todomodo, gosto mais de �Viva vaia�, de �Pós-tudo�, do �Pulsar�, de �ão�, daquele retratode Décio feito por Augusto, em suma, dospoemas que foram escritos depois da épocaem que os conheci do que dos anteriores.Sou apaixonado por um poema chamado�Não� que Augusto mandou pelo correio eque é xerocado. No momento estou assom-brado com a nova máquina do mundo deHaroldo [A máquina do mundo repensada].Eu já amava muito esse tema nos Lusíadas eem Drummond (só topo com Dante casual-mente e via outros: é tudo sempre perfeito elindíssimo, mas eu tenho a impressão de queainda não mereço ler, sinto demasiada reve-rência).

CULT Você escreveu que a expressão �arcoteso�, do manifesto do Décio, publicado na revistaInvenção n. 5 (1966/67), além de citada numacanção, �foi uma presença difusa por sob as pala-vras de muitas das minhas composições e decla-rações esses anos todos�. Como é esse seu interesse,simpatia e até compromisso pelas coisas e causasda vanguarda?CAETANO VELOSO Eu adoro aque-le manifesto do Décio. É esse meu entusias-mo de que falei. A idéia de manter o arcoteso, eu sempre tenho comigo. O que nãoquer dizer que, necessariamente, eu identi-fique com a idéia de rigor as escolhas estéti-cas que foram feitas por Augusto, Décio eHaroldo. Isso nunca aconteceu comigo. Euencontrei muita identidade, muitosensinamentos e reconheço também umagrande superioridade cultural e intelectualdessas pessoas sobre mim, pela própria for-mação e pelo quanto eles continuam estu-dando e trabalhando. Mas isso não querdizer que quando eu digo �arco teso�, mes-mo tendo aprendido com eles, deva parti-lhar necessariamente de todas as opiniões ede todas as perspectivas críticas. Justamen-te manter o arco teso, para mim, é não deixarafrouxar, é não deixar tampouco simplificaras coisas para mim com uma adesão ao queeles já trazem como programa. Isso não im-plica necessariamente discordâncias. Sim-plesmente eu tenho que ser fiel à minha pró-pria experiência.Se, em vez de fazer discos com canções(como lhes confessei no início de nossaconversa) � das quais sou escravo �, eutivesse feito, depois do Araçá azul, discoscada vez mais experimentais e sem canções,com pesquisas de som... Se eu tivesse vislum-brado uma pesquisa de som que ao mesmotempo me apaixonasse em si mesma e meparecesse muito importante para a culturasonora de todos os homens, ninguém me

OS POETAS CONCRETOS TÊM ACORAGEM DE CRIAR ELABORAÇÕES

INTELECTUALMENTE MUITO AMBICI -OSAS. TENHO MUITO AMOR POR

AQUELA PRODUÇÃO DE POESIA ETENHO UMA VERDADEIRA

FASCINAÇÃO PELA RADICALIDADE EPELA COERÊNCIA DO AUGUSTO.

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arredaria do meu caminho nessa direção. Masisso não se deu comigo. Deu-se achar que apesquisa de som e a liberdade em relação àcanção convencional e a coragem de experi-mentar são coisas importantes e eu agi comoquem considera essas coisas importantes. E,por outro lado, seria uma facilitação para mim.Mas o Augusto pode dizer: �É, o Caetanofala isso, mas se ele tivesse feito discos daque-la natureza, os discos não venderiam, ele nãoseria a celebridade que é, o tempo todo, nãoseria um sujeito fácil assim como ele é, nãoteria discos vendidos.� Meus discos não ven-dem muito. Um, por um acaso dessas coisasdo mercado que nem Adorno sabia explicar,vendeu muito, que foi esse Prenda minha. Masantes dele nenhum outro e depois deletampouco. Eu nunca vendo muito. Mas ven-do. Meus shows fazem sucesso, o pessoal vaiver. Têm caráter também experimental, deaparência experimental, mas são shows de umapessoa da música popular que faz canções eas apresenta.CULT Lê-se em Verdade tropical: �Eununca tinha, até então, ousado pensar em ser po-eta. (...) a palavra poeta encerrava tal grandezacomo nenhuma outra poderia, e, mesmo que umtanto secretamente, eu a acolhi em meu coração eprocurei aplicá-la ao que eu fazia e faria � embo-ra não fosse poesia.� Você vê diferenças entre es-crever poesia, letra de música, ensaio?CAETANO VELOSO Todas as vezesque eu fiz poesia foi só de brincadeira, comoesse pastiche para o filme e a imitação deCabral. Eu acho que o Acrilírico não é poesia;para mim é prosa, é um texto, nunca conside-rei um poema. Aquele outro que saiu no Flo-res do mal � �meu primeiro amor foi a primei-ra nota musical/ e eu odiei para sempre amúsica/ eu sou um caranguejo de duasbocas:/ uma inimiga da outra� � parece maiscomo um poema chato, mas não acho queseja um poema. Eu agora já estou velho,

acho que não me vai acontecer, mas se algumdia eu tivesse que chegar a fazer poemas mes-mo, eu ia entrar numa outra, num outroregistro de exigências, de discussões inter-nas, que não são as que eu utilizo para fazer oque eu faço.CULT Em �Sampa�, são tecidas várias ci-tações e associações literárias. Você identifica a cida-de de São Paulo à literatura (a poesia concreta, osbeats)?CAETANO VELOSO Eu estava pen-sando nisso... Certa vez, mencionei que o fatode Jorge Mautner e José Agrippino de Paulaserem autores paulistas era um aspectodeterminante do tipo de literatura que elesfizeram e que, de todo modo, eu precisava deSão Paulo como uma espécie de antídoto con-tra um suave veneno [ri]. E que a PoesiaConcreta, a USP e a literatura beat (como nocaso de Zé Agrippino e Mautner) eram, fo-ram e continuavam sendo necessárias para euseguir em frente. Eu acho que São Paulo éuma situação especial dentro no Brasil. Porisso que �Sampa� � eu citando DécioPignatari, que já estava citando Oswald deAndrade � fala do �avesso do avesso do aves-so�. Porque o Brasil é um pouco o avesso domundo e São Paulo é o avesso do Brasil, mastambém não é o mundo, é um outro lado, éum outro lado do outro lado. Isso é muitoimportante. Eu gosto muito de, naquela opor-tunidade, rapidamente, ter posto na cançãoaquelas referências a Mautner, à Poesia Con-creta, ao Décio (em particular, pela citação eessa brincadeira com o avesso de Oswald), aPanAmérica de Zé Agrippino.CULT Daria para falar um pouco de suasrelações com as pessoas e as obras de WalySalomão e José Miguel Wisnik?CAETANO VELOSO São amigosmeus. E muito diferentes entre si para queeu fale dos dois no mesmo momento. Tam-bém não me sinto qualificado para falar do

trabalho deles: os dois são mais cultos e maisresponsáveis intelectualmente do que eu. Oque vou dizer aqui sobre os dois deve serouvido levando-se em conta esses pressupos-tos. Conheço Waly desde 1962. Zé Miguelveio à minha casa no Rio já pelo fim dos anos1970, creio. Waly é exuberante: há umaenergia mental que transborda dele e quelevou anos para ele conseguir domar a fimde organizar objetos limitados, acabados.Suas letras, sua antinovela, seus poemasespalham-se para fora de si mesmos, mal secontêm na forma que buscam. Zé Miguel éum observador fino, um escritor cuidadosoe delicado � e isso aparece tanto em seustrabalhos teóricos ou críticos quanto em suascanções. Ele tem uma sensibilidade muitobem destilada. Adoro o livro dele sobre amúsica. E tenho muita vontade de cantar Ésobre-humano amar.CULT Num texto do livro Alegria, alegria,há a frase: �Eu sou um escritor cujo estilo é umatentativa de realizar o irrealizável.� Seria umaconfissão ou auto-revelação também válida paraa música?CAETANO VELOSO Sem dúvida, maseu também acho que qualquer um diria isso,né?CULT Você poderia comentar algumas dascomposições ou releituras musicais que você fez depoemas? Lembramos de �Cobra Coral� (WalySalomão), �Circuladô� (Haroldo de Campos),�Escapulário� (Oswald de Andrade), �Gil en-gendra� (Sousândrade), �Pulsar� e �Dias diasdias� (Augusto de Campos)... Faltou algum?CAETANO VELOSO Eu tinha es-quecido, quando vocês foram falando, eu fuirindo e me lembrando. Não tem nenhumdeles de que eu não goste. Mas eu tenho umcarinho especial pelo �Pulsar�. Que é um ne-gócio que eu quase não fiz nada e no entantoo resultado para mim é de uma beleza... Eu jáfiz várias versões dele, em vários shows, já

O BRASIL É UM POUCO

O AVESSO DO MUNDO

E SÃO PAULO É O AVESSO

DO BRASIL, MAS TAMBÉM

NÃO É O MUNDO,É UM OUTRO LADO,É UM OUTRO LADO

DO OUTRO LADO

NA PÁGINA OPOSTA, O GRUPO DOS

POETAS CONCRETISTAS (A PARTIR DA

ESQUERDA, HAROLDO DE CAMPOS,DÉCIO PIGNATARI E AUGUSTO DE

CAMPOS) RETRATADO POR KLAUS

WERNER EM 1952 E EM FOTO DE

IVAN CARDOSO DE 1972. NESTA

PÁGINA, CAETANO FOTOGRAFADO

POR BERNARDO VOROBOW

DURANTE ENTREVISTA À CULT.

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gravei umas três vezes, de três maneiras dife-rentes. De vez em quando, penso em fazeruma nova versão, de gravação ou ao vivo. Écurioso, eu acho aquilo lindo mesmo. E eunão fiz esforço nenhum. Eu tive uma idéiamuito simples e apliquei a idéia na hora, comouma solução quase fácil demais, mas eu sabiaque não era. Foi fácil de aparecer e de execu-tar o primeiro esboço, que foi o que eu apre-sentei no disco incluído no livro de Augusto[Caixa preta e, depois, Viva vaia]. Mas sabiaque, embora parecesse fácil, mesmo para mim,eu sabia que era rico. Com o passar do tem-po, eu fui achando mais e mais ainda rico. É oque eu mais gosto.CULT Suas composições �Acrilírico� e �Depalavra em palavra� têm raízes mais próximasda récita do que da canção. Estariam maispróximas das leituras posteriores que você fez depoemas como �Dias dias dias� e �Pulsar�?CAETANO VELOSO Eu nunca pen-sei nisso. Mas o �Acrilírico� eu tinha vonta-de de regravar. Porque não está muito claroali � e o texto é bonito; o Rogério Dupratnaquela altura temeu que a gente fizesseuma gravação levando a sério o texto e eufiquei intimidado para não ficar declamado,e distribuímos as vozes e fizemos inter-ferências para quebrar mais ainda. Mas eutenho pena, acho que aquele texto poderiaaparecer mais claramente. E no final tinha�putrificação�, que o Rogério Duarte mepediu que tirasse. Depois ele me contou quefoi o André Midani que pediu a ele queme pedisse e ele concordou com o Midani.Mas eu acho que o Rogério tem umatendência mais religiosa, é ligado à idéia dereligião, então ele ficou mais impressionado.Embora estivesse muito angustiado naépoca, porque tinha saído da cadeia, estavacom a cabeça muito ruim, mesmo assim eunão estava com medo de dizer aquilo, eu iaseguir o texto como era, mas ele falou tanto,

que me convenceu.CULT É como o �lave maria, cheia de gra-xa�, do Finnegans wake...CAETANO VELOSO É, parece, pare-ce. Gozado, eu estou mais distante do assun-to... Para mim, hoje em dia, eu já acho maisdifícil dizer aquele �putrificação�. Porque oque o Rogério me disse naquela altura, euachei que não tinha problema, mas hoje eu jásinto diferente. Se eu fosse regravar, por res-peito ao texto, eu iria fazê-lo com essa palavrano final. Mas eu tenho atualmente mais pre-ocupação com relação a isso, porque afigura de Nossa Senhora da Purificação hojetem mais sentido para mim. Tem até maisdo que aquilo que o Rogério falou: �É onome da santa padroeira de sua cidade, é doseu povo, você vai dizer uma coisa dessa,pode ser muito baixo astral.� Hoje em diaeu não sei se eu teria tanta vontade de dizeraquilo, mas se eu fosse reabordar o texto, eurespeitaria o original e diria.CULT Na canção �Língua�, você diz, meiocitando a provocação de Nietzsche e a reação deProust: �A poesia está para a prosa/ assim como oamor está para a amizade/ e quem há de negar queesta lhe é superior.� Fale um pouco dessa composição.CAETANO VELOSO Acabo de reto-mar essa canção no meu novo show. Gostomuito dela. Acho que é a primeira a falar emrap no Brasil. É do início dos anos 80. Essaidéia da superioridade da prosa sobre a poe-sia está no Fernando Pessoa do Livro do de-sassossego (onde também se lê �minha pátria éa língua portuguesa�), mas aqui ela toma umsentido mais irônico ainda do que o fato de láela estar sendo defendida por um superpoeta:comparada à superioridade da amizade sobreo amor (uma opinião de Nietzsche que enojaProust), a superioridade da prosa sobre apoesia se mostra inquietantemente duvidosa.Proust não fala por si só quando comentaNietzsche nesse particular: ele fala por todos

nós e por como vivemos. �A poesia�, diz Pes-soa, �tem algo de infantil e feminino�. Assimtambém o amor, podemos dizer. Mas aconfiabilidade sóbria e viril da prosa e daamizade sobre a intensificação de tudo gera-da pelo amor e pela poesia não representa umasuperioridade real. No filme O cinema faladoescrevi para que um ator dissesse (eu mesmodisse): �A superioridade da prosa sobre apoesia é da mesma natureza da superioridadeque ostentam dois velhos inteligentes quevêem uma grande bailarina dançar�, ou algoassim.�Língua� nasceu da vontade de usar osprocedimentos do rap como veículo. Euplanejava então explorar um novo filãode textos declamados sobre base rítmica(mas uma base inventada por mim e meusamigos músicos, não uma reprodução doque faziam os americanos): seria ummodo de ter mais liberdade para a poesiana música. E o tema de gostar de falarapareceu logo, o que me levou a celebrara língua portuguesa, sugerindo reflexõessobre ela. Gosto muito de que sejamosAmérica portuguesa e não espanhola,holandesa, francesa ou inglesa. É umadesvantagem que tomo como uma bên-ção. Seja como for, eu não explorei o filão(sempre penso em fazer algo assim enunca faço: termino apresentando umatentativa que serve de exemplo ou su-gestão e abandono o assunto, voltando-me para outro, ou voltando a outros jávisitados). Só vim retomar as formas dorap anos depois, em �Haiti�.CULT E �Outras palavras�?CAETANO VELOSO A canção? Éboa. Mas não é um texto bonito como�Acrilírico�.CULT �Cajuína� (�Existirmos � a que será quese destina?�) é letra de complexa simplicidade filosófi-ca. O cinema falado traz densas discussões. A leitura

A IDÉIA DA SUPERIORIDADE

DA PROSA SOBRE A POESIA

ESTÁ NO FERNANDO PESSOA

DO LIVRO DO DESASSOSSEGO,MAS EM “L ÍNGUA”

ESSA IDÉIA TOMA

UM SENTIDO MAIS

IRÔNICO E DUVIDOSOO POETA PORTUGUÊS

FERNANDO PESSOA

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de filosofia é algo que lhe interessa, não? Como ela seintegra ao seu trabalho? E a leitura da psicanálise?CAETANO VELOSO Como leitura,a filosofia me interessa mais do que a psica-nálise. Leitura de psicanálise, eu acho que émelhor ler Freud, porque escreve bem e cla-ro. É um sujeito muito importante e inte-ressante. Às vezes parece um reducio-nismo... Mas os filósofos... Alguns dãomuito prazer literário, outros não tanto.Sartre é uma experiência do fim da minhaadolescência, dos meus 18, 19 anos, e eu acha-va aquilo uma coisa maravilhosa. Depois euli O ser e o nada, que é um livrolindissimamente bem escrito, como prosa re-flexiva, é de uma beleza estupenda. Dá pra-zer de ler. Até mais do que seus livros deficção, onde ele possivelmente gostaria deestar fazendo mais literatura. E que não émá literatura, mas a literatura de O ser e onada é mais bonita.CULT E o Frederico?CAETANO VELOSO Qual dos Frede-ricos? Esse é maravilhoso, é espetacular. Euentrei na Faculdade de Filosofia por escolhaminha. Sem saber o que ia fazer depois... �Euestudo o que eu quero aprender, agora o queeu vou trabalhar na vida eu não sei, eu pinto,pode ser que eu escreva, pode ser que eu ve-nha a ser professor de filosofia�...CULT Assim como você pensou em ser cineas-ta ou pintor, antes de cogitar ser músico, em algummomento pensou em ser escritor?CAETANO VELOSO Um pouquinho,mas eu pensava mais em ser cineasta. Eu que-ria fazer cinema.CULT Mas algo ligado à ficção ou à reflexão,um escritor-cineasta?CAETANO VELOSO Ficção não.Mesmo como cineasta, eu tinha preguiça deescrever o aspecto ficção do roteiro. Eu ti-nha vontade de anotar as imagens que euqueria filmar. Eu estudei filosofia na facul-

dade. Mas tinha que estudar tomismo, umpadre era professor de filosofia geral emetafísica e era diretor do departamento defilosofia da Faculdade da Bahia. O curso nãoera muito bom. Havia um professor de His-tória da Filosofia que era engraçado, Autode Castro, eram umas aulas mais animadas.Havia um professor de ética e estética, RuiSimões, que era o que mais faltava à aula[ri]. Eu não lia, não estudei direito, não meanimava. O que eles queriam que eu lesse,eu não lia tanto. O que eu gostava de ler...Eu lia Sartre, mas eles na Faculdade de Filo-sofia ensinavam São Tomás de Aquino,Aristóteles via São Tomás de Aquino. Eufiquei confuso, não sabia por onde come-çar... E todo mundo era marxista, mas nin-guém lia Marx. �Mas meu Deus, será queeu devo mesmo começar estudando essenegócio de São Tomás de Aquino?�Em 1964, eu abandonei a faculdade. De-pois, por causa do tropicalismo � sempregente de cinema me deu muitas coisas..., Ter-ra em transe inspirou muita coisa notropicalismo..., o nome Tropicália foi dadopor Luiz Carlos Barreto... �, o LeonHirszman roubou na casa de alguém o livroTristes trópicos e me deu de presente. Eu nun-ca tinha lido e li e fiquei maravilhado. LiTristes trópicos em 1968. Não é engraçadoisso? Fiquei maravilhado e também intriga-do, porque achei o livro de uma grande be-leza e de uma grande clareza. Ao mesmo tem-po, tinha uma visão pessimista da possibili-dade da vida intelectual no Brasil. Ele abriaaquela esperança para as pessoas que estu-davam com ele; ele era um pouco condes-cendente, mas esperançoso. Ele tinha umavisão muito pessimista do ambiente dos mo-dernistas de São Paulo, embora respeitassee se desse bem com Mário de Andrade. Elenão menciona Oswald, mas parece que é jus-tamente Oswald o tipo de cara que ele não

entenderia, não entendeu. Parece que é deleque está falando mal no livro. Mas tem muitacoisa linda no livro.Depois da prisão, quando cheguei a Lon-dres, na casa que nós alugamos, havia umabiblioteca, onde tinham deixado alguns li-vros. E havia, em inglês, O pensamento sel-vagem. E eu li em inglês, achei muito inte-ressante e inteligente. Mas nunca me ori-entei muito para ler... Li o 18 de brumário,porque me disseram: �Se você quer lerMarx, começa com 18 de brumário, que é omelhor.� Mas eu não gostei, eu achei umlivro chato. Descobri que, na verdade, atéO capital é muito mais animado que o 18 deBrumário.Em Londres, o Jorge Mautner veio com essenegócio de Nietzsche. Eu conhecia o Mautnersó de nome, mas ficamos amigos, ele nos visi-tava muito e mostrou aquelas músicas dele.Eu fiquei maravilhado e as conversas eramfantásticas...CULT E mostrou livros?CAETANO VELOSO Os livros dele?Não... Pô, mas o Jorge Mautner não tinhanenhum exemplar de livro dele! [ri] Depoisachei, li Vigarista Jorge, Kaos, mas primeiro liDeus da chuva e da morte, que é espetacular. Eele falava muito em Nietzsche. Ele mesmoarranjou um livro, chamado Vontade de poder,que era uma tradução brasileira dos últimosescritos de Nietzsche. É um livro de frag-mentos de um livro que ele nunca veio a es-crever ou de outros livros que ele não escre-veu. Eu fiquei maravilhado com aquelesaforismos e com aqueles fragmentos. Fiqueiimpressionado com a reviravolta que aquilodava. E depois li O nascimento da tragédia e aíme apaixonei, porque é um livro lindo, quedá aquela idéia do dionisíaco e do apolíneo.Ele põe como equilíbrio, mas o livro terminatendo para nós aquela valorização dodionisíaco, de uma certa forma. É uma virada

FIQUEI MARAVILHADO E TAMBÉM

INTRIGADO COM TRISTES TRÓPICOS,PORQUE ACHEI O LIVRO DE LÉVI-STRAUSS DE UMA GRANDE BELEZA

E DE UMA GRANDE CLAREZA; AO

MESMO TEMPO, TINHA UMA VISÃO

PESSIMISTA DA POSSIBILIDADE DA

VIDA INTELECTUAL NO BRASILO ANTROPÓLOGO

CLAUDE LÉVI-STRAUSS

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de muitas coisas, que, para mim, confirma-vam coisas que eu já defendia no tropicalismo,uma idéia da afirmação, um horror ao ressen-timento.CULT E Além do bem e do mal...CAETANO VELOSO Depois eu li Alémdo bem e do mal, gosto muito, e Genealogia damoral, que é um livro mais duro, às vezes éinsuportável, realmente tem muitas coisasque são prefiguração do nazismo e a reaçãomais profunda contra as idéias democráticas.Aquilo entra em conflito com minhanatureza. Mas, ao mesmo tempo, o primeiromovimento foi de grande entusiasmo comaquele desmascaramento desses conteúdose aquela descoberta da doença por trás damoral e da religião. Eu gosto muito dessatemática de Nietzsche e do estilo, que é deuma grande viveza. Daí eu fiquei vendofilosofia como um diletante, eu nunca maisdeixei de ler filosofia. Conheci AntônioCícero, que é filósofo também, em Londres,na mesma época em que conheci o Mautner.Mas Cícero com interesses completamentediferentes. Nessa época, ele era althusseriano,marxista-althusseriano, mas já um pouco sa-indo disso, estudando filosofia na Inglaterracom aqueles lógicos. Eu gosto muito de con-versar com Cícero, somos muito amigos atéhoje, e também gosto muito de conversar comMautner, somos muito amigos até hoje. Esão pessoas diferentes. E havia o RogérioDuarte, a quem eu me refiro muito no livro, eo José Agrippino de Paula, um escritor muitointeressante e radical.CULT O que você acha da filosofia de Deleuzee dos escritos dele sobre cinema?CAETANO VELOSO Deleuze é muitosimpático. Li, com muito interesse, o primei-ro livro dele sobre cinema. Adoro logo aque-

las respostas a Bergson, em defesa do cine-ma: é o momento mais filosófico do livro. Masme impressiona a vasta erudição cinemato-gráfica que ele exibe. Adoro a observação so-bre Sansão e Dalila. A idéia de que o cinemafrancês do passado era impressionista (comos cinzas predominando no preto-e-branco)assim como o alemão (de altos contrastes) eraexpressionista traduz uma visão que a gentejá tinha vagamente e já considerava vagamen-te simplista. Não sei o que seria �a filosofia deDeleuze�. Li um livro de Roberto Machadoem que ele tenta sistematizar um pouco opensamento belo, generoso e escorregadio deDeleuze. Li O anti-Édipo com certa irritação.O(s) livro(s) sobre Nietzsche é (são)espetacular(es). Proust e Os signos também édeslumbrantemente rico. O que é a filosofiame excitou e me fez rir: tem muitas tiradasfascinantes e a idéia do filósofo-surfista as-senta muito bem nele. Ele não estabelece deantemão que sentido os termos terão ao lon-go do texto. Dizer que a filosofia é criação deconceitos, dando à palavra �criação� a auraque a cerca quando falamos de arte, é bonito,mas é pouco mais do que isso. E as observa-ções sobre a ciência soam um tanto absurdas.CULT E você deve gostar de Cioran eWittgenstein, pelo estilo aforismático e digressivo,não?CAETANO VELOSO Eu gosto, achomuito bonito. Mas eu li um livro de Cioran.Uma vez, em sua casa, o Tenório me mostroue eu li uns aforismos maravilhosos. Eu li maistarde aqueles Exercícios de admiração e acheilindo aquele livro. Achei espetacular o artigosobre Joseph de Maistre, o pensamentoreacionário. Há um texto sobre Borges, muitocurto, mas muito bom, muito engraçado. Émuito bom aquele tom do Cioran, ele encon-

trou um tom que o resolve, que resolve a vidadele.CULT E a nossa...CAETANO VELOSO É, e para genteaquilo é bom. Ele mesmo diz algo assim:�Pode se aproximar dele�, de um fulano, �eleé um misantropo, é sempre boa a companhiados misantropos, não é perigosa paraninguém�. Há um certo bom humornaquele pessimismo, que é muito bom.Aquele desencanto com a humanidade,aquele desprezo do humanismo tal como oconhecemos. E muito bem escrito. Às vezesleio Hegel, mas são complicadíssimos essesfilósofos alemães...CULT �Está provado que só é possível filoso-far em alemão�?CAETANO VELOSO Isso é Hei-degger, que eu li também. É Heideggerquem diz isso; eu citei esta frase na can-ção �Língua� para ironizar o Heidegger.Aliás, eu acho que a Adélia Prado pensouque era eu mesmo quem dizia isso. Elaainda me respondeu, reclamando num li-vro que eu li, outro dia, me chamando depedante, não sei quê... Mas não sou, eucoloquei a citação naquela música para ti-rar um sarro com a cara de Heidegger,que eu acho uma coisa hilária. Heideggeré um sujeito ao mesmo tempo genial e ri-dículo. Combina muito bem com ele quan-do a gente ouve contar que, não tendogostado de O ser e o nada, o livro francêsque mais encantou Heidegger naquelaépoca foi O pequeno príncipe [ri] .Heidegger é um personagem engraçado.Eu imagino-o dizendo �Heil Hitler� eentrando na Universidade, levantando obraço, aquela braçadeira com uma suásticae escrevendo aquelas coisas incríveis, mui-to densas e desnorteantes, com gosto filo-sófico de uma pessoa que realmente leumuito e profundamente filosofia.

OS FILÓSOFOS ALEMÃES FRIEDRICH NIETZSCHE

(À ESQUERDA) E MARTIN HEIDEGGER

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CULT E Wittgenstein?CAETANO VELOSO Aquele livroTractatus logico-philosophicus é muito bo-nito, parece um poema. E às vezes a gen-te não entende, e fica bonito porque agente não entende. E ele de uma certaforma deixa assim. São as duas grandesestre las da f i losof ia do século 20,Heidegger e Wittgenstein. Quer dizer,Sartre é pop.CULT Mas Nietzsche tornou-se um cult...CAETANO VELOSO Nietzsche é oautor filosófico que mais vendeu livros. Logono início não, foi um desastre, um fracasso.Mas depois, só bate com ele Platão. Eu gostodaquela biografia de Nietzsche, escrita porDaniel Alévy, seu primeiro biógrafo naFrança. Ele diz: �Nietzsche veio a ser ofilósofo cuja obra mais se vende. Só Platãotambém vende assim. Porque filosofia nãovende muito.� É um tipo de livro que não secompra, só especialistas em filosofia,filósofos, estudiosos, pessoas da faculdade defilosofia compram o livro de filosofia, eacabou. Mas Nietzsche vende, as outraspessoas em geral compram seus livros. Po-rém, é engraçado, ele pergunta: �Mas seráque Nietzsche é mesmo um filósofo?�Eu, que tinha ficado apaixonado porNietzsche com A origem da tragédia e Von-tade de poder, quando li o Zaratustra, ain-da em Londres, não gostei. Hoje já estouachando uma coisa espetacular, mas eu nãoachava. Achava aquilo chato, subliterário,porque parece um longo poema profun-do, de conteúdo. Mas era o livro dele queele mais adorava, dizia que era o maiorlivro da humanidade. Outro dia, fui lerum trecho traduzido em inglês, achei maisbonito, acho que em português não ficamuito bem. Mas só o Zaratustra, pois asoutras coisas ficam muito bem. As tradu-ções do Paulo César de Souza são lindas,

Além do bem e do mal, Genealogia da moral,ficam lindos em português. O que eu lidepois, de tanto ouvir Nietzsche falar pri-meiro e depois brigar com, foi o Scho-penhauer. E achei muito interessante eagradável, porque são filósofos alemãesque dá para ler.Não são assim como Hegel, Heidegger emuito menos como Kant. Kant praticamen-te não dá para ler, é muito complicada alinguagem, Hegel também é assimcomplicado. Mas dá, eu leio, acho bonito,tem coisas que me agradam muito. Mas temhora que fica um pouco duro e muitoembolado, empolado. Eu li alguma coisa dePlatão e achei os Diálogos muito bonitos.Mas, de Aristóteles, estou terminado de lerA política. Eu estava lendo e parei, porquefui ler umas coisas que não têm nada a vercom isso. Eu ganhei uns livros do BorisSchnaiderman: um livro dele sobre asituação da Rússia e dois livros deDostoiévski, traduzidos por ele. Eu leiomuita coisa variada...CULT Ao mesmo tempo?CAETANO VELOSO Ao mesmo tem-po. Eu fui ler A política de Aristóteles porcausa de Hannah Arendt. Eu li A condiçãohumana e A origem do totalitarismo faz tempo.Mas voltei para dar uma sacada porque saiuum livrinho, O que é a política, que sãofragmentos de um livro sobre política que elaia escrever e terminou não escrevendo por-que foi escrever sobre Eichmann. Ela citamuito o livro de Aristóteles, então eu com-prei A política para ler diretamente. Li os li-vros de Hannah Arendt e de Aristóteles eachei maravilhosos. A tradução em portugu-ês de A política não está muito boa, tem algu-mas coisas que a gente fica desconfiado. Mas

a tradução não é deselegante. Mesmo assim,você vê a clareza e a beleza do texto. Eu tinhalido, em francês, aquele texto de Aristóteles,da metafísica, sobre o tempo. E fiquei muitoimpressionado, porque é um texto muitodenso e muito complexo, mas de muita clare-za. É um pensamento mesmo, é filósofomesmo. Ele esgota o pensamento sobre oassunto.Mesmo Heidegger, já no Ser e tempo, edurante a vida toda, considera aquele tex-to sobre tempo de Aristóteles como difícilde ultrapassar; mas ele tenta ultrapassar.É um texto muito difícil, mas é de umaclareza científica. Platão é diferente, sãodiálogos, tem mais imagens. O Aristótelesé o filósofo dos filósofos. Estou terminan-do de ler A política e reencontro essa clare-za e uma coisa muito minuciosa nas des-crições e nas observações, não deixa dever todos os ângulos... Mas dá uma sen-sação de claridade... grega, parece queaquele cara que escreveu e pensou aquiloestava num lugar claro! Sob todos os pon-tos de vista, parece que bate o sol, que olugar é bonito e que ao mesmo tempo eleestá pensando mesmo aquilo tudo.Em suma, minhas leituras são muitodesorganizadas. Eu interrompi tambémessa leitura que começou com HannahArendt e terminou com Aristóteles por-que ganhei um livro chamado Meu casacode general (por causa da canção de Macalée Waly), do Luiz Eduardo Soares, sobre aquestão de segurança do Rio de Janeiro, oproblema do poder, da polícia, dos mor-ros e do tráfico. Eu interrompi para lerisso e agora voltei à Política. Termina fa-zendo algum sentido, teve o Dostoiévskino meio... Memórias do subsolo faz senti-

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do; mas é fogo, porque são os argumen-tos antiiluministas mais fortes que há �são os argumentos de Dostoiévski. E quefigura espetacular! E que textos, que lou-cura, não tem uma letra morta ali.CULT No final de Verdade tropical,você diz que o pretexto e o propósito de aten-der o editor americano e escrever o livro�era um convite para eu realizar o sonhode me aproximar dos livros, diante dosquais sempre me senti intimidado�. Queprazeres e conhecimentos o exercício da lei-tura lhe dá?CAETANO VELOSO Sobre estar in-timidado diante dos livros, acho que já faleina nossa conversa de outro dia, por causade não ter dentro de casa o hábito da bibli-oteca etc. Mas a leitura propriamente podeme dar muito prazer, muito interesse, muitoexcitação, às vezes medo também, dependedo que está sendo dito, do que aparece.Daquele dia para cá, por exemplo, eu li umlivro... Quer dizer, estou lendo outras coi-sas, continuei lendo A política de Aristóteles,que tem de ser lida devagarinho, porquetem muita coisa precisa, você tem que pen-sar, também parece que são anotações deaula, ao mesmo tempo os detalhes são pre-cisos demais e às vezes o plano geral parececontraditório e não deve ser; então você temque pensar e voltar atrás e reler uma mes-ma frase várias vezes, embora seja muitosimples, muito calmo, muito claro, comodescrevi no outro dia. Eu continuo lendoesse livro, mas interrompi de novo para lerO futuro de uma ilusão, de Freud. E outravez me deparei com uma coisa que emFreud eu acho chatíssima, que é aquelamania dele imaginar um opositor, a quemele dá voz. Aquilo é chato. Há também nosoutros livros dele, no Mal-estar na civili-zação e em outros ensaios. Mas como esseeu li anteontem, está bem na minha mente

que tal aspecto me desagrada muito. Mashá muita clareza, ele escreve muito bem, émuito bonito, diferentemente de Jung, queé uma confusão danada, a gente não enten-de direito.E é um belo livro sobre o ateísmo. Na ver-dade, é um belo livro sobre a decisão anti-religiosa. E, quanto a isso, na verdade, nãosuperado propriamente, embora queira sedizer que sim, eu acho que não. Essa pala-vra �ateísmo� aparece no final de meu li-vro Verdade tropical de uma maneira queparece absurda, é provocativa, provocado-ra, ou pretende ser uma provocação tam-bém. Mas é também um modo de eu mesentir livre para usar a palavra assim por-que parece que as pessoas têm vergonhade dizer uma palavra como essa. Mas nocontexto, achei que ela pode ser de umamaneira muito engraçada, assim como sefosse uma obstinação, e uma não-aceitaçãoda confusão que se faz hoje em dia a res-peito dessas coisas. Mas sobretudo por-que eu próprio não posso dizer de mimque sou ateu, porque a questão religiosa éuma questão muito difícil mesmo. Mas osargumentos anti-religiosos são muito po-tentes � e que continuam não transpostos,continuam. Você vê todo o charme deHeidegger e o drible dado por Witt-genstein, e depois as conversas confusasdos que seguiram ou tentaram segui-los,mas o fato é que aqueles argumentos anti-religiosos como você vê no Freud de O fu-turo de uma ilusão não estão facilmente su-perados, são interessantes, não estão nadasuperados. Mas o que repercutiu muitobem dentro de mim foi um momento emque ele quase parece dizer � para lhes res-ponder o que a leitura pode provocar emmim, estou lhes dando um exemplo de an-teontem � que muitos autores conserva-dores dizem que a superstição é como se

fosse uma forma degradada da religiosida-de e que ela aparece quando a pessoa não seliga a uma religião. A pessoa não quer terreligião e termina ficando supersticiosa. Anecessidade religiosa é inerente ao homem.Aliás, parece um esquema freudiano, ditopor não freudianos, parece que é o retornodo reprimido, o retorno do recalcado, o eter-no retorno do recalcado, ou o retorno doeterno recalcado, ou o retorno do eternoque tinha sido recalcado.Mas o Freud tem um momento em que sófalta dizer o seguinte: numa certa forma,como a religião aparece para ele como umaneurose compartilhada e organizada emtermos civilizacionais e culturais e coletivos,muitas pessoas por vezes não apresentamneuroses individuais porque partilhamdessa neurose coletivamente organizada.Então isso quer dizer, no fim das contas,que a superstição era melhor... Superstiçãoé ruim, mas é melhor do que a religião.Mas eu gostei de ler isso. Naturalmente,eu não sou ligado de maneira orgânica anenhuma religião, tive educação religiosa edepois me liguei ao candomblé, porque meinteressa e o acaso também me pôs perto.Interessa-me por vários aspectos; primei-ro, por ser a expressão cultural do ambien-te onde eu nasci e cresci; e depois, porqueeu estava interessado � por causa deNietzsche � na idéia do politeísmo. Acom-panhar a vivência de uma comunidadepoliteísta... Hoje em dia em Salvador, háno Dique do Tororó, aquelas estátuas imen-sas dos Orixás, que ficam iluminadas du-rante a noite com jato de água. Eu adoroaquilo, porque você sente que o negócio daBahia, do Brasil, está ali de uma certa for-ma já estabelecido socialmente...CULT Entronizado no cotidiano...CAETANO VELOSO Entronizado nocotidiano e reconhecido coletivamente. Você

O PSICANALISTA

SIGMUND FREUD

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sente que há uma certa vivência politeísta. Éengraçado, eu me lembro de Deleuze falandosobre Nietzsche: �O politeísmo, que é o úni-co ateísmo real, o ateísmo verdadeiro, que é overdadeiro ateísmo�, uma coisa assim. Euestava interessado no candomblé por causadessas coisas todas, então me aproximei. Maseu sinceramente não tenho vínculo pessoalcom nenhum religião organizada. Eu nãodeixei de ter vínculos com a religião católicapor causa da minha família, as festas da mi-nha mãe e das pessoas da minha família sãotodas ligadas aos rituais católicos e eu partici-po como membro daquela sociedade, mas nãoquer dizer que eu pessoalmente me sinta ca-tólico, ligado à igreja católica, achando quedevo obedecer ao papa ou aos princípios, aosdogmas. Então, não posso dizer que soucatólico nem que sou ligado a alguma reli-gião, mas tenho muitas superstições que nãosão organizadas. Eu tendo a ser místico, umpouco.CULT Você costuma escrever os releases deseus próprios discos. Por quê?CAETANO VELOSO Não todos, masescrevi muitos. Porque eu gosto de escrever;era um pretexto. Eu dava umas explicaçõesinteressantes, mas nunca foram muitoutilizadas. Quando eu mais escrevia, era operíodo da Outra Banda da Terra. Euproduzia meus discos, ou seja, ninguémproduzia os meus discos; a gente ia para oestúdio, tocava, gravava e ficava pronto. Eratudo �malfeito�, mas era uma delícia. Masnessa época, a imprensa, com relação aosmeus discos, era muito pouco receptiva �para dizer o mínimo. Então os releases nãoadiantavam nada. Para os críticos, aquelesreleases pareciam uma coisa pretensiosa e osdiscos pareciam �uma coisa do fundo doquintal da casa dele�.CULT O cinema falado é fortemente im-pregnado de literatura(s), por meio de leitu-

ras, citações etc. Como foi o processo da escritu-ra do roteiro do filme? A estruturação dasseqüências, dos blocos, você decidiu na monta-gem ou no roteiro?CAETANO VELOSO No roteiro. Euescrevi o roteiro, filmei o roteiro e montei oroteiro ipsis litteris. Inclusive o que eu acheique não ficou bem, eu deixei no filme dojeito que estava no roteiro. A ordem tam-bém. Eu até às vezes, quando vejo hoje eque gosto, fico com pena dos espectadoresque não são eu e que não têm que suportarisso. Fico com pena de � para facilitar afruição do filme para eles � eu não ter tido avontade, quando fiz, de � na montagem �mudar e fazer do filme algo mais atraentedesde o início. Digo, �mais facilmente atra-ente�. Mas sabe que eu não me arrependodisso, eu sinto na hora um pouco de pena denão ter feito, mas de fato não me arrependo.Porque fazer isso seria aproximar umpouquinho do godardianismo que eu pro-curei evitar e que está radicalmente evitadono filme. Nesse sentido, o filme é muito ri-goroso e exigente contra concessão de qual-quer natureza. E eu mantive assim.CULT Em muitos filmes do chamado cinemade autor, o personagem do escritor é fundamentalpara o cineasta colocar suas questões (Antonioni,Godard, Resnais, Glauber). Como você vê essaapropriação da figura do escritor pelo cinemamoderno?CAETANO VELOSO Eu acho sim-plesmente natural, num momento em quetentaram enfatizar o papel do diretor do fil-me como um autor, que o escritor apareces-se com freqüência como protagonista dosfilmes. Eu acho que é bem coerente com oespírito daquela época e o que se queria fa-zer com o cinema daquele período. Hoje agente vê uma batalha dos roteiristas norte-americanos, já chegando mesmo ao nível dagreve, para que eles venham a ser reconhe-

cidos mais como autores do que eram atéentão e para que se relativize mais o papelautoral do diretor. Isso é uma coisa bem deHollywood, é um problema de Hollywood.Mas o fato de ter chegado a esse extremo emHollywood é curioso. Eu acho que eles têmrazão de pleitear o que pleiteiam porque so-bretudo o cinema de Hollywood, tradicio-nalmente, via o diretor como um contratadode posição privilegiada dentro de uma pro-dução. Há uma produção de um filme e aposição do diretor é a do sujeito que vai diri-gir os trabalhos de feitura daquele filme.Dirigir os trabalhos, o que não quer dizerque aquele filme seja uma obra dele. Mascom a influência da nouvelle vague francesaaté os americanos passaram a adotar... �aSteven Spielberg film�... Os roteiristas deHollywood estão pleitando proibir esse �umfilme de� e o nome do diretor. Mas já houvemuitos escritores, em geral americanos, en-tre eles Gore Vidal, que levantaram a vozpara dizer isso. Eu tenho a impressão deque Gore Vidal é um dos mais notáveis a tê-lo feito. Os escritores americanos denunci-am essa falácia de que o diretor é o autor dofilme; mas justamente por serem america-nos, onde em Hollywood a freqüência mai-or é a de que o diretor seja um contratado eque poderia ser qualquer outro.CULT A Europa tem forte tradição da idéiade autor-artista, desde a vanguarda dos anos 20.Mas não podemos esquecer de que no início dosanos 40, antes do neo-realismo (que pode ser vistocomo um avanço autoral em relação ao estilohollywoodiano), quem retomou a noção de cinemapessoal (num âmbito poético e experimental) foi aMaya Deren, nos Estados Unidos...CAETANO VELOSO Eu ia dar oexemplo da Maya Deren como sendo umaespécie de contra-exemplo, porque ela é ame-ricana e é uma das mais radicaisexperimentalistas do cinema. Eu fiquei mui-

O FUTURO DE UMA ILUSÃO É UM BELO LIVRO SOBRE O ATEÍSMO, SOBRE A DECISÃO

ANTI-RELIGIOSA. EU PRÓPRIO NÃO POSSO DIZER QUE SOU ATEU. MAS OS ARGUMENTOS

ANTI-RELIGIOSOS SÃO MUITO POTENTES. O QUE REPERCUTIU MUITO DENTRO DE MIM FOI

UM MOMENTO EM QUE FREUD PARECE DIZER QUE A SUPERSTIÇÃO É UMA FORMA DEGRADADA DA

RELIGIOSIDADE E QUE ELA APARECE QUANDO A PESSOA NÃO SE LIGA A UMA RELIGIÃO.A NECESSIDADE RELIGIOSA É INERENTE AO HOMEM. PARECE QUE É O RETORNO DO REPRIMIDO,O RETORNO DO RECALCADO, O ETERNO RETORNO DO RECALCADO, OU O RETORNO DO ETERNO

RECALCADO, OU O RETORNO DO ETERNO QUE TINHA SIDO RECALCADO.

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to impressionado com os filmes dela. Mas oneo-realismo não tem muitas dessas caracte-rísticas dos filmes de vanguarda. O neo-rea-lismo terminou sendo uma vanguarda de umaoutra natureza...CULT Mais em relação aos termos da in-dústria (modos de produção, sair dos estúdi-os)...CAETANO VELOSO Em relação àindústria, uma coisa mais despojada, pro-dução pobre, atores não profissionais, a lo-cação nas ruas. Mas o esquema narrativo,o sentimentalismo, uma série de coisas docinema de Hollywood... Vi os filmes daMaya Deren por acaso, num canal de tele-visão a cabo nos Estados Unidos, fiqueiimpressionado e fui comprar numa loja deNova York uma série de filmes dela. É cu-rioso, muita coisa me lembrou o cinema deJulinho Bressane: a coisa de filmar o chão,as escadas, os espelhos, sobretudo o negó-cio da câmera subir escadas. Aquilo me lem-brou o Julinho e quando você falou agorado neo-realismo como um fato importantena modernização do cinema (o que semdúvida é) e você frisou o fato de a MayaDeren ser anterior ao neo-realismo, eu melembrei do Julinho Bressane dizendo as-sim: �O neo-realismo italiano é a mesmacoisa que essa poesia de mimeógrafo que sefaz no Brasil (isso nos anos 80, 70). É apoesia que nem as outras poesias... não inovana linguagem. Mas é feita num papel po-bre, o cara distribui no Baixo Leblon, nosbares da Gávea, mas não muda a lingua-gem da poesia, ninguém mexe nas estru-turas formais.� E eu achei curioso porquea Maya Deren mexia nisso e o neo-realis-mo não. Embora eu seja um fã confesso doneo-realismo.CULT Maya Deren (que nasceu na Ucrânia,como Clarice Lispector, e se fixou na Américaem 1922) detonou a vanguarda que surgiu nos

Estados Unidos, entre os anos 50 e 70, numaampla gama que vai do trance film ao structuralfilm...CAETANO VELOSO Mas o cinemaunderground dos anos 60, da turma de AndyWarhol, não tem esse caráter formalista, é umcaráter mais beat. Embora haja coisas muitoradicais, feitas pelo próprio Warhol, comoSleep, oito horas só o cara dormindo, eu nun-ca vi, mas só de ouvir falar você já sabe que...Chelsea girls tem três telas, passando três coi-sas diferentes.CULT No gênero estrutural, há MichaelSnow e Hollis Frampton, que trabalharam demodo radical a escritura do cinema (inclusivefilmando palavras), e num outro pólo há o StanBrakhage, também de radical escritura, que fezpoesia visual no cinema, pintando na película einspirado em escritores americanos, comoGertrude Stein e James Joyce...CAETANO VELOSO Essas coisas agente não conhece. Eu não conheço essesfilmes que você está falando, isso é uma coi-sa para especialista, para pesquisador. Emgeral, são mais ligados a Nova York do queà Califórnia, não é? Todo o cinema indepen-dente americano, como Shadows, de JohnCassavetes, e O homem tem três metros de altu-ra, de Martin Ritt, são filmes de Nova York.É de onde vem o Woody Allen, o negócio deele ser anti-Hollywood e ser Nova York. Elefez um filme chamado Interiores, que eracomo se fosse um seguimento daquela ondade Shadows. Eu não gosto do filme, mas eleconquistou uma liberdade enorme.CULT Já falaram que Godard faz um ci-nema filosófico e literário. O cinema falado é�um filme de ensaios de ensaios�. Você queriaser cineasta, mas disse que este seu primeirofilme seria mais um �experimento� que servi-ria para outros filmes, mais narrativos queeste, mas talvez não tão convencionais como a

norma. Você acha que o cinema é um bom veí-culo para a digressão de idéias? O cinema podeser poesia?CAETANO VELOSO Os filmes deGodard são em geral mais narrativos do queO cinema falado. Lembro do Paulo Francissempre repetindo que não sei que escritoraamericana (acho que foi Mary McCarthy)tinha dito ser o cinema incapaz de pensamento(Deleuze acha exatamente o contrário). Ocinema pode estimular, inibir, expressar, em-botar, criar pensamentos. A música e a pin-tura também podem tudo isso. O cinema émuito capaz de poesia. Pasolini vivia falandonum cinema de poesia, mas Godard é umcineasta mais poeta do que Pasolini. Eu pró-prio, que tenho um desgosto dos enredos,tenderia a fazer um cinema mais próximo dapoesia. Os �clips� de poemas no meu filmesão um namoro do cinema com a poesia dospoetas. Mas há seqüências de Godard, cor-tes de Eisenstein, cenas de Chaplin, planosde Antonioni, ritmos de Bergman que sãodensa poesia produzida pela imagem emmovimento.CULT Quando Antonioni coloca o escritor nofilme, como em A noite, você pensa que isso seriauma tentativa de legitimar o cinema num planointelectual e artístico mais ambicioso? Pois, comovocê falou, o cinema teve um certo começo vincu-lado à diversão...CAETANO VELOSO Muitas vezespenso. Mas Hollywood também fez filmessobre escritores, com personagens escrito-res. Mas não é o aspecto mais estimulantedesses filmes para mim. Eu acho mais agra-dável pensar que seja natural que a figurado escritor apareça no momento em que odiretor de cinema estava sendo posto nolugar do autor do filme. Eu acho natural,mas tem um lado um pouco kitsch, delegitimação, por meio do uso do persona-

O CINEMA É MUITO CAPAZ

DE POESIA. HÁ SEQÜÊNCIAS

DE GODARD, CORTES DE

EISENSTEIN, CENAS DE CHAPLIN,PLANOS DE ANTONIONI, RITMOS

DE BERGMAN QUE SÃO DENSA

POESIA PRODUZIDA PELA

IMAGEM EM MOVIMENTOO DIRETOR

JEAN-LUC

GODARD

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gem escritor como protagonista, que sem-pre me parece evidente. Há algo como sefosse uma tentativa de fazer um cinemamais sério, e no fim das contas não fica tãosério assim, não o suficiente para subver-ter esse modo de expressão da essência docinema que tem sido predominante. Mui-tas coisas sempre me pareceram assim bas-tante confusas nesse sentido, porque àsvezes o diretor põe o personagem como umescritor, ou como alguém que está tentan-do ser escritor... La notte ou mesmo Ivitteloni, onde o garoto quer deixar a cida-de do interior e pensa em escrever, e aí vaipara Roma sozinho... Mas a própria esco-lha dos atores para esses papéis... Comoem Terra em transe... A cara de galã de todosos atores de todos esses filmes era um des-mentido gritante dessa ambição. Mas aomesmo tempo, dá uma certa aura de inge-nuidade, que dá um encanto... A gente ficaenternecido pelo cineasta, de ver que o su-jeito é cineasta, porque ele está ali queren-do ser totalmente diferente de Hollywood,mas ele pega e bota um cara bonito e idea-lizado, como Jardel Filho, Mastroianni,Delon. De certa forma, eu sempre sentiuma espécie de contradição. Quando eu viDeus e o diabo na terra do sol, a primeira vez,em Salvador, eu pensei: �Pô, é impressio-nante, mas ao mesmo tempo o Geraldo delRey é tão bonito, tem tanta cara de galã decinema.� Ele não é um pau-de-arara, não éum camponês nordestino, anônimo, opri-mido, ele é antes de tudo um galã de cine-ma, e a gente fica encantado com ele comogalã de cinema. Eu acho saudável, acho queé bonito, que é certo, porque aquilo é umaintuição afirmativa da criação de uma mi-tologia nacional na área do audiovisual.Aquilo já é uma premonição de toda a car-reira da TV Globo, todos os estrelatos e os

galãs da TV Globo se esgotam logo na carado Geraldo Del Rey, na primeira imagemde Deus e o diabo na terra do sol. Isso é mar-ca do gênio do Glauber. Mas não possodeixar de dizer que, na época que eu vi, eusenti que havia uma espécie de contradiçãonisso. E no caso dos protagonistas escrito-res, isso se repete em quase todos os filmesque a gente conhece, que apelaram para essaestratégia de colocar o escritor como per-sonagem central do filme.Tem uma coisa que, para mim, de repente,resolve tudo e trata isso no tom que mepareceu perfeitamente condizente com a re-alidade disso e afirmou a poesia do cinema:é o tom assumido por Godard, que é umcineasta que eu idolatro, como estilo e ta-lento. E sem jogar fora esse problema daansiedade de legitimação, mas tratando deuma maneira boa. Combinando coisas queele faz no cinema com coisas que ele diziaem entrevistas, ele termina trazendo umaidéia sobre isso que me deixava bem, e aomesmo tempo deixa a gente vivo diante daprodução de imagens cinematográficascomo uma coisa viva.CULT Godard sempre disse que não viadiferença entre filmar e escrever, que ao fazercrítica de cinema já era uma forma de fazerfilme, e que um filme era a melhor crítica de umoutro filme...CAETANO VELOSO Por exemplo,em Pierrot le fou, ele põe o Belmondo escre-vendo, e aparece em super close a caneta nopapel, como um diário daquela fuga para osul da França, que lembra um pouco o fil-me de Bergman, Mônica e o desejo. Só osdois, naquele lugar paradisíaco, aquele caradesgarrado, à margem da sociedade, ele estáfora da lei e está ali com ela, aquele lanceentre eles e o papagaio e umas ondas domar e ele escrevendo, escrevendo. Isso dá

uma idéia mais forte da presença e da sen-sação do autor.CULT E a letra é a letra em ação do Godard,que instaurou um método digressivo, a voice-overem primeira pessoa...CAETANO VELOSO É. Eu acho es-sas soluções mais interessantes do que a meraescolha do personagem do escritor como pro-tagonista. Mas acho que há grandes filmesque têm justamente o escritor como protago-nista. Esses a que nós nos referimos são gran-des filmes. E como vocês sabem, Terra em tran-se foi para mim um filme de formação, umfilme importante para a minha vida,diretamente, com conseqüências palpáveis.Quando começa Pierrot le fou com duas mo-ças jogando tênis e uma luz interessante,entra uma voz que fala sobre Velázquez.Mais ou menos na mesma altura, Godarddeu uma entrevista dizendo: �Eu queroentrar no mundo das letras com a luz deVelázquez�. �Eu quero entrar no mundodas letras com a luz de Velázquez!� Paramim, a combinação daquelas imagens comessa declaração é algo que está além dessastentativas de legitimação e dessas coisas deque nós acabamos de falar. Você vê real-mente que ele sentiu a onda e soube daruma resposta à altura. O movimento queele fez dentro dele termina dando uma res-posta poética que de fato resolve, ainda queprovisoriamente, mas satisfatoriamente, oassunto. [pausa] �Eu quero entrar nomundo das letras com a luz de Velázquez!�O cineasta que fala assim e faz algo quetem a ver com isso em seus filmes e vocêsente que isso está acontecendo de uma cer-ta forma � é uma beleza.

CARLOS ADRIANO E

BERNARDO VOROBOW

CAETANO FOTOGRAFADO POR

BERNARDO VOROBOW DURANTE

ENTREVISTA À CULT

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Cartas para a revista CULT devem ser enviadas para a Lemos Editorial (r. Rui Barbosa, 70, São Paulo, CEP 01326-010).Mensagens via fax podem ser transmitidas pelo tel. 11/3371-1855 e, via correio eletrônico, para o e-mail �[email protected]�.Os textos publicados nesta seção poderão ser resumidos ou publicados parcialmente, sem alteração de conteúdo.

D o l e i t o r C U L TC U L TC U L TC U L TC U L T

Gabriel García MárquezGostaria de solicitar um dossiê sobreo sensacional escritor Gabriel GarcíaMárquez, que imortalizou a literaturalatina com obras imcomparáveis. Éimprescindível que se difunda cadavez mais a obra do insigne colom-biano, que nos legou escritos inesti-máveis, clássicos únicos no amplouniverso da literatura. Em todos osmomentos, do instante de felicidadeà solidão inabalável, García Márquezsurge com impecável solidez, visãocética e intimismo incorrigível. Um“Dossiê” sobre o gênio colombianoenalteceria o notável trabalho que arevista CULT vem exercendo na di-fusão de informações sobre os grandesautores da literatura universal, em par-ticular os da nossa inconfundível lite-ratura latino-americana. Desejo aindaparabenizar a revista pela iniciativade divulgar a obra de verdadeiros“ilustres desconhecidos” – literal-mente, lembrando artigo do professorPasquale Cipro Neto [CULT 45 – abril2001]. A literatura brasileira ganhademais com promoções de tal natu-reza. Fiquei especialmente feliz coma premiação da professora TérciaMontenegro. Posso dizer que suavitória não me causou surpresa, emvista de seu enorme talento, todaviade modesto reconhecimento.

Sérgio Bruno A. RebouçasFortaleza, CE

Literaturas Latino-americanasParabéns pelo excelente dossiê “A novaliteratura argentina” [CULT 45 – abrilde 2001]. Aproveito para sugerir dossiêsobre a literatura uruguaia.

João Boscopor e-mail

PortuguêsComo estudante de Letras da Univer-sidade Federal do Ceará já dei os meuspasseios pelos estudos lingüísticos enão vejo absurdo relevante nas expres-sões citadas pelo professor Eduardo B.Gabor [carta publicada nesta seção “Doleitor”, da CULT 46 de maio de 2001]como “quadrindade” e “presentidade”– citadas nos artigos do “DossiêHeidegger” [CULT 44 – março de 2001]– haja vista estar a língua em constanteprocesso de transformação, com sur-gimento de novas palavras na compo-sição do léxico.

Rubens Lacerda LoiolaFortaleza,CE

Câmara CascudoA CULT certamente entendeu o que fal-tava no mercado editorial brasileiro: umaexcelente revista de literatura ao alcan-ce do grande público, ou seja, não desti-nada exclusivamente a acadêmicos eprofissionais da área. Aproveitando estaoportunidade, sugiro um “Dossiê CâmaraCascudo”, o maior nome da cultura (latosensu) norte-rio-grandense.

J. B. Medeiros de SousaJoão Pessoa, PB

Literatura em evidênciaFoi-se o tempo em que a literatura eraalgo somente para iniciados. CULT tevea proeza de fornecer informações valio-síssimas e de pôr a literatura em evi-dência em muitas regiões antes caren-tes desse tipo de informação: literatura– e, “de quebra”, filosofia e artes emgeral – em estado bruto. É façanha parapoucos, convenhamos.

Elienai Araújo da SilvaSão José dos Campos, SP

Virginia WoolfGostaria de sugerir uma matéria sobre aescritora inglesa Virginia Woolf. Como souestudante de Letras, tenho um sentimentoparticular sobre sua obra e penso que elaé representante de uma forma comple-tamente diferente de escrever, sem falarno papel fundamental que desempenhouno movimento feminista. Assunto é o quenão falta! Acho realmente que seria umassunto de primeira!

Fernanda Monteiro dos Santospor e-mail

Dossiê Osman LinsFelicito a Cult pelo dossiê dedicado aOsman Lins [CULT 48 – julho 2001],escritor que merece um espaço maiordo que aquele que lhe é geralmenteconcedido. Mas não posso deixar deme manifestar sobre as referências queMaria Teresa Dias faz sobre meu livro,A garganta das coisas. Não questionoa radical incompreensão quanto aospropósitos de minha obra, que transpa-rece em seu texto, já que nem sempreé possível encontrar os leitores maisafinados. Mas não admito a acusaçãoleviana e despropositada de que, tendoutilizado um texto de Anatol Rosenfeldcomo “roteiro” para minha leitura deAvalovara, não o cito na bibliografia.Nunca li o “famoso ensaio” que a rese-nhista menciona. Nem creio que sejanecessário lê-lo para perceber as carac-terísticas da narrativa moderna que Diascita — desrealização, estilização, es-pacialização, aperspectivismo. A no-menclatura, que não utilizo, pode serde Rosenfeld, mas os conceitos sãolugares-comuns nos estudos sobre osromances do século XX. Aliás, o próprioOsman Lins incorpora em Avalovara adiscussão sobre alguns desses pontos.

Regina DalcastagnèUniversidade de Brasília