cuidado na saúde e na doença

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ISSN: 1808-4281 ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 9, N.1, P. 174-184, 1° SEMESTRE DE 2009 http://www.revispsi.uerj.br/v9n1/artigos/pdf/v9n1a14.pdf 174 ARTIGOS O cuidado na saúde e na doença: uma perspectiva gestáltica Caring. Health and sickness: a gestalt approach Karina Okajima Fukumitsu Professora do Curso de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie – São Paulo, SP, Brasil Doutoranda em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano na Universidade de São Paulo/USP – São Paulo, SP, Brasil Flaviana Cavalcante Especializanda em Gestalt-terapia pelo Instituto de Gestalt-terapia de São Paulo/IGSP – São Paulo, SP, Brasil Marcelo Borges Especialista em Gestalt-terapia pelo Instituto de Gestalt-terapia de São Paulo/IGSP – São Paulo, SP, Brasil Resumo Este artigo apresenta relações entre a Gestalt-Terapia, cuidado, cura e processos de saúde e doença. O cuidado passa a ser significativo para as pessoas sempre que um encontro genuíno acontece. Considerando que o profissional da saúde é um cuidador, sua relação com o cliente pode ser facilitadora para a instauração de novos sentidos, descobertas existenciais e, eventualmente, um caminho para a cura. Entende-se cura como o processo de retorno ao saudável e ao reconhecimento das potencialidades e possibilidades humanas. Palavras-chave: Gestalt-terapia, Cuidado, Saúde e doença. Abstract This article presents the relationship of Gestalt therapy, caring, healing, and the process of health and sickness. Caring turns out to be meaningful to people as the genuine encounter happens. Considering that any healthcare professional is a caretaker, the relationship with the client helps the disclosure of meanings, existential findings and a way to cure. We understand cure as the return to heal and to the recognition of potentialities and possibilities of the human being. Keywords: Gestalt-therapy, Caring, Health and sickness. Nesta fuga frenética para alcançar tudo que for possível na vida, acabamos por nos comportar como turistas desesperados: fotografando tudo, mas não enxergando nada (ZINKER, 2007, p.21).

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  • ISSN: 1808-4281 ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 9, N.1, P. 174-184, 1 SEMESTRE DE 2009

    http://www.revispsi.uerj.br/v9n1/artigos/pdf/v9n1a14.pdf 174

    ARTIGOS

    O cuidado na sade e na doena: uma perspectiva gestltica

    Caring. Health and sickness: a gestalt approach Karina Okajima Fukumitsu Professora do Curso de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie So Paulo, SP, Brasil Doutoranda em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano na Universidade de So Paulo/USP So Paulo, SP, Brasil Flaviana Cavalcante Especializanda em Gestalt-terapia pelo Instituto de Gestalt-terapia de So Paulo/IGSP So Paulo, SP, Brasil Marcelo Borges Especialista em Gestalt-terapia pelo Instituto de Gestalt-terapia de So Paulo/IGSP So Paulo, SP, Brasil

    Resumo Este artigo apresenta relaes entre a Gestalt-Terapia, cuidado, cura e processos de sade e doena. O cuidado passa a ser significativo para as pessoas sempre que um encontro genuno acontece. Considerando que o profissional da sade um cuidador, sua relao com o cliente pode ser facilitadora para a instaurao de novos sentidos, descobertas existenciais e, eventualmente, um caminho para a cura. Entende-se cura como o processo de retorno ao saudvel e ao reconhecimento das potencialidades e possibilidades humanas. Palavras-chave: Gestalt-terapia, Cuidado, Sade e doena. Abstract This article presents the relationship of Gestalt therapy, caring, healing, and the process of health and sickness. Caring turns out to be meaningful to people as the genuine encounter happens. Considering that any healthcare professional is a caretaker, the relationship with the client helps the disclosure of meanings, existential findings and a way to cure. We understand cure as the return to heal and to the recognition of potentialities and possibilities of the human being. Keywords: Gestalt-therapy, Caring, Health and sickness.

    Nesta fuga frentica para alcanar tudo que for possvel na vida, acabamos por nos comportar como turistas desesperados: fotografando tudo, mas no enxergando nada (ZINKER, 2007, p.21).

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    A ao de cuidar exige um olhar atento e est inserido numa dinmica dialtica entre o cuidador e aquele que cuidado. Neste sentido, cuidar possibilita a presena do potencial de sade que pode emergir neste contexto. Entendemos que o profissional de sade que se dedica a outro ser humano considerado um cuidador no no sentido de fazer por, mas, sim, de fazer com o outro. Diferena sutil, mas merecedora de ateno e reflexo, principalmente pela concordncia com o pensamento existencial que advoga que o ser-com apresenta-se como significado ontolgico das relaes interpessoais e como constitutivo da existncia humana. Este artigo apresenta uma reflexo sobre o cuidado na perspectiva da abordagem Gestltica considerando dois temas fundamentais: o paradoxo entre processos de sade e doena; o cuidado como facilitador nas relaes interpessoais e como caminho para o resgate de processos saudveis. Azevedo e Dimenstein (2008, p. 664), em seu artigo O acompanhamento teraputico no cuidado em sade mental, refletem sobre o envolvimento e o desgaste do cuidador dos portadores de transtornos mentais (PTM) e convidam a pensar sobre o paradoxo entre fazer por e fazer com: As dificuldades ao cuidado dirio so reportadas com veemncia aos momentos de crises dos PTM em que a autonomia deste (corroborada em seus relatos) comprometida e, para tanto, convoca o cuidador a responsabilizar-se pelo asseio, ministrar a medicao, conduzi-los at o ambulatrio etc. Para os familiares, a sobrecarga bastante evidente, expressa sob diferentes aspectos. Do ponto de vista emocional, a demanda por uma ateno contnua (PTM estando ou no em crise) dota o cuidador de uma responsabilidade exacerbada, que acomete seu bem-estar psquico e requer uma abdicao de suas atividades de lazer [...] importante ressaltar que, quando se faz por, o compromisso est vinculado ao ato de ajudar e de suprir as necessidades e no necessariamente relao. Hycner e Jacobs (1997) mencionam que A relao uma parte inerente do nosso ser, no um adendo posterior (p.120). Enxergar o outro em sua alteridade representa mais que ver o outro; significa criar condies fundamentais para que o cuidado aparea. Dessa maneira, o cuidado emerge apenas quando a existncia de algum adquire significado para as pessoas envolvidas, ou seja, o cuidador e aquele que est sendo cuidado. Assim, o profissional passa a participar das escolhas, do destino, dos desejos, sofrimentos e das conquistas e, simultaneamente, a pessoa cuidada apresenta disponibilidadde para compartilhar. Cuidado, portanto, significa tambm compreender o outro como um ser humano em busca de conhecimento de seus processos, que muitas vezes transcendem o prprio sintoma que ele expressa. Desta forma,

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    sade e doena podem estabelecer um dilogo interno em busca do reconhecimento do sentido que a pessoa faz de sua prpria condio de apresentar-se atravs da doena. Alm disso, cuidar significa responsabilizar-se pela disponibilidade de testemunhar, acompanhar e compartilhar o caminho do outro, constituindo-se numa atitude amorosa, que implica entrega ou disponibilidade para relacionar-se, conviver com o desconhecido e o mutante, e a capacidade de valorizar o conhecido e nele se aprofundar e concebido como o compartilhar, entre dois seres ntegros e diferenciados (CARDELLA, 1994, p. 19-20). Desse modo, a idia de um processo saudvel apresenta-se como uma forma fluida de se colocar no mundo no momento em que o ser humano est consciente da maneira como vivencia e reconhece suas questes pessoais e interpessoais, enfim, como vivencia a singularidade de ser. Apesar de destacarmos a importncia do ato de cuidar, pode-se perguntar at que ponto o cuidado cura? A resposta para a questo direciona-se primeiramente para a frase de Cancello (1991, p. 51), que aponta: [...] a cura foge, ao ser buscada. um fenmeno decorrente desse encontro humano muito especial entre terapeuta e cliente, em seu espao prprio e, segundo, para a apresentao dos conceitos fundamentais na atuao do gestalt-terapeuta, que so o contato, o encontro e a ampliao de awareness. Na perspectiva gestltica, sade e doena no so conceitos estticos e podem ser entendidos como formas do organismo total tentar dar um sentido peculiar sua existncia, na busca de trocas constantes com o contexto no qual est inserido. Fritz Perls (1981) acreditava que a pessoa relaciona-se com o ambiente e, nas tentativas de adaptao, pode cristalizar seus modos de relao ou flexibiliz-los de formas criativa. Assim, sade e doena tornam-se processos dinmicos, possveis e caracterizados pela interao. A Gestalt-Terapia aponta a necessidade da presena do psicoterapeuta no processo que, de acordo com Hcyner e Jacobs (1997) no significa estar somente de corpo presente, mas, sim, implica trazer para interao a plenitude de ns mesmos (p.78). Dessa maneira, o aspecto mais importante a ser considerado a relao entre psicoterapeuta e cliente, pessoas singulares, com tempos diferentes, cabendo ao profissional da sade acompanhar pacientemente o tempo do cliente, em direo a um possvel encontro, advindo do enriquecimento do contato. A construo do Ser Cuidador Podemos compreender o cuidado como uma condio existencial e, de certa forma, como um processo inerente s relaes constitudas

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    entre os profissionais de sade e as pessoas que os buscam, visando minimizar seu sofrimento. Conceituar a sade e a doena provoca certo incmodo, justamente pela crena de que no se trata apenas de conceitos, mas, sim, de processos que emergem de histricos singulares. Medeiros (2005) integra os processos existenciais e alguns campos de conhecimento para a compreenso da sade, ao mencionar que ocorrem transportes, tradues, interpretaes, isto , formas de objetivao que, ao darem sentido a determinados fenmenos, produzem modos de nos relacionarmos conosco (p. 264). Desmistificando a ideia de que o profissional da sade curandeiro e que seu objetivo a cura, percebe-se cada vez mais uma objetificao do ser humano no sentido de torn-lo produtivo. Isto posto, a errnea premissa seria: algum somente quem produz, e doentes no produzem. Logo, se a doena for extinta existir a possibilidade de produzir mais produtores. Ocorre um vis no conceito de sade para uma vertente econmica, ou seja, o ser humano com sade aquele que produz e, em contrapartida, o ser humano doente aquele que no pode produzir. necessrio extirpar, extinguir a doena para que a condio de ser humano produtor retorne. Porm, simultaneamente a esta premissa, um cenrio econmico marcado pelo capitalismo muitas vezes necessita tambm de produzir o doente para a manuteno de certos segmentos de negcio, tais como a indstria farmacutica que retroalimenta este sistema, transformando-o num ciclo paradoxal. Vale ressaltar tambm que, muitas vezes, a sade compreendida como adequao s normas e condutas vigentes numa determinada cultura, desconsiderando o sofrimento subjetivo daquele que a ela se acomoda. Com a crescente demanda por produo, a distoro mercantilista mostra-se pouco eficaz, direcionando o conceito de sade para outro aspecto, tambm importante, que apontado por Coelho (2002, p. 316) em seu artigo Conceitos de sade em discursos contemporneos de referncia cientfica, quando o autor aborda a pobreza do ponto de vista epistemolgico acerca do conceito de sade. Ganha fora, ento, a ideia de promover a sade, e no apenas de curar a doena [...]. Juntamente com a noo de promoo de sade, ganha destaque a figura do profissional desta rea. No entanto, a questo aqui proposta pretende enfatizar a possibilidade de fazer com, considerando-se o contexto no qual ambos, psicoterapeuta e cliente, esto inseridos. Dessa maneira, no momento em que se preconiza que parte do retorno ao saudvel depende das disponibilidades, tanto do profissional quanto do cliente, cabe ampliar a reflexo para os casos de atendimentos em instituies, nas quais os profissionais da sade devem exercitar sua

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    disponibilidade para com o outro e, ao mesmo tempo, articular sua prxis com as demandas institucionais. necessrio, portanto, compreender as caractersticas das instituies, ou seja, o que institudo, criado e estabelecido por essa instituio. O foco na relao com o cliente, porm, deve ser a preocupao primordial. Infelizmente, os aspectos anteriormente destacados, que dificultam o cuidado e a disponibilidade do profissional, no aparecem exclusivamente no contexto de instituies pblicas, mas tambm esto presentes na prtica clnica. Basta verificar a grande fila de espera para atendimento psicolgico nas universidades privadas e instituies que mantm atendimentos gratuitos com formato ou em esquema de clnica solidria. Muitas vezes em funo do grande nmero de pessoas a serem atendidas, o formato do atendimento tem um prazo determinado, o que contraria a necessidade de assegurar ao cliente que o processo de desenvolvimento acontecer no seu ritmo e tempo singulares. Novamente, o profissional de sade deve considerar o contexto no qual est inserido, pois esse o lugar onde sua relao com o cliente ocorrer. Podemos questionar tambm o conceito de sade e doena atribudo neste contexto para que tais idias no sejam tratadas como produto, produo ou estados vitrificados, onde o profissional que pretende atuar em prol da sade no se transforme num mero instrumento de conteno da doena, sem refletir ou desenvolver um pensamento crtico em relao a estas intervenes. Todas as variantes supracitadas esto em constante transformao, o que torna a reflexo sobre o cuidado um processo e um questionamento constante. Sendo assim, no seria adequado restringir o significado de sade e doena, uma vez que saudvel tambm entendido como possibilidade de conceber sade e doena de forma integrada. Dessa maneira, o cuidado envolve, fundamentalmente, a relao humana e o modo pelo qual o cliente experiencia, de forma singular, seu ser-no-mundo e o espao que se abre para o contato com a sua condio. Para Ayres (2007, p. 43) necessrio considerar o conceito de sade e doena de uma forma abrangente, pois reduzir sua compreenso a polaridades to limitante para a adequada compreenso dessas duas construes discursivas e das prticas a elas relacionadas, quanto negar as estreitas relaes que guardam uma com a outra na vida cotidiana. A polarizao de sade e doena pode levar polarizao da prpria relao psicoterpica, quando o gestalt-terapeuta seria o detentor da possibilidade de sade e o cliente seria o doente. O que, nesse caso, induziria a se compreender equivocadamente que sade ausncia de doena, concepo inversa a que estamos trazendo aqui. Entre os gestalt-terapeutas a idia de cura no uma meta ou um estado a ser atingido. Considerando a base fenomenolgico-

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    existencial desta abordagem, cuidar constitui-se num processo construdo entre duas pessoas, fundamentado numa relao de confiana que tambm elaborada num tempo e espao indeterminados. No cuidado, existe a permisso para se lapidar as lentes pelas quais podemos transcender o objeto previamente conhecido, permanecendo com o fenmeno da relao. Portanto, pela disponibilidade do psicoterapeuta e do cliente, ambos seres singulares, que o encontro possvel. por meio do encontro que se configura a relao psicoterpica. O que vai ao encontro de Polster (2001, p.114), eminente gestalt-terapeuta, quando ele descreve que: O contato no apenas reunio ou intimidade. Ele s pode acontecer entre seres separados, que sempre precisam ser independentes e sempre se arriscam a ser capturados na unio. Nesse contexto, a possibilidade do encontro emerge. No h garantias de o encontro ocorrer, tampouco possvel busc-lo, pois a disponibilidade para estar-com que favorece o encontro. A relao psicoteraputica , portanto, uma relao intersubjetiva, pela qual a diferena entre os dois seres se faz presente. Ao gestalt-terapeuta concedida a tarefa do cuidado. Merighi (2002, p. 158) afirma que o cuidado est vinculado com a compreenso, onde a relao [...] deve ser simtrica: ouvindo o outro ouvindo a ns mesmos, cuidando do outro, cuidando de ns mesmos. A presena do psicoterapeuta proporciona ao cliente confirmaes existenciais, ou seja, quando o gestalt-terapeuta permanece presente nessa relao, oferece a possibilidade frtil para que o cliente possa ressignificar suas necessidades. Esta idia confirmada, inclusive, por terapeutas de outra orientao terica, como Yalom (2008, p. 178), ao mencionar: Os pacientes transformam a estima do terapeuta em autoestima pessoal. Com efeito, a fluidez constitui uma presena saudvel. Ayres (2007, p. 58) aponta que: preciso tambm ouvir o que o outro, que demanda o cuidado, mostra ser indispensvel que ambos saibamos para que possamos colocar os recursos tcnicos existentes a servio dos sucessos prticos almejados. o psicoterapeuta quem, por todo o seu referencial terico e vivencial acompanha o cliente em seu processo na busca da sade possvel em seu momento e contexto pessoal. Como dito anteriormente, a presena do terapeuta possibilita o engajamento do cliente, inclusive na responsabilidade de seu processo de sade e de doena, tornando, na maioria das vezes, possvel para o cliente suportar os sintomas advindos do adoecimento. Coelho (2002, p. 322) afirma: Enquanto a sade se caracteriza pela abertura s modificaes e pela instituio de novas normas de sade, o patolgico corresponde impossibilidade de mudana e obedincia irrestrita s normas. Sarriera (2003, p. 89) aponta para a complexidade da questo quando considera a existncia de paradigmas diversos acerca do

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    conceito de sade e isso se deve a um questionamento da cincia. E alerta que especificamente no campo da psicologia necessrio repensar o objeto complexo sade-doena-cuidado, levando[-se] em considerao as bases epistemolgicas que o sustentam. Como define o Dictionary of Psychology (2001, p.171), cura significa o retorno sade (a returne to health). Sendo assim, segundo a perspectiva que trazemos aqui, acreditamos que a cura est no encontro e o cuidado, na relao. A presena uma manifestao do cuidado e a cura uma expresso do encontro, uma manifestao do vivido. Spangenberg (2007) afirma que: atravs do espelho dos olhos de quem nos ama que descobrimos nossa alma (p. 24). O cuidado importante quando a nfase est no encontro de dois seres humanos que se preocupam e ocupam um espao conjunto e constroem um lugar para o entre. O objetivo principal na psicoterapia gestltica a ampliao da awareness. Yontef (1998)postula que Awareness uma forma de experienciar. o processo de estar em contato atento com o evento mais importante do campo indivduo/ambiente. Torna-se imprescindvel para o profissional da sade no fixar sua ateno no conceito de sade ou doena exclusivamente, mas observar a forma como o cliente percebe suas vivncias. Desta forma, a possibilidade de cura emerge quando o cliente compreende sua experincia de reconhecimento tanto daquilo que ele pode nomear como sade quanto de doena. Perceber a doena, como determinante da identidade do cliente, significa no cuidar, pois ele ficar limitado a um nico aspecto, tornando o cuidado uma ao um ato disfuncional. Hycner e Jacobs (1997, p. 39) destacam a postura do psicoterapeuta diante dessas questes. O conceito de sade, de doena ou de psicopatologia est presente, porm o foco est na relao com o cliente, e o psicoterapeuta suspende esses conceitos e permanece no contato, na possibilidade de encontro, ou seja, no cuidado. necessrio, ao menos momentaneamente, que o terapeuta tente "[...] suspender todos os seus vieses pessoais, conhecimento geral sobre pessoas, sobre psicopatologias e categorias de diagnstico [...], pois, desse modo, est aberto e presente, fazendo surgir a sensao de se admirar diante da extrema singularidade e humanidade da pessoa que tem diante de si (HYCNER; JACOBS, p. 40). O gestalt-terapeuta percebe o diagnstico de uma doena como uma sabedoria compreendida em fluxo, ou seja, necessrio conhecer o cliente no processo para, depois, conhecer seu sintoma. O sintoma o sinalizador daquilo que no est bem no processo. um mapeamento, uma orientao e, no, o territrio. O diagnstico representa a posio, o lugar que a pessoa ocupa no mundo e o momento em que est. Contudo, no devemos perder de vista o que o constitui. Entende-se a doena como um estado no qual o fluxo em

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    direo mudana, novidade e atualizao est interrompido. A Gestalt-terapia ressalta a assimilao da novidade como facilitador do desenvolvimento. Em outras palavras, cada situao nova exige, do ser humano, novas respostas e atualizaes, pois surgem diversas sensaes provocadas pelas imprevisibilidades do cotidiano. Nesse sentido, a doena exige uma reorganizao. Um corpo desorganizado expresso de uma alma desorganizada e , pelo cuidado, pela manifestao de preocupao, relao, confirmao e de amor que o profissional pode revelar sua disponibilidade de ocupar-se previamente das questes do outro. Perls (1977, p.77) salienta que O organismo sadio se reorganiza com todas as suas potencialidades para a gratificao das necessidades primordiais. Imediatamente ao realizar uma tarefa, esta volta [-se] para o fundo e permite que a necessidade que neste intervalo se tornou mais importante, chegue ao primeiro plano. Como o foco da Gestalt-terapia est na relao, em nenhum momento se fala que o retorno sade acontece quando os sintomas desaparecem. Medeiros (2005, p.264) alerta que: Assim, quando a sade definida como uma questo integral, plural, na nsia de integrar, de tornar o sujeito indivisvel, completo, no se est agindo sobre o indivduo, mas sobre a relao, as aes que ele estabelece consigo e os outros em termos de cuidados e ateno integral. O gestalt-terapeuta um profissional que tem, por princpio, a crena nas potencialidades do ser humano, pelo fato de que este concebido como ser em busca do saudvel, ou seja, passvel de ser criativo e flexvel, que pode ter uma direo para o crescimento. O gestalt-terapeuta no responsvel pelo cliente, pois no responde pelo cliente, mas juntamente com ele busca formas de desenvolver as suas possibilidades, ou seja, o desenvolvimento da responsabilidade individual. E isso o torna um privilegiado, por ser escolhido para acompanhar o cliente em sua jornada. Sarriera (2003, p. 92) reflete que [...] questionamentos vm sendo realizados a respeito da compreenso das doenas, os quais enfatizam que estas no devem ser unicamente extirpadas, mas sim compreendidas em relao ao contexto no qual surgem e se desenvolvem, respeitando a pessoa e seu ambiente. Adoecimento no significa paralisia ou incapacidade. Sintomas no precisam desaparecer para que o retorno ao estado saudvel acontea. O no saudvel a impossibilidade de atualizar a maneira de satisfazer as necessidades, a cristalizao, a estagnao em um determinado momento, o que pode transformar respostas conhecidas em anacrnicas, fazendo com que percam a funo. Dessa maneira, o cuidado um processo rduo, pois exige constantemente:

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    1. a confirmao existencial tanto do profissional quanto do cliente; 2. a compreenso do contexto e das questes institudas; 3. a compreenso dos estados saudveis e dos adoecimentos e a relao com a singularidade do cliente; 4. a noo do compartilhar como forma atuante no processo relacional; 5. a descoberta, com o cliente, das possibilidades para enriquecimento das formas de contato e de atualizao das relaes humanas. Pokladek (2004, p. 257) indica que Cuidar constitui-se no exerccio da pr-ocupao em celebrar um acontecer, uma forma de perceber o outro e a maneira de coexistir, permanecendo abertos para criao de nossas possibilidades. Essa postura pressupe possibilidade de atualizao, e Spangenberg (2007, p. 22) esclarece as dificuldades dessa atualizao quando cita: No somos o produto passivo das circunstncias de nosso passado. O importante no o que nos aconteceu, e sim como reagimos [diante dos] acontecimentos de nossa vida [...]; o que nos diferencia como seres humanos no o contedo de nossas histrias pessoais, e sim a forma como reagimos a elas. Podemos finalizar esta reflexo, destacando a importncia da conscincia fundamental que o profissional de sade deve desenvolver sobre a maneira como compreende sade e doena, pois seu modo de pensar orientar sua ao, principalmente no que diz respeito ao cuidado e necessidade de se tornar disponvel para o outro. Assim como Kbler-Ross (2005, p. 16) afirma Amar se dar, e toda doao s significativa se for em benefcio mtuo. Entendemos que o cuidado um ato de amor por si e pelo outro. Sendo assim, o preparo para se tornar um cuidador requer energia, prontido, confiana e disponibilidade para solidificar essa relao. Alm disso, cuidar tambm assumir riscos, pois, apesar de buscar atuar na relao, acreditando no potencial de sade daquele que est sendo cuidado, o profissional da sade que cuida precisa estar despojado da onipotncia da cura, conhecendo seus limites pessoais e respeitando as escolhas do ser humano que so imprevisveis e carregadas de significados prprios, peculiares trajetria de cada um. Afinal, responsabilidade neste contexto deve envolver a relao onde o cuidador e aquele que cuidado formam uma totalidade e so afetados mutuamente. Cuidar , sobretudo , um desafio, onde somos frequentemente provocados a rever nossas possibilidades e limites, sem invadir ou ser invadido, mantendo a fronteira de contato para viabilizar a sade possvel no contexto no qual a relao se desenvolve.

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  • ISSN: 1808-4281 ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 9, N.1, P. 174-184, 1 SEMESTRE DE 2009

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