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Cu pões Concurso inspirado em modelo brasileiro é a forma encontrada pelo Governo para tentar transformar a difícil relação dos portugueses com os impostos e tornar o ato de pedir fatura tão natural como pagar a conta Uma lotaria para mudar a cabeça dos contribuintes Sorteio de carros com faturas arranca em abril Texto ANA SOFIA SANTOS e RICARDO MARQUES Ilustração PAULO BUCHINHO á uma regra antiga que vale para qual- quer lotaria: éo pior negócio do mundo pa- ra quem joga, mas é um dos melhores ne- gócios para quem or- ganiza. Os jogadores tendem a concentrar-

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Page 1: Cu para tentar transformar lotaria para a cabeça dos ... · que vale para qual-quer lotaria: é o pior ... não sei como vai ser. O mais previsível é que daqui para a frente

Cu pões Concurso inspirado em modelo brasileiro é a forma encontrada pelo Governo para tentar transformara difícil relação dos portugueses com os impostos e tornar o ato de pedir fatura tão natural como pagar a conta

Uma lotaria para mudara cabeça dos contribuintesSorteio de carros comfaturas arranca em abril

Texto ANA SOFIA SANTOSe RICARDO MARQUES

Ilustração PAULO BUCHINHO

á uma regra antigaque vale para qual-quer lotaria: é o piornegócio do mundo pa-ra quem joga, mas é

um dos melhores ne-

gócios para quem or-

ganiza. Os jogadorestendem a concentrar-

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-se em demasia no prémio (que sairá

apenas a um) e muito pouco na possibili-dade de nada ganharem (como sucede atodos os restantes). Por isso jogam, e bas-

tante, contra toda a lógica. É nesta con-

tradição que o Governo aposta, com os

olhos postos num prémio muito maisambicioso do que os carros de gama alta

que, a partir de abril, vai sortear sema-nalmente entre os contribuintes que pe-direm faturas com número de identifica-

ção fiscal (NIF). O objetivo é mesmo mu-dar a forma de pensar dos portugueses.

Para o Governo, que conta ter mais de

quatro milhões de contribuintes a pedirfaturas com NIF, trata-se de romper comhábitos culturais de décadas e consolidaro "simples comportamento" de pedir

uma fatura por cada compra. E o pontode partida para um raciocínio que acabacom os impostos abaixar. "Estes compor-tamentos contribuirão para a diminuiçãoda concorrência desleal e da economia

paralela e permitirão um alargamento dabase tributável e um aumento das empre-sas a declarar resultados positivos. A parda redução estrutural da despesa públi-ca, serão criadas as condições para umaredução gradual e sustentada da carga fis-

cal no futuro", resume fonte oficial.O contribuinte pede a fatura, beneficia

de uma possível dedução no IRS, habilita--se a ganhar um carro e ainda contribui

para pagar menos impostos no futuro.Há quem não esteia convencido. Teresa

Líbano Monteiro, professora da Universi-dade Católica Portuguesa, avisa que a pa-rada é alta. "Não há nada mais difícil do

que mudar hábitos enraizados", alerta,mesmo não duvidando que a lotaria sejaatrativa. "Portugal não tem uma culturade jogo como existe na Ásia. O que temosé uma situação em que as pessoas acredi-tam que através de um sorteio podemmudar a sua vida. Noutros países euro-

peus, onde a cultura de cidadania é mais

forte, as pessoas pedem fatura porque é o

correto e para não pagarem mais impos-tos. Em Portugal, vão pedir fatura paraver se ganham o carro." De gama alta, o

que ainda remete mais para a ideia, irrea-lista, "de vida melhor".

O resultado é o mesmo, mas seria pre-ciso o tal carro para cobrir a distância

que separa as duas posições. João Car-los Graça, sociólogo do ISEG, teme quea tal questão de cidadania esteja a serreduzida a uma simples opção de fazero que é mais vantajoso. "O problemados impostos deve ser discutido no es-

paço de intervenção política. Mas o quevemos é a redução do contribuinte aum agente económico racional, que se

move numa lógica àepay-off. Neste ca-

so, em vez de cumprir apenas porque é

o correto, cumpre porque lhe prome-tem um prémio. Nem é bem um pré-mio, é algo aleatório e que surge comoalgo associado à classe alta", explica.

Cidália Lopes, professora da CoimbraBusiness School, também não concor-da com o prémio: "Seria melhor optar

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por um beneficio fiscal, para os contri-buintes que pedissem fatura, mais

abrangente e mais significativo. Estaría-mos a premiar não um contribuintemas todos os contribuintes cumprido-res. Parece-me mais equitativo."

Regras por definir

As regras do jogo ainda não são conheci-das — falta publicar o decreto-lei e a res-

petiva regulamentação. Sabe-se que pa-ra o primeiro sorteio valem todas as fatu-ras com NIF pedidas em janeiro deste

ano. Sabe-se que todas (até as de 5 cênti-

mos) contarão para sorteio e serão con-vertidas em cupões (falta saber a que va-

lor, em faturas, corresponderá cada

um). E já há várias televisões na corrida

para transmitir o concurso.A complexidade do processo, porém, na-

da tem a ver com a facilidade oferecidaaos jogadores. O problema pode estar do

outro lado dos balcões, onde as filas são

cada vez maiores. A Associação da Hote-laria, Restauração e Similares de Portu-

gal (AHRESP) calcula que o processo deemitir uma fatura com NIF leva cerca deum minuto. "No ano passado, o sector da

restauração passou cerca de 600 milhõesde faturas. Dessas, a pedido dos clientes,36 milhões tinham identificação. O queretirou mais de 600 mil horas à produtivi-dade das empresas e mais de 26 milhõesde horas à economia", contabiliza Pedro

Carvalho, da AHRESP.A solução, defende, poderia passar por

um plafond mínimo a partir do qual as

empresas teriam de emitir fatura comNIF. "Esse valor devia estar nos 10 eu-ros", diz Pedro Carvalho. Tudo abaixo,explica, teria de ser preenchido e comu-nicado ao fisco pelo contribuinte, parapoder habilitar-se ao sorteio. "Se isso

não acontecer, não sei como vai ser. Omais previsível é que daqui para a frentehaja um efeito bola de neve. Nestas pri-meiras semanas notámos que há cadavez mais gente a pedir fatura com identi-

ficação. Será pior com a exposição televi-siva dos sorteios."

Tirar milhões da sombra

Em São Paulo, onde nasceu a ideia portu-guesa, os sorteios da Nota Fiscal Paulistasão um sucesso. Além de prémios em di-nheiro (que podem chegar aos 15 mil eu-ros), o programa prevê a devolução de

30% do imposto local sobre o consumo

(equivalente ao IVA). O Governo baseou-

-se nesse modelo para reformar a fatura-

ção, sobretudo com a criação do sistemade comunicação eletrónica de faturas pe-las empresas. No IRS é possível descon-tar 15% do R/A desembolsado pelo con-sumidor em restaurantes, cabeleireiros

e oficinas automóveis. As Finanças admi-tem que, com a Fatura da Sorte, o com-bate à fraude e evasão fiscal permita reti-rar da economia-sombra entre 600 a800 milhões de euros. No ano passado,as medidas de controlo fiscal levarammais de €420 milhões para a receita.

As maiores e mais antigas experiên-cias de associação entre fiscalidade e lo-taria chegam da Ásia. O que para Tere-sa Líbano Monteiro não é um sinal posi-tivo. "São países que, embora ricos, nãotêm um nível de desenvolvimento tão

avançado como o nosso. Traduz um cer-to modo que existe na classe dirigentede olhar para o povo", concretiza.

Erich Kirchler, professor de Psicologiana Universidade de Viena e autor do li-vro "Psicologia económica do comporta-mento fiscal", resume a relação do Esta-do com os contribuintes à fórmula mais

simples: "As autoridades recorrem comfrequência a medidas de repressão e

controlo, como inspeções e multas.Mais raramente, também recompen-sam o comportamento correto. Puniçãoe recompensa são medidas que tradu-zem paternalismo. Mas não são a situa-

ção ideal, em que os contribuintes reco-nhecem as vantagens dos serviços públi-cos e pagam impostos."

Teresa Líbano Monteiro descreve umpaís que, na prática, está muito longe des-

sa realidade. "Nos inquéritos, 90% dos

portugueses consideram que é errado fu-

gir aos impostos. Mas depois quem podefugir foge mesmo", refere. Estima-se quea economia paralela represente cerca de20% do PIB português. Parte dela nuncadesaparecerá. "As pessoas tendem a fre-

quentar os mesmos espaços, conhecem

os comerciantes e não acredito que vão

pedir faturas de coisas pequenas. Sabem

que há muita gente a viver da economia

paralela. Que sobrevive graças a ela."

[email protected]

ALGUNS NÚMEROS

iõmilhões de euros é o valor anualestabelecido para os prémios aentregar na Fatura da Sorte.Inclui os sorteios regulares e outrosde natureza extraordinária, nos quaishaverá mais prémios em jogo

61mil empresas deduzem ao IVA a pagarao Estado um valor superior ao queconsta nas faturas das suas

aquisições, segundo as Finanças.Outras seis mil empresas emitemfaturas que depois não comunicamà Autoridade Tributária

36,2mil milhões de euros foi o valorcobrado em 2013 pela máquina fiscaldo Estado — a primeira vez em que asreceitas ficais ultrapassaram os 36 milmilhões. Para este ano, o Governo

espera que o número de faturasemitidas e comunicadas à AutoridadeTributária cresça 50%

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IMPOSTOS E LOTARIAS

Uma ideia, vários paísesA ideia de atribuir prémios a quempede fatura tem o maior número de

adeptos na China, onde funciona numalógica de raspadinha incluída na

própria fatura. No Brasil, os sorteios daNota Fiscal Paulista são feitos com

cupões, que resultam das faturas de

cada contribuinte. Países como CostaRica, Paraguai, Chile e Eslováquiatêmtambém lotarias semelhantes.

Quanto mais fácil melhorNicholas Epley, professor de Ciência

Comportamental na Booth School ofBusiness da Universidade de Chicago e

autor de vários artigos sobrefiscalidade, explica que "a lotaria serátanto mais eficaz quanto mais fácil for

para as pessoas. E no caso portuguêsbasta saber de cor um único número".

As variáveis certasPara Erich Kirchler, professor daUniversidade de Viena, a evasão fiscal e

a economia paralela só podem sercombatidas atuando em quatrovariáveis: a consciência de que o que se

paga tem reflexo nos serviços públicos;a perceção de que a máquina fiscalfunciona com justiça; a interiorizaçãode que o correto é pagar os impostos; e

uma fácil compreensão das leis fiscais.

Uma lição sobre o jogoAdam Smith, o pai da economiamoderna, escreveu "Riqueza das

Nações" em 1776. Nessa obra defende

que nunca houve nem haverá umalotaria justa. E que a única certeza de

apostar mais é que se vai perder mais.

NlFomaníacose NlFóbicos:obsessão e medodas faturas

Muitos contribuintes recusampedir faturas com Número deIdentificação Fiscal (NIF). Tememque o Estado queira criar "amaior base de dados da história"

Já há quem chame "NlFomaníacas" às

pessoas que pedem sempre fatura comNúmero de Identificação Fiscal (NIF),na esperança de virem a ganhar um car-ro nos sorteios criados pelo Governo. Noextremo oposto, poderíamos então cha-

mar "NlFóbicos" àqueles que nunca a pe-dem: temem dar ao Estado informaçãosobre tudo o que gastam, onde, quando ea que horas; na altura de pagar, prefe-rem não se habilitar ao automóvel topode gama em nome da privacidade.

"Muitos consumidores não queremque as Finanças tenham conhecimentode tudo o que compram no dia a dia e

por isso não pedem fatura com númerode contribuinte. Quando os emprega-dos lhes perguntam se querem, é muitofrequente responderem: 'Nem pensar,era o que faltava o Estado saber da mi-nha vida!'", conta o secretário-geral da

Associação de Hotelaria, Restauração e

Similares de Portugal (AHRESP), JoséManuel Esteves.

Rui Cruz, de 26 anos, decidiu não pedirfaturas com os dados de identificação,por temer ser controlado pelo Estado. Amaioria das pessoas recusaria entregaruma declaração com tudo aquilo quecompra, onde, quando e a que horas,

por considerar que isso seria uma inacei-tável violação da sua privacidade, masaceita pedir fatura com número de con-tribuinte em todos os gastos que faz,sem perceber que o resultado é o mes-

mo, explica."Todas as faturas emitidas e que são en-

viadas para o Portal das Finanças levam adata, hora, local, tipo de compra e valor.Se eu pelas lOh pedir uma fatura num ca-

fé, pelas 12h almoçar num restaurante,pelas 15h for ao médico e às V/h fizercheck-in num hotel, é possível traçar o

meu perfil diário, os sítios por onde andeie os meus hábitos de consumo", justifica."Se o Estado quer saber por onde alguémandou, de forma oficial ou oficiosa, temaqui a maior base de dados da história."

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Paulo Veríssimo, professor catedráticoda Faculdade de Ciências da Universida-de de Lisboa e especialista em segurançainformática, concorda: "Um cidadão quepeça sempre fatura com NIF em todos os

gastos que fizer expõe completamente asua privacidade". O problema, diz, é que

não se sabe exatamente de que forma es-

tes ciados vão ser armazenados, por quan-to tempo, em que condições de seguran-ça e quem terá acesso a eles.

Os ataques informáticos que têm sido

lançados recentemente contra diferen-tes estruturas da Administração Públi-ca, como aconteceu ainda esta semanacom o Ministério da Educação e Ciên-cia, não dão garantias relativamente à

segurança e confidencialidade destas

informações, adianta o investigador."Como vimos no caso da NSA e dos Es-tados Unidos, vivemos num mundo em

que o próprio Estado democrático po-de espiar, sem limites, os seus cida-dãos. Neste contexto, é compreensívelque o armazenamento deste tipo de da-dos gere preocupação."

Dados conservados por seis meses

Na semana passada, a Comissão Nacio-nal de Proteção de Dados (CNPD) deuluz verde ao projeto de diploma que vai

regulamentar o concurso de automóveiscriado pelo Governo para incentivar os

contribuintes a pedir fatura com NIF,considerando que está garantida a confi-dencialidade dos dados pessoais. Isto

porque, para efeitos do sorteio, será atri-buído um número a cada fatura, sendoatravés desse número que os vencedo-res do prémio serão divulgados no Por-tal das Finanças, sem que sejam mencio-nados os seus dados.

A Comissão recomenda apenas queos dados pessoais recebidos pela Autori-dade Tributária, a partir da emissão de

faturas, sejam conservados por um pra-zo máximo de seis meses, contados dadata de cada sorteio.

A não divulgação dos dados pessoaisno Portal das Finanças não chega, no en-

tanto, para tranquilizar todos os contri-buintes. Para alguns, arrisca o secretá-

rio-geral da AHRESP, o problema não é

tanto a devassa da privacidade, mas apossibilidade de a Autoridade Tributáriacruzar a informação do valor que um ci-dadão declara que ganha com o montan-te daquilo que gasta e, por essa via, dete-tar fugas ao fisco. "Imaginemos alguémque declara 500 euros por mês e o Esta-do depois apercebe-se de que gasta maisdo que isso em restaurantes ou que com-

prou uma jóia por dois mil. Se os dadosforem cruzados, pode ter problemas e

ser obrigado a justificar a diferença."JOANA PEREIRA BASTOS

[email protected]