cronobiologia: uma multidisciplinaridade necessária

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MARGEM, SÃO PAULO, N O 15, P. 95-112, JUN. 2002 Cronobiologia: uma multidisciplinaridade necessÆria JOHN FONTENELE ARAUJO NELSON MARQUES Resumo A cronobiologia Ø um campo científico multidisciplinar? Para nós, essa pergunta tem uma resposta afirmativa. Por que a cronobiologia Ø essencialmente multidisci- plinar? O que hÆ nesse campo científico que atrai profissionais de Æreas tªo dife- rentes? Sªo as perguntas desse tipo que tentaremos responder neste texto. Anali- samos os aspectos históricos da cro- nobiologia como disciplina científica e os diversos modelos usados em seu desen- volvimento. Terminamos o artigo avalian- do o estado atual da cronobiologia como ciŒncia, sugerindo que essa disciplina po- derÆ ter trŒs futuros, que podem ser exemplificados como vertentes: a vertente da consolidaçªo e a vertente da superaçªo e vertente da multidisciplinaridade. Por isso, justificamos o título deste artigo. Palavras-chave: cronobiologia; multi- disciplinaridade; complexidade; ritmos biológicos; teoria científica. Abstract Is Chronobiology a multidisciplinary scientific field? For us this question has an affirmative answer. Why is Chronobiology essentially multidisciplinary? What is it in this scientific field that attracts professionals from so different areas? These type questions are the ones we will try to answer in this text. We analyze the historical aspects of the Chronobiology as scientific disciplines, using diverse models of development of science. We finish the article evaluating the current state of the chronobiology as science, suggesting that this discipline will be able to have three

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MARGEM, SÃO PAULO, NO 15, P. 95-112, JUN. 2002

DOSSIÊ: ENTRE NATUREZA E CULTURA — CRONOBIOLOGIA

Cronobiologia: umamultidisciplinaridade

necessária

JOHN FONTENELE ARAUJO

NELSON MARQUES

Resumo

A cronobiologia é um campo científicomultidisciplinar? Para nós, essa perguntatem uma resposta afirmativa. Por que acronobiologia é essencialmente multidisci-plinar? O que há nesse campo científicoque atrai profissionais de áreas tão dife-rentes? São as perguntas desse tipo quetentaremos responder neste texto. Anali-samos os aspectos históricos da cro-nobiologia como disciplina científica e osdiversos modelos usados em seu desen-volvimento. Terminamos o artigo avalian-do o estado atual da cronobiologia comociência, sugerindo que essa disciplina po-derá ter três futuros, que podem serexemplificados como vertentes: a vertenteda consolidação e a vertente da superaçãoe vertente da multidisciplinaridade. Porisso, justificamos o título deste artigo.

Palavras-chave: cronobiologia; multi-disciplinaridade; complexidade; ritmosbiológicos; teoria científica.

Abstract

Is Chronobiology a multidisciplinaryscientific field? For us this question has anaffirmative answer. Why is Chronobiologyessentially multidisciplinary? What is itin this scientific field that attractsprofessionals from so different areas?These type questions are the ones we willtry to answer in this text. We analyze thehistorical aspects of the Chronobiology asscientific disciplines, using diverse modelsof development of science. We finish thearticle evaluating the current state of thechronobiology as science, suggesting thatthis discipline will be able to have three

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futures, where these futures can be asfollowing: the source of the consolidation,the source of the overcoming, and thesource of the multidisciplinary. Because ofthis, we justify the title of this article.

Key-words: chronobiology; multi-disciplinary; complexity; biologicalrhythms; scientific theory.

A cronobiologia é uma disciplinacientífica que se caracteriza como umramo da ciência que estuda a organi-zação temporal dos seres vivos. Comoorganização temporal compreendemosa capacidade dos seres vivos de expres-sarem seus comportamentos e controla-rem sua fisiologia de uma forma recor-rente e periódica. A essa recorrênciaperiódica damos o nome de ritmosbiológicos. Por isso, podemos tambémdefinir a cronobiologia como o ramoda biologia que estuda os ritmosbiológicos.

Como disciplina científica formal,a cronobiologia é recente. Apesar dosprimeiros relatos empíricos dos ritmosbiológicos datarem de 1729, somenteem 1960 é que a cronobiologia foi ca-racterizada como disciplina científica.

Fazendo uma avaliação das pri-meiras reuniões científicas na área decronobiologia, principalmente o ColdSpring Harbor Symposium on Biolo-gical Clock � 1960, encontramos comoseus participantes uma diversidade deprofissionais. Profissionais da áreabiológica, da matemática, da física, damedicina e até das ciências humanas.Essa característica tem acompanhadoa cronobiologia desde então.

Ao lado disso, um outro aspecto,que sempre chama atenção em qualquerevento científico, é o interesse pelacronobiologia por profissionais de di-versas áreas. Por isso, levantamos aseguinte questão: é a cronobiologia umcampo científico multidisciplinar? Paranós essa pergunta tem uma respostaafirmativa. Nestes tempos em que bus-camos a multidisciplinaridade, a inter-disciplinaridade e a transdisciplina-ridade, e, por outro lado, temos difi-culdade de realizá-lo na prática, porque a cronobiologia é essencialmentemultidisciplinar? O que há nesse cam-po científico que atrai profissionais deáreas tão diferentes? São as perguntasdesse tipo que tentaremos responderneste texto.

A nossa hipótese inicial é a de quea cronobiologia é um campo multi-disciplinar atualmente e como resulta-do disso esse campo já nasceu multi-disciplinar. Os argumentos que forta-lecem nossa hipótese inicial são:

1. O tempo é uma questão que inte-ressa a todos.

2. A cronobiologia surgiu em um mo-mento histórico especial, quando aciência estava em crise e muitosbuscavam novos campos de pesqui-sa, em que a pesquisa científica ti-vesse um caráter multidisciplinar.

3. A cronobiologia tem um impactosocial muito forte.

O tempo na biologia

A ritmicidade biológica pode serentendida como a expressão cíclica de

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um fenômeno biológico. Essa expres-são é periódica e mais ou menos está-vel. As características clássicas dosritmos biológicos são: o ritmo é gera-do endogenamente, tendo como ex-pressão a sua persistência em livre-curso; é capaz de ser sincronizado porum ciclo ambiental e também apresen-ta compensação às variações de tem-peratura.

Essas características necessitam seratualizadas em dois aspectos: pri-meiro, os ritmos podem ser geradosendogenamente em todos os níveis deorganização � em uma célula, em umtecido, em um órgão, em um sistema eno organismo como um todo; segun-do, há a necessidade de redefinir a idéiade ambiente, considerando não somen-te o meio ambiente, mas incluindo, tam-bém, o ambiente interno. Desta forma,quando falamos de ambiente, temosque considerar o meio ambiente e omeio interno.

Com essas considerações passamosa entender como ritmos biológicos nãosomente os que apresentam um correla-to com ciclos geofísicos, mas ritmoscom períodos diferentes e sem corre-latos com pistas do meio ambiente.Afinal, a endogenicidade dos ritmosbiológicos proporciona à espécie umacapacidade antecipatória, que lhe per-mite organizar recursos e atividadesantes que sejam necessárias.1 Dessemodo, a expressão de um determina-

do ritmo biológico pode ser fundamen-tal para antecipar uma mudança queocorrerá no ambiente, antecipando umafase mais propícia do ciclo ambientalpara a sobrevivência da espécie. Poroutro lado, a expressão de um ritmobiológico pode ser fundamental paragarantir uma determinada função �bomba cardíaca e respiração, por exem-plo � ou antecipar uma mudança nomeio interno � como a secreção de umdeterminado hormônio.

Assim, passamos a considerar quea compreensão da ritmicidade bioló-gica não passa apenas pelo entendi-mento dos ritmos circadianos (�circa�� próximo � e �diano� � dia) e/ou ou-tros circa-ritmos, mas também pelosritmos de outras freqüências e semcorrelatos com os ciclos geofísicos. Aclassificação dos ritmos biológicos,proposta inicialmente por Halberg �ritmos circadianos, infradianos e ultra-dianos �, é bastante usada e aceitaatualmente. Essa classificação, porém,ainda é muito simplista e induz a al-guns erros, apesar de seu didatismo.O primeiro erro cometido é a super-valorização dos ritmos circadianos, jáque todos os outros ritmos são classi-ficados em relação à freqüência de umciclo a cada 24 horas. O segundo erroé que essa classificação não tem signi-ficado funcional. Talvez uma melhorclassificação fosse dividir os ritmosbiológicos em duas categorias: osritmos com correlatos com ciclos geofísicose os ritmos sem correlatos com ciclosgeofísicos. Os primeiros estariam rela-cionados funcionalmente com a ante-cipação de uma mudança no meio am-

1. PITTENDRIGH, C. H. (1960), Circadianrhythms and circadian organization of livingsystems. Cold Spring Harbor Symp. Quant. Biol.,n. 25: 159-182.

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biente e os segundo com a antecipa-ção de uma mudança no meio interno.

Atualmente, é comum o uso do con-ceito de sistema de temporização circa-diana. Adicionando este à nossa consi-deração acima, propomos o conceito desistema de temporização biológica, in-cluindo tanto os ritmos com correlatos,quanto os sem correlatos com ciclosgeofísicos, pois consideramos que háum sistema de organização temporal,em que os diversos subsistemas intera-gem entre si.

Um novo paradigma na fisiologia

A compreensão de qualquer fenô-meno natural passa por um exame crí-tico dos seus fundamentos conceituais,tanto teóricos como práticos, os quaissão produzidos pelas ciências empíri-cas, ou seja, a própria dinâmica daciência. Entender a história, a dinâmi-ca de um processo, é evidenciar as for-ças internas e externas que promovemo desenvolvimento, tanto no sentidode facilitá-lo como no sentido de evitá-lo.

A ciência, como uma atividade so-cial humana, tem sua dinâmica pró-pria, e entendê-la é essencial para opróprio desenvolvimento científico.Atualmente, há vários modelosexplicativos para a dinâmica da ciên-cia, todavia, nenhum deles consegueexplicar em sua totalidade o desenvol-vimento científico. Esses modelos fo-ram construídos como explicações deexemplos específicos do desenvolvi-mento científico. Para nós, no entan-to, consideramos que, embora não te-nhamos um modelo unificador, cada

modelo tem uma grande utilidadeexplicativa em relação a alguma facetado desenvolvimento científico.

Acreditamos que um modelo de di-nâmica da ciência tem que ser compos-to pelas seguintes variáveis: (a) os fa-tores internos e externos que levam aosurgimento de algo novo na ciência; (b)os fatores que promovem o aprofun-damento de um determinado conheci-mento; (c) a forma da organização deuma comunidade científica determina-da, especialmente sua hierarquia, suaspublicações e reuniões, e (d) a relaçãocom os outros ramos do conhecimentoe em especial com a sociedade. O pon-to central de um modelo de dinâmicada ciência é que a ciência seja estudadacomo um processo em movimento e emmudanças.

Neste trabalho iremos discutir ain-da alguns pontos da história da crono-biologia, como dissemos, uma discipli-na de constituição formal recente, quepara nós apresenta-se como um objetode estudo ideal, que pode nos forne-cer elementos para a construção de umquadro mais geral de como a ciência seorganiza e funciona.

Os anos 1930 � 1950. O início

Para a maioria dos pesquisadoresque se preocupam com o problema daritmicidade biológica, a realização dosimpósio Cold Spring Harbor Symposiaon Quantitative Biology: BiologicalClocks (CSHSQB, vol. 25), organizadopor Colin Pittendrigh em 1960, emMassachusetts, EUA, é consideradacomo o marco inicial da cronobiologia

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como uma disciplina formal. Dois tó-picos principais do simpósio fizeramdesse novo campo do desenvolvimen-to científico, a cronobiologia, um novoramo da ciência biológica. No pri-meiro, enfatizaram-se novas regras enovas diretrizes relativas à maneira decomo se deve conduzir a pesquisa cro-nobiológica � propõe teorias e o modode realizar experimentos.2 No segundo,demonstrou-se a necessidade do usode métodos rigorosos de coleta e deanálise, propondo-se o desenvolvimen-to de métodos estatísticos específicos.

Nesse simpósio ficou caracterizadauma clara mudança científica, em quesão apresentadas estruturas conceituaisde larga escala que podemos chamarde paradigma cronobiológico, utilizandoo termo desenvolvido por ThomasKuhn. Poderíamos também chamar deteoria global cronobiológica (Feyerabend),programa de pesquisa cronobiológica(Lakatos), tradição de pesquisa crono-biológica ou suposições diretivas cronobioló-gicas.3 Todos esses termos apresentamsignificados semelhantes. Mesmo o ter-mo �paradigma� foi muito criticado,principalmente pelos múltiplos signifi-cados que o próprio Kuhn lhe deu e osmúltiplos usos que vários autores fize-ram dele. Mesmo Kuhn chegou a acei-tar a possibilidade do uso de outro ter-mo para evitar contradições e múlti-

plas interpretações.4 Apesar de todasas restrições que já se colocaram, usa-remos aqui o termo �paradigma�, oqual entendemos como as realizaçõescientíficas universalmente reconhecidase que, durante algum tempo, fornecemproblemas e soluções modelares parauma comunidade de praticantes deuma ciência.5

A mudança científica que ocorrecom o nascimento da cronobiologia écaracterizada pela incorporação, porparte da biologia, de uma preocupa-ção temporal, colocada na base dosmecanismos funcionais de todos os se-res vivos. Como conseqüência, temosa aceitação da existência dos ritmosbiológicos, a superação do debate exó-geno versus endógeno para a determi-nação dos ritmos biológicos (que ca-racterizou durante certo tempo o estu-do dos ritmos biológicos) e a formula-ção do conceito de relógio biológico.Não pretendemos aqui utilizar a histó-ria da cronobiologia para testar osatuais modelos de teoria da ciência,mas estamos mais preocupados emcompreender as mudanças que ocor-reram na biologia a partir da introdu-ção da cronobiologia e com isso enten-dermos o porquê de ela ser um campomuldisciplinar. Por isso iremos utilizarelementos de vários modelos da teo-ria das ciências, mesmo que alguns pon-tos sejam discordantes entre si. O mo-

2. ASCHOFF, J. (1960), Exogenous and endogenouscomponents in circadian rhythms. Cold SpringHarbor Symp Quant Biol, n. 25, pp. 11-28.3. LAUDAN, L et al. (1993), �Mudanças científi-cas: modelos filosóficos e pesquisa histórica�. Es-tudos Avançados, n. 7, pp. 7-89.

4. SANTOS, S. I. R. (1979), Os fundamentos sociaisda ciência. São Paulo, Editora Polis, 1979.5. KUHN, T. S. (1969), The structure of scientificrevolutions. Chicago, The University of ChicagoPress.

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delo que iremos utilizar como padrãoserá o de Thomas Kuhn. Mostraremos,no entanto, algumas divergências exis-tentes entre alguns pontos dos diver-sos outros modelos e tentaremos justi-ficar nossa escolha. É claro que nesteestudo não estamos de forma algumatestando uma teoria em particular, mas,sim, fazendo aplicações dos modelosteóricos de mudanças científicas ao casoparticular da cronobiologia. Queremosapenas evidenciar alguns aspectos ain-da negligenciados da história da cro-nobiologia e com isso contribuir para acompreensão do desenvolvimentoatual de algumas questões cronobio-lógicas para as quais pretendemos su-gerir algumas explicações.

Com o estabelecimento do marcohistórico inicial da cronobiologia noCSHSQ � Biological Clocks, enquantoinstitucionalização disciplinar, vamosmostrar o que ocorreu antes dessemarco e o que vem se desenvolvendodesde então.

Descrições sobre ritmicidade entreos seres vivos são conhecidas há mui-to tempo. Desde o início da ciênciaformal, com o desenvolvimento dosconhecimentos da Astronomia, já seconheciam as flutuações sazonais naagricultura. Em um dos fragmentosdos poemas do poeta Archilochus, queviveu em Paros em 650 a.C., encon-tramos a seguinte afirmação: �identi-fique o quanto os ritmos governam ohomem�. Em Hipócrates temos �Dieset nox ad summum et minimum conside-rantur�, que J. Aschoff traduziu livre-mente como �Acrofases podem ocor-rer em alguma fase do circadiano�. Se-

gundo Galeno, �Um período é o tem-po no qual há o resultado de tensão erelaxamento nas doenças�.6 Mas o pri-meiro relato que podemos considerarcomo realmente científico sobre aritmicidade biológica ocorreu no sé-culo XVIII, em 1729, quando o astrô-nomo francês J. J. De Mairan relatou àAcademia Francesa de Ciências que osmovimentos das folhas de uma plantachamada sensitiva permaneciam osci-lando, com um período de 24 horas,mesmo quando a planta era isolada daalternância ambiental do claro e escuro.

A primeira tese formal sobre ritmosbiológicos foi escrita por Julien-JosephVirey em 1814, por ocasião de seu dou-torado: Ephémérides de ses phénomènesdans la santé et les maladies. Para Aschoff,Virey foi o primeiro a introduzir o ter-mo relógio biológico na sua descriçãodo sistema circadiano, em que diz:

N�est-ce pas ainsi comme une système desrouages engrenes l�un dans l�autre, unesorte d�horloge vivante, montré par lanature et entrainée par le mouvent rapidede notre sphère et soleii?7

Apesar dessas evidências, no entan-to, apenas na primeira metade do sé-culo XX é que o debate sobre os ritmosbiológicos foi enfrentado mais seria-mente pela comunidade científica.Como exemplos desse debate vamoscomentar os relatos de três pesquisa-dores: Jurgen Aschoff, Franz Halberg

6. Apud ASCHOFF, J. (1974), Speech AfterDinner. Chronobiologia, 1 (suppl 1): pp. 483-495.7. Idem.

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e Alain Reinberg. São eles alguns dosprincipais responsáveis pela organiza-ção da cronobiologia como uma disci-plina formal. Procuraremos enfocar osaspectos que cada um compartilha como outro, principalmente nas situaçõescom que eles se depararam com acha-dos experimentais novos. Nesses rela-tos os autores comentam sobre comoenfrentaram as suas dificuldades empí-ricas para explicar os resultados expe-rimentais obtidos e para os quais asteorias conhecidas até então não ofe-reciam predições.

O primeiro fato relevante a ser des-tacado desses três relatos refere-se aque, apesar de os relatos sobre a ritmi-cidade biológica serem antigos, somen-te na segunda metade do século XX éque surge uma preocupação mais for-mal e contínua com esta área da Biolo-gia. Reinberg e Smolensky chamam aatenção para esse fato, quando levan-tam a questão do porquê desse desen-volvimento tardio da cronobiologia.8

Para nós, isso é explicado, provavel-mente, pela própria dinâmica da ciên-cia e pelos mecanismos que geram asmudanças científicas.

Nos três textos referidos acima en-contramos alguns outros pontos impor-tantes para compreender esse proces-so. Seus autores relatam a sua surpre-sa ao se depararem com a ritmicidadebiológica, quando avaliaram seus

resultados. Isso fica bastante claro emFranz Halberg, �confusa variabilidade: semaparente razão�, em Alain Reinberg eseus colaboradores, �Nossa surpresadiante desse resultado foi grande�, e emJurgen Aschoff �Uma clara variação naperda de calor não descrita previamente�.A ritmicidade violava suas expectati-vas ante o conhecimento estabelecidona época. Por que a ritmicidade eraconsiderada uma confusa variabilida-de? Para Thomas Kuhn, quando os re-sultados experimentais violam as ex-pectativas paradigmáticas que gover-nam a ciência normal, estamos anteuma anomalia.9

O �paradigma� para o qual a ritmi-cidade mostrava-se como uma anoma-lia é bem identificado por AlainReinberg em seu texto de 1977.10 ComoKuhn chama a atenção, é o estudo dosparadigmas que prepara, basicamente,o estudante para ser membro de umacomunidade científica na qual atuarámais tarde. Reinberg cita:

tant à la Faculté des Sciences qu� à la Facultéde Médecine, ne nous avait jamais parié deces variations rythmíques. Au contrairel�enseignement que javais reçu me donnaita penser que tout un ensemble de systèmesneuro-endocriniens fonctionne dansl�organisme de manière a maintenirconstants les milieux cellulaires et extra-celluiaires.

8. REINBERG, A. e SMOLENSKY, M. H. (eds.).(1983), Introduction to Chronobiology. In: Biolo-gical Rhythms and Medicine; Cellular, Metabolic,Physiopathologic, and Pharmacologic Aspects. NewYork, Springer-Verlag.

9 KUHN, T. S. (1977), The essential tension. Chica-go, University of Chicago Press.10. REINBERG, A. (1977), Des RhythmesBiologiques à la Chronobiologie. Paris, Bordas.

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A suposição diretiva predominante naépoca era da homeostasia, expressa iro-nicamente por Reinberg como a �SantaHomeostasia�, em que o sistema bio-lógico deveria permanecer constante.

Nos textos, tanto Franz Halbergquanto Alain Reinberg, inicialmente,duvidaram dos seus próprios resulta-dos e os consideraram perturbaçõesexperimentais, vindas da manipulaçãodos próprios animais ou interferênciaalimentar, respectivamente. Mas quan-do as condições experimentais foramcontroladas, a ritmicidade permaneceuou foi mais ainda exacerbada.

No texto de Reinberg ficam clarosos traços da emergência gradual e si-multânea de um reconhecimento, tan-to no plano conceitual como no da ob-servação, da tomada de consciência daanomalia e da crítica à homeostasia. Amudança de �paradigma� não deve servista individualmente, pois, por defi-nição, ela só é válida para uma deter-minada comunidade científica. ThomasKuhn reconhece isso, principalmenteem suas últimas publicações.11 De modogeral, a mudança dos paradigmas éacompanhada, naturalmente, por mui-tas resistências.

Na primeira metade do século XX,um dos grandes debates na área dosritmos biológicos era o de como elesseriam �controlados�, se endógena ouse exogenamente. Os que defendiam anatureza endógena dos ritmos bioló-gicos consideravam a ritmicidade, e nãoa constância, como predizia a homeos-

tasia, como um aspecto fundamentaldos seres vivos. Como exemplo dessedebate temos as conferências daInternationale Geselischaft fürBiologische Rhythmusforschung. Naconferência de 1949, a abertura foi umadefesa da ritmicidade exógena e, en-tre os trinta trabalhos apresentados, so-mente um citava dados que, hoje, po-deríamos interpretar como sugestivos,sobre ritmo em livre-curso.12 Já na con-ferência de 1953, Erwin Bünning apre-sentou uma série de trabalhos de-monstrando a endogenicidade dosritmos biológicos, sendo, a partir deentão, a referência para muitos jovenspesquisadores, dentre eles o próprioJurgen Aschoff.13

O paradigma cronobiológico podeser resumido na idéia de que há umaorganização temporal da matéria viva.

Após as primeiras dificuldades em-píricas, aqueles pesquisadores que sededicaram à ritmicidade biológica pas-saram à pesquisa de fatos mais recôn-ditos; esse aprofundamento em nívelde pesquisa requereu:a) um refinamento conceitual (idéias

de relógio biológico, de oscilaçõesbiológicas, de curva de resposta defase, de arrastamento, de mascara-mento, de sincronização, etc.);

b) o desenvolvimento de um vocabu-lário técnico e, algumas vezes, atémesmo esotérico (como livre-cur-so, �zeitgeber�, cosinor, acrofase,

11. KUHN, T. S. (1977), The essencial tension, op.cit.

12. ASCHOFF, J. (1990), �Sources of thoughtsfrom temperature regulation to rhythm research�.Chronobiol. Int. n. 7, pp. 179-186.13. Ibid.

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circadiano, ultradiano, infradiano,etc.);

c) a elaboração de técnicas e a constru-ção de equipamentos científicosmais requintados (tais como unida-des de isolamento, de sistemas decontrole ambiental, da auto-ritmo-metria, de uma coleta de dadosmais sensível, etc.).

Dentre esses fatores, destacaríamoso surgimento da idéia de relógio bioló-gico, uma das mais belas metáforas daBiologia. O termo surge propondo aexistência de estruturas biológicas ca-pazes de gerar e contar o tempo.

Resumindo, podemos afirmar que,desde o princípio, o paradigma ho-meostático foi universalmente reconhe-cido e forneceu, até um determinadomomento, explicações para problemascientíficos variados e propôs soluçõesmodelares para a comunidade cientí-fica. O estudo experimental subseqüen-te, entretanto, mostrou anomalias quecolocaram o paradigma homeostáticoem crise. A solução, para a explicaçãodesstas anomalias, levou ao surgimentode um novo paradigma, o paradigmacronobiológico, que teve o seu clímaxno encontro do Cold Spring Harbor de1960.

Os anos 1960 - 1970. A formaçãoda disciplina14

Esse processo não foi linear comopossa ter sido sugerido pelo exposto,

mas é importante destacar que ele é econtinua sendo dinâmico, e a discus-são cronobiologia versus homeostasiaainda é polêmica, principalmente naMedicina e na Fisiologia, disciplinas quesofrem grande influência de uma vi-são reducionista do procedimento cien-tífico. Tanto Franz Halberg, em 1967,quanto Alain Reinberg, dez anos de-pois, propõem uma revisão radical doconceito de homeostasia. Outros têmpontos diferentes. Jurgen Aschoff, em1979, sugere que a cronobiologia sejauma complementação da homeostasia.Já Colin Pittendrigh, em 1960, não levaem conta a necessidade de revisão doconceito de homeostasia, mas, sim, desua especificação temporal. Moore-Edeem 1986,15 por outro lado, discute oconceito de homeostasia em dois níveis,a homeostasia reativa, que é originadaa partir da perturbação da estabilida-de do sistema, e a homeostasia anteci-pativa, que inclui o paradigma crono-biológico. Mais recentemente,Mrosovsky propõe o termo reostasiaem um livro chamado �Rheostasis: ThePhysiology of Change�.16 Ele discute a ne-cessidade da revisão do conceito de

14. O estudo da formação de uma disciplina cien-tífica tem sido proposto como um instrumento

para a sociologia da ciência. Um estudo detalha-do da formação da cronobiologia como disciplinacientífica encontra-se em CAMBROSIO, A. eKEANTING, P. (1983), �The disciplinary stake;the case of chronobiology�. Social Studies of Science,n. 13, pp. 323-353.15. MOORE-EDE, M. (1986), �Physiology of thecircadian timing system; predictive versus reactivehomeostasis�. Am. J. Physiol, n. 250, pp. R737-R752.16. MROSOVSKY, N. (1990), Rheostasis, thephysiology of change. New York, Oxford UniversityPress.

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homeostasia a partir da compreensãodo sistema biológico, que é compostopor múltiplos sistemas funcionais inter-ligados. Reostasia implica que os limi-ares de controle (os chamados �setpoint�) dos diversos sistemas funcio-nais não sejam fixos e que podem mu-dar em várias situações. Além disto,essas modificações tanto podem serprogramadas previamente, quanto serapenas reativas. Essa discussão entrehomeostasia e cronobiologia pode sercomparada, de certa maneira, ao de-bate relatividade einsteiniana e dinâ-mica newtoniana. A relatividade supe-rou a mecânica de Newton, mas, parao mundo macroscópico, como, porexemplo, para se construir uma bicicle-ta, a mecânica de Newton nos basta.Todavia, ela não explica os fenômenosem escalas astronômicas ou microscó-picas. De maneira semelhante, ahomeostasia explica os reflexos de ajus-te da pressão arterial como sendo emrazão das mudanças posturais, toda-via, ela não consegue explicar as varia-ções rítmicas. É por meio da dúvidaem relação ao paradigma homeostáticoque o superamos e, ao mesmo tempo,conservamos sua riqueza, e somentepor meio da dúvida em relação aoparadigma cronobiológico é que o ob-temos e o conservamos vivo.17

No processo de organização da cro-nobiologia como disciplina, surgiu umaoutra polêmica. Desta vez relativa aosrumos que os estudos dos ritmos bioló-gicos deveriam tomar. Essa discussãodeu-se principalmente entre os quedefendiam a formalização de uma dis-ciplina científica independente. Issoteria como conseqüência imediata, den-tre outras, a criação de periódicosespecializados, a organização de so-ciedades científicas e de cursos univer-sitários diferenciados. A outra posiçãodefendia a idéia de que o estudo daritmicidade biológica ficasse apenascomo uma parte não formal da Biolo-gia, já que ele não seria uma especiali-dade, mas, sim, apenas, o objetivo detrabalho de um biólogo. Para ColinPittendrigh, o estudo da ritmicidadebiológica começou com a demonstra-ção da existência dos �relógios bioló-gicos� e dos modelos de �osciladoresauto-sustentados.�18 Esses foram os pri-meiros passos para se chegar à desco-berta das propriedades fundamentaisdos ritmos circadianos e às bases bio-lógicas dos osciladores e de seus meca-nismos. Entretanto, para FranzHalberg, esse estudo deveria incluir nãosomente os ritmos circadianos, mastambém outras questões, como o cresci-mento, o desenvolvimento, o envelhe-cimento, sem dúvida envolvendo ou-tras freqüências, como os ritmos ul-17. Nessa polêmica, estamos de acordo com a

posição de Yates, que, baseado em uma discus-são sobre aplicações da teoria de sistemas dinâ-micos na Biologia, sugere que a estabilidade bio-lógica no espaço e no tempo deveria ser vista sobum ângulo diferente da homeostasia, sugerindoo termo hemoedinâmico. YATES, F. E. (1987),Self-Organizing System. New York, Plenum Press.

18. PITTENDRIGH, C. H. (1974), �Circadianoscillations in cells and the circadian organizationof multicellular systems�. In: SCHIMITT, F.O. eWORDEN, F. G. (eds.). The Neurosciences � ThirdStudy Program. Cambridge, MIT Press.

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tradianos e infradianos. Para FranzHalberg, o modelo proposto por ColinPittendrigh era um obstáculo para o de-senvolvimento da cronobiologia, en-quanto para Colin Pittendrigh a dire-ção que seria dada por Halberg iriafracionar os conceitos e se afastava dasbases da ritmicidade.19

Uma parte dos pesquisadores, se-guindo a proposta de Franz Halberg,organizou a International Society forChronobiology (ISC) e a edição de pe-riódicos especializados em cronobiolo-gia, tais como as revistas Chronobiologiae Chronobiology lnternational. Esse gru-po passou a ser identificado como o doscronobiologistas em senso lato. Por ou-tro lado, alguns outros seguiram a pro-posta de Colin Pittendrigh, criando aSociety for Research on BiologicalRhythms, não participando nem doscongressos organizados pela ISC e tam-bém não publicando nos periódicosacima citados e, sim, em outras revis-tas especializadas, principalmente naárea de fisiologia e alguns outros ra-mos da biologia. Esse último grupopassou a ser identificado mais com aprocura dos relógios biológicos en-quanto estruturas discretas. Essa dis-puta acirra-se com a projeção científicados dois grupos em que os cronobiolo-gistas penetram lentamente no meiomédico, com trabalhos de cronotera-pêutica e diagnóstico, e os outros maisentre pesquisadores de áreas básicas.

As divergências agravam-se, prin-cipalmente após o aparecimento dos

primeiros trabalhos mostrando que onúcleo supraquiasmático, que se lo-caliza na região anterior do hipotá-lamo, era o relógio biológico respon-sável pelos ritmos circadianos dos ma-míferos.

Esse debate, algumas vezes muitoacirrado, concorda plenamente comuma das afirmações consensuais dosdiversos modelos de teoria de mudan-ças científicas. Estes afirmam que a co-existência de conjuntos rivais de para-digmas é a regra e não a exceção e queo debate desses paradigmas não é al-ternado com períodos de assentimen-to universal a um conjunto, mas ocorreconstantemente.20 Para nós, a discus-são neste momento não era efetivamen-te uma disputa entre paradigmas ri-vais, pois só existia um paradigma, ocronobiológico, e uma única comuni-dade científica; todavia, o que existiaera realmente uma disputa pela acumu-lação do �capital simbólico� com o ob-jetivo de dominar o �mercado científi-co�, como propõe Bourdieu.21 Bourdieu,diferentemente de Kuhn, considera quea manutenção e a ruptura na ciênciaocorre devido às estratégias dos cien-tistas na busca de crédito científico:

Normas, valores, consenso e recom-pensas não são as causas da ativida-de social, mas resultados desta ativi-

19. CAMBROSIO, A e KEATING, P., op. cit.

20. LAUDAN, L. et al. op. cit.21. HOCHAMAN, G. (1994), �A ciência entre acomunidade e o mercado. Leituras de Kuhn,Bourdieu, Latour e Knorr-Cetina�. In:POTOCARRERO, V. (org.). Filosofia, história e socio-logia das ciências I: Abordagens contemporâneas. Riode Janeiro, Fiocruz.

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dade, que existe através das estratégi-as adotadas pelos investidores na bus-ca de maximização de capital simbóli-co. Todos querem maximizar os lu-cros, obter, acumular e manter o seucapital científico, autoridade/compe-tência científica reconhecida.22

O que havia nesse período era uma dis-puta de estratégias diferentes para ob-ter maior maximização. Tal explicação,baseada no modelo de Bourdieu paraesta fase do desenvolvimento da cro-nobiologia, parece-nos muito interes-sante, principalmente após realizarmosuma entrevista estruturada com RobertMoore, um dos pesquisadores maispróximos de Pittendrigh. Este relatouque nessa fase ele e os vários outrospesquisadores não participavam da So-ciedade Internacional de Cronobio-logia por não reconhecerem a autori-dade/competência científica deHalberg.

Nessa fase, a cronobiologia encon-trava-se na etapa de seu desenvolvi-mento histórico, em que buscava infor-mações mais detalhadas e descriçõesmais precisas, no sentido de produziruma integração maior entre teoria eobservação. De forma geral, podemosdizer que a cronobiologia inicialmenteprivilegiou um único padrão temporal,o circadiano. Apesar da posição deFranz Halberg e Alain Reinberg, aca-bou predominando a visão redu-cionista, que buscava a explicação daritmicidade biológica unicamente emosciladores discretos, localizados no

sistema nervoso central. Essedirecionamento ocorreu sobretudoporque os ritmos circadianos apresen-tam uma expressão mais exuberanteem relação aos ritmos com outras fre-qüências. Além disso, a metodologiaaplicada para detectar os ritmoscircadianos é mais simples. Ritmos comfreqüências lentas, como os circanuais,dependem de longas séries temporaispara serem detectados. Por outro lado,ritmos com freqüências rápidas, os rit-mos ultradianos dependem de técni-cas de coletas mais sensíveis, capazesde detectar pequenas flutuações emcurtos intervalos de tempo.

A concepção reducionista ganhoubastante força com os resultados iniciaisque demonstraram a perda da expres-são do ritmo circadiano de atividade-repouso, de ingestão de líquido e dasecreção de cortisol, em ratos, após alesão bilateral dos núcleos supraqui-asmáticos.23 Consideramos essa visãoreducionista por supor que os organis-mos nada mais são que um agregadode estruturas, átomos e moléculas, queexibem propriedades que correspon-dem às de suas partes, ou seja, julgamque o conhecimento do todo é deriva-do de seus elementos (reducionismoontológico). Supõe também que o pro-blema da ritmicidade biológica deve ser

22. Ibid.

23. MORRE, R. Y. e EICHLER, V. B. (1972), �Lossof circadian adrenal corticosterone rhythmfollowing suprachiasmatic lesions in the rat�. BrainRes, n. 42, pp. 201-206 e STEPHAN, J. e ZUCKER,I. (1972), �Circadian rhythms in drinking behaviorand locomotor activity of rats are eliminated byhypothalamic lesions�. Proc Natl Acad Sci, USA, n.69: pp. 1583-1586.

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investigado exclusivamente pelo estu-do dos relógios biológicos (redu-cionismo metodológico ou estratégi-co).24 Essa posição fica clara através deduas diferentes citações de dois ex-poentes dessa vertente. O primeiro é omesmo Robert Moore:

A função primária do núcleo supra-quiasmático é gerar e regular o siste-ma circadiano... O sistema de tem-porização circadiano é um sistemamultioscilatório, o núcleo supraquias-mático é ele mesmo um sistema mul-tioscilatório.

O segundo é Fred Turek:

Os ritmos circadianos são regula-dos por um(s) marcapasso(s)circadiano principal (�master�) loca-lizado no núcleo supraquiasmáticodos mamíferos.

Essa visão reducionista é um re-flexo da concepção localizacionista quedominou as neurociências, de maneirageral, durante as décadas de 1960 e1970.

Com a dominância dessa visão, osmodelos cronobiológicos foram centra-dos quase que exclusivamente no sis-tema circadiano, tendo como funda-mental, ainda, a existência de oscila-dores. Esses modelos representam, emsua maioria, uma única freqüência, ex-plicando apenas os ritmos com correla-

tos geofísicos, e os modelos são hierár-quicos em sua essência.

Conforme discutimos anteriormen-te, os diversos modelos de desenvol-vimento científico não explicam a tota-lidade do fazer ciência, mas apenas al-gumas fases desse fazer. Por isso, aoanalisamos essa fase da cronobiologia,consideramos que nesse momento oque ocorre é a formação de dois cam-pos científicos com um único paradig-ma, o cronobiológico. Para nós, a ex-plicação dessa fase é mais bem descri-ta pelo modelo de Latour, que sugereuma ampliação do conceito de créditopara credibilidade. Latour mantém al-gumas idéias de Bourdieu, mas acres-centa a

idéia de que o principal para os pes-quisadores é o reinvestimento contínuodos recursos acumulados, formandoum ciclo de credibilidade.25

O ciclo de credibilidade vai definir oque Latour chama de campo científico,e é por isso que propomos que nessafase há a formação de dois camposcientíficos com um mesmo paradigma.Um campo científico que chamamos de�campo científico cronobiológico�, em queo ciclo de credibilidade estava em tor-no de Halberg, e que a interação entreos pesquisadores ocorria com uma com-posição muldisciplinar, principalmen-te porque o ciclo de credibilidade nes-te era decorrente das implicações e dasaplicações que o paradigma cronobiológico

24. AYALA, F. J. �Biological reductionism. Theproblem and some answers�. In: YATES, F. E.(ed). (1987), Self-Organizing System. New York,Plenum Press. 25. Idem HOCHMAN, 1994.

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ganhava. No outro lado, o �campo cien-tífico ritmos biológicos� mantinha seu ci-clo de credibilidade em torno de ummodelo reducionista de ciência e seusprincipais créditos eram a descobertado NSQ e dos genes que regulavam aritmicidade circadiana em moscas defrutas.26

Podemos fazer ainda uma outra lei-tura dessa primeira fase da cronobiolo-gia. No final dos anos 1950 e início dos1960, temos o aparecimento do para-digma cronobiológico e da comunida-de científica dos cronobiólogos. Quan-do olhamos para o final de 1960 e iní-cio de 1970 encontramos o mercadocronobiológico sendo disputado, e essadisputa ocorre entre duas estratégiasdiferentes de como maximizar o �capi-tal simbólico cronobiológico�. No mo-mento seguinte temos o crescimento eo fortalecimento dos dois grupos, cons-tituindo o que chamamos aqui de �cam-po científico cronobiológico� (Halberg)e �campo científico ritmos biológicos�(Pittendrigh). O fortalecimento do cam-po científico ritmos biológicos ocorredevido à credibilidade do grupo, apósa descoberta do NSQ e dos aspectosgenéticos da ritmicidade circadiana.Com isso ocorre o fortalecimento dainteração e troca de informação entreos pesquisadores vinculados a mode-los experimentais de biologia molecular

e neuroanatomia. No outro lado, o for-talecimento do campo científico crono-biológico ocorre devido às implicaçõese aplicações da cronobiologia, onde ofortalecimento da interação ocorre en-tre pesquisadores de diversas áreas, epor isso é o campo científico crono-biológico que mantém a multidisci-plinaridade dentro da cronobiologia.

Os anos 1970-1980. O aparecimentodas ambigüidades

Nessa fase, continua a disputa en-tre o campo científico cronobiológico eo campo científico ritmos biológicos, asduas concepções dentro da cronobiolo-gia. Essa disputa fica clara em publica-ções como as de E. Powell The MasterClock Ilusion,27 em que faz uma críticaao dogma de que o núcleo supra-quiasmático controle todos os ritmoscircadianos. Do outro lado, há o artigode Fred Turek, �Do circadian biologistsand chronopharmacologists talk thesame language?�,28 em que o própriotítulo já mostra uma divisão entre con-cepções diferentes sobre os ritmosbiológicos.

Os esforços da cronobiologia con-centravam-se na ação de expandir earticular o paradigma cronobiológico;tal articulação visava superar as ambi-güidades dos resultados das observa-

26. A denominação �campo científico crono-biológico� e �campo científico ritmos biológicos�originam-se das duas principais sociedades for-madas pelos dois grupos. Sociedade Internacio-nal de Cronobiologia (Halberg) e Sociedade dePesquisa em Ritmos Biológicos (Pittendrigh).

27. POWEL, E. W. (1988), �The Master ClockIllusion�. Cronobiologia, n. 15, pp. 321-322.28. TUREK, F. W. (1988), �Do Circadian biolo-gists and chronopharmacologists talk the samelanguange?� Ann Rev Chronopharmacol n. 24, pp.205-208.

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ções empíricas e produzir, cada vezmais, uma visão simples e sinóptica doparadigma. Por sua vez, essa simplifi-cação e generalização do modelo cro-nobiológico permitiu a solução de pro-blemas para os quais o paradigma, nasua versão primitiva, havia apenas cha-mado a atenção dos cronobiologistas.

Por outro lado, o aprofundamentodos estudos reducionistas trouxe à tor-na várias ambigüidades, provocandoentão uma redução da �credibilidade��do campo científico ritmos biológi-cos�, enquanto há um aumento na �cre-dibilidade� do �campo científico cro-nobiológico�, principalmente devido àassociação entre os pesquisadores dediversas áreas fortalecendo esse cam-po científico. Dentre as várias ambigüi-dades na cronobiologia nesse momen-to, chamamos atenção para estas:

1. evidências de múltiplos osciladorespara o sistema circadiano;

2. evidências de osciladores circa-dianos independentes do núcleo su-praquiasmático, incluindo os osci-ladores periféricos fora do sistemanervoso central;

3. evidências de múltiplas freqüênciassimultâneas e

4. evidências de osciladores para ou-tras freqüências.

Os anos 1990. A reunificação em tornodo paradigma.

Um fato muito importante nos anos1990, na cronobiologia, foi a WorldConference on Chronobiology andChronotherapeutics, realizada em Fer-

rara, Itália, de 6 a 10 de setembro de1995. A realização de uma conferênciainternacional é um fenômeno comumem qualquer especialidade científica.Todavia, essa World Conference foiuma �Joint Meeting�, em que participa-ram a lnternational Society forChronobiology, a European Society forChronobiology, a Society for Researchon Biological Rhythms, o Grouped�Etude des Rythmes Biologiques, aAssociation de ChronobiologieMédicale e a Società Italiana diCronobiologia.

Na World Conference estavam reu-nidas as duas concepções da crono-biologia, os dois campos científicos, eessa conferência pretendia cumprir opapel de reunificação, como ficou cla-ro nas palavras de Lelenad Edmunds,o então presidente da lnternationalSociety for Chronobiology:

I hope that this �togetherness� reflectsa trends for future cooperation amongthe rapidly proliferating chronobiolo-gical groups.

Esses fatos novos na cronobiologialevantaram algumas questões impor-tantes e acreditamos que esses dadosdevam ser investigados com uma abor-dagem mais ampla para outras áreasdas ciências.

Queremos então chamar a atençãopara algumas questões: (1) a realiza-ção da World Conference representouem sua essência uma mudançaconceitual e metodológica na crono-biologia? Ou seja, havia uma tendênciade repensar o reducionismo na cro-

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nobiologia?; (2) essa tendência ocorreue/ou ocorre também em outras áreasdo conhecimento científico?; (3) pode-mos fazer uma generalização e afirmarque a ciência, em si, passa por uma faserevolucionária?; (4) essas mudanças es-tavam/estão ocorrendo por influênciadas atuais transformações políticas esociais no mundo ou são decorrentesde uma necessidade interna do atualestágio das ciências naturais?

Acreditamos que essas questõesdevam ser objetos de pesquisa da his-tória e da filosofia da ciência atual. Nósparticipamos da World Conference,não só como cronobiologistas, mas como objetivo de investigar o conteúdo e aforma dessa conferência para tentar-mos elucidar algumas dessas questões.O que encontramos foi um reencontroparcial dos campos científicos, o�cronobiológico� e o �ritmos biológicos�.

Conforme temos anunciado desdeo início deste artigo, consideramos queos diversos modelos de história/filo-sofia da ciência apresentam-se úteis emdeterminados momentos. Utilizamos acategoria paradigma/comunidade ci-entífica (Kuhn) para explicar a forma-ção inicial da cronobiologia, a catego-ria capital simbólico/mercado científi-co (Bourdieu) na discussão da for-malização da cronobiologia como dis-ciplina científica e a categoria ciclo decredibilidade/campo científico (Latour)na discussão do debate das concepçõesreducionista e não reducionista entreos cronobiologistas. Nessa última fasevamos utilizar uma outra categoria, a

arena transepistêmica (Knorr-Cetina).29

Knorr-Cetina

assume que escolhas técnicas não sãodeterminadas exclusivamente porcientistas e, por isso, não vê sentidoem se reivindicar que a comunidadecientífica seja considerada a unidaderelevante de produção do conhecimen-to.30

Knorr-Cetina introduz comodeterminante da produção do conhe-cimento científico agentes não cientis-tas, como o Estado e, principalmente,as instituições financiadoras. O queocorre nessa fase, em que o �campocientífico ritmos biológicos� perdecredibilidade, devido às suas própriasambigüidades experimentais, é a for-mação da �arena transepistêmicacronobiológica�. Alguns fatores sãofacilitadores da formação dessa arena.Afinal, se, por um lado, aparecem asambigüidades na visão reducionista,em contrapartida, há um aumento nacredibilidade para aqueles que fazembiologia molecular, aumentando o ci-clo de credibilidade nesse campo cien-tífico com os avanços nas pesquisas dosprojetos genomas. No outro lado, háum aumento da credibilidade doscronobiologistas devido às aplicaçõesda cronobiologia, principalmente naárea médica.31 Atualmente, não obser-vamos, pelo menos com uma forma

29. ROCHAMAN, G., op. cit.30. Ibid.31. O crescimento da credibilidade dos crono-biologistas pode ser visto em um trabalho no qualavaliamos a utilização do termo �cronobiologia�

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predominante, a divisão entre campocientífico cronobiológico e campo cien-tífico ritmos biológicos, mas uma uni-dade a que chamamos de �arenatransepistêmica cronobiológica�. Con-forme comentado acima, o termo pro-posto vem da categoria utilizada porKnorr-Cetina em seu modelo explica-tivo da produção de conhecimento. Autilização do termo arena transe-pistêmica foi devida à nossa conside-ração de que a reunificação na crono-biologia foi determinada por fatoresexternos e internos aos cientistas. To-davia, cabe ressaltar que essareunificação fortaleceu o paradigmacronobiológico e a comunidade crono-biológica e, com isso, a cronobiologiacomo disciplina científica.

Com certeza, os fatores externos àcomunidade científica, que facilitaramesse processo de reunificação, foram asmudanças políticas e sociais ocorridasnos anos 1990, além das novas propo-sições teóricas dentro da própria ciên-cia, como as introduzidas pela teoriado caos, teoria da catástrofe, teoria dossistemas complexos, etc.

Um outro fator que consideramosfundamental para a reunificação dosdois grupos foi o aspecto multidisci-plinar do campo científico cronobioló-gico. Para nós, quando um campo cien-tífico apresenta como característica amuldisciplinariidade, esse campo passa

a trabalhar com um paradigma abertoo suficiente para a resolução de novosproblemas, e com isso impõe à comu-nidade uma certa flexibilidade, permi-tindo a incorporação de novos prati-cantes, principalmente de outras áreasou até antigos adversários, e que no-vas questões passem a integrar essecampo científico, formando a �ComunaCientífica�.32 O termo �Comuna Cien-tífica� é proposto aqui como uma novacategoria de um modelo de produçãode conhecimento, representando umafase do desenvolvimento científico emque o paradigma científico é aceito uni-versalmente tanto entre os cientistasquanto entre as instituições financia-doras, na ciência aplicada, na mídia ena população não científica. Além deincorporar esses determinantes na pro-dução do conhecimento, esse termo in-corpora os elementos dos modelos deKuhn, Bourdieu, Latour e Knorr-Cetina, ou seja, o termo �Comuna Cien-tífica� implica uma determinação docontexto histórico no surgimento daprópria comuna científica.

Para onde vai a cronobiologia?

Desde o princípio elaboramos nos-so raciocínio para definir que o atualestado da arte da cronobiologia pos-sa ser chamado de �Comuna Científi-ca Cronobiológica�, em que o para-digma é aceito universalmente, tantopelos praticantes da cronobiologia,

32. Uma discussão sobre essa categoria será obje-to de um outro trabalho.

e �circadiano� como palavras-chaves em artigosindexados na base de dados MedLine de 1965 até1995, em que a utilização do termo cronobiologiaapresentou um crescimento exponencial a partirde 1990.

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como pelos outros cientistas e a socie-dade externa à ciência. Com isso retor-namos a nossa proposta inicial, de queo ponto central de um modelo de di-nâmica da ciência é que a ciência sejaestudada como um processo em mo-vimento e em mudança, cabendo aquium novo questionamento: para ondevai a cronobiologia?

Avaliando o estado atual da crono-biologia como ciência, podemos ima-ginar que essa disciplina poderá terdois futuros, que podem ser exem-plificados como vertentes da �ComunaCientífica Cronobiológica�: a vertenteda consolidação e a vertente da supe-ração. A vertente da consolidação re-presenta um aprofundamento doparadigma cronobiológico e o apareci-mento de novos grupos de cronobiolo-gia, bem como o fortalecimento dosatuais grupos de pesquisas, a introdu-ção da cronobiologia como disciplinaem currículos de graduação e pós-gra-duação e uma maior valorização dacronobiologia pelas instituições finan-ciadoras e pelo público em geral. Issotudo levaria ao aumento da credibi-lidade da cronobiologia como discipli-na científica. Por outro lado, a verten-te da superação implica em que os con-ceitos cronobiológicos serão incorpo-rados e apropriados pelas outras dis-ciplinas científicas, fazendo com que acredibilidade desse campo científicoseja perdida; com isso, a cronobiologia,como disciplina científica autônoma,tenderia a desaparecer.

Todavia, uma terceira vertente épossível. Uma vertente em que hajatanto a consolidação quanto a supera-

ção. Olhamos essa terceira vertentecom bons olhos, mas acreditamos queela só será possível caso a cronobiolo-gia continue a ser multidisciplinar. Issoocorrendo, haverá naturalmente o au-mento da credibilidade da �ComunaCientífica Cronobiológica�. Por dese-jarmos que o futuro da cronobiologiaseja o dessa terceira vertente é que jus-tificamos o título deste artigo: Cro-nobiologia: uma multidisciplinaridadenecessária.

Recebido em 31/4/2002Aprovado em 30/6/2002

John Fontenele Araujo, Laboratório de Crono-biologia, Departamento de Fisiologia, UFRN. Cai-xa Postal 1506, Natal, RN CEP 59078-970.E-mail: [email protected]

Nelson Marques, Departamento de Clínica Mé-dica, Faculdade de Medicina, USP.