cronobiologia os ritmos da vida revista educação

4
09/05/2016 Cronobiologia os ritmos da vida| Revista Educação http://revistaeducacao.uol.com.br/textos/0/cronobiologiaosritmosdavida2416241.asp 1/4 Cronobiologia os ritmos da vida Verónica Valentiuzzi explica como professores e alunos podem respeitar os horários fisiológicos e aumentar o desempenho nas diversas atividades de ensino e aprendizagem Marcos Gomes Tweet O estudo sistemático da organização temporal da matéria viva só recentemente ganhou importância na biologia e na ciência em geral. Mas ele tem muito a nos dizer sobre o entendimento da vida e inclusive sobre os aspectos práticos do nosso dia a dia como seres vivos, como a definição dos melhores horários para dormir, estudar, tomar remédios etc. Essa é a opinião da cientista argentina Verónica Valentinuzzi, que desenvolveu parte de sua carreira acadêmica no Brasil. Atualmente ela é coordenadora do Laboratório de Cronobiologia do Centro de Pesquisa e Transferência Tecnológica de La Rioja (Crilar Centro de Investigación y Transferencia Tecnológica de La Rioja), localizado no semiárido centrooeste da Argentina. Em entrevista exclusiva, Verónica fala de sua vida profissional e dos últimos progressos da cronobiologia. Qual o tema de estudo da cronobiologia? A cronobiologia estuda os ritmos biológicos, assim como os relógios biológicos que geram esses ritmos.Os ritmos biológicos (circadianos, infradianos e ultradianos) se manifestam em todas as variáveis de um organismo (moleculares, bioquímicas, fisiológicas e comportamentais) e em todas as espécies vivas, desde unicelulares até o homem. Esses ritmos são um componente fundamental dos seres vivos. O que são ciclos circadianos, infradianos e ultradianos? Os ritmos biológicos são classificados em três grupos. Os circadianos (circa, próximo; dies, dia) são aqueles ritmos endógenos que expressam um período de aproximadamente 24 horas (20h ± 4h). Um exemplo é o nosso ritmo de atividaderepouso, diversos ritmos hormonais, o ritmo de temperatura corporal etc. Todos repetem o ciclo a cada 24 horas. Os ritmos infradianos são aqueles que ocorrem em períodos maiores que 28 horas. Um exemplo clássico é a reprodução estacional de alguns animais (com um período próximo de um ano), o período menstrual da mulher, de 28 dias, ritmos circalunares típicos de espécies que vivem próximo a costas etc. Já os ritmos ultradianos são aqueles que têm duração menor que 20 horas. Diversos hormônios hipotalâmicos (o hipotálamo é uma região do cérebro responsável pelo controle da fome e sede, regulação da temperatura corpórea e síntese de alguns hormônios) são ultradianos, assim como nosso nível de consciência e atenção mostra marcados ritmos ultradianos: durante o sono, temos alternâncias regulares de diferentes fases (sono REM, sono não REM), ao mesmo tempo que durante o dia temos picos de elevada atenção, alternando com períodos de menor atenção ou até sonolência (a duração dessas alternâncias é de aproximadamente 90 minutos). Como a cronobiologia se aplica ao ensino? Somos animais diurnos, estamos acordados e ativos durante o dia e dormimos à noite. Para isso, diversas variáveis fisiológicas estão

Upload: rodere-oudereck

Post on 26-Jan-2017

70 views

Category:

Food


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Cronobiologia   os ritmos da vida  revista educação

09/05/2016 Cronobiologia ­ os ritmos da vida| Revista Educação

http://revistaeducacao.uol.com.br/textos/0/cronobiologia­os­ritmos­da­vida­241624­1.asp 1/4

Cronobiologia ­ os ritmos da vida

Verónica Valentiuzzi explica como professores e alunos podem respeitar os horários fisiológicos eaumentar o desempenho nas diversas atividades de ensino e aprendizagem

Marcos Gomes

Tweet

O estudo sistemático da organização temporal da matéria viva só recentemente ganhou importância nabiologia e na ciência em geral. Mas ele tem muito a nos dizer sobre o entendimento da vida e inclusivesobre os aspectos práticos do nosso dia a dia como seres vivos, como a definição dos melhoreshorários para dormir, estudar, tomar remédios etc. Essa é a opinião da cientista argentina VerónicaValentinuzzi, que desenvolveu parte de sua carreira acadêmica no Brasil. Atualmente ela écoordenadora do Laboratório de Cronobiologia do Centro de Pesquisa e Transferência Tecnológica deLa Rioja (Crilar ­ Centro de Investigación y Transferencia Tecnológica de La Rioja), localizado nosemiárido centro­oeste da Argentina. Em entrevista exclusiva, Verónica fala de sua vida profissional edos últimos progressos da cronobiologia.

Qual o tema de estudo da cronobiologia?A cronobiologia estuda os ritmos biológicos, assim como os relógios biológicos que geram essesritmos.Os ritmos biológicos (circadianos, infradianos e ultradianos) se manifestam em todas asvariáveis de um organismo (moleculares, bioquímicas, fisiológicas e comportamentais) e em todas asespécies vivas, desde unicelulares até o homem. Esses ritmos são um componente fundamental dosseres vivos.

O que são ciclos circadianos, infradianos e ultradianos?Os ritmos biológicos são classificados em três grupos. Os circadianos (circa, próximo; dies, dia) sãoaqueles ritmos endógenos que expressam um período de aproximadamente 24 horas (20h ± 4h). Umexemplo é o nosso ritmo de atividade­repouso, diversos ritmos hormonais, o ritmo de temperaturacorporal etc. Todos repetem o ciclo a cada 24 horas. Os ritmos infradianossão aqueles que ocorrem em períodos maiores que 28 horas. Um exemplo clássico é a reproduçãoestacional de alguns animais (com um período próximo de um ano), o período menstrual da mulher, de28 dias, ritmos circalunares típicos de espécies que vivem próximo a costas etc. Já os ritmosultradianos são aqueles que têm duração menor que 20 horas. Diversos hormônios hipotalâmicos (ohipotálamo é uma região do cérebro responsável pelo controle da fome e sede, regulação datemperatura corpórea e síntese de alguns hormônios) são ultradianos, assim como nosso nível deconsciência e atenção mostra marcados ritmos ultradianos: durante o sono, temos alternânciasregulares de diferentes fases (sono REM, sono não REM), ao mesmo tempo que durante o dia temospicos de elevada atenção, alternando com períodos de menor atenção ou até sonolência (a duraçãodessas alternâncias é de aproximadamente 90 minutos).

Como a cronobiologia seaplica ao ensino?Somos animais diurnos,estamos acordados e ativosdurante o dia e dormimos ànoite. Para isso, diversasvariáveis fisiológicas estão

Page 2: Cronobiologia   os ritmos da vida  revista educação

09/05/2016 Cronobiologia ­ os ritmos da vida| Revista Educação

http://revistaeducacao.uol.com.br/textos/0/cronobiologia­os­ritmos­da­vida­241624­1.asp 2/4

Verônica em pesquisa de campo com a bióloga brasileira Gisele Oda, da USP

em seus níveis máximosdurante o dia (cortisolsanguíneo ­ hormônioenvolvido na mobilização dosestoques de glicose emsituações de estresse,especialmente logo apósdespertarmos ­, temperaturacorporal, pressão arterial,nível de atenção,disponibilidade de glicose,colesterol, entre outras).Enquanto isso, outrasvariáveis estão no seu nívelmais baixo (melatonina ­hormônio liberado nosperíodos de escuro, que esta

envolvido na regulação do ciclo vigília­sono ­, hormônio de crescimento, nível de atenção etc.). Durantea noite, quando dormimos, a situação se inverte. Fica claro que, com base nessa organização temporalinterna, todos têm horários ótimos para se alimentar, para dormir, para fazer exercícios e para realizaratividades cognitivas. Respeitar esses horários fisiológicos certamente vai aumentar nossodesempenho nas diversas atividades.

Dá para organizar as atividades escolares à luz da cronobiologia?O planejamento das atividades escolares pode (e deve) ser visto sob um prisma cronobiológico. Issosignifica organizar atividades de modo a contemplar momentos de maior ou menor rendimento nastarefas escolares, seja do ponto de vista dos alunos ou dos professores. O custo orgânico de umatarefa escolar não é o mesmo nas diferentes horas do dia. Por exemplo, uma das características dafase da adolescência é um atraso do relógio biológico, provavelmente determinado pelas grandesmudanças hormonais. Disso resulta que os jovens tenham muita dificuldade em deitar cedo e acordarcedo. É um fato que incide negativamente no desempenho escolar quando o turno é muito cedo.Alguns pesquisadores na área, como Luiz Menna­Barreto da USP, vêm tentando aplicar essesconceitos para que as escolas atrasem os horários do primeiro turno de aulas. Há uma estreita relaçãoentre o desempenho cognitivo e o ciclo sono­vigília. E isso inclui qualidade e duração do sono. Manterum padrão de sono regular e estável ao longo dos dias é essencial para um bom desempenho escolar.Por um lado manter esse padrão assegura a organização temporal interna de todas as variáveis fisiológicas e por outro lado o sono profundo é essencial para que aconteça a consolidação dos fatosadquiridos durante o dia (ou seja, a formação da memória de longa duração). Outro ponto muitoimportante é o grau de matutinidade ou vespertinidade de cada indivíduo, que é pessoal e determinadogeneticamente. Esse fator determina qual é o horário natural para acordar de manhã e deitar à noite.

É o caso das pessoas madrugadoras e das que só conseguem trabalhar ou estudar bem noperíodo da tarde?Todos conhecem pessoas madrugadoras, que se levantam com bom humor e prontas para tudo. Elassão os indivíduos de cronotipo matutino. Aqueles que dormem até tarde e só começam a funcionardepois do almoço, apresentando um máximo de efi ciência ao entardecer, são classificados comosendo os de tipo vespertino. Existem, ainda, pessoas que não chegam nem a um extremo nem a outro,os mistos, ora com predominância matutina, ora com predominância vespertina. Esse grupo é o maispredominante e também aquele que consegue se ajustar aos horários impostos mais facilmente. Os

Page 3: Cronobiologia   os ritmos da vida  revista educação

09/05/2016 Cronobiologia ­ os ritmos da vida| Revista Educação

http://revistaeducacao.uol.com.br/textos/0/cronobiologia­os­ritmos­da­vida­241624­1.asp 3/4

cronotipos costumam se estabilizar somente na idade adulta. Sempre que possível, adapte sua rotinaao seu tipo e com isso vai assegurar um bom desempenho cognitivo, além de outros benefícios.

Como o professor pode levar a cronobiologia para a sala de aula?Até pouco tempo atrás, a biologia buscava seus modelos e explicações por meio da descrição espacialde estruturas de organismos, sistemas, tecidos, células ou partes de células. O tempo nesses modelosrepresentava só um cenário onde as estruturas funcionam e eventualmente se transformam. Com osurgimento da cronobiologia como disciplina formal há uns 50 anos, começou­se a reconhecer que adimensão temporal é essencial para caracterizar integralmente um sistema biológico. Assim comoexiste um sistema circulatório, um sistema nervoso, um sistema digestivo e renal, também existe umsistema de temporização com bases anatômicas e fi siológicas bem definidas.

Você poderia elencar algumas descobertas importantes na área? Três marcos da cronobiologia me vêm à mente. O primeiro foi em 1729, quando o astrônomo DeMarian sugeriu a existência de relógios biológicos, ao comprovar que o movimento regular de aberturae fechamento das folhas de uma planta, a sensitiva (Mimosa pudica) continuava a ocorrer inclusive emcondições constantes, sem estímulos (a sensitiva retrai as folhas quando o galho é tocado, e tambémas fecha à noite, quando o sol se põe). Ele demonstrou pela primeira vez que o ritmo biológico égerado endogenamente. Outro grande marco ocorreu na década de 1970, quando após múltiplastentativas foi descoberto o relógio biológico de mamíferos, exatamente nos núcleos supraquiasmáticosdo hipotálamo ­ que marca todas as funções do organismo, ditando os ritmos acerca da duração do dia(níveis de luz) e da temperatura da pele. Já a descoberta mais recente e de grande impacto foi acomprovação da existência de fotorreceptores específicos na retina de mamíferos, destinados aoprocesso de sincronização do relógio biológico, que, junto com os cones e bastonetes do sistemavisual, permitem que o animal se mantenha em sincronia com o ciclo dia­noite externo.

Quais são as aplicações da cronobiologia na vida cotidiana?A cronobiologia tem muito a dizer no caso das desorganizações temporais causadas pela vidamoderna: trabalhos em turnos alternados, o jet lag provocado por voos transmeridionais, trabalho queavança pela noite, tudo isso afeta nosso organismo e seus ritmos temporais. Está claramentedemonstrado que, se esse tipo de desorganização perdura, ocorre maior incidência de doençasgástricas, cardíacas, metabólicas, pior desempenho em tarefas cognitivas e físicas, maior propensão aacidentes, ocorrendo inclusive diminuição da longevidade. A cronobiologia recomenda manter hábitosregulares e, quando não for possível, propõe alguns métodos contra os efeitos negativos, comoacelerar a ressincronização ao novo esquema (com exposição à luz intensa, atividade física emhorários predeterminados). No diagnóstico e terapêutica de doenças, por exemplo,ganha destaque aaplicação da cronobiologia na avaliação da pressão sanguínea, que manifesta um ritmo circadianopreciso. Conhecê­lo é essencial no momento de decidir se o paciente tem pressão alta ou baixa e omedicamento a prescrever. Na terapêutica se sabe que muitos medicamentos vão ter maior ou menoreficiência e efeitos colaterais segundo o horário da administração. Isso tem sido particularmenterelevante na quimioterapia para câncer. Estão surgindo até novas palavras, como cronofarmacologiaou cronoterapêutica, definindo áreas onde o fator tempo no diagnóstico e planejamento do tratamentoé essencial.

Como foi o período em queviveu no Brasil na definiçãode suas pesquisas?Formei­me engenheira

Page 4: Cronobiologia   os ritmos da vida  revista educação

09/05/2016 Cronobiologia ­ os ritmos da vida| Revista Educação

http://revistaeducacao.uol.com.br/textos/0/cronobiologia­os­ritmos­da­vida­241624­1.asp 4/4

Verónica no Laboratório de Cronobiologia de La Rioja (Crilar)

zootecnista na provínciaargentina de Tucumán, masdesenvolvi a maior parte daminha carreira no Brasil, paísque considero minha pátria eonde no transcurso de 13anos formei sólidos vínculostanto profissionais comopessoais (até meu filho ébrasileiro). Fiz mestrado edoutorado em CiênciasBiológicas (Fisiologia) noInstituto de Biologia daUniversidade Estadual deCampinas (Unicamp), sendominha orientadora (e amiga)Elenice de Moraes Ferrari.Fiz parte do doutorado (sanduíche) no Center for Biological Timing: Circadian and Seasonal Rhythms,da Northwestern University, em Illinois, nos EUA, onde trabalhei com duas personalidades muitoinfluentes na área da cronobiologia (Fred Turek e Joseph Takahashi).

Meu pós­doutorado foi com Gilberto Xavier, no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo(USP). E finalmente passei meus últimos três anos brasileiros como pesquisadora visitante em Natal(RN), na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) com John Araújo. Durante meus anosno Brasil tive uma constante interação com especialistas­chaves da cronobiologia brasileira, por meiodo Grupo Multidisciplinar de Desenvolvimento e Ritmos Biológicos da USP, iniciado por Luiz Menna­Barreto, Miriam Márquez, José Cipolla­Neto e Nelson Marques, verdadeiros mestres e pioneiros dacronobiologia latino­americana e aos quais devo minha incursão nessa área da biologia.