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CRÔNICAS DA POLÍTICA FLUMINENSE: A CORRESPONDÊNCIA DE ERNÂNI DO
AMARAL PEIXOTO E A CONSTRUÇÃO DE UMA CULTURA POLÍTICA FLUMINENSE (1937-
1945)
Rafael Navarro Costa
Mestrando em História Social da Cultura pela PUC-Rio
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar de que maneira o interventor federal
do Estado do Rio de Janeiro (Ernâni do Amaral Peixoto) conseguiu arregimentar para seu
grupo político as principais lideranças políticas da região. Para isto, utilizamos como fonte
principal a correspondência ativa e passiva do interventor com os políticos municipais. Através
desta análise, pretendemos demonstrar como era feita a articulação política e de que forma foi
construída a cultura política deste período.
PALAVRAS-CHAVE: Política, Rio de Janeiro, Correspondência
ABSTRACT: The current article has as objective analyze the way whereby the Federal
interventor of the State of Rio de Janeiro (Ernâni do Amaral Peixoto) managed to regiment to
his political group the principal political leaderships of the region. For this, we use as main tool
the active and passive interventor’s correspondence with municipal politicians. Through this
analysis, we intend to demonstrate how the political articulation used to happen and what way
the political period culture has been constructed.
KEYWORDS: Politics, Rio de Janeiro, Correspondence.
Meu caro Agamenom:
Sempre na expectativa de sua vinda, não lhe escrevi há mais tempo, conforme era meu desejo.
Informado, agora, de que aí aguarda a chegada do Presidente, quero pô-lo a par do que o
Valadares e eu vimos fazendo em relação ao problema políticoI
Com estas palavras, Ernâni do Amaral Peixoto, interventor do Estado do Rio de Janeiro
durante todo o Estado Novo, iniciou sua carta destinada a Agamenom Magalhães, interventor
2
de Pernambuco neste mesmo período, escrita em 14 de setembro de 1944, em papel timbrado
do governo fluminense.
O trecho citado é significativo no que diz respeito à função que a correspondência
exercia para os políticos. A troca de idéias e projetos era fundamental para o amadurecimento
das posições que deveriam ser tomadas neste campo. Tendo em vista a necessidade de
sociabilizar suas opiniões, a correspondência funciona como um canal de comunicação que,
através de suas redes de sociabilidade, seria responsável por este processo de
amadurecimento.2
A carta cujo trecho citamos acima é uma conversa entre os interventores fluminense e
pernambucano sobre o futuro político do país. Nesta missiva de Amaral Peixoto, o político
expõe os diálogos que vinham ocorrendo entre Benedito Valadares, Alexandre Marcondes Filho
e ele, sobre qual seria o modelo ideal dos novos projetos de constituição e lei eleitoral. Pela
data desta carta, percebemos que foi escrita já nos últimos momentos do estado Novo.
Portanto, devemos encarar como algo natural o fato destes políticos, a esta altura lideranças
importantes nos seus estados, tratarem abertamente sobre projetos políticos como os da
constituição e da lei eleitoral, visto que a mudança já era iminente neste período. A idéia da
utilização das cartas como um canal de sociabilidade fica mais forte quando lemos a última
parte desta mesma missiva entre os interventores, quando o fluminense pede a opinião do
pernambucano sobre o que lhe havia sido exposto:
[...] Ainda por lei constitucional, poder-se-ia estabelecer o sufrágio direto para a primeira
eleição presidencial, pois, para reunir o colégio eleitoral partindo das eleições diretas para
vereadores e delegados eleitores dos municípios, levaríamos muito tempo, meses até.
Não lhe parece também mais simpática essa idéia e não acha que daria no momento
mais prestígio ao novo governo, que assim fosse constituído? Aguardo sua opinião sobre
o assunto e, principalmente, desejo muito conhecer o projeto de constituição que deve
estar organizando.3
Exatos quinze dias depois, em 29 de setembro, Agamenom Magalhães respondeu ao
interventor fluminense, expondo seu ponto de vista sobre o que lhe havia sido apresentado:
Amaral:
3
Recebi a sua carta e os projetos. [...] Uma coisa, entretanto, me impressionou e não
encontrei explicação. Não compreendo como, simultaneamente com o plebiscito, se
possa fazer eleição dos vereadores e delegados eleitores para as Câmaras. [...] Se
considerarmos o lado político, então, todos os raciocínios, ao meu ver, desaconselham a
precipitação da outorga das constituições estaduais e das eleições, simultaneamente,
com o plebiscito. Vamos examinar o assunto em partes. Realizado o plebiscito temos a
constituição e o Presidente constitucional. Está dado o passo essencial. O Presidente
constitucional terá ano e meio de mandato, após a revogação do estado de guerra. Nesse
período será decretada a lei eleitoral e aberto o alistamento. É a oportunidade para a
formação dos partidos nacionais. Será, então, fixada nesse setor a luta com os nossos
adversários. As correntes nacionais predominantes irão com o nome do Presidente às
urnas. A sua reeleição será imposta por necessidades da política interna e externa.
Temos o precedente Roosevelt, insuspeito para os democráticos de todos os matizes
[...].4
A resposta do interventor nordestino deixa evidente a negociação que estava sendo
traçada pelos mais influentes políticos do período – afirmamos isto devido ao fato de que
Amaral Peixoto, Agamenom Magalhães e Benedito Valadares, este interventor em Minas
Gerais, terem sido os únicos a permanecerem durante os oito anos no cargo. É neste sentido
que pretendemos analisar o arquivo privado de Ernâni do Amaral Peixoto, com a intenção de
mostrarmos como foi possível ao chefe do executivo estadual montar seu grupo político e
consolidar seu domínio na política fluminense.
CRÔNICA, CORRESPONDÊNCIA E A ESCRITA DO TEMPO
Diz-me alguma coisa, que os livros e folhetins desta espécie hão de ser lidos com grande
avidez, lá pelos anos de 1980, e ainda mais tarde, se Deus lhe der vida e saúde. A
história estuda-se em documentos assim, não preparados, mas ingênuos e sinceros; é
deles que se podem sacar a vida e a fisionomia de um tempo.5
4
Ainda em fins do século XIX, Machado de Assis já previa o importante papel que a
crônica desempenharia enquanto gênero literário e também como documento anos depois. O
cronista em questão, classifica tal gênero literário como um documento e sendo capaz de nele
identificarmos a vida e a fisionomia de um tempo. Esta breve citação da obra machadiana nos
leva a refletir sobre a noção de documento e sobre a produção historiográfica. Este último
aspecto, aliás, coloca em questão a discussão sobre a utilização e a validade dos textos
literários enquanto documentos e/ou textos históricos. Seguiremos aqui a linha de pensamento
de que a história não é uma exclusividade dos historiadores. Analisando as crônicas sob a ótica
de serem elas textos literários e documentos históricos, temos não apenas uma historicização
do texto literário, mas também um alargamento da noção de documento. Este movimento
acontece na direção de que passa a ser considerado documento histórico todo aquele que for
capaz de configurar uma realidade social.6
As crônicas possuem características diversas, inclusive no tocante á sua natureza:
podemos delimita-las não só pelo seu corpo textual, mas também pelo seu suporte, por
exemplo. Entretanto, nos reteremos aqui a análise das crônicas enquanto sua função de
documento. Função esta que lhe foi atribuída devido ao fato de retratarem as “imagens de um
tempo social” e as “narrativas do cotidiano”, devidamente construídas pelo cronista, que passa
a ser um narrador da história. Percebemos, então, que as crônicas possuem um sentido de
ordenação social, característica que está diretamente relacionada com a natureza dialógica
destes documentos, uma vez que as crônicas possuem como traço marcante a aproximação
com a realidade e a cumplicidade entre autor e público.7
Passaremos agora para os comentários acerca dos trabalhos com correspondência, afim
criarmos uma aproximação entre estes dois estilos. A escrita epistolar é dotada de traços
peculiares. Como já vimos anteriormente, as cartas são usadas como um espaço de
sociabilidade, no qual existem a troca de idéias, a construção de projetos, pedidos, etc. A
utilização delas como documentos também foi possível com o alargamento desta noção, já que
as cartas passaram a ser vistas como um local para o entendimento dos processos sociais e,
conseqüentemente, uma importante documentação para a investigação e produção histórica. A
utilização de documentos privados, sobretudo de correspondência, emerge com a instauração
do individualismo como uma prática constante na sociedade moderna. As cartas permitem que
tenhamos acesso as representações elaboradas pela pessoa que as escreve (o missivista
assume, ao mesmo tempo, as funções de sujeito e personagem de si mesmo). A
correspondência nos permite associar as práticas sociais à subjetividade deste documento,
5
propiciando uma análise do modo como a realidade social é construída e também a
observação da relação do indivíduo com o seu “eu” e com os demais8. Afirmamos, então, que a
correspondência constitui um “teatro de memórias”, pois os indivíduos passam a construir uma
identidade a partir dos seus documentos.
Tendo em vista estas considerações, podemos dizer que as cartas são, assim como as
crônicas, uma escrita do tempo. As missivas são um canal de comunicação que se destinam ao
diálogo entre o missivista/autor e o receptor/leitor, produzindo uma interatividade e uma
cumplicidade entre os mesmos. Neste sentido, são produções autorais que visam interferir na
realidade, como verificamos nas cartas trocadas por Amaral Peixoto e Agamenom Magalhães,
nas quais está sendo construído um projeto político para o país. Ainda sobre o aspecto de a
escrita epistolar ser um registro do tempo vivido, devemos lembrar que – considerando o
individualismo como um espaço de representação e fragmentação do “eu”, as cartas são
capazes de transmitir as continuidades e descontinuidades da trajetória dos indivíduos e da
sociedade como um todo, “pois são elas que atendem à demanda de uma certa estabilidade e
permanência através do tempo”9.
Partindo do pressuposto de que a correspondência é uma escrita do tempo, assumindo
uma função análoga à das crônicas, trabalharemos com o conjunto das missivas de Ernâni do
Amaral Peixoto como sendo “crônicas singulares”. Esta classificação deve-se ao fato de que se
não são crônicas stricto sensu, refletem o tempo social (no caso, o político) e o cotidiano de
determinada época. Sendo assim, o conjunto de cartas que analisaremos constitui uma série
cronística, que passaremos a delimitar agora.
O PERSONAGEM E SEUS INTERLOCUTORES: A DELIMITAÇÃO DE UMA SÉRIE
CRONÍSTICA NO ARQUIVO ERNÂNI DO AMARAL PEIXOTO
As séries cronísticas podem ser demarcadas tanto pelo autor quanto pelo leitor. No
segundo caso – que é o da nossa série – a delimitação é arbitrária, sendo definida por critérios
estabelecidos pelo leitor/pesquisador. Estabelecemos, então, como critérios para compor esta
série o período no qual foram escritas as missivas, o assunto das mesmas e a quem eram
destinadas.
6
O período compreende os anos entre 1937 e 1945, durante os quais vigorou o Estado
Novo. O assunto das missivas era sempre a política local, com enfoque especial para esta
temática nos municípios fluminenses. O destinatário destas cartas era o interventor federal do
Estado, Ernâni do Amaral Peixoto, que construiu uma extensa rede de sociabilidade através
destas missivas, que possibilitou o controle de toda a política estadual.
É necessária a análise do modo como estão arquivadas nossas fontes. Todo o arquivo de
Ernâni do Amaral Peixoto está depositado no Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV). Esta documentação
está dividida em 12 grupos, e a maioria de acordo com os cargos ocupados pelo político
fluminense durante sua vida pública e outras pela abrangência dos assuntos, conforme seu
caráter (estadual ou nacional). 10
Outro aspecto interessante acerca do arquivo privado deste político diz respeito à
organização da correspondência. As cartas não estão organizadas em um grupo específico, ou
mesmo um subgrupo, encontrando-se espalhadas por todo o acervo, o que indica que não
foram classificadas pela sua natureza de documento. Elas foram anexadas às demais divisões
levando em consideração o assunto que tratavam e, principalmente, a data em que foram
escritas. Este modelo de organização vem reafirmar o alargamento da noção de documento que
havíamos abordado anteriormente, uma vez que documentos privados foram agrupados
juntamente com os chamados documentos oficiais.
Esta divisão dos documentos em grupos nos leva a um ponto característico dos arquivos
privados: a interpenetração entre o que é público e o que é privado. No caso específico de
Amaral Peixoto, esta interpenetração está presente não na disposição das cartas no arquivo,
mas também pelo fato de ser ele uma personalidade pública. Neste aspecto, a prática da
construção do indivíduo a partir dos seus documentos atribui maior relevância a estes arquivos
e documentação privada, pois é “justamente neste espaço privado, que de alguma forma
elimina o público, que avultam em importância as práticas de uma escrita de si”11.
Para delimitar o conjunto de missivas que serão aqui analisadas, as cartas que serão
observadas com minúcia por nós neste trabalho fazem parte, em sua maioria, do grupo de
documentos “interventor”. Assim sendo, o objetivo principal deste trabalho é, a partir desta
documentação, analisar de que forma o interventor conseguiu formar o seu grupo político e
construir o amaralismo no Estado, de forma a transformá-lo em uma cultura política.
A CULTURA POLÍTICA NA CORRESPONDÊNCIA DE ERNÂNI DO AMARAL PEIXOTO
7
A utilização do conceito de cultura política permite pensar explicações e interpretações
sobre o comportamento político de atores individuais e coletivos, sendo necessário
compreender os códigos culturais e as orientações de seus atores conforme seu espaço e
tempo de atuação. Para isto, é importante ressaltar que o conceito de política ganhou maior
amplitude, com sua área de atuação sendo ampliada, inclusive ultrapassando os domínios do
seu próprio campo. As relações de poder são próprias às relações sociais e capazes de
propiciar o entendimento dos sentidos que os grupo atribuem a realidade social de seu tempo.12
Neste sentido, a cultura política será abordada de modo a fornecer instrumentos capazes de
realizar uma análise a respeito da identidade dos grupos na sociedade. Ou seja, utilizaremos a
cultura política como método de análise do grupo amaralista, articulando um modelo
interpretativo de sua rede de sociabilidade e de como esta relação era construída. Desta forma,
a cultura política passa a ser importante para a explicação do comportamento político dos
indivíduos, com destaque para a forma como os valores culturais são componentes internos na
tomada de decisão.
A cultura política é capaz de redimensionar os acontecimentos políticos para a longa
duração, com as ações destes atores inseridos neste tempo mais longo. Apesar de ser
classificada como um “sistema de representação complexo e heterogêneo”, a cultura política
torna possível a compreensão dos variados sentidos que um determinado grupo atribui a uma
realidade social em determinado momento. Nos apropriando da definição de Serge Bernstein,
“a cultura política é um sistema de representações fundado sobre uma determinada visão
de mundo, sobre uma leitura significativa, senão exata, do passado histórico, sobre as
escolhas de um sistema institucional e de uma sociedade ideal, conforme os modelos
retidos, e que se expressa através de um discurso, código de símbolos, de ritos que a
evocam sem que uma outra mediação seja necessária”.13
O processo de socialização possui grande influência no comportamento político, pois o
grau de homogeneidade de um caráter nacional (ou estadual) está relacionado ao controle do
governo sobre os indivíduos e a sociedade. Neste aspecto, se torna relevante pensarmos no
amaralismo como uma cultura política fluminense - vale ressaltar que pode haver mais de uma
cultura política dentro da mesma sociedade, sendo que uma delas será sempre dominante em
8
relação as demais -, uma vez que ao chegar ao estado, encontrou uma situação indefinida no
campo político e conseguiu montar seu grupo e consolidar seu domínio na política fluminense.
No que se refere à metodologia para a aplicação deste conceito de cultura política, o que
nos interessa é a dimensão do pensamento, das idéias e também das ações dos atores
envolvidos neste processo. Para explorarmos estas esferas, as cartas fornecem indícios e/ou
pistas da dinâmica que possibilitou ao interventor a formação do grupo e das condições
necessárias para consolidar o amaralismo como uma cultura política predominante no estado
do Rio de Janeiro.
A NOVA LIDERANÇA E AS DIRETRIZES DA POLÍTICA FLUMINENSE
Com referência ao seu desejo de receber sugestões sobre a administração do
estado, envio-lhe dous velhos artigos meus. São de 1932, sendo que um deles refiro
outro de 1929. Versam sobre o qual tive sempre opinião uniforme.
Veio depois a constituição democrática de 34 e nada haveria que fazer. Como a
nova carta de 37 traça diretrizes muito próximas dos que ali estão enunciados, se o
Estado do Rio tiver de elaborar nova constituição, seria o caso de deixar a faculdade de
adotarem as cidades o sistema técnico de administração pelo city manager, sem torna-
lo, entretanto, obrigatório, principalmente pela falta de selecionamento dos técnicos nas
primeiras épocas.
Mandei buscar o livro do Anhaia Mello sobre o assunto e vou lhe oferecer. Outro
documento interessante é a Carta Municipal Modelo, organizada pela National Municipal
League, dos Estados Unidos, de que tenho um exemplar.
Uma vantagem que vejo para o sistema em causa é que poderá congraçar a
todos: os democratas consideram-no como um aperfeiçoamento da democracia; os
antidemocráticos, como de longa data me prezo de ser, julgam-no a substituição da
mesma. Uns e outros concordam, porém, ser este um sistema que funciona melhor e que
beneficia mais as populações. Este o ponto importante. Só para a politicagem será ele
execrável, simplesmente porque significará a sua morte no foco mais intenso: o
município[...].14
Por esta carta, enviada ao novo interventor em 26/11/1937 por F. Saturnino de Brito Filho,
percebemos a importância deste tipo de documento para a troca de idéias e projetos entre os
9
políticos. No trecho acima citado, observamos que Amaral Peixoto buscava opiniões sobre a
melhor forma para administrar o Rio de Janeiro. Na carta que recebeu de seu “conselheiro”,
notamos que existe a indicação de que o eixo da política deveria ser o município.
De acordo com o missivista, os municípios constituíam-se no nascedouro e no núcleo de
desenvolvimento da política, como percebemos no fim da carta endereçada a Ernâni do Amaral
Peixoto, na qual classifica este espaço como o “foco mais intenso” das disputas políticas. Além
deste fato, Saturnino aponta para a questão do sistema de “valorização” dos municípios ser do
agrado de diferentes grupos políticos, o que poderia facilitar a negociação política no estado.
Não podemos afirmar que esta carta tenha sido decisiva ou um elemento-chave para o
direcionamento que o interventor tomaria em seu governo. Entretanto, Amaral Peixoto construiu
uma forte e eficiente máquina política, que lhe proporcionou uma estabilidade no cargo
alcançada por poucos interventores neste período. Esta máquina política era um tanto quanto
particular, pois neste período não havia a ação dos eleitores, já que se tratava de um período
autoritário. A nomeação dos interventores era feita não somente com base na confiança que o
chefe do executivo nacional depositava nos seus aliados, mas em toda uma análise do
“histórico” destas pessoas. Além destes fatores, seria fundamental para exercer o cargo de
interventor a habilidade nas negociações políticas.
No caso particular do Rio de Janeiro, Amaral Peixoto deveria estabelecer ligações com as
principais lideranças estaduais, que por sua vez colocariam o interventor em contato com os
chefes da política nas municipalidades. Desta forma, a chave para a manutenção desta
máquina seria o sucesso na articulação com as lideranças políticas do estado e dos municípios,
construindo um forte grupo para garantir a estabilidade política de seu governo.
A indicação por parte de Saturnino Brito e a montagem desta engrenagem com seu foco
voltado para as municipalidades não foi uma medida aleatória por parte destes políticos, pois o
Rio de Janeiro já havia passado por experiências como esta que foi proposta – e utilizada –
pelo interventor. Se não podemos dizer que Amaral Peixoto era um “iniciante” na política, é
certo que ele não possuía estreitas ligações com os políticos fluminenses. O início da carreira
política de Amaral Peixoto ocorreu no início da década de 1930, quando filiou-se ao Partido
Autonomista do Distrito Federal (PADF) e participou da administração do prefeito Pedro Ernesto
na cidade do Rio de Janeiro, sendo também ajudante de ordens de Getúlio Vargas a partir de
1933.
Sobre este período inicial, encontramos algumas cartas em seu arquivo pessoal, mais
precisamente no grupo “início da carreira política”. Neste grupo, nos deparamos com cópias de
10
missivas que não eram destinadas a sua pessoa, mas que tinham relação com a política
brasileira, sobretudo no que se refere à Revolta Constitucionalista de 1932 e sobre o “Caso
Mineiro”. Havia uma grande expectativa em torno da divulgação do nome do novo interventor de
Minas Gerais. Chegavam notícias de que havia uma predisposição por parte dos mineiros de
não aceitar alguns nomes que vinham sendo cogitados para o cargo, o que poderia instalar uma
crise política no país. Entretanto, encontramos duas cartas endereçadas ao então ajudante de
ordens do Presidente escritas por Elpídio, em papel timbrado da Força Pública de Minas Gerais,
relatando o seguinte:
Saúde é o que desejo-te em companhia dos teus. Por aqui tudo está na mesma. Diga as
Sr. Presidente que a Força Pública continua sempre coma mesma disciplina, e o
interventor que for nomeado será bem recebido. Não acredite em boatos. Responda-me
urgente.15
A tua saúde e dos teus é o que desejo. Será possível que o Capanema seja nomeado
ministro? Consta isto por aqui. É preciso que os nossos amigos tenham conhecimento
que quando ele se despediu dos comandantes das unidades da F.P., nos falou que a
cousa aí estava muito ruim e devíamos acompanha-lo, que ele iria para onde achasse
mais conveniente, afim de não levar a F.P. para o abismo. Demonstrou mesmo estar
contra o governo. É bom lembrar os nossos amigos que é conveniente mandar alguns
comandantes com reserva – quando nos retiramos do palácio, procurei o chefe do E.M. e
combinamos apoiar o Sr. Presidente Getúlio sem o Capanema, ficando resolvido o nosso
apoio incondicionável, caso recebêssemos alguma ordem contra do Sr. Ditador.
Guarde reserva desta e se for preciso mais esclarecimentos, mande aqui um portador de
confiança. Estou admirado da falta de respostas das minhas cartas! Passa-me que não
tem lhe interessado. 16
As duas cartas enviadas por Elpídio demonstram a ligação que existia entre Peixoto e
Vargas no período anterior ao Estado Novo. Não bastasse esta ligação com o Presidente,
Amaral Peixoto teve o apoio de José Eduardo de Macedo Soares para que tivesse seu nome
confirmado para a interventoria fluminense. Até este momento, Macedo Soares era o grande
articulador da política estadual. Com este poderoso aliado, Amaral Peixoto passou a ganhar
prestígio e respeito no estado. Entretanto, o que era um suporte ao seu governo transformou-
11
se, em 1938, em oposição: o interventor rompe sua aliança com Macedo Soares e boa parte do
grupo que o acompanhava. Com o rompimento, passava a ser cada vez mais importante o
controle do interventor na política municipal, pois ele precisaria construir o seu próprio grupo
político.17
Assim sendo, caberia ao Departamento das Municipalidades um papel fundamental na
aproximação e cooptação dos líderes municipais, já que este órgão era responsável pelo
controle econômico dos municípios. Para chefiar este órgão, o interventor nomeou Mário Alves
da Fonseca, político influente em diversos municípios do estado. O objetivo desta nomeação foi,
portanto, conseguir um importante aliado para seu projeto político e um canal de comunicação
eficaz com as lideranças locais. 18
INTERVENTOR E LÍDERES LOCAIS EM CONTATO: A FORMAÇÃO DO AMARALISMO
Senhores prefeitos
Quando deliberei convocar-vos para esta reunião, estava certo de que ela seria
compreendida na sua exata finalidade administrativa: em vários municípios do estado já
se havia reunido, em várias épocas diferentes, os prefeitos das respectivas zonas, no
propósito de coordenar as suas atividades em face dos problemas que reciprocamente
lhes interessam.
As condições em que se encontram as municipalidades fluminenses, em sua
maioria, indicam a conveniência e, mais do que isso, a necessidade imperiosa dessa
coordenação: são muitas as questões que reclamam solução e inúmeras as
necessidades do seu progresso, mas os recursos disponíveis são parcos e insuficientes.
O entendimento entre os prefeitos, para melhor aplicação destes recursos, torna-se,
dessa forma, rigorosamente indispensável e necessário, e o estado, na sua política de
supervisão das atividades administrativas das prefeituras, cumpre indeclinável dever
promovendo e realizando essa coordenação, que se impõe à vida fluminense como fator
incoercível do seu progresso.
Há muito o que fazer no círculo das administrações municipais, afim de que estas
não só se coloquem ao nível em que se opera a grande obra de reconstrução nacional,
executada sob as inspirações do Estado Novo, como também para que possam acelerar
o ritmo de seu desenvolvimento e mais eficientemente garantir a sua colaboração no
ressurgimento do Estado do Rio.19
12
Por esta carta que Amaral Peixoto enviou aos prefeitos fluminenses, podemos perceber a
importância dos municípios para o interventor. Reuniões como esta não era uma prática
isolada, pois o “comandante”20 dedicava sempre um dia por semana para receber os prefeitos.
Como o documento não foi datado (trata-se, provavelmente, de um rascunho), não podemos
precisar a data em que foi remetido. Entretanto, as páginas que seguem depois da aqui
transcrita, versam sobre os projetos que o interventor tinha para o estado e não faz qualquer
balanço sobre realizações de seu governo. Portanto, é provável que tal carta tenha sido escrita
no início da interventoria.
Nesta missiva notamos a intenção de seu remetente em marcar algumas posições. A
primeira delas é a da necessidade de haver uma coordenação entre as prefeituras, para que
assim fosse possível atender a todas as demandas de cada uma delas. A segunda é o papel do
estado neste momento. Como político articulado que foi, o interventor aponta o estado como
supervisor desta coordenação e da administração, deixando claro que não haveria uma
intervenção dele nos assuntos locais. O terceiro e último ponto que destacaremos é a parte final
desta missiva, no qual ressalta a importância da esfera municipal na reconstrução e
reorganização do estado e também do país. Com esta atitude e posições bem definidas, Amaral
Peixoto visava trazer para seu lado o apoio destes líderes locais, alcançando assim
estabilidade.
Todavia, as reuniões que convocava não eram a única maneira de entrar em contato com
prefeitos e lideranças locais. O interventor recorreu também a realizar constantes viagens ao
interior do estado – tática esta que já havia obtido sucesso na interventoria de Ari Parreiras
(1932-1935), quando o interventor visitou os municípios para fiscalizar as administrações
municipais e negociar apoio para seu governo.21
A escolha dos prefeitos era feita de forma criteriosa. Isto se deve, em grande parte, as
disputas políticas durante o Estado Novo terem se restringido ao âmbito municipal. Devido a
esta peculiaridade do período, havia uma complexidade nas negociações e/ou indicações para
cargos na política municipal, como demonstra a seguinte carta:
Confidencial
Amaral amigo
Conforme nossa palestra de ontem, acabo de receber informações seguras sobre
o Dr. Geraldo Monteiro de Rezende. É um adventício em S. Fidélis, onde foi a cata de
13
emprego. Cunhado do gerente do banco ali, foi – por insistência deste – indicado pelo juiz
para o cargo de delegado, no qual se tem conduzido de maneira reprovável. É da mesma
facção do Bráulio. Anda ostensivamente armado com dois revólveres, como se estivesse
em pleno farwest, e espanca até crianças. Sei também que é protegido do Tenente
Coracy, o qual o inculca por ali como o futuro prefeito. Se você me permitisse a liberdade
de apresentar-lhe alguma sugestão a propósito do caso de minha infeliz terra, eu indicaria
alguns nomes de homens honestos e capazes, filhos dedicados de São Fidélis, que muito
poderiam auxiliar a sua administração no trabalho benemérito de sanear a vida política e
administrativa do estado do Rio. São eles: Sady Clerier, inspetor das municipalidades;
Olavo Alves Cirino, fazendeiro e proprietário; Gualter Dutra Fernandes, contador e
proprietário e Raul Oscar Veiga, advogado, culto e trabalhador, meu tio, que está
afastado da politicalha local e conhece bem os problemas e as necessidades do
município. Aí tem você, meu bom amigo, os nomes capazes de promoverem a
tranqüilidade e o progresso da minha terra, engrandecendo e honrando ao mesmo tempo
o governo de justiça, serenidade e larga visão com que você vem fazendo a felicidade do
nosso Estado [...]. 22
Analisando o trecho citado, observamos que o interventor havia pedido ao remetente
desta carta (Aguinaldo) informações sobre um possível candidato a cargo político em São
Fidélis. Na carta, Aguinaldo não só informa tudo que conseguiu reunir sobre o Dr. Geraldo
Monteiro de Rezende: percebendo o quadro negativo acerca do investigado, passa a indicar
nomes para ocuparem o cargo. Este era apenas o início do processo, pois após a coleta de
informações, os que fossem aprovados seriam submetidos a uma “sabatina” com os secretários
do governo estadual e com o próprio Amaral Peixoto. Esta prática era utilizada também para
verificar se era viável ou não a manutenção do prefeito no poder.23 Podemos dizer, então, que
para manter o controle das municipalidades as reuniões com os prefeitos, as viagens ao interior
e as “entrevistas” realizadas com pretendentes a ingressar na administração municipal ou na
manutenção eram as principais medidas adotadas pelo interventor fluminense.
A adoção de tão rigoroso modelo é, certamente, a explicação para a intensa rotatividade
de políticos nas prefeituras. Dos 51 municípios, apenas 11 deles mantiveram seus prefeitos por
todo o período da interventoria Amaral Peixoto. Esta constante substituição foi a melhor
maneira encontrada pelas lideranças estaduais para manter os municípios alinhados com o
estado.
14
O CLIENTELISMO NO ESTADO NOVO E A NEGOCIAÇÃO POLÍTICA ATRAVÉS DA
CORRESPONDÊNCIA DO INTERVENTOR
Os contatos pessoais do interventor com os principais líderes políticos municipais,
visando a montagem do seu grupo político, foram um meio encontrado pelo comandante para
não ficar dependente de qualquer corrente política. Para assegurar o apoio destes chefes (não
somente os prefeitos, mas todas as lideranças que possuíam influência nas localidades),
Amaral utilizou-se de práticas clientelísticas, como nos indicam as seguintes cartas:
Estamos muito reconhecidos por sua intervenção em favor do nosso filho. Saudações
Silvio Bastos Tavares e Senhora24
Meu prezado amigo comandante Amaral Peixoto. Abraços
Retardei estas linhas. O que eu queria era voltar aí, afim de pessoalmente levar-lhe meus
sinceros e melhores agradecimentos pelo justo aproveitamento do querido amigo e
distinto colega Sr. Adamastor Dias de Pinho. Sua nomeação para promotor adjunto de
Duas Barras foi um grande favor que você me fez.
M. Paulo Filho25
Podemos perceber por estas duas cartas que as práticas clientelísticas adotadas pelo
interventor diziam respeito, principalmente, a concessão de cargos políticos. Uma outra vertente
desta prática, também muito freqüente pelo número de missivas que encontramos sobre este
tema no arquivo Ernâni do Amaral Peixoto, é a concessão de licenças para instalação de
fábricas e/ou de isenção total ou parcial de impostos visto que muitos líderes locais eram
usineiros. Agindo desta maneira, o interventor conseguia se articular com as principais chefias
dos municípios fluminenses através das benesses e favores dispensados a eles.
Nesta missiva que transcreveremos abaixo, datada de 20 de fevereiro de 1940, teremos a
exata dimensão de quão complexa era a política municipal neste período:
Meu caro amigo e interventor
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Há tempo que venho sendo assediado por amigos residentes em
Mangaratiba para conseguir a substituição do atual prefeito, Sr. José Alves de Souza e
Silva, que no consenso geral não está a altura do cargo.
Não o procurei a mais tempo tratar deste assunto porque não havia uma
acusação formal e categórica, apesar de eu ter pessoalmente assistido atos pouco
abonadores para uma autoridade [...]. Dentro de poucos dias estarei residindo
definitivamente em Mangaratiba e, para mim, seria bastante desagradável ter como
autoridade a quem devo respeito esse sr. que não me tolera, por eu ter levado a
Mangaratiba o genro do chefe do governo e o sogro da filha do chefe do governo, e não
os ter apresentado a ele.
Há graves acusações entre os moradores de Mangaratiba contra o seu prefeito, e
estou certo de que se mandasse pessoa de sua confiança fazer um inquérito, aparecerá
muita verdade [...]. 26
O remetente desta carta é Valdemar Corrêa, e através dela abordaremos alguns pontos
importantes da política neste período. Notamos, primeiramente, que o missivista iniciou sua
carta dando a entender que a enviara em nome de um grupo de pessoas descontentes com o
prefeito de Mangaratiba, que lhe cobravam alguma medida à respeito. Este fato nos faz pensar
que Valdemar Corrêa era uma personalidade conhecida no município e que desfrutava de
algum prestígio no meio político. Entretanto, este caráter “público” de seu pedido logo deixa de
ser o principal viés da missiva. Logo depois de fazer esta queixa dos moradores de
Mangaratiba, o autor passa a apontar motivações pessoais para criticar o prefeito José Alves de
Souza e Silva, fazendo com que a política assumisse um caráter personalista. Por fim, ao
encerrar sua carta, Valdemar volta a falar em nome dos moradores da região e pede a
instauração de um inquérito para que fossem apuradas as irregularidades que denunciou ao
interventor. Notamos que as denúncias ou pedidos de substituição dos prefeitos podem
incorporar não só os fatos políticos, mas os de âmbito pessoal, o que dificulta a ação do
governo estadual e faz necessária a negociação em todas as frentes nos municípios. Outras
duas cartas podem também ser citadas aqui, ratificando estes elementos:
Exmo. Snr.
Há dias levei ao conhecimento de V. Excia., por intermédio dos meus amigos,
vossos dignos auxiliares, Dr. Mario Aloísio Cardoso Miranda e Mario Criciúma Paranhos
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o que se passa com o governo municipal. Sei que o prefeito, com o Dr. Walter, fizeram
um relatório muito bonito, justificando e desfazendo o que eu disse e reafirmo aqui [...].
Em S. Fidelis V. Excia. verificou irregularidades do prefeito, aqui não tem nada mal feito
porque ele não fez e não faz nada. Só o que faz é cobrar imposto. [...] Não ouça V. Excia
relatórios, porém, mande verificar. 27
A carta, assinada por Jorcelino Lemgruber Portugal, diz respeito à administração do
prefeito de Petrópolis. Assim como na missiva anterior, existe a reclamação veemente por parte
do remetente de irregularidades do prefeito e o pedido para que fossem verificadas. Entretanto,
observamos que o modo de tratamento dado ao interventor é diferente, o que pode nos indicar
a proximidade que o primeiro possuía com Amaral Peixoto e o segundo mantinha uma relação
distante, executada apenas quando estritamente necessária. Esta diferença na relação com o
interventor é uma das explicações para o fato do primeiro missivista (Valdemar Corrêa) ter
utilizado divergências pessoais em suas reclamações, no intento de tentar convence-lo que a
mudança do prefeito se fazia necessária.
As reclamações também poderiam aparecer de forma sutil, como na carta enviada por
Ruy de Almeida ao interventor, quando ao elogiar o prefeito de Piraí, fez o seguinte comentário
sobre o município em que desenvolvia suas atividades:
[...] como filho de Pádua, com interesses de toda a ordem ligados a este município do
Norte Fluminense, espero que o honrado interventor e prezado amigo dará a minha
cidade, quando possível, prefeito semelhante ao que tem, felizmente, Piraí.28
Mas as cartas não tratavam simplesmente de reclamações e negociações em torno da
política municipal. Servia também como instrumento para alertar o interventor de possíveis
problemas na política estadual e municipal, mantendo-o informado sobre o cotidiano da política
no Rio de Janeiro, como demonstram as seguintes missivas:
Senhor interventor
Tenho a honra de remeter a Vossa excelência, incluso, o relato completo dos
acontecimentos ocorridos na noite de 11 para 12 do corrente, nesta cidade.
Aproveitando o ensejo, reafirmo os meus protestos de solidariedade e os meus
sentimentos de estima e consideração.
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Atenciosas saudações
O Prefeito, Oswaldo Terra 29
Meu caro Ernâni
Lastimo ter de lhe transmitir notícias tão desagradáveis [...]. O assunto é complexo e na
rapidez de um bilhete não me é possível esclarece-lo devidamente, o que, no
entretanto, poderá ser feito pelo Eugênio, com quem conversei pessoalmente. Trata-se,
como você verá, de um fato grave, cujos resultados poderão ser funestos, arrastando o
seu governo a uma situação (Deus que me perdoe) idêntica ao governo do Almirante
[...]. 30
A primeira missiva foi enviada pelo prefeito de Valença, noticiando que o município
havia sido “alvo” de levantes integralistas. Juntamente com este telegrama, o prefeito enviou
um relatório completo da situação política no local, informando ainda que integrantes do
movimento integralista de Barra do Piraí tinham auxiliado os participantes de Valença no
levante. Dessa forma, o interventor ficava sabendo de todos os passos dados pelos políticos
locais, estando preparado para as diferentes situações que encontraria em cada um dos
municípios.
Na segunda, o missivista, que assina apenas Juraci, informa ao interventor, porém sem
a riqueza de detalhes, que estavam se formando possíveis articulações contra seu governo.
Apesar da informação ter sido omitida, podemos através de alguns dados importantes da carta
tentar identificar sobre o que se tratava. Quando escreve “arrastando o seu governo a uma
situação (Deus que me perdoe) idêntica ao governo do Almirante”, o remetente está se
referindo ao governo do almirante Protógenes Guimarães. Durante seu governo (1935-1937),
Protógenes implementou o plano de pacificação política no estado, que consistia no fim das
disputas político-partidárias na Assembléia Legislativa. Entretanto, o governador esqueceu-se
das municipalidades, que eram o grande alvo das discussões na Assembléia durante a
pacificação política. Com o fim deste plano em 1936, as municipalidades continuaram a ser
alvo dos discursos dos parlamentares e as disputas políticas nesta esfera aumentaram
demasiadamente, gerando completo descontrole da política por parte do governo, que
mergulhou em uma profunda crise, que terminou apenas com a implementação do Estado
Novo e a nomeação de Amaral Peixoto para a interventoria.31 Partindo deste pressuposto, é
provável que existisse um foco de lideranças municipais, contrárias à política que vinha sendo
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implementada por Peixoto, insatisfeitas com a situação em que se encontravam e que
organizavam alguma resistência ao seu governo, o que poderia levar a instalação de grave
crise política no Rio de Janeiro.
Deste modo, observamos como as cartas eram importantes nas negociações políticas
durante este período e de como eram utilizadas para que o interventor pudesse exercer o
maior controle possível na política estadual.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos afirmar que a formação do amaralismo no Rio de Janeiro teve como suporte
as municipalidades. Foi na esfera municipal que Ernâni do Amaral Peixoto conseguiu
arregimentar para seu grupo político grande contingente de políticos, que possibilitou a
formação de seu extenso grupo. O passo decisivo dado pelo “comandante” foi o de negociar
não só com os prefeitos, mas de incluir nas suas fileiras o maior número de lideranças locais e
influentes. Assim sendo, Amaral estava livre de ter em cargos importantes adversários
políticos, mesmo depois do rompimento com José Eduardo de Macedo Soares. Vimos também
que as práticas clientelísticas permaneceram na política fluminense por bastante tempo, sendo
através da concessão de cargos e benesses uma das formas mais eficazes de cooptação de
aliados.
A formação e consolidação do amaralismo e a sua transformação em uma cultura
política fluminense, mantendo este domínio até a fusão do Rio de Janeiro com a cidade-capital,
baseou-se, portanto, em uma política realizada com fortes inserções nos municípios, sobre os
quais o interventor controlava através de concessões políticas e econômicas.
Podemos dizer ainda que o projeto político da interventoria Amaral Peixoto de
sedimentar um bloco político foi bem sucedido, uma vez que ele se manteve estável durante
todo o Estado Novo no seu cargo e, posteriormente, com a democratização do país, comandou
a formação do PSD no Rio de Janeiro. Sob sua liderança, o PSD conseguiu manter-se no
poder por quase duas décadas. As inúmeras cartas de apoio de políticos locais que
encontramos em seu arquivo que datam do período de instalação deste partido nos dá a
perfeita noção do sucesso deste projeto desenvolvido pelo comandante nos oito anos de
interventoria.
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Se a definição de cultura política a classifica como um “sistema de representações
fundado sobre uma determinada visão de mundo”, definitivamente, a visão de mundo da
política fluminense era a visão do amaralismo e, posteriormente, do pessedismo.
I Carta de Amaral Peixoto a Agamenom Magalhães, em 14/09/1944. Arquivo Agamenom Magalhães, AGM c 44.09.14, rolo 3, fot. 71. 2 Entendemos a sociabilidade como uma forma autônoma de associação, sendo o suporte social das formas modernas de politização. Através da sensibilidade ideológica é possível produzir uma rede de sociabilidade dos políticos. Estas redes acabam por formar micro-sociedades que podem ser definidas tanto pela concordância com o grupo no qual está inserido, ou pela discordância com os demais grupos. No caso da rede de sociabilidade formada ao redor de Amaral Peixoto, o elemento aglutinador era a posição que ele ocupava no estado e o que poderia oferecer àqueles que ingressassem e se mantivessem no seu grupo. 3 Carta de Amaral Peixoto a Agamenom Magalhães, em 14/09/1944. Arquivo Agamenom Magalhães, AGM c 44.09.14, rolo 3, fot. 71. 4 Carta de Agamenom Magalhães a Amaral Peixoto, em 29/09/1944. Arquivo Agamenom Magalhães, AGM c 44.09.29, rolo 3, fot. 78. 5 ASSIS, Machado de. Balas de estalo. Gazeta de notícias, 22 de março de 1886. Apud. Leonardo Affonso de Miranda; Margarida de Souza Neves; Sidney Chalhoub (orgs.). História em cousas miúdas: capítulos de história social da crônica no Brasil. Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP, 2005. 6 PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda e CHALHOUB, Sidney. “Apresentação”. In: A História contada – capítulos de história social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 7 CÂNDIDO, Antônio et. al. A Crônica. O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992. 8 GONTIJO, Rebeca. “História, cultura, política e sociabilidade intelectual”. In: Rachel Soihet, Maria Fernanda Baptista Bicalho, Maria de Fátima Silva Gouvêa (orgs.). Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005. 9 GOMES, Angela de Castro. “Escrita de si, escrita da história: a título de prólogo”. In: Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. p. 13. 10 O arquivo Ernâni do Amaral Peixoto está subdividido nos seguintes grupos: Assuntos Nacionais (AN), Diversos (DIV), Embaixador (EMB), Estado do Rio de Janeiro (ERJ), Governador (GOV), Início da Carreira Política (ICP), interventor (INT), ministro da reforma administrativa (RA), ministro do tribunal de contas da união (TCU), Partido Democrático Social (PDS), Partido Social Democrático Nacional (PSD-N), Partido Social Democrático Regional (PSD-R). A partir de agora, quando citarmos o arquivo de Ernâni Amaral Peixoto como referência, utilizaremos tão somente a sigla EAP, acompanhada da sigla de seu grupo e o número de série do documento. Por exemplo: EAP INT 1942.05.23. 11 Ibid., p. 9. 12 GOMES, Angela de Castro. “História, historiografia e cultura política no Brasil”. In: Rachel Soihet, Maria Fernanda Baptista Bicalho, Maria de Fátima Silva Gouvêa (orgs.). Op. Cit. 13 BERNSTEIN, Serge. “L’historien et la culture politique”. Vingtieme Siecle – Revue d’Histoire, nº 35, 1992, p. 71. Apud. Marcelo de Souza Magalhães. “Repensando cultura e política no início da República: existe uma cultura política carioca?”. In: Rachel Soihet, Maria Fernanda Baptista Bicalho, Maria de Fátima Silva Gouvêa (orgs.). Op. Cit. p. 295 14 Carta de F. Saturnino de Brito Filho a Ernâni do Amaral Peixoto, em 26/11/1937. EAP INT 37.11.23 15 Carta de Elpídio a Ernâni do Amaral Peixoto, em 28/10/1933. EAP ICP 33.10.28
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16 Carta de Elpídio à Ernâni do Amaral Peixoto, em 20/01/1934. EAP ICP 33.10.28 17 CAMARGO, Aspásia (org.). Artes da política: diálogo com Ernâni do Amaral Peixoto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. 18 CASTRO, Silvia Regina Pantoja Serra de. Amaralismo e pessedismo fluminense: o PSD de Amaral Peixoto. Tese de doutoramento apresentada ao programa de pós-graduação em história da Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1995. 19 EAP INT 37.11.23. Não consta a data em que foi remetida ou escrita. 20 Amaral Peixoto ganhou o apelido de comandante pela sua patente na Marinha brasileira. 21 Durante os anos de 1932 e 1935, governou o estado do Rio de Janeiro Ari Parreiras, como interventor federal. Antes de assumir, três outros interventores passaram pelo cargo sem muito sucesso, pois não conseguiram controlar a política municipal no estado. Ao assumir, Parreiras realizou um extenso cronograma de viagens aos municípios fluminenses. Nestas viagens, participava de reuniões não só com os prefeitos dos municípios, mas com todas as principais lideranças das localidades pelas quais passava. Realizando estas reuniões, as oligarquias locais sentiam-se como parte integrante da política e as disputas eram amenizadas, fazendo com que seu governo alcançasse a estabilidade necessária. Ver COSTA, Rafael Navarro. A política fluminense no pós-30: uma análise da interventoria Ari Parreiras e do governo Protógenes Guimarães (1932-1937). Monografia apresentada ao curso de Licenciatura Plena em História da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. São Gonçalo, 2005. 22 Carta, assinada por Aguinaldo, a Amaral Peixoto, em 09/03/1940. EAP INT 37.11.23 23 Aspásia Camargo. Op. cit. 24 Telegrama de Silvio Bastos Tavares a Ernâni do Amaral Peixoto, s/d. EAP INT 37.11.23 25 Carta de M. Paulo Filho a Ernâni do Amaral Peixoto, em 10/12/1939. EAP INT 37.11.23 26 Carta de Valdemar Corrêa a Ernâni do Amaral Peixoto, em 20/02/1940. EAP INT 37.11.23 27 Carta de Jorcelino Lemgruber Portugal a Amaral Peixoto, em 06/03/1940. EAP INT 37.11.23 28 Carta de Ruy de Almeida a Ernâni do Amaral Peixoto, em 07/02/1941. EAP INT 37.11.23 29 Carta de Oswaldo Terra a Ernâni do Amaral Peixoto, em 18/05/1938. EAP INT 37.11.23 30 Carta de Juraci a Ernâni do Amaral Peixoto, s/d. EAP INT 37.11.23 31 Cf. Rafael Navarro Costa, Op. Cit.
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