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Jorge de S Professor da Universidade Federal Fluminense A CRNICA

6a EDIO (5o impresso)

Muito especialmente para aqueles que me fazem acreditar na vida: Marcelo Rodrigo e Renato de S E tambm Ceclia de Lara. Lcia Jurema Figueira e Maria Clara Pellegrino.

Direo Samira Youssef Campedelli Benjamin Abdala Junior

Preparao de texto Jos Pessoa do Figueiredo Sueli Campopiano

Projeto grfico/miolo Antnio do Amaral Rocha

Arte-final Ren Etiene Ardanuy

Joseval de Souza Fernandes

Capa Ary Almeida Normanha

ISBN 85 08 01820 7

2005

Todos os direitos reservados pela Editora tica Rua Baro de Iguape, 110 CEP 01507-900 Caixa Postal 2937 CEP 01065-970 So Paulo SP Tel.: 0XX 11 3346-3000 Fax: 0XX 11 3277-4146 Internet: http://www.atica.com.br e-mail: [email protected]

Sumrio 1. Uma definio________________________________________5 O primeiro cronista________________________________________________5

Um narrador reprter registra o circunstancial___________________________7 Do folhetim crnica atual__________________________________________8 Um gnero jornalstico____________________________________________10 2. Rubem Braga: o espio da vida_________________________12 A verdade da crnica o instante____________________________________12 A linhagem dos Braga_____________________________________________14 O espao da casa_________________________________________________16 O espao do texto________________________________________________17 Dos jornais ao livro_______________________________________________18 3. Fernando Sabino: o encontro marcado com a crnica________21 Os assuntos que merecem uma crnica________________________________21 O pitoresco______________________________________________________23 A construo dos tipos_____________________________________________24 A ambigidade do gnero__________________________________________25 Um encontro marcado_____________________________________________28 4. Srgio Porto: o cotidiano visto com o humor de Stanislaw Ponte Preta_____________________________________________30 A irreverncia dos escritos levianos__________________________________30 A funo potica da linguagem jornalstica____________________________32 Um coloquialismo bem carioca______________________________________33 Um raro criador de tipos___________________________________________35 A leveza do humor________________________________________________36 5. Loureno Diafria: o humor dos gatos pardos______________38 O cronista deve prestar ateno ao banal_______________________________38 Os gatos pardos da noite___________________________________________40 Os outros gatos__________________________________________________41 Em tom de fbula_________________________________________________43 A paixo urbana__________________________________________________45

6. Paulo Mendes Campos: a linguagem potica______________48 O sentido da poesia_______________________________________________48 A fuso dos contrrios na comunho potica___________________________50 A poesia dos elementos ausentes_____________________________________51 Nostalgia do paraso______________________________________________53 A funo do jornal. E da crnica tambm______________________________55 7. Carlos Heitor Cony: o lirismo como refIexo_______________57 O lirismo caracterstico____________________________________________57 A ficcionalizao das pessoas reais___________________________________59 A nostalgia da infncia____________________________________________61 Pr-do-sol de um padro esttico____________________________________62 Reflexo sobre o amor e a morte_____________________________________63 8. Carlos Drummond de Andrade: o cronista do Rio___________65 O cronista-poeta__________________________________________________65 O objeto preservado_______________________________________________68 Uma seo carioca________________________________________________69 9. Vincius de Moraes: o exerccio do cotidiano_______________73 O poeta define a crnica___________________________________________73 A ausncia de regionalismos________________________________________76 10. Alm do consumo imediato___________________________78 Leitura crtica de uma crnica_______________________________________78 Um mtodo de leitura_____________________________________________81 Uma circunstncia muito especial_________________________________81 A crnica no contexto do livro____________________________________83 Concluses______________________________________________________85 11. Vocabulrio crtico__________________________________88 12. Bibliografia comentada_______________________________91

Fundamentao terica (bsica)_____________________________________91 Antologias de crnicas_____________________________________________93

1 Uma definio O primeiro cronista

A carta de Pero Vaz de Caminha a el-rei D. Manuel assinala o momento em que, pela primeira vez, a paisagem brasileira desperta o entusiasmo de um cronista, oferecendo-lhe a matria para o texto que seria considerado a nossa certido de nascimento. Se a carta inaugura o nosso processo literrio bastante discutvel, mas sua importncia histrica e sua presena constante at mesmo nos modernos poemas e narrativas parodsticos atestam que, pelo menos, ela um comeo de estruturao. o marco inicial de uma busca que, inevitavelmente, comearia na linguagem dos descobridores que chegavam Terra de Vera Cruz, at que um natural dos trpicos fosse capaz de pensar a realidade brasileira pelo ngulo brasileiro, recriando-a atravs de uma linguagem livre dos padres lusitanos. Indiscutvel, porm, que o texto de Caminha criao de um cronista no melhor sentido literrio do termo, pois ele recria com engenho e arte tudo o que ele registra no contato direto com os ndios e seus costumes, naquele instante de confronto entre a cultura europia e a cultura [pg. 05] primitiva. No gratuitamente, portanto, que ele conta a el-rei detalhes aparentemente insignificantes, tais como: (...) E daqui mandou o Capito a Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em terra e levassem aqueles dois homens e os deixassem ir com seu arco e setas. Aos quais mandou dar a cada um uma camisa nova, uma carapua vermelha e um rosrio de contas brancas de osso, que eles levaram nos braos, e cascavis e campainhas. E mandou com eles para ficar ia um mancebo degredado, criado de D. Joo Tolo, a quem chamam Afonso Ribeiro, para andar l com eles o saber de sou viver e maneiras. E a mim mandou que tosse com Nicolau Coelho. (CAMINHA. Pero Vaz de. Carta a El Rey Dom Manuel. Apresentao de Rubem Braga. Rio de Janeiro, Record, 1981. p. 25-6.) Seu relato , assim, fiel s circunstncias, onde todos os elementos se tornam decisivos para que o texto transforme a pluralidade dos retalhos em uma unidade bastante significativa. Dessa forma, por mais que ele tenha afirmado, no incio da nova de adiamento, que, para o bem contar e falar, o saiba pior que todos fazer, percebemos que tem conscincia da possibilidade de aformosear ou afear uma narrativa, sem esquecer que a experincia vivida que a torna mais intensa. Da o cuidado em reafirmar que ele escreve aps ter ido a

terra para andar l com eles e saber de seu viver e maneiras: a observao direta o ponto de partida para que o narrador possa registrar os fatos de tal maneira que mesmo os mais efmeros ganhem uma certa concretude. Essa concretude lhes assegura a permanncia, impedindo que caiam no esquecimento, e lembra aos leitores que a realidade conforme a conhecemos, ou como e recriada pela arte e feita de pequenos lances. Estabelecendo essa estratgia, Caminha estabeleceu tambm o princpio bsico da crnica: registrar o circunstancial. [pg. 06] A histria da nossa literatura se inicia, pois, com a circunstncia de um descobrimento: oficialmente, a Literatura Brasileira nasceu da crnica.

Um narrador-reprter registra o circunstancial

Desde o achamento da carta de Caminha na Torre do Tombo em 1773 por Seabra da Silva at os dias atuais, a literatura brasileira passou por vrias etapas, percorrendo os caminhos de um processo que procurava, como ponto principal, alcanar o abrasileiramento das nossas letras. Seja pela linguagem, pela sintaxe, pela variedade de poticas, ou principalmente pela dessacralizao dos lemas sagrados e consagrados, a literatura conseguiu encontrar-se com a sua inimiga tradicional: a vida mundana. Entretanto no conseguiu ainda livrar-se de certos preconceitos que fazem algumas pessoas acreditarem que escrever um romance bem mais difcil do que escrever um conto ou um poema. Alm disso, muitos pensam que narrativa curta sinnimo de conto, perdendo de vista os gneros que, por tradio ruim, continuam a margem da nobreza. Acontece que o conto tem uma densidade especfica, centrando-se na exemplaridade de um instante da condio humana, sem que essa exemplaridade se refira a valorao moral, j que uma grande mazela pode muito bem exemplificar uma das nossas faces. A crnica no tem essa caracterstica. Perdendo a extenso da carta de Caminha, conservou a marca de registro circunstancial feito por um narrador-reprter que relata um fato no mais a um s receptor privilegiado como elrei D. Manuel, porm a muitos leitores que formam um pblico determinado. Mas que pblico esse? Sendo a crnica uma soma de jornalismo e literatura (da a imagem do narrador- [pg. 07] reprter, dirige-se a uma classe que tem preferncia pelo jornal em que ela publicada (s depois que ir ou no integrar uma coletnea, geralmente organizada pelo prprio cronista), o que significa uma espcie de censura ou, pelo menos, de limitao: a ideologia do veculo corresponde ao interesse dos seus consumidores, direcionados pelos proprietrios do peridico e/ou pelos editores-chefes de redao. Ocorre ainda o limite de espao, uma vez que a pgina comporta vrias matrias, o que impe a cada uma delas um nmero restrito de laudas, obrigando o redator a explorar da maneira mais econmica possvel o pequeno espao de que dispe. dessa economia que nasce sua riqueza estrutural.

Do folhetim crnica atual

No tempo de Paulo Barreto (1881-1921), por exemplo, era apenas uma seo quase que informativa, um rodap onde eram publicados pequenos contos, pequenos artigos, ensaios breves, poemas em prosa, tudo, enfim, que pudesse informar os leitores sobre os acontecimentos daquele dia ou daquela semana, recebendo o nome de folhetim. Acontece que Paulo Barreto percebeu que a modernizao da cidade exigia uma mudana de comportamento daqueles que escreviam a sua histria diria. Em vez de permanecer na redao espera de um informe para ser transformado em reportagem, o famoso autor de As religies no Rio ia ao local dos fatos para melhor investigar e assim dar mais vida ao seu prprio texto: subindo morros, freqentando lugares refinados e tambm a fina flor da malandragem carioca, Joo do Rio (seu pseudnimo mais conhecido) construiu uma nova sintaxe, impondo a seus contemporneos uma outra maneira de vivenciar a profisso de jornalista. Mudando o enfoque, [pg. 08] mudaria tambm a linguagem e a prpria estrutura folhetinesca. Com essa modificao, Joo do Rio consagrou-se como o cronista mundano por excelncia, dando crnica uma roupagem mais literria, que, tempos depois, ser enriquecida por Rubem Braga: em vez do simples registro formal, o comentrio de acontecimentos que tanto poderiam ser do conhecimento pblico como apenas do imaginrio do cronista, tudo examinado pelo ngulo subjetivo da interpretao, ou melhor, pelo ngulo da recriao do real. Joo do Rio chegava mesmo a inventar personagens, como o Prncipe de Belfort, e dava a seus relatos um toque ficcional. Com isso ele tambm prenunciou que a crnica e o conto acabariam em fronteiras muito prximas. Sua linha divisria s vezes, bastante tnue a densidade. Enquanto o contista mergulha de ponta-cabea na construo do personagem, do tempo, do espao e da atmosfera que daro fora ao fato exemplar, o cronista age de maneira mais solta, dando a impresso de que pretende apenas ficar na superfcie de seus prprios comentrios, sem ter sequer a preocupao de colocar-se na pele de um narrador, que , principalmente, personagem ficcional (como acontece nos contos, novelas e romances). Assim, quem narra uma crnica o seu autor mesmo, e tudo o que ele diz parece ter acontecido de fato, como se ns, leitores, estivssemos diante de uma reportagem. Ocorre, porm, que at as reportagens quando escritas por um jornalista de flego exploram a funo potica da linguagem, bem como o silncio em que se escondem as verdadeiras significaes daquilo que foi verbalizado. Na crnica, embora no haja a densidade do conto, existe a liberdade do cronista. Ele pode transmitir a aparncia de superficialidade para desenvolver o seu tema, o que tambm acontece como se fosse por acaso. No entanto o escritor sabe que esse acaso no funciona *pg. 09+ na construo de um texto literrio (e a crnica tambm literatura), pois o artista que deseje cumprir sua funo primordial de antena do seu povo, captando tudo aquilo que ns outros no estamos aparelhados para depreender, ter que explorar as potencialidades da lngua, buscando uma construo frasal que provoque significaes vrias (mas no gratuitas ou ocasionais), descortinando para o pblico uma paisagem at ento obscurecida ou ignorada por completo.

Um gnero jornalstico

A aparncia de simplicidade, portanto, no quer dizer desconhecimento tias artimanhas artsticas. Ela decorre do fato de que a crnica surge primeiro no jornal, herdando a sua precariedade, esse seu lado efmero de quem nasce no comeo de uma leitura e morre antes que se acabe o dia, no instante em que o leitor transforma as pginas em papel de embrulho, ou guarda os recortes que mais lhe interessam num arquivo pessoal. O jornal, portanto, nasce, envelhece e morre a cada 24 horas. Nesse contexto, a crnica tambm assume essa transitoriedade, dirigindo-se inicialmente a leitores apressados, que lem nos pequenos intervalos da luta diria, no transporte ou no raro momento de trgua que a televiso lhes permite. Sua elaborao tambm se prende a essa urgncia: o cronista dispe de pouco tempo para datilografar o seu texto, criando-o, muitas vezes, na sala enfumaada de uma redao. Mesmo quando trabalha no conforto e no silncio de sua casa, ele premido pela correria com que se faz um jornal, o que acontece mesmo com os suplementos semanais, sempre diagramados com certa antecedncia. A pressa de escrever, junta-se a de viver. Os acontecimentos so extremamente rpidos, e o cronista precisa [pg. 10] de um ritmo gil para poder acompanh-los. Por isso a sua sintaxe lembra alguma coisa desestruturada, solta, mais prxima da conversa entre dois amigos do que propriamente do texto escrito. Dessa forma, h uma proximidade maior entre as normas da lngua escrita e da oralidade, sem que o narrador caia no equvoco de compor frases frouxas, sem a magicidade da elaborao, pois ele no perde de vista o fato de que o real no meramente copiado, mas recriado. O coloquialismo, portanto, deixa de ser a transcrio exata de uma frase ouvida na rua, para ser a elaborao de um dilogo entre o cronista e o leitor, a partir do qual a aparncia simplria ganha sua dimenso exata. O dialogismo, assim, equilibra o coloquial e o literrio, permitindo que o lado espontneo e sensvel permanea como o elemento provocador de outras vises do tema e subtemas que esto sendo tratados numa determinada crnica, tal como acontece em nossas conversas dirias e em nossas reflexes, quando tambm conversamos com um interlocutor que nada mais do que o nosso outro lado, nossa outra metade, sempre numa determinada circunstncia. Mas no circunstncia naquele sentido de um escritor que, embora no seja jornalista, precisa sobreviver e ganha dinheiro publicando crnicas em jornais e revistas: o termo assume aqui o sentido especfico de pequeno acontecimento do dia-a-dia, que poderia passar despercebido ou relegado marginalidade por ser considerado insignificante. Com o seu toque de lirismo reflexivo, o cronista capta esse instante brevssimo que tambm faz parte da condio humana e lhe confere (ou lhe devolve) a dignidade de um ncleo estruturante de outros ncleos, transformando a simples situao no dilogo sobre a complexidade das nossas dores e alegrias. Somente nesse sentido crtico que nos interessa o lado circunstancial da vida. E da literatura tambm. [pg. 11]

2 Rubem Braga:

o espio da vida A verdade da crnica o instante

Essencialmente cronista, Rubem Braga conhece a importncia desses pequenos momentos que tambm fazem parte da condio humana. Tanto assim que ele afirma: A verdade no o tempo que passa, a verdade o instante. Brevssimo instante, onde se oculta a complexidade das nossas dores e alegrias, protegidas pela mscara da banalidade. Em nome dessa aparncia amena que muitas vezes nos desobrigamos de pensar a vida. Em nome dessa mesma aparncia, o escrivo do cotidiano compe um claro caminho, atravs do qual o leitor reencontra o prazer da leitura e mesmo que no o perceba aprende a ler na histria inventada a sua prpria histria. Em outras palavras: a pressa de viver desenvolve no cronista uma sensibilidade especial, que o predispe a captar com maior intensidade os sinais da vida que diariamente deixamos escapar. Sua tarefa, ento, consiste em ser o nosso porta-voz, o intrprete aparelhado para nos devolver aquilo que a realidade no-gratificante sufocou: [pg. 12] a conscincia de que o lirismo no mundo de hoje no pode ser a simples expresso de uma dor-de-cotovelo, mas acima de tudo um repensar constante pelas vias da emoo aliada razo. Esse papel se resume no que chamamos de lirismo reflexivo. E justamente pelo lirismo reflexivo que Rubem Braga, capixaba de Cachoeira do Itapemirim, ocupa um lugar de destaque na histria da literatura brasileira contempornea: corajosamente ele s tem publicado crnicas, mesmo que em uma delas confesse ter escrito um soneto para enfrentar o tdio dos espelhos. Certamente capaz de escrever contos, novelas e romances, no se deixou seduzir pelo brilho dos chamados gneros nobres. Sua opo ainda mais corajosa porque, vivendo num pas de frases bombsticas, ele cumpre a principal caracterstica do escritor: o despojamento verbal, que implica uma construo gil, direta, sem adjetivaes. Novamente a pressa de viver confere ao narrador-reprter uma caracterstica que se transfere para a narrativa curta por ele produzida, que a simultaneidade do ato de escrever com o ato de eliminar os excessos. Exemplo marcante dessa caracterstica a curtssima crnica O pavo, onde o Braga de Ai de ti, Copacabana nos diz: Eu considerei a glria de um pavo ostentando o esplendor de suas cores; um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas no existem na pena do pavo. No h pigmentos. O que h so minsculas bolhas dgua em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavo um arco-ris de plumas. Eu considerei que este o luxo do grande artista, atingir o mximo de matizes com o mnimo de elementos. De gua e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistrio a simplicidade. Para atingir o mximo de matizes com o mnimo de elementos, o artista tem que ter muito talento, pois a simplicidade [pg. 13] por si mesma no suficiente, correndo o risco de confundir-se com vulgaridade e/ou desconhecimento das tcnicas narrativas. Rubem Braga explora, assim, toda a polissemia das palavras, encaixando-as na frase como unem desenha o

mapa de algum tesouro, a ser descoberto pelo leitor. E at pelo prprio cronista, que, depois de considerar que na ausncia de pigmentos que as cores mais bonitas se tornam presentes, faz a considerao final: Considerei, por fim, que assim o amor, oh! minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glrias e me faz, magnfico. A crnica, pois, um arco-ris de plumas fragmentando a luz para torn-la mais totalizante.

A linhagem dos Braga

Embora Rubem Braga pertena linhagem do poeta Manuel Bandeira de quem recebeu influncia e de Joo do Rio antecessor de todos os cronistas , outra a genealogia que ele procura recompor enquanto escreve os seus textos. Os valores recebidos atravs de sua formao situam-no como indivduo num contexto social mais amplo. Nessa amplitude, o escritor no perde de vista que a sua situao particular s conta para o leitor na medida em que funciona como metfora de situaes universais, o que permite que faamos da leitura uma forma de catarse e empatia. Nesse processo de purificao em que se juntam o autor e a sua contrapartida, que o leitor, os sentimentos perdem o carter de expresso da alma solitria e ganham a dimenso de lirismo reflexivo e participante da imensa [pg. 14] dor coletiva. Recompor a prpria histria individual um jeito de o cronista nos ensinar a compor a nossa histria na condio de pessoas ligadas a tantas e tantas heranas culturais. Ora, por mais que o narrador-reprter seja o escritor de carne e osso, nervos e msculos, e nunca personagem ficcional, ele representa um ser coletivo com quem nos identificamos e atravs de quem procuramos vencer as limitaes do nosso olhar. Queremos ver mais longe para a frente e para trs , e s o conseguimos com o auxlio de quem nasceu para narrar o mundo. Da a importncia do instante, porque o flash do momento presente que nos projeta em diferentes direes, todas elas basicamente voltadas para a elaborao da nossa identidade. Logo, fundamental que o cronista se defina num tempo e num espao, compondo uma cronologia nunca limitadora, mas sempre esclarecedora da sua/nossa relao com os seres e com os objetos. Enfim, o elemento biogrfico funciona como linha costurando o tecido da vida, tecendo a renovao do imaginrio, atravs do qual o homem se reafirma como ponte para outras formas de conhecimento e convivncia. Assim, quando o narrador de Sobre o inferno se apresenta como o jornalista profissional Rubem Braga, filho de Francisco de Carvalho Braga, carteira 10.836, srie 32.a, registrado sob o nmero 785, Livro II, fls. 193, ele est reafirmando a importncia da figura paterna como indispensvel elemento estruturador do que somos a partir de nossas razes, a partir de um sobrenome mais do que mero orgulho familiar ndice mesmo de que no existimos

isoladamente e de que a nossa precariedade compensada pela existncia de outras pessoas, de outros universos. Reescrever a prpria biografia , pois, um modo de amadurecer. Nessa estrutura familiar, o homem e a mulher se interpenetram no eterno jogo de contrrios, definindo a coexistncia de papis opostos, ou melhor, de papis *pg. 15+ diferenciados e diferenciadores. Reconhecer diferenas e semelhanas no a condio bsica para um crescimento interior constante? Pois atravs das imagens paterna e materna que iniciamos esse aprendizado: no caso especfico de Rubem Braga, o pai o homem decidido, forte, o brao direito que nos suporta, o ombro de amigo onde pousamos a mo nas horas de angstia, mas de corao fraco o bastante para capitular aos caprichos de uma mulher bonita. A me ternura, s vezes teimosa, porm acima de tudo a nutriz dos filhos.

O espao da casa

No espao da casa, concentra-se o significado da linhagem, fazendo com que a memria da infncia seja, quase sempre, o suporte da estrutura narrativa de Rubem Braga. Ali, o menino aprendeu que o tempo carrega uma traio no bojo de cada minuto e descobriu que matamos, por distrao, muitas ternuras. Quando o garoto se transforma em adulto comea a avaliar os bens perdidos c, ento, compreende que casa o lugar de andar nu de corpo e alma, e stio para falar sozinho. Mais do que isso at: Casa deve ser a preparao para o segredo maior do tmulo. Por isso ela se torna um grande navio que vai singrando o tempo, que vai embarcando e desembarcando gente no porto de cada domingo, correspondendo, mesmo a, ao nosso desejo de eternidade. Ou seja: nesse espao feito de paredes, portas e janelas, projeta-se o espao interior do homem, nele se configurando o aprendizado de que a morte inevitvel, visto que somos apenas transitivos num mundo transitrio demais. O que nos resta fazer com que a vida seja de tal forma gratificante que as ternuras antigas possam ser resgatadas [pg. 16] em algum ponto da jornada, garantindo a nossa permanncia na lembrana de algum.

O espao do texto

A construo de um texto equivale construo de uma casa: cada frase, cada silncio onde reside a significao a ser descoberta pelo leitor uma espcie de quarto onde o cronista guarda os seus segredos e a sua solido. Alm disso, ao construir cada texto (considerado, aqui, como sinnimo de pea autnoma, relato que vai do ttulo ltima linha), o Autor est construindo a sua casa interna, procurando discriminar cada aposento e estabelecendo as leis que governaro o seu universo. Essa construo conduz a um texto maior e que se faz sem palavras, pelo silncio do discurso , que nada mais do que a compreenso do que somos, para melhor prosseguirmos em nossa viagem existencial.

Assim, em Manifesto Rubem Braga se dirige aos operrios da construo civil, afirmando: Nossos ofcios so bem diversos. H homens que so escritores e fazem livros que so verdadeiras casas, e ficam. Mas o cronista de jornal como o cigano que toda noite arma sua tenda e pela manh a desmancha, e vai. Ora, o cronista de jornal tambm um escritor, e tambm ele deseja escrever algo que fique para sempre. A crnica, portanto, uma tenda de cigano enquanto conscincia da nossa transitoriedade; no entanto casa e bem slida at quando reunida em livro, onde se percebe com maior nitidez a busca de coerncia no traado da vida, a fim de torn-la mais gratificante e, somente assim, mais perene. [pg. 17]

Dos jornais ao livro

Na sua analogia com a casa, refgio onde o escritor busca ser ele mesmo, a crnica funciona como uma espcie de passagem secreta por onde ingressamos no espao do prazer, sem que isso elimine a nossa conscincia da realidade opressora. Tanto assim que o tdio urbano determina a atmosfera melanclica de vrios textos em que surpreendemos Rubem Braga recuperando o menino da roa em contato com a natureza. Entre a solido do oceano e a solido da cidade, ele percebe a linha divisria entre o mundo puro e infinito de sempre e o mundo precrio e quadriculado de todo dia. Como os jornais tm preferncia pelos fatos que so notcia isto , aqueles que podem causar maior impacto em seus leitores , no publicam em destaque (ou at mesmo nem publicam) matrias que falem, por exemplo, da vida silenciosa e mida das rvores e da pedra escura com sua pele de musgo e seu misterioso corao mineral. Porque os jornais noticiam tudo, tudo, menos uma coisa to banal de que ningum se lembra: a vida..., afirma um personagem do Braga num texto de 1951. Hoje, os jornais que se destinam s classes A e B procuram captar a poesia da vida, mas no podem escapar a escolha de fatos que tenham contedo jornalstico no sentido de maior interesse, credibilidade no esclarecimento do pblico etc. Assim, os prprios jornais conferem ao cronista a misso de colocar a vida no exguo espao dessa narrativa curta, que corre o risco de ser sufocada pelas grandes manchetes, ou confundir-se com o contexto da pagina em que ela publicada. Da a necessidade de transferi-la do jornal para o livro. Nessa transposio, claro que o escritor est buscando fazer da tenda precria e cigana uma casa slida e mais duradoura. Mas ele procura principalmente selecionar [pg. 18] seus melhores textos, atribuindo-lhes uma seqncia cronolgica e temtica capaz de mostrar ao leitor um painel que se fragmentara nas pginas jornalsticas, ou cuja unicidade no fora percebida por nos. Nessa seleo, que feita como se a prpria vida estivesse sendo passada a limpo, Rubem Braga elimina as crnicas que envelheceram porque ficaram excessivamente ligadas a um acontecimento datado e situado, hoje sem nenhuma importncia, agrupando na coletnea aquelas que conservam o seu poder de provocar a nossa reflexo.

Com esse recurso, Rubem Braga se aproxima bastante da densidade do conto por exemplo, em Historia triste de tuim , levando-nos a questionar se as pessoas por ele citadas no seriam (a partir da sua incluso no texto literrio) personagens. O vnculo com a matriz geradora muito mais forte do que o existente em personagens romanescas, mas o redimensionamento inevitvel e, pois, acaba conferindo a Severino, tambm para citarmos um s exemplo, o estatuto de personagem ficcional, to metfora da condio humana quanto o cronista que o narra em Natal de Severino de Jesus. A magicidade da crnica est presente mesmo nos textos em que a atmosfera poltica torna o dilogo com o leitor mais referencial. Em A traio das elegantes temos o confronto entre os ricos e a populao cada vez mais pobre, neste pas em que minguam o po e o remdio, e se suprimem as liberdades; em Ns, imperadores sem baleias temos a triste lembrana do Estado Novo, Hitler e Mussolini e a ladravaz ditadura, onde algumas palavras podem destruir um belssimo sonho. A atmosfera poltica reafirma, assim, o valor sociolgico da crnica na construo do painel de uma poca. Os recursos utilizados pelo cronista lhe atribuem o valor literrio: no caso de Rubem Braga, vo do simples dialogismo com um leitor hipottico, passam pelo narradorreprter, que, por ser o autor mesmo, no manipula os [pg. 19] truques da fico sempre, e chegam ao despistamento temtico: imitando a estrutura das conversas, o cronista comea a falar de um tema (ou subtema) e acaba nos conduzindo a outro tema bem mais complexo, embora nem sempre imediatamente percebido por ns. Com esse poder de nos projetar para alm do que est impresso, Rubem Braga reafirma sua condio de artista recriando a vida em seus mnimos detalhes, especialmente aqueles que podem estar camuflados em outros gneros. Afinal, ele o espio que nos passa o segredo da existncia numa mensagem codificada, que , sem dvida alguma, literatura. [pg. 20]

3 Fernando Sabino: o encontro marcado com a crnica Os assuntos que merecem uma crnica

Tambm como um espio da vida, Fernando Sabino se volta para a busca do pitoresco ou do irrisrio no cotidiano de cada um. A afirmativa dele mesmo, em A ltima crnica, texto que sempre merece ateno por seu contedo metalingstico. Teorizando sobre a narrativa curta, Sabino utiliza a metalinguagem para mostrar que tambm o cronista tem o seu momento de escrever, que tambm ele apesar da pressa caracterstica do seu ofcio recebe o impulso da inspirao, mas, acima de tudo, o escritor

que busca, que seleciona, que pesquisa. Em uma palavra: trabalha o texto em suas diferentes fases de elaborao at que ele esteja pronto para ser publicado, sabendo que, infelizmente, esse ato de trabalhar o texto no pode prolongar-se muito. Ao selecionar os assuntos que merecem uma crnica, ele nos mostra, ainda, que ela no to despretensiosa quanto aparenta, nem to democrtica quanto se supe. Embora no tenha preconceitos temticos, no acolhe toda e qualquer matria: dentro do seu campo de [pg. 21] ao o acidental (ou circunstancial, episdico) captado quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criana ou num incidente domstico , a crnica deve escolher um fato capaz de reunir em si mesmo o disperso contedo humano, pois s assim ela pode cumprir o antigo princpio da literatura: ensinar, comover e deleitar. A partir desse contedo, Fernando Sabino procura ensinar a seus leitores que a vida diria se torna mais digna de ser vivida quando a convivncia com outras pessoas nos leva a olhar para fora de ns mesmos, descobrindo a beleza do outro, ainda que expressa de forma simplria, quase ingnua, mas sempre numa dimenso que ultrapassa os limites do egocentrismo. Assim, quando o cronista fala de si mesmo como vimos em Rubem Braga , a vida que est sendo focalizada por uma cmara disposta a alcanar um amplo raio de ao. E quando ele descreve um casal de pretos festejando humildemente o aniversrio da filha num botequim da cidade, no o problema racial e social que est sendo enfocado, porem algo que somente o artista pode alcanar com suas antenas apropriadas: a essncia humana, traduzida no sorriso puro de um pai, feito dessa pureza que o tdio municipal procura eliminar. Nesse instante, comovidamente nos deleitamos com a essncia humana reencontrada, que nos chega atravs de um texto bem elaborado, artisticamente recriando um momento belo da nossa vulgaridade diria. Mas esse lado artstico exige um conhecimento tcnico, um manejo adequado da linguagem, uma inspirao sempre ligada ao domnio das leis especficas de um gnero que precisa manter sua aparncia de leveza sem perder a dignidade literria. Pois s assim o cronista pode aspirar transformao do episdico em alguma coisa mais duradoura, mais exemplar. F, somente assim se justifica o encontro de Fernando Sabino com a crnica, na busca interminvel de [pg. 22] um texto puro como um sorriso ou como as palavras de uma criana.

O pitoresco

A busca do pitoresco permite ao cronista captar o lado engraado das coisas, fazendo do riso um jeito ameno de examinar determinadas contradies da sociedade. Nesse caso, Fernando Sabino abandona o dilogo direto com o leitor, desviando o foco narrativo da primeira para uma falsa terceira pessoa: o narrador reassume, ento, sua mscara ficcional, embora saibamos que quem fala na crnica sempre o prprio cronista. Com esse distanciamento, Sabino fica mais vontade para explorar o humor das situaes que melhor exemplificam o lado tragicmico da realidade urbana, quase sempre em

contraponto ao espao rural. Assim, quando ele escreve A quem tiver carro, age como personagem-protagonista, espcie de desdobramento do prprio Autor, vivendo no exato momento da nossa leitura os problemas tpicos de quem cai nas garras dos espertos mecnicos: durante uma curta viagem, somos incautos motoristas que nada entendemos de entupimentos na tubulao, diafragmas e outros mistrios automobilsticos. No fim, quem tiver ouvidos para ouvir, oua, quem tiver carro para guiar, entenda que a m-f geral: um simples fio solto transformado, pela profissionalizao da malandragem, em verdadeira catstrofe. Para ingls ver mostra o funcionamento burocrtico e suas armadilhas: para se despedir de um amigo, o protagonista percorre um sinuoso caminho atravs de vrios andares do prdio onde funciona a Polcia Martima. Depois de muito sofrimento, ele chega ao navio e ningum lhe pede que exiba qualquer espcie de licena para subir a bordo. *pg. 23+ medida que esses e outros textos nos divertem, vo permitindo que identifiquemos aspectos de um pas cujo rumo parece perdido. To perdido que at mesmo o poltico em quem deveramos confiar passa a compor a galeria dos tipos gerados por uma poca onde tudo tem valor, menos o prprio valor humano.

A construo dos tipos

Recriando os flagrantes de esquina ou os incidentes domsticos, Fernando Sabino pe em cena pessoas semelhantes a tantas outras que conhecemos, ou de quem j ouvimos falar. Essa ligao com o real aproxima a crnica da estrutura dramtica, o que permite ao cronista de A companheira de viagem explorar o confronto de caracteres atravs de dilogos engraados, irnicos, sem agressividade afinal ele no esquece que est compondo um texto cuja caracterstica bsica a leveza , mas sempre com viso crtica. Dentro desse enfoque, o deputado de Eloqncia singular gagueja um discurso que no vai alm do Senhor presidente: no sou daqueles que..., atingindo seu clmax num retrico Em suma: no sou daqueles. Tenho dito. Os aplausos gerais mostram o alvio da bancada, que j no precisar suportar tanta idiotice. No entanto, os mesmos aplausos mostram a ineficcia da verbosidade parlamentar e o resultado desagradvel de nem sempre podermos eleger os melhores candidatos. Diante desse quadro, rimos porque intil chorar. Da mesma forma como rimos diante da falsa cultura dos personagens de O hemistquio, discutindo Byron e Castro Alves, embora desconheam o significado de um simples termo potico, um deles pateticamente desejando um [pg. 24] dicionrio, logo ele que sabia o que queria dizer plebiscito. A clara referncia a Artur Azevedo mostra que o brasileiro no mudou muito, pois continua vtima do mesmo esvaziamento cultural que havia no fim do sculo passado e comeo do atual. Tambm atravs do riso Sabino nos fala da solido de dois amigos que se embebedam apoiados no jogo da linguagem: a dipsomania existe quando a pessoa bebe sozinha, e, como os dois esto juntos, podero curar a ressaca bebendo outra cerveja. A partir do ttulo da

crnica No estamos ss o escritor brinca com as palavras, exatamente para mostrar a solido disfarada em etlica solidariedade. Que tambm traz em si um pouco de poesia. Afinal, o poeta que vive bebendo pelos bares da cidade, alongando o caminho de volta a casa, outro tipo urbano. A longa viagem de volta e As coisinhas do poeta abordam o contraste entre o homem obediente aos padres sociais e o artista rompendo com esses mesmos padres, mas sempre tropeando neles quando precisa justificar-se perante a esposa, ou quando obrigado a comparecer ao velrio de um primo que ele mal conhecia: novamente aqui, o humor de Fernando Sabino denuncia as formalidades sociais que tentam enquadrar o indivduo, eliminando a sua criatividade.

A ambigidade do gnero

O painel urbano construdo por Fernando Sabino no se faz apenas com personagens engraados. Os mais densos, aqueles que no mximo nos fariam rir um riso chapliniano, esto presentes em crnicas onde o escritor mineiro pe toda a sua tcnica de romancista a servio da narrativa curta. [pg. 25] Valendo-se de recursos tais como o uso exclusivo de dilogos (com a completa ausncia do narrador) e a concentrao do relato numa situao exemplar, ele compe um texto que fica entre a crnica e o conto. Com isso, a ambigidade prpria de um gnero essencialmente jornalstico as crnicas aqui comentadas foram inicialmente publicadas em revistas ganha uma dimenso maior: j no importa saber se a transposio da revista (ou do jornal) para o livro altera o seu valor, pois o importante reconhecer que essa mistura nada mais do que uma tendncia da literatura contempornea, numa enriquecedora confluncia de gneros. Sabino, porm, no esquece as caractersticas especficas da crnica. Tanto assim que A experincia da cidade focaliza o amargo instante em que uma criana do interior mineiro entra em contato com o feroz mundo urbano. Sem fazer desse instante a razo nica do seu relato, sem mergulhar profundamente no drama vivido pelo garoto, o cronista nos fala da sua nostalgia da meninice, ressaltando que o filho da cozinheira lhe devolveu, sem saber, um pouco da infncia. Dessa infncia ednica que tem a sua contrapartida amarga em Na escurido miservel. Ao dar carona a uma negrinha mirrada, raqutica, um fiapo de gente encostado ao poste como um animalzinho, ele se v frente a frente com um exemplo vivo das desigualdades sociais que assolam o nosso pas. Apesar de ter mais ou menos 7 anos, aquele pingo de gente trabalhava como domstica na casa de uma famlia no Jardim Botnico: lavava roupa, varria a casa, servia mesa. Entrava s sete da manh, saa s oito da noite. O confronto entre os dois segmentos da sociedade (a menina pobre e a patroa burguesa) envolve o leitor gradativamente: a atmosfera inicial, onde temos apenas um homem entrando no seu carro, s sete horas da noite, na [pg. 26] Zona Sul do Rio de Janeiro, rompe-se de

repente quando ele percebe o rostinho curioso da garota, pensa que ela quer uma esmola e, por fim, compreende que ela apenas deseja uma carona at a Praia do Pinto. O contato entre os dois afirma o clima de camaradagem e de solidariedade humana. proporo que o carro avana, a conversa tambm avana, at que experimentamos, junto com o cronista, uma desagradvel sensao: Mas no te do comida l? perguntei, revoltado. Quando eu peo eles do. Mas descontam no ordenado, mame disse para eu no pedir. E quanto que voc ganha? A resposta pior do que se espera. A importncia ridcula mostra bem a eterna explorao do homem pelo homem. A essa altura da narrativa, o cronista j conseguiu puxar o leitor para o seu lado, fazendo com que o ngulo de viso do mundo seja o de uma primeira pessoa do plural, porque juntos experimentamos a mesma vontade de bater na porta da tal mulher e meter-lhe a mo na cara. Depois, o carro pra e a menininha se perde logo na escurido miservel da Praia do Pinto. A atmosfera de dor se dilui (num conto, ela seria intensificada), mas fica em ns a imagem da indignao diante de tanta misria humana. E fica em ns porque o cronista consegue conquistar a nossa cumplicidade. Ora, essa cumplicidade entre o narrador e o leitor s alcanada em textos bem realizados e que possuem a magia inexplicvel da arte. Ainda que seja uma arte que no se proponha examinar em profundidade o essencial: seu objetivo bsico deflagrar uma viso da essncia, aproximando-se bastante do conto, que explora justamente a essncia do relato. [pg. 27]

Um encontro marcado

Como prlogo do livro A companheira de viagem (que serviu de base a este captulo), Fernando Sabino esclarece o seguinte: Os trabalhos que compem este livro foram escritos para publicao regular em revistas sob a genrica designao de crnicas, embora tenham tratamento de fico caracterstico dos contos e das histrias curtas. O primeiro, Passeio, um conto. Pelo tema, dez anos o separam do segundo. E o ltimo tambm um conto, embora apresentado, a partir do titulo, como uma crnica que eu pretendia realmente a ltima, no gnero, no fosse ele um meio de vida de que ainda me valho, graas generosa acolhida dos leitores. Usando a genrica designao de crnicas, o escritor se revela consciente de que o gnero ambguo mesmo. Escrevendo para publicao regular em revistas, onde o espao costuma ser maior do que nos jornais, Sabino favorecido pela possibilidade de ampliar o relato, conseguindo, assim, um maior campo de ao. A crnica , pois, uma narrativa curta

por excelncia, uma conversa fiada, como dizia Vincius de Moraes, mas que recebe um tratamento literrio, mesmo que no seja considerado ficcional. Nesse caso, o prprio cronista tem dificuldade em rotular os seus trabalhos. O tratamento de fico a que ele se refere : 1.) a construo do dilogo (inevitvel, porque a simples transcrio de uma conversa no atingiria o leitor, nem seria literatura); 2.) a construo de personagens que se afastam da matriz real (uma pessoa de carne e osso, que vive ou viveu em determinado lugar) e ganham o estatuto de seres inventados, com vida real apenas no contexto do relato; *pg. 28+ 3) o envolvimento mais complexo de espao, tempo e atmosfera; e, 4.) a perspectiva do cronista de distanciar-se do narrador, uma vez que na crnica a voz do narrador a voz do cronista. Apanhado na armadilha do gnero, Fernando Sabino justifica sua permanncia como prosador do cotidiano por ser um meio de vida de que ele ainda se vale. Mas tambm se refere generosa acolhida dos leitores, reafirmando, mesmo que implicitamente, a importncia da crnica como resposta imediata ao escritor, que precisa sentir a receptividade da crtica e do pblico. Logo, mesmo que ele no utilize o dilogo direto com quem o l, o dialogismo permanece nas entrelinhas, como suporte bsico da crnica. Esse aspecto, alm dos outros ficcionais, Fernando Sabino realiza muitssimo bem, confirmando a hiptese de que ele, por mais romancista que seja, tem um encontro marcado com a prosa do dia-a-dia, atravs do lirismo reflexivo ou do fino humor dessa inseparvel companheira de viagem, que a crnica. [pg. 29]

4 Srgio Porto: o cotidiano visto com o humor de Stanislaw Ponte Preta A irreverncia dos escritos levianos

O humor tipicamente brasileiro que um dia apareceu nos poemas satricos de Gregrio de Matos reaparece com total fora expressiva nas crnicas de Stanislaw Ponte Preta. Ou melhor, Srgio Porto irmo de criao , criador mesmo desse personagem ficcional to caracterstico da nossa falta de carter quanto Macunama, porm mais popular e com uma vida prpria de tal forma assegurada que ele mesmo quem assina as crnicas publicadas em jornais e revistas, depois transpostas para os livros, que asseguram a sua preservao. O prprio Srgio esclarece que Stanislaw surgiu na imprensa por uma contingncia da prpria imprensa. Foi numa poca em que os cronistas mundanos dominavam as pginas dos

jornais, com suas colunas cheias de neologismos e auto-suficincia. Nessa mesma poca, era imperdovel que um jornal sasse s ruas sem a presena do seu prprio colunista social. Acontece, porm, que a maioria deles (os tais colunistas) no possua a envergadura de Joo do Rio, especialmente o Joo do Rio sob a pele *pg. 30+ de Jos Antonio Jos assinando PallMall-Rio nas pginas de O Paiz. Srgio Porto traz luz o Stanislaw Ponte Preta para retomar a linhagem dos cronistas mundanos que sabem registrar a vida cotidiana, e, acima de tudo, para criticar aquele tipo inculto que inventava palavras e expresses como piu-piu, champanhota, fria louca, bola branca, flor azul e outras baboseiras. Infelizmente, Stanislaw no conseguiu eliminar esse tipo ele ainda existe , mas soube analis-lo atravs do riso popular, caricaturando (se e possvel fazer caricatura de uma caricatura) o mais conhecido cronista mundano, verdadeiro smbolo do festival de besteira que ainda hoje assola este pas. Assim, logo no primeiro texto da coletnea Tia Zulmira e eu, j aparece a figura de Ibrahim Sued, que ela considera um dos maiores escritores da poca. Em nota de rodap, o Autor avisa que no est bem certo se Tia Zulmira estava querendo gozar Ibrahim, ou se estava querendo gozar a poca. As duas coisas, com certeza, e ainda um pouco de profecia, prevendo a permanncia desse nefando intelectual tupiniquim. A crtica mais contundente e mais explcita surge em O poliglota, onde o prprio ttulo uma insinuao maliciosa aos recursos lingsticos do, infelizmente, inesquecvel personagem. Registrando as andanas de Ibrahim famoso escritor libanocarioca pela Europa, Stanislaw usa o afiadssimo bisturi do humor: Diz o mestra do Jeff Thomas, o inspirador de Pouchard, que andou conversando com o Duque de Windsor. Para castigar um pouco de modstia no seu escrito, o famoso dramaturco explicou que no conversou em portugus, o que, alis, deve ser verdade, pois o Duque fala um pouquinho de portugus, mas Ibrahim no. Fazendo o leitor rir, a flor dos Ponte Pretas reafirma o ensinamento de que um mau escritor e, por extenso, [pg. 31] um mau cronista mundano contribui para o enfraquecimento da lngua. E tambm do povo que a fala.

A funo potica da linguagem jornalstica

Alm dos maus cronistas, h os igualmente nocivos autores de fotonovela, escrevendo para publicaes do gnero Querida, Seduo, Destino etc., entortando a mentalidade de mocinhas suscetveis de minhoca na cabea. Protegidos por pseudnimos americanos, tais como Nancy Gilbert, Dothy Longfellow e May Taylor, os sexy relations da imprensa autctone produzem contos de amor que apenas funcionam como frmulas de manter o pblico feminino alienado e, portanto, incapaz de compreender a verdadeira realidade que nos rodeia. O prprio Stanislaw no escapa

seduo de tal estilo, travestindo-se de Brigitte Sagan e debochadamente comentando a proposta que recebera: Aceitamos. Somos atualmente o entortador de mentalidade feminina mais bem pago da imprensa sexy. Revelada essa face negativa dos nossos peridicos (hoje, de certa forma, substituda por algumas telenovelas), Ponte Preta nos mostra que o jornalismo tambm uma forma literria de registrar os acontecimentos dando-lhes maior carga de emoo e verossimilhana, ainda que o faa atravs do humor. Afinal, a funo potica da linguagem consiste basicamente na construo da frase de forma que a sua economia lingstica produza uma ampla significao. A linguagem jornalstica desempenha a funo potica no momento em que recria a notcia captando o seu misterioso encantamento. exatamente isso que encontramos em Notcia de jornal, como exemplo de uma das vertentes do humorismo de Srgio Porto, provavelmente [pg. 32] influenciado por Manuel Bandeira (como aconteceu com Rubem Braga): Quem descobriu, perdida no noticirio policial de um matutino, o intensa poesia contida no bilhete do suicida? Creio que foi Manuel Bandeira. O jornalista, portanto, no deve simplesmente registrar uma notcia. Cabe a ele explorar o poder das palavras para que o leitor possa vivenciar, com emoo semelhante a do reprter, aquilo que est sendo narrado. No sendo um bom redator (ou se for um redator muito preso ao esquema impessoal de reportagem), ele se limitar a escrever: Joo Jos Gualberto, vulgo Sorriso, foi preso na madrugada de ontem, no Beco da Felicidade, por ter assaltado a Casa Garson, de onde roubara um lote de discos. Srgio Porto, consciente das tcnicas narrativas e dos recursos da lngua portuguesa, reescreve a notcia assim: O Sorriso roubou a msica e acabou preso no Beco da Felicidade. O humor, portanto, assume a funo de recuperar a poesia, confirmando que a crnica e seu contexto jornalstico so uma realizao literria sempre.

Um coloquialismo bem carioca

Outro recurso humorstico de Srgio Porto a construo da frase num ritmo bem carioca, em que nem sempre a norma culta respeitada. O que importa o tom jocoso da expresso, que tanto pode ser uma gria incorporada fala pela consagrao do uso, quanto um termo pouco usado, que causa em ns uma surpresa que soa de forma engraada. [pg. 33] o caso, por exemplo, de macrbia, expresso usada para designar Tia Zulmira, numa referncia aos seus quase 90 anos: o termo surge num contexto to irnico que ale parece brincadeira do escritor. O mesmo acontece quando ele rompe com o padro lingstico e usa o pronome relativo cujo em lugar de que:

(...) comparecendo tambm o insuportvel Mirinho, cujo chegava naquele momento (...) (Chateaes sutis). (...) mas no era o caso deste, cujo se chamava Bmbolo (...) (A batalha do Leblon). Ou, ainda, quando muda a posio do pronome demonstrativo: (...) ver esse filho desfilando na passarela no Joo Caetano, no baile aquele (...) ( triste... muito triste). Mas a maneira principal de explorar o coloquialismo pela via humorstica est na forma como Stanislaw Ponte Preta mantm o dilogo com o leitor. Alis, com a leitora porque homem raramente tem vez com o guia espiritual de milhares de leitores universais. A mulher que merece, pois, a sua completa ateno, numa velada e maliciosa formalidade expressa por um Como, minha senhora?, que descamba para um divertido moralismo, em que ele determina: A senhora endireita a esse decote, que isto j no mais decote, deboche, e preste ateno. Ou ento: O que, madame? Se ele largou a Aeronutica? No, dona. Ele era aviador de receita, numa farmcia do bairro. E pare de chatear, seno no conto a histria (Dos sertes ao matagal). *pg. 34+

Um raro criador de tipos

A galeria dos tipos femininos abundante nas crnicas de Stanislaw. Sempre com refinado humor, ele pe a nu nossas frgeis representantes de uma moral absolutamente discutvel: a mocinha bonita que freqentava sempre o programa de Csar de Alencar no chegou a envelhecer porque foi logo substituda por outra mocinha freqentando o programa de um certo animador da televiso, ambas conservando o mesmo sonho de sucesso fcil e gratificante. a mocinha muito bem feitinha de corpo que, indo a Paris estudar violino, no aprendeu a tocar bulhufas mas, em compensao, o filhinho que ela trouxe de l chama-se Violino... Como a coisificao da mulher no foi superada ainda, a maior parte dessas jovens permanece acalentada pelo desejo de ser uma Cinderela, o que mantm a atualidade dos textos de Stanislaw. Os homens tambm comparecem, pois, afinal, o escritor est compondo um painel da nossa sociedade em seus diferentes segmentos. O marido enganado pela mulher, o marido surpreendido recebendo a cooperao da copeira, primo Altamirando, Rosamundo e Osvaldo. Este ltimo ganha um destaque especial: com ele que o cronista conversa sempre que tem uma dvida gramatical ou quer ironizar a gramatiquice, porque tudo indica que Osvaldo o revisor espcie de dicionrio ambulante das redaes de jornal. Tanto assim que

constantemente o nosso Stan pede sua ajuda: (...) ou ser extracomplexar? Verifique a, Osvaldo; A jovem, cujo nome Cleide, se apaixonou-se (v a onde fica melhor colocado o oblquo, Osvaldo) e Ta no que d os ferristas (ou ser ferrenhos, ou mesmo ferreiros, Osvaldo?). Uma mulher, porm, que se destaca como principal personagem-tipo: a ermit da Boca do Mato. Pois Ponte Preta da linhagem de Tia Zulmira, e atravs dela que ele parece ver o mundo. Assim, ao traar o Perfil *pg. 35+ de Tia Zulmira, ele explora a linguagem referencial para tornar a velha senhora bastante verossmil. Em seguida, ele retoca a figura da Tia usando dois recursos. Primeiro, o paradoxo Tia Zulmira tricotava casaquinhos para os rfos de uma instituio nudista mantida por D. Luz Del Fuego (se eram nudistas, para que os casaquinhos?); segundo, operando a desconstruo dos nomes histricos: a Princesa Isabel (antigamente, a Redentora, e hoje, nota de 50 cruzeiros) e o Marechal Deodoro (Hoje, bairro que explode) perdem a estatura de mitos e se tornam ndices da farsa que a histria do Brasil na verso oficial. Ex-condessa prussiana, ex-vedete do Folies Bergres, cozinheira da Coluna Prestes, chegou ao Brasil, pobre, mas digna, digna o suficiente para rir das nossas posturas sociais.

A leveza do humor

O Brasil se caracterizou (ou descaracterizou, Osvaldo? perguntaria o nosso cronista, se ele ainda fosse vivo) pelas posturas sociais risveis ao extremo. As situaes que vivemos parecem repetir a toda hora que seriam cmicas se no fossem trgicas, de uma tragicidade que s pode ser examinada atravs da irreverncia. E de forma irreverente que o prprio Srgio Porto se refere s suas crnicas como escritos levianos, pois so imprudentes na medida em que desnudam o ridculo da coletividade a partir dos tipos aparentemente individuais. Sem nenhum temor, o cronista denuncia as mazelas da imprensa, da criao literria a servio do esvaziamento cultural e, principalmente, os equvocos de uma poltica que insiste em fazer do brasileiro um povo cordial, passivo, sem nenhum poder de conduzir o seu prprio destino. Colocando o dedo nessas feridas, o Cronista Mundano [pg. 36] (to diferente dos minsculos cronistas mundanos que organizam listas das dez mais elegantes do ano) se expe. No entanto ele verdadeiramente leviano no sentido de leveza. Sem cansar os leitores, Stanislaw os conduz a uma reflexo, oferecendo-lhes em cada texto (algumas vezes, recriao de velhssimas piadas) uma crtica amena e contundente. A um s tempo ele nos d uma vlvula de escape e fala por ns, assumindo nossa indignao diante dos absurdos que compem o dia-a-dia brasileiro. Seu humor bem brasileiro exatamente nesse sentido: numa linguagem moleque, rompe os padres da norma culta e constri uma linguagem nova, dinmica e sria. Carioca de nascimento e vida, era natural que ele usasse o ritmo carioca. Mas os seus textos no so apenas sobre o Rio de Janeiro: a luneta debochada do cronista alcana So Paulo (O

noivo organizado, O passamento de Bette Davis e Ao morrer sorrindo) e vai at Minas Gerais (Ferro em Ferros). Vai ao Brasil inteiro, porque Srgio Porto/Stanislaw Ponte Preta mostra hbitos que so risveis em qualquer parte do nosso pas, desde que Pedro lvares Cabral, rapaz que estava fugindo da calmaria, encontrou a confuso, isto , encontrou o Brasil. *pg. 37+

5 Loureno Diafria: o humor dos gatos pardos O cronista deve prestar ateno ao banal

A crnica de Loureno Diafria, tomando por base o cenrio paulista, segue outra vertente do humorismo: a precedncia do fato sobre os personagens que o vivem. Jornalisticamente, o narrador confere mais importncia ao acontecimento em si, porque a partir dele que depreenderemos o lado risvel de cenas que se repetem no dia-a-dia, embora vividas por atores diferentes. bom lembrar que Stanislaw Ponte Preta assume outra estratgia, representando outra vertente, pois ele o grande construtor de tipos que representam a ndole do povo brasileiro, mostrando ao leitor que os fatos que aqui acontecem so o produto de um carter diversificado, mas sem o necessrio equilbrio. O caos urbano visto por Srgio Porto como conseqncia de um pas formado por mooilas vidas de prazer e fama, rapazinhos ingnuos, polticos incultos e altamente corruptveis, enfim, toda uma galeria de seres sem o contedo humano capaz de unificar nosso carter, tornando-nos mais fortes, mais representativos de uma [pg. 38] nao habituada a governar o seu destino. Um enfoque mais pessimista, sem dvida, na medida em que o realismo do cronista Ponte Preta revela o quanto e difcil mudar o rumo das coisas onde prevalece uma mentalidade amarrada a inslitos padres. Loureno Diafria se mostra mais otimista: consciente de que sua funo prestar ateno ao banal, ele deixa de lado os tipos (mais duradouros e, portanto, ndices de uma situao difcil de ser mudada) e focaliza os acontecimentos (mais efmeros e, assim, com possibilidades de no acontecer de novo). Esses acontecimentos so narrados em textos organizados de forma que no haja lacunas impedindo o leitor de visualizar a totalidade cnica. Reprter com pleno domnio da reportagem, ele vai juntando os retalhos da informao, costurando-os com a linha invisvel que torna o relato verossmil, uma vez que estruturado de acordo com as leis da coerncia interna do texto, onde as peas so ajustadas como se fizessem parte de um quebra-cabea montado pelo cronista. claro que as peas no so reunidas ao acaso, pois o escritor procura sempre explorar a polissemia das palavras e o silncio do discursei. Essa predominncia do fato sobre os personagens pode ser vista nas cinco crnicas que tm por ttulo Os gatos pardos da noite, formando o ncleo do livro Um gato na terra do

tamborim. J na apresentao que Diafria ironicamente chama de Curriculum mortis do autor ele afirma que vai tentar decifrar as besteiras que todos os dias se cometem por a, atingindo os desvalidos, os chutados, os amotinados, que se equilibram nos muros da vida, os operrios com e sem marmita, e as meninas enfurnadas em salas escuras sobre infinitas costuras que no tm tempo, nem saco, nem dinheiro para fazer masturbao mental em frente de um copo de usque. *pg. 39+

Os gatos pardos da noite

O clima de absurdo que cerca tudo o que acontece na terra do tamborim obriga o cronista a narrar os fatos de tal maneira que conduza o leitor a tirar suas prprias concluses. Assim, logo na primeira crnica intitulada Os gatos pardos da noite, temos uma conhecidssima batida policial para agarrar um ladro: as manchetes dos jornais nos do todos os dias os mais variados exemplos disso, mas nem sempre nos oferecem material suficiente para a reflexo. Liberando o lado subjetivo de cada enfoque, Diafria nos oferece um elemento ausente da reportagem: a emoo como fator predominante. Isso facilita a nossa participao porque emocionalmente que integramos em ns uma determinada experincia, percebendo suas verdadeiras dimenses. Assim, no se trata apenas de contar mais um lance policial cercado de suspense hollywoodiano, porm questionar a relao que existe entre os donos da cidade e seus habitantes. Ou melhor, a relao existente entre os dominadores e os dominados, por mais repetitivo que isso possa parecer. Assumindo uma posio onisciente, o narrador-reprter tudo v porque ele j colheu e enxugou o material que servir de suporte ao seu relato: as caractersticas dos policiais, os moradores do barraco suspeito e a vida familiar do guardio da lei so contados num jogo de espao e tempo que preparam o impacto final. O confronto entre os dois espaos inseridos no espao maior da desigualdade social se d numa seqncia temporal tripartida em antes (os boatos informando que o homem se escondia ali no barraco de tbuas), durante (a batida em si mesma, surpreendendo o casal que entra na histria sem querer) e depois (a morte de uma criana e a reao da autoridade). [pg. 40] No miolo da narrativa, os acessrios que nos ajudam a compor as imagens: Maria do Rosrio tem 19 anos e treme como uma bobinha; o marido um trabalhador que, diante da violncia, assume a cara assustada de um vulgar ladro, embora no o seja; Claudemir o filho de 18 meses atingido por uma bala em meio ao esparramo que no tinha respeitado nem o penico; e os policiais agindo no cumprimento do dever, o que os isenta de culpa. Nesse vo to rpido e seco que cortou um gemido ao meio, uma vida se perde. E da? Como foi tudo um acidente, o policial pode encarar sua esposa e seus filhos com a serenidade de um justo. O narrador que no indiferente, envolvendo-se mesmo no relato prepara a nossa revolta focalizando o responsvel pela morte da criana num momento de profunda perplexidade: o justiceiro constata que est ficando careca! Como se no bastasse, a esposa aflita lhe traz o jornal, perguntando:

Voc viu o que esto falando? De imediato, pensamos que ela se refere a alguma manchete sobre o caso de desfecho bisonho, porm compreensvel. Entretanto trata-se apenas de um informe cientfico sobre a cura da calvcie, graas s recentes pesquisas sobre o andrognio, hormnio feminino que atua no crescimento dos cabelos. Diante do abismo entre a morte de um inocente e a impunidade dos policiais, fica suspenso no ar apenas um riso. Amarelo, decerto.

Os outros gatos

Rir, portanto, no uma forma de amenizar a dor. O que o cronista deseja exatamente provocar o riso irnico [pg. 41] atravs do qual expressamos a nossa indignao diante da arbitrariedade que no respeita os mais simples objetos. Tanto assim que ele extrai de um nibus incendiado outra cena desse painel absurdo, marcado por uma famosa frase: Calma que o Brasil nosso! No meio dos salvos, destaca-se um rapaz magro, que vestia um palet muito maior do que ele, vindo de uma longnqua cidade do Norte sonhando com as maravilhas do Sul. Na sua anti-saga, ele se emprega como limpador de tiririca, servente de pedreiro e, por fim, vendedor de bandeiras de clubes de futebol, passando por uma rpida metamorfose: Menos de um ms, era outro. Tirou foto no estdio com retoque, mandou para o pai, para a famlia, para a madrinha, para o besta do cunhadinho se roer de despeito. (Calas de boca larga, salto carrapeta, camisa colorida de algodo e aquela palavra misteriosa no peito: Harvard.) Uma figura singular igualzinha multido. Alienado, o personagem se descaracteriza no subemprego, e at mesmo a sua singularidade esvaziada de sentido, uma vez que ele vtima da massificao. Da mesma forma os vendedores de churrasquinho, bancrios, balconistas, os homens de palet e gravata esmagados pela prestao do carro vencendo, a mulher em casa reclamando uma semana de folga longe das crianas, tudo isso sintetizado na morte de um encanador, cujo fretro prestigiado pelo homem mais importante da rua. Nesse contraste, explode o ridculo da cena: Trocava de brao, enrolava o leno no metal para atenuar a dor nos dedos que formigavam. Quando viu que os acompanhantes no se tocavam, perdeu a dignidade do cargo, exigiu: Segura aqui, Luprcio, que o diacho do defunto est jogando o peso pro meu lado. *pg. 42+ Eliminadas as aparncias, os moradores do pedao se nivelam. E at mesmo um homem de fina educao pode apaixonar-se por Marly, a do Flor do Ip, que na realidade chama-se

Maria Leontina Neves o nome de mau gosto como ndice de uma classe menos favorecida. Desejando casar-se com ela, acaba envolvido numa chantagem amorosa: ele dever visit-la na boate com um coqueiro na mo. Meio envergonhado, o personagem busca a ajuda de um redator de variedades, temeroso de cair num ridculo ainda maior. O riso dramtico da quinta histria estabelece a ligao cclica com a primeira: uma mulher tortura o seu gato que era capaz de pensar e depois o perde. Angustiada, procura algum que possa ajud-la, mas ouve apenas a irnica explicao: A senhora fez pior. Tratou seu gato como se ele fosse uma pessoa um servente de pedreiro, um vendedor de flores, um escriturrio, um gandula, um bbado, um pintor de paredes, um lambe-lambe, uma mulher grvida, um cidado de gravata. Essas cinco histrias, portanto, se interligam pelo desnudamento da reduo dos seres humanos a simples fantoches, cujos cordezinhos so manipulados pelas classes dominantes. A dramaticidade do primeiro texto desemboca na cmica calvcie que provoca tenso no policial-assassino e arrasta o leitor at as banalidades que transformam a singular existncia dos outros gatos num cinza fosco e triste. Apesar do riso que possa provocar e da esperana de que, um dia, tais cenas no aconteam mais.

Em tom de fbula

Enquanto as pequenas tragicomdias do cotidiano continuam acontecendo, Loureno Diafria vai cumprindo [pg. 43] o exerccio da crnica como um testemunho do nosso tempo. Variando a estruturao do texto, ele retoma a fbula no sentido alegrico e pe em cena os lees para falar melhor da condio humana. Na primeira A fbula do leo e dos bbados , ele mostra a hesitao de um deposto rei dos animais, agora preso num parque, onde desfruta de tudo, menos da liberdade. Um dia, o ex-feroz animal se surpreende com trs bebuns dormindo na sua juba. Como isso no constava das clusulas contratuais que assinara com o empresrio-empregador, ele resolve consultar um leo mais velho para saber se ele poderia usufruir aquele banquete sem ferir o contrato. Enquanto consultam a lei, os trs-loucados curam a carraspana e fogem dali. Percebendo que o excesso de escrpulo lhe impediria de devorar aquele acepipe, queixa-se e ouve do mais velho a sbia lio: Queixas-te de barriga cheia, o que um mal. Se de fato estivesses com fome, certamente primeiro os teria devorado, e s depois te lembrarias do contrato. Mas no te lastimes: quem faz o bem sempre o tem. Nenhum leo est livre neste mundo de, amanh, por acaso, adormecer num parque e ser comido de surpresa por trs bebuns esfomeados. A vida no est difcil s para os animais, rapaz. Se essa constatao um pouco sombria, de acordo com a circunstncia histrica a que se refere nas entrelinhas, no pessimista. O que se destaca ao longo do texto e o sentido da liberdade como forma de recuperao da vida com suas marcas gratificantes, como um alerta

ao falo de que o animal catalogado como racional ou irracional no pode sobreviver num habitat cujas leis so mal definidas, porque determinadas por legisladores que h muito perderam a grandeza humana. Exatamente como acontece na segunda fbula, com leo, mas muito *pg. 44+ mais feroz, onde um homem de corao limpo e alguma sensatez critica o espetculo de gente viva atirada s feras, Tentando vencer pelo dilogo, ele convence os animais, porm no atinge a dureza do enfurecido domador. A moral da histria contundente: mais perigoso do que o leo quem o solta. Com isso, a narrativa humorstica reafirma seu objetivo de fazer o leitor recuperar sua capacidade crtica enquanto se diverte. Afinal, o aprendizado tambm est embutido no ldico divertimento.

A paixo urbana

Ludicamente, o cronista percorre a cidade. Ouve conversas, recolhe frases interessantes, observa as pessoas, registra situaes tudo atravs do olhar de quem brinca e, pelo jogo da brincadeira, rene foras para superar a realidade sufocante. nesse contexto que o fato em si ganha mais importncia do que os personagens. Assim, o drama da antiga cliente de um dancing esmagada pelo peso do nome pode ser vivido por qualquer outro ator: o que importa ressaltar a relao entre um nome prprio e a sua origem social, bem como as conseqncias do mau gosto paterno ao registrar os filhos com nomes estranhssimos. Onsima e Telsforo so apenas dois exemplos da preocupao de Loureno Diafria com essa marca de famlia indiciando o conflito entre o indivduo e o meio que o cerca. O mesmo acontece nos cinco textos (ou captulos) de As desarmonias de uma famlia unida: a construo da narrativa se apia na cclica falta de leite, levando um chefe de famlia a desejar comprar uma vaca. Na verdade, porm, os personagens poderiam ser outros, de outra classe social at, e o produto tambm poderia ser a gasolina ou o feijo. [pg. 45] O comportamento ldico determina, dessa maneira, as diferentes formas do texto. Ladainha, por exemplo, foge a estrutura tradicional da crnica discursiva e se aproxima da estrutura poemtica, com suas frases paralelas, que vo num crescendo at chegar ao clmax: Dizem que vo faltar os fatos, todo mundo corre a procurar boatos. Agora: quando dizem que vai faltar vergonha, ningum se toca. Est todo mundo acostumado. E ainda pela via ldica que Diafria expressa sua relao com a cidade de So Paulo, explicitada em Como disfarar uma leve paixo. Atendendo ao incisivo recado de um editor, ele resolve escrever uma crnica que, em vez de elogiar panfletariamente, examina criticamente alguns ngulos da vida urbana. Depois de justificar sua atitude, mergulha na

memria para recuperar o lirismo de nomes como Rua da Esperana e Rua do Jogo da Bola, e revela as regras da relao amorosa: Tal conhecimento se adquire lentamente, porque a cidade esta cidade de que o editor quer que eu fale se entrega aos poucos, dificilmente de todo, e s aps muita convivncia e muita paquera que ela realmente se abre em dengues e carinhos. E como caprichosa! Esse, entretanto, apenas o discurso expresso em seu primeiro registro. O que est por trs de tudo isso que desperta o interesse do leitor, instigado a partir do momento em que o narrador-reprter afirma: Em suma, devo revelar que, quando a cidade completa quatrocentos e vinte anos (e fique isso registrado nos arquivos), encontra-se ainda parcialmente interditada a Liberdade, conforme exporei com todas as ressalvas e indicaes prprias de um esprito afeito ao rigor cientifico. *pg. 46+ A utilssima avenida de ligao significa, certamente, a nica via em que o homem pode transitar em direo prpria condio humana, vivida de forma digna, livre da opresso e do obscurantismo. Afinal, a cidade e o espao cnico em que representamos diferentes papis, a partir dos quais reaprendemos o ato de viver. A cidade de So Paulo uma clula que resume o modo de vida dos brasileiros: se este grande centro urbano, de tamanha importncia cultural e socioeconmica, puder ser o exemplo maior de liberdade, o Brasil inteiro no aprender a ser livre? Da mesma forma, porm, que no se pode aprender So Paulo numa s lio, a liberdade tambm no se aprende em uma s crnica, sendo necessrio que o cronista continue prestando ateno ao banal para fazer com que seus leitores alcancem o que est alm da banalidade: Encerro aqui estes apontamentos. Quando a avenida for totalmente reaberta, pode-se voltar ao assunto. *pg. 47+

6 Paulo Mendes Campos: a linguagem potica O sentido da poesia

Para ver alm da banalidade, o cronista v a cidade com os olhos de um bbado ou de um poeta: v mais do que a aparncia, e descobre, por isso mesmo, as foras secretas da vida. No se limita a descrever o objeto que tem diante de si, mas o examina, penetra-o e o recria, buscando sua essncia, pois o que interessa no o real visto em funo de valores consagrados. preciso ir mais longe, romper as conceituaes, buscar exatamente aquilo que caracteriza a poesia: a imagem.

assim que se comporta Paulo Mendes Campos, esse caador de imagens esmagado pelo tdio do asfalto e sempre reanimado pelas lembranas de um paraso perdido (mas no irrecupervel) situado nos campos da infncia. Por isso muitas de suas crnicas se aproximam do poema em prosa, onde o jogo de analogias faz nascer todo um imaginrio que o resultado das experincias individuais do artista e que se transforma num somatrio de emoes, pois o leitor tambm recria, tambm atribui significaes s frases que compem as imagens poticas. [pg. 48] Esse universo imaginrio no se afasta do real. Ao contrrio: justamente ele que nos permite suportar as presses de um mundo convencional e partir para a descoberta de horizontes novos, que so a realidade e suas muitas faces. Como cada um de ns olha o mundo por um ngulo particular, embora conjugado aos ngulos ocupados por outros seres, reaprendemos a cada instante que a verdade uma experincia pessoal. Portanto eliminar o jogo ilusrio eliminar a prpria realidade; estimular o jogo ampliar o alcance do real. O poder mgico da reinveno est expresso em Uma ou duas raposas: H tambm a alegoria que Andr Gide ouviu da boca de Oscar Wilde: um homem deixava a aldeia todas as manhs, embrenhando-se na floresta; ao regressar, a tardinha, todos os trabalhadores da aldeia o rodeavam, pedindo: Que viu voc hoje? O homem contava: Vi na floresta um fauno a tocar flauta, fazendo uma ronda de pequenos silvanos danar. Conta mais, pediam. Quando cheguei praia, vi trs sereias sobre as ondas a passar um pente de ouro em seus cabelos verdes. A aldeia amava aquele que sabia contar histrias. Certa manh, no entanto, quando o homem chegou praia, viu trs sereias a pentear seus cabelos verdes com um pente de ouro. Seguindo o seu caminho, mais adiante, deparou com um fauno tocando flauta para pequenos silvanos. tarde, quando chegou aldeia, e outros lhe pediram para contar o que vira, o homem respondeu: Hoje eu no vi nada. Quando narramos apenas o que todos podem ver, ou quando simplesmente fazemos referncia a seres e objetos cuja existncia to palpvel que qualquer pessoa pode comprov-la, torna-se impossvel alcanar o plano da poesia. O cronista-poeta sabe disso, motivo pelo qual ele usa palavras para construir o seu mundo, mas o que ele passa ao leitor no est nas palavras em si, est no que [pg. 49] elas significam e no que elas possuem de faunos e sereias, que s existem na confluncia do real com o irreal. Porque o sentido da poesia e, por extenso, da crnica, que tem um suporte potico est na ultrapassagem do que , para alcanar aquilo que pode ou poderia ser.

A fuso dos contrrios na comunho potica

O que pode ou poderia ser a coexistncia de contrrios. O mundo de hoje j no comporta a linearidade de opostos que se excluem, pois queremos aprender o convvio com a vida e a morte, cujas fronteiras so to esfumaadas que impossvel separ-las. Impossvel e desnecessrio, empobrecedor mesmo. No que o poeta pretenda eliminar diferenas, fazendo

com que a vida seja exatamente igual a morte: o que ele deseja constatar o que existe em comum como elemento determinante de outros elementos. Tambm assim o homem sabe as diferenas que o destacam da mulher, e vice-versa. Mas o que importa mesmo e descobrir o que h de um e de outro nessa riqussima unificao da pluralidade dos seres e das coisas. Por isso o poeta Octavio Paz afirmou: A poesia coloca o homem fora de si e, simultaneamente, o faz regressar ao seu ser original, voltado para si. O homem sua imagem: ele mesmo aquele outro. E essa busca do outro, numa fuso de contrrios, que vemos surpreender na crnica-poema Rond de mulher s. Usando um procedimento bastante raro nesse tipo de narrativa curta, Paulo Mendes Campos tira de cena o narrador e transfere a primeira pessoa para uma mulher. Os significados mais imediatos revelam ao leitor que a narradora se examina a luz de um mundo machista e excludente , procurando situar-se como um ser independente, [pg. 50] e, por essa razo, parte integrante do homem na interpenetrao de faltas e presenas. Um preenche os vazios do outro, interpenetram-se sem perder as suas caractersticas individuais, como acontece com esta mulher solitria que experimenta o prazer da espera e se arrepia de temor por este amor invisvel e brutal como um prncipe. Ela sabe, ainda, que: O sexo simples: a certeza de que existe um ponto de partida. Mas o amor complicado: a incerteza sobre um ponto de chegada. A dvida amorosa no um privilgio feminino. Deixando que ela fale, ele o cronistapoeta, o homem simplesmente tenta alcanar sua outra voz, falando de si mesmo atravs de uma outra fala que talvez possa recuperar a fuso dos tempos primordiais. No instante final da crnica, depois de questionar essa valorao maniquesta feminino versus masculino, surge a grande pergunta: (...) Por que exige de ns todos os papis, menos o papel de mulher? Por que no descobre, depois de tanto tempo, que somos simplesmente seres humanos carregados de eletricidade feminina? Quando lembramos que o Autor um homem, percebemos com maior clareza que ele o homem que se pergunta sobre a necessidade de uma viso mais dialtica, onde, no plano do real, possamos realizar aquilo que a imagem potica realiza. Ou seja: a fuso do sujeito com o objeto, numa troca to intensa que saibamos ver o outro, para melhor compreender a nossa prpria face.

A poesia dos elementos ausentes

No momento em que tentamos compreender a nossa prpria face atravs do outro, j no queremos um espelho [pg. 51] que simplesmente reproduza aquilo que conhecemos. Queremos ir mais longe e, se o conseguimos, pela imagem potica, que elimina o vazio entre a representao da realidade e a realidade conforme os padres que orientam o nosso olhar.

Quando isso acontece, percebemos que a presena do ser muitas vezes se afirma pela ausncia, pois esta lacuna nos permite visualizar (pelo imaginrio) tudo aquilo que est fora de ns. o caso, por exemplo, de um adolescente de 15 anos falando de passarinhos: Paulo Mendes Campos inicia a crnica Achando o amor apresentando traos caractersticos, tais como idade, nmero do sapato (o rapaz j cala 42), tipo de cabelo, enfim, dados concretos que levam o leitor a desenhar fisicamente o personagem. medida que avanamos na leitura, os dados afetivos vo surgindo. Agora, o importante que o rapaz se sacrifica para juntar dinheiro e, assim, poder comprar talvez um curi. De repente, surge a imagem mais forte: O triste que passarinho morre. Essa constatao de que at os passarinhos so efmeros nos d a verdadeira estatura humana desse adolescente: ele sensvel, j conhece a dor da perda, j intui a precariedade da vida e j percebe que o chupim um triste feio chupim se tornou mais presente depois que se foi, numa tarde chuvosa, para nunca mais voltar: Confesso que fiquei triste s pampas, disse o jovem. Na sua linguagem descontrada, ele ensina aos adultos que o rodeiam uma lio de sensibilidade, mostrando que a memria vence o que perecvel: se a morte inevitvel, temos de tornar a vida o mais gratificante possvel. Se no podemos ter o passarinho voando no quintal da casa, podemos t-lo mais forte ainda em nossa lembrana. Nesse instante, o sujeito adolescente e o objeto passarinho [pg. 52] se fundem e se transformam na imagem viva do ser que todos ns buscamos. O que se confirma no pargrafo final: O jovem arrematou: engraado, eu senti por aquele chupim um negcio esquisito. Eu no tenho vergonha de dizer pra vocs: chorei por causa do meu chupim. Eu sentia uma afeio pelo chupim... uma coisa profunda mesmo... Ora, eu amava aquele chupim... Agora que tou entendendo: o que eu tinha pelo chupim era amor.

Nostalgia do paraso

A exemplo de outros cronistas, Paulo Mendes Campos tambm enfrenta o tdio urbano, pois a cidade acaba se transformando num espao sufocante, capaz de poluir os mais puros sentimentos. Essa atmosfera de realidade opressora leva o homem a buscar um outro espao onde a realidade se manifeste de forma gratificante. O espao do prazer pode perfeitamente ser encontrado na vida urbana, mas ele melhor se configura no campo ou nos povoados, enfim, onde permanece aquele jeito simples de cidadezinha do interior com cheiro de infncia. Porque a infncia, ldica por excelncia e ainda livre dos padres que ameaam a criatividade do adulto, uma gostosa reedio paradisaca. o espao do prazer alcanado em sua plenitude e cuja ausncia pela inevitvel passagem do tempo presentifica em ns essa falta que nos ama e que amamos tambm: pelo que est fora de ns que melhor nos

conhecemos. Voltar ao paraso, portanto, no apenas um sonho de evaso romntica: uma forma de combater esse novo mal do sculo expresso na incompatibilidade entre o homem moderno e a modernidade do asfalto. [pg. 53] A crnica nesse contexto, se revela como um respiradouro, como fonte do ar puro que limpa os nossos pulmes, gostoso bosque no meio do caos urbano. A nostalgia inevitvel, pois atravs dela o cronista recupera esse lado ausente. Tal como acontece em Maca, cidade pura: ao retrat-la, Paulo Mendes Campos mostra ao leitor a distino entre cidade grande e cidadezinha reduto de costumes mais humanos, sem cair no maniquesmo simplrio. Tanto assim que a Maca reproduzida na crnica talvez nem exista mais. O que importa que o cronista-poeta capta a sua essncia, passando-a para ns: (...) a dissonncia urbana to hostil que a gente chega a Maca como os Reis Magos chegaram a Belm: para rever a esperana em estado singelo e nascente. A esperana em estado singelo e nascente pode ser reencontrada lambem em Poesia indgena. Aqui, o cronista nos fala do livro Putirum de Raul Bopp e de um nmero de 1926 da revista do Instituto Histrico e Geogrfico, onde se insere uma pesquisa sria do amazonense Antnio Brando Amorim sobre as lendas indgenas do Urariquera e do rio Negro. A deliciosa linguagem dos nhengatus conquista Paulo Mendes Campos porque ela possui justamente o que ele procura: a economia realista das expresses alternando-se com a magia lrica. Ora, economia realista e magia lrica so os elementos bsicos da construo potica, razo mesma do nascimento das imagens. Portanto mais uma vez o imaginrio do cronista-poeta reafirma a nostalgia dos tempos arcaicos como fonte de rejuvenescimento da nossa sensibilidade, o que fica bastante claro nas expresses que ele transcreve. Por exemplo: De noite eu vi tua sombra se tornar como fogo, ir beijar a Lua, as estrelas do cu e Vamo-nos derramar [pg. 54] pelo cu, pela terra, pelo rio, pelo meio da noite para procur-lo. H outras citaes, mas essas so suficientes para mostrar que a linguagem reflete um estado de esprito: sua doura corresponde a um espao magicamente lrico; sua dureza talvez seja o produto de uma vida vertiginosa, incapaz de conciliar os avanos da tecnologia com o crescimento interior. Assim, a nostalgia no uma forma de alienao, mas sim uma preservao daquilo que justifica a poesia.

A funo do jornal. E da crnica tambm

Um dos objetivos dos meios de comunicao manter a nossa sensibilidade despertada, a fim de que possamos participar ativamente dessa imensa aldeia global. J se disse mesmo que o mundo de hoje no comporta as dores individuais, pois a solidariedade e a esperana de pocas melhores exigem que partilhemos todas as dores. O prprio Paulo Mendes Campos afirma, em Unanimidade, que vivemos simultaneamente em todos os lugares, o que faz da

terra inteira uma extenso sensvel do nosso prprio corpo: O rdio, a televiso, o telex so as clulas nervosas desse imenso organismo a transmitir-lhe impresses sob forma de notcias. Com isso, a nossa individualidade se universaliza de tal forma que os mais distantes acontecimentos afetam a nossa vida, seja a morte de um poltico estrangeiro, seja a independncia de uma pequena comunidade aps sculos de servido, seja ainda simplesmente o furto de um po por uma menininha inocente e faminta, como observa o escritor. Tudo nos atinge nervosamente e se estampa num grfico que o jornal, uma vez que nele circulam todas as oscilaes de nossas tristezas universais. *pg. 55+ A expresso universais mostra bem que Paulo Mendes Campos acredita que a funo do jornal abrir uma janela para o mundo, transformando-nos em homens pblicos. Acontece, porm, que a preocupao bsica do jornal com a notcia, com o fato em si, deixando em segundo plano as pessoas que participaram da cena. Nesse caso, qual a funo da crnica, que surge exatamente no espao jornalstico? Aberta a janela, cumpre ensinar o leitor a ver mais longe, muito alm do factual. Isto s possvel quando o fato, os personagens e a preocupao esttica revelada na estruturao do texto se associam para que o resultado final alcance a empatia com o leitor. Uma empatia que significa a cumplicidade entre quem escreve e quem l, mas tambm a elaborao de uma linguagem que traduza, para o leitor, as muitas linguagens cifradas do mundo. Portanto a funo da crnica aprofundar a notcia e deflagrar uma profunda viso das relaes entre o fato e as pessoas, entre cada um de ns e o mundo em que vivemos e morremos, tornando a existncia mais gratificante: Nosso destino morrer. Mas tambm nascer. O resto aflio ou frivolidade do esprito. Logo, o jornal nos d notcias da vida e da morte; a crnica nos faz compreender a coexistncia desses dois elementos que se opem, mas no se excluem. Por isso Paulo Mendes Campos coloca a poesia como suporte de suas crnicas, o que se percebe nas referncias a outros poetas e nas imagens com que ele nos lembra que ainda vale a pena viver. [pg. 56]

7 Carlos Heitor Cony: o lirismo como reflexo O lirismo caracterstico

Em todos os cronistas h um certo lirismo, pois atravs dos seus estados de alma que eles observam o que se passa nas ruas. Entretanto j vimos que a aparncia de leveza da crnica revela, quase sempre, o acontecimento captado sob a forma de uma reflexo, mesmo quando se trata de alguma coisa afetivamente ligada s ao escritor. o caso de Carlos Heitor Cony, que fez de sua prpria famlia o ncleo dos seus textos, sem limitar-se ao intimismo.

A indivisvel experincia pessoal serve como ponto de partida e como ponte de acesso a uma verdade maior, a um s tempo individualista e universal. Tanto assim que ele reuniu vrios trabalhos numa coletnea que se chama Quinze anos (A juventude como ela ): a indicao entre parnteses refora a idia de que ele busca um conhecimento da juventude como um todo, de que suas filhas so parte integrante e significativa. Em vez de ir sempre rua, como todos os escribas do cotidiano, ele fica em sua casa, nesse pequeno universo [pg. 57] domstico onde acontecem os dramas e as alegrias do mundo inteiro. De seu convvio com Regina Celi e Maria Vernica, nasce o questionamento sobre a relao entre pais e filhos e, numa esfera maior, entre o homem e suas perdas. Tal como acontece em O crime sem cadver: logo na segunda-feira ele percebe que seu bluso de estimao desapareceu; a gaveta est revirada, a carteira de dinheiro est fora do seu lugar usual e mais magra!; e uma conversa telefnica, quando lhe perguntam o nmero do colarinho e seu tipo fsico, aumenta o mistrio. Aguada a curiosidade, ele acaba descobrindo, no dia seguinte, a chave do enigma: um embrulho todo enfeitado indica a aproximao do Dia dos Pais. At esse ponto, Cony se limita a narrar uma situao domstica. No bloco final, em destaque para indicar a passagem temporal (j estamos no sbado), surge a reflexo: ele precisar fingir que no sabe de nada, embora saiba que: Cruel ser manter a cara enxuta, os olhos apenas sonolentos, speros, sem direito s lgrimas. E o peito encouraado, sem pretexto para o soluo. E doloroso ser abraa Ias sem poder revelar a fragilidade do adulto escuro e medonho em que me transformei e com o qual, aos poucos, estou me habituando. O Dia dos Pais, portanto, apenas o pretexto para o cronista analisar o desgaste do homem numa sociedade insegura como a nossa. Alm disso, h os valores que impem a um ser humano a mscara da tranqilidade, quando ele precisa expor o seu drama ntimo; h tambm essa idia de superproteo paternalista, em nome de que afastamos nossos filhos de um dilogo mais verdadeiro, supondo que assim os beneficiamos. Acontece, porm, que o mundo marcado pela instabilidade. No apenas Cony que vive a dupla funo de pai e me, possivelmente ( *pg. 58+ o que se depreende de Reunio de Mes), sofrendo a fragmentao do casal: todos ns experimentamos a angustia de saber que tudo e efmero e at o amor termina, ainda que esteja sempre renascendo. Nesse mundo escuro e medonho, inevitvel que nos tornemos escuros e medonhos. Perdida a infncia, s nos resta enfrentar a realidade sufocante, tentando extrair dela motivos de fora e luta, aprendendo a conviver com esse outro em que somos transformados ao longo da existncia.

A ficcionalizao das pessoas reais

O convvio com as nossas prprias fragilidades requer um certo distanciamento, condio bsica para que o lirismo critico possa existir. Uma das estratgias o confronto entre o que somos hoje e o que fomos no passado. Outro procedimento este puramente ficcional transformar aquilo que nos aconteceu em fato relacionado com outras pessoas. Ao inventar um personagem, o cronista confere a marca de fico a fatos e pessoas reais, sem esquecer que esse ato de fingir um meio de buscar as faces da realidade. Assim, Carlos Heitor Cony est sempre fazendo de si mesmo e de suas filhas as matrizes dos personagens por ele inventados. Em Dia dos Pais com bruxa de pano a ligao com O crime sem cadver inevitvel. A diferena principal que agora o foco narrativo vai para a terceira pessoa (muito provavelmente uma falsa terceira pessoa), alcanando de maneira mais imediata o drama dos homens descasados que, de repente, no podem usufruir o convvio dos filhos apenas porque os caprichos da ex-mulher cuidaram de impedir o encontro, justo num domingo especial. A bruxinha de pano adquire muitas conotaes, especialmente a de caricatura desgastada de uma [pg. 59] infncia menos rica, e ainda a da impossibilidade do afeto, nessa interdio do contato humano que um casamento, ao ser desfeito, impe aos personagens que um dia acreditaram na indissolubilidade: (...) Guardar a boneca no armrio, at que as filhas a joguem fora, como brinquedo indigno ou intil. Mas agora ela mais do que um brinquedo. Agarra-se com fora a sua boneca e avana mais ainda, lcido, estranhamente conformado com a sua solido e perdoado pelo seu amor. Porque o amor s filhas supera as manobras maternas e at confere vida a uma simples bruxinha de pano, reafirmando no pai os mesmos sentimentos que esto presentes em A farsa e os farsantes: tambm narrada em terceira pessoa, a crnica nos mostra um pai assustado diante de uma sbita enfermidade da filha mais velha, no momento em que as duas irms se preparam para ir ao colgio. Depois de convencer a menor a no faltar s aulas, resolve telefonar para o medico. Antes que a ligao se complete, a verdade aparece: Eu no sabia nada para a prova, papai! Cmplice da filha, resol