crônica ilhoa 1995

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Crônica Ilhoa Denise Ouriques Medeiros Do livro Cronistas de Florianópolis/Fundação Franklin Cascaes/1995 Foto: Denise Ouriques Medeiros/2009 [email protected] Florianópolis, uma paixão de nome esdrúxulo, uma deusa-bruxa amargurada, que estampa o bonito nome de seu algoz na língua dos que vestem os olhos com a venda da apatia. Terra de muitas estórias, de guaranis perdidos no embaraçado e distante furacão da História. Onde algumas itás soltas ainda persistem. Onde esse nome, itá, nada revela ao cidadão da modernidade, àquele que percorre veloz a trilha do asfalto e que só percebe a onda que lhe cobre o corpo – desmembrando-se da realidade oceânica, que une a linha do tempo. Enquanto todos passam, as almas destes não alcançam o imenso afeto que o mar faceiro tributa às imutáveis itás, nem o canto do vento sul, que os abençoa. Outrora ao som do carro-de-boi, eu via a mandioca brotar do chão, eu via o trabalho no engenho, eu via a criança arrumada no domingo para a missa ao redor da Cruz; e eu estava lá – sentada no chão comendo um biju doce. Hoje eu ligo a tevê e o mundo despenca por aí. Converso com muita gente que não conheço, converso com gente do mundo todo na sala da minha casa. Falo muito, escuto muito e não encontro em nada o desejo, como o meu, ardente, de ser extraordinariamente louca para pedir muitas vidas ao rei – e de vivê-las todas aqui, na terra onde se pode costurar o céu com pipas de ternura infantil. Pudesse eu criar um portal para a passagem das tainhas! Ou voar livre como as bruxas pelas praias desertas! Quisera eu tocar de leve o luar como quem tenta sobrepujar-se ao jugo que afeta o lobisomem! Eu quero pairar sobre esta terra rica, suspensa simplesmente pela mágica que emana da terra, que dança no vento e que mergulha fundo no pensamento dos que se apaixonam muitas vezes, dos que sabem da inconsciência da verdade. Quero deixar meu tributo ao suor dos que por aqui passaram e ao infortúnio louco dos que por aqui ainda eternizarão palavras soltas. Quero me vestir com renda e cantar com o Boi-de-Mamão. Quero ficar na janela esperando a procissão, quero guardar pó de café para enfeitar essas ruas encantadas. Quero beijar o pé de Nosso Senhor Jesus dos Passos e descer a ladeira sorridente. Quero ser a pintura escondida no teto da Catedral e uma tocha no túnel secreto que leva ao morro. Quero reconstruir tudo que foi derrubado e também quero plantar o novo sem a preocupação de ser contextual. Quero visitar o Forte e saber observar o mar. Quero levar minha canoa que balança pelo universo da memória, atravessar as lagoas e os mangues. Sinto o cheiro bom da vida. Vou ao largo por onde passava o bonde e tudo lá tem o nome de coisas que se estacionam. Os castelinhos sobrevivem como peças num jogo de xadrez, mal respiram por entre torres secas, com balcões inabitados e mortos. Quero ser a folha que as pombas disputam na praça do Mercado, ou os ramos que os fiéis trazem da missa. Quero ser a muleta da velha figueira ou uma das três palmeiras que se perfilam em direção ao mar. Eu poderia saltar do morro em direção ao céu perdido nas alturas ou arrastar a rede até a praia, mas estou perdidamente apaixonada e vou me enfeitar – para esperar o dia da entrega dos meus sonhos. Vou aguardar, espavorida, a visão nova do que está ao meu redor e desconheço. Vou me encontrar feliz na minha terra, Nossa Senhora do Desterro, e saberei dizer, então, que nada sei e que tudo é só uma sensação passageira.

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Crônica ilhoa, de Denise Ouriques Medeiros, premiada e publicada no livro Cronistas de Florianópolis, da Fundação de Cultura Franklin Cascaes - Florianópolis, 1995

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Florianópolis, uma paixão de nome esdrúxulo, uma deusa-bruxa amargurada, que estampa o bonito nome de seu algoz na língua dos que vestem os olhos com a venda da apatia.

Terra de muitas estórias, de guaranis perdidos no embaraçado e distante furacão da História. Onde algumas itás soltas ainda persistem. Onde esse nome, itá, nada revela ao cidadão da modernidade, àquele que percorre veloz a trilha do asfalto e que só percebe a onda que lhe cobre o corpo – desmembrando-se da realidade oceânica, que une a linha do tempo. Enquanto todos passam, as almas destes não alcançam o imenso afeto que o mar faceiro tributa às imutáveis itás, nem o canto do vento sul, que os abençoa.

Outrora ao som do carro-de-boi, eu via a mandioca brotar do chão, eu via o trabalho no engenho, eu via a criança arrumada no domingo para a missa ao redor da Cruz; e eu estava lá – sentada no chão comendo um biju doce. Hoje eu ligo a tevê e o mundo despenca por aí. Converso com muita gente que não conheço, converso com gente do mundo todo na sala da minha casa. Falo muito, escuto muito e não encontro em nada o desejo, como o meu, ardente, de ser

extraordinariamente louca para pedir muitas vidas ao rei – e de vivê-las todas aqui, na terra onde se pode costurar o céu com pipas de ternura infantil.

Pudesse eu criar um portal para a passagem das tainhas! Ou voar livre como as bruxas pelas praias desertas! Quisera eu tocar de leve o luar como quem tenta sobrepujar-se ao jugo que afeta o lobisomem! Eu quero pairar sobre esta terra rica, suspensa simplesmente pela mágica que emana da terra, que dança no vento e que mergulha fundo no pensamento dos que se apaixonam muitas vezes, dos que sabem da inconsciência da verdade.

Quero deixar meu tributo ao suor dos que por aqui passaram e ao infortúnio louco dos que por aqui ainda eternizarão palavras soltas. Quero me vestir com renda e cantar com o Boi-de-Mamão. Quero ficar na janela esperando a procissão, quero guardar pó de café para enfeitar essas ruas encantadas. Quero beijar o pé de Nosso Senhor Jesus dos Passos e descer a ladeira sorridente. Quero ser a pintura escondida no teto da Catedral e uma tocha no túnel secreto que leva ao morro. Quero reconstruir tudo que foi derrubado e também quero plantar o novo sem a preocupação de ser contextual. Quero visitar o Forte e saber

observar o mar. Quero levar minha canoa que balança pelo universo da memória, atravessar as lagoas e os mangues.

Sinto o cheiro bom da vida. Vou ao largo por onde passava o bonde e tudo lá tem o nome de coisas que se estacionam. Os castelinhos sobrevivem como peças num jogo de xadrez, mal respiram por entre torres secas, com balcões inabitados e mortos.

Quero ser a folha que as pombas disputam na praça do Mercado, ou os ramos que os fiéis trazem da missa. Quero ser a muleta da velha figueira ou uma das três palmeiras que se perfilam em direção ao mar. Eu poderia saltar do morro em direção ao céu perdido nas alturas ou arrastar a rede até a praia, mas estou perdidamente apaixonada e vou me enfeitar – para esperar o dia da entrega dos meus sonhos.

Vou aguardar, espavorida, a visão nova do que está ao meu redor e desconheço. Vou me encontrar feliz na minha terra, Nossa Senhora do Desterro, e saberei dizer, então, que nada sei e que tudo é só uma sensação passageira.