crítica do conhecimento kant

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Crítica do conhecimento teórico e fundamentação moral em Kant João Emiliano Fortaleza de Aquino Ao Fábio, com amor. I Filosofia crítica e metafísica A metafísica, tal como Kant a entende, 1 não teria logrado, até a modernidade, constituir-se num conheci- mento seguro. O problema da metafísica, segundo ele, é que ela, até então, partia da idéia clássica de que o co- nhecimento teórico deveria regular-se pelos objetos e estes deveriam, ao mesmo tempo, ser conhecidos a prio- ri. 2 A alteração proposta por Kant é a de, inversamente ao estabelecido pela tradição, partir do ponto de vista de _____ 1. Isto é, como “um conhecimento especulativo da razão inteira- mente isolado que através de simples conceitos [...] se eleva completamente acima do ensinamento da experiência” (Kant, I. Crítica da razão pura [1781]. Trad. bras. Valério Rohden et al. São Paulo: Abril Cultural, 1983, [Prefácio à segunda edição], p. 11). Em outros termos, o conhecimento metafísico “deve ser um co- nhecimento [...] que vai além da experiência. Portanto, não lhe serve de fundamento nem a experiência externa, que é a fonte da física propriamente dita, nem a experiência interna, que constitui o fundamento da psicologia empírica” (Kant, Prolegômenos a toda metafísica futura que queira apresentar-se como ciência [1783]. Trad. port. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1987, p. 24) 2. Entenda-se aqui a concepção clássica do conhecimento como correspondência ou adequação do pensamento à coisa (ou ente). CRÍTICA DO CONHECIMENTO TEÓRICO... 72 que os objetos é que são regulados pela nossa faculdade de conhe- cimento. Deste modo, a contradição ali encontrada se resolveria aqui pela afirmação do caráter necessariamen- te a priori de todo conhecimento conceitual, necessário e universal. 3 Daí a questão fundamental a que a filosofia, inicialmente, deve responder: quais são as condições de possibilidade de nosso conhecimento? Ou ainda: como é possível que as coisas se tornem objeto de nossa experi- ência e de nosso conhecimento? No encaminhamento que Kant dará a essa questão, ela assume a forma defini- tiva da pergunta pelo que torna possíveis os juízos sintéti- cos a priori 4 . Essa questão, fundamental para toda a filoso- _____ 3. Kant, a esse respeito, explica que enfrentou o seguinte problema intuído por David Hume, e que nem este ou qualquer outro ha- via resolvido: o de “se o conceito de causa [...] era concebido pe- la razão a priori e se, deste modo, possuía uma verdade interna independente de toda a experiência e, por conseguinte, uma uti- lidade mais ampla, que não se limita simplesmente aos objetos da experiência [...]”. Chegou, por fim, à conclusão de que os concei- tos de causa e efeito “não derivam da experiência [...], mas do en- tendimento puro” (Kant, Prolegômenos..., p. 16 e 18, respectiva- mente). 4. Entende-se, assim, que o próprio das sentenças científicas não é serem meros desdobramentos de predicados a partir de um sujei- to que, conceitualmente, já lhes contém (juízos analíticos, todos a priori); ao contrário, resultam de uma experiência, cuja condição de possibilidade são os conceitos puros a priori do entendimento. Daí por que tais conceitos puros a priori, precisamente enquanto “condições de possibilidade da experiência”, dela não se origi- nam. A experiência, neste sentido, é compreendida por Kant como o processo no qual as representações sensíveis intuídas pe- la nossa faculdade da sensibilidade a priori são pensadas (deter- minadas) pelo entendimento, recebendo assim, de seus conceitos puros a priori, a necessidade e a universalidade de que (enquanto sensíveis) carecem. A experiência sintetiza, assim, a forma univer-

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Crítica Do Conhecimento Kant

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  • Crtica do conhecimento

    terico e fundamentao moral em

    Kant

    Joo Emiliano Fortaleza de Aquino

    Ao Fbio, com amor.

    I Filosofia crtica e metafsica

    A metafsica, tal como Kant a entende,1 no teria logrado, at a modernidade, constituir-se num conheci-mento seguro. O problema da metafsica, segundo ele, que ela, at ento, partia da idia clssica de que o co-nhecimento terico deveria regular-se pelos objetos e estes deveriam, ao mesmo tempo, ser conhecidos a prio-ri.2 A alterao proposta por Kant a de, inversamente ao estabelecido pela tradio, partir do ponto de vista de _____

    1. Isto , como um conhecimento especulativo da razo inteira-mente isolado que atravs de simples conceitos [...] se eleva completamente acima do ensinamento da experincia (Kant, I. Crtica da razo pura [1781]. Trad. bras. Valrio Rohden et al. So Paulo: Abril Cultural, 1983, [Prefcio segunda edio], p. 11). Em outros termos, o conhecimento metafsico deve ser um co-nhecimento [...] que vai alm da experincia. Portanto, no lhe serve de fundamento nem a experincia externa, que a fonte da fsica propriamente dita, nem a experincia interna, que constitui o fundamento da psicologia emprica (Kant, Prolegmenos a toda metafsica futura que queira apresentar-se como cincia [1783]. Trad. port. Artur Moro. Lisboa: Edies 70, 1987, p. 24)

    2. Entenda-se aqui a concepo clssica do conhecimento como correspondncia ou adequao do pensamento coisa (ou ente).

    CRTICA DO CONHECIMENTO TERICO...

    72

    que os objetos que so regulados pela nossa faculdade de conhe-cimento. Deste modo, a contradio ali encontrada se resolveria aqui pela afirmao do carter necessariamen-te a priori de todo conhecimento conceitual, necessrio e universal.3 Da a questo fundamental a que a filosofia, inicialmente, deve responder: quais so as condies de possibilidade de nosso conhecimento? Ou ainda: como possvel que as coisas se tornem objeto de nossa experi-ncia e de nosso conhecimento? No encaminhamento que Kant dar a essa questo, ela assume a forma defini-tiva da pergunta pelo que torna possveis os juzos sintti-cos a priori4. Essa questo, fundamental para toda a filoso-

    _____

    3. Kant, a esse respeito, explica que enfrentou o seguinte problema intudo por David Hume, e que nem este ou qualquer outro ha-via resolvido: o de se o conceito de causa [...] era concebido pe-la razo a priori e se, deste modo, possua uma verdade interna independente de toda a experincia e, por conseguinte, uma uti-lidade mais ampla, que no se limita simplesmente aos objetos da experincia [...]. Chegou, por fim, concluso de que os concei-tos de causa e efeito no derivam da experincia [...], mas do en-tendimento puro (Kant, Prolegmenos..., p. 16 e 18, respectiva-mente).

    4. Entende-se, assim, que o prprio das sentenas cientficas no serem meros desdobramentos de predicados a partir de um sujei-to que, conceitualmente, j lhes contm (juzos analticos, todos a priori); ao contrrio, resultam de uma experincia, cuja condio de possibilidade so os conceitos puros a priori do entendimento. Da por que tais conceitos puros a priori, precisamente enquanto condies de possibilidade da experincia, dela no se origi-nam. A experincia, neste sentido, compreendida por Kant como o processo no qual as representaes sensveis intudas pe-la nossa faculdade da sensibilidade a priori so pensadas (deter-minadas) pelo entendimento, recebendo assim, de seus conceitos puros a priori, a necessidade e a universalidade de que (enquanto sensveis) carecem. A experincia sintetiza, assim, a forma univer-

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    fia, deve constituir, no entanto, apenas a primeira parte do esforo filosfico a sua parte crtica enquanto de-limitao das possibilidades tericas da razo e, portan-to, como fundamentao daquela parte que, afinal, lhe essencial: a parte doutrinal. A filosofia, neste sentido, deve ser antes de tudo uma filosofia transcendental, o que quer dizer: uma filosofia que antes de perguntar-se pelos objetos, pergunta-se pelas condies em que eles so constitudos.5

    Ora, mas o conhecimento a priori do objeto experien-civel constitui apenas a primeira parte e no a essencial da Metafsica.6 O que a caracteriza essencialmente e constitui seu fim ltimo , como j vimos, o conheci-mento a priori de objetos no possveis de nos serem dados em alguma experincia. No entanto, o conheci-mento [terico] a priori de nossa razo [...] s se refere a fenmenos, deixando ao contrrio a coisa em si mesma de lado como coisa real para si, mas no conhecida por

    _____

    sal e necessria dos conceitos puros a priori do entendimento com o material sensvel recebido pela sensibilidade.

    5. Denomino transcendental todo conhecimento que em geral se ocupa no tanto com objetos, mas com o nosso modo de conhe-cer objetos na medida em que este deve ser possvel a priori (Kant, Crtica da Razo Pura, [Introduo], p. 33).

    6. A Metafsica, alm dos conceitos da natureza, que encontram sempre a sua aplicao na experincia, tem a ver com conceitos puros da razo, que nunca so dados numa experincia qualquer possvel, por conseguinte, com conceitos cuja realidade objeti-va...e com afirmaes cuja verdade ou falsidade no pode ser confirmada ou revelada por nenhuma experincia; alm disso, es-ta parte da metafsica justamente aquela que constitui o seu es-sencial, para a qual tudo o mais apenas meio... (Kant, Proleg-menos..., p. 110).

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    ns (portanto, no para ns).7 O em si que condiciona todo fenmeno o incondicionado, condio ltima de todo fenmeno, e que, enquanto tal, no nos dado como objeto dos sentidos e, portanto, tambm no na experincia. Da que seja uma contradio pensar o nos-so conhecimento dos objetos como regulado pelas coisas em si, j que elas no podem ser experencializadas. Mas no h qualquer contradio em pensarmos que os obje-tos de nossos conhecimentos limitados esfera fenom-nica nos so dados segundo nosso prprio modo de conhecer. O incondicionado pode ser pensado e mais ainda: deve ser pensado, pois, como argumenta Kant, do contrrio seguir-se-ia a proposio absurda de haver fenmeno sem que houvesse algo aparecendo8 , mas no teoricamente conhecido. Concluso fundamental dessa delimitao que o supra-sensvel no pode ser objeto de nossa faculdade terica, mas apenas da facul-dade prtica (isto , moral).

    O que Kant busca nos demonstrar que se no fi-zermos uma distino entre fenmeno e noumeno, todas as coisas em geral s poderiam ser pensadas pela causalidade natural, o que nos levaria contradio se pensssemos uma causalidade livre (isto , uma causalidade que no se insere numa srie causal a partir de causas anteriores, mas, ao contrrio, inicia a partir de si mesmo uma nova srie causal). Da que, nesta perspectiva, os objetos dos

    _____

    7. Kant, Crtica da razo pura, p. 13, itlicos meus. 8. Ibidem, p. 16. Aqui cabe, mais uma vez, lembrar que fenmeno

    em alemo (Phnomen), tanto quanto em portugus, deriva do pha-inmenon grego, particpio presente singular neutro do verbo pha-no, aparecer, estar vista, estar luz.

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    sentidos so pensados pelo princpio da causalidade na-tural (mecanismo), conhecidos teoricamente e no-livres, pois precisamente determinados numa srie causal; j as coisas em si, que iniciam uma srie causal, podem ser pensadas mas no conhecidas teoricamente como livres.

    Nesta perspectiva, a metafsica possvel, segundo Kant, deve dar conta da aplicao da razo simples-mente a si mesma e [d]o pretenso conhecimento objeti-vo que decorreria imediatamente da razo incubando os seus prprios conceitos, sem que para isso ter necessi-dade da mediao da experincia (ou que em geral a possa chegar atravs dela).9 Esses conceitos da razo, cuja determinao se d inteiramente independente de toda experincia possvel, se distinguem inteiramente dos conceitos puros do entendimento. Segundo explici-ta, assim como o entendimento precisa das categorias para a experincia, de igual modo a razo contm em si o princpio das idias.10 As idias, enquanto conceitos da razo (puros, a priori e no experimentveis), so princ-pios regulativos da ao moral e se situam, portanto, na esfera das faculdade prtica (e no terica) dos indiv-duos. Deste modo, as trs grandes questes metafsicas que, para Kant, so a existncia de Deus, a imortalidade da alma e a liberdade11 no podem ser objetos do conheci-_____

    9. Kant, Prolegmenos..., p. 110. 10. Ibidem, p. 111, itlicos meus. 11. Essa a verso kantiana dos trs objetos da metafsica especi-

    al (assim denominada por Spinoza na Parte II de seus Pensamen-tos metafsicos, apndice dos Princpios da filosofia cartesiana [1663]), tal como se encontram tematizados por Descartes em suas Medi-taes [1641], a saber, Deus, alma e mundo.

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    mento terico, pois desses objetos no podemos ter qualquer experincia; eles tm, portanto, para Kant, uma dimenso prtica (moral). O que isto, no entanto, quer dizer? o que cabe, agora, explicitar, recorrendo Fun-damentao da Metafsica dos Costumes e, por fim, Crtica da Razo Prtica.

    II Leis da natureza e leis da liberdade

    Para Kant, tudo na natureza age segundo leis; s os seres racionais agem segundo uma representao da lei, isto , possuem vontade. Com efeito, a vontade definida por Kant como a faculdade de se determinar a si mes-mo a agir em conformidade com a representao de leis.12 Com esta definio, no entanto, no temos ainda o conceito de vontade livre (liberdade), pois, como parece claro, ainda se est por saber que leis se devem representar na determinao de nossa ao para que esta seja livre, isto , de-corra de nossa livre vontade. Disto decorre a distino, que essencial ao pensamento kantiano, entre leis da natureza e leis da liberdade.13

    _____

    12. Kant, Fundamentao da metafsica dos costumes [1785]. Trad. port. Paulo Quintela. Lisboa: Edies 70, p. 67.

    13. Neste passo, a compreenso de duas classes de distines esta-belecidas por Kant fundamental. Num primeiro nvel, que diz respeito prpria diviso fundamental do sistema filosfico en-tre filosofia terica e filosofia prtica, temos a distino entre conceitos da natureza (os conceitos puros a priori do entendimento, formas a priori de todo conhecimento terico possvel, cujos objetos so os fenmenos, isto , os objetos dos sentidos) e os conceitos da li-berdade (as idias ou conceitos puros da razo, enquanto princ-pios regulativos da ao, cujos objetos, segundo Kant observa, no podem ser dados em nenhuma experincia: a determina-

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    Da que Kant apresente, primeiramente sob a forma negativa, o conceito de liberdade como sendo a propriedade daquela vontade que no determinada por causas estranhas; positivamente, isto significa que a von-tade livre aquela que se normatiza pela representao da lei que ela mesma se deu. Assim, vontade livre , para Kant, autonomia, autolegislao. Assim, o que seria pr-prio aos seres racionais o fato de serem dotados de uma vontade livre, isto , de uma vontade que determina a sua ao por uma representao de leis que eles mes-mos, enquanto seres racionais, legislam.14

    _____

    o prtica da vontade pela razo). Dessa distino decorre ne-cessariamente uma segunda: entre as aes tecno-prticas (cujo ob-jeto fenmeno e, como tal, se assenta em imperativos decor-rentes do conhecimento terico da natureza) e as aes prtico-morais (cujo fundamento a priori so os conceitos da liberdade). Teoria e prxis em Kant esto, portanto, necessariamente sepa-rados, sendo tal separao condio para que haja a liberdade no nvel prxico. Em Aristteles, esta distino aparece entre a teo-ria, enquanto contemplao do eterno, na qual os homens se comparam aos deuses, e prxis, enquanto ao no mbito tico-poltico, no qual os homens relacionam-se com seus iguais; em Kant a teoria pensada como conhecimento terico dos fen-menos, em cujas exigncias encontra-se a de intuio sensvel, e a prxis pensada como uso dos princpios supra-sensveis da ao (trata-se, assim, de um conhecimento prtico supra-sensvel).

    14. Como Hegel chama a ateno em suas Prelees de histria da filosofia, Kant assume, neste nvel mais fundamental e geral da ao moral, a definio de liberdade pensada por Rousseau no mbito da autolegislao poltica: a obedincia lei que se esta-tuiu a si mesmo a liberdade (Contrato social, I, 8), definio esta que retoma, em certa medida, o sentido grego de autonomia, constitutivo do que os gregos entendiam por poltica.

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    Como o homem no apenas racional, mas tam-bm um ser da natureza, sua vontade no se determina como seria o caso das vontades santas apenas pela razo, pela lei racional, mas tambm pelas inclinaes, paixes, constrangimentos histricos etc. (conjunto de determinaes estrangeiras razo, que poderamos agrupar sob a categoria de Natureza). Da por que a lei da razo assuma a forma de uma obrigao (Ntigung), um mandamento. Colocar-se a si mesmo frente s determina-es de sua razo como a uma obrigao, significa para os homens colocarem-se racionalmente um dever (Sollen). O dever precisamente o posicionar-se prtico como obrigado diante de uma lei, que tem para a conscincia moral um carter objetivo, universal, em distino das inclinaes subjetivas-particulares. O dever, assim, as-sume para ns a forma de um mandamento, um impera-tivo categrico, que determina em absoluta necessidade a forma sob a qual se d o agir livre do homem. Tal for-ma : Age segundo uma mxima que possas querer ao mesmo tempo que ela se torne lei universal.15

    _____

    15. Kant, Fundamentao da metafsica dos costumes, p. 59. A relao do dever com a lei moral conduz Kant distino entre agir de a-cordo com o dever e agir pelo dever. Pelo primeiro termo, diz-se de uma conformidade da ao ao dever, fenomenicamente verificvel, na qual permanece incerto o seu mbil: se, de fato, h a adequa-o da mxima da ao lei moral ou uma inclinao que, a-penas exteriormente/aparentemente, a ela conforme. Quando o mbil a inclinao imediata, a ao no tem nenhum valor intrnseco e a mxima que o exprime nenhum contedo moral. Ao contrrio, quando se age no por inclinao ou medo, mas por dever, ento a sua mxima tem um contedo moral (Ibi-dem, p. 27 e 28, respectivamente).

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    Antes de explicarmos o significado deste imperati-vo, necessrio termos em vista que o seu carter cate-grico isto , incondicional e absoluto est intima-mente ligado ao seu carter formal. Segundo a avaliao de Kant, todo sistema moral tinha at ento fracassado precisamente pelo seu carter material, isto , por ser constitudo por leis morais de contedos particulares: deves fazer isto, no deves fazer aquilo etc. O carter material desses sistemas morais, pela prpria particulari-dade de seus contedos, leva inevitavelmente a contradi-es, por um lado, e, por outro, a uma desorientao frente infinidade de problemas morais que a experin-cia tica apresenta aos indivduos. Da por que, para bem agirmos moralmente, precisamos nos basear no em um sistema de normas morais positivadas, mas de uma forma a priori qual toda a nossa experincia tica possa ser submetida, um critrio da razo com fundamento no qual todos os mbiles da ao possam ser julgados e a ele adequados. Tal critrio, sendo formal, deve, portanto, poder ajuizar de modo absoluto todas as mximas (isto , as determinaes subjetivas) de nossa ao. Tal crit-rio, assim exigido, s pode radicar na razo em sua auto-nomia, isto , em nossa faculdade de determinar leis pr-ticas (morais) de modo absolutamente a priori e livre de todos os constrangimentos exteriores, sejam eles histri-cos, naturais, sentimentais etc.16

    _____

    16. O conceito de autonomia central determinao do fundamen-to da lei moral, que, segundo Kant, a liberdade enquanto pro-priedade da razo; ope-se, assim, heteronomia, causalidade da vontade no fundada na lei moral e, portanto, tambm no na-quilo que a condiciona, que a liberdade da razo. No dizer de Kant: Autonomia da vontade aquela sua propriedade graas

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    Neste sentido, o imperativo categrico se distingue ra-dicalmente dos imperativos hipotticos, na medida em que estes determinam uma ao cujo fim est fora dela, isto , uma ao que apenas meio para um fim outro.17 J o imperativo categrico determina um valor moral ao nela mesma, isto , como fim em si mesmo e no por poder ser ela um meio para outro fim. Ele se determina de modo absolutamente a priori, diferentemente dos hipot-ticos, que so empricos. O motivo do imperativo categrico no pode ser, portanto, nem mesmo a felicidade, nem mesmo o prazer. A ao moral, fim em si mesma, pode tornar-nos dignos da felicidade, mas no pode mover-se a tendo como objetivo; e pode certamente d-nos prazer, mas um prazer moral, quando experimentamos nossa prpria liberdade de agir por princpios da razo e no por constrangimentos externos de qualquer ordem.

    O imperativo categrico , assim, o princpio su-premo que, fundado na autonomia da razo e, portanto,

    _____

    qual ela para si mesma a sua lei (independente dos objetos do querer). Ao contrrio, Quando a vontade buscar a lei que deve determin-la em qualquer outro ponto que no seja a aptido das suas mximas para a sua prpria legislao universal alm de si mesma, o resultado ento sempre heteronomia (Ibidem, p. 85 e 85, respectivamente).

    17. Os imperativos hipotticos, segundo Kant, dividem-se em pro-blemticos e assertrico-prticos. Problemticos quando seu fim mltiplo e apenas possvel; tais so os imperativos de destreza que nos conduzem s aes de habilidade e se determinam pela representao das leis naturais. Assertrico-prticos, quando seu fim a felicidade, cujos meios por dependerem do que possa a cada um conduzir felicidade e das condies externas em que ela pode se realizar so mltiplos exigindo de cada um apenas a prudncia. Cf. Kant, op. cit., p. 50-53.

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    em sua liberdade, legitima a ao livre do homem, na me-dida em que a situa numa esfera universal. Pelo impera-tivo categrico, expressa-se a exigncia racional de que a ao humana, para ser livre, deve determinar-se por uma legislao universal, qual se deve poder ajustar o contedo particular de nosso querer subjetivo (mximas). Mas, j que a ao humana efetiva-se no mundo fenomnico, sensvel (natureza, em seu sentido amplo), o imperativo categrico, cuja frmula foi apresentada acima, pode assumir, portanto, uma segunda forma: Age como se a mxima de tua ao se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza.18

    Ora, se o imperativo categrico for possvel, ele o ser por ter por base um fim que esteja em si mesmo; tal base, como sabemos, a razo. Segundo Kant, isto quer dizer: A natureza racional existe em si mesma.19 Da que o imperativo categrico, segundo ele, possua ainda uma terceira forma: Age de tal maneira que uses a hu-manidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qual-quer outro, sempre e simultaneamente como fim e nun-ca como meio.20 A universalidade, que a razo exige co-mo fim de toda ao nossa e da qual s a prpria razo pode ser fundamento, expressa o fato de que a razo (em ns e nos outros) tem sempre a si mesma (em ns e nos outros) como finalidade. Deste modo, os homens, enquanto racionais, so sempre fim e nunca meios; isto o que os torna pessoas e os distingue das coisas.

    _____

    18. Ibidem. 19. Ibidem, p. 69. 20. Ibidem.

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    Mas a razo base para o imperativo categrico porque, em sua autonomia, ela legisladora. Segundo Kant, o princpio da autolegislao conduz ao conceito de Reino dos Fins. Enquanto ideal da autolegislao univer-sal, o Reino dos Fins diz de um reino (i. , uma totalidade de vontades racionais) que se funda no princpio de que cada um dos seus membros tenha sempre a si mesmo e aos outros como fim. O ideal moral do Reino dos Fins possvel como mundo de seres racionais que determi-nam as mximas de suas aes tendo-as sempre como de validade legal universal. O Reino dos Fins o reino da liberdade, enquanto mundo inteligvel no qual todo ser racional se pe a si mesmo como legislador de sua ao, cuja mxima, por conseqncia, tem a forma de uma lei universal, isto , uma lei vlida para cada um e para todos os outros. Assim compreendido, o imperati-vo assume ainda uma ltima forma: Age segundo m-ximas de um membro universalmente legislador em or-dem a um reino dos fins somente possvel.21

    Essas formas do imperativo categrico relacio-nam-se essencialmente entre si, enquanto maneiras dis-tintas do mesmo princpio da moralidade. As duas primei-ras apresentam o elemento formal da moralidade: a sua universalidade (a exigncia de que a mxima da ao tenha a forma de lei universal). A terceira apresenta a matria ou fim da moralidade: a posio dos seres racionais como finalidade de toda ao moral. A ltima, como sntese, apresenta a determinao completa de todas as mximas: a sua concordncia com a idia da razo de um reino pos-svel dos fins como um reino da natureza. Kant pode,

    _____

    21. Ibidem, p. 83.

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    assim, definir a moralidade como sendo a relao das aes com a autonomia da vontade, isto , com a legisla-o universal possvel por meio de suas mximas.22

    III Leis ticas e leis jurdicas

    do fundamento da autonomia da razo que Kant parte para a esfera comum onde se situam as leis da liber-dade. Nelas se incluem tanto as leis propriamente ticas, que exigem do agir a conscincia interior do dever, quanto as leis jurdicas, que exigem apenas uma conformi-dade exterior da ao s leis. Na Metafsica dos Costumes Doutrina do Direito, Kant determina assim estes dois tipos de leis da liberdade: Essas leis da liberdade so chama-das de morais, de forma a serem distinguidas das leis na-turais ou fsicas. Quando se referem somente a aes externas e sua legitimidade, so chamadas jurdicas. Po-rm, se, alm disso, exigem que as prprias leis sejam os princpios determinantes da ao, ento so chamadas de ticas na acepo prpria da palavra. E ento se diz que a simples conformidade da ao externa com as leis jurdicas constitui a sua legalidade; sua conformidade com as leis morais sua moralidade.23 Ricardo Ribeiro Terra prope uma outra traduo para o ltimo perodo dessa citao: O acordo com as primeiras [i. , leis jurdicas] a legalidade das aes, o acordo com as segundas [i. , leis

    _____

    22. Ibidem, p. 84. 23. Kant, Doutrina do direito [1797]. Trad. bras. Edson Bini. So

    Paulo: cone, 1993, p. 22-23.

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    ticas] a moralidade.24 O uso dessa citao no artigo de Terra cumpre a funo de manter a idia de que leis morais, como diz o prprio Kant, so o mesmo que leis da liberdade; neste sentido, tanto as leis jurdicas quanto as ticas so leis morais, leis da liberdade. A mora-lidade no se constitui, portanto, das leis morais, como sugere a traduo de E. Bini, mas especificamente das leis ticas, pois estas so morais tanto quanto as leis jurdicas, que constituem a legalidade.

    Assim, para Kant, as leis morais, enquanto leis da liberdade, que se fundam na autonomia da razo, se divi-dem em leis ticas e leis jurdicas, s quais correspondem dois campos da ao, respectivamente: a moralidade e a legalidade. Ao primeiro corresponde a tica, ao segundo o Direito. Esta diferena , no entanto, formal. O dever o mesmo; o que os diferencia no o fundamento, mas sim qual mbil (se interior e ou exterior) est ligado lei. A esfera do Direito, enquanto corresponde exigncia de que a ao deva situar-se numa determinao universal e racional, no-subjetiva e no-emprica, tambm se funda na autonomia da razo e pertence, portanto, esfera da liberdade humana. Dito de outro modo, somente a ra-zo, enquanto legisladora, pode dar forma universal a man-damentos, ainda que estes se apresentem numa relao externa com as mximas das aes individuais, como acontece com as leis jurdicas, e no como mbiles in-ternos das mximas, como o caso das leis ticas. A ao conforme lei exterior da liberdade (lei jurdica)

    _____

    24. Terra, R. R. A distino entre direito e tica na filosofia kantia-na. In: Filosofia Poltica, n 4. Campinas, SP: Edunicamp, p. 49, colchetes meus.

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    mantm-se ainda, portanto, fundada na autonomia da razo; o fato de que seu mbil exterior no significa aqui a presena da heteronomia, pois esta, segundo Kant, no pode fundar nenhuma obrigao. Contudo, o ser racional, quando sua vontade determinada pela razo, faz-se obrigado diante das leis jurdicas, porque nelas reconhe-ce a forma universal, portanto racional, da lei. Segundo bem comenta Terra, a obrigao jurdica, bem como a exigncia de coexistncia das liberdades segundo uma lei universal, devem basear-se na razo prtica.25

    Ora, se o fundamento do Direito a autonomia (is-to , a faculdade que o homem como ser racional pos-sui de dar-se leis), o que lhe vai ser especfico justa-mente a normatizao da coexistncia das diversas liber-dades singulares. O tipo de liberdade especificamente jurdica aquela em que a liberdade de um indivduo no impedida pela liberdade do outro; para que as mlti-plas liberdades individuais possam se realizar e, ao mes-mo tempo, conviver, faz-se necessria uma normatiza-o dessa convivncia, segundo leis exteriores da liberdade, o que precisamente conforma o Direito. Da que Kant formule do seguinte modo a lei universal do Direito: age exteriormente de modo que o livre uso de teu arb-trio possa se conciliar com a liberdade de todos.26 Des-te modo, no pensamento de Kant, encontram-se articu-ladas a esfera fundante da liberdade moral do homem, onde todo legislar autnomo, e a esfera especfica do jurdico, na qual as liberdades individuais (arbtrios) en-contram um princpio normativo de convivncia. por-

    _____

    25. Terra, op. cit., p. 57. 26. Kant, Doutrina do direito, p. 46.

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    que o homem, enquanto ser livre, pode elaborar leis para a sua ao com base na razo (isto : vlida incondicio-nalmente para todos), que o Direito possvel, enquanto articulador de uma legislao universal mantenedora da convivncia dos diversos arbtrios individuais.

    IV Liberdade e postulados da razo

    Finalmente, podemos agora concluir a nossa ex-posio respondendo seguinte pergunta: como as grandes questes metafsicas Deus, imortalidade da alma e liberdade se relacionam com o problema mo-ral?

    Para pensar essas trs questes metafsicas, uma delas se apresenta, para Kant, como fundamento mesmo de toda a moralidade, que a liberdade. Da liberdade, podemos ter o conceito no como parte de um conhe-cimento terico (isto , experimentvel), mas de um conhecimento prtico. Na medida em que o fato da lei moral por ns imediatamente conhecido pois nos ordena imediatamente e apenas possvel enquanto liberdade, analiticamente ns sabemos a realidade da liber-dade, ainda que no a possamos teoricamente discernir. Como argumenta Kant, a liberdade , certamente, a ratio essendi da moral, [...] [e] a lei moral constitui a ratio cognoscendi da liberdade.27 Pelo conhecimento prtico da moral (a ao segundo princpios), ns discernimos a liberdade da razo (ter em si mesma seus princpios) como seu fundamento. Aqui parece ocorrer precisamen-

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    27. Kant, I. Crtica da razo prtica [1788]. Trad. port. Artur Moro. Lisboa: Edies 70, 1989, p. 12.

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    te o mesmo procedimento da analtica transcendental da Crtica da razo pura: se h leis, trata-se de saber o que as torna possveis. Se mandamentos morais h, se fato que a razo me ordena imediatamente, independente das condies exteriores, porque ela autnoma, portanto livre e autolegisladora.

    A liberdade, assim, se distingue dos conceitos de Deus e da imortalidade da alma porque condio de possibilidade da lei moral. Mas esses ltimos dois con-ceitos, ainda que no sejam condio da lei moral, so, no entanto, segundo diz Kant, as condies da aplicao da vontade moralmente determinada ao seu objeto.28 Isso quer dizer que a conscincia moral, no uso de sua liber-dade (a moralidade), apesar de no ter nas idias de Deus e imortalidade da alma o fundamento da lei moral, tem nessas idias, no entanto, as condies de uso da sua liberdade, isto , da sua ao moral. A conscincia moral postula, para alm do exerccio da liberdade como seu fundamento, tambm a existncia de Deus e a imor-talidade da alma.

    A conscincia moral postula a imortalidade da al-ma porque a exigida completa adequao da vontade aos impe-rativos da razo prtica no possvel seno num progres-so infinito; esta santidade requerida pela razo postulada pela conscincia moral, como persistncia da personalida-de num mesmo ser racional, esta persistncia sendo jus-tamente o que chamamos de imortalidade da alma.

    Do mesmo modo ocorre com a idia de Deus. A lei moral nos exige agir em funo do soberano bem e

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    28. Ibidem, itlicos meus.

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    determina em ns, em cada uma de nossas aes, a ade-quao s suas exigncias como condio para sermos dignos da felicidade; somos, no entanto, racionalmente, causa apenas de nossas aes individuais, e no do mun-do e da natureza, no havendo nos limites de nossa ao moral qualquer relao entre moralidade e felicidade. Da que a conscincia moral postule a existncia de uma causa do mundo e da natureza que possa, acima de ns, garantir essa relao entre felicidade e moralidade, bem como a garantia da realizao do soberano bem no mundo.

    Dizer que Deus e imortalidade da alma so postu-lados da razo prtica significa dizer que, segundo Kant, derivam todos eles do princpio da moralidade. Este princpio alerta no , ele mesmo, contudo,nenhum postulado, mas uma lei, pela qual a razo determina i-mediatamente a vontade, vontade esta que, precisamente por ser assim determinada, enquanto vontade pura, exige estas condi-es necessrias para a observncia do seu preceito.29

    Referncias bibliogrficas

    KANT, Immanuel. Crtica da razo pura [1781]. Trad. bras. Valrio Rohden et al. So Paulo: Abril Cultural, 1983. _____. Prolegmenos a toda metafsica futura que queira apre-sentar-se como cincia [1783]. Trad. port. Artur Moro. Lis-boa: Edies 70,1987. _____. Fundamentao da metafsica dos costumes [1785]. Trad. port. Paulo Quintela. Lisboa: Edies 70, 1992.

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    29. Ibidem, p. 151, itlicos meus.

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    _____. Crtica da razo prtica [1788]. Trad. port. Artur Moro. Lisboa: Edies 70, 1989. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Lecciones sobre la his-toria de la filosofa, III. Trad. mex. Wenceslao Roces. Ci-dade do Mxico: Fondo de cultura econmica, 1985. ROUSSEAU, Jean.-Jacques. Contrato social. Trad. br. Lourdes Santos Machado. So Paulo: Nova Cultural, 1987 (Os pensadores). TERRA, Ricardo Ribeiro. A distino entre direito e tica na filosofia kantiana. In: Filosofia Poltica, n 4. Campinas, SP: Edunicamp, 1989.