crise no sistema de justiça criminal

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CRISE NO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL Sérgio Adorno N ão são poucos os estudos que reconhecem a incapacidade do sis- tema de justiça criminal, no Brasil – agências policiais, ministé- rio público, tribunais de Justiça e sistema penitenciário –, em conter o crime e a violência respeitados os marcos do Estado de- mocrático de Direito. O crime cresceu e mudou de qualidade; porém, o sistema de Justiça permaneceu operando como há três ou qua- tro décadas. Em outras palavras, aumentou sobremodo o fosso entre a evolução da criminalidade e da violência e a capacidade do Estado de im- por lei e ordem. Desde a década de 1980, o acúmulo histórico de problemas na área se acentuou, em parte devido aos novos desafios político-institucionais propostos pela transição democrática. Por um lado, os governos federal e estaduais, pressionados por correntes de opinião pública sequiosas da imediata remoção do “entulho” autoritá- rio, tiveram que promover em curto espa- ço de tempo a desmontagem dos aparelhos repressivos associados ao regime militar, em especial os paramilitares. Tarefa difícil; reclamava, antes de tudo, pertinaz contro- le sobre os abusos de poder cometidos por agentes públicos (policiais militares nas ruas, nas habitações populares e nas insti- tuições de reparação social; policiais civis nas delegacias e distritos policiais; guardas nas instituições carcerárias). Por outro, os governos civis pós-ditadura demoraram em responder com eficiência ao cresci- mento e à mudança do perfil da criminali- dade urbana violenta, um cenário que adentrou os anos 90. A despeito dos investimentos em segurança pública, ora crescentes ora de- crescentes, sobretudo em recursos materiais, são notórias as dificuldades e desafios enfrentados pelo poder público em suas tarefas constitucionais de deter o monopólio estatal da violência, mesmo após quase duas déca- das de retorno ao Estado democrático de Direito. Seus sintomas contem- porâneos radicam, por exemplo, na sucessão de rebeliões nas prisões or- ganizadas por dirigentes do crime organizado, como o Comando Vermelho e Terceiro Comando, no Rio de Janeiro; e o Primeiro Comando da Capital, em São Paulo, este responsável pelo motim simultâneo de vinte e nove grandes prisões, no Estado de São Paulo, em fevereiro de 2001. Do mes- mo modo, cada vez mais é flagrante a ousadia no resgate de presos. Ade- mais, a existência de áreas, na maioria das metrópoles brasileiras, onde prevalecem as regras ditadas pelo tráfico de drogas sugere a constituição de quistos urbanos isentos da aplicação das leis. A face visível desta crise do sistema de Justiça criminal é, sem dúvida, a impunidade penal(1). Ao lado do sentimento coletivo, amplamente di- fundido entre cidadãos comuns, de que os crimes cresceram, e vem cres- cendo e se tornando cada vez mais violentos, há igualmente o sentimen- to de que os crimes não são punidos; ou, quando o são, não o são com o rigor de que seria esperado diante da gravidade dos crimes que têm maior repercussão na opinião pública. Mas, há também um outro lado da questão. Se muitos crimes deixam de merecer sanções penais, quais- quer que sejam, isso não significa dizer que a Justiça penal é pouco rigo- rosa. As sanções alcançam preferencialmente grupos sociais singulares, como negros e migrantes, comparativamente às sanções aplicadas a cida- dãos brancos, procedentes das classes média e alta da sociedade(2). A imagem flagrante do sistema de Justiça criminal é de um funil: largo na base – área na qual os crimes são oficialmente detectados – e estreito no gargalo, região onde se situam aqueles crimes cujos autores chegaram a ser processados e por fim acabaram sendo condenados. Não é certamente um cenário próprio à sociedade brasileira. Em outras sociedades do mundo ocidental essa imagem é também presente, em particular nos Estados Unidos; porém, singular à sociedade brasileira é a magnitude do funil: extremamente largo na base, excessivamente es- treito no gargalo. Os poucos estudos disponíveis(3) – sugerem que as taxas de impunidade são mais elevadas no Brasil do que em outros paí- ses, como França(4), Inglaterra(5), Estados Unidos(6). A carência de dados estatísticos e de levantamentos sis- temáticos periódicos impede o conheci- mento da efetiva magnitude e extensão da impunidade penal no Brasil. A despeito destas limitações, algumas avaliações par- ciais já indicam algo a respeito. Crimes como furtos ou que compreendem a cha- mada pequena criminalidade, em regra, não chegam a ser investigados, sobretudo se a autoria for desconhecida. Mesmo ca- sos mais graves, como roubos, tráfico de drogas e até homicídios, compõem as cha- madas “áreas de exclusão penal”. Há sus- peitas de que as taxas de impunidade se- jam proporcionalmente mais elevadas para as graves violações de direitos huma- nos, tais como: homicídios praticados pe- la polícia, por grupos de patrulha privada, por esquadrões da morte e/ou grupos de extermínio; ou ainda homicídios consumados durante linchamentos e naqueles casos que envolvem trabalhadores rurais e li- deranças sindicais. Do mesmo modo, parecem altas as taxas de impuni- dade para crimes do colarinho branco cometidos por cidadãos proce- dentes das classes médias e altas da sociedade. Os poucos dados disponíveis são surpreendentes. No Estado de São Pau- lo, em 1970, do total de pessoas processadas, 75% foram denunciadas; 27% condenadas; e 48% absolvidas. Em 1982, essas proporções reduzi- ram-se respectivamente para 65%, 22% e 43%. Enquanto a instauração de inquéritos penais, no período de 1970-1982, cresceu 191,4% e as ações penais, 148,5%; os inquéritos arquivados cresceram 326,2%. Do mesmo modo, a extinção de punibilidade cresceu de 3,4% para 6,3%(7). No mesmo período, para o Estado do Rio de Janeiro, um estudo sobre a evolução do crime(8) observou que as chances de condenação, em crimes contra o patrimônio, vinha declinando: em 1976, era de 0,0506; em 1980, 0428. Vale dizer, no início do período, para cada cem crimes con- tra o patrimônio, condenavam-se cinco infratores; poucos anos mais tar- de, quatro infratores eram condenados. O mesmo estudo constatou ain- da que o crescimento em 50% da criminalidade urbana, entre 1977 e 1986, foi acompanhado do declínio, em 27,4%, das taxas de aprisiona- mento (população prisional/100.000 habitantes). Para a década de 1990, o quadro não é menos grave. Alguns anos mais tarde, Soares e outros(9) atualizaram as análises sobre a evolução da vio- lência no Estado e Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Seus resulta- dos indicam, para o município do Rio de Janeiro, tão somente 8,1% dos inquéritos sobre homicídios dolosos (isto é, intencionais) e 8,9% dos in- quéritos sobre roubos seguidos de morte (modalidade mais conhecida co- mo latrocínio) foram convertidos em processos penais, no ano de 1992. Nesse mesmo ano, 92% dos crimes dolosos contra a vida deixaram de merecer alguma sanção penal. Para o município de São Paulo, Cas- tro(10), observando homicídios praticados contra crianças e adolescentes, no ano de 1991, constatou que apenas 1,72% de todos os crimes denun- ciados alcançaram uma sentença condenatória, transitada em julgado, no final do período observado, o ano de 1994. Essa tendência parece ter-se mantido ao longo da década. Em 1999, transitaram pelo I Tribunal de Jú- ri da capital cerca de 10 mil processos instaurados para apuração de res- ponsabilidade penal em homicídios. Em torno de 70%, os processos fo- ram arquivados(11). A conseqüência mais grave deste processo em cadeia é a descrença dos ci- dadãos nas instituições promotoras de justiça, em especial encarregadas de distribuir e aplicar sanções para os autores de crime e de violência. Ca- da vez mais descrentes na intervenção saneadora do poder público, os ci- dadãos buscam saídas. Aqueles que dispõem de recursos apelam, cada vez mais, para o mercado de segurança privada, um segmento que vem cres- cendo há, pelo menos, duas décadas. Em contrapartida, a grande maioria da população urbana depende de guardas privados sem profissionaliza- ção, apóia-se perversamente na “proteção” oferecida por traficantes locais ou procura resolver suas pendências e conflitos por conta própria. Tanto num como noutro caso, seus resultados contribuem ainda mais para en- fraquecer a busca de soluções por intermédio das leis e do funcionamen- to do sistema de Justiça criminal. Sérgio Adorno é professor associado do Departamento de Sociologia da USP, coordenador do NEV/USP, diretor de educação do projeto Cepid/Fapesp e coordenador do projeto Cepid, um es- tudo sobre impunidade no município de São Paulo. Referências Bibliográficas 1 Dahrendorf, R. Lei e ordem. Brasília: Instituto Tancredo Neves, 1987. 2 Adorno, S. “Discriminação racial e justiça criminal em São Paulo”. Novos Estudos. Ce- brap. São Paulo, Cebrap, 43: 45-63, novembro 1995. Costa, C. A R. da (1995). Cor e crime: estudo e análise da justiça no Rio de Janeiro (1900-1930). Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.Vargas, J. (2000). Crimes sexuais e sistema de justiça. São Paulo: IBCrim, 1995. 3 Soares, L. E. e outros. Crime e política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996. Adorno, S. S. Cidadania e administração da Justiça criminal. In: Diniz, E.; Leite Lopes, S. E., Prandi, R. (orgs.). O Brasil no rastro da crise. Anuário de Antropologia, Políti- ca e Sociologia. São Paulo: Anpocs/IPEA, Hucitec, 1994. p. 304-27. Adorno, S. “Dis- criminação racial e justiça criminal em São Paulo”. Novos Estudos. Cebrap. São Paulo, Cebrap, 43: 45-63, novembro, 1995. Pinheiro, S.; Adorno, S.; Cardia, N. Continuidade au- toritária e construção da democracia. Relatório final de pesquisa. São Paulo: NEV/ USP, 4 v. (Fapesp), 1999. In: www.nev.prp.usp.br. Castro, M.M. P. de. Vidas sem valor: um es- tudo sobre os homicídios de crianças e adolescentes e a atuação das instituições de segurança e justiça.Tese de Doutorado em Sociologia. PPGS/FFLCH-USP, 1996, p. 279. 4 Robert, P .; Aubusson de Cavarlay, B.; Pottier, M. L.;Tournier, P . Les comptes du crime. Les délinquences en France et leurs mesures. Paris: L’Harmattan, 1994. 5 Jefferson,T. e Shapland, J. Criminal Justice: order and control. British Journal of Criminolo- gy, 1994, 34(3): 265-290. 6 Gurr,T.R. Violence in America: the history of crime (violence, cooperation, peace), an In- ternational Series, v. 1. Newbury Park: Sage Publications, 2v., 1989. Donzinger, S., ed. The real war on crime. New York:The National Criminal Justice Commission, 1996. 7 Adorno, S. S. “Cidadania e administração da Justiça criminal”. In: Diniz, E.; Leite Lopes, S. E Prandi, R. (orgs). O Brasil no rastro da crise. Anuário de Antropologia, Política e So- ciologia. São Paulo: Anpocs/IPEA, Hucitec, 1994. p. 304-27. 8 Coelho, E. C. “A criminalidade urbana violenta”. Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Iuperj, 1988, 31(2): 145-83. 9 Soares, L. E. e outros. Crime e política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996. 10 Castro, M.M. P . de. Vidas sem valor: um estudo sobre os homicídios de crianças e ado- lescentes e a atuação das instituições de segurança e justiça.Tese de Doutorado em Sociologia. 1996, PPGS/FFLCH-USP , 279p. 11 O Estado de S. Paulo, editorial, 22/05/2001. 50 51 VIOLÊNCIA / A RTIGOS VIOLÊNCIA / A RTIGOS A O LADO DO SENTIMENTO COLETIVO DE QUE OS CRIMES CRESCERAM, IGUALMENTE O SENTIMENTO DE QUE OS CRIMES NÃO SÃO PUNIDOS...

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Page 1: Crise no sistema de justiça criminal

CRISE NO SISTEMADE JUSTIÇA CRIMINAL

Sérgio Adorno

Não são poucos os estudos que reconhecem a incapacidade do sis-tema de justiça criminal, no Brasil – agências policiais, ministé-rio público, tribunais de Justiça e sistema penitenciário –, emconter o crime e a violência respeitados os marcos do Estado de-mocrático de Direito. O crime cresceu e mudou de qualidade;

porém, o sistema de Justiça permaneceu operando como há três ou qua-tro décadas. Em outras palavras, aumentou sobremodo o fosso entre aevolução da criminalidade e da violência e a capacidade do Estado de im-por lei e ordem. Desde a década de 1980, o acúmulo histórico de problemas na área seacentuou, em parte devido aos novos desafios político-institucionaispropostos pela transição democrática. Por um lado, os governos federale estaduais, pressionados por correntes de opinião pública sequiosas daimediata remoção do “entulho” autoritá-rio, tiveram que promover em curto espa-ço de tempo a desmontagem dos aparelhosrepressivos associados ao regime militar,em especial os paramilitares. Tarefa difícil;reclamava, antes de tudo, pertinaz contro-le sobre os abusos de poder cometidos poragentes públicos (policiais militares nasruas, nas habitações populares e nas insti-tuições de reparação social; policiais civisnas delegacias e distritos policiais; guardasnas instituições carcerárias). Por outro, osgovernos civis pós-ditadura demoraramem responder com eficiência ao cresci-mento e à mudança do perfil da criminali-dade urbana violenta, um cenário queadentrou os anos 90. A despeito dos investimentos em segurança pública, ora crescentes ora de-crescentes, sobretudo em recursos materiais, são notórias as dificuldadese desafios enfrentados pelo poder público em suas tarefas constitucionaisde deter o monopólio estatal da violência, mesmo após quase duas déca-das de retorno ao Estado democrático de Direito. Seus sintomas contem-porâneos radicam, por exemplo, na sucessão de rebeliões nas prisões or-ganizadas por dirigentes do crime organizado, como o Comando Vermelhoe Terceiro Comando, no Rio de Janeiro; e o Primeiro Comando da Capital,em São Paulo, este responsável pelo motim simultâneo de vinte e novegrandes prisões, no Estado de São Paulo, em fevereiro de 2001. Do mes-mo modo, cada vez mais é flagrante a ousadia no resgate de presos. Ade-mais, a existência de áreas, na maioria das metrópoles brasileiras, ondeprevalecem as regras ditadas pelo tráfico de drogas sugere a constituiçãode quistos urbanos isentos da aplicação das leis. A face visível desta crise do sistema de Justiça criminal é, sem dúvida, aimpunidade penal(1). Ao lado do sentimento coletivo, amplamente di-fundido entre cidadãos comuns, de que os crimes cresceram, e vem cres-cendo e se tornando cada vez mais violentos, há igualmente o sentimen-

to de que os crimes não são punidos; ou, quando o são, não o são como rigor de que seria esperado diante da gravidade dos crimes que têmmaior repercussão na opinião pública. Mas, há também um outro ladoda questão. Se muitos crimes deixam de merecer sanções penais, quais-quer que sejam, isso não significa dizer que a Justiça penal é pouco rigo-rosa. As sanções alcançam preferencialmente grupos sociais singulares,como negros e migrantes, comparativamente às sanções aplicadas a cida-dãos brancos, procedentes das classes média e alta da sociedade(2). Aimagem flagrante do sistema de Justiça criminal é de um funil: largo nabase – área na qual os crimes são oficialmente detectados – e estreito nogargalo, região onde se situam aqueles crimes cujos autores chegaram aser processados e por fim acabaram sendo condenados. Não é certamente um cenário próprio à sociedade brasileira. Em outrassociedades do mundo ocidental essa imagem é também presente, emparticular nos Estados Unidos; porém, singular à sociedade brasileira éa magnitude do funil: extremamente largo na base, excessivamente es-treito no gargalo. Os poucos estudos disponíveis(3) – sugerem que astaxas de impunidade são mais elevadas no Brasil do que em outros paí-ses, como França(4), Inglaterra(5), Estados Unidos(6). A carência de

dados estatísticos e de levantamentos sis-temáticos periódicos impede o conheci-mento da efetiva magnitude e extensão daimpunidade penal no Brasil. A despeitodestas limitações, algumas avaliações par-ciais já indicam algo a respeito. Crimescomo furtos ou que compreendem a cha-mada pequena criminalidade, em regra,não chegam a ser investigados, sobretudose a autoria for desconhecida. Mesmo ca-sos mais graves, como roubos, tráfico dedrogas e até homicídios, compõem as cha-madas “áreas de exclusão penal”. Há sus-peitas de que as taxas de impunidade se-jam proporcionalmente mais elevadaspara as graves violações de direitos huma-nos, tais como: homicídios praticados pe-

la polícia, por grupos de patrulha privada, por esquadrões da mortee/ou grupos de extermínio; ou ainda homicídios consumados durantelinchamentos e naqueles casos que envolvem trabalhadores rurais e li-deranças sindicais. Do mesmo modo, parecem altas as taxas de impuni-dade para crimes do colarinho branco cometidos por cidadãos proce-dentes das classes médias e altas da sociedade. Os poucos dados disponíveis são surpreendentes. No Estado de São Pau-lo, em 1970, do total de pessoas processadas, 75% foram denunciadas;27% condenadas; e 48% absolvidas. Em 1982, essas proporções reduzi-ram-se respectivamente para 65%, 22% e 43%. Enquanto a instauraçãode inquéritos penais, no período de 1970-1982, cresceu 191,4% e asações penais, 148,5%; os inquéritos arquivados cresceram 326,2%. Domesmo modo, a extinção de punibilidade cresceu de 3,4% para 6,3%(7).No mesmo período, para o Estado do Rio de Janeiro, um estudo sobre aevolução do crime(8) observou que as chances de condenação, em crimescontra o patrimônio, vinha declinando: em 1976, era de 0,0506; em1980, 0428. Vale dizer, no início do período, para cada cem crimes con-tra o patrimônio, condenavam-se cinco infratores; poucos anos mais tar-

de, quatro infratores eram condenados. O mesmo estudo constatou ain-da que o crescimento em 50% da criminalidade urbana, entre 1977 e1986, foi acompanhado do declínio, em 27,4%, das taxas de aprisiona-mento (população prisional/100.000 habitantes). Para a década de 1990, o quadro não é menos grave. Alguns anos maistarde, Soares e outros(9) atualizaram as análises sobre a evolução da vio-lência no Estado e Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Seus resulta-dos indicam, para o município do Rio de Janeiro, tão somente 8,1% dosinquéritos sobre homicídios dolosos (isto é, intencionais) e 8,9% dos in-quéritos sobre roubos seguidos de morte (modalidade mais conhecida co-mo latrocínio) foram convertidos em processos penais, no ano de 1992.Nesse mesmo ano, 92% dos crimes dolosos contra a vida deixaram demerecer alguma sanção penal. Para o município de São Paulo, Cas-tro(10), observando homicídios praticados contra crianças e adolescentes,no ano de 1991, constatou que apenas 1,72% de todos os crimes denun-ciados alcançaram uma sentença condenatória, transitada em julgado, nofinal do período observado, o ano de 1994. Essa tendência parece ter-semantido ao longo da década. Em 1999, transitaram pelo I Tribunal de Jú-ri da capital cerca de 10 mil processos instaurados para apuração de res-ponsabilidade penal em homicídios. Em torno de 70%, os processos fo-ram arquivados(11). A conseqüência mais grave deste processo em cadeia é a descrença dos ci-dadãos nas instituições promotoras de justiça, em especial encarregadasde distribuir e aplicar sanções para os autores de crime e de violência. Ca-da vez mais descrentes na intervenção saneadora do poder público, os ci-dadãos buscam saídas. Aqueles que dispõem de recursos apelam, cada vezmais, para o mercado de segurança privada, um segmento que vem cres-cendo há, pelo menos, duas décadas. Em contrapartida, a grande maioriada população urbana depende de guardas privados sem profissionaliza-ção, apóia-se perversamente na “proteção” oferecida por traficantes locaisou procura resolver suas pendências e conflitos por conta própria. Tantonum como noutro caso, seus resultados contribuem ainda mais para en-fraquecer a busca de soluções por intermédio das leis e do funcionamen-to do sistema de Justiça criminal.

Sérgio Adorno é professor associado do Departamento de Sociologia da USP, coordenador doNEV/USP, diretor de educação do projeto Cepid/Fapesp e coordenador do projeto Cepid, um es-tudo sobre impunidade no município de São Paulo.

Referências Bibliográficas

1 Dahrendorf, R. Lei e ordem. Brasília: Instituto Tancredo Neves, 1987.2 Adorno, S. “Discriminação racial e justiça criminal em São Paulo”. Novos Estudos. Ce-

brap. São Paulo, Cebrap, 43: 45-63, novembro 1995. Costa, C. A R. da (1995). Cor ecrime: estudo e análise da justiça no Rio de Janeiro (1900-1930). Rio de Janeiro: Editorada UFRJ.Vargas, J. (2000). Crimes sexuais e sistema de justiça. São Paulo: IBCrim, 1995.

3 Soares, L. E. e outros. Crime e política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,1996. Adorno, S. S. Cidadania e administração da Justiça criminal. In: Diniz, E.; LeiteLopes, S. E., Prandi, R. (orgs.). O Brasil no rastro da crise.Anuário de Antropologia, Políti-ca e Sociologia. São Paulo: Anpocs/IPEA, Hucitec, 1994. p. 304-27. Adorno, S. “Dis-criminação racial e justiça criminal em São Paulo”. Novos Estudos. Cebrap. São Paulo,Cebrap, 43: 45-63, novembro, 1995. Pinheiro, S.;Adorno, S.; Cardia, N. Continuidade au-toritária e construção da democracia. Relatório final de pesquisa. São Paulo: NEV/ USP,4 v. (Fapesp), 1999. In: www.nev.prp.usp.br. Castro, M.M. P. de. Vidas sem valor: um es-tudo sobre os homicídios de crianças e adolescentes e a atuação das instituições desegurança e justiça.Tese de Doutorado em Sociologia. PPGS/FFLCH-USP, 1996, p. 279.

4 Robert, P.; Aubusson de Cavarlay, B.; Pottier, M. L.;Tournier, P. Les comptes du crime. Lesdélinquences en France et leurs mesures. Paris: L’Harmattan, 1994.

5 Jefferson,T. e Shapland, J. Criminal Justice: order and control. British Journal of Criminolo-gy, 1994, 34(3): 265-290.

6 Gurr,T.R. Violence in America: the history of crime (violence, cooperation, peace), an In-ternational Series, v. 1. Newbury Park: Sage Publications, 2v., 1989. Donzinger, S., ed. Thereal war on crime. New York:The National Criminal Justice Commission, 1996.

7 Adorno, S. S. “Cidadania e administração da Justiça criminal”. In: Diniz, E.; Leite Lopes,S. E Prandi, R. (orgs). O Brasil no rastro da crise. Anuário de Antropologia, Política e So-ciologia. São Paulo: Anpocs/IPEA, Hucitec, 1994. p. 304-27.

8 Coelho, E. C.“A criminalidade urbana violenta”. Dados – Revista de Ciências Sociais. Riode Janeiro: Iuperj, 1988, 31(2): 145-83.

9 Soares, L. E. e outros. Crime e política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,1996.

10 Castro, M.M. P. de. Vidas sem valor: um estudo sobre os homicídios de crianças e ado-lescentes e a atuação das instituições de segurança e justiça.Tese de Doutorado emSociologia. 1996, PPGS/FFLCH-USP, 279p.

11 O Estado de S. Paulo, editorial, 22/05/2001.

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V I O L Ê N C I A /A R T I G O S V I O L Ê N C I A /A R T I G O S

AO LADO DO

SENTIMENTO

COLETIVO DE QUE

OS CRIMES

CRESCERAM, HÁ

IGUALMENTE O

SENTIMENTO DE

QUE OS CRIMES NÃO

SÃO PUNIDOS...