crise de credibilidade da propaganda

80
Devaneios de um Intelectual Solitário Aspectos do trabalho dos intelectuais hoje Estratégias políticas no meio cultural Mudanças na política de incentivo fiscal à projetos culturais Especifidades de comunicação para idosos Mensagens sem ruídos para a comunicação dirigida aos idosos Revista da Faculdade de Comunicação da FAAP - Nº 12 - 1º semestre de 2004 ISSN 1676-8221

Upload: nguyennhi

Post on 07-Jan-2017

258 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

Page 1: Crise de credibilidade da propaganda

Devaneios de um Intelectual SolitárioAspectos do trabalho dos intelectuais hoje

Estratégias políticas no meio culturalMudanças na política de incentivo fiscal à projetos culturais

Especifidades de comunicação para idososMensagens sem ruídos para a comunicação dirigida aos idosos

Revista da Faculdade de Comunicação da FAAP - Nº 12 - 1º semestre de 2004

ISSN 1676-8221

Page 2: Crise de credibilidade da propaganda
Page 3: Crise de credibilidade da propaganda

001

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Revista da Faculdade de Comunicação da FAAPNº 12 - 1º semestre de 2004

ISSN: 1676-8221

Conselho Curador da FAAPPresidente - Sra. Celita Procopio de Carvalho

Diretoria ExecutivaDiretor Presidente - Dr. Antonio Bias Bueno GuillonDiretor Tesoureiro - Dr. Américo Fialdini Jr.Diretor Cultural - Prof. Victor Mirshawka

Assessores da DiretoriaDr. Sérgio Roberto MarcheseAssessor Administrativo e Financeiro

Prof. Raul Edison MartinezAssessor para Assuntos Acadêmicos

Faculdade de Comunicação

DiretorProf. Dr. Rubens Fernandes Junior

Vice-DiretorProf. Dr. Luiz Felipe Pondé

DepartamentosProfª. Elenice Rampazzo (Publicidade e Propaganda)Prof. José Gozze (Cinema)Prof. Valdir Cimino (Relações Públicas)Prof. Vagner Matrone (Rádio e Televisão)

Assistente da DiretoriaProfª. Mônica Rugai Bastos

Coordenador de Extensão e Pós-GraduaçãoProf. Dr. Ronaldo Entler

Coordenador de PesquisaProf. Dr. Martin Cezar Feijó

Coordenação EditorialProf. Dr. Rubens Fernandes Junior

Direção de ArteProf. Éric Eroi Messa

Editora de ArteLigia Cesário de Moraes

A revista FACOM impressa na gráfica da FAAP é umapublicação semestral da Faculdade de Comunicação. Osartigos publicados são de inteira responsabilidade dosautores. Aceita-se permuta.

FAAP - Faculdade de comunicaçãoRua Alagoas, 903 - 01242-902 - São Paulo - SPTel: 11 3662-7330Fax: 11 3662-7334Site: http://www.faap.brE-mail: [email protected]

Editorial

É grande a satisfação de publicar o décimo segundo número darevista FACOM. Com muita alegria, podemos ver nesta edição, pelaprimeira vez, a participação de professores de todos os departamentos daFaculdade de Comunicação. Os ensaios abrangem temas da Publicidade,da Televisão, do Rádio, do Cinema e destaca a importância da ação comu-nicativa nas Relações Públicas.

Abrimos a revista com o ensaio Devaneios de um intelectualsolitário, do professor de Filosofia, Fernando J. Amed, que aponta amudança do papel do intelectual e sua inserção na sociedade contem-porânea. O professor Máximo Barro relata seu primeiro encontro com oescritor modernista Oswald de Andrade, nos anos cinqüenta, na Rua Setede Abril, sede dos Diários Associados, que abrigava o Museu de ArteModerna e o Museu de Arte de São Paulo. Edson Crescitelli analisa aquestão da credibilidade da mensagem publicitária contemporânea, queexige hoje o uso de um mix de comunicação, capaz de sensibilizar e per-suadir o consumidor. Ainda nessa direção, o texto de Devani Salomão deMoura Reis, discute a necessidade de se criar uma comunicação dirigidapara a terceira idade, já que nas últimas décadas a sociedade envelheceu eainda não há um projeto específico para esses potenciais consumidores.

No percurso da revista o leitor ainda encontra o texto de FabioLacerda Soares Pietraroia, que convida, a partir de exemplos clássicos,para uma reflexão sobre a questão do discernimento da fronteira entreficção e realidade, analisando o papel indutor desempenhado pela mídia,principalmente a eletrônica. Gabriela Borges explora os conceitos dememória voluntária e involuntária discutidos por Samuel Becket ao analisar aobra de Proust, Em busca do tempo perdido, enquanto que LuizArmando Bagolin, em sentido contrário, revisita a mesma obra de Prousta partir do ponto de vista de Gilles Deleuze, que defende a idéia que nãose trata de um esforço de recordação, mas da busca da verdade ou dascondições que permitam sua decifração.

A interpretação dos símbolos religiosos na obra do cineastaespanhol Luis Buñuel é o ponto de partida da análise do ensaio deMônica Rugai Bastos. O texto de Cândido de Lima busca repensar asnovas propostas de mudanças na política de incentivo fiscal a projetosculturais; o de Maria Flávia de Siqueira Ferrara, traça uma boa discussãojurídica sobre as promoções de distribuição gratuita de prêmios, realizadasatravés de concursos, sorteios e vales-brindes; e o texto de João Kruger,que torna urgente a necessidade de estabelecermos uma consciência críti-ca em relação à preservação do meio ambiente.

Enfim, através destes textos, a revista FACOM marca presençano cenário das publicações acadêmicas e pretende manter este diferencial,com edições como esta: diversificada e em sintonia com os paradigmas deanálise científica. Aproveitamos para solicitar sugestões e comentáriosenquanto já estamos preparando a próxima edição.

Rubens Fernandes JuniorCoordenação Editorial

Page 4: Crise de credibilidade da propaganda

FAAP- Fundação Armando Alvares PenteadoFaculdade de Comunicação - FACOMRua Alagoas, 903 prédio 5- Higienópolis - São Paulo - SPCep: 01242-902 - Tel: 11 3662-7330 - Fax: 11 3662-7334

E-mail: [email protected]

R e c e b a a R e v i s t a F A C O M !

Para assinar a Revista FACOM, basta preencher os dados abaixo e enviar o formuláriopara aprovação. Encaminhe para o seguinte endereço:

FAAP - Faculdade de ComunicaçãoA/C: Diretoria FACOMRua Alagoas, 903 prédio 5 - Higienópolis01242-902 - São Paulo - SP

Ficha de Inscrição

Nome: _________________________________________________________________________________________

Endereço: ______________________________________________________________________________________

Bairro: _________________________________________________________________________________________

Cidade: _________________________________________________ Estado:____________ CEP:_______________

Instituição de Ensino: _____________________________________________________________________________

Cargo: ________________________________________

Tel. (res): _____________________________

Tel. (com): _____________________________

E-mail: ________________________________

Caso seja responsável pela publicação de um periódico e tenhainteresse em realizar a permuta, indique o nome do seu título: ____________________________________________

Page 5: Crise de credibilidade da propaganda

003

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Especifidades de comunicação para idososDevani Salomão de Moura Reis

Marketing promocionalAspectos jurídicos das promoções comerciaisMaria Flávia de Siqueira Ferrara

A Dança dos signosLuiz Armando Bagolin

Os meios de comunicação de massa, a ciência e a ficção científicaFábio Lacerda Soares Pietraroia

A Preservação do Meio Ambiente: uma preocupação por inteiroJoão Krüger

Estratégias políticas no meio culturalCândido de Lima

As imagens da memóriaYeats... Proust... BeckettGabriela Borges

Um caminho que leva de um lugar ao outroMônica Rugai Bastos

Oswald de AndradeMáximo Barro

004

011

025

029

037

044

047

051

060

065

072

Índice

Crise de credibilidade da propaganda: considerações sobre seu impacto naeficácia da mensagemEdson Crescitelli

Devaneios de um intelectual solitárioFernando J. Amed

Page 6: Crise de credibilidade da propaganda

004

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Devaneios de um intelectual solitárioFernando J. Amed

"O quanto é interessante, ativa, risonha e franca a perspectiva donegociante matriculado, é mesquinha, fechada e árida a do literato- esse bicho caspento e sempre com o almoço em atraso. Nosso paísnão comporta ainda a arte - nenhuma arte, fora a do galego de pévirado1 . A árvore-Brasil ainda não chegou à fase da floração.Ainda é um pé de mamona que nasceu ao léu, no monte do estercolusitano. Machado de Assis, Pedro Américo, Bilac, Carlos Gomes:flores de papel de seda europeu amarradas nos talos do arbusto.Nada os liga ao pé de mamona, salvo a embira do amarrilho.Desbotam com o tempo e ficam tal qual as flores secas de mastro deS. João em agosto. Quem se mete a literato no mamonal ou é toloou patife.2" Monteiro Lobato

O texto em questão vem como um dosprodutos das leituras, reflexões, das discussõesenfim, com o conjunto de alunos da FACOM,expressamente aqueles participantes das turmas emque ministro as disciplinas de Filosofia, Filosofia daComunicação e Sistemas de Comunicação. Aprópria configuração desse texto e o motivo de suaescritura, remetem a um excedente doconhecimento, se assim podemos dizer, que seconstitui entre um entendimento de um texto eoutro, de uma sessão de nossos encontros paraaquela que se segue, ou no próprio debate que vema ocorrer no interior das salas ou pelas alamedasdessa faculdade.

Ao escrevê-lo, permiti apresentar-me deforma mais direta e, talvez cedendo aos ímpetos doenvolvimento, termino por expor o gosto que essescontatos têm provocado em mim. E é em direção aessa atmosfera, constituída por intenções

RESUMO

Como qualquer outra atividade humana ou profissão, o trabalho dos intelectuais mudou ao longo dahistória. Esse artigo pretende mostrar alguns aspectos do trabalho dos intelectuais hoje. E finalmente, pergun-tamos sobre as possibilidades de o intelectual ainda poder ser visto como um profissional em especial peranteos outros.

ABSTRACT

Like some others human activities or professions, the work of the intellectuals has changed duringthe course of the history. This article intends to show some aspects concerning the intellectuals work. Andfinally, we examine the possibilities of seeing the intellectual as a professional, especially among the others.

subliminares, expectativas e alguma amostragem deplacidez frente ao conhecimento, que ofereço oque agora vai se ler.

É importante que se mencione que otema específico que tratamos nesse artigo, guardaligações com o campo de estudo que adentramosno nosso mestrado, bem como no doutorado queora estamos a realizar. Ou seja, interessa-nos tomara prática, a experiência e a vida de intelectuais -especialmente, os brasileiros do século XIX -como objetos de pesquisa e estudo. Para queconsigamos cumprir esse objetivo, constituímosum percurso heurístico (relacionado às fontes queiremos consultar) e bibliográfico (todo materialreflexivo que venha a estabelecer interlocução juntoao nosso tema). Esse artigo, em especial, veio a secompor em um instante formalizado de nossasreflexões. E como se apresenta como um textointegral, com propostas, discussões e algumas

Page 7: Crise de credibilidade da propaganda

005

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

perspectivas rumo às considerações finais, adiantoque viemos a nos orientar através de referenciaisbibliográficos específicos.

Grosso modo, nos remetemos de umamaneira um pouco livre - talvez em virtude de játermos internalizado alguns aspectosinterpretativos - a alguns autores. Como ficaráevidente, Russell Jacoby3 vem citado por conta deabordar de uma forma bastante direta, algunselementos que vieram a compor a discussão sobreo papel destinado aos intelectuais na atualidade.Como poderá se perceber adiante, esse autorconcentrou-se no caso norte-americano, comomeio de matizar alterações provocadas na práticaintelectual, a saber, especialmente o que diz respeitoà recepção de suas idéias. Jacoby deteve-se nopercurso que conduziu o intelectual da esferapública para a privada. Nesse instante de nossapesquisa, essas considerações permitiram querefletíssemos sobre o papel, a função, o espaço,enfim, destinado ao intelectual na época em que vivemos.

Alexis de Tocqueville4, conhecido pelosalunos de Sistemas de Comunicação, permitiualguns desdobramentos. Acreditamos que esseautor tenha conseguido apresentar uma sutiloposição entre aristocracia e democracia. E, nessadireção, Tocqueville veio a se servir de inúmerosexemplos e situações concretas, retiradas docontexto norte-americano, como meio de nuançaresse confronto. Assim, seus comentários sobre avocação utilitarista que as reflexões intelectuais vêma ter na democracia, nos trouxeram a possibilidadede questionar a própria permanência de uma espéciede nobreza nesse ramo da atividade humana.

Finalmente, os escritos do professor LuizFelipe Pondé5, colega de área e de disciplinas daFACOM, mesmo que não mencionados emnenhum momento desse artigo, trouxeram aohorizonte do debate a possibilidade de operarmosconjuntamente a partir de dois planos de reflexão.Um, que unicamente se vale das controvérsiascomo meio, inclusive, de se atirar rumo a umrelativismo mais profundo. Relativismo esse, que,uma vez enredado na lógica humanista, tende a seperder nas teias da conveniência, vindo a acobertar,escamotear mesmo, seus princípios hedonistas maisarraigados. Outro, que não duvida da existência dasgrandes verdades e suspeita de todo tipo dehumanismo por conta de descrer da capacidadehumana de se ver, analisar e ajuizar de uma forma

imparcial, não sujeita a toda uma cadeia de desejose afeições. E, entre um campo e outro, coube a nósobservarmos o que pôde permanecer agregado ounão ao entendimento que se pretenda que ointelectual venha a possuir. Acreditamos que aqualidade das reflexões, bem como o próprioobjetivo da prática intelectual, venham a sofrerprofundas alterações quando observadas pelaoposição acima mencionada. Ou seja, é possívelpreocupar-se intelectualmente com temáticashumanistas, mantendo-se a aparência e, talvez, arecepção, referentes a um estudioso de uma épocamedieval? E, se todos esses aspectos não foremsuficientes, é importante que se diga que, a partirdessas considerações, pode-se tomar o humanismocomo um discurso datado, carregado de intenções,repleto de parcialidades e que veio a constituir-secomo figura teórica no momento de confrontocom uma outra ordem que se almejava verdestruída. Nesse sentido, não se trata de umconceito que se traduz em evidência, mascertamente e sobretudo, em desejos e aspiraçõesderivadas do calor de um embate. É um elogio aohomem realizado pelo mesmo homem em questão.Diga-se que, em muito, o intelectual do século XIXpode ser definido como humanista, especialmenteem tudo o que nesse conceito, pode vir a seradjetivado. Isso posto, é o instante do início,propriamente dito, desse artigo. E, acreditamos, ébom que comecemos por perguntas.

Que espaço costumeiramente vem sendodestinado pela tradição cultural do ocidente, aquelegrupo de pessoas que se caracteriza pela atividadeintelectual? E mais: é possível que os sentidoscontemporâneos atribuídos aos intelectuais,possam ser bons conselheiros na busca dossignificados dessa prática no passado?

Bem, a alusão de Monteiro Lobato aopapel destinado ao literato nacional, no mínimo, fazcom que iniciemos essas considerações de umamaneira negativa e pessimista, para não dizer cínica.Em última instância, possibilita-nos o acessorelativo ao seu contexto de época. A oposição queapresentou entre o “literato”e o “negociante”, namedida em que se conhece um pouco da vida deLobato, nos parece dúbia e um tanto subjetiva. Ésabido que o autor de Reinações de Narizinho, buscousucesso como editor, mas só o obteve - guardadasas devidas proporções da imagem de sucesso entrea época em que viveu e a atualidade - como escritor.

Page 8: Crise de credibilidade da propaganda

006

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Sua alusão a Machado de Assis, Pedro Américo,Bilac e Carlos Gomes, como personalidadesestranhas à cultura brasileira, permite queadentremos à rarefação intelectual6 que se fazpresente em nosso país. A referência é clássica,européia, ou no caso de Lobato, americana.Finalmente, a fala de Monteiro Lobato dispõe umaausência de idealismo positivo. Tem algo acontribuir por conta de se chocar contra uma visão“cândida”, produtiva e esperançosa de cultura. Esseconfronto nos interessa.

Exemplos passados parecem indicar essasina. Entre os gregos, há muito se sabe que areflexão filosófica e a produção literária - campoque pode ser associado ao intelectuaiscontemporâneos7 - se faziam através dosaristocratas, despreocupados com as necessidadesda “lida” cotidiana. E que surpresa costuma serprovocada quando se acompanha, com Aristóteles,o nascimento da Filosofia em virtude do ócio.Tanto tempo e tantos mediadores nos separam doséculo V A.C., a tal ponto que diversos são ossentidos da filosofia bem como do ócio. Mas, umacoisa parece certa, só é possível ter acessocontemporâneo ao ócio, aquele que pode pagar porisso, e nesse sentido o pragmatismo, novamente seimpõe, mesmo que o pudor o impeça de ser maisamplamente divulgado.

Mesmo que não seja o momento de sepassar em revista os sentidos da atuação intelectualao longo da história, o que renderia umamultiplicidade de alusões e entendimentos, nãodeixa de ser instigante pensar que através de grandeparte do período medieval, coubesse especialmenteaos monges, o contato mais profundo com opensamento. Ou seja, a prática intelectual se moviana direção da busca da correta interpretação - ahermenêutica - dos textos escatológicos ou mesmodos dilemas e controvérsias acerca da existência.Mas, nesses casos, havia uma “rendição ao texto”.Os símbolos, produtos da crença inabalável naordem da natureza, permeavam o contato com ostextos e com o próprio estado reflexivo. Descobriralgo, comprovar uma tese era alvo de uma revisãoprofunda. Afinal, sabia-se, não poderia o homemacessar os desígnios divinos através do exercício desua humanidade. É bem provável que, nessa direçãoà resignação, como resultado e conseqüência dacompleta aceitação da insignificância humana, amaioria dessas reflexões devessem ser destinadas ao

silêncio. Época interessante onde as investidasintelectuais não se equivaliam às ações, aosprodutos, às ofertas, à procura, tanto econômicasquanto simbólicas. É possível que o intelectualcontemporâneo venha a guardar algumaproximidade tanto com os filósofos quanto com osclérigos medievais?8 Talvez possamos entreveralguma espécie de proximidade, tão somente noque diz respeito à aparência, ao cerimonial, mas,mesmo assim, em poucos casos, associaçõestradicionais de encontro de literatos, por exemplo(Academia Brasileira de Letras, Instituto Histórico eGeográfico Brasileiro, etc) E como esses espaçossão alvo da verve mais cômica, ácida, irônica esardônica, parecem se apresentar como sintomasdo quadro de distinção entre o intelectual, antigo oumoderno e o contemporâneo. Mas outroimportante aspecto está presente nessa distinção.

No passado a que nos referimos, ospensadores em questão entendiam que a sabedoriaestivesse relacionada às preocupações com asquestões últimas, às verdades, à escatologia. Foradesse universo, somente o estudo como meio deaprimoramento de técnicas e de habilidades. E,nesse sentido, o intelectual moderno somentepoderia vir a encontrar um seu parceiro, que viessea guardar alguma proximidade com o que hoje faz,no estudioso das normas, dos padrões técnicos dealgum objeto concreto, como por exemplo, lentes,sapatos, roupas, etc.

Nem de longe, haveria algumapossibilidade de semelhanças entre o que hoje seprocessa como prática intelectual e o exercício de sevoltar para uma espécie de epistemologia doabsoluto.

E, talvez aqui, como modo de cercar osambiciosos temas propostos no início desse texto,seria o caso de se agregar mais um aspecto: otrabalho intelectual costumava se distinguir dosdemais em virtude de tudo aquilo para que ele sedestinava. Assim, intelectuais eram aqueles que sededicavam às controvérsias acerca da verdade ou damentira, sobre o fato de sermos ou não sermos, arespeito do entendimento correto de textosbasilares e, por isso, somente por isso, tinham suaprática reputada como importante. Mas, eatualmente?

Num certo sentido, ao menos desde avirada para o século XX, a prática intelectual, alémde manter-se, de alguma forma, ainda associada à

Page 9: Crise de credibilidade da propaganda

007

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

busca da verdade, ganhou um novo e emblemáticotraço, a saber, a perspectiva de encampar a luta pelascausas humanistas ou notoriamente próximas doideal de justiça. Do ponto de vista factual, é comumque se associe toda essa cadeia de sentidos e alusõesao chamado Affaire Dreyfus 9 (o caso Dreyfus).Osfranceses, tributários contemporâneos de umaespécie de reserva de mercado no que vem a ser opensamento e agindo de forma semelhante àsatitudes que têm para com os vinhos e perfumes,entendem que o papel do escritor Emile Zola naluta pelo acesso à verdade no caso da denúncia detraição do oficial francês de origem judaica, AlfredDreyfus, teria inaugurado o sentido moderno dapalavra intelectual. Ou seja, além de entrever averdade - acertada, nesse caso - coube aointelectual, levá-la para o conjunto dos cidadãos.Nada muito diferente daquilo que foi descrito porPlatão, com relação ao papel do filósofo na alegoriada caverna. Mas, diga-se, a distância metafísica entreum caso e outro é, digamos, incomensurável. E noCaso Dreyfus, o acerto da causa defendida por Zola- uma vez que os indícios foram forjados contra ooficial do exército francês, sabidamente um redutode anti-semitismo, como alías grande parte daopinião pública também se mostrou - não nospermitiria supor que o mesmo viesse a proceder emtodos os casos onde houvesse interpretação, luta eenvolvimento intelectual. Mesmo por que, namaioria dos casos, as lutas sociais, quandosubmersas no relativismo moderno, são sujeitas atoda sorte de controvérsias. E aqui, mais umaquestão: é possível que os sentidos da configuraçãodo intelectual como líder, como agente crítico queirrompe da caverna, como “orgânico” de umadeterminada classe social, ainda possam existir eserem tomados com tranqüilidade? Ou,parafraseando Lobato, a sabedoria ainda se apegaao intelectual da mesma forma que a caspa e oalmoço em atraso? Pode ser que sim, mas nãopodemos ser muito afoitos: aquele que éparticipante do litígio, tem dificuldade decorretamente ajuizar perante o caso. E situaçõescomo essas muito facilmente se transformam emmotes de corporações e os intelectuais do presente,novamente, menos que poderem ser comparadosaos clérigos, se aproximam dos artesãos que sereuniam nas guildas.

Bem, num primeiro momento, seriaevidentemente o caso de se perguntar sobre

sabedoria e seu caminho rumo à verdade. Numcontexto marcadamente relativista, onde uma mácompreensão (ou um mal intencionadoentendimento), tanto da sofística quanto doceticismo, levam a dogmatismos convenientes, émuito difícil que questões universais venham a sercontempladas pelos intelectuais. E hoje, comoresultado da presença substancial do tempopassado, é por demais temeroso que se continue aassociar às reflexões intelectuais às grandesverdades. Podemos supor que uma ambiência, acultura construída pelos símbolos que jámencionamos, pelas expectativas e intenções,tenham migrado, por proximidade cronológica, doséculo XIX para, ao menos, o início do século XX.Nesse sentido, observamos a pertinência históricade se aproximar um exercício já dessacralizado - ointelectual - às grandes verdades ou à justiça. Oaprofundamento do perspectivismo, o relativismoalçado à condição de critério de análise - e não,como no pirronismo, como um dos meios de sesuspender o juízo, de silenciar-se, em últimainstância - afastou por definitivo a práticaintelectual da busca das causas universais. E secampos de pesquisa floresceram - sociologia ouantropologia, por exemplo - o abandono dotratamento de conceitos tão nobres, veio a conduziro intelectual para uma nova configuração. E se nãotrata das grandes verdades, não será hoje ointelectual, comparável a qualquer outroprofissional que busca operar com questõesobjetivas, sujeito ao pragmatismo e que transita pelopensamento como meio, inclusive, de ascender àperspectiva da sobrevivência? Retomemos:sofisticar os meios de sobrevivência não é o mesmoque transcender. E uma das diferenças mais óbviasentre seres humanos e animais se encontra napossibilidade ou não de se realizar a transcendência.É sabido que os animais não transcendem.

Russell Jacoby, por exemplo, tangenciaesse aspecto ao expor que intelectuais deixaram depossuir uma vocação pública, no sentido estritodaqueles tempos em que buscava se pensar erelacionar para um grupo maior de pessoas. Houveentão, segundo esse autor, um momento - situadolongamente entre as décadas de dez e setenta doséculo XX - em que alguns pensadores buscavamponderar assuntos e temas de envolvimento, maisexatamente para um público. O filósofo francêsJean-Paul Sartre, pareceu encarnar esse tipo, uma

Page 10: Crise de credibilidade da propaganda

008

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

vez que se engajou - palavra e sentido que a vidadesse filósofo pareceu formatar - em uma série delutas e de remissões a um número de ouvintes, diga-se, muito maior que aquele formado por seus paresuniversitários. Ainda mais quando sabemos queSartre foi capaz de se deixar televisionar,entrevistado por alguns outros intelectuais queperguntavam sobre aspectos de sua vida, seusobjetivos, suas intenções sociais, etc. E, se isso éapenas um índice de popularidade, lembremo-nosentão das milhares de pessoas que seguiram ocortejo fúnebre do filósofo em seu funeral em 1980.

No entendimento de Jacoby, essa fase deulugar a um período, esse em que nós nosencontramos, onde os indivíduos que entendemque tem algo dizer, tratam de fazê-loespecificamente para o seu grupo de pares. Ou seja,a fala dos intelectuais se dirige para os colegas deprofissão. Ainda na opinião do autor, esse fato veioa ocorrer por conta de ter se tornado uma evidênciaque essa categoria de pessoas da sociedade venha ater mais elementos favoráveis, do ponto de vistapragmático, quanto mais venha a publicar emrevistas ditas científicas ou acadêmicas. Diga-se que,na atualidade, publicar artigos em periódicosconsegue ser mais atrativo, do ponto de vista damedição de produtividade de um pensador, do quea publicação de um livro. Trata-se então de umaépoca onde, inclusive o ato de pensar e de divulgaridéias, veio a ser alvo de uma padronização, dabusca pelo cumprimento de determinadas metas, etc.

As considerações de Jacoby que, naestirpe da boa produção acadêmica norte-americana, prima pelo seguro e percucienteencaminhamento de fontes, apresentam algunselementos que concernem aos desdobramentos doproblema que tratamos. Ou seja, movido pelanecessidade de sobreviver em meio à sociedade eperante seus pares e instituições, o intelectualcontemporâneo age como produto do darwinismo.O mais apto e hábil na “gestão de pensamentoreflexivo” sobrevive. E como qualquer profissãoque tem na sobrevivência, o critério para a revisãode suas premissas, ao intelectual moderno é maisapropriado se preocupar com os meios e não comos fins. Cabe a nós decidirmos se esses referidosmeios concernem às questões de método, emdireção à discussão analítica pós-kantiana ou entãoao cotidiano mais básico dos contatos, dos acertos,das relações convenientes, etc. De toda sorte, num

caso e no outro, só por afetação, por tolice oupatifaria, segundo Lobato, se poderia continuar aassociar esse intelectual moderno mundano àescatologia, ao universal, salvo talvez no campo dalógica. Mesmo assim, procedendo com luvas de aço.

Tamanhas discrepâncias nos levam aretomar - mais uma vez - Alexis de Tocqueville. Noproduto formal de uma visita ao continenteamericano, especificamente a então jovem naçãonorte-americana, no ano de 1831, apontavaTocqueville que:

Como resultado de uma grandesensibilidade aplicada ao desejo de conhecer asvirtudes e os defeitos da democracia, Tocquevillefoi capaz de não se deixar levar pelo desejo de seencontrar algo de evidentemente positivo nessesistema. Tributário pela ascendência, da culturaaristocrática, o pensador francês pôde perceber queos problemas que os democratas apontavam namonarquia, poderiam ser vistos como positivos ouvirtuosos. Isto é, a hierarquia, os papéis sociais bemdefinidos e não passíveis de alteração, puderam sertomados como um modo - tão ou mais eficiente -de manutenção de uma sociedade. E se a críticaapressada viu um conservador em Tocqueville,também pode encontrar no democrata/humanistadaquela época, alguém que se valia de utopias,esperanças e devaneios como ferramentas para a

“Não somente os homens que vivem nassociedades democráticas se dedicam dificilmente àmeditação, mas têm-lhe pouca estima. A estruturasocial e as instituições democráticas levam a maioriados homens a agir constantemente; ora, os hábitos doespírito convenientes à ação nem sempre convém aopensamento. Com freqüência, o homem de ação secontenta com aproximações, pois jamais chegaria aofim de seus desígnios, se quisesse aperfeiçoar cadadetalhe. (...) Nas épocas em que todo mundo age, é-se,portanto, geralmente levado a dar valor excessivo àpresença de espírito e às concepções superficiais dainteligência e, ao contrário, a depreciar-lhe,demasiado, o trabalho profundo e lento. Encontra-seem muitos homens um gosto egoísta, mercantil eindustrial pelas descobertas do espírito, que não sepode confundir com a paixão desinteressada que seacende no espírito de um pequeno número; há o desejode utilizar os conhecimentos e o puro desejo deconhecer.”10

Page 11: Crise de credibilidade da propaganda

009

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

destruição de uma sociedade e para a construção deoutra.11 Tocqueville, ao longe, nos deixa umamensagem: é possível que acreditemos quemelhorias sócio-culturais estejam sincronizadascom o tempo dos relógios? Como dissemos noinício desse artigo, o pensador francês matiza essequadro tomando exemplos e situações como meio.Ao se referir à adequação da prática reflexiva àsnecessidades mais utilitárias, Tocqueville permiteque avaliemos a situação futura que se define eganha corpo ao longo da modernidade. Diantedisso, a prática reflexiva sofre alterações profundascomo que fazendo migrá-la para o campo dashabilidades. E não é exatamente esse o termoutilizado nos planejamentos pedagógicos doscursos fundamentais e médios, notadamenteaqueles mais afinados “com as últimas tendênciasda pedagogia moderna?” (sic).

Mas, como poderia ser diferente? Ao queparece, um pensador que fosse motivado acontinuar seus estudos, visando-os unicamentecomo um fim em si próprio, somente poderia tervivido em outra época. E, nesse sentido, podemosretomar o que se disse com relação aos gregos noinício desse nosso artigo, ou, por exemplo, na épocade Luís XIV, na França, quando um filósofo detinhatodas as condições de unicamente se dedicar àsciências do espírito. E, diga-se, não só o filósofo.Pensemos em Mozart, por exemplo. Compor e seapresentar para a corte, nem de perto guarda algumarelação com o envio de uma fita demo para o “gestor deproduções sonoras” de uma gravadora qualquer.

Enfim, é difícil que ainda continuemos aver o exemplo de Zola ou mesmo de Sartre,apegados à atividade intelectual contemporânea. E,é bem provável que o contexto de época desses doiscasos, guardasse ligações com a cultura clássica queteve no século XIX, os seus últimosdesdobramentos. Mesmo porque, como vir a suporque, num mundo desencantado, destituído dequalquer símbolo metafísico strito senso, sem aaceitação de qualquer tipo de hierarquia, (a partir deentão, tomada como fruto de um privilégio) aconcepção de verdade pudesse continuar e semanter intacta?

E, simultaneamente a esse encaminhamento,como esperar que o conhecimento viesse a valersomente por si próprio ou como meio de algumtipo de ascese? Como acreditar que não se tornassemais um meio de sobrevivência ou em alguma

forma de estratégia pretensamente concebida? Defato, é no mínimo desconcertante perceber queainda atualmente, a prática intelectual, valendo-sedo relativismo, ainda possa permitir que se veja seupromotor como um arauto de novas verdades. E, seisso não fosse o suficiente, outras consideraçõesdevem nos remeter à perspectiva de realmente vir ase deparar com as causas mais acertadas para sedefender. Isso, num cenário humanista, numaordem moral tão somente constituída pelo homem,é no mínimo, motivo de discussão. Será que o fimdo intelectual público, nos moldes do que Jacobyapresentou, não se ajusta à nossa contemporâneafalta de perspectiva? E como esperar que umintelectual sobressaía-se perante o pragmatismo epense somente aquilo que não se relacione a suacarreira? Entre nós, no início do século XX,Monteiro Lobato já havia chegado a uma conclusãobem próxima daquela de Jacoby, e Tocqueville, bemantes dos dois.

NOTAS:1 Referência aos trabalhos dos portugueses nos

balcões das lojas. Nesta carta, Lobato contrapunhao trabalho dos comerciantes aos dos escritores esomente via vantagens naquilo que os primeirosfaziam. A dificuldade de pagamento de papelimportado, que inclusive levaria ao fechamentodesta sua primeira editora, nos permite supor queno Brasil da época, tanto os intelectuais quanto oseditores, estavam contemplados pelas mesmasconsiderações cáusticas apontadas pelo escritor.

2 Carta de Monteiro Lobato a GodofredoRangel, datada de 20 de fevereiro de 1919, A Barcade Gleyre, São Paulo, Editora Brasiliense, 8ª edição,1957, Tomo 2, op. cit., p. 190.

3 Russell Jacoby, Os últimos intelectuais: a culturaamericana na era da academia, São Paulo, TrajetóriaCultural/Edusp, 1990.

4 Alexis de Tocqueville veio citado aqui,somente por seu A democracia na América. Servimo-nos da mesma edição recomendada aos alunos, ouseja, a publicada pela Editora Abril, no ano de 1973,fazendo parte da coleção Os pensadores, XXIX.

5 Primeiramente, O homem insuficiente:comentáriosde antropologia pascaliana, São Paulo, Edusp, 2001 eCrítica e profecia: a filosofia da religião em Dostoiévski, SãoPaulo, Editora 34, 2003. Em segundo lugar, osartigos “Da necessidade de um olhar oblíquo”,FACOM, Revista da Faculdade de Comunicação daFAAP, São Paulo, número 9, 2 semestre de 2001;“Ontologia do pó”, Revista Cult, São Paulo,75,

Page 12: Crise de credibilidade da propaganda

010

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

dezembro/2003; “A hipótese de Deus: o carátercrítico da religião”, Revista Cult, 64.

6 A expressão rarefação intelectual nos foiapresentada primeiramente pelo historiador EliasThomé Saliba. Remetia-se a um quadro onde,pensando especialmente em nosso país, asatividades ditas intelectuais, não contavam comgrandes perspectivas de divulgação, e isso por contade alguns motivos. Poucas editoras, pequenoinvestimento, interesse mínimo. Nesse sentido,grande parte das falas mais entusiasmadas queperiodicamente se remetem a um possível boomliterário, guardam maior proximidade com o campoespeculativo do que com a realidade literáriapropriamente dita.

7 É preciso que se diga que a comparação não énem pode ser imediata. Nicole Loraux e CarlesMiralles, na obra Figures de l’intellectuel em Grèceancienne, Paris, Editions Belin, 1998, buscaram , porexemplo, compor o intelectual grego a partir deremissões aos ofícios dos poetas e doshistoriadores.

8 Alain de Libera, no excelente estudo, Pensar naIdade Média, São Paulo, Editora 34, 1999, buscoudefinir o conceito de clérigo. Nesse sentido, deforma um tanto difusa, situou o clérigo, na IdadeMédia, entre o leigo e o monge. No entanto, seevidentemente, o leigo é diferenciado com nitidezdo monge, o mesmo não se pode dizer do clérigo.Trata-se, no entanto de um leitor assíduo, umliterato que dependia da jurisdição eclesiástica pararealizar seus estudos. Segundo Libera, “é naambigüidade da noção medieval de clérigo que sefunda a do intelectual moderno: leigo, maspraticando uma moral na qual, desde a retomada dotermo “clerc” por Julien Benda, se cruzam os ideaisàs vezes inconciliáveis do clericus e do literatus.” VerLibera, op. cit., p. 345. É bom que se saiba que esseautor também apresentou uma discussão,relacionando de forma mais aberta, o pensadormedieval e o intelectual contemporâneo.Modernamente, ao menos desde 1927, é comumque associe o termo aos intelectuais, isso a partir dotexto, La trahison des clercs (Paris, Bernard Grasset,1975, na edição que consultamos), em que o jámencionado Benda, criticava a posturacontemporânea dos intelectuais de abandonarem osgrandes sistemas, bem como a busca pela verdade.Além disso, o autor também criticava a perda deliberdade desses intelectuais ao se ligarem aospartidos políticos, notadamente os de esquerda.

9 Christophe Charle (La Naissance des Intelectuels- 1880-1900 - , Paris, Minuit, 1990) e Jean-FrançoisSirinelli (Les Intelectuels et les Passions Françaises -Manifestes et Petitions au XXº siecle, Paris Fayard, 1990)também situam o surgimento do neologismo“intelectual” em meio ao Caso Dreyfus e estudaram

documentos e petições do período. ChristopheCharle estudou juntamente com Maurice Aguilhona elite francesa do final do século XIX. Servindo-sedos conceitos de campo e bens simbólicos de PierreBourdieu, o autor estudou as universidadesfrancesas do período procurando por mutações quepor ventura teriam ocorrido. O autor observou ocrescimento do número de estudantes bem comodo chamado proletariado literário sem ligaçõesacadêmicas. Procurando notar mudanças no campofrancês na época do Affaire Dreyfus, Charlecomparou listas de assinantes a favor ou contraDreyfus. Nessa fratura na sociedade francesa,intelectual seria aquele que se posicionasse ao ladode Dreyfus, sendo Emile Zola o modelo dessaatuação. Já Sirinelli debruçou-se sobre os protestose petições da época sendo que aprofundou-se maisnas questões políticas. Está junto com Charle nosentido de ver o surgimento do substantivo intelectual em meio ao Affaire. Esses seriam aquelesque detinham uma visão universalista em oposiçãoà visão nacionalista daqueles que se colocavamcontra Dreyfus.

10 Tocqueville, op. cit., p.281.11 Note-se que, ainda hoje, muitos intelectuais

se postam como defensores das possibilidades de seter esperança em algo ou em algum tipo de futuro.

Fernando J. AmedProfessor de Filosofia, Filosofia da Comunicação eSistemas da Comunicação da FACOM-FAAP.Historiador, mestre e doutorando em HistóriaSocial pela FFLCH da Universidade de São Paulo.

Page 13: Crise de credibilidade da propaganda

011

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Um caminho que leva de um lugarao outroMônica Rugai Bastos

RESUMO

O artigo analisa o filme Via Láctea ou O estranho caminho de São Tiago de Luis Buñuel. Busca a interpre-tação dos símbolos da religião católica, muito presentes nas várias obras do diretor, assim como a peculiarforma de tratar o tempo. A escolha da peregrinação como temática do filme permite questionamentos sobre aapropriação dos símbolos da fé pelo povo espanhol. Pode também, criticar a influência da Igreja Católica naformação do imaginário daquela nação.

ABSTRACT

This article analyses Luis Buñuel's film, Via Lactea, looking for the interpretation of Catholic religionsymbols, present in many of his films. It also points out the peculiar way of treating the time and the use ofthe peregrination as subject that allow us to make questions about the religiosity of the Spanish people andalso to criticize the influence of the Catholic Church in that nation.

Cinema é imagem em movimento. Esta é adefinição de senso comum mais usual, maisvulgarizada. Os teóricos do cinema, no entanto, nãopodem analisar a linguagem a partir de máximaspopulares. Seus debates buscam definir acaracterística essencial do meio, aquilo que define ocinema enquanto outro tipo de linguagem.

Desde o seu surgimento, algumas teoriastentam caracterizá-lo a partir da análise da matéria-prima; outras pela sua forma; outras ainda, pelasimbologia de suas imagens. A aproximação de umteórico em relação ao seu tema depende, segundoDudley Andrew1, da formulação de uma pergunta

que considere de fundamental importância sobre ocinema. Como analisar uma obra de Buñuel? Suasobras abrem um leque de possibilidades deperguntas sobre o tema: sua forma de abordá-lo; aconstrução do filme; a matéria-prima utilizada paraconstruí-lo. A análise não pode desprezar amontagem do filme, pois ela revela parte daconstrução de realidade do diretor. Não podedesconsiderar o significado atribuído às imagens,porque também são constitutivas dessa construção.

Nos filmes de Buñuel, as escolhas nuncaparecem fortuitas, casuais, por isso mesmo tudodeve ser explicado, ao menos se deve tentar fazê-lo.

Page 14: Crise de credibilidade da propaganda

012

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Isto faz parte de sua tentativa de construção de umasupra-realidade, uma realidade que consiga reunir oempírico ao ideal, o sonho à realidade, opsicológico ao físico, o concreto ao abstrato. Ouseja, a construção de uma realidade que não possaser apreendida apenas pela observação, mas quebusca, para a completude de seu sentido, a reaçãodo espectador. A proposta deste artigo é analisar, deforma breve, o filme Via Láctea, de Luis Buñuel,

buscando o apoio nessa diversidade de categorias enesse conjunto de indagações, formulados pordiferentes autores.

A propósito do Caminho: a Igreja Católica eSantiago

Um caminho que leva de um lugar aoutro: este é o significado de via. Via Láctea é umdos nomes pelos quais é conhecido o famoso

Fachada da Catedral deSantiago de Compostela

Page 15: Crise de credibilidade da propaganda

013

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Caminho de Santiago de Compostela, uma das maisantigas e reconhecidas rotas de peregrinação dareligião católica. Aberto na Idade Média, maisexatamente no século IX, o caminho era umaalternativa às rotas usuais de peregrinação paraJerusalém e Roma, em um período de insegurançanas estradas da Europa e de ocupação muçulmanano Oriente. Os muçulmanos – mouros ousarracenos, como eram denominados nos reinosque ocupavam na Europa – eram consideradosinfiéis pelos cristãos, e sua expulsão dos locaissagrados da religião, bem como da Europadesencadeou o processo das Cruzadas e daReconquista. Na Espanha, a reconquista foi umprocesso de inúmeras batalhas e negociaçõespolíticas. Trata-se de um fenômeno político, deunificação do país, que tem como mote principal aquestão religiosa. Nele, as grandes figuras históricasforam Carlos Magno e os reis Fernando e Isabel.Como o argumento da luta da reconquista erareligioso, a figura de São Tiago foi recriada comosímbolo de guerra e protetor dos cristãos. Éimportante relembrar alguns pontos centrais dalenda de Tiago porque os mesmos são referidos nofilme Via Láctea.

Santiago Mayor era filho do pescadorZebedeu, e, juntamente com seu irmão João, foiescolhido para ser discípulo de Jesus Cristo. Poucose sabe sobre sua vida, a não ser que, por ter umtemperamento um pouco forte, tinha pedido aJesus que destruísse um vilarejo pouco hospitaleirocom uma forte chuva de fogo. Disso surgiu seuapelido, dado por Jesus, de filho do trovão. Segundoa Bíblia, depois da morte de Cristo, permaneceu emJerusalém, foi perseguido por causa de sua fé emorto, degolado por Herodes Agripa no ano de 44da Era Cristã.

No século V, surgiu na Palestina umahistória apócrifa dos apóstolos escrita em hebraico.Posteriormente este escrito foi traduzido para ogrego e para o latim. No Ocidente o texto ficouconhecido como Historia certaminis apostolice ou aindaBreviarium apostolorum. Segundo o texto, S. Tiagoteria trabalhado como propagador dosensinamentos de Cristo na Judéia e na Samaria.Também nessa história é narrado um episódio noqual o apóstolo luta contra um mago chamadoHermógenes, nele o discípulo teria destruído umdragão usando apenas o poder das orações. Quantoa ser evangelizador na Espanha, quem primeiro

menciona o fato é S. Jerônimo em seus Comentáriosa Isaías. Segundo este relato, S. Tiago teria alcançadoa costa da Galícia no ano 38 de nossa era. Esta é abase popular para a crença na relação entre oapóstolo e a Espanha. Durante sua vida, teriapregado ali, e depois de sua morte, teria sidotransportado para ser enterrado onde vivera. Todoepisódio é permeado por histórias de conversões aocristianismo e lendas envolvendo destruição dedragões, e domínio de feras selvagens.

A Igreja Católica teve participação nosdois momentos de encontro dos restos mortais doapóstolo. A primeira vez, na Espanha ocupadapelos muçulmanos em 812. Conta-se que um pastorvia cair sistematicamente uma chuva de estrelassobre um local no campo. Procurou o bispo, ejuntos foram até o lugar. As luzes caiam iluminavamuma gruta e no seu interior estava um homem,decapitado, trajando roupas pontificiais. Depois demuitas pesquisas, descobriram serem os restos de S.Tiago. A Igreja, através do papa Leão III, aceitouas relíquias como pertencendo ao apóstolo, e oimperador Carlos Magno começou a empreenderuma verdadeira cruzada para abrir os caminhos donorte do que conhecemos hoje como Espanha paraa realização das peregrinações. A partir de então, afigura de um cavaleiro brandindo uma espadavermelha em forma de cruz passou “a ser vista” emdiversas batalhas contra os mouros. S. Tiago eratido como um grande guerreiro, protetor dacristandade e líder espiritual da reconquista. Em844, a tradição já estava bastante disseminada.Vários documentos oficiais e canções popularesfalam da participação do cavaleiro fantasmagóriconas batalhas. Sempre com a espada vermelha, coma capa e o chapéu de abas , montando um cavalobranco, S. Tiago, o herói da reconquista aparecianos momentos cruciais das batalhas e matavacentenas de inimigos. Assim, o apóstolo adquiriuoutro apelido: Matamoros.

A segunda participação da Igreja Católicano processo de criação do personagem ocorreu nabusca pelos restos no século XIX. As relíquiasforam escondidas durante o período deacirramento das guerras pela reconquista naEspanha, numa ação dos bispos da Galícia paraevitar o risco de serem “profanadas” pelosmuçulmanos. Eram consideradas como amuleto deforça para os exércitos espanhóis, portantodeveriam ser preservadas. Esconderam tão bem que

Page 16: Crise de credibilidade da propaganda

014

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Altar maior da Catedral de

Santiago de Compostela. Ao

alto, Santiago guerreiro,

brandindo a espada em forma-

to de raio.

apesar de diversas tentativas de buscas, os restos sóforam encontrados, segundo a igreja, quatro séculosdepois. A bula papal comprovando a autenticidadedas relíquias foi publicada em 25 de julho de 1884,assinada pelo papa Leão XIII. A criação do mitorelacionado ao santo não poderia ser apenas umfenômeno popular. A participação da igreja noprocesso foi fundamental, porque conferiuautenticidade aos propósitos da luta contra osmouros e também auferiu credibilidade aos restosencontrados. O santo é o patrono da Espanha, eentre seus ilustres devotos, encontra-se Isabel I,

conhecida como a rainha católica, título que lhe foiconcedido em 1496, pelo papa Alexandre VI.

A Igreja Católica se relaciona de maneiraambígua com as tradições e crenças populares quesurgem em torno de suas práticas. O apoio àslendas de Santiago tinha, sem dúvida, um caráterpolítico. Mas se por um lado a igreja conseguiusubmeter o personagem aos seus propósitos, a rotade peregrinação tornou-se importante para váriosgrupos místicos.

A correspondência entre as constelações eos fatos e santos cristãos foi estabelecida no século

Page 17: Crise de credibilidade da propaganda

015

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

XVII, quando Julius Schiller compôs umaassociação entre o traçado do céu e sua fé. Otrabalho de 1627 foi chamado de céu astral cristão.Entretanto, a correspondência entre Via Láctea e oCaminho de Santiago parece ser relacionada aosaber alquímico. Acreditava-se que a rota era umaprojeção terrena da galáxia. A estrada paraCompostela era um símbolo da Obra Mercurial.Mercúrio era um viajante ou peregrino. Assim, alémdo santo estar associado ao mito da reconquistaespanhola, sua rota de peregrinação estava tambémrelacionada ao misticismo judaico e islâmico.

O tema e o problema de VViiaa LLáácctteeaaVia Láctea é um filme de 1969. Não se

trata de um dos mais conhecidos de Buñuel, mas deuma obra que lida fundamentalmente com aquestão da temporalidade. Sua produção incluialguns trabalhos considerados emblemáticos peloscríticos, entre eles: O cão andaluz (1928); Os esquecidos(1950); A bela da tarde (1966); Tristana (1970); Odiscreto charme da burguesia (1972); O fantasma daliberdade (1974) e O obscuro objeto do desejo (1977).Inicialmente o diretor ficou conhecido por suaparticipação no movimento surrealista. Seuprimeiro filme, realizado com a colaboração deDali, foi O cão andaluz. Este filme foi consideradopelos críticos e por toda uma geração de artistascomo sendo o primeiro filme surrealista.

André Breton tentou certa vez definir abusca do movimento: “Um tipo de automatismopsíquico que corresponde, de forma muitoaproximada, a um estado de sonho, que hoje édifícil de delimitar”. Os estudos do autor sobre oque ele mesmo denominou de escrita automáticabuscavam um tipo de escritura rápida, sem revisãoou controle da razão. Segundo ele, o pensamentoracional era apenas uma das manifestações damente humana. O movimento deveria buscar darformas de expressão para as outras manifestações.O Surrealismo buscava reconciliar aquilo que osenso comum chama de realidade com os processosilógicos, que emergem dos estados de êxtase ousonhos, criando uma supra-realidade. Desta forma,não se pode dizer que o Surrealismo expressefantasias, mas uma realidade superior, compostapelo mundo concreto e pelos estados da mentehumana sejam conscientes ou inconscientes.

Segundo Hauser, “a experiênciafundamental do Surrealismo é a descoberta de uma

segunda realidade que, ainda que inseparavelmentefundida com a realidade vulgar e empírica é, noentanto, tão diferente dela que a seu respeito sópodemos fazer asserções negativas e apontar paraas lacunas e cavidades na nossa experiência comoprovas da sua existência”2. Na verdade, podemosdizer que a idéia central do Surrealismo é a fusão deduas dimensões da existência humana, a empírica ea onírica, tornando-se assim um paradigma darepresentação total de mundo. As correlações deimagens conseguidas pelo movimento têm aarbitrariedade de combinações existentes nossonhos. Cria-se um segundo mundo no qual aexistência ultrapassa a realidade empírica. Omovimento baseia-se no culto ao estranho e naexaltação do imaginário. Busca o maravilhoso e nãopropriamente o fantástico.

Buñuel realizou dois filmes que denominasurrealistas: O cão andaluz e A idade de ouro. Depoisdisso, abandonou o movimento. Segundo ele, ao sefazer um cinema surrealista, o que dever-se-iabuscar é a criação de um conjunto de idéias ouimagens que não permitisse nenhuma explicaçãoracional. Ao realizar O cão andaluz buscou imagensque não tivessem associação com uma cadeiaracional de pensamento. Só assim as portas para oirracional estariam todas abertas. Só assim o públicopermitiria que as imagens apenas osurpreendessem. Ele e Dali buscavam provocarreação e não cognição, pelo menos, não cogniçãoracional. Os dois foram profundamenteinfluenciados pelas imagens religiosas.

A Igreja Católica sempre teve uma imensainfluência política e social na Espanha. Sempreesteve relacionada com os governos, tanto com amonarquia quanto com a ditadura franquista. Mas,além disso, a igreja tem profunda influência noimaginário popular espanhol. Sua influência estápresente nas lendas, nas festas populares. Existetambém uma forte presença dos valores da religiãocatólica na moralidade espanhola. A moral populare das classes mais altas é completamente constituídaa partir dos princípios religiosos. A religião católica,portanto, determina comportamentos esperados einfluencia a tomada de decisões. A obra de Buñuelé marcada por uma enorme discussão e crítica àforte influência comportamental da igreja, bemcomo questiona a derivação política da mesma. Aobra de vários artistas espanhóis está marcada pelomesmo contexto de discussão, entre eles Dali.

Page 18: Crise de credibilidade da propaganda

016

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Várias obras do pintor possuem temática religiosa:A tentação de Santo Antônio (1946); A madona de PortLligat (1949); A última ceia (1955); Santiago, o velho(1957); entre outros. Além disso, uma imagem dofilme O cão andaluz, mais exatamente da mãocoberta por formigas, serviu de inspiração paradiversos quadros de Dali: O grande masturbador(1929); A persistência da memória (1931); Alucinaçãoparcial. Seis aparições de Lenin no piano de cauda (1931).Em todos eles Dali pintou uma reunião deformigas.

Apesar de ter rompido com o movimentoem 1931, Buñuel continuou a utilizar imagens cujaforça buscava reações e não propriamente encadearraciocínios. Em Via Láctea o estranhamento doespectador é provocado muito menos por aquiloque é mostrado, mas pela forma como éapresentado. Por isso, a análise do filme deve tratarda temática religiosa – relacionada de maneirafundamental à sociedade espanhola –, e discutir aforma peculiar do mesmo, uma das característicasdas suas realizações. O que se pode dizer é que atemática escolhida para o filme se presta de maneirasingular ao tratamento do tempo dado pelo diretor.Aliando duas manifestações do imaginário – areligião e o cinema –, consegue construir umuniverso no qual a idéia de continuidade do tempopode ser questionada.

A peregrinação é uma das mais antigastradições cristãs ainda vivas. Consistefundamentalmente em uma viagem para atingir umlocal sagrado. Os objetivos do peregrino sãomuitos: obtenção de graça divina, agradecimentopor graça já conquistada, prestação de homenagens,reforço da fé, busca de conhecimento pessoal ouespiritual. A peregrinação não é uma prerrogativada fé cristã. É também uma atividade praticada porjudeus e por muçulmanos.

No Cristianismo, a idéia de peregrinaçãoestá associada a um transcurso no tempo e noespaço. Um peregrino nunca será o mesmo aoterminar seu percurso, pois terá realizado umaviagem tanto física como espiritual. Nesta outradimensão, também terá percorrido um caminhoque o levará ao aprimoramento enquanto cristão.Terá ascendido em sua fé. O que faz do trajeto daperegrinação algo especial não é apenas o espaçotranscorrido, mas o tempo que se leva a fazê-lo. Aconsideração do percurso inserido no tempo é defundamental importância em termos espirituais,

porque está relacionada à idéia de que o fiel devadedicar um tempo pessoal para o crescimento desua fé, e de que a plenitude da vida espiritual sópode ser conseguida através da reflexão e do auto-conhecimento.

Portanto, discutir a questão dacontinuidade do tempo, bem como da religiãocatólica na Espanha a partir de uma história deperegrinos parece não apenas uma escolha bastanteapropriada, mas uma forma brilhante de apresentaro tema. Em outros termos, trata-se de captar ahistória do país na sua inserção espacial e temporalatravés de uma simbologia. Do ponto de vista deBuñuel, o passado não nos informa sobre opresente, não o justifica. O passado existesimultaneamente ao presente, como umamanifestação da consciência. Mas não se trata deuma consciência individual. Sua concepção ésofisticada: as manifestações do passado nãoaparecem como lampejos de memória, lembranças.Também não são explicações de situaçõespresentes. Aparecem como momentos impressosna memória coletiva, por isso, o passado évivenciado no presente. O diretor mostra que,muitas vezes, o presente nada mais é do que arecorrência do passado. Neste sentido, o passado éo presente. Por isso, há uma continuidade, mas nãoaquela a que estamos acostumados a nos referir.Não há uma linha do tempo na qual o passadosimboliza aquilo que já aconteceu e o presente seapresenta como aquilo que o sucedeu. É umaversão proustiana de tempo, na qual o passadonunca deixou de ser. O significado do passado nãoestá no que já passou, mas no presente. É opresente que explica nosso passado e não o inverso.Buñuel, na verdade, aponta para um paradoxo: se otempo de fato flui modificando inexoravelmentetudo à sua passagem, por que tudo parecepermanecer igual? Em termos de imagens, o diretorexpressa isso no filme em algumas seqüências àsvezes desconcertantes. Por exemplo, quandopersonagens vindos de um passado, trajandoroupas medievais, trocam de roupas à beira de umrio e passam a ver as horas em relógios de pulso eacender os cigarros com isqueiros.

A construção da realidade“Vários caminhos levam a Compostela”,

essa é uma das máximas dos viajantes. O termo“peregrino” significa pessoa que percorre campos,

Page 19: Crise de credibilidade da propaganda

017

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

portanto espaços. Entretanto, toda peregrinação éuma viagem mística, e isso significa que há, oudeveria haver, uma jornada de busca espiritual, deauto-conhecimento. Ora, este processo deinteriorização é considerado como de caráterprivado, individual. Por isso, juntamente com asexperiências oníricas, psicológicas, as experiênciasmísticas são geralmente aceitas pelo senso comumcomo um território no qual a irracionalidadeimpera, portanto, aceita-se uma certa incongruênciana continuidade do tempo.

Experiências místicas se situam em umterritório mental no qual existe praticamente umafusão entre o sonho e a realidade. Durante estasexperiências ocorre um deslocamento da percepçãodo mundo concreto – aquilo a que nos referimoscomo realidade – para um mundo abstrato, que nãose trata propriamente mundo das idéias, mas de umuniverso espiritual no qual os animais e coisasadquirem alma. Nesta dimensão, a lógica não éaquela que nos habituamos a utilizar, e o tempo nãopossui caráter universal. Pessoas que experimentamvivências místicas são deslocadas para um universointerior no qual todas as sensações são totalmenteindividualizadas, inclusive sua relação com o tempo.

O diretor abre o filme com umaexplicação sobre a rota de Santiago de Compostela.A rapidez com que se refere à peregrinação sejustifica logo de início: 500 mil peregrinos por anose encaminhavam, durante a década de 60, para acidade onde os supostos restos de S. Tiago seencontram. (Hoje em dia, esse trajeto é feito porum número muito superior). Rapidamenteapresenta a rota, uma breve história sobre adescoberta das relíquias e a quantidade de pessoasque ainda percorrem o caminho. Um homem alto,com uma capa preta, atravessa o pátio diante dacatedral de Santiago.

A seqüência seguinte do filme mostra asauto-estradas da França, com trânsito pesado decarros e caminhões. Em uma estrada menor, doishomens caminhando, saem de Paris. Encontramum homem usando uma capa preta e um chapéuigualmente preto de abas largas. O traje é conhecidoem toda Espanha como sendo dos estudantes deSalamanca a partir do século XIV. É mundialmenteconhecido por consumidores de vinho do Porto: éo traje do homem da marca Sanderman. Apesar deconhecido, apenas pelo traje não se pode inferirsobre a procedência do personagem no filme.Parece fisicamente com o homem que percorria a

praça de Santiago. Sabe para onde os peregrinosestão indo, diz que veio de Santiago e depois de daruma esmola a um deles, sugere que encontrem umaprostituta ao chegar em seu destino. Primeiramenteo personagem está só, e quando os viajantesvoltam-se para olhá-lo novamente, estáacompanhado por um anão.

Nesta seqüência, Buñuel já mostra que umdos peregrinos é um crente e o outro é um cético.Este último questionará, durante todo o filme, asevidências da existência de Deus e os postulados dafé cristã. O crente é, na verdade, um crédulo. Nãose trata de um cristão de fato, mas a imagem queBuñuel constrói do crente, isto é, uma pessoa queacredita na existência de Deus, mas não reconheceseus sinais. E, quando o faz, não consegueinterpretá-los.

O primeiro encontro do filme leva ospersonagens principais a uma reflexão: perguntam-se por quê o viajante teria dado esmola para apenasum deles. Acabam concluindo que a barba que ocontemplado exibe lhe confere ares deconfiabilidade. Lembra-se que sua mãe lhe dizia queficava melhor usando barba. Ao recordar-se de suafamília, o peregrino cria uma imagem parecida coma sagrada família. O pai carpinteiro, a mãe serena,coberta por um manto azul, o menino de uns dezanos e um rapaz se aprontando para fazer a barba.A mãe diz que deveria deixar a barba, e ele desistede raspá-la. O menino de dez anos é a única notadissonante. Afinal, a Igreja Católica afirma queJesus era filho único. Existem, no entanto, váriascorrentes cristãs que admitem que Maria e Josétiveram filhos. A Igreja Católica não aceita estaversão porque é contrária ao dogma de virgindadede Maria.

Buñuel brinca com arquétipos de mãe e defamília. Maria é uma das formas assumidas pelaGrande Mãe. A associação da figura materna com amãe de Jesus é recorrente entre os membros docatolicismo. Como a cultura judaico-cristã informao imaginário da cultura ocidental, juntamente comos mitos gregos, estes arquétipos estão presentescomo formadores de nossa percepção eentendimento de imagens.

Nesse sentido, para o espectador, a famíliade Cristo representa a família do peregrino. E aconstatação de que aquela família mostrada nofilme é a família de Jesus é imediata, porque asimagens utilizadas pelo diretor são réplicas dasimagens divulgadas pela Igreja e pelo cinema.

Page 20: Crise de credibilidade da propaganda

018

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Durante muitos séculos, a igreja permitiu adivulgação de imagens dos santos, principalmentede Cristo e sua mãe. Criou-se uma expectativaquanto às suas imagens. O olhar sereno, a expressãotranqüila, vestimentas em tons suaves. Aidentificação de Jesus não é feita por semelhançafísica, mas pela transferência de algumascaracterísticas. Estas são em parte físicas, e em partecomportamentais. Nenhum cristão vivo conheceu-o em seu tempo, mas a maioria tem sua própriaidéia de como deva ser e se comportar. Estaconstrução é resultado de séculos de influência daIgreja no imaginário popular, tanto através deimagens de todos os tipos, produzidas por ela oucom seu consentimento, como através dos seusensinamentos e dogmas. A imagem criada pelaigreja não é um duplo, ou uma reprodução3.Também não é um símbolo. Primeiramente porquenão se torna Cristo ou Maria, pela impossibilidadeimposta pela religião. A ideologia cristã impede aadoração de objetos como se fossem santificados.Em segundo lugar, não os reproduz porque nãobusca semelhança física, mesmo porque nãoexistem registros nos quais se apoiar. Existe, noentanto, uma certa similitude de forma, baseada napercepção das figuras. A imagem contém algunsaspectos retirados da personalidade que elarepresenta. Logo, as imagens religiosas sãorepresentações.

Para que falemos de representação,precisamos tratar do objeto da mesma. No casoespecífico da religião cristã, os personagens tidoscomo reais viveram em um passado tão distante,que a sua existência não pode ser comprovada emtermos documentais. Logo, sua existência real passanecessariamente pela crença. Os cristãos passam aacreditar que Jesus existiu da forma como a igrejaafirma ter sido. Logo, as imagens representam umacrença, e não algo que tenha necessariamenteexistido. A representação é um ideal de imagem. Énesse sentido que a escolha do tema e de suaapresentação no cinema é brilhante. Buñuel mostraque as imagens lidam com aparência de realidade, eque esta realidade é uma construção4. Mas, a quetipo de construção estamos nos referindo? Odiretor descreve um tipo de construção mental,mediada por uma série de referências. Ao trabalharcom o tema religioso, sugere que a Igreja foimediadora desta construção, e criou legitimidadepara a mesma. Os vários teóricos do cinema que,

defendendo que a realidade no cinema nada mais édo que uma ilusão transformada em real pelamediação da máquina – e nesse sentido, tributáriada fotografia –, não discutem a existência de outrasinstâncias mediadoras deste processo. Buñuelaponta a religião católica como uma dessasinstâncias, válida pelo menos para a realidadeespanhola.

Na sua análise sobre imagens criadas combase na religião, Buñuel tende a concordar comFrancastel5: são representações, construídas,portanto, a partir do intelecto. Os sujeitosrepresentados não existem, necessariamente, comoindivíduos concretos. Existem apenas como formasrepresentadas. Nesse sentido, assim como ocinema, a religião também é uma linguagem.

O ritualismo da Igreja CatólicaA que tipo de linguagem nos referimos ao

tratar da religião? Trata-se de um conjunto designificados próprios nos quais o conteúdo éimportante, mas também atribui-se grandeimportância à forma. Por isso o ritual é parteindissociada do conteúdo da crença. Este aspectoconstitui-se em elemento importante na construçãodo filme. O diretor nos apresenta em seguida, acontinuação da peregrinação a Santiago. Osviajantes não conseguem carona na estrada, e vãocaminhando na direção da fronteira da Espanha.Encontram um menino no acostamento. Ficampreocupados porque está só, e reparam queapresenta vários ferimentos no corpo. É umestigmatizado. Seus ferimentos reproduzemalgumas das chagas de Cristo. Os peregrinos nãoreconhecem os sintomas. A Igreja Católica afirmatratar-se de fenômeno relativamente raro, estudadopor seus teólogos. Assim, diz-se que ao longo dosséculos de fé cristã, algumas pessoas – geralmenteportadoras de forte crença religiosa, totalmentedevotas – foram marcadas pelo aparecimentodesses estigmas, sendo muitas delas posteriormentesantificadas pela Igreja. Tais ferimentos localizar-se-iam nas partes do corpo em que Jesus foi ferido emseu calvário – as sete chagas de Cristo –, e as feridasnão se fechariam, o sangramento seria constante eespontâneo. Os estudiosos católicos e o alto cleroda Igreja vêm dedicando estudos a esse fenômenohá muitos séculos. Hoje em dia, a Igreja mantémum corpo de especialistas, dedicados a verificar averacidade desses fenômenos.

Page 21: Crise de credibilidade da propaganda

019

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

O menino na beira da estrada temferimentos na testa, no peito e nas mãos. Querpermanecer sozinho, mas ao verificar que osperegrinos não conseguem parar nenhum carro,sinaliza para um motorista que pára imediatamente.Os viajantes agradecem a carona, se recostam equando começam a descansar da longa caminhada,são expulsos do automóvel. Um deles diz: “MeuDeus, meu Deus!”. O que se pode entender disso, éque o nome de Deus não deve ser mencionado emvão, uma das máximas cristãs. Foi mencionado peloperegrino que é crente, o que é parece lógico, umavez que quem não acredita em Deus não temnecessidade de citar seu nome.

Já nas primeiras seqüências do filme ViaLáctea, podemos verificar vários elementosapresentados pelo diretor. Claramente apresentauma versão da religiosidade cristã, discutindo ainfluência desta crença na formação da sociedadeespanhola. Mostrará que apesar da Igreja ter umaenorme importância social e política, houve umaprofunda modificação no sentido da fé religiosa. Osdogmas são aceitos, a moral ainda é, de certa forma,informada pela conduta cristã, mas não hágenerosidade nos atos dos crentes, e muito menosreconhecimento dos sinais, dos ícones da fé.Aponta para a perda do sentido dos atos e dasimagens. A religião católica apresentada por Buñuelé um simulacro, uma ritualização cujo sentido seperdeu no tempo. Aliás, segundo ele, as dúvidas quepermeiam a fé cristã são as mesmas ao longo dosséculos. Nunca foram solucionadas. Os peregrinossão aqueles que farão o percurso das discussões,além de vivenciar as dúvidas. Farão a ligação entreos diversos questionamentos da fé cristã, nos maisdiferentes locais, e ao longo do tempo.

A seqüência seguinte mostra um padre eum oficial, em um albergue, conversando sobretemas da fé cristã, quando os personagensprincipais chegam pedindo um pouco de comida. Adiscussão gira em torno da transubstanciação docorpo de Cristo na hóstia. Em termos de imagens,é importante ressaltar que o diretor mostra sempreum membro do clero e um membro da polícia emcada estalagem do caminho. São presençasobrigatórias e inquestionáveis. Ninguém verifica seaqueles que dizem ser padres ou oficiais são de fatoquem alegam ser. Os peregrinos e os outrosviajantes, no entanto, são sempre interpelados pela

polícia e devem comprovar quem são. Parece haverum acordo tácito entre as duas instituições e entreseus membros através do qual uma não interfere nopoder da outra. Assim, há uma convivência pacíficaentre o sagrado, representado pela Igreja, e osecular, representado pelo exército. E, se existempontos sobre os quais os indivíduos querepresentam as instituições discordam, na verdade,são querelas insignificantes sobre pontosirrelevantes. No caso desta seqüência, ao sercontrariado, se irrita com o oficial e joga seu chásobre ele. Descobrimos, em seguida, que o padreera um louco, fugitivo de um hospício. Osenfermeiros contam que tinha sido padre, mashavia enlouquecido.

Em um dos diálogos estabelecidosdurante esta seqüência, o suposto padre recomendaque o oficial seja mais caridoso, mais generoso, aoque retruca dizendo que não se pode ser caridoso emanter a ordem. Podemos estender a crítica contidanesse curto diálogo à participação da própria Igrejana manutenção da ordem na Espanha. Claro, semesquecer a data do filme, quando o franquismoestabelecia todas as regras de convivência naquelepaís, com todo apoio nos setores tradicionais daIgreja Católica. Desde tempos há muito passados, aIgreja Católica tem uma participação ativa namanutenção do ethos e do status quo. A Igreja sempreteve um papel preponderante na continuidademoral em vários países de tradição cristã. Nas

Relicário em formato da cabeçade Santiago. Museu da Catedralde Santiago de Compostela.

Page 22: Crise de credibilidade da propaganda

020

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

sociedades espanhola, portuguesa e italiana, estaparticipação na formação social da mentalidadeesteve conjugada com uma aquiescência política.Durante séculos a Igreja justificou privilégios,depois criou justificativas para perseguição políticae finalmente aceitou e conformou-se com governosditatoriais. Portanto, Buñuel está apontando para oafastamento da Igreja de seus ensinamentos: paramanter a ordem, não se pode ser generoso oucaridoso. Não se pode ser cristão.

No filme isto aparece em diversasseqüências, entre elas, em um momento daInquisição, quando um membro da ordemdominicana questiona a razão de tantas mortes. Oprior afirma que a Igreja não matava oscondenados, apenas realizava os julgamentos. Opoder civil os queimava por estarem contra aordem. Logo, não eram queimados por seremconsiderados hereges, mas por agirem contra aordem social e política. O diretor aponta para o fatode, mesmo sem participar ativamente de algunsepisódios, a Igreja ser omissa, colocando-se ao ladodo poder estabelecido, contra aqueles a quemdeveria proteger.

Ao sair do albergue, os peregrinoscontinuam sua jornada. Quando cai a noite, estãoem volta de uma fogueira, prontos para dormir,quando um pastor cruza por eles. Não entendemuma palavra do que ele lhes diz – o pastor fala emuma língua que desconhecem –, e permanecemsentados ao lado do fogo. O pastor os convidarapara uma cerimônia. Perto dali, há uma reunião depessoas, todas trajando túnicas. Parecem pertencera um tempo passado, mas como estão na mata, nãose pode localizar exatamente a época a que serefere. Podem apenas estar trajando roupas antigas,mesmo porque o pastor chega à clareira onde ogrupo se reúne quando alguns ainda estão sevestindo. Um deles, parece ser um líder religioso,veste paramentos de bispo e discursa em latim.Afirma que finalmente foi reconhecido não ser umherético, e sim “aquele que se sentara no trono dePedro”. Cita o nome de um imperador Graciliano,o que nos indica um período de início da era cristã.Apesar do estranhamento, Buñuel ainda dá aoespectador o benefício da dúvida: os peregrinosencontraram de fato com o pastor? Estavam sepreparando para dormir, será que a seqüência nãotrata de um sonho? A imagem pode referir-se àmistura de crenças celtas e cristãs, comum na

Galícia, onde, entre os ídolos dos altaresdomésticos figuram, lado a lado, S. Tiago, Maria,Cristo, duendes, bruxas e seus calderões.

O suposto bispo realiza uma espécie deculto, divide o pão com alguns assistentes, e sai emcompanhia de duas jovens. Na verdade, a não serpor alguns detalhes, seus ensinamentos pouco sediferem dos ensinamentos cristãos. A não ser pelocomportamento não celibatário, o suposto bispopoderia muito bem ser um católico. Quemestabeleceu as normas se não a própria Igreja? Porque alguns comportamentos são inadequados?Existe, é claro, uma questão moral, mas o diretornos mostra que se trata apenas de aparência. Opadre que tinha enlouquecido se comportavaadequadamente, trajava-se adequadamente,aparentava normalidade. O bispo herege vestia-secomo um bispo, repetia vários ensinamentos, masnão aceitava alguns princípios como a infalibilidadedo Papa e o celibato dos membros do clero.

Buñuel nos mostra, a partir das imagens,que a Igreja Católica está preocupada muito maiscom as formas do que com os conteúdos. Portanto,a aparência é fundamental. Se parece certo, é certo.Talvez por isso tenha se tornado ritualista, criandouma legião de crédulos e não de verdadeiroscristãos.

Em seguida, os trovões ligam novamenteuma seqüência à outra. Um dos peregrinos acordaao escutar o barulho. Faz o sinal da cruz comoproteção e o outro, cético, pergunta se acha queaquilo vai protegê-lo. Pergunta se acredita naexistência de Deus e que provará que ele não existe.Faz um teste, pedindo que prove sua existência ofulminando com um raio. Um raio cai na casa atrásdele, como não o atingiu, conclui que Deus nãoexiste. O crédulo pergunta se acha que Deus está asua disposição.

A linha emaranhada do tempoA partir deste ponto, o filme continuará

tratando de questões religiosas, mas Buñuel buscarácriar uma ruptura em nossa idéia de continuidadedo tempo. As seqüências obedecerão a uma lógicade acontecimentos, mas não haveránecessariamente o encadeamento temporal a quenos habituamos no cinema. Quando uma pessoapassa pela nossa janela em um filme, acreditamosque ela aparecerá em seguida pela porta. Váriasseqüências não seguiram esta lógica temporal no

Page 23: Crise de credibilidade da propaganda

021

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

filme. Por exemplo, os peregrinos passam por umajanela na fachada de um restaurante antes de seiniciar uma discussão sobre a existência de Deusproposta pelo maître. A discussão é bastante longa,antes dos peregrinos aparecerem na porta dorestaurante. O mesmo homem que durante adiscussão afirmava serem apenas os homens mausos que não acreditavam na existência de Deus,expulsa os peregrinos.

Em seguida chegam a uma festa em umainstituição de ensino. São recebidos comcordialidade. Sentam-se e enquanto ouvem odiscurso da diretora sobre como foram preservadosda violência, um deles lembra das passeatasestudantis em Paris. É a primeira e única mençãoaos problemas políticos ocorridos em 1968. Operegrino cético relembra as passeatas, até que emum determinado momento imagina o fuzilamentode um Papa. Um dos presentes à cerimôniapergunta se existe um campo de tiros por ali. Operegrino diz que isto ocorreu apenas na suaimaginação, e que havia sonhado com ofuzilamento de um Papa. O convidado afirma queveria muitas coisas durante sua vida, mas jamais umPapa em um paredão.

Nesse momento do filme, percebemosque o diretor, embora rompido com o Surrealismocomo movimento, continua criando supra-realidades, ou seja, realidades compostas peloconcreto, pelo pensamento, pelo onírico e pelopsicológico. O diretor revela certo desprezo peloempírico e observável. Sua realidade é umacomposição entre várias dimensões de tempo eespaço. A imaginação não é, portanto, umadimensão paralela àquilo que denominamosrealidade, mas componente daquilo que ele chamade realidade. Nesse sentido, Buñuel permanecesurrealista: busca uma realidade superior.

A realidade superior do diretor incorporadimensões psicológicas à realidade observável.Uma seqüência que demonstra isso é aquela na qualos peregrinos pedem carona na estrada, quando umdeles não consegue mais andar com o sapatofurado. O peregrino cético faz sinal para ummotorista que não pára, e roga uma praga. Omotorista se acidenta e morre. Os peregrinos seaproximam do carro, e observam o motoristamorto. Enquanto discutem sobre a necessidade deinformar a guarda, outro personagem surge dentrodo carro. Os dois perguntam se ele estava ali, e

responde que sempre aparece em casos comoaquele. Durante a conversa, o personagempraticamente se identifica como um anjo oudemônio, encarregado de conduzir as almas, mas osperegrinos nada vêem de estranho naqueleinterlocutor. Mais uma vez Buñuel mostra que ossinais que poderiam comprovar as bases da fé cristãnão são mais reconhecidos.

Logo em seguida, os peregrinosencontram uma capela. Não podem entrar aliporque o convento está “contaminado” por umaseita jansenista. Nesta seqüência do filme, oespectador é levado pela primeira vez a crer quedois momentos da história se cruzaram. Osperegrinos são convidados a presenciar um duelode espadas entre um jesuíta e um conde protetordos jansenistas. Os dois esgrimam, mas ninguém saivencedor, ambos terminam o duelo batendo nascostas do outro. Parece, pelo tratamento dado pelodiretor, que os peregrinos passaram por um outromomento da história, ou seja, em seu caminho,acabaram esbarrando com outro período histórico.Esta sensação persiste na seqüência seguinte.Cruzam com dois viajantes vestidos com capaspretas e um burro. Os viajantes pedem que levem oanimal até um albergue, onde se encontrariam ànoite, Receberiam como pagamento uma moeda deouro.

A sensação de cruzamento entre doistempos surge por vários motivos: primeiramente,os trajes inadequados para a época em que se passao filme, e depois pelo pagamento oferecido.Moedas de ouro não são mais o dinheiro corrente.Em seguida, os dois viajantes de preto entram emum vilarejo com pessoas vestidas com trajes dopassado, guardas com lanças e elmos, carroças aoinvés de carros. Entram em uma espécie deconvento, onde está sendo realizada uma cerimôniade exumação de cadáver. Aquele que conduz acerimônia fala que o exumado sempre tinha sidoconsiderado como um excelente membro da igreja,mas que após sua morte, seus escritos heréticostinham sido descobertos. O corpo exumado équeimado, enquanto o bispo que conduz acerimônia reafirma o dogma da Trindade. Os doisjovens de preto gritam contra o dogma, afirmandoque ninguém pode ser ao mesmo tempo um e três.Ninguém consegue pegar os dois jovens, e elesfogem.

Pode-se dizer que o tema simboliza uma

Page 24: Crise de credibilidade da propaganda

022

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Imagem de Santiago peregrino,provavelmente de meados doséculo XVI, influência flamenga.Museu da cidade do Porto(Por tugal).

crítica à censura do franquismo que persegue,naquele momento na Espanha, os estudantes queaderem ou apenas se referem às transformaçõespropostas ou apresentadas pelos movimentos de68, tanto na França como em outros países. A

escolha dos personagens franceses, o filme serfalado em francês, e a maior parte do percurso serealizar na França retiram, de certa forma, aidentificação direta com a Espanha. Entretanto, ainfluência da Igreja a que o diretor se refere ocorre

Page 25: Crise de credibilidade da propaganda

023

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

em países como Espanha, Itália e Portugal, e nãopropriamente na França. Além disso, esta seqüênciarelaciona-se, dessa forma, com a anterior,aparentemente isolada, que mencionada depassagem as passeatas estudantis em Paris.

Ainda como fugitivos, os dois jovenschegam às margens de um rio ou lago. Ouvemhomens nadando. Verificam que os nadadoresdeixaram suas roupas na margem, e roubam-nas.São roupas de caçador. Os dois observam asmesmas com estranheza, olhando com cuidado oscartuchos de balas. Continuam andando, agora nãomais fugindo. Empunhando as armas, apontampara o alto, como se estivessem procurando alvosde caça. Um deles mexe nos bolsos e encontra umterço. O outro joga o rosário em um galho deárvore e o arrebenta com um tiro certeiro.

Já há uma diferença entre os dois jovensque pegaram as roupas na margem do rio e aquelesdois, vestidos com as roupas de caçador. Eles são asmesmas pessoas, ao menos em termos físicos, maspossuem uma familiaridade com as vestimentas queantes não tinham. Além disso, usam relógios depulso e isqueiro.

Esperam anoitecer antes de voltar para aestalagem onde combinaram o encontro com osperegrinos. Sentados enquanto esperam, sãocontemplados com uma aparição. Um dos viajantesrecebe de volta, das mãos daquela que identificacomo a Virgem Maria, o terço antes arrebentadopelo tiro de espingarda. A aparição é questionadapelo outro jovem, que afirma que estão cansados e,portanto, confusos.

Ao voltarem à estalagem, os viajantesencontram os dois peregrinos. Ali, também estãoum padre e uma força policial. Pedem um quartopara que possam passar a noite, mas antes dedormir, conversam com o padre sobre a aparição daVirgem. Esta parte final do filme mostrará osviajantes dormindo em uma estalagem onde não sedeve abrir a porta para ninguém que bata durante anoite. Ambos estavam sós em seus quartos, mas derepente têm companhia. O padre começa aconversar com um deles através da porta, e emalguns momentos, o padre está na sua frente,sentado em uma cadeira dentro do quarto.

Quanto aos peregrinos, chegam aSantiago, encontram a prostituta a quem o primeirohomem encontrado se referiu. Segundo ela,Santiago estava às moscas, pois tinham descobertoque o corpo ali enterrado não era do santo, mas de

um homem qualquer.O filme termina com a seqüência de dois

cegos caminhando por uma floresta, e encontrandoum grupo de pessoas. Aparentemente trata-se deCristo. Pedem a cura, e Jesus pede-lhes que nãoespalhem o milagre. Diz ter vindo à Terra parasemear a discórdia entre as famílias, opor o filho aopai. Segue em frente com seu grupo de discípulos,e os cegos tentam caminhar com eles. É quando sepercebe que ambos não estão propriamentecurados, pois não conseguem atravessar uma valasem o uso do cajado.

Perspectivas de análiseNa tentativa de analisar o filme de Buñuel,

passa-se por vários questionamentos a respeito davalidade de algumas propostas teóricas para aanálise de cinema. Sem dúvida a análise deTarkovski6, por exemplo, seria perfeita paramostrar como um autor pode recriar o tempo darealidade segundo a lógica do seu pensamento. Ofilme seria, segundo ele, uma realidade emocional, eos espectadores o receberiam assim, como umasegunda realidade. Isso seria possível porque aocriar um filme, o diretor estaria construindo seupróprio mundo, ou seja, poderia estar criando umarealidade não convencional. Além disso, Buñuelconcordaria com Tarkovski sobre o fato de que asassociações poéticas tornariam o público mais ativo.A busca de Buñuel ao fazer filmes é provocarreações, gerar controvérsias a respeito dossignificados.

Tarkovski também afirma que a fruição dotempo seria a única força organizadora do filme.Buñuel opta por um tipo de tempo cujo fluxo tornadescontínua nossa noção a respeito da suapassagem. Recria o tempo em uma esculturaapropriada para mostrar como pensa. Mas, parafazer isso de maneira inteligível para o espectador, odiretor escolheu uma temática que se submete àforma. Ou seja, expôs a lógica do seu pensamento,mas também utilizou uma forma específica deconstrução do filme para mostrar o que pensa.Tarkovski acredita que, como a música, o cinemaseja uma arte imediata. Isso significa que nãoprecisaria de uma linguagem mediadora para levar àcompreensão. De certa forma, ao dizer que precisade imagens que produzam reações, Buñuel estáfazendo um cinema imediato. Mas, sem ter acesso auma linguagem mediadora que permita acompreensão dos diversos significados religiosos

Page 26: Crise de credibilidade da propaganda

024

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

do filme, o espectador vagará entre as seqüênciascomo uma nau à deriva. A lógica de continuidadedo tempo de Buñuel reside também no conteúdosobre o qual o filme trata.

O diretor vai mostrar que, mesmoproferindo palavras não muito apropriadas emtermos dos ensinamentos cristãos, aquele homemde barba, trajando túnicas com cores claras, éidentificado com Jesus. Ele vive situaçõessemelhantes às que são descritas na Bíblia, portanto,a identificação é quase imediata. A pergunta quenos resta é: por que? Por que apesar das palavraspraticamente contradizerem as imagens, aindaficamos com as últimas?

A construção de imagens de santos podeser considerada como uma das mais complexasformas de criação imaginária. Baseia-se, de certaforma, na verossimilhança. Mas, semelhança emrelação a quê? Trata-se de uma semelhançaconstruída a partir de elementos constitutivos deum ser humano: olhos claros e ternos, barba oucabelos longos. Mas, isso seria muito pouco paracomeçar com um retrato. Acrescentam-se asroupas, de cores claras, túnicas e mantos cobrindoparte da cabeça. E, finalmente, a atitude. Umaforma de mover-se, alguns comportamentosrecorrentes. A figura santificada deve, também,transmitir calma, tranqüilidade, paz de espírito.Tudo isso associado, cria a imagem do santo. Emnenhum momento, se diz que a imagem substituaaquilo que ela representa, ao menos na religiãocatólica. Entretanto, existe quase que umareverência às imagens de santos. Elas estão maispróximas de nós, e os fiéis atribuem certos poderesmágicos a elas. Imagens que desaparecem ereaparecem em outros locais, pedidos que sãoatendidos porque o fiel tocou a imagem. Portanto,a imagem religiosa criada pela Igreja Católica é umarepresentação, mas, entre os seus fiéis, assumecaráter de reprodução e de duplo. Reproduz asoutras imagens, e portanto torna-se semelhante, eassume um caráter santificado próprio,praticamente substituindo o santo que representa.Nesse sentido, diríamos que a imagem religiosapossibilita uma relação concreta entre o fiel e umaentidade abstrata.

O que podemos dizer é que na religião,não existe necessariamente uma cópia do queexiste. Há uma representação de um universo jácriado pela mente. Não há lógica racional envolvida

nesse processo, mas trata-se de uma forma deapreensão do mundo.

Para Buñuel, o cinema também cria umarealidade superior, cujo sentido não é apenasracional. A supra-realidade só pode ser entendidacomo uma fusão dos diversos estados mentais doser humano. Por isso, sua produção pode seranalisada pelos diversos teóricos do cinema: propõea construção de um tipo de realidade, propõe umcuidado com a forma de apresentação do filme, etrabalha os elementos de forma simbólica. Por isso,suas obras são citadas por quase todos os analistasde cinema. Dependendo do argumento, Buñuel sepresta como exemplo. Além disso, estabelece umarelação especial com seu público. O diretor fazfilmes que dependem da reação do espectador, eportanto esperam um espectador ativo. Conta coma atividade mental do público para decifrar algo quenão esteja explícito. Por isso, ele mesmo disse: “Eupeço que o filme descubra algo para mim”.

NOTAS1 ANDREW, J. Dudley, As Principais Teorias do

Cinema: uma introdução. Rio de Janeiro: ZaharEditores, 1989.

2 HAUSER, Arnold. História Social da Literaturae da Arte. São Paulo: Editora Mestre Jou,1980/1982. Volume II, p 1125.

3 Sobre a questão do duplo e da representação,ver: MORIN, Edgar. O Cinema ou o HomemImaginário. Lisboa: Moraes Editores, 1980.

4 Sobre a questão da construção de realidadever BAUDRILLARD, Jean. Le Crime Parfait. Paris:Ed. Galilée, 1995;CARRIE, Mathieu, A Linguagem Secreta do Cinema,Rio de Janeiro, Nova Fronteira;FRANCASTEL, Pierre. Imagem, Visão e Imaginação.São Paulo: Martins Fontes; Morin, Edgar, op. cit.

5 FRANCASTEL, Pierre – op. cit.6 TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o Tempo. São

Paulo: Martins Fontes, 1990.

Mônica Rugai BastosProfessora de Sociologia da FACOM-FAAP e docurso de jornalismo da UNIFIEO. Doutoranda naUniversidade de São Paulo.

Page 27: Crise de credibilidade da propaganda

025

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Oswald de AndradeMáximo Barro

Entre os anos de 1947 e 1950, o número 230,da rua 7 de Abril, era minha segunda casa.Conforme o dia, ou melhor, a noite, por exemplo,se fosse terça, quinta ou sábado, o caminho eraseguir até o fim do corredor do prédio dos DiáriosAssociados e tomar o elevador dos fundo que meconduziria ao segundo andar, no Museu de ArteModerna. Ambos os Museus ficavam no mesmoprédio

Logo após o cinema, meus outros doisalvos de atenção no momento que eram a música eartes plásticas. No Museu de Arte Moderna, alémdas exposições do que poderia haver de maisavançado em matéria de pintura e escultura doséculo XX, também funcionava a Filmoteca,inaugurada com Joana D Árc de Carl TheodorDreyer e outros clássicos da vanguarda francesesdos anos vinte. Poderiam ser encontrados nobarzinho anexo, a partir da 18 horas, DiCavalcanti, Rebolo, Di Prete, Flavio de Carvalho, àsvezes, Ciccilo Matarazzo e, eternamente, FranciscoAlmeida Salles.

Fosse segunda, quarta e sexta, a rota seriatomar o elevador da área esquerda e também, nosegundo andar, apenas em bloco diferente, iríamosao Museu de Arte de São Paulo, financiado porAssis Chateaubriand, onde teríamos uma visãoampla de arte, abarcando desde sarcófagos dascatacumbas cristãs, passando por quadros da IdadeMédia e Renascença, Barroco, Romântico e, semser essencialmente moderno, havia dezenas deimpressionistas, menor número de expressionistase outros então atualíssimos , como Picasso, Chagall,Siquieros, Portinari, Tarsila, Malfatti.

Praticamente com a primeira exposiçãoque lá estivera, começou a funcionar o Centro de

Estudos Cinematográficos, clube de cinema quetentava rivalizar com o da Filmoteca. Pouco depoiscomeçou funcionar o Seminário de Cinema, ondetrês vezes por semana, das 20:00 às 22:00 horashavia aulas teóricas de técnica, estética e história docinema. Tudo muito acadêmico, cerebral, nada deprático mas, sempre importante, porqueanteriormente nada havia que pudesse fornecerqualquer orientação para quem desejasse algumacoisa de mais aprofundada acerca do cinema.

As projeções em 35 e 16 mm, para ossócios contribuintes, eram realizadas no grandeauditório. Às segundas feiras, no pequenoauditório, havia projeções de clássicos, sempreamericanos, sonoros, alugados diretamente nasdistribuidoras americanas. Val Lewton, John Ford,Capra, Welmann entre outros que já haviampercorrido o circuito comercial da cinelândia, eramprojetados com uma apresentação da obra dodiretor e, depois do filme, debate.

Foi nesse pequeno auditório, sentado nascadeiras idealizadas pela Lina Bo Bardi quepresenciei um dos acontecimentos mais insólitoque marcou-me para sempre.

Ainda não completara vinte anos, egressode colégio e educação religiosa, onde ensinavamque quem não era apóstolo era apóstata, vira-me derepente, no centro de outras correntes, nãoreligiosas, mesmo atêas, mas tão discriminatóriasquanto as do Vaticano, que afirmavam que a direitajamais teria capacidade para produzir arte. Oparaíso estético era apanágio da esquerda. Essesconceitos me perturbavam porque os raros filmesnazistas que assistira naquela quadra eramsuperiores aos soviéticos. Além disso, como aceitaraqueles conceitos da esquerda espumante, se o

Page 28: Crise de credibilidade da propaganda

026

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

maior poeta do século XX americano naturalizadoitaliano, se dizia fascista convicto, chorando amorte de Mussolini na cela em que fora confinado.

Nesse ambiente convulsionado deextremismos, anunciava-se um debate, no MASP,sobre dodecafonismo. Ela prometia debatesquentes, porque dias antes num despreocupanteconcerto de música francesa que o maestro SouzaLima regera no Teatro Municipal, lá pelo meio dasuíte La Mer, de Debussy, um cheiro de queimadotomou conta da sala. O ambiente carregado dedisputas frontalmente antagônicas que sempre erammais políticas que estéticas, levou alguns dosouvintes ao exagero de pensar que era um princípiode incêndio provocado por um dos lados. Muitos jáse retiravam da sala quando o primeiro violino,atemorizado com o odor e a retirada das pessoas,largou as impressões do mar “debussiniano” aomeio dia e, com o violino embaixo do braço,também empreendeu sua retirada da laguna dopalco. O maestro, de costas para a platéia, que nadapercebera até ali, ficou pasmo com a atitude e paroucom o braço no ar. Por via das dúvidas, parte daorquestra seguira o exemplo do spalla. Felizmenteum dos funcionários do Teatro entrou acalmando eavisando que tratava-se de uma ponta de cigarroaceso que algum mal educado jogara no tapete. Aparanóia de que todos estavam impregnadosnaqueles dias, pode bem ser explicitada através dafrase irada que uma francesa gritava ao meu lado,no mais carregado sotaque parisiense: arrrrte éarrrrrte e póóólitica é outra coisa.

Na noite do debate programado para oMuseu de Arte de São Paulo, bem antes do horárioque os jornais anunciaram para começar, todos oslugares já estavam tomados. Pessoas em pé. Nahora precisa (naquela época ainda não imperava ominutinho), corredores e fundos estavam tomadospor compacta massa.

Precavido eu chegara bem cedo,sentando-me na terceira fila, lugar estratégico, dolado esquerdo, onde ficava uma grande e pesadamesa ocupada pelos professores que ministravamaulas e, em outras ocasiões, pelos conferencistas.

Pouco depois da minha chegada, senta-seao meu lado um senhor meio gordo, inquieto,fazendo do seu pescoço um periscópio, olhandopara as laterais e para trás, às vezes cumprimentado,outras dirigindo um olhar frio, contundente,praticamente de desafio.

O advogado que assessorava o Museuassumiu a mesa dizendo-se mediador. Pedia quealguém favorável à teoria dos doze tonsempregados por Schonberg e, depois, outrocontrário, se inscrevessem para exporem durantecinco minutos cada um suas opiniões. Em seguidaos debates estariam abertos, para quem seescrevesse, no tempo de 3 minutos.

Antes de qualquer descrição é bom saberque o após guerra elevara ao cume a questão doabstracionismo e figurativo nas artes plásticas, omesmo acontecendo com a música tonal e atonal.Essas divergências que na Europa e América eramdebates puramente acadêmicos, em São Paulo,

À mesa, João Aciolye Jamil Haddad.Abaixo: Mario daSilva Brito, Oswaldde Andrade, AntônioCândido e RossiniCamargo Guarnieri.

Page 29: Crise de credibilidade da propaganda

027

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

tornaram-se campos de batalha entre comunistas,ou mais apropriamente, os estalinistas e os outros,da direita e centro, que posicionavam-se de formaindependente, pró ou contra o abstracionismo eatonalismo. Ignorávamos naquele momento queShostakovich quase sofrera prisão porque andaracompondo alguns compassos num estilo que opaizinho de todas as Rússias considerava músicadeliqüescente. Aqui em São Paulo a briga sepolarizara entre o maestro Camargo Guarnieri,convicto estalinista, propugnador do folclore comoúnica fonte de música e o maestro Hans JoachinKollreuter, fanático defensor de todas asvanguardas, privando da amizade de Alban Berg,Schonberg e Anton Webern, através de váriosescritos publicados em jornais.

Todos esperavam pela palavra deCamargo Guarnieri mas ele não compareceria,explicando um dos seus alunos que ele temia quesuas palavras fossem distorcidas pela imprensa.

Kollreuter, exprimindo-se num portuguêsdeficiente,- ele começara seus cinco minutos depraxe num infelicíssimo, “minhas senhoras e minhassenhoras”, expõem que a modernidade dosautomóveis, elevadores, aviões, aspiradores,batedeiras e todos os aparelhamentos elétricos quetínhamos em casa impunham uma músicasemelhante. A questão crucial nem era debater ajusteza ou não do serialismo, mas se a música doséculo XX deveria tonal ou livre.

Um rapaz, beirando os vinte anos,dizendo-se aluno e porta voz de CamargoGuarnieri, defende o outro lado dizendo que amúsica para ser internacional, precisa ser,obrigatoriamente, nacionalista. Somente através dofolclore é que os brasileiros seriam respeitados noexterior.

O cavalheiro ao meu lado que ouvira omaestro alemão com alguma impaciência, com afala do garoto exasperara-se. Sua atitude inquietapremiava meu fígado com contínuos socos do seucotovelo. Em meio a uma defesa mais candente deverde amarelismo do garotão, o senhor-cotovelo,sem pedir licença, em altas vozes aparteia. O rapazresponde a altura, deixando ainda mais indignado osenhor que já começo temer. Em pé, agora além dascotoveladas sou pisado, ele retruca com insolência.O aluno fazendo uso de todos os jargões que oPCB não tinha vergonha de repeti-los à exaustãopequeno burguês torre de marfim-bonde da históriaapaniguado de Washington, colonizado- luta campesina-patronato insensível ópio do povo com ironia preparada

na sede do partido, vai direto na jugular do homem-soco que continua vociferando, indiferente àscampainhas, admoestações da presidência,cassação da palavra, pedido para que se inscreva,ouve do garoto uma frase lapidar: O senhor Oswaldde Andrade acredita sempre estar com a razão, ao que ooutro responde sem titubiar: Eu sempre tenho razão!

O meu choque naquele momento eraincomensuravelmente maior daquele que a platéiapoderia estar recebendo com os destampatórios deambos os lados. O nome que eu ouvira e que estavasentado ao meu lado, pelejando com o auditório,pertencia nada mais, nada menos, que ao homemque ousara fazer algumas das descrições mais cruasde personagens e situações da literatura brasileira.Que fora amigo e inimigo de Mario de Andrade.

Oswald de Andradedécada de 50.

Page 30: Crise de credibilidade da propaganda

028

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Que anos antes pertencera aos quadros do partidãoe quando, desalentado desligara-se, o fizera aosberros, sem nenhum afeto.

Enquanto eu fazia essas meditações abatalha continuava. O presidente tentava aos gritose campainhadas direcionar o debate, mas com aparticipação daquele homem nada parecia possível.

O maestro Eduardo de Guarnieri, pai doator e dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri pede apalavra e indaga calmamente se a música foraconcebida para ser ouvida ou lida, porque quandoliderara o Quarteto de Roma era obrigado a estudarprofundamente todos os tecnicismos das partiturasda Nova Música para depois tocá-la para ouvintesà que odiavam aquelas incongruências.Kollreuterresponde que na verdade a música não se resolveapenas com problemas técnicos mas, que eramfuncionais, inerentes às mutações que a música doséculo XX vinha passando. Isso acontecera noséculo XIX com os quartetos de Beethoven.

O garotão volta a atacar tentandominimizar os problemas de aceitação popular quetiveram Bach ou Wagner no passado. A músicaatonal vem destituída de qualquer significado parao artista brasileiro. Oswald retruca com acostumeira virulência: esse conceito faz parte doobscurantismo soviético. Pasmo geral. Pela primeiravez naquela noite, no centro de uma batalha quenão poderia ser musicada nem mesmo porStrawinsky, o auditório conheceu algunscompassos de absoluto silêncio, sepulcral,quebrado repentinamente por uma voz, maisparecendo deformada por uma câmara de eco,proveniente do espaço formado pelas dezenas depessoas comprimidas depois das última fila depoltronas e proferindo: “apenas a tua mulher conheceua prisão”. A frase era chicoteante, tanto mais que eraendereçada a quem até ali somente atacara. Oswaldlevanta-se da cadeira, lívido. Tomo mais um huch nofígado. Ele olha esfogueado para o local de ondeveio a chibatada. Não só ele, todos olham para lá. Aresposta é o silêncio de um mar de cabeças. Outrapausa numa partitura de estrondos mahlerianos.Novamente a voz distinta, de um corpo indistintorenova o anátema: “a tua mulher é que foi presa, somenteela conheceu a prisão!” É impossível distinguir o queele responde porque a voz está embargada , apesarde atingir altíssimos decibéis. O presidente quercassar-lhe a palavra. Ele não admite. O presidenteexige que ele se inscreva. Ele não admite. O

presidente afirma que ele não poderá mais fazer usoda palavra. Ele solenemente diz que ninguém vaicassar-lhe a palavra. O presidente pede que seretire. Ele o fará ruidosamente enquanto recebo osúltimos socos e pisões.

Sem a sua presença os debatescontinuaram serenamente, educadamente, semincidentes, naquele estilo que ele maldosamenteclassificaria em um dos seus ensaios como umareunião de chato-boys.

Máximo BarroProfessor de História do Cinema Brasileiro daFACOM-FAAP e membro do Centro dePesquisadores do Cinema Brasileiro.

Page 31: Crise de credibilidade da propaganda

029

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

As imagens da memóriaYeats... Proust... BecketGabriela Borges

RESUMO

Este artigo analisa os elementos estéticos constituintes da tele-peça ...but the clouds... a partir de seudiálogo com o poema The Tower, de William Butler Yeats, e os conceitos de memória voluntária e involuntáriaexplorados por Beckett na análise da obra Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. ...but the clouds... estre-ou em 17 de abril de 1977 no programa The Lively Arts da BBC2, sob o título de Shades, juntamente comGhost trio e a transcriação da peça de teatro Not I.

ABSTRACT

This paper analyses the aesthetic elements of Samuel Beckett's television play ...but the clouds..., itsdialogue with the poem The Tower, by William Butler Yeats, and the concepts of voluntary and involuntarymemory explored by Beckett through his analysis of Marcel Proust's Le Temps Retrouvé. ...but the clouds... wasfirst broadcast on the 17th April 1977 at The Lively Arts BBC2 program under the title Shades, along withGhost trio and the adaptation of the play Not I.

O dramaturgo Samuel Beckett, apesar de sermais conhecido pelos seus trabalhos literários eteatrais, possui uma extensa obra para os meioseletrônicos, destacando-se as suas peças de rádio, oseu único filme denominado Film e as suas tele-peças. Entre os anos 1966 e 1986 o autor escreveuas seguintes tele-peças: Eh Joe, Ghost trio, ...but theclouds..., Quad e Nacht und träume para a rede públicade televisão britânica British BroadcastingCorporation (BBC) e para a televisão pública do sulda Alemanha, Süddeustcher Rundfunk (SDR).

A sua colaboração foi diferenciada emcada uma delas. Na BBC, escreveu os roteiros esupervisionou a produção de quase todas as tele-

peças, dirigindo apenas Quad. Entre os fatores quepermitiram Beckett trabalhar com a BBC destaca-sea criação da BBC2 a partir das recomendações doPilkington Report, em 1962, e a liberdade criativadada aos escritores, além da escassez de materialoriginal para ser produzido pelo meio televisual,que levou a emissora britânica a procurardramaturgos e escritores de renome para escreverroteiros especialmente para o meio.

Na SDR, o autor dirigiu todas as suas tele-peças. A sua colaboração deveu-se principalmenteao fato do Diretor de Dramaturgia da televisãoalemã, Dr. Reinhart Müller-Freienfels, seradmirador do seu trabalho e estar interessado em

Page 32: Crise de credibilidade da propaganda

030

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

patrocinar autores de renome internacional para asérie Der Autor aus Regisseur. Esta experiência foifundamental para Beckett apurar o seu sensoestético como autor e diretor e desenvolver a suapoética tecnológica pois, além da qualidade técnicados equipamentos, a equipe de produção procuravafazer com que as imagens criadas pelo autor fossemefetivamente visualizadas no meio eletrônico.

Elementos estéticosA tele-peça ...but the clouds... prima pelo uso

da luz. O cenário consiste de um foco de luz de 5metros de diâmetro no centro da tela rodeado poruma zona de escuridão. A iluminação é gradualentre a completa escuridão ao redor do círculo e omáximo de luz no centro. O roteiro indica que ostrês lados deste foco de luz são denominados: 1.oeste, ruas; 2. norte, santuário; 3. leste, armário e ocentro do círculo é denominado 4. posição depermanência.

A câmera, diferentemente de sua atuaçãoem Eh Joe e Ghost trio, está imóvel durante toda atele-peça e posicionada ao sul do círculo de luz. Elaenquadra quatro planos que, ao aparecerem, sãomantidos fixos do começo ao fim. O primeiro delesdenomina-se M, um plano médio do personagem Mde costas, sentado num banco invisível, debruçadosobre uma mesa também invisível e vestido com

um roupão e uma touca de cor cinza claro. Esta éuma imagem que, apesar de descrita pelo autor, ébastante difícil de ser identificada na tela de vídeo.Ela se materializa como o espaço do santuário emque M está relembrando e querendo rever a suaamada, mas ela não é vista claramente, pois osantuário se situa na zona de escuridão ao norte docírculo. M1 é um plano geral de M no set, vestidocom chapéu e sobretudo escuros ou com roupão etouca claros; o outro plano é um close-up da mulheramada reduzido aos olhos e à boca que sedenomina W e o quarto é o plano geral do set, sejavazio ou com M1, que é denominado S. Aspassagens de um plano ao outro são feitasgradualmente por meio da fusão.

M é o personagem masculino que se movede um lado para o outro do círculo numacoreografia indicada detalhadamente no roteiro. Decada uma das posições até o centro ele dá cincopassos, pára na posição de permanência, vira-se esegue para a posição seguinte. Os movimentos deM, como de F em Ghost trio, são inexpressíveis esem vitalidade como os movimentos de umamarionete e algumas vezes chegam até mesmo a sercômicos. V é a voz interior de M, que se expressana tele-peça como uma voz feminina em off.

Comparando com as duas tele-peçasanteriores, ...but the clouds... apresenta algumas

M1

Page 33: Crise de credibilidade da propaganda

031

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

diferenças significativas em sua gênese. Apesar detodas elas terem sido escritas para um personagemmasculino na tela e uma voz feminina em off, em EhJoe há dois personagens, Joe, visto na tela e Voice, avoz em off que pode ser tanto a voz interior dopersonagem como a voz de uma das suas amantes,ainda mais que ela é feminina. Voice atormenta Joe,que vive uma espécie de purgação e somenteimagina os momentos em que passou com suasamantes. Por sua vez, Ghost trio apresenta umdiálogo entre F, o personagem masculino e V, avoz que comanda os seus movimentos enquantoespera pela chegada da amada. Porém, a imagem daamada nunca chega a se materializar, seja em vozou imagem.

Em ...but the clouds... V é uma voz suaveque traz à lembrança de M os momentos em que aamada apareceu para ele, porém ela não é sóimaginada, ela aparece efetivamente na tela. ComoM e V são corpo e voz do mesmo personagem,...but the clouds... pode ser considerado ummonólogo, no entanto, é um monólogo de naturezabastante peculiar, pois a voz está separada docorpo. Além disso, a voz age no tempo presente eno tempo passado, mas as imagens de M aparecemapenas no passado.

M repete sempre os mesmosmovimentos. Ele entra pelo lado oeste, ou seja,pelas ruas adjacentes vestindo chapéu e casaco,pára no centro do círculo de luz e dirige-se para olado leste, onde está o armário em que guarda suasvestimentas e veste o roupão e a touca,reaparecendo no centro do círculo de luz paradirigir-se ao seu santuário, localizado ao norte. Nosantuário escuro, onde não pode ser visto porninguém, adota a posição M e começa a relembraros momentos em que esperava pela aparição daamada. Quando deixa o seu santuário, ele faz osmesmos movimentos em sentido contrário, ou seja,vai do santuário para o armário, troca de roupa edirige-se para a rua. Todos estes movimentospassam pelo centro, onde M pára, vira-se e segue.

O espaço da ação que é visto na tela, noqual M se movimenta de um lado ao outro docírculo de luz, corresponde ao seu imaginário, aofalar consigo mesmo, relembrando os momentosem que esperava pela aparição da amada e aquelesem que ela efetivamente reapareceu na sualembrança.

V descreve, no presente, as ações de M ao

tentar relembrar as aparições da amada no passado,ou seja, é como se M estivesse repetindo para simesmo o caminho que costumava percorrer paraque a amada reaparecesse. Após cada descrição, Vafirma: “É isso”, concordando que foi daquelamaneira que ele tinha agido quando conseguiu vera amada na sua imaginação e pede para que as açõessejam repetidas novamente ao afirmar: “Let us nowmake sure we have got it right.” e “Let us now runthrough it again.” (Beckett, 1990:419-21)1

V e M intercambiam a sua existênciaentre o presente e o passado. Ainda no presente, Vafirma: “Let us now distinguish three cases.”(Beckett, 1990:420)2 e, no passado, descreve asações de M no círculo de luz, que é o palco damemória. V descreve quatro casos mais comuns,três em que a amada aparecia e um caso nulo. Noprimeiro caso, ela apareceu e desapareceu numsuspiro. No segundo, ela apareceu e deixou-se ficarcom aqueles olhos vagos que ele tanto suplicarapara que olhassem para ele enquanto vivos. E noterceiro caso, ela apareceu e depois de ummomento os seus lábios moveram-se e disseram,inaudivelmente, as palavras “...clouds ...but theclouds... of the sky...”, V então murmura aspalavras “...but the clouds...”3, sincronizadamentecom os lábios da amada.

No seu santuário, onde não podia servisto por ninguém, a amada reaparece e M suplica:“Look at me” e então ela repete as palavras“...clouds... but the clouds... of the sky...” que sãomurmuradas por V. Quando os lábios se calam, Vimplora: “Speak to me” (Beckett, 1990:421). 4

Diferentemente de Eh Joe, em que Joe queria queVoice se calasse e sumisse, V diz para a amada:“Fala comigo” e “Olha para mim”. Porém, comoela só existe na imaginação de M, ela não fala nemolha para ele, somente aparece de relance, comouma visão, uma miragem. No manuscrito MS1533-15 consta um quarto caso que foi retirado doroteiro final, em que se lê: “she comes and after amoment – (...) begins to speak till all... seem but theclouds of the sky, when the horizon fades...”6, quesão os versos retirados do poema de William ButlerYeats, The Tower (1927). Como o personagem O emFilm, M não quer ser visto por ninguém mas, aomesmo tempo, suplica para que a amada olhe paraele. É como se somente ela tivesse o direito decompartilhar com ele aquele lugar e aquelemomento de solidão em que eles conseguiam, de

Page 34: Crise de credibilidade da propaganda

032

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

But the Clouds

certa forma, se comunicar. Ele não queria ser visto,mas ao mesmo tempo, suplicava para que aquelesolhos vagos e sonhadores que ele se recordava tãobem, olhassem para ele.

No roteiro final consta ainda um quartocaso, ou caso nulo, em que M suplicava em vão.Este era o mais comum, pois acontecia “(...) in theproportion say of nine hundred and ninety-nine toone, or nine hundred and ninety-eight to two (...)(Beckett, 1990:421)”7. Ele lamenta que se ela nãotivesse aparecido nenhuma das vezes em que supli-cou, ele não teria ficado esperando “(...) deep downinto the dead of night, until I wearied, and ceased,”e teria “busied myself with something else, more...rewarding, such as... such as... cube roots, for exam-ple, or with nothing...”(Beckett, 1990:421)8.

Para Kirkley (1992:610), o que é visto novídeo não é o presente fluxo de consciência de M,o personagem que faz e pensa, porque a sua voz, V,é separada do seu corpo ao descrever as suas açõesno tempo passado. Neste sentido, V não é a vozdaquele que a audiência vê na tela da televisão, V éa voz daquele que escuta e observa o seu passado.É como se houvesse várias instâncias do mesmoser, ou como se a consciência de M tivesse váriosníveis: o presente, expresso pela voz em off de Mfalando sobre o passado; e o passado, que é tantoaquele mostrado no vídeo, ou seja, as ações de M natentativa de rever a amada, quanto um passado maislongínquo da convivência dos dois amantes, quenão se sabe ao certo quando ocorreu. A únicaindicação de que viveram juntos, ou passaram

momentos felizes juntos, aparece quando V falaque suplicava para que aqueles olhos vagosolhassem para ele quando eram vivos. Na línguainglesa, este verso é ambíguo pois ao usar a palavraalive,9 não se sabe se era quando M estava vivo oua amada estava viva. Neste sentido, M é aquele quese vê no vídeo pensando sobre o seu passado, ouseja, aquele que está na memória do personagem M,assim como o personagem M da voz em off nopresente, que tenta relembrar como é que a amadaaparecia.

A amada aparece oito vezes durante atele-peça. Algumas vezes ela aparece fortuitamentepor dois segundos, em outras ela fala,inaudivelmente, as palavras “... but the clouds... butthe clouds of the sky... when the horizon fades...” eem outras ela fala, também de modo inaudível, osúltimos versos do poema The Tower : “... but theclouds... but the clouds of the sky... when thehorizon fades... or a bird’s sleepy cry... among thedeepening shades...” (Beckett, 1990:422)10.

Beckett & YeatsDe acordo com o manuscrito MS1553-2,

o primeiro título da tele-peça era Poetry only love. Nomanuscrito pode-se ler as seguintes frases: “W:Poetry was her only love” e “Poetry (was my) onlylove”, os quais podem se referir tanto àpersonagem W, que nas primeiras versões da tele-peça recitava os últimos versos do poema, quantoao poeta, Beckett. Ao afirmar que a poesia era o seuúnico amor, W cria uma ambigüidade, pois o

Page 35: Crise de credibilidade da propaganda

033

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

intercâmbio entre presente e passado volta aaparecer com a indagação de quem seja ela, W nopresente ou no passado. Por outro lado, se forconsiderado que esta é a voz do autor, seria entãoBeckett afirmando, por meio da personagem W,que a poesia é o seu único amor. Além disso, estafrase também explica, de certa forma, aintertextualidade entre a tele-peça e o poema deYeats. Os versos do poema inspiraram não somenteo nome da tele-peça e o seu tema, mas também onome do programa intitulado Shades (Sombras)11,em que as tele-peças ...but the clouds..., Ghost trio e NotI foram exibidas.

Em The Tower, Yeats elabora sobre o temado envelhecimento e da expectativa da morte,quando o corpo está ficando fraco e a circulaçãocomeça a parar lentamente. Campos (1998:3-4)explica que o poema é uma espécie de testamentodo poeta, pois no fim da sua vida Yeats escreveumuito sobre a velhice, inclusive, ao reler os seusversos, ele mesmo achou seu poema um tantoamargo. O poema é dividido em três partes, naintrodução o poeta expõe a sua indignação com adegeneração da idade, depois evoca os fantasmasda torre para indagar sobre a sua indignação erememora o vigor da juventude. Por fim, ele expõeo seu credo e transmite o seu legado, enquanto suavida se esvanece.

No começo do poema há uma referênciaà musa e o poeta lembra-se de que quando eramoço não se importava com ela e lhe mandavaembora, preferindo Platão e Plotino como amigos.A imaginação e a memória são dois temas presentesno poema que também são recorrentes no trabalhode Beckett. Yeats escreve que no fim do dia,quando os últimos raios de sol se escondem, aimaginação se solta e as imagens e memórias sãoevocadas. Em Beckett, M evoca a presença de suaamada, que se revela e se esconde, no final do dia,quando se dirige para o seu santuário e suplica paraque ela apareça na escuridão. M, por intermédio deV, afirma que em algumas noites suplicava em vãopara que a amada aparecesse e que, em outras, elaaparecia na sua imaginação.

O poeta pergunta ainda se a imaginaçãodiscorre mais sobre um amor conquistado ou sobreum amor perdido e explica que se ela discorrer maissobre um amor perdido, foi

No final, o poeta afirma que preparou asua paz, no sentido de sua morte, com as cultasculturas italiana e grega, com a imaginação dopoeta, as memórias das palavras das mulheres e dosamores, ou seja, com tudo o que o homem precisa“para o seu sobre-humano sonho-espelho de ser”(Campos, 1998:8). Nos últimos versos que sãousados em ...but the clouds..., ele prepara a sua alma,lamenta a morte dos amigos e dos olhares que lhefizeram prender a respiração, “como as nuvens docéu, quando o horizonte se esvanece”, referindo-semais uma vez ao crepúsculo, que é uma metáforanão somente da imaginação e da memória, mastambém da morte como o “lento cantar de umpássaro (que) ressoa no escurecer das sombras”.

A produção alemã de ...but the clouds...,dirigida pelo próprio Beckett para a SüddeutscherRundfunk em 1977, usou os últimos doze versosdo poema de Yeats, pois Beckett considerou que aaudiência alemã não teria conhecimento prévio dopoema, enquanto que para os ingleses ficaria muitoóbvio e repetitivo se fossem usados mais do quequatro versos do poema no final da tele-peça.

Beckett & ProustNo ensaio crítico que escreveu sobre a

obra Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust,Beckett (1999:11) afirma que a memória e o hábitosão os dois atributos do câncer do tempo, que é ummonstro de duas-cabeças, tanto da maldição quantoda salvação. Em ...but the clouds..., o autor lida comas duas instâncias, seja na repetição habitual dasmesmas ações ou nas imaginações criadas pelamemória.

A tele-peça enfatiza a repetição das açõescotidianas, descreve a vida de M dia após dia, desdea aurora até o anoitecer, quando ele se fecha em seusantuário para implorar à amada que apareçanovamente. Ao repetir sempre os mesmosmovimentos, na sua imaginação e na sualembrança, M explicita um hábito e uma monotoniada vida cotidiana. Para Beckett (1999:28), a vida éum hábito, o qual é um acordo entre o indivíduo eo seu meio, cuja obrigação é ser perpetuado. Ohábito oscila entre o sofrimento e o tédio. O“por mera covardia ou por orgulho,

pseudoconsciência ou sutileza vaga,

refugiste de um grande labirinto,E se a memória volve o sol é extintoPor um eclipse e o dia já se apaga”

(Campos, 1998:7).

Page 36: Crise de credibilidade da propaganda

034

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

sofrimento representa a omissão do dever deperpetuação, ele abre uma janela para o real e é acondição principal da experiência artística. O tédio,por sua vez, representa o cumprimento do hábitoque deve ser tolerado pois é o mais duradouro detodos os males humanos.

As cenas que explicitam os hábitos de Msão, na verdade, exercício da sua memória, cujosmovimentos são descritos por V. Para Proust, epara Beckett (2003:31), existem dois tipos dememória, a memória voluntária e a memóriainvoluntária. A memória voluntária é descrita comoum álbum de fotografias, em que as imagens dopassado, personificadas em imagens corpóreas,estão arquivadas, e que não se diferencia muito damemória de um sonho, pois ela “não tem valorcomo instrumento de evocação e mostra umaimagem tão distante do real quanto o mito da nossaimaginação” (Beckett, 2003:12-3). Para o autor, estamemória se apresenta como a forma maismonótona de plágio, pois constitui o plágio de simesmo. Ao repetir os seus movimentos de um ladopara o outro no círculo de luz, M não faz nada maisdo que imitar a si mesmo, no presente e no passado,como o personagem Krapp da peça Krapp’s last tapeao ouvir novamente os rolos de fita cassete quecontam as memórias da sua vida ao longo dos anos.

O círculo de luz é o palco da memóriavoluntária, ou seja, onde ela se materializa comouma experiência não somente para M mas tambémpara o telespectador. Todas as vezes que M quer vera amada, ele entra no seu santuário e começa aevocá-la, suplicando para que ela apareça. ParaBeckett (2003:30), hábito e memória estão tãoligados um ao outro sendo que, em casos extremos,a memória é acionada por força do hábito. Como amemória voluntária permite ao indivíduo escolherarbitrariamente quais as imagens que quer guardarna sua lembrança, as imagens que M vê no círculode luz são as imagens do seu arquivo da memóriaque estão disponíveis para serem lembradas erevividas. Ao evocar uma ação passada, o que se vênão é mais do que um eco desta ação, pois é um atointelectivo e está condicionado pelos preconceitosda inteligência. Assim, qualquer gesto ou palavra,perfume ou som que não se explique por meio dealgum conceito é rejeitado como ilógico einsignificante (Beckett,2003:76).

Em contraposição ao círculo de luz, oespaço do santuário em que M se retira para não ser

visto por ninguém e ativar os mecanismos da suamemória, encontra-se em completa escuridão. Naobra de Beckett, o espaço da memória é sempre oespaço da escuridão, contraposto por um foco deluz que expressa a imaginação, como nas peças NotI (1972), That Time (1974-5) e What Where (1982).Este espaço pode ser visto também como umametáfora da mente, que pode ser ou estar sempresolitária e que se expressa na tele-peça pela palavraMINE12. Esta palavra tem um sentido ambíguo nalíngua inglesa e pode ser entendida tanto como opronome pessoal meu, quanto como o substantivomina, no sentido de um fonte rica e inesgotávelguardada no labirinto da memória. Kirkley(1992:610) enfatiza que a palavra está escrita emletra maiúscula para indicar que deve ser falada comcerta ênfase durante a performance.

No santuário, M ativa a memória porforça do hábito, no entanto, apesar de rever as suasimagens no círculo de luz, M não tem controlesobre as aparições da amada, pois elas ocorrem pormeio da memória involuntária. Segundo Beckett(2003:32-3), esta memória é “explosiva, umadeflagração total, imediata e deliciosa”, que escolheo seu próprio tempo e lugar para acontecer. Amemória involuntária consome o hábito e revela oreal, o qual a falsa experiência da realidade nãopode jamais revelar. Neste sentido, W, a amada deM, escolhe quando vai aparecer, intercalando a suapresença com a sua ausência. No começo da tele-peça, V afirma que quando pensava nela erasempre noite e depois corrige, afirmando quequando ela aparecia era sempre noite, ou seja, aamada aparecia quando queria e não quando Mqueria que ela aparecesse.

Beckett (2003:79-80) comenta que aexperiência da memória involuntária acontecealgumas vezes na obra de Proust. Ela proporcionaa identificação entre as experiências imediata epassada como, por exemplo, a reaparição de umaação passada ou a sua reação no presente,consistindo numa “colaboração entre o ideal e oreal, entre a imaginação e a apreensão direta”.Pode-se sugerir que o mesmo acontece em ...but theclouds..., pois a experiência vivida por M é comumao passado e ao presente. O autor afirma que estaexperiência é, ao mesmo tempo, imaginativa eempírica e transmite uma essência extratemporalcujo transmissor se torna, naquele momento, umser extratemporal. Analisando o personagem M, ele

Page 37: Crise de credibilidade da propaganda

035

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Musa

se mostra então como um ser extratemporal nomomento em que revê a sua amada,experimentando uma breve eternidade. Nestesentido, as obras de Proust e Beckett consistemnuma negação do tempo e conseqüentemente damorte, pois ela está vinculada ao tempo. O tempolinear é negado, pois presente e passado acontecema um só e mesmo tempo.

Para concluir, é necessário ressaltar que ostrabalhos de Beckett para a televisão, especialmente...but the clouds..., apresentam uma experiência muitorica do meio, pois dialoga com os seus recursos deum modo muito peculiar. Pountney (1994-5:51)considera que o trabalho para a televisão permitiu aSamuel Beckett experimentar com recursos queeram inimagináveis no teatro e investigar opotencial expressivo da tecnologia disponível naépoca, baseada no sistema de gravação da câmerade vídeo. As possibilidades apresentadas pelacâmera, principalmente o uso do close-up, e aconstante repetição do processo de gravação,capturando e preservando uma imagem que podeser repetida ad infinitum, possibilitaram ao autordeixar a sua visão estética expressa de forma única.

Na leitura dos manuscritos é possívelperceber que Beckett estava procurando encontraruma forma definitiva de se expressarartisticamente, que naturalmente nunca foi

encontrada. Entretanto, a tecnologia televisualpermitiu a elaboração e a expressão de seu projetoabstrato, uma vez que as imagens foram gravadas epreservadas da maneira em que foram efetivamenteimaginadas pelo autor. Uma evidência disso é quenuma entrevista dada em 1986 Beckett (apud Ben-Zvi, 1985:30) afirmou que estava muito maisinteressado em trabalhar com a televisão do que como teatro, porque aquele meio apresentava maispossibilidades de expressão.

NOTAS1 “Agora vamos ter certeza de que conseguimos

fazer isto corretamente.” e “Agora vamos repassartudo isto novamente.” (todas as traduções são deminha autoria)

2 “Agora vamos distinguir três casos.”3 “...nuvens... como as nuvens... do céu...” e

“...como as nuvens...”4 “Olha para mim”, “...nuvens... como as

nuvens... do céu...” e “Fala comigo.”5 Os manuscritos da tele-peça estão arquivados

no Beckett Archive na University of Reading, Inglaterra.6 “ela chega e depois de um momento – (...)

começa a falar.” (...) “...até que tudo ...se pareça com

Page 38: Crise de credibilidade da propaganda

036

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Gabriela Borges

Professora da FACOM – FAAP. Mestra e Doutoraem Comunicação e Semiótica pela PUC-SP

as nuvens do céu, quando o horizonte seesvanece...”

7 “(...) acontecia na proporção de novecentos enoventa e nove para um ou de novecentos enoventa e oito para dois”.

8 “(...) até altas horas da madrugada, (quando)cansava e parava” e teria “se ocupado com algumaoutra coisa, mais... recompensadora como... como...calcular raízes cúbicas, por exemplo, ou com nada”.

9 “With those unseeing eyes I so begged whenalive to look at me.” (Beckett, 1990:420)

10 “... como as nuvens... como as nuvens docéu... quando o horizonte se esvanece... ou comoum lento cantar de um pássaro... no escurecer dassombras”.

11 O título foi retirado do último verso dopoema The Tower: “among the darkeningshades”.

12 “... busied myself with nothing, thatMINE, until the time came, with break of day, toissue forth again...” (Beckett, 1990:421)

BIBLIOGRAFIABECKETT, Samuel. Manuscritos MS1553/1,MS1553/2, MS1553/3, MS1553/4, MS1553/5,MS1537/8 de ...but the clouds... Beckett Archive,University of Reading, 1976-77.BECKETT, Samuel. The complete dramatic works.2ªed. Londres: Faber and Faber Limited, 1990.BECKETT, Samuel. Quad et autres pièces pour la tele-vision. Paris: Les Éditions de minuit, 1992.BECKETT, Samuel. Proust and Three dialogues withGeorge Duthuit. Londres, Montreuil e Nova York:John Calder Publisher, 1999.BECKETT, Samuel. Proust. Trad. Port. ArthurNestrovski. São Paulo: Cosac &Naif, 2003.Ben-Zvi, Linda. “Samuel Beckett’s media plays”, emModern Drama. V. XXVIII, n°. I, mar. 1985, 22-37.CALDER, John. “The Lively arts: three plays bySamuel Beckett on BBC2, 17 April 1977”, emJournal of Beckett Studies, n°. 2, verão 1977, 120.CAMPOS, Augusto de. “A torre e o tempo”, em Folha

de São Paulo, São Paulo, 14 jun. 1998. MAIS!KIRKLEY, Richard Bruce. “A catch in the breath:Language and Consciouness in Samuel Beckett’s ...but theclouds...”, em Modern Drama, v.XXXV, n°.4, dez.1992, 607-616.KNOWLSON, James. Damned to fame. The life ofSamuel Beckett. Londres: Bloomsbury Publishing,1997.POUNTNEY, Rosemary. “Beckett and the camera”’,em Samuel Beckett today/Aujourd’Hui. The savage eye.OPPENHEIM, Lois e BUNNING, Marius (org.)Amsterdam & Atlanta: Rodopi, n°.4, 1994-5, 41-52.YEATS, William Butler. The Tower em www.online-literature.com/yeats/782 em 18/4/2003.

Page 39: Crise de credibilidade da propaganda

037

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Os meios de comunicação de massa,a ciência e a ficção científica

RESUMO

A partir de exemplos históricos, extraídos tanto da ficção científica quanto da ciência propriamentedita, este artigo convida o leitor a refletir sobre a fragilidade da fronteira entre ficção e a realidade. Além disso,o autor destaca o papel (nem sempre ético) que a mídia muitas vezes desempenha no sentido de induzir as pes-soas a confundirem a ficção com a realidade.

ABSTRACT

Based on historical examples taken from both science fiction and science itself, this article invites thereader to think about how fragile the boundaries between fiction and reality are. Furthermore, the author high-lights that mass media often plays a key (but not ethical) role in making people mistake fiction for reality.

Quando Mary Shelley, em 1818, escreveu suaobra-prima, Frankenstein, ela fez muito mais do queproduzir uma célebre história de “terror”: a autoralançou também um alerta sobre os perigos do usoantiético e desumano da ciência. Mas sepesquisarmos o contexto histórico em que oromance sobre o monstro que se rebela contra ocriador foi redigido, aprenderemos outra liçãoimportante: no mundo real, com surpreendentefreqüência, a ficção e a ciência contaminam uma àoutra, e este fenômeno costuma ser propagadoexponencialmente graças à ubiqüidade e àinfluência nem sempre responsável dos meios decomunicação de massa. No presente artigo,

exporemos alguns exemplos históricos que ilustrama relação entre a mídia, a ciência e a ficção científicapara que o leitor possa refletir sobre a tênuefronteira que separa a ficção da realidade, bemcomo sobre como os meios de comunicação demassa podem nos induzir à confusão entre ambas.

Até o século XIX, romances de ficçãocientífica eram raramente produzidos. Uma dasrazões é que a maioria das pessoas não via naciência grandes possibilidades de mudança. Mas aRevolução Industrial forneceu a prova de queinvenções como as máquinas têxteis e o navio avapor, entre inúmeras outras, vieram – comoresultado do avanço científico – para mudar os

Fábio Lacerda Soares Pietraroia

Page 40: Crise de credibilidade da propaganda

038

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

caminhos da humanidade. Com isso, aspossibilidades da ciência passaram a ser muito maisrespeitadas e a ficção científica se consolidouenquanto gênero literário.

Teve início, então, uma grande onda deespeculações sobre os limites do progressocientífico-tecnológico. Dentre estas especulações,estava inclusive a possibilidade de recriar-se a vida apartir da eletricidade. Em 1791, o anatomistaitaliano Luigi Galvani gerou verdadeira euforia aodemonstrar que músculos de sapos mortos secontraíam quando submetidos a choques elétricos.

Os chamados experimentos “galvânicos”multiplicaram-se velozmente por toda a Europa e oentusiasmo dos cientistas era incontido. Taisexperimentos consistiam em tentar reanimarcorpos ou partes de corpos recém-falecidos a partirde choques elétricos. A eletricidade passou a servista como um “fluido vital”. A conseqüentecontração muscular conduzia os cientistas à ilusãode estarem logrando reconstituir a vida à matériamorta, por alguns segundos pelo menos.

O Iluminismo e a crença no progressocientífico chegaram a tal ponto que – ao analisar opensamento predominante daquela época – PierreThuillier afirma acreditar-se que “é graças à física eà química que o homem pode rivalizar com Deus” 2

Foi neste contexto que Mary Shelleyescreveu, em 1818, seu romance de ficção científica.Consonante à memória que havia sido construídado conhecimento científico naquela época, ahistória de Frankenstein centra-se numa personagemconcomitantemente humana e monstruosa, queteria sido “montada” a partir de peças extraídas dediferentes cadáveres e que voltava a viver por meiode fortes correntes elétricas.

Na prática, Mary Shelley estavainspirando-se no clima (que havia sido criado pordiversos cientistas do seu tempo) de crençageneralizada no galvanismo. Sua ficção era umrecado ou, se quisermos, um diálogo, claro com oscientistas da época: a possibilidade de criar vida em

laboratório poderia não trazer tanto progressoquanto aparentava.

Curiosamente, não tardou para que osmeios de comunicação de massa induzissemmultidões a acreditarem que aracnídeos tivessemsido artificialmente criados pela ciência, graças àpilha de Volta!

Em 1836, Andrew Crosse, um excêntricoquímico, esforçava-se em demonstrar que graçasàquela pilha, pode-se provocar a formação decristais em diversas soluções aquosas. Numa de suasexperiências, ao passar uma corrente elétrica poruma solução de silicato de potássio e ácidoclorídrico, Crosse relatou que – ao longo de vintedias – se formaram excrescências sobre uma pedraporosa, as quais “haviam se revestido da forma de uminseto perfeito” 3 . Antes mesmo de obter qualquerautorização de Crosse, o editor do jornal SomersetCounty Gazette apressou-se em publicar que Crossehavia, em seus pequenos aparelhos, criado animaissemelhantes a ácaros ou aranhas. Logo em seguida,o próprio Crosse enviou um relatório com umadescrição mais minuciosa e completa de seus“aracnídeos” à British Association for the Advancementof Science (Sociedade Britânica para o Progresso daCiência) de Bristol. Em muito pouco tempo, jornaise revistas de todos os tipos colocaram o grandepúblico a par da suposta proeza de Crosse nocampo de eletrobiologia. Crosse, por sua vez,autoproclamava-se “autor de um vasto poemaelétrico”. Em fevereiro de 1837, um rumorinfundado (e cuja origem até hoje é desconhecida)circulava, comentando que outro cientista,conhecido como Faraday, teria repetido comsucesso a experiência de Crosse. Aproveitando-seda situação e da fama repentina, Faraday esforçou-se por manter a ambigüidade sobre a verdade do fato.

Os galvanistas consumiam uma quantidade incrívelde cabeças de veados e de coxas de rãs, para não falardos cães e corpos humanos. (...) Na Prússia, emparticular, o cadáver humano era tão procurado queas autoridades proibiram oficialmente, em 1804, quese utilizasse os criminosos decapitados em prol daciência galvânica.” 1

“Submetemos [o aracnídeo do Sr. Crosse] àação do microscópio que o ampliou cerca de 280vezes. Com esta forma de observação, percebemosque o corpo tinha uma forma oval, a barrigaligeiramente achatada e o dorso redondo,particularmente no extremo inferior do corpo. Apele da parte traseira apareceu irregular, como setivesse sido marcada por um número infinito detubérculos muito pequenos, uns maiores que osoutros e mal distribuídos. A pele serve como baseou bulbo para longos pêlos ou teias que são, nomínimo tão compridos quanto o corpo do

Page 41: Crise de credibilidade da propaganda

039

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Criou-se assim, no início do século XIX,uma memória coletiva artificial sobre asdescobertas e os avanços no que concerne àbiogênese em laboratório. Isso conferia ao romancede Mary Shelley uma aparência assustadoramenteatual e factível. Tudo indicava que, provavelmente,seria apenas uma questão de tempo para que aciência e a ficção se encontrassem no mundoconcreto.

A proliferação das notícias sobre ossupostos avanços no campo da biogênese fez comque orçamentos voltados à pesquisa científica portoda a Europa fossem realocados (ou melhor,deslocados) rumo às pesquisas galvânicas.Ironicamente, a memória coletiva sobre estasproezas forjadas (portanto, fictícias) conseguiuinterferir de fato na história da pesquisa.

A curiosa seqüência de acontecimentosque mencionamos ilustra o quão manipulada eantiética pode ser a relação entre o jornalismo, osmeios de comunicação de massa e o conhecimentocientífico. Além disso, mostra também que aimaginação popular pode ser bastante trapaceadapor “saberes científicos” equivocados.

Um fenômeno similar aconteceu durantea radiodifusão de “A Guerra dos Mundos”, porOrson Welles e sua equipe, em 1938. Na época,

muitos cientistas acreditavam na existência de vidaem Marte, e a mídia exercia um papel multiplicadordesta crença. Assim, a idéia de uma invasãoalienígena na Terra parecia bastante plausível paragrande parcela da população.

Quando o programa da rede de rádio CBSfoi ao ar, no Dia das Bruxas de 1938, multidões denorte-americanos entraram em pânico, convencidasde que a Terra estava sendo aniquilada por uminvencível exército marciano. Hadley Cantrilresume a intensidade do pânico ao dizer:

Em alguns lugares, o tráfego mergulhounum caos total, com centenas de automóveiscorrendo pelas ruas e desrespeitando a sinalização,os faróis e as autoridades. Uma mulher quasetomou veneno, mas seu marido chegou em casabem a tempo de evitar tal desastre. Pelo menos umaoutra quebrou seu braço enquanto “tentava fugirdos marcianos”. Muitos adultos precisaram detratamento médico contra o estado de choque e ahisteria. Houve muitos danos e um sentimentogeneralizado de insegurança entre aqueles quetomaram o drama como realidade. Em suma, foiuma catástrofe nacional para os Estados Unidos, oque inspirou o surgimento de leis que passaram atentar delimitar os limites éticos do uso dos meiosde comunicação massa 6

Na época em que Orson Welles transmitiu“A Guerra dos Mundos”, já havia uma memóriacoletiva fortemente constituída que apontava para aexistência de vida em Marte, com base tanto emdiscursos científicos, quanto em especulaçõescientificamente descomprometidas. Esta memóriacoletiva – por si só – tornava uma história deinvasão marciana muito mais crível que nos dias dehoje. Assim, era uma memória, amplamentedisseminada, sobre algo que ainda poderia

“Muito antes de a transmissão terminar, aspessoas, pelos Estados Unidos inteiro, estavamrezando, chorando, correndo freneticamente paraescapar da morte trazida pelos marcianos.Algumas correram para resgatar seus entesqueridos. Outras telefonavam dando um adeusfinal ou um alerta, apressavam-se em informaros vizinhos, buscavam informações em jornais ounas estações de rádio, lotavam ambulâncias ouviaturas policiais. Pelo menos seis milhões depessoas ouviram o programa. Pelo menos ummilhão delas ficaram aterrorizadas ouperturbadas.” 5

animal. Todos estes pelos fixos que crescem naprotuberância dorsal deste tipo de aracnídeo,bem como seu focinho, dão-lhe a aparência de umporco-espinho microscópico.” Annals of Electricity,

Magnetism & Chemistry, Vol. 2: 355-360

(January-June 1838) (vide figura 1)

Figura 1 (4)

Page 42: Crise de credibilidade da propaganda

040

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Orson Welles cercado por

repórteres no dia seguinte à

transmissão de “A Guerra

dos Mundos”.

Figura 2 (7)

teoricamente vir a acontecer (memória coletiva dofuturo). Conforme Ronaldo Rogério de FreitasMourão,

Passaremos agora a discutir o papelcentral que os cientistas e a mídia tiveram naconstrução desta memória coletiva do futuro.

Um dos principais responsáveis porcolocar Marte em evidência, foi o respeitadoastrônomo italiano, Giovanni Virginio Schiaparelli(1835-1910), do Observatório de Milão. Em 1877,ele observou Marte atentamente, numa de suasmaiores aproximações com relação à Terra (a“somente” 35 milhões de milhas de distância). Aodetectar certas linhas escuras que se cruzavam aolongo da superfície do misterioso planeta,Schiaparelli denominou-as “canais” (canali). Umalonga seqüência de especulações equivocadas sobrea existência de vida no Planeta Vermelho derivou deinterpretações errôneas acerca desses “canais”.

Problemas na interpretação danomenclatura “canais” (canali) geraram umaenorme confusão. Por “canais” (que originalmentese referiam a acidentes geográficos produzidosnaturalmente pela erosão), costuma-se entenderconstruções feitas pelo homem para transportarágua. De acordo com Enos Picazzio, canali(canais)...

Tão logo os astrônomos começaram afalar dos canais em Marte, a imprensa popularpassou também a fazer grandes especulações sobrea possibilidade de o planeta vizinho ser habitadopor vida inteligente. Vide o que Rudolf Thiel nosdiz:

A idéia parecia, aliás, bastante plausível,afinal, de acordo com as teorias sobre a origem dosistema solar então vigentes, Marte teria sidoformado antes que a Terra e era, portanto,considerado o melhor candidato para ter vidaextraterrestre. Isto levou à crença de que seresinteligentes construíram canais de irrigação. Umnúmero expressivo de astrônomos contribuiu paraaumentar o mal-entendido. Vide, por exemplo, orelato de Asimov:

Contudo, quem liderou a crença de que oscanais marcianos teriam sido construídos por umacivilização avançada, foi, sem dúvida, o astrônomonorte-americano Percival Lowell (1855-1916).Ilustre membro de uma família aristocrata deBoston, Lowell fundou um observatório particular,em Flagstaff, no Arizona, onde a distância dascidades e o ar seco tornavam a visibilidadeexcelente. O observatório era devotadoespecificamente para o estudo de Marte e foiinaugurado em 1894.

Lowell sustentava que os canais teriamsido projetados, por laboriosos marcianos, de

“ciência e ficção andaram lado a lado na criação domito de que Marte era habitado por uma civilizaçãoultra-avançada. Astrônomos e escritores, desde aAntiguidade, estiveram unidos, na vontade comum detirar a humanidade de sua solidão planetária.” 8

“(...) é um termo que parece ter sido introduzido pelaprimeira vez por Secchi, em referência aos canaisproduzidos naturalmente por efeito de drenagem. (...)Para Schiaparelli, esses canais escoavam a águaproveniente do derretimento das capas polares para asregiões equatoriais. No entanto, ao que parece, apalavra canale (singular) foi traduzida erradamentepor canal, termo que define canal artificial, uma obra

feita por um ser dotado de inteligência. Como já eracorrente a idéia da possibilidade de Marte serhabitado por seres inteligentes, essa confusão sedisseminou rapidamente (...).” 10

“Houve astrônomos que se associaram aosregistros de Schiaparelli. O astrônomo americanoWilliam Henry Pickering (1858-1938)registrou manchas escuras redondas onde oscanais se cruzavam, que foram chamadas de‘oásis’. O astrônomo francês Nicolas CamilleFlammarion (1842-1925) foi um entusiasta doscanais. Publicou em 1892 um livro chamado OPlaneta Marte no qual argumentava a favor deuma civilização marciana construtora doscanais.” 12

“Em toda parte, o termo foi traduzido como‘canais’. Um sensacionalista que editava umarevista de astronomia, pensou: ‘Se há canais emMarte, então o planeta deve ser habitado.’ ” 11

Page 43: Crise de credibilidade da propaganda

041

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

acordo com uma rede de traçados geométricos eque eles serviriam para irrigar amplas plantações decereais e para suprir as cidades com água. Em 1895(portanto apenas três anos antes do escritor H. G.Wells ver sua “A Guerra dos Mundos” ser publicadana forma de seriado numa revista), Lowell publicouseu livro Marte – bem escrito e com linguagem clarae acessível ao grande público, segundo Asimov.Nele, argumentava que os canais seriam admiráveisobras de engenharia e de tecnologia. Teriam sidoconstruídos para driblar a aridez do planeta. Oscanais transportariam água das calotas polares até asregiões desérticas de Marte.

O Observatório de Lowell passou apublicar, por várias décadas, desenhos da superfíciede Marte em que ela aparece coberta por uma redede linhas incrivelmente confusa. Em alguns casos,havia uma “duplicidade”, isto é, em vez de umalinha simples, duas apareciam lado a lado, comonum trilho ferroviário. Isto atraía ainda mais ointeresse em relação ao planeta vizinho. Em seulivro, Lowell deixava bem claras as suas idéias sobreo planeta. Ele estaria morrendo, pois secavalentamente e perdia a sua atmosfera rarefeita para oespaço sideral. A civilização extremamenteavançada que nele habitava, mantinha-no vivoatravés de gigantescos projetos de irrigação – oscanais, que podiam ser vistos da Terra através davegetação em seu redor. Alguns cientistasargumentavam que, para evitar a evaporação da

água, os marcianos teriam sido inteligentes obastante para cobrirem os canais com uma camadade óleo.

Foi baseando-se nas deduções de Lowellsobre o Planeta Vermelho e sua civilização que H.G. Wells se inspirou para criar a história original emque os nossos vizinhos celestiais atacavam a Terra(a qual Orson Welles e sua equipe posteriormenteadaptaram para o rádio). Afinal de contas, Marteseria habitado por engenheiros brilhantes quedeveriam estar desesperados para salvar sua genteda extinção.

Não podemos esquecer que estas idéiasnão derivavam de líderes esotéricos ou religiosos,mas, sim, de cientistas então muito respeitados,como Percival Lowell e William Pickering. Osnorte-americanos não se esqueceram disso,memorizaram! Quando, em 1938, Orson Wellestransmitia sua “A Guerra dos Mundos”, a memóriacoletiva do futuro sobre Marte já estavasuficientemente consolidada a ponto de o programaaterrorizar um milhão de cidadãos!

Outra razão para os cientistas acreditaremna existência de vida em Marte tinha a ver com asaparentes alterações periódicas de cores nasuperfície do planeta. Este fenômeno levou àespeculação de que determinadas condiçõeslevariam à explosão da vegetação marciana duranteos meses quentes (em que a superfície do Planetacostumava ser vista com uma cor esverdeada) e

Mapa de Marte, com os

numerosos canais, feito por

Schiaparelli entre 1877 e 1888.

Page 44: Crise de credibilidade da propaganda

042

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Desenho de Marte,

mostrando os aspectos

geométricos de seus

“canais”, de acordo com

Douglass, do Observatório

de Lowell, 1898.

provocavam o estado latente das plantas durante osperíodos frios (épocas em que predominava aobservação de uma cor avermelhada).

A crença de que Marte era habitado,parece ter sido quase unânime até o início da décadade 1960. Naquele ano, o astrônomo estonianoErnst J. Öpik, por exemplo, ainda sustentava seuponto de vista:

De acordo com os pesquisadores doInstituto Astronômico e Geofísico da USP , essasinterpretações errôneas sobre a existência de vida em Marte somente foram (temporariamente)abandonadas em meados da década de 1960, graçasàs informações e às imagens então obtidas pelassondas espaciais Mariners.

Como demonstramos, “A Guerra dosMundos” (tanto na versão original de H. G. Wells,quanto na da equipe de Orson Welles) estabeleciauma grande interação dialógica com sua época,especialmente no que concerne à crença,amplamente difundida, na existência de vida emMarte. O tema havia se constituído um imperativocultural e seria apenas uma questão de tempo – naopinião dos otimistas de plantão – para que osmeios técnicos progredissem o suficiente parapermitir talvez visualizar e/ou travar contato comos vizinhos do espaço. Mas, se os marcianos eramconsiderados uma civilização superior, eram

inteligentes e habilidosos engenheiros, e, ainda, sepretendiam sobreviver ao seu planeta queagonizava, então era possível prever uma eventualinvasão deles à Terra.

A memória coletiva do futuro lentamenteformada sobre os marcianos e sobre a condição dosmesmos, forneceu os ingredientes perfeitos paraOrson Welles usar a ficção científica no rádio demodo a confundir sua audiência. Esta memóriacoletiva funcionou como uma referência capaz deconcorrer para que muitos ouvintes substituíssem,em suas mentes, a realidade pela ficção.

Nunca é demais lembrar que tantoFrankenstein de Mary Shelley, quanto A Guerra dosMundos de H. G. Wells foram originalmenteinspirados em conhecimentos que – emborafossem falaciosos – eram considerados científicosem suas respectivas épocas e que haviam sidoamplamente propagados pela mídia. A divulgação,às vezes sensacionalista, destes “conhecimentoscientíficos” por parte dos meios de comunicação demassa foi capaz de orientar vultosos montantes dedinheiro rumo às pesquisas galvânicas e de voltarmais e mais telescópios na direção de Marte.

Ficção e realidade sempre se entrelaçamnuma relação de influência mútua.

NOTAS1 THUILLIER, Pierre. De Frankenstein à Mister

Crosse: Les mythes de l’électrobiologie. In: Revista LaRecherche. França: s.e., novembro de 1990. Nº 226,vol. 21. p.1374.

2 THUILLIER, Pierre. Op. Cit. p.1370.

“Plantas isoladas, separadas por áreas de soloestéril, podem ser o tipo de vegetação de Marte,como é nos semidesertos terrestres (por exemplo,dentro do Grand Canyon do rio Colorado e noplatô do Arizona).” 16

Figura 5 (14)

Page 45: Crise de credibilidade da propaganda

043

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

3 THUILLIER, Pierre. Op. Cit. p.1374.4 Fonte:

http://e3.uci.edu/clients/bjbecker/RevoltingIdeas/week8j.html. Acesso em 10-04-2004.

5 CANTRIL, Hadley. The Invasion from Mars – ACase Study in Psychology of Panics. Princeton:Princeton University Press, 1952. p. vii.

6 Para mais informações sobre “A Guerra dosMundos”, vide: PIETRAROIA, Fábio LacerdaSoares. Rádio, Ficção e Realidade: Repensando“A Guerrados Mundos” de Orson Welles. 2004. Tese (Doutoradoem Ciências de Comunicação) – Escola deComunicações e Artes, USP, São Paulo.

7 Fonte: HOLMSTEN, Brian &LUBERTOZZI, Alex (eds.). The Complete War of theWorlds – Mars’ invasion of Earth from H. G. Wells toOrson Welles. Naperville: Sourcebooks, 2001. Ediçãocom CD de áudio. p.15. Arquivo: Corbis-Bettman.

8 MOURÃO, Ronaldo Rogério de Freitas. Olivro de outro do universo. Rio de Janeiro: Ediouro,2002. p.185.

9 Fonte: MOURÃO, Ronaldo Rogério deFreitas. Op. Cit. p.168.

10 PICAZZIO, Enos Picazzio. Marte noUniverso. In: MASSAMBANI, Oswaldo &MANTOVANI, Marta S. M. (orgs.). Marte – NovasDescobertas. São Paulo: Diagrama & Texto –Instituto Astronômico e Geofísico – IAG/USP,1997. p.35.

11 THIEL, Rudolf. And there was light – Thediscovery of the universe. Nova Iorque: The AmericanLibrary, 1960. p.241-2.

12 ASIMOV, Isaac. Marte. Rio de Janeiro:Francisco Alves, 1982. p.91.

13 Fonte: SAGAN, Carl. Cosmos. Rio de Janeiro:Francisco Alves, 1992. p.108.

14 Fonte: RUDAUX, Lucien &VAUCOULEURS, G. Larousse Encyclopedia ofAstronomy. Londres: Paul Hamlyn, 1962. p.204.

14 HOLMSTEN, Brian & LUBERTOZZI,

Alex(eds.). Op. Cit. p.194.15 ÖPIK, Ernst J. O Universo Oscilante. São

Paulo: Instituição Brasileira de Difusão Cultural S.A. - IBRASA, 1969. p.77.

16 Vide: MASSAMBANI, Oswaldo &MANTOVANI, Marta S. M. (orgs.). Op. Cit. p.7

Fábio L. S. Pietraroia

Professor da FACOM-FAAP. Economista, sociólogo,Mestre em Ciência Política e Doutor em Ciências daComunicação pela ECA-USP.

Page 46: Crise de credibilidade da propaganda

044

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

A dança dos signosLuiz Armando Bagolin

RESUMO

Em `Proust e os Signos´, Gilles Deleuze analisa a famosa obra de Proust `La Recherche...´ a partir domundo dos signos `mundanos´, `sensíveis´, `do amor´ e `da arte´, tendo como premissa de que aquela não trataexclusivamente da memória, mas sim de um processo de aprendizagem.

ABSTRACT

In ` Proust and the Signs ', Gilles Deleuze analyzes the famous work of Proust ` La Recherche... 'approaching the world of the signs `mundane', `sensitive ', ` of love ' and ` of art ', having as premise that `LaRecherche...´ does not deal with the memory exclusively, but with a learning process.

Para Gilles Deleuze, a obra-prima de Proust,“Em Busca do Tempo Perdido”, não trata de “umesforço de recordação”, mas da “busca da verdade”,ou das condições que permitam a sua decifração.

O tempo perdido não refere exclusiva-mente o passado, mas “o tempo que se perde”, pos-sibilidade admitida na expressão “perder tempo”.Conhecer a verdade, não é tanto relembrar comopropunha Platão em Mênon, quanto decifrar einterpretar os mundos dos signos, o que implicaria,a exemplo da paidéia (ou seja, o percurso emdireção à verdade), a noção de aprendizagem.Como diz Deleuze:_ “aprender é, de início, consid-erar uma matéria, um objeto, um ser como se emi-tissem signos a serem decifrados, interpretados (p.4)”.

aproximar da imagem dos nove círculos na DivinaComédia) superpostos, cruzando-se algumas vezesem alguns pontos. O primeiro desses círculos seriahabitado pelos signos mundanos que são aexpressão de vacuidade e ao mesmo tempo, depreenchimento por um formalismo ou “perfeiçãoritual” estéreis do ponto de vista do pensamento.Embora não sejam desprezíveis no que concerne àaprendizagem, os signos mundanos desprezamqualquer sentido que não esteja neles próprios; são“suficientes” enquanto signos substitutos e nãoremetem a outra coisa ou a algum significado ulterior: “amímica apropriada” de Sr. Verdurin, por exemplo, comoresposta às tentativas de Cottard em dizer “algoengraçado”.

Signos do amor e da arteO segundo círculo é ocupado pelos signos

A obra de Proust, na leitura deleuzeana,se organiza como um conjunto de quatro mundosde signos, dispostos em círculos (o que os fazem se

Page 47: Crise de credibilidade da propaganda

045

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

amorosos. A aprendizagem, quanto ao amor,envolve a decifração dos signos do ser amado e aindividualização de um mundo ainda desconhecido.Nesse sentido, Deleuze afirma ser o amor aexpressão de “um mundo possível”. No entanto, ainterpretação dos signos do ser amado faz com quequem se apaixone se depare com mundos que seformaram sem a sua presença, dos quais, portanto,entende não fazer parte. Por isso, os signosamorosos são signos de engano, de ilusão, pois o seramado emite “signos de preferência”, mas estes sãocontingentes em relação ao apaixonado. Da mesmaforma que se dirigem a ele, num determinadomomento, como expressão de um “mundopossível” que vai gradualmente sendo descoberto,puderam ou podem também se dirigir a outros. Anatureza do amor, a sua suprema destinação, porassim dizer, é o ciúme, pois os seus signosexprimem “mundos secretos” que o ser amado nãoquer, nem pode revelar. O ciúme é a essência dossignos amorosos que diferentemente dos signosmundanos não são vazios, mas são indecifráveis,pertencem ao desconhecido, e em suaindiscernibilidade fazem realçar o sentimento deexclusão daquele que se apaixona.

O terceiro círculo diz respeito ao mundosensível: é o mundo dos signos ou qualidadessensíveis, das impressões acerca de um determinadoobjeto. Neste momento, o que se busca decifrar nãoaparece mais como mera propriedade de um objeto,mas como “signo de um objeto completamentediferente” que deve ser desenvolvido pelopensamento. Há como “um sentimento deobrigação”, de imperativo para o trabalho dopensamento na revelação dos sentidos por detrásdos signos sensíveis, por exemplo, a madeleine, oscampanários, as árvores, as pedras do calçamento,seguido invariavelmente de um fracasso, talvez “porimpotência ou azar”. Os sentidos revelar-se-ão maistarde: _“Combray para a madeleine, as jovens paraos campanários, Veneza para as pedras docalçamento”, não sem muito esforço, mas semprecomo aquilo que a interpretação permite alcançar.

Os signos sensíveis não são signos vazioscomo os mundanos, nem signos mentirosos comoos do amor, são signos materiais, “signosverídicos”, embora não sejam suficientes, pois omaterial encarna sempre uma essência ideal sem aqual nada seria. É interessante observar aqui comoo texto deleuzeano dialoga com “Lições de

Estética”, de Hegel. Para este filósofo, a obra dearte estaria situada entre o Ideal e o sensível, nãosendo mais meramente matéria, nem ainda puropensamento. Deleuze parece posicionar o círculodos signos sensíveis naquele mesmo lugar,intermediário entre o plano material e o ideal, paraenfim, fazer convergir no quarto e último círculo omundo da arte. Neste, os signos “encontram seusentido numa essência ideal”, e transformadora noque diz respeito a todos os outros signos. Somentena arte, propõe Deleuze, pode-se encontrar aunidade perfeita traduzida no encontro dessas duasinstâncias, a material e a espiritual. Por intermédioda arte este encontro se dá, revelando verdades quenão se declaram facilmente na vida:

Verdades da inteligênciaProust entende estas verdades apreendidas

como “verdades da inteligência” uma vez que é ela,a inteligência, a responsável pelo trabalho deinterpretação, de busca dos significados quesubjazem nos signos, contanto que este trabalho“venha depois”, nunca antes. Graças à inteligência,o processo de aprendizagem sobre o tempoperdido se faz mediante “o perder tempo”; o tempoque se perde é, na verdade, o tempo daaprendizagem.

Os signos sobre os quais se pretendeaprender são vazios ou frívolos, os mundanos, oudolorosos como os do amor, se tomadosseparadamente. Vistos em conjunto, contudo, einterpretados depois de sua ocorrência pelopensamento, produzem um “alegre espetáculo dainteligência”, mas também uma decepção: os signosnos decepcionam quando não nos revelamcompletamente os seus segredos. Comoconsequência imediata, atribuímos ao objeto omotivo dessa decepção, o que faz com quebusquemos uma “compensação” no sujeito.

Entretanto, a essência que se aloja nossignos é bem mais profunda do que o sujeito que ainterpreta, não se confundindo com a sua existênciaparticular, embora participe desse sujeito assim

“só a arte, no que diz respeito à manifestaçãodas essências, é capaz de nos dar o queprocurávamos em vão na vida...somente a artenos dá o que esperaríamos em vão de um amigo,o que teríamos esperado em vão de um ser amado(p.40)”.

Page 48: Crise de credibilidade da propaganda

como participava, de outro modo, do objeto: “Ossignos mundanos, os signos amorosos e mesmo ossensíveis são incapazes de nos revelar a essência (...)eles nos aproximam dela, mas nós sempre caímosna armadilha do objeto, nas malhas dasubjetividade. É apenas no nível da arte que asessências são reveladas (p.36)”.

E se para Deleuze, os outros níveis designos convergem para os signos da arte, istoocorre devido a uma diferença fundamental entreestes e os outros: os signos da arte são “imateriais”.A arte pode finalmente revelar aquelas essências àmedida que se espiritualiza, tornando os meios“desmaterializados”. Apenas na arte, os signospodem revelar o que são de verdade, sem apontarpara uma outra coisa, sujeito ou objeto, nãoimporta. Então, se o tempo que se perde pertenceaos signos mundanos, o tempo perdido, aos signosamorosos, e o tempo que se descobre, às qualidadessensíveis, à arte tão somente pertenceria o temporedescoberto.

Numa entrevista publicada há muitos anosapós o lançamento deste livro, Deleuze afirmavaainda o seu interesse pelos signos, e certamente

admitia uma identificação com a obra de Peirce,mas não com a semiótica de “inclinação linguística”que invariavelmente reduz os signos e imagens asimples enunciados. Naturalmente Deleuze via aFilosofia, a exemplo de Nietszche, como algooposto aos exercícios de erudição designados a uma“educação alexandrina”. No lugar da tradicionalaliança entre “filosofia e amizade”, Proust eDeleuze preferiram voltar a sua atenção para aaliança entre “amor e arte”. Mais vale um amorpassageiro, porém intenso, do que uma eternaamizade, medíocre.

Luiz Armando BagolinProfessor de Estética e Análise da Imagem naFACOM -FAAP e História da Arte na PUC-MG.

Page 49: Crise de credibilidade da propaganda

047

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Estratégias políticas no meio culturalCândido de Lima

RESUMO

Este artigo tem o objetivo de refletir sobre as mais recentes propostas de mudanças na política deincentivo fiscal a projetos culturais. Para tanto, realizou-se uma análise da política atual, enfatizando o procedi-mento legal de renúncia pelo setor privado e as regras implícitas adotadas pelo mercado. A partir desse contex-to, realizou-se uma reflexão de cada ponto sugerido nessas propostas que são: democratização do acesso aosprodutos; contribuição para o fortalecimento das cadeias produtivas; ocupação, emprego e renda por meio dasações culturais; facilidades e apoio aos pequenos empreendedores culturais; melhor acompanhamento de proje-tos e controle de recursos.

ABSTRACT

The aim of this article is to discuss the most recent proposals for changes in the tax policy and theincentives to cultural projects. Making an analysis of the current policies, emphasizing the legal procedure ofresigning the use of the implicit rules adopted by the market. In this context, it talks about each point suggest-ed in those proposals such as: democratization and access to the products and goods; improvement of theproductive chains; employment and income by means of the cultural actions; support for the small culturalentrepreneurs; better follow up of the projects and control of the resources.

Éde conhecimento público que esforços vêmsendo feitos para avançar na criação de uma políticacultural baseada na renúncia fiscal de pessoas físicase jurídicas a fim de viabilizar empreendimentosculturais de pequeno, médio e grande porte. Dadosrecentes do Ministério da Cultura1 apontam paraum crescimento descentralizado da captação derecursos via leis de incentivo, principalmente a LeiRouanet (8.313/91). Essa é a meta prioritária dessagestão (2003-2006) no que diz respeito a incentivocultural: “desconcentração dos recursos do eixo Rio

de Janeiro – São Paulo, sem prejuízos para essesestados”. Outras não menos importantes constamnessa mesma lista: democratização do acesso aosprodutos e bens gerados; melhoria na qualidade dosprojetos e produtos; contribuição para ofortalecimento das cadeias produtivas; ocupação,emprego e renda por meio das ações culturais;facilidades e apoio aos pequenos empreendedoresculturais; melhor acompanhamento de projetos econtrole de recursos. Torna-se, assim, importanterefletir sobre essas propostas de mudança à luz de

Page 50: Crise de credibilidade da propaganda

048

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

uma política cultural que busque a participação desetores da sociedade ainda excluídos do processo deprodução cultural.

Segundo Teixeira Coelho2, sistema deprodução cultural se divide basicamente emprodução, distribuição, troca e uso – este últimomais chamado como consumo – e produtos culturaissão aqueles que expressam idéias, valores, atitudes ecriatividade artística e que oferecementretenimento, informação ou análise sobre opresente, o passado ou o futuro, quer tenhamorigem popular, quer se tratem de produtosmassivos, quer circulem por público mais limitado.A partir desses dois conceitos, percebe-se queoferecer incentivo fiscal sem, ao menos, oferecersuporte para procura de patrocínio é uma medidainsuficiente para objetivos como “democratizaçãodo acesso”, sabendo que este último éimprescindível para se atingir objetivos maiores emais estruturais desse processo.

Democratizar o acesso aos bens culturaissignifica disponibilizar meios para participação desetores excluídos da sociedade sejageograficamente, seja economicamente naconcepção de projetos que transmitam a identidadecultural de um determinado grupo de pessoas. Paratanto, é necessário oferecer os meios paradesencadear o processo, ou seja, dar suporteoperacional para que esse grupo possa estabeleceras relações simbólicas próprias de seu meio culturale transformar essas relações em um modo deexpressão que reflita a sua realidade e a suaconcepção de mundo vivido3; e para obter osrecursos necessários à viabilização da iniciativa, que,em alguns casos, não podem, por hora, seremchamados de projetos, porque são, na verdade,iniciativas. Esse acompanhamento tem a intençãode auxiliar no processo de racionalização damanifestação cultural para que esta possa passarpelas etapas do sistema de produção até chegar aouso que será feito por outras pessoas de outrosgrupos ou de outras comunidades. Essa seria umamaneira de evitar a padronização estética e decontribuir para a formação de público para as maisdiversas manifestações culturais do contextobrasileiro.

É fato que esse processo em nada serelaciona com mercado, não visa lucro, não ofereceretorno institucional e não se adequa às regras domarketing cultural. Isso faz saltar aos olhos um

problema de pressupostos que acompanhava asmetas do Ministério da Cultura e ainda permeia asnovas anunciadas em documento do dia 07 de abrilde 2004: a produção de bens culturais no Brasilprecisa seguir as leis de mercado.

Até o momento, assiste-se à uma relaçãobastante peculiar no que tange dinheiro público einteresse privado. As leis de incentivo à cultura dãoo direito de renúncia fiscal aos projetos “pré-aprovados”, para determinadas categorias, 100%,para outras 70%. Esse direito só pode ser usufruídose o proponente do projeto conseguir convenceruma ou mais empresas a patrocinar o seu projeto. Ea empresa patrocinadora deduz a porcentagem deacordo com a categoria até o limite de 4% do seuImposto de Renda Devido. Conclui-se, dessamaneira, que o dinheiro investido no projetocultural é público, com isso o acesso aos bensculturais produzidos por esse projeto tambémdeveria ser público. Entretanto isso não acontece. Amaioria dos eventos resultantes de projetos“incentivados” possui um preço de bilheteria queexclui a maior parte dos contribuintes. Torna-sedifícil ter como meta a “democratização do acessoaos produtos e bens gerados”.

O sentido inverso desse processo expressacom mais clareza a submissão da então “políticacultural pública brasileira” às leis de mercado. Todasas empresas que dão lucro e que pagam Imposto deRenda são potenciais patrocinadoras. Essasempresas podem escolher livremente, sob a mesmacontrapartida fiscal, entre projetos de artistasconhecidos pelo grande público e projetos deartistas iniciantes. Podem adequar essa escolha àestratégia de marketing e ao retorno institucional,por exemplo, que pretendem ter com determinadoinvestimento – posteriormente deduzido dos cofrespúblicos. Isso ajuda a entender o fato de que menosde 10% dos projetos inscritos e pré-aprovados pelaLei Rouanet são realizados. Entretanto, há sinais demudança. Por esta razão, cabe rever as metas, umaa uma, para que em um futuro próximo, se possaavaliar, com referências, a trajetória desse “novomomento”.

Melhoria na qualidade de projetos e produtos: éfato que muitos projetos pré-aprovados necessitamde um suporte profissional para que haja ganho emqualidade, entretanto isso não pode ser umprocesso de adequação a um determinado padrãode qualidade, visando apenas as leis de mercado. É

Page 51: Crise de credibilidade da propaganda

049

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

necessário um acompanhamento por pessoasinstruídas a fornecer as ferramentas essenciais parao grupo que precisar, sem que se sucumba àfabricação cultural4. É fundamental “apostar que o grupose descobrirá, descobrirá seus fins e seus meios. Em cultura éa única coisa que importa, a única que permanece, a única afirmar raízes” 5.

Contribuição para o fortalecimento das cadeiasprodutivas: ao se falar em cadeias produtivas, não sepode ignorar o sistema de produção cultural e suasquatro respectivas etapas. Até o momento aintervenção política na área cultural privilegiou atroca e o uso – mais comumente chamado deconsumo, este último – em detrimento da produçãoe da distribuição participativa. É imprescindível queuma política cultural pública seja participativa, porisso, fortalecer cadeias produtivas nesse contextosignifica, necessariamente, dar maior importânciapara participação de grupos que produzem seusbens culturais intuitivamente e que não têminteresse de viabilizá-los comercialmente. De certamaneira, isso pode se desdobrar em incentivo aoartista iniciante, desde que não seja imposta apadronização estética exigida para comercializaçãoe lucro.

Ocupação, emprego e renda por meio das açõesculturais: é importante que essa meta esteja centradano indivíduo em vez de estar no mercado. Esseprincípio muda os pressupostos de comercialização,sem que se perca o horizonte da profissionalização

e, em um segundo momento, da formação depúblico para as diversas manifestações culturais. Aimplementação de programas de ação cultural temcondições de gerar ocupação, emprego e renda,entretanto é necessário lembrar que um programadessa natureza

Isso procura dar mais espaço para a diversidade naoferta de bens culturais do que criar uma linha deprodução e abre espaço para a formação de públicopara cada tipo de manifestação cultural, gerando,em um primeiro momento, ocupação; emprego erenda são etapas posteriores desse processo.

Facilidades e apoios aos pequenos empreendedoresculturais: em uma sociedade de grande diversidadecultural como a brasileira, é necessário haver muitospequenos empreendimentos, mesmo que essesestejam em via paralela aos grandes. Pequenosporque pretendem envolver em seu processo deprodução e distribuição pessoas de comunidadeslocais, tendo como meta de uso regiõesdeterminadas que ainda expressam idéias, valores eatitudes de indivíduos não massificados. Esse tipode iniciativa pode fortalecer a identidade cultural de

“não tem começo e não tem fim nitidamentedemarcados e não deixa atrás de si produtos formaisacabados. O que pode deixar é uma nova cadeia deações, cujo controle seu autor não consegue assumir ecujo resultado final escapa a qualquer previsãoprecisa” (Teixeira Coelho, 1997).

Fot

o:G

al Ó

pid

o

Page 52: Crise de credibilidade da propaganda

050

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

uma região e potencializar o envolvimento depessoas e a produção de bens culturais. Entretanto,para apoiar e facilitar esse tipo de empreendimentose faz necessário tratar de maneira coerente com asexpectativas de cada um e com as característicasespecíficas de cada lugar. A troca dos bens culturais,gerados por pequenos empreendimentos, pormuitas vezes não visa a comercialização, mas apenasa manutenção do mesmo com o objetivo de geraruma nova cadeia de ações. Nesse contexto, érazoável entender que as contrapartidas fiscais paraum grande empreendimento e para um pequenodeveriam ser, ao menos, diferentes.

Melhor acompanhamento de projetos e controle derecursos: torna-se quase um desafio não fazer o usoautoritário de uma meta descrita desta maneira. Aexpectativa é grande e de toda comunidade culturalde que haja, de fato, um acompanhamento feito porespecialistas, enviados pelo Ministério da Cultura, aprojetos de todas as áreas em fase de captação derecursos, de realização ou de prestação de contas.Seria uma maneira de oferecer o suporteoperacional, já citado, para grupos com poucaexperiência em empreendimentos culturais. Existe anecessidade de melhor alocação e gerenciamento derecursos e de melhor condução das etapas deprodução principalmente para projetos que aindaestão sem patrocinadores. Entretanto, é deprimordial importância não interferir na conduçãodos projetos com o intuito de direcionar para um“padrão de qualidade” que, ao final,descaracterizaria a expressão de idéias, valores ecriatividade artística de uma comunidade em prolda otimização de recursos.

O momento é de expectativa e dedecisões. Há possibilidades claras de avanço naconstrução de uma política cultural confiável eparticipativa. Existe a necessidade urgente defacilitar os meios de produção para pequenosempreendimentos sem a imposição depadronização estética a fim de se buscar umaumento na participação cultural de grupos aindaexcluídos e de ganhar espaço na formação depúblicos para as mais diversas manifestaçõesartísticas. Nesses casos, o Estado precisa estarpresente.

NOTAS1Relatório publicado em 07 de abril de 2004

pela Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura /MinC.

2 TEIXEIRA COELHO, José. Dicionário críticode políticas culturais. São Paulo: Iluminuras, 1997.

3 HABERMAS, Jurgen. Consciência moral e agircomunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2ªedição, 1989.

4 ARENDT, Hannah. La crise de la culture. Paris:Gallimard, 1989.

5 TEIXEIRA COELHO, José. Usos da cultura –políticas de ação cultural. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1986.

Cândido de LimaProfessor na FACOM-FAAP. É formado emMúsica e Mestre em Ciências da Comunicação pelaECA-USP

Page 53: Crise de credibilidade da propaganda

051

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

IntroduçãoA propaganda sempre foi considerada o maisimportante instrumento de comunicação demarketing pelo seu grande poder de informar e,especialmente, persuadir clientes a consumirprodutos e serviços. Essa função da propaganda

foi, tradicionalmente, associada aos meios decomunicação de massa, em específico, à televisão.No Brasil, esse fenômeno foi registrado a partir dadécada de 60, com a popularização desse meio decomunicação, e se mantém até hoje: dos 47 milhõesde domicílios existentes no Brasil, nada menos doque 41 milhões possuem aparelhos de TV1.

Crisede credibilidade da propaganda: considerações sobre seu impacto naeficácia da mensagemEdson Crescitelli

RESUMO

A propaganda sempre foi considerada o mais importante instrumento de comunicação de marketingpelo seu grande poder de informar e, especialmente, persuadir. Entretanto, há indicadores de que ela passa poruma crise de credibilidade, o que afeta sua eficácia. A proposta neste artigo é analisar - partindo de levanta-mento bibliográfico sobre o tema - os fatores relacionados com a questão da credibilidade e o modo como elesafetam a eficácia da propaganda. O resultado indica que a época de hegemonia da propaganda parece supera-da, pois estabelecer um processo de comunicação eficaz requer o uso de todo o mix de comunicação para quese consiga sensibilizar e persuadir o consumidor.

ABSTRACT

The advertisement was considered one of the most important instruments of communication inMarketing, because of its great power of informing and persuading.However we have some indicators, which show us that the advertisement is going through a credibility crisis,and that this affects its effectiveness. The purpose of this article is to analyze, doing a bibliographic research,the factors related to the credibility issue and the way that they affect the credibility of the advertisement. Theresults indicates that the time of the hegemony of the advertisement is over. Nowadays, it is necessary to useall the mix to establish an effective process of communication to persuade the customer.

Page 54: Crise de credibilidade da propaganda

052

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Devido à sua ampla utilização, apropaganda ultrapassou seu limite original – o deemitir mensagens persuasivas com propósitos,geralmente, comerciais – e se tornou parteintegrante da cultura, presente no contexto social.Por essa razão, que Marshall McLuhan (apud RIES& RIES, 2003, p. 37) afirma que a propaganda podeser considerada a maior forma de arte do séculoXX. Prova disso é que muitas peças publicitáriasultrapassam o mundo da propaganda e se tornamobras de arte ou seus slogans viram expressões deuso corrente entre as pessoas. Quem já não ouviu,por exemplo, expressões como “não é assimnenhuma Brastemp” ou “uma boa idéia”2

utilizadas em situações cotidianas? A propaganda, no entanto, parece estar

perdendo a hegemonia na função de influenciar ocomportamento dos consumidores. Isso se deve aopróprio processo evolutivo da sociedade, queprovoca transformações no estilo de vida, noacesso a novas tecnologias, nos valores sociais eculturais. Dessas mutações, emerge umconsumidor mais consciente de seu papel noprocesso de comercialização e mais exigentequanto aos seus direitos como cidadão econsumidor. Em outras palavras, surge umconsumidor mais maduro e menos ingênuo quantoaos apelos de consumo.Esses fatores tendem a levar a propaganda a umacrise de credibilidade, uma vez que existe acrescente conscientização dos consumidores sobreo caráter exclusivamente vendedor de um anúncio eisso faz a propaganda ser encarada, naturalmente,com ceticismo e ressalvas. Como conseqüência, opoder de convencimento da propaganda fica, cadavez mais, comprometido. Sobre a importância dacredibilidade, Ries & Ries (2003, p. 50) afirmam quea propaganda precisa ter credibilidade e não apenascriatividade.

Diante desse quadro, nossa proposta,neste ensaio, é abordar a questão da credibilidade esua interferência na eficácia da propaganda, bemcomo refletir sobre as conseqüências dessefenômeno para o processo de comunicação demarketing.

A estrutura da propagandaEm sua essência, propaganda pode ser

definida como uma ação para propagar oudisseminar idéias, informações ou doutrinas. Assim,propaganda pode incluir uma ampla gama deaspectos e ser aplicada a diversas situações emdiferentes áreas do conhecimento humano, taiscomo sociologia, antropologia, religião, filosofia eadministração. Porém, neste artigo, a propagandaserá focada no âmbito do processo de comunicaçãode marketing, ou seja, como um instrumento dedivulgação de produtos e serviços com finalidadecomercial. Sobre esse enfoque, propaganda,segundo Kotler & Armstrong (2003, p. 363), podeser definida como:

Para Shimp (2002, p. 221), a propaganda

Outra forma de entender a propaganda é aproposta por Ries & Ries (2002), que afirmam ser apropaganda uma

“qualquer forma de apresentação e promoçãonão pessoal de idéias, bens ou serviços por umpatrocinador identificado”

“torna os consumidores conscientes de novasmarcas, educa-os sobre as características ebenefícios da marca e facilita a criação deimagens positivas da marca”.

“comunicação persuasiva de cunho comercial quevisa, prioritariamente, a venda de algum produtoou serviço, ou ao reforço de lembrança de algumamarca (um anúncio em uma revista, um comer-cial de televisão etc.).”

Page 55: Crise de credibilidade da propaganda

053

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Como pode ser observado pelas definições acima, apropaganda pode ser entendida como umaatividade de comunicação impessoal, (de massa esem destinatário específico), paga (portanto,controlada) e repetitiva (pode ser veiculada diversasvezes), cuja função é informar e persuadir com afinalidade de vender e/ou formar uma imagemfavorável de um produto, serviço ou instituição.

A propaganda, por vezes, é confundidacom as mídias utilizadas para sua veiculação. Mídiassão os meios de comunicação existentes, tais comotelevisão, rádio, revistas, jornais e internet. Dessaforma, propaganda pode ser considerada comouma forma de comunicação e não como uma mídia(Figura 1). Portanto, as mais recentes inovaçõestecnológicas – como internet, televisão digital etransmissão de dados via telefonia celular – tendema provocar profundas alterações nas mídias e não,ao menos de forma direta, na propaganda em si,que tende a preservar suas características efinalidade. Evidentemente, todas essas alteraçõesacabam, por conseguinte, gerando modificaçõestambém na concepção das peças de propaganda,porém essas não afetam de forma significativa aquestão central deste artigo, que é a credibilidadedas mensagens veiculadas por meio da propaganda.A função da propaganda é informar, agregar valore persuadir (SHIMP, 2002, p. 221). Para obter êxitoem sua finalidade de sensibilizar e persuadir, elaapropria-se de teorias e conceitos de diferentesáreas do conhecimento humano, tais comopsicologia (estudo da psicologia das cores),sociologia (padrões éticos e morais), antropologia

(valores e tradições culturais) e semiótica(linguagem dos signos e símbolos).Considerando-se o processo de comunicação,demonstrado na Figura 2, o grande desafio dapropaganda eficiente é codificar uma mensagem deforma que sua decodificação seja a mais simples,clara e impactante possível, desde que dentro docontexto específico de determinado grupo-alvo,como enfatizam Schultz & Barnes (2001, p. 208):

Por essa razão, a propaganda, para sereficaz, deve estar em sintonia com o seu público,conhecendo profundamente seu repertório,hábitos, valores e comportamento de compra econsumo.

A propaganda é um negócio globalizadoque movimenta centenas de bilhões de dólares porano no mundo todo. No Brasil, o setor movimenta,tradicionalmente, cerca de 1% do PIB (ProdutoInterno Bruto). Em 2002, esse valor ficou em tornode R$ 10,7 bilhões3. Já nos EUA (RIES & RIES,2002, p. 28), o setor movimenta cerca de US$ 244bilhões, representando 2,5% do PIB. As empresasinvestem grandes somas em propaganda naesperança de convencer cada vez mais clientes eobter resultados de vendas satisfatórios. Essesdados demonstram a importância da propagandapara empresas na comercialização de seus produtose serviços.

Figura 1- Fluxograma do processo de comunicação

“tanto o problema quanto o solução devem estardefinidos de maneira clara e concisa, para que oconsumidor receba a mensagem e tenha condições deapreendê-la com facilidade”.

Fonte: Representação figurativa proposta pelo autor

Page 56: Crise de credibilidade da propaganda

054

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Figura 2 - Fluxo do processo de comunicação

Fonte: Adaptado de Kotler, 2000

A eficácia da propaganda A eficácia da propaganda depende,

essencialmente, de três fatores: a forma como oanúncio é construído, o poder da mídia e areceptividade do público-alvo.

Arquitetura do anúncio Em relação à construção do anúncio,

pesam fatores como: conceito - que envolve oconteúdo e a idéia sobre os quais o anúncio estáfundamentado; layout - que engloba a harmonia deelementos, combinação de cores, ou seja, a partevisual da peça e texto - linguagem adotada,densidade e quantidade de informações.

De forma geral, as peças de propagandageradas no Brasil podem ser consideradas eficientespor sua qualidade estrutural, que engloba estratégiae direção de arte, assim como pela técnica,representada pela produção das peças,especialmente de filmes. Esse fato pode sercomprovado pelo reconhecimento obtido pelosetor publicitário brasileiro junto ao mercado,inclusive internacional, pelo constante bom

desempenho nos principais festivais de propagandado mundo nas últimas décadas. Porém, por outrolado, os mercados estão, cada vez mais, repletos demensagens comerciais que, em muitos casos,beiram a saturação dos consumidores. Umconsumidor (KOTLER, 2000, p.571) recebe emmédia 1.600 impactos comerciais por dia e dessesapenas 80 são percebidos e somente 12 provocamalgum tipo de reação.

O excesso de anúncios tende a diminuir aeficácia da propaganda, conforme destacam Ries &Ries (2003, p. 26): “quanto maior o volume de propagandaem determinada mídia, menos eficaz é cada anúncioespecífico”. Por conta dessa acirrada disputa pelaatenção do público, por vezes os anúncios parecemabusar na dose das técnicas de convencimento,exagerando na valorização dos atributos dosprodutos ou serviços, o que pode gerar umadissonância entre o prometido e os benefícios reaisproporcionados pelo produto ou serviço.

No curto prazo, isso pode provocar umgrau de insatisfação com o produto ou serviçoadquirido. Porém, no longo prazo, pode também

Page 57: Crise de credibilidade da propaganda

055

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

interferir na credibilidade das informações epromessas feitas na propaganda. Esse tipo de efeitopode não provocar influência radical imediata, mas,certamente, influencia a credibilidade dapropaganda ao longo do tempo. Como esseprocesso está em curso e tem se acentuado nasúltimas décadas, evidentemente acaba por afetar aeficácia da propaganda de forma considerável.Como destacam Ries & Ries (2002, p. 93):

Uma fórmula muito utilizada no passadopor sua eficácia foi o testemunhal, ou seja, o uso depersonalidade (SHIMP, 2002, p. 272) ou deespecialistas que endossavam os benefícios doproduto, servindo como fonte de convencimentodos consumidores. Apesar de utilizados até hojecom muita freqüência, os testemunhais já não soamaos consumidores como convincentes, pois há apercepção de que os protagonistas só falamdaquela forma sobre o produto porque sãoremunerados para isso e não raro são muito bemremunerados. Sobre esse aspecto, Mohallen (2003,p. 93) afirma:

Públicos com baixo nível dedesenvolvimento social ainda podem apresentar umnível alto de susceptibilidade em relação a certostipos de testemunhal – o que já não acontece comas classes mais esclarecidas – mas mesmoconsumidores com aquele perfil já demonstramtendência mais refratária aos apelos formulados poressa técnica de propaganda.

O poder da mídia

O segundo fator de influência sobre aeficácia da propaganda é o poder da mídia na qualela está sendo veiculada. Tempos atrás, “as mensagensdos meios de massas não podiam ser diferenciadas e eramdirecionadas à maior audiência possível”(STRAUBHAAR & LAROSE, 2004, p.13).

Os mercados tinham preferênciaspredominantemente heterogêneas e as mídias eramconcentradas, ou seja, havia poucas opções e altosíndices de audiência.

A evolução da mídia de massa foiresponsável pelo próprio desenvolvimento dosmercados consumidores e das empresas de grandeporte. Sem uma estrutura de comunicação de massaou tecnologia para expandir (SETH, 2000, p.47), osnegócios permaneceriam pequenos e locais. Nadécada de 40, o rádio era a grande mídia de massanacional, lugar ocupado pela televisão a partir dadécada de 60, até a década de 90. Atualmente,porém, o que se pode observar é que as mídias sãoaltamente segmentadas, tanto em quantidade comoem diversidade de tipos, conforme dados indicadosna Tabela 1.

“por acaso alguém acredita que eles (os endossantes)usem o produto que anunciam? O consumidor, pelomenos, não acredita, é o que afirmam todas aspesquisas sobre o assunto”.

TIPO QUANTIDADE

Emissoras de TV 360

Estações de rádio 3.421

Salas de cinema 1.115

Exemplares de revista* 16.000.000

Exemplares de jornais* 4.000.000

Espaços outdoor ecartazes

60.000

Tabela 1- Quantidade de veículos decomunicação - Mídias

* vendidos por anoFonte: Anuário Mídia Dados,2002

“a maior parte das pessoas não acredita (napropaganda). Resultado: a maior parte daspessoas não lê propaganda nem presta muitaatenção em comerciais de rádio e televisão”.

Page 58: Crise de credibilidade da propaganda

056

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Além das mídias consideradas tradicionaiscomo TVs, rádio, revista, jornal, cinema e outdoor,existem também as chamadas alternativas, comopainéis, correio, internet, ponto-de-venda, eventos,espaços públicos etc. Cada uma dessas diferentesmídias inclui várias opções de segmentação. Bonsexemplos são os inúmeros títulos do mercadoeditorial – fato que pode ser facilmentecomprovado com uma visita a uma banca de jornal– e os canais especializados das TVs a cabo, comos de notícias, filmes, seriados e documentários.

A fragmentação das mídias segue atendência de segmentação do próprio mercado, oque torna o processo de comunicação cada vezmais complexo, muito distante da época remota naqual bastava veicular uma propaganda no programade rádio ou de TVs de maior audiência, para atingira maior parte dos consumidores.

A credibilidade de uma propaganda acabasendo afetada também pela própria mídia na qualela está sendo veiculada, pois sempre existe umatransferência de credibilidade da mídia para apropaganda. Ainda que esse não seja o fator maispreponderante na questão da credibilidade dapropaganda, é sempre oportuno lembrar quemuitas vezes as decisões sobre seleção das mídiaslevam apenas em conta aspectos técnicos comovalor do investimento, índices de cobertura,desprezando a imagem do veículo junto ao público.A imagem do veículo altera o grau de ceticismo doleitor. Assim, um único consumidor – portanto,com um mesmo perfil – pode perceber umainformação de forma diferenciada dependendo damídia pela qual ele a está acessando.

Receptividade do público-alvoO terceiro fator de influência na eficácia

da propaganda é o comportamento do público-alvo

receptor da mensagem. Esse provavelmente seja omais complexo dos três fatores, pois um anunciantepode definir a estrutura de uma propaganda, decidirem quais mídias ela será veiculada, mas não podeexercer qualquer tipo de interferência sobre como oconsumidor irá receber e reagir à mensagem, comodestacam Engel, Blackwell & Miniard (2000, p. 369):

Na verdade, o processo de comunicaçãodeveria começar com a análise minuciosa do perfile comportamento do público-alvo. A eficácia deuma propaganda depende de como ela serádecodificada pelo receptor e isso, por sua vez, estácondicionado ao seu comportamento em relação aoconsumo. Segundo Engel, Blackwell & Miniard(2000, p. 102), o comportamento do consumidor éinfluenciado por fatores ambientais, tais comocultura, classe social, influências pessoais, família esituação e também por aspectos individuais, comorecursos, motivações, conhecimento, atitudes,personalidade, valores e estilo de vida.

A conscientização do consumidor é umprocesso permanente e atinge todos os públicos.Mesmo que o nível de consciência apresentevariações dependendo da região, condição social enível de instrução, é inegável que todos caminham,ainda que em velocidades diferentes, em umamesma direção. A tendência é que, cada vez mais, oconsumidor se torne consciente da sua importânciano processo de comercialização em mercadoscompetitivos, nos quais ele tem o poder de aceitarou recusar determinadas ofertas e definir, assim, quaisempresas irão ou não sobreviver. Concomitantemente,torna-se mais exigente em relação aos benefícios

“a capacidade da propaganda de criar atitudesfavoráveis em relação a um produto geralmente podedepender das atitudes dos consumidores em relação aopróprio anúncio”.

Page 59: Crise de credibilidade da propaganda

057

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

dos produtos e serviços ofertados e invoca seusdireitos amparados por leis específicas, como a dosdireitos dos consumidores, por exemplo.

A globalização e as novas tecnologiastambém compõem esse cenário, promovendo achamada sociedade da informação (STRAUBHAAR &LAROSE, 2004, p.25), que contribui, dessa forma,para o amadurecimento dos consumidores àmedida que ampliam horizontes, facilitam acesso àsinformações e a novos padrões de referência. Dessecontexto, surge um consumidor mais consciente dofuncionamento do processo de comercialização, noqual a função exclusivamente vendedora dapropaganda fica cada vez mais evidente e, portanto,ela é encarada com ressalvas e ceticismo, ou seja,sua credibilidade será sempre posta em cheque,conforme destacam Ries & Ries (2002, p. 31):

A falta de credibilidade da propaganda ficouevidente em uma pesquisa4 realizada entreuniversitários da cidade de São Paulo, na qual apropaganda foi considerada confiável para apenas8% dos entrevistados. Nessa mesma pesquisa, apropaganda é considerada, com 63% dasindicações, a principal fonte de informação para oconsumo. Esses dados demonstram que o poder deinformar da propaganda permanece alto, porém seugrau de credibilidade é muito baixo, fato quecompromete sua eficácia, especialmente no que serefere à persuasão dos consumidores. Outros dadosrelevantes da pesquisa são para 72% dos

entrevistados a propaganda subestima as pessoas epara 67% ela é apenas uma estratégia de vendas.Tais números deixam claro que a propaganda évista de forma refratária pelo público.

Essa situação de baixa eficácia dapropaganda se mantém em outra pesquisa5, destafeita sobre fatores de interferência na escolha deprodutos não programados nas compras emsupermercados. Os resultados mostram que apropaganda interfere na decisão para 10% dasdonas de casa e 15% para quem mora sozinho.

Para obter credibilidade junto a umconsumidor mais consciente, é preciso fazer umapropaganda muito mais sincera e consistente.Porém, essa parece não ser a situação vivida pelapropaganda, uma vez que para 61% das pessoas apropaganda não apresenta imagem real dosprodutos, conforme constatou uma pesquisarealizada pela TGI6. Argumentos tolos, ingênuos efantasiosos que funcionavam décadas atrás hojepodem ter efeitos nulos ou até contrários aospretendidos por parecerem pouco convincentes e,por vezes, ofensivos à inteligência do público.Evidentemente, nos casos de propagandadeliberadamente enganosa, os efeitos sobre acredibilidade são sempre mais devastadores eprolongados.

Ética e responsabilidade da propagandaA responsabilidade social da propaganda é

inegável. Na medida em que é impessoal e atingeuma grande quantidade de pessoas, a propagandasempre estimula o consumo e determinadospadrões de comportamento, não somente do seupúblico-alvo, como também de várias outraspessoas, que não fazem parte de seu target, mas que

“mais importante ainda é que o consumidor comumacredita que as informações presentes na propagandasejam unilaterais. Não contam toda a história, nãoapresentam alternativas e muitas vezes sãoenganosas”.

Page 60: Crise de credibilidade da propaganda

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

são igualmente impactadas pelas mensagens, pois“em comunicação (propaganda) diz-se sempre bem mais doque se pensa ter dito” (KAPFERER, 1998, p. 113).

A questão ética da propaganda envolvedois aspectos distintos. Um deles diz respeito aosprodutos nocivos, lesivos ou politicamenteincorretos que ela divulga, como bebidas alcoólicase estímulo à auto-medicação. Nesses casos, pode-seargumentar que ela apenas está cumprindo suafinalidade de divulgação e o cerne da questão estariano produto em si e não na sua divulgação.

Existe, no entanto, um outro aspecto queé mais inerente à propaganda, que é a abordageminadequada e socialmente condenável utilizada parapersuadir os consumidores. Nesse sentido, paraatingir seus objetivos, a propaganda, não raro, setorna racista, preconceituosa, discriminatória,ridiculariza minorias, ou seja, coloca a ética de ladoe ignora os efeitos colaterais de suas mensagens.Prova disso é o grande número de processos ereclamações recebidos apenas pelo CONAR7 (semconsiderar outros órgãos públicos como PROCOMe do terceiro setor voltados para a defesa doconsumidor, como IDEC). Só em 2003 foramjulgados pelo Conselho de Ética do órgão 416processos das mais variadas origens, semprerelacionados a práticas de propagandas abusivas oulesivas.

A ética e a responsabilidade social sãofatores que acabam por afetar a questão dacredibilidade da propaganda, mesmo que esses doisfatores não estejam diretamente relacionados. Émuito difícil uma propaganda socialmenteinadequada ou eticamente condenável gerar algumtipo de credibilidade, mesmo que seu conteúdo sejaverdadeiro.

Considerações finaisA crise de credibilidade pela qual passa a

propaganda parece ser fruto de um conjunto defatores, do qual fazem parte as mudanças nocomportamento do consumidor, uma vez que

Outro fator é o exagero de mensagensimprecisas e, as vezes, até enganosas veiculadas. Aconjunção desses dois fatores, consumidores maisconscientes e a veiculação de mensagens distorcidasou exageradas, gera o atual estágio de descrédito dapropaganda. Trata-se de uma situação que ficaagravada se for considerada a saturação dasmensagens comerciais, que redundam nodesinteresse do público. Esses dois fatores,descrédito e desinteresse, estão comprometendo aeficácia da propaganda.

Muitas empresas anunciantes e suasagências de comunicação parecem ainda não estarmuito conscientes dessa situação, pois aindainsistem em investir recursos volumosos empropagandas e, em muitos casos, com apelosinadequados que só reforçam esse quadro.

Para manter a eficácia no processo decomunicação de marketing, as atenções e osrecursos estão se voltando para outras formas decomunicação: algumas mais segmentadas como omarketing direto e outras com maior credibilidade,como a publicidade, dentre várias outrasatualmente existentes. Como indicam Peppers,Rogers & Dorf (2001, p. 253):

“muitos anunciantes que tentam fabricar mensagenspara adolescentes e jovens adultos estão tendoproblemas porque essa faixa etária, tendo crescido emuma ‘sociedade de marketing’, tende a ser céticaquanto às tentativas de induzir a comprar coisa”(SOLOMON, 2002, p. 170).

Page 61: Crise de credibilidade da propaganda

059

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

A época de hegemonia da propagandacomo a única ou a principal forma de comunicaçãocom o mercado consumidor parece estar superada,pois estabelecer um processo de comunicação emum mercado complexo e competitivo requerformas de abordagem mais elaboradas e a utilizaçãode todo o mix de comunicação – do qual apropaganda passa a ser um dos itens e não mais ode maior importância – para conseguir sensibilizare persuadir o consumidor.

NOTAS1 Dados divulgados pelo IBGE – Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística, publicado noAnuário Mídia Dados, edição de 2002.

2 Slogan de famosas campanhas publicitárias,respectivamente das marcas Brastemp e Caninha51.

3 Dados divulgados pelo Instituto Intermeios,publicados no anuário Mídia Dados de 2002.

4 Pesquisa realizada pela Fundação PROCOM,órgão da Secretaria de Justiça do Governo Estadode São Paulo, envolvendo 1041 jovensuniversitários da cidade de São Paulo, realizada pormeio de entrevistas qualitativas entre agosto esetembro de 1999 e divulgada na revista Meio &Mensagem, edição de 6 de dezembro de 1999.

5 Pesquisa realizada pela DIL/ResearchInternational, com 500 pessoas de 18/65 anosmoradoras em São Paulo, publicada na revista Meio& Mensagem edição de 6 de dezembro de 1999.

6 Pesquisa sobre o comportamento doconsumidor brasileiro, realizada pela TGI/Brasilcom 10.103 pessoas, entre 14/64 anos, classesA,B,C e D de onze maiores regiões brasileiras.

7 CONAR – Conselho de Auto-Regulamentação Publicitária, órgão nãogovernamental, formado por agências, anunciantese veículos, cuja finalidade é a normatização efiscalização do setor publicitário.

BIBLIOGRAFIAANUÁRIO MÍDIA DADOS. Anuário sobredados de mídia publicado pelo Grupo de mídia. SãoPaulo, Edição de 2002.ENGEL, J.F.; BLACKWELL, R.D. & MINIARD,P.W. Comportamento do consumidor. 8a. ed. Rio de

Janeiro: LTC, 2000.FUKUSHIMA, F. No banco dos réus. Revista Meio& Mensagem, edição de 06 de dezembro de 1999.KAPFERER, J. As marcas, capital da empresa. 3ª ed.Porto alegre: Bookman, 2004.KOTLER, P. Administração de marketing. São Paulo:Prentice Hall, 2000.KOTLER, P. & ARMSTRONG, G. Princípios demarketing. 9a. Ed. São Paulo: Prentice, 2003.MOHALLEN, E. Quem precisa de famosos?Revista Exame, edição de 3 set. de 2003.PEPERS, D.; ROGERS, M. & DORF, B. Marketingone-to-one. São Paulo: Makron Books, 2001.RIES, A. & RIES, L. A queda da propaganda. Rio deJaneiro: Campus, 2003.SCHULTZ, D. E. & BARNES, B. E. Campanhasestratégicas de comunicação de marca. Rio de Janeiro:Qualitymark, 2001SETH, G. Marketing de permissão. Rio de Janeiro:Campus, 2000.SHIMP, T. Propaganda e promoção. 5a. ed. PortoAlegre: Bookman, 2002SOLOMON, M.R. O comportamento do consumidor.Porto Alegre: Bookman, 2002.STRAUBHAAR, J. & LAROSE, R. Comunicação,mídia e tecnologia. São Paulo: Thomson, 2004.

“a propaganda e as demais formas de comunicaçãonão–interativas estão bem vivas e continuarão aprosperar, mesmo com a crescente interatividade deoutros meios”.

Edson Crescitelli Professor de marketing da FACOM-FAAP, ESPMe FEA-USP. É Doutor em Administração pelaFEA-USP e Consultor.

Page 62: Crise de credibilidade da propaganda

060

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Marketing PromocionalAspectos jurídicos das promoçõescomerciaisMaria Flávia de S. Ferrara

RESUMO

As promoções de distribuição gratuita de prêmios, realizadas por meio de concursos, sorteios, vale-brindes ou operações assemelhadas, são ferramentas do marketing promocional cujos aspectos jurídicos sãorelevantes para a sua aplicação.A Lei nº 5.768, de 20/12/71 e o Decreto nº. 70.951, de 09/08/1972, regulamentam as ações de distribuiçãogratuita de prêmios, tratando, entre outros tópicos, da distinção das modalidades sorteio, vale-brinde, con-curso ou operação assemelhada, das restrições quanto aos proponentes e objetos da ação, dos prêmios per-mitidos, da necessidade ou não de prévia autorização governamental para a realização de ações, das impli-cações tributárias etc.Atualmente, têm sido freqüentes os sorteios realizados por meio de títulos de capitalização, que, apesar deautorizados pela Susep, encontram respaldo na legislação acima mencionada.Assim, a observação e aplicação da legislação reguladora da matéria no planejamento de uma campanha pro-mocional, não significa a inviabilização da ação pretendida, mas a possibilidade de encontrar alternativas quepossibilitem a sua regular realização

ABSTRACT

The promotions related to free distribution of prizes are made by means of contests, sweepstakesand vale-brinde (type of promotion where a prize's ticket comes with the product, for instance, coins thatcan be found within the soap box - one in every 1,000 units has a ticket in it), being promotional marketingtools of which certain legal aspects shall be observed.

The Brazilian law system (Law n. 5,768, Dec/20/1971 ruled by Decree n. 70,951, Aug/09/1972)regulates the procedures involving free distribution of awards, among other matters, providing for differentformats of sweeptstake, vale-brinde, contests or the like, as well as restrictions regarding the proponents andobject of the promotion, the prizes allowed by law, the requirement of a prior authorization of the Federalcompetent authority, the related tax effects etc.

Currently, it is very common sweepstakes made by means of the so-called "títulos de capitaliza-ção", which must be previously approved by Susep (the regulatory entity for insurance companies) and alsosubject to the above-mentioned legislation.

Accordingly, the compliance with the provisions of the applicable Brazilian legislation when plan-ning and executing a promotional marketing action does not mean that such a promotion would be notviable, but that sometimes other courses of action should be studied to better attend the expectations.

“Segundo a definição da Associação de Marketing Promocional -AMPRO, marketing promocional é a “atividade do marketingaplicada a produtos, serviços ou marcas, visando, por meio da inter-ação junto ao seu público-alvo, alcançar os objetivos estratégicos deconstrução de marca, vendas e fidelização” (AMPRO, 2004).

Page 63: Crise de credibilidade da propaganda

061

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Entre as ferramentas do marketing promocionalestão as promoções com distribuição gratuita deprêmios, através de concursos, sorteios, vales-brinde ou operações assemelhadas.

As ações promocionais de distribuiçãogratuita de prêmios são estratégias regularmenteutilizadas pelos profissionais de marketing quepretendem aumentar as vendas e fortalecer a marcae produtos de seus clientes. Daí a importância de seconhecer alguns aspectos jurídicos relevantes para aadoção dessa modalidade de marketing.

A legislação brasileira de distribuição gratuitade prêmios

No Brasil, as ações promocionais dedistribuição gratuita de prêmios, compreendendo asmodalidades sorteio, vale-brinde, concurso ouoperação assemelhada, são regulamentadas pela Leinº 5.768, de 20 de dezembro de 1971 e peloDecreto nº. 70.951, de 09 de agosto de 1972.

De acordo com os artigos 16 e 17 doDecreto nº. 70.951/72, considera-se sorteio adistribuição gratuita de prêmios vinculada aoresultado da extração da Loteria Federal ou àcombinação de números de acordo com os mesmosresultados. Nessa modalidade devem serdistribuídos elementos sorteáveis (cupons)numerados em séries e emitidos de acordo com aPortaria MJ nº 90, de 3/10/20001. Assim, seráidentificado como ganhador aquele que possuir ocupom cujo número corresponda aos números daextração da Loteria Federal.

A modalidade vale-brinde, comumenteconhecida como “achou-ganhou”, está prevista nosartigos 23 e 24 do Decreto nº. 70.951/72 ecompreende a distribuição de prêmios de formainstantânea, ou seja, ao encontrar o vale-brinde, oparticipante imediatamente toma conhecimento desua premiação.

O vale-brinde, ao contrário das demaismodalidades – sorteio e concurso – apresenta umalimitação quanto ao valor unitário do prêmio a serdistribuído. Atualmente o brinde não pode excedero valor de R$ 400,00 (quatrocentos reais).

O cupom vale-brinde, a ser emitido deacordo com a Portaria MJ nº 90/2000, deve serdistribuído na proporção mínima de um vale-brinde

para cada cem mil unidades de produtos entreguesa consumo.

Entende-se por concurso a distribuiçãogratuita de prêmios mediante concurso deprevisões, cálculos, testes de inteligência, seleção depredicados ou competição de qualquer natureza(artigo 25 do Decreto nº. 70.951/72). O concurso éuma das modalidades de promoção de distribuiçãogratuita de prêmios mais utilizada e que possui omaior número de operações assemelhadas. Paraparticipar do concurso o participante deveresponder a um teste de inteligência que exija o seudesempenho.

É principalmente o fator desempenho quediferencia a modalidade concurso da modalidadesorteio. A ausência de uma medida de desempenhodesfigura a modalidade concurso e exige a numeraçãodos elementos sorteáveis e a identificação doganhador com base no resultado da extração daLoteria Federal (sorteio).

E, finalmente, operação assemelhada é “amodalidade concebida a partir da combinação defatores apropriados a cada uma das modalidades dedistribuição gratuita de prêmios, preservando-se osconceitos originais, como meio de habilitarconcorrentes e apurar os ganhadores. Podem seapresentar como: Assemelhado a Concurso,Assemelhado a Vale-Brinde e Assemelhado aSorteio” (CAIXA, 2004).

A modalidade “assemelhada a concurso”consiste em um concurso baseado em um teste deinteligência, no qual pode ocorrer o empate entre osparticipantes que responderem corretamente aoreferido teste. Admite-se o desempate, por meio desorteio, acondicionando todos os cupons quecontiverem a resposta correta ao teste deinteligência em uma única urna e sorteandoaleatoriamente o(s) contemplado(s) (CAIXA, 2004).

O sorteio, vale-brinde e as operações assemelhadastêm em comum o elemento sorte presente comofator preponderante identificador do ganhador doprêmio as ser distribuído. Todas as modalidadesdescritas necessitam da prévia autorização da CaixaEconômica Federal ou do Ministério da Fazenda2.

Restrições legaisA legislação brasileira que regula

Page 64: Crise de credibilidade da propaganda

062

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Distribuição Gratuita de Prêmios proíbeexpressamente que sejam autorizadas açõespromocionais realizadas por pessoas naturais oujurídicas prestadoras de serviços ou assemelhada ecujo objeto sejam os produtos relacionados noartigo 10 do Decreto nº. 70.951/72, ou seja,medicamentos, armas e munições, explosivos,fogos de artifício ou de estampido, bebidasalcoólicas, fumo e seus derivados e demais produtosque venham a ser relacionados pelo Ministério daFazenda e cuja venda não se deseja estimular. 3

Por outro lado, o próprio texto legal queproíbe a distribuição de prêmios por pessoasnaturais e jurídicas prestadoras de serviços (art. 9do Dec. 70.951/72), apresenta o caminho para queempresas e produtos impedidos de realizar ações dedistribuição gratuita de prêmios promovam outrostipos de ações promocionais, senão vejamos, inverbis:

Devemos entender por qualquer dos meiosestabelecidos neste Regulamento como toda a açãopromocional de distribuição gratuita de prêmiosefetuada mediante uma das modalidades previstasna legislação em referência, ou seja, medianteconcurso, sorteio, vale-brinde ou açãoassemelhada.

Portanto, para realizar ações promocionaisem conformidade com legislação vigente, asempresas exclusivamente prestadoras de serviços eas que fabriquem ou comercializem os produtosproibidos de ser objeto de promoção, basta que taisações não estejam subordinadas à sorte ou sorteios,restando a alternativa de realizar mecânicas cujocritério de seleção e identificação do ganhador doprêmio a ser distribuído seja o desempenho dosparticipantes, de forma a que seja desnecessáriaautorização do Órgão Público para realização dacampanha.

Impostos e taxasA Lei nº 8.981/95 instituiu a tributação

exclusiva na fonte nas operações de distribuição deprêmios sob a forma de bens e serviços, através de

concursos e sorteios de qualquer espécie, à alíquotade trinta e cinco por cento, incidente sobre o valorde mercado do prêmio na data de sua distribuição.4

O pagamento do imposto deverá serrealizado pela pessoa jurídica autorizada a realizar adistribuição de prêmios, até o terceiro dia útil dasemana subseqüente ao da distribuição.

A alíquota estipulada no valor de trinta ecinco por cento sobre o valor de mercado doprêmio a ser distribuído foi reduzida pela Lei n.9.065, de 20 de junho de 1995, para vinte por cento,vigentes até hoje.

Assim, além da necessidade prévia deautorização para a sua realização, as açõespromocionais modalidades concurso, sorteio eassemelhados5 têm ainda em comum a incidência deimposto de renda na fonte à alíquota de vinte porcento sobre o valor de mercado do total dosprêmios a serem distribuídos.

A taxa de fiscalização foi instituída pelaMedida Provisória no 2.113-26, de 27 de dezembrode 2000 e incide sobre o valor total da premiação aser distribuída, conforme tabela que compões a MP.A comprovação do pagamento da taxa defiscalização deve ser feita por ocasião do protocolodo pedido de autorização, por meio de apresentaçãoda competente guia, impressa pela própria CaixaEconômica Federal. Caso a promoção, mesmo apósautorizada, não seja realizada, é possível solicitar arestituição do valor pago como taxa de fiscalização.

Ações promocionais alternativas Como já mencionado, a solução para as

pessoas físicas e jurídicas impedidas de realizarações promocionais de distribuição gratuita deprêmios – em razão de seu objeto social ou de seuproduto -, encontra-se no artigo 9º, reproduzido noitem (ii) e principalmente no artigo 30 do mesmoinstrumento legal, abaixo transcrito:

Os concursos de natureza artística,

“Art 9º. Não serão autorizadas a distribuir prêmios,por qualquer dos meios estabelecidos nesteRegulamento, as pessoas naturais ou jurídicasprestadoras de serviço e assemelhadas, ou quaisqueroutras entidades que não reunirem as condiçõesprevistas no artigo 2º.”

“Art. 30. Independe de autorização adistribuição gratuita de prêmios em razão doresultado de concurso exclusivamente cultural, artístico, desportivo ou recreativo, desde que nãohaja subordinação a qualquer modalidade deálea ou pagamento pelos concorrentes, nemvinculação destes ou dos contemplados àaquisição ou uso de qualquer bem, direito ouserviço”.

Page 65: Crise de credibilidade da propaganda

063

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

cultural, desportiva ou recreativa, por adotaremcomo critério determinado desempenho paraidentificar os participantes que serão premiados,independem de prévia autorização do órgão federalcompetente, não podendo estar vinculados aqualquer modalidade de sorte ou pagamento, nemvinculação dos participantes ou ganhadores àaquisição ou uso de quaisquer bens,direitos ou serviços.Algumas dentre as diversas modalidades deconcurso a que se refere o mencionado dispositivolegal são as competições de futebol, voleibol eatletismo, gincanas estudantis, competições demelhor pintura e escultura, competições de melhortrabalho literário, técnico ou científico etc.

É importante esclarecer que os concursosexclusivamente culturais, artísticos, desportivos ourecreativos, são aqueles que não envolvem

A interpretação do artigo em referência,assim como a desnecessidade de autorizaçãofederal, é extensiva aos programas de incentivo àprodutividade — que se firmam no conceito dedesempenho para seleção dos ganhadores,baseando-se no volume de vendas alcançados,conforme tabela de pontuação específica oucumprimento de metas em vendas —, às ações tipo“comprou-ganhou” (Self Liquidated) e aosprogramas de fidelização ou milhagem (ContinuityPrograms), identificados como de valor agregado(bônus por volume de compras).

Promoções via títulos de capitalizaçãoA execução de sorteios por meio de títulos de

capitalização é uma nova prática de mercado quetambém possibilita a realização de açõespromocionais independente de prévia autorizaçãoda Caixa Econômica Federal ou do Ministério daFazenda.

Os títulos de capitalização na área promocionalpodem ser utilizados de duas formas:(a) Para fins de fidelização, voltado ao públicoconsumidor direto do produto/serviço, que esteja

em dia com suas prestações/mensalidades.(b) Para fins promocionais (sorteios), destinada aopúblico de forma geral. Nesta última situação, ostítulos de capitalização são distribuídos aosparticipantes por meio de mecânica “comprou-ganhou” (Self Liquidated), isto é, todo oconsumidor que adquirir determinado produto ouserviço, ganha um título de capitalização resgatável.Como todos aqueles que compram ou utilizamserviços ganham um prêmio (um título decapitalização), não existe sorte na distribuição dosprêmios e, portanto, não está a promoçãosubordinada à lei de distribuição gratuita deprêmios a título de propaganda e, à préviaautorização governamental. O título recebido peloconsumidor participa de um sorteio vinculado aosresultados da Loteria Federal, possibilitando assimque o participante, além de ganhar o título decapitalização, concorra à prêmios diversos.

Para a realização de ação promocional viatítulo de capitalização, é necessário adquirir ostítulos de empresa financeira que seja autorizadapela SUSEP/Ministério da Fazenda à executarsorteios.

ConclusõesO planejamento e a realização de uma

campanha promocional não pode se restringir aoaspecto de marketing comercial, uma vez que existeuma legislação brasileira vigente reguladora damatéria. Foram aqui tratados aspectos genéricosdessa legislação, deixando para uma outraoportunidade o aprofundamento de tópicosabordados, como, por exemplo, os trâmitesadministrativos para a obtenção da préviaautorização para a realização de ação promocional,emitida pela Caixa Econômica Federal ou peloMinistério da Fazenda, aspectos referentes àpremiação (prêmios em dinheiro, a adequação doprêmio ao público alvo etc) ou assuntos correlatos,tais como a defesa do consumidor, propagandaenganosa etc.

É importante salientar que o fator legalnão significa a inviabilização de uma açãopromocional, muito pelo contrário, o marketing e ojurídico devem trabalhar juntos para atingir asmetas pretendidas pelo cliente. O conhecimento dalegislação proporciona a oportunidade de seencontrar alternativas que possibilitem a realizaçãode uma campanha promocional.

“a divulgação ou vinculação do prêmio a produtos deempresas comerciais, industriais ou prestadoras deserviço, quer sejam ou não promotoras do evento. Apalavra exclusivamente, inserida no dispositivo legalcitado, estabelece taxativamente que os referidosconcursos não podem ter qualquer vinculação combens, produtos, serviços, nomes, frases ou slogans quepossam constituir-se em propaganda comercial.” 6

Page 66: Crise de credibilidade da propaganda

NOTAS1 Portaria MJ nº 90, de 03/10/200 regulamenta

o procedimento adotado pelo órgão federalcompetente, para expedir a autorização para adistribuição gratuita de prêmios.

2 A competência pela emissão de autorizaçãopara a realização de ações promocionais era,originariamente, do Ministério da Fazenda. Talcompetência foi transferida para o Ministério daJustiça por meio da Medida Provisória nº 1.302, de9 de fevereiro de 1996, reeditada e vigendo sob o nº1.496-30 , de 8 de agosto de 1996, e posteriormentetransferida novamente para o Ministério daFazenda por meio da Medida Provisória nº 2.049-202000, e Portaria MF nº 201, de 05 de julho de2000, que por sua vez passou para a CaixaEconômica Federal a competência pela analise eautorização. Determina a MP nº 2.123-28, de26/01/2001, art. 20: “Ressalvadas as competênciasdo Conselho Monetário Nacional; ficamtransferidas para o Ministério da Fazenda asestabelecidas na Lei nº 5.768, de 20/12/1971, noartigo 14 da Lei nº 7.291, de 19/12/1984, e nosDecretos leis nºs. 6.259, de 10/02/1944, e 204, de27/02/1967; atribuídas ao Ministério da Justiça. §1ºA operacionalização, a emissão das autorizações e afiscalização das atividades de que trata a Lei nº5.768, de 1971, ficam a cargo da Caixa EconômicaFederal, salvo nos casos previstos no § 2º desteartigo. § 2º Os pedidos de autorização para a préviados atos a que se refere a lei mencionada no § 1ºdeste artigo, em que a Caixa Econômica Federal ouqualquer outra instituição financeira seja parteinteressada, serão analisados e decididos pelaSecretaria de Acompanhamento Econômico doMinistério da Fazenda.”

3 Apesar de não estar enumerado no artigo 10ºdo Decreto 70.951/72, a Caixa Econômica Federalentende que os defensivos agrícolas não podemser objeto de ações promocionais a título depropaganda, conforme restrição feita peloparágrafo 3º, inciso II e parágrafo 4º do artigo 220da Constituição Federal de 1988 e pela Lei nº 9.294,de 15 de julho de 1996, regulamentada peloDecreto nº 2.018, de 1º de outubro de 1996.

4 Os prêmios em dinheiro estão sujeitos àtributação na forma do art. 14 da Lei n. 4.506 de30/11/1964.

5 Conforme Ato declaratório (Normativo) nº 7,de 13 de janeiro de 1997, o imposto de renda

disposto no artigo 63, da Lei 8.981/95, não incidesobre a distribuição de prêmios mediante vale-brinde.

6 Parecer Ministério da Justiça, abril de 1999.

BIBLIOGRAFIA

AMPRO,http://www.ampro.com.br/ampro/mkt_promocional/index.asp , visitado em 24 de março de 2004.CAIXA ECONÔMICA FEDERAL,http://www.caixa.gov.br/empresa/servicos/promocoes_comerciais/asp/distribuicao_gratuita.asp,visitado em 8 de março de 2004.COSTA, Antonio Roque e TALARICO, Edson deGomes. Marketing Promocional: descobrindo os segredos domercado.São Paulo, Ed. Atlas, 1996.

LEGISLAÇÃO CORRELATA

Lei n.º 5.768, de 20/12/1971Lei n.º 8.981, de 20/01/1995Decreto n.º 70.951, de 09/08/1972Decreto n.º 3.000, de 26/03/1999 Medida Provisória n.º 2.158-35, de 24/08/2001 Medida Provisória n.º 2.216-37, de 31/08/2001Portaria n.º 90 da SEAE/MF, de 03/10/2000 Portaria n.º 15 do Ministério da Fazenda, de12/01/2001Portaria n.º 391 do Ministério da Fazenda, de25/11/2002

064

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Maria Flavia de S. FerraraProfessora de Legislação e Ética na FACOM-FAAP. Bacharel em Direito, especialista em DireitoPúblico e Mestre em Direito Penal pela Faculdadede Direito da USP.

Page 67: Crise de credibilidade da propaganda

065

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Especi f icidades de comunicação para os idososDevani Salomão de Moura Reis

RESUMO

Por que envelhecemos? Essa pergunta é antiga e as teorias sobre o envelhecimento são muitas. Oenvelhecimento pode ser definido como uma série de modificações morfológicas, psicológicas, funcionais ebioquímicas que ocorrem nos seres vivos, com o passar do tempo. Nos seres humanos, as mudanças biológi-cas marcam o envelhecimento natural. As pessoas envelhecem com saúde, quando não acontece nada de ruimao longo da vida. Mas estão sujeitas a doenças, que vão merecer atenção especial. O idoso, por apresentar algu-mas vezes limitações fisiológicas, requer que a comunicação a ele dirigida observe essas barreiras e tente con-torná-las a fim de que as mensagens cheguem com o mínimo de ruídos.

ABSTRACT

Why do we age? This is an old question and there are many theories that propose an answer to this.Aging can be defined as a series of morphological, psychological, functional and biological changes that occurin living beings as time passes. In human beings, biological changes mark the aging process. There are thosewho age healthily, those who have not had any health trauma throughout life. However they will be subject tohealth problems that will merit special attention. Because of physical limitations that an older person can expe-rience, it is important to adapt the communication to ensure that this person does not misunderstand the mes-sage.

A juventude não é eternaQuando a deusa da alvorada, Eos, pediu a

Zeus que concedesse imortalidade a seu amado,Títon, se esqueceu de incluir um detalhe: ajuventude. Seu desejo foi atendido mas condenou opríncipe de Tróia a uma infinita velhice num corpocada dia mais decrépito. A mitologia grega resumebem o despreparo da humanidade em relação àdecadência que o tempo traz ao organismo.1

As teorias do EnvelhecimentoPor que envelhecemos? Essa pergunta é

antiga. As teorias sobre o envelhecimento sãomuitas. Nesse trabalho optamos pelas 13 teoriasapresentadas por Motta.2 A primeira delas é a teoriada substância vital. De acordo com a autora osanimais começam suas vidas com uma quantidadelimitada de alguma substância vital que, à medidaque vai sendo consumida, provoca mudançasassociadas à idade, que levam à perda de vigor.

Page 68: Crise de credibilidade da propaganda

066

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Atualmente argumenta-se que estasubstância poderia ser o DNA dos genes essenciais.Uma vez que o processo de reparação do DNA éimperfeito, a síntese protéica ficaria comprometida,e esta seria a causa fundamental das mudançasassociadas à idade.

No início do século XX, descobriu-se queas células sofriam mutações, passando a genética adominar o pensamento sobre as causas doenvelhecimento e determinação da longevidade. Nadécada de 1950 estabeleceu-se a teoria da mutação genética.

A teoria de exaustão reprodutiva sustenta que,após um surto de atividade reprodutiva inicia-se oprocesso de envelhecimento e morte. Este não éum padrão universal, pois os seres humanos sereproduzem várias vezes, gerando um ou maisdescendentes.

Na tentativa de eliminar teorias nãosustentáveis, Streler (apub Hay Flik, 1996) propôsum conjunto de critérios a serem observados poroutras proposições. Assim, uma teoria aceitáveldeve explicar porque o fenômeno é:- Deletério, isto é, porque ocorrem as perdas dafunção fisiológica;- Progressivo, porque as mudanças são graduais;- Intrínseco, porque as perdas não podem serrecuperadas;- Universal, porque as perdas ocorrem em todos osindivíduos de uma mesma espécie, de acordo comsuas condições de vida.

As teorias foram divididas em dois gru-pos: as que presumem um plano preexistente e asbaseadas em eventos aleatórios. Entre as primeirashá em comum a idéia de um relógio biológicobaseado numa série de eventos químicos oumudanças físicas em moléculas específicas. As teo-rias aleatórias postulam que o envelhecimentoresulta de eventos acidentais, não programados,atribuindo o envelhecimento ao acúmulo de efeitosem moléculas importantes, como o DNA, resultadode desgaste ou acúmulo de dejetos.

Segundo a teoria de envelhecimento de acordocom um projeto, as mudanças que ocorrerem a partirda concepção até a morte estão programadas emnossas células e começamos a envelhecer desde omomento da concepção. A interpretação maismoderna defende que o DNA de cada uma dasnossas células fornece o mapa do que acontece nãosó a partir da fertilização do óvulo até a maturaçãosexual, mas também do início da idade adulta e

durante todo o processo de envelhecimento.Na teoria neuroendócrina os hormônios

liberados pelas glândulas endócrinas agem nascélulas-alvo regulando atividades envolvidas com ometabolismo, reprodução, síntese protéica, funçãoimunológica, crescimento e comportamento.Inúmeras mudanças relacionadas à idade estãoassociadas a alterações hormonais ou fatoresneurais, porém não há indícios diretos de que essasalterações determinem as mudanças associadas à idade.

Na teoria do desgaste a morte ocorre porqueum tecido desgastado não pode se renovareternamente. Assim, os sistemas vitais acumulariamdanos provocados pelo dia-a-dia, erodindo asatividades bioquímicas normais que ocorrem nas células,tecidos e órgão. A idéia está correta, porém não explica porque ocorrem mudanças associadas à idade.

A teoria do ritmo de vida baseia-se na crençade que os animais nascem com uma quantidadelimitada de uma substância, energia potencial oucapacidade fisiológica que pode ser gasta segundoritmos distintos. O seu uso rápido levaria a umenvelhecimento precoce. As teorias do desgaste eritmo de vida defendem que quem leva uma vidaparcimoniosa retarda o envelhecimento e vive mais.Há poucos indícios que a sustentem, pois nãoexistem padrões; o ritmo de vida ainda quedefinido, não parece explicar a longevidade humanaou animal.

Segundo a teoria do acúmulo de resíduos, como tempo, as toxinas e os resíduos acumuladospodem prejudicar a função celular normal e matarlentamente a célula. Existem indícios de que istorealmente ocorre: a lipofucsina, ou pigmento daidade, se acumula à medida que os animais, entreeles os seres humanos, envelhecem. Esta teoria éuniversal, porém não há indicação de que opigmento realmente interfira na função celular, poisalgumas células não apresentam sinais de desgaste.Assim, não é provável que o pigmento desempenheuma função-chave no processo.

A teoria das ligações cruzadas afirma que aproteína do colágeno consiste em moléculasparalelas unidas por meio de ligações cruzadas.Com o envelhecimento, estas ligações aumentamprovocando rigidez, o que impede os processosmetabólicos devido à obstrução da passagem denutrientes e resíduos para dentro e fora da célula.Estas alterações podem ocorrer também no ácidonucléico que compõe os nossos genes. O acúmulo

Page 69: Crise de credibilidade da propaganda

067

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

de erros em diversas moléculas ao longo do tempoproduziria as mudanças associadas à idade.Contudo, as ligações cruzadas não parecem ser ofator preponderante de todo o processo.

A teoria dos radicais livres baseia-se em umareação química complexa que ocorre quando certasmoléculas reagem e quebram moléculas deoxigênio, formando fragmentos molecularesaltamente reativos, chamados radicais livres. Estessão instáveis e tendem a se religar a qualquermolécula que se encontre nas proximidades, o quepode levar a danos nesta molécula, que passa, àsvezes, a agir inadequadamente ou pode serdesativada. Os radicais livres estão presentes emvários processos: eles provocam danos ao DNA eparticipam da formação de placas neuríticas que sãoencontradas na Doença de Alzheimer, por exemplo.Esta teoria continua a ser pesquisada com oobjetivo de se determinar se os radicais livresconstituem ou não a causa principal doenvelhecimento.

O sistema imunológico representa a linhade defesa mais importante contra quaisquersubstâncias estranhas que possam entrar em nossoorganismo. A teoria do sistema imunológico baseia-se emdois fatores:1) a capacidade do sistema de produzir anticorposem número adequado e de que diversas modali-dades diminuem com a idade;2) o processo de envelhecimento pode levar o sis-tema imunológico a produzir incorretamente anti-corpos contra proteínas normais do organismo.Isso nos deixaria mais propensos a adquirir emanifestar doenças da velhice.Esta teoria não é universal, porque alguns animaisnão têm sistema imunológico bem desenvolvido e,apesar disso, envelhecem. Além disso, os processosimunológicos podem favorecer o aparecimento dedoenças e não de eventos ligados ao envelhecimen-to normal.

Teoria de erros e reparos. Uma vez queexistem processos de reparos, os própriosreparadores podem cometer erros, oualternativamente, os processos utilizados podem serinadequados ou impróprios. A impossibilidade dedispor de reparos perfeitos pode explicar porquesistemas anteriormente perfeitos envelhecem efalham. No futuro, provavelmente surgirá umanova versão da teoria de erros que explicaráalgumas mudanças associadas à idade. Uma das

principais virtudes desta abordagem é auniversalidade e o fato de os erros ocorreremrealmente em algumas das moléculas que compõemtodas as células. Além disso, é possível explicar oritmo de acúmulo de erros e, portanto, porque oritmo de envelhecimento difere nas várias espécies.

Segundo a teoria da ordem à desordem a maiorparte da energia e atividade de um organismo estávoltada para alcançar a maturação sexual e a idadeadulta. Após a maturação sexual, ocorredeterioração da eficiência máxima, porque a ordemperfeita exige trabalho infinito e nenhum sistemapode gerar esse trabalho infinito. A deterioração seacumula. À medida que a ordem molecular doorganismo amadurecido se deteriora, uma vez queo trabalho necessário para manter a perfeição falha,a eficiência do sistema biológico diminui. Variaçõesna velocidade de progressão da desordem nasmoléculas que compõem nossos tecidosexplicariam porque alguns de nossos tecidos eórgãos envelhecem mais rapidamente do que outrose porque o ritmo do envelhecimento varia de umindivíduo para outro.

Podemos concluir que o envelhecimentotem muitas causas e que pode incluir aspectos detodas as teorias comentadas.

Envelhecimento biológicoO envelhecimento pode ser definido

como uma série de modificações morfológicas,psicológicas, funcionais e bioquímicas que ocorremcom o passar do tempo nos seres vivos. Ele secaracteriza pela perda progressiva da capacidade deadaptação e de reserva do organismo diante dasmudanças.

O envelhecimento é um fenômenouniversal, que afeta todos os indivíduos, órgãos esistemas, porém estas modificações ocorrem deforma diversa entre os indivíduos e entre órgãos esistemas de um indivíduo. Essa perda de função seinicia após o período de vitalidade máxima, isto é,capacidade máxima individual de fazer frente àsdemandas biológicas, por volta dos 30 anos.

Limitações fisiológicas dos idososAs mudanças biológicas marcam o

envelhecimento natural da pessoa durante as fasesdo desenvolvimento humano. Ela envelhece comsaúde, quando não acontece nada de ruim ao longoda vida. Ou pode apresentar algumas doenças, que

Page 70: Crise de credibilidade da propaganda

068

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

vão merecer atenção especial.Por apresentar, algumas vezes, limitações

fisiológicas o idoso requer que a comunicação a eledirigida, seja ela eletrônica ou escrita, observe essasbarreiras e tente contorná-las a fim de que amensagem chegue com um mínimo de ruído.

Uma queixa freqüente das pessoas maisvelhas é que sua visão “não é mais o que costumavaser”. Isso normalmente é verdade: além dosproblemas relativamente simples de dificuldadevisual para longe e para perto, cerca de um terço daspessoas acima de 65 anos tem alguma doença queafeta a visão (Quillan, 1999). Um problema comumé o declínio da acomodação (a capacidade de focardiferentes distâncias) que leva à presbiopia (“visãode velho” – “presby” em grego significa “idadeavançada”) caracterizada pela dificuldade deenxergar de perto.

A audição diminui gradualmente durante evida adulta, de modo que, por volta dos 50 anos,muitas pessoas já têm prejuízo auditivo em algumascircunstâncias – não escutam sons baixos, porexemplo.3 Para alguns, o grau de perda auditivapode ser profundo e constituir uma sériadeficiência. (Stevens, 1982), estima que 1,6% daspessoas entre 20-30 anos têm sérias dificuldadesauditivas, comparados aos 32% dos indivíduosentre 70-80 anos. Este número sobe para mais de50% depois dos 80 anos (Herbst, 1982).

Em vista disso podemos perceber que asinformações do ambiente circundante que atingemo cérebro têm um alcance mais limitado, são menosdetalhadas e, dada a lentidão geral do sistemanervoso, levam mais tempo para chegar. Isso não éum bom presságio para o envelhecimento dointelecto (veja Lindenberger e Baltes, 1994), nempara a personalidade, se a auto-imagem for atingida.

Envelhecimento e linguagemA linguagem compreende não apenas a

produção e a compreensão da fala, mas também, éclaro, da escrita e da leitura. Introspectivamente, aleitura é percebida como um processo bastanteautomático e instantâneo, mas de fato ela envolve acoordenação de várias habilidades diferentes, dasbem básicas às muito complexas. A priori, a leituranormal envolve no mínimo os seguintes processos:primeiro, deve haver um mecanismo mental paraidentificar letras individuais, para distinguí-las dedigamos, borrões de tinta a esmo ou letras de outro

alfabeto. Além disso, deve haver um método deidentificar se a seqüência de letras forma palavrasreais ou é apenas uma seqüência sem sentido (porexemplo, aslkdhf) e também de avaliar como apalavra deve ser pronunciada (isto é, de transformá-la de representação impressa em falada). Seguindo-se a esses estágios, deve haver a habilidade de julgarse as seqüências de palavras formam frasessignificativas. Essas têm de ser avaliadas quando àsua aceitabilidade sintática e semântica.

Algumas soluções para as limitações fisiológicasUma solução para o problema da piora da

visão é que a comunicação destinada ao idoso sejaimpressa com caracteres maiores (para os queentendem a terminologia técnica, corpo 18).Devemos observar que muitas pessoas mais velhasnão estão conscientes de seus problemas de visão.Holland e Rabbit (1989)4 afirmam que todos ossujeitos com mais de 50 anos fizeram avaliaçõessubjetivas quase idênticas de sua visão, embora, narealidade, houvesse uma nítida deterioração nossujeitos mais velhos. Porém, um declínio nascapacidades percentuais não significa apenas que aspessoas mais velhas precisam de letras maiorese/ou aparelhos auditivos. Uma perda sensorial podeafetar diretamente a eficiência com que ainformação é processada.

O uso da televisão como fonte de informaçãoNenhum outro segmento da população

assiste tanto à TV diariamente quanto os idosos.Esse fato de aparência banal tem chamado aatenção de comunicólogos, gerontólogos ecientistas sociais, entre outros motivos porque aintensidade com que os meios de comunicação demassa são usados lhes permite presumir o quantoeles são importantes na vida do indivíduo e o lugarque ocupam na sociedade.

Sendo assim, a quantidade e a qualidadeda TV a que se assiste na velhice são valiosas fontesde informação sobre as necessidades, asmotivações, as atitudes e os interesses nesseperíodo de vida. Os padrões de uso5 por parte dosidosos são indicadores do que se passa em seuambiente psicológico e sua realidade social.

Poucas teorias de comunicação têm sidoaplicadas diretamente aos idosos. Seis décadas depesquisa em psicologia e outras ciências sociais,ilustram como a TV atinge a cognição e a conduta

Page 71: Crise de credibilidade da propaganda

069

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

aberta de indivíduos, grupos e instituições das maisvariadas origens étnicas, credos e característicasdemográficas e culturais.

A quantidade de tempo dedicado à TVvem aumentando desde sua aparição em finais dadécada de 1940. De 1965 a 1975 o uso da TVincrementou 10%, o que equivale a uma hora diáriaa mais num período de dez anos (Barnett et al.1991).6 A média de consumo televisivo estimada nadécada de 1980 gira em torno de 30 horas semanais(Gerbner et al. 1980). Esta estimativa aumentou nadécada de 90, em virtude da expansão de oferta deTV (satélite, a cabo) e de acessórios tecnológicoscomo videocassete (VCR), filmadoras, videogames,TV digital. (Comstock e Paik 1991).7

Segundo Comstock e Paik (1991), noEUA, a TV aumentou o consumo dos meios decomunicação em uma hora diária e responde por ¾de todo o consumo da mídia. Ela alteroudrasticamente o uso do tempo diário. Assistir à TVconcorre com atividades de lazer fora de casa(atividades religiosas, contatos sociais, festas,compras, lugares públicos). Todas essas atividadesenvolvem interação social, que é limitada quando aspessoas vêem TV (Banett et al. 1991).

Uma pesquisa realizada em 12 países,dirigida a estabelecer como homens e mulheres, quehabitam ambientes urbanos, gastam o tempo diário,revelou que em alguns países assistir à TV:- é a atividade que consome mais tempo, perdendosomente para o sono e o trabalho;- como atividade única ocupa 1/3 de todo o tempode lazer e 40% do tempo quando descrita comosecundária ou complementar a outra atividade;- é a primeira atividade de lazer, superandosocialização, leitura, eventos fora de casa, viagens,tarefas de casa, entre outras (Szalay 1989).

Nenhum grupo etário supera os idosos quantoao consumo de TV

Desde a aparição da TV comercial apesquisa empírica em psicologia dedicou-se emgrande parte ao estudo dos efeitos do conteúdoapresentado, em particular a violência, sobre ocomportamento das pessoas jovens, principalmentecrianças e adolescentes.

Conforme Comstock e Paik (1991), verTV como um ato “proposital, seletivo esistemático” começa entre os 2-3 anos de idade erapidamente ocorre um aumento substancial na

quantidade de tempo dedicado ao meio. Estima-seque dos 2 aos 11 anos o consumo de TV flutue emtorno de 28 horas semanais. Na adolescência, otempo de uso diminui para 23,5 h/semanais. Naidade adulta, mulheres entre 35 e 54 anos assistemà TV durante 34 h/semana contra 29 h para oshomens nessa mesma faixa etária. A partir dos 55anos o tempo diante da TV aumenta novamente.Estudos revelam uma correlação positiva entre aidade e o número de horas diárias de exposição àTV (Real, Hayes e Harrington 1980). As estimativasapontam variações entre 31,5 h/semana (x = 4,5h/dia) até 60 h/semana (x = 8,6 h/dia) ou mais deuso da TV (Korzenny e Nuendorf 1980). Essaspesquisas mostram uma tendência crescente notempo de uso da TV que persiste até a idade de 70anos.

Praticamente todos os estudos têmmostrado que adultos idosos vêem mais TV queadultos jovens ou na meia idade [...] pessoas de 50anos ou mais assistem em média uma hora de TV amais por dia que aquelas entre 25 e 49 anos [...]mulheres acima de 50 anos assistem mais TV quequalquer grupo etário... (Kubey 1980).

Os idosos mantêm os mais altos níveis deexposição à TV. É o único meio de comunicaçãoque permanece estável ou aumenta quando aspessoas ultrapassam os 50 anos de idade. Real,Hayes e Harrington (1980) constataram queindivíduos acima de 80 anos mantinham níveis deexposição mais altos que qualquer outro grupo deidade abaixo de 64 anos.

Além da quantidade, também aimportância da conduta de ver TV incrementa coma idade. À medida que os adultos envelhecem, vêemmais TV, tornam-se mais satisfeitos com ela(Comstock 1989) e menos críticos sobre oconteúdo da programação; mesmo os idosos maiscríticos em relação ao conteúdo da TV acreditamque ter um aparelho é muito melhor do que não tê-lo (Kubey 1980). Além de mostrar uma afinidadesubstancial com a TV (Rubin e Rubin 1982a,1982b) o idoso revela uma menor propensão aprescindir dela (Comstock 1989). Isso tem sidointerpretado por alguns autores como evidência dasua dependência do meio. Diversos estudosconfirmam que ver TV é a atividade predominantede lazer em idoso (Real, Hayes e Harrington. 1980).

Embora homens e mulheres idososassistam TV diariamente por um número total de

Page 72: Crise de credibilidade da propaganda

070

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

horas superior ao de qualquer outro segmento dapopulação, só recentemente passou-se a examinarcom mais atenção seu papel nesse período da vida.

Um exemplo extremo ilustra aimportância que a TV pode ter na vida de umapessoa idosa:

“Eu sou um homem velho e a TV trazpessoas, música e conversações à minha vida.Talvez sem a TV eu poderia estar pronto paramorrer; mas esta TV me dá vida. Me dá algo parabuscar adiante – se amanhã eu estiver vivo, podereiacompanhar a programação”.(Kubey 1980, p. 19).

Os fatos precedentes têm levadopsicólogos e gerontólogos a formular uma série dequestionamentos. Que razões explicam tão altospatamares de uso de TV na velhice? Tiposparticulares de experiências afetivas ou emocionaisda vida diária do idoso podem estar relacionadas àsua forma de assistir à TV? Quais as funçõespsicológicas da TV nessa faixa etária? Qual suarelação com as necessidades psicossociais do idoso?Qual a opinião das pessoas idosas sobre a TV? Elaé coerente com o uso que fazem desse meio decomunicação? Existe uma interação entre asmotivações e os padrões de uso da TV? Podem asmotivações em relação à TV predizer a intensidadede seu uso e a afinidade do idoso com esse meio decomunicação? Como se manifestam as práticas epolíticas sociais para idosos na forma como usamesse meio de comunicação? Que variáveis sócio-demográficas alteram os padrões desse uso? Quaisos efeitos da exposição intensiva diante da TVsobre o comportamento nessa faixa etária? NoBrasil, a maioria dessas perguntas espera ainda aatenção dos pesquisadores.

Baixo nível educativo do idosoPessoas de baixo nível educativo vêem

mais TV para aprender a se comportar em certassituações e se informar sobre produtos (Rubin eRubin 1982b). Idosos com pouca escolaridadeusam a TV como uma forma prática de obterinformações, aprender sobre pessoas, eventos domundo ou da sua comunidade. Esses motivos sãoapontados como alguns dos mais relevantes,possivelmente porque em parte a TV não exigehabilidades de leitura, pré-requisitos acadêmicos oualtos níveis de atenção. A TV à cabo tem sua parcelade audiência, os idosos economicamente privilegiados.

Decrementos de atividade físicaIdosos com maiores dificuldades de

mobilidade usam a TV mais que outros meios decomunicação como substituto de outras formas deatividade (Swank, apub Rubin e Rubin 1982 b).

As pessoas idosas que experimentamdecrementos numa dada atividade tendem a buscare encontrar alternativas nas quais as perdaseconômicas, sociais e físicas associadas aoenvelhecimento não atentem contra elasseveramente (...). Os meios de comunicaçãomassiva são recursos valiosos e socialmenteaceitáveis para os indivíduos idosos dado que elespodem usá-los anonimamente, economicamente...(Graney, apub Real, Hayes e Harrington, 1980, p.83).

A importância do rádioEnquanto a imprensa é típica de uma

civilização do papel, o rádio é, por excelência, omeio de comunicação oral. Por isso tem alcançadogrande aceitação e difusão nos países emdesenvolvimento. É desnecessário dizer que, nasregiões dominadas pelo analfabetismo, atransmissão oral é uma das possíveis origens deinformação e de entretenimento. Os membros dasclasses mais pobres, em particular, têm na audiçãoem grupo uma fonte de notícia importante.

Com seus 81 anos, o rádio conserva certoprestígio como fonte de informação. Por transmiti-la, literalmente, ao pé do ouvido possui caráter maispessoal, talvez mais convincente. Manifesta-senuma franqueza íntima e particular de pessoa apessoa. Permite ainda que ouvinte tenha umaatividade paralela enquanto se entretém ou seinforma.

Pelo envolvimento emocional que sugere,pelo acompanhamento do acontecimento, o rádiopermanece entre os meios de comunicação demassa que mais contribuem para a formação daopinião, mormente em regiões em que é escasso oacesso a outras fontes.

O rádio é o segundo veículo de massamais usado pelos idosos, perdendo apenas para aTV. Uma grande parte dos idosos brasileiros vivesó, sendo que há um elevadíssimo contingente deviúvas, já que as mulheres vivem de 5 a 6 anos amais do que os homens. Nas últimas décadas, apopulação idosa concentrou-se nas áreas urbanas,principalmente as mulheres, pelas facilidades queesse espaço oferece em termos de serviços. Como

Page 73: Crise de credibilidade da propaganda

o ambiente urbano com freqüência impõe severasrestrições de deslocamento e, conseqüentemente,de interação social em virtude das precáriascondições de segurança e dos obstáculos físicos,cabe inferir que a grande massa dos idososbrasileiros está cada vez mais compelida aoconfinamento no lar na companhia da TV e dorádio.

NOTAS1 DIAS, Carlos. 65 anos em cada perna. Revista

Superinteressante. Ano 13, n 4, p. 40-41. Abril,1999.

2 MOTTA, Luciana Branco. Repercussões médicasdo envelhecimento. In: Terceira Idade, Alternativas parauma sociedade em transição. Org. Renato Veras.Rio de Janeiro. UnATI. 1999. p. 110-114.

3 BROMLEY, D.N. Human Ageing. Anintroduction to Gerontology. 3rd edition.Bungay:Penquin.

4 HOLLAND e RABBIT abup Stuart-HAMILTON, Ian. A psicologia do envelhecimento3ed., Porto Alegre: Artmed 2002. p.27

5 O estudo dos padrões de uso da mídia (patternsof use) busca descrever e explicar hábitos e funçõesparticulares dos meios para indivíduos ou grupos.Considera, entre outros critérios, a quantidade(horas de exposição), a qualidade (preferências deconteúdo) e a forma de exposição (exclusiva ouparalela a outras atividades).

6 (Barnett et al. 1991) abup ACOSTA-ORJUELA. Guilermo Mauricio. O uso da televisãocomo fonte de informação sobre a velhice: fatos e implicações.In Néri, Anita Liberalesso. Velhice e sociedade. p. 181.

7 Segundo Comstock e Paik (1991) abup op.cit.,p. 18

BIBLIOGRAFIAACOSTA-ORJUELA. Guilhermo Maurício. O usoda televisão como fonte de informação sobre a velhice: fatose implicações. In: Velhice e Sociedade. Néri, AnitaLiberalesso & Debert, Guita Grin. São Paulo,Papirus.1999.BROMLEY, D. N. Human Ageing. An introductionto Gerontology. 3rd edition. Bungay: Penquim.DIAS, Carlos. 65 anos em cada perna. RevistaSuperinteressante. Ano 13, n 4, p. 40-41. Abril,1999.HAMILTON, Ian Stuart. A psicologia do envelheci-mento: uma introdução. 3a. ed. Porto Alegre:

Artmed, 2002.MOTTA, Luciana Branco. Repercussões médicas doenvelhecimento. In: Terceira Idade, Alternativas parauma sociedade em transição. Org. Renato Veras.Rio de Janeiro. UnATI. 1999. p. 110-114.

071

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Devani S. de M. Reis Professora de Técnica da Opinião Pública daFACOM-FAAP, jornalista e Doutoranda emCiências da Comunicação da ECA - USP.

Page 74: Crise de credibilidade da propaganda

072

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Nestes últimos anos, um assunto que muitotem me despertado a atenção, é o do meioambiente. As razões são as mais diversas comoveremos no decorrer do texto. Porém, como de unsanos para cá, tenho me dedicado ao estudo desta

temática, em específico, por conta da minha tese deDoutorado, e, como ainda, pelo fato de já há algunsanos trabalhar este tema da ecologia, junto aosalunos de Comunicação e de RelaçõesInternacionais.

A preservação do meio ambiente:uma preocupação por inteiro

RESUMO

O meio ambiente tem sido um tema que, nestes últimos anos, recebeu cada vez mais atenção dealguns cientistas e dos mais diversos setores sociais, dados as mudanças que estão ocorrendo no planeta terra.Mudanças estas provocadas essencialmente pela interferência do homem no mundo natural. As razões destainterferência humana são as mais diversas. Mas, certamente o motivo central recai sobre a sociedade de con-sumo, que tem como base fundamental: o lucro.Sugerem-se soluções das mais diversas. Porém, a que mais tem convencido a estes setores preocupados empreservar o que ainda nos resta de natural, e, por tabela, evitar as imensas catástrofes, é a idéia do desenvolvi-mento sustentável, ou seja, o ecodesenvolvimento.

ABSTRACT

The environment is one of the most important issues discussed by the scientists and the society dur-ing the last years due to the changes that are occurring in our planet. Those changes are consequence of thehuman being intervention in the nature. There are lots of reasons, but the main reason is the consumer soci-ety based on consumerism and profit.There are some suggestions to find a solution, but there is one that has convinced the people interested in pre-serve the rest of the nature and avoid a great catastrophe, that is the idea of sustainable development, thatmeans, the Ecosystem.

João Krüger“A vida portanto, nascida da Terra, é solidária da terra. A vida ésolidária da vida. Toda a vida animal tem necessidade de bactérias,plantas, outros animais. A descoberta da solidariedade ecológica éuma grande e recente descoberta. Nenhum ser vivo, mesmo humano,pode liberta-se da biosfera.” (Edgar Morin)

Page 75: Crise de credibilidade da propaganda

073

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

Ao analisarmos a questão do meioambiente, da preocupação em preservar a natureza,na verdade, estamos diante de uma questão simplespor um lado, mas profundamente complexa, poroutro. Pessoas, comunidades ou mesmo entidadessociais que se colocam a questão da ecologia comouma preocupação estão, no fundo, repensando asua existência e o mundo em que vivem. Estas sãocertamente pessoas que não se contentam em vivernum mundo sem beleza, árido, com a naturezadestruída. Querem para si e para os outros ummundo limpo, bonito, com as águas claras, terrafértil, homens e mulheres, plantas e animais sadiose com diversidade. E aqui é interessante observarque a ação do homem sobre a natureza é que édiferenciável, porque as modificações causadas poroutros seres são praticamente quase que na suatotalidade assimilados pela própria natureza e nãocausam grandes impactos sobre ela. São ações quepermanecem no contexto do equilíbrio ecológico,enquanto que a ação humana, principalmente apartir do século XX, tornou-se profundamentedesequilibradora, ameaçando a ordem natural,destruindo vastas áreas naturais, mexendo naordem auto-reguladora da natureza, a ponto deameaçar a sobrevivência da natureza e do próprioser humano.

É claro que todas estas grandestransformações e este impacto de ação do homemsobre a natureza não se tratam de uma açãomaldosa em si. Nem parece ser de natureza suicida,mas se coloca num contexto maior, são ações eopções decorrentes das relações sócio-econômicasde um determinado tipo de modelo adotado, noqual por exemplo, e especialmente na nossasociedade brasileira, vale, antes de mais nada, apreocupação com o lucro. O sucesso econômico aqualquer preço é o lema atual. Este modelo, semsombra de dúvida, terá suas conseqüências, comimplicações desastrosas por diversas razões, poisuma economia voltada ao sucesso, ao lucro aqualquer custo, há de suscitar desequilíbrios, comorelações de desigualdade social, competição,domínio de uns sobre os outros, exploração.

Se formos analisar a relação que o homemestabeleceu com a natureza no decorrer da história,veremos que ela passou por várias atitudes eformas. Para alguns agrupamentos sociais, nestesúltimos anos, passou-se de uma forma violenta parauma relação de simpatia com a natureza. Assim, porexemplo, desde o início da modernidade, a naturezapassa a ter função estética, de ornamentação, comorelata Keith Thomas:

Em muitos lugares, principalmente nosgrandes centros urbanos, a relação que foi seestabelecendo com a natureza em muitos lugares emomentos, passa inclusive por uma certaidealização. A natureza começa a ser defendida emseu estado puro, sendo que, ter apreço à naturezapassa a ser um ato religioso, diviniza-se a natureza.Na maioria das vezes, as ações de paisagismo, dejardinagem, optam pela natureza rústica, em seuestado puro.

A natureza, porém, ainda continuatambém sendo vista como fonte de alimentação. Naverdade, ocorre uma certa divisão, umplanejamento através da ação do homem, daquiloque se destina à ornamentação e aquilo que serve dealimento. Nas palavras de Keith Thomas:

Sem querer me aprofundar nas formas emudanças que o homem foi estabelecendo com anatureza no decorrer do tempo, gostaria de mevoltar à situação atual na relação homem/meio

“O mais terrível disso tudo é que, de certaforma, a economia de lucro tende a viver de suaprópria contraprodutividade. Por exemplo, aindústria agroquímica necessita de pragas e solospobres, e os obtêm pelas próprias conseqüências

“A horta e o jardim representavam duas maneirasfundamentalmente opostas de usar o solo. Naprimeira, os homens usavam a natureza como meio desubsistência; seus produtos eram para ser comidos.Na segunda, eles procuravam criar ordem e gerarsatisfação estética, e mostrando respeito pelo bem-estardas espécies que cultivavam.”3

“As árvores haviam deixado de ser um símbolode barbárie ou uma mera mercadoria econômica;tinha-se tornado parte indispensável do cenárioda vida da classe superior.”2

ecológicas da sua aplicação. A indústria médicanecessita de doentes, e os obtêm pelo próprio modode vida artificial da sociedade moderna. É o“círculo infernal“ de que nos falam algunsecologistas: uma economia que se alimenta dos seuspróprios desequilíbrios.“ 1

Page 76: Crise de credibilidade da propaganda

074

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

ambiente. Na verdade o que podemos observar éque nestes últimos anos, o homem tem destruídocada vez mais a natureza. O que por sua vez temcausado grandes mudanças ambientais, situaçãoesta que precisa ser analisada no contexto daglobalização.

Trata-se de uma questão e problemaplanetários, em que ainda sequer se temconhecimento do grau de destruição que ocorre e,pior, talvez se trate de uma situação irreversível.Dessa forma, urge a necessidade de criação denovos paradigmas, novos conceitos, para se chegara uma compreensão equilibrada das implicações erelações da ecologia com as questões econômica,social, política, tecnológica, científica, demográfica,entre outros; como também efetivar estudos epesquisas localizadas, regionalizadas, nacionais einternacionais, levando-se em conta que já sãoamplamente conhecidos os problemas ambientais,como o esgotamento de recursos naturais, aacumulação do lixo tóxico, o efeito estufa, o buracona camada de ozônio, a perda da biodiversidade, acrise energética, sendo que praticamente todos elessão provocados pelas sociedades ricas e maisdesenvolvidas.

Passou-se então a pensar num sistema dedesenvolvimento e produção sustentável, isto é,passou-se a defender um conceito deecodesenvolvimento, para caracterizar umaconcepção alternativa de produção e política dedesenvolvimento, tendo como prioridade umconjunto de objetivos e medidas designadas pararegular as interações dos sistemas sociais com omeio ambiente. Assim, o uso do conceitoecodesenvolvimento passou a exprimir umamodalidade político-ambiental preventiva. Nessamodalidade focaliza-se a relação sociedade –natureza admitindo-se a evolução, o progresso emnível local e mesmo no contexto da globalização,utilizando-se, porém, de estratégias deplanejamento democrático integradas aodesenvolvimento, em que o ser humano, aprincípio, faz parte da natureza e não se encontranem acima nem abaixo dela.

É importante lembrar que, ao falarmos dedesenvolvimento sustentável, temos que levar emconta não só os aspectos materiais e econômicos,mas um conjunto de dimensões e facetas quecompõem o fenômeno do desenvolvimento. Asaber: os aspectos culturais, os aspectos políticos,sociais e físicos, sendo que a sustentabilidade dotodo está relacionada à sustentabilidade doconjunto destas partes. Nas sociedadescontemporâneas, porém, desprezam-se os aspectosqualificativos e muito se valorizam os aspectosquantitativos. Daí decorre a concentração dariqueza, a má distribuição de renda, o pouco ounenhum cuidado com a natureza, o desequilíbriogeneralizado. Todo este conjunto de inversão devalores atinge também de forma decisiva aprodução agrícola, sendo que, na agricultura, agrande produção é a responsável pelo aquecimentoe sustentação da agroindústria. Como exemplopodemos citar a indústria de fertilizantes edefensivos. Na medida em que se faz uso dosagrotóxicos, entra-se num círculo vicioso dedestruição, pois os agrotóxicos destroem as pragas,mas também exterminam os predadores naturais,benéficos e necessários ao equilíbrio doecossistema*. Com o passar do tempo, surgemnovas pragas bem mais resistentes e estas, por suavez, exigirão venenos também mais fortes, fazendocom que a produção de alimentos fique toda elacomprometida, afetando a saúde dosconsumidores, o que certamente levará ànecessidade de tratamento de saúde, expandindoassim a indústria farmacêutica e médica.

Levando-se em conta toda esta nefastasituação atual, poder-se-ia até chegar à conclusão deque não resta saída para a humanidade. Numprimeiro momento, de fato, não vislumbramossaídas num sentido macro, mas em vários lugaresocorrem as mais variadas micro experiênciasalternativas da produção de alimentos, do trato como meio ambiente e, neles, obrigatoriamente se temfeito uso do conhecimento das comunidades locais,considerando inclusive a diversidade cultural, aspráticas diversificadas de produção, oconhecimento empírico, bem como a valorizaçãodo planejamento ambiental, visando evitar adestruição da natureza. Dessa forma, progressotecnológico e científico pode e deve conviver comuma economia sustentável.

Caso contrário, corremos o sério risco de

“Para a posição ecodesenvolvimentista, ocomportamento humano surge como a expressão deum conjunto de interdependências tecidas entre a base biológico-genética dos sistemas orgânicos e seu processode aprendizagem social, adquirida historicamente emcontextos sócio-ambientais específicos”. 4

Page 77: Crise de credibilidade da propaganda

075

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

se tornarem realidade, as denúncias e alertas destareportagem especial da revista Veja, quando se falado aquecimento do planeta Terra. Enfatizandotambém que os principais países responsáveis poresta causa seriam em primeiro lugar os EstadosUnidos, seguidos pela União Européia e a Rússia. Atítulo de exemplo, os EUA teriam emitido de 1950a 2001, 186,1 bilhões de toneladas em gáscarbônico. As principais áreas afetadas seriam asdos recursos hídricos. Embora dois terços doplaneta Terra sejam água, apenas uma pequenaparte se mantém potável, de forma que 1,3 bilhõesde pessoas em todo mundo já convive com oproblema da falta de água. Outro setor muitoatingido é a atmosfera, devido à descarga defumaça e gases venenosos jogados ao ardiariamente. Também sofrem com a poluição ospeixes e os animais, sendo extintos num ritmoacelerado, cinqüenta vezes mais rápido do que o seuritmo natural seletivo de evolução. Quanto àsflorestas, a situação é ainda mais catastrófica. Dasflorestas existentes da época da chegada doseuropeus ao Brasil, existe apenas um terço. A MataAtlântica está praticamente destruída em suatotalidade: 93% do total está destruído.

No que se refere em específico, ao efeitoestufa, o problema para o qual só recentemente secomeçou a dar maior atenção, a reportagem diz:

Na verdade, as conseqüências imediatas jáse tornaram uma realidade nos últimos anos. Sãoexemplos das freqüentes enchentes fazendotransbordar rios como o Sena como há décadas nãoocorria; as freqüentes secas pelo mundo afora,provocando incêndios e destruindo imensasflorestas; a separação de enormes extensões dequilômetros provocada pelo derretimento dasgeleiras, fazendo com que aumente o nível do mar,invadindo e inundando bairros, vilas e cidades inteiras.

Uma outra reportagem bem recente, darevista Carta Capital, é ainda mais enfática ao sereferir às mudanças climáticas e conseqüências decatástrofes iminentes podendo atingir a natureza e ahumanidade. Trata-se na verdade de “Um RelatórioSecreto do Pentágono” obtido pela revista britânicaThe Observer. O relatório chama a atenção a questões

Resultado da mudançaclimática até 2050, caso nãohaja regulamentação dasemissões de carbono.

“Segundo especialistas, se o efeito estufacontinuar a crescer no mesmo ritmo, atemperatura média da Terra pode aumentar 5,8graus Celsius até 2100 (...) No pior cenário, emalgumas décadas o nível dos oceanos podem subir80 centímetros. É uma catástrofe. Ilhas, deltasde rios, cidades costeiras acabariam debaixo daságuas (...) Cerca de 90 milhões de pessoasseriam afetadas diretamente pelo aquecimentoglobal.”5

Page 78: Crise de credibilidade da propaganda

076

F a c o m n º 1 2 - 1 º s e m e s t r e d e 2 0 0 4

e problemas decorrentes das iminentes mudançasno clima: “Conflitos nucleares, grandes secas, fome etumultos generalizados acontecerão ao redor do mundo.” Enum outro momento da análise descreve o que seriaainda mais grave: “Aliás, de acordo com o cenário doPentágono, os países mais pobres e menos responsáveis pelasemissões de gás carbônico serão os primeiros e maisduramente atingidos pela vingança cega da natureza.”6

Por todas estas razões, parece-me, que esta temáticada preservação do meio ambiente, merece toda anossa atenção, reflexão e preocupação!

NOTAS1LAGO, Antônio e PÁDUA, A. José. O que é

Ecologia. SP: Primeiros Passos, Círculo do Livro,1984, p. 43.

2 THOMAS, Keith. O Homem e o Mundo Natural.SP: Cia. Letras, 2001, p. 250.

3 Idem, p.286.4 CAVALCANTI, Clóvis. Desenvolvimento e

Natureza: Estudos para uma Sociedade Sustentável. SP:Cortez Editora, 1995, p.298.* O grande problema oriundo do uso de insumosquímicos nas plantações é o seu efeito dedesequilíbrio. Venenos com o DDT, entre outros,muito usados nas plantações trazem conseqüênciasmuito graves. Primeiramente por serem produtosmuito resistentes. E segundo, por se espalharemfacilmente pelo solo, ar, água e através dos seresvivos. A respeito comenta David Burnie: “Umadesvantagem dos pesticidas é o seu efeito metralhadora. Nahora do ataque, eles matam tanto os mocinhos – predadoresnaturais das pragas – quanto os bandidos. Outro problemaé que encorajam ativamente o desenvolvimento de resistênciaaos seus efeitos(....) Nas populações de pragas, é provável quealguns tenham genes que forneçam proteção natural contradeterminado pesticida; caso este pesticida seja usado comfreqüência, os indivíduos sem resistência morrem enquanto osoutros se multipliquem”. Burnie, David Fique por Dentroda Ecologia, Cosac e Naify, SP, 2001, p.100.

5 Revista Veja, Editora Abril, Ed. 1696, nº15,Abril de 2001, p.94 e 95.

6 Revista Carta Capital, 3 de Março de 2004,Ano X, nº 280, p.46 e 52.

João Kruger

Professor de Realidade Brasileira e Cultura Políticana FACOM-FAAP. Bacharel em História pelaUniversidade Federal de Mato Grosso. Mestre eDoutor em História pela PUC-SP.

Page 79: Crise de credibilidade da propaganda
Page 80: Crise de credibilidade da propaganda

FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADO

Foi instituída em 1947

pelo Conde Armando

Alvares Penteado. Em

seu testamento, legou

todos os bens para a

Fundação, que deve-

ria ter como objetivo

amparar, fomentar e

desenvolver as artes

plásticas e cênicas,

a cultura e o ensino.

Rua Alagoas, 903 cep 01242-902

tel. (11) 3662-7000 fax. (11)3662-7116

www.faap.br