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ALAN NARDI DE SOUZA CRIME E CASTIGO: A CRIMINALIDADE EM MARIANA NA PRIMEIRA METADE DO SCULO XIX Juiz de Fora 2007

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ALAN NARDI DE SOUZA

CRIME E CASTIGO: A CRIMINALIDADE EM MARIANA NA PRIMEIRA

METADE DO SÉCULO XIX

Juiz de Fora

2007

UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

CRIME E CASTIGO: A CRIMINALIDADE EM MARIANA NA PRIMEIRA

METADE DO SÉCULO XIX

Dissertação apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em História como

requisito parcial à obtenção do título

de mestre em História por ALAN

NARDI DE SOUZA Orientador: Prof. Dr. Angelo Alves Carrara

Juiz de Fora

2007

Dissertação defendida e aprovada, em ____ /____ /______ , pela banca constituída por: __________________________________________

Presidente: Profª. Dra. Andréa Lisly Gonçalves __________________________________________ Titular: Prof. Dr. Marco Antonio Cabral dos Santos __________________________________________ Orientador: Prof. Dr. Angelo Alves Carrara

Para Keli, Maria Eliza, Nair e Ana Cláudia,

as pessoas mais importantes da minha vida.

E à memória de meu pai João Batista.

AGRADECIMENTOS

A realização deste trabalho não seria possível sem a ajuda daqueles que me acompanharam e

me deram força nos momentos mais difíceis passados durante o mestrado. Agradeço

primeiramente a minha mãe pelo apoio e incentivo dados nas horas de incerteza e às tantas

vezes que me ajudou na quantificação das fontes primárias. À minha querida avó Nair e a

minha irmã Ana Cláudia obrigado pelo carinho. Agradeço ao meu sogro Arnaldo e minha

sogra Rosi pela amizade. Agradeço do fundo do coração a todos os amigos que torceram por

mim ao longo desta caminhada. Às amigas Sônia e Karine meu agradecimento pela ajuda com

o abstract. A minha professora e amiga Edna minha eterna gratidão. Aos professores membros

da banca examinadora Andréa Lisly e Marco Cabral meu obrigado pelas críticas e sugestões.

Ao meu orientador Angelo Alves Carrara agradeço o apoio, a amizade e a confiança.

Agradeço também aos funcionários do Arquivo da Câmara Municipal de Mariana e da Casa

Setecentista de Mariana. À Capes agradeço a bolsa que me foi concedida. Por último e longe

de ser menos importante agradeço à minha amada esposa Keli pelo amor e companheirismo

demonstrados em todos os momentos.

Uma rua muito mal calçada nos levou ao Largo da Cadeia, em cujo centro ainda se ergue o pelourinho dos tempos coloniais, o primeiro que vi no Brasil. Mostra os buracos, pelos quais os criminosos eram amarrados, e tem no alto o globo e a coroa, a espada e a balança, assim como os ganchos de ferro em que eram suspensos os membros dos condenados. A cadeia, que é também a sede do governo municipal, é um prédio esquisito, atarracado, velho, com uma entrada complicada, curiosamente pintada, e alguns soldados pretos estavam de guarda.

Richard Francis Burton

ABSTRACT

The present paper shows off the dynamics of criminality in Minas Gerais in the first half of

19th century. What is the number of registered prisoners by jail administration in that period?

How many of them were men? How many women? How many slaves? What were the

principal crimes committed? Where the crime prevailed, at the city or at the district? All

questions are presented along the research. The view of Historiography about the violence and

the social control, the actions of House of Chamber and Public Chain of city of Mariana, a

wide qauntification of information about jail population of referred Institution, the peculiarity

that composed the team of mineira society in its regards to Justice and the judicial structure of

period are approached questions. For that contract job was utilized the term of prison, the

warrants of loose, the term of prison habit and tonsure, the crime-process, and reports of

president and vice-president of province. From these data begotten was possible the

approximation with the environment lively in the period by transgressors of law and by

responsible in doing to fulfill it.

RESUMO

O presente trabalho destaca a dinâmica da criminalidade em Minas Gerais na primeira metade

do século XIX. Qual o número de presos registrados pela administração carcerária no

período? Quantos destes eram homens? Quantas eram as mulheres? Quantos eram escravos?

Quais eram os principais crimes cometidos? Onde o crime prevalecia, na sede ou nos

distritos? Todas são questões apresentadas ao longo da pesquisa. A visão da historiografia

sobre a violência e o controle social, as ações da Casa de Câmara e Cadeia Pública da cidade

de Mariana, uma ampla quantificação das informações sobre a população carcerária da

referida instituição, as especificidades que compunham o quadro da sociedade mineira em sua

relação com a Justiça e a estrutura judiciária do período são questões abordadas. Para tal

empreitada foram utilizados os assentos de prisão, os alvarás de soltura, os autos de prisão

hábito e tonsura, os processos-crimes e os relatórios de presidente e vice-presidente de

província. A partir dos dados gerados foi possível a aproximação com o ambiente vivido no

período pelos infratores da lei e pelos responsáveis em fazer cumpri-la.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

1 FRONTARIA DA CASA DE CÂMARA E CADEIA DE MARIANA 34

2 PLANTA DA CASA DE CÂMARA E CADEIA DE MARIANA 35

3 A INCIDÊNCIA DE CRIMES NO TERMO DE MARIANA 51

4 OS CRIMES MAIS COMETIDOS AO LONGO DOS ANOS 58

5 A PRISÃO POR DÍVIDAS AO LONGO DOS ANOS 61

6 OS CRIMES COMETIDOS NA CIDADE E NOS DISTRITOS 64

7 HOMENS E MULHERES PRESOS NA CADEIA PÚBLICA 68

8 A CONDIÇÃO DOS PRESOS DA CADEIA PÚBLICA 72

9 OS CRIMES COMETIDOS PELOS ESCRAVOS 75

10 A COR DA PELE DOS PRESOS DA CADEIA PÚBLICA 78

11 TEMPO EM QUE OS PRESOS PASSAVAM ENCARCERADOS 83

LISTA DE TABELAS

1 OS CRIMES COMETIDOS NO TERMO DE MARIANA 37

2 O NÚMERO DE CRIMES COMETIDOS AO LONGO DOS ANOS 86

3 A APLICAÇÃO DOS AUTOS DE PRISÃO HÁBITO E TONSURA 120

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 01 1 CRIMINALIDADE E HISTORIOGRAFIA 04 2 A CASA DE CÂMARA E CADEIA DE MARIANA 28

2.1 Um breve histórico 28 2.2 Os crimes e os presos: uma análise quantitativa das fontes 36

2.2.1 As estatísticas criminais 37 3 RELATOS 87 4 NAS MALHAS DA JUSTIÇA 104

4.1 As Ordenações Filipinas e a juridicização da consciência 104 4.2 A �estrutura� judiciária 110

CONCLUSÃO 123 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 125 REFERÊNCIAS DOCUMENTAIS 131

12

INTRODUÇÃO

A possibilidade de entender uma determinada coletividade a partir de seus crimes

nos permite um olhar mais atento sobre sua dinâmica e complexidade, além de nos possibilitar

o contato com pessoas que até pouco tempo eram deixadas de lado pela historiografia. Nosso

objetivo não é trabalhar com os excluídos, se é que esta categoria tem validade teórica;

pessoas são excluídas de diversas maneiras, de determinadas relações sociais, mas o que está

em questão aqui é o termo excluído, pois acreditamos em uma variação considerável na

condição social dos indivíduos presos entre os anos de 1800-1830 na Cadeia Pública de

Mariana. Buscou-se então a partir da documentação referente à Cadeia verificar quem eram

realmente as pessoas que infringiam a lei e, quando possível, acabavam sendo presas.

Com a nova maneira de se pensar a História, praticada pelos Annales, os campos de

trabalho e os objetos de estudo para o historiador se multiplicaram. A partir de 1960

especialmente, a história social se dedicou mais intensamente a pensar os grupos sociais e os

processos determinantes na história, relacionando-os com o estudo dos comportamentos e da

dinâmica social. Os estudos sobre os loucos, os pobres e os criminosos, por exemplo,

surgiram como a possibilidade de conhecer a fundo uma parcela da sociedade marginalizada

nos trabalhos historiográficos. A exclusão social no século XIV, os levantes religiosos na

França do século XVI, os motins de fome na Inglaterra do século XVIII, além da

criminalidade cotidiana, fizeram parte destes novos estudos. Compreender um pouco mais

esta parcela �esquecida� é buscar compreender a sociedade como um todo.

As fontes utilizadas nesta pesquisa foram basicamente a documentação da Cadeia

Pública de Mariana entre os anos de 1800-1830. A base dos dados foi composta pelos

assentos de prisão presentes no códice 167 do Arquivo Histórico da Câmara Municipal de

Mariana (AHCMM). Os assentos de prisão ou termos de prisão eram documentos que traziam

informações referentes à prisão de um determinado indivíduo. Além do nome do preso eram

informações constantes a data da prisão, o sexo, a cor da pele, a localidade de origem do preso

e o crime cometido. Os autos de prisão hábito e tonsura, também presentes no códice 167 do

AHCMM, foram utilizados para complementar essa base de dados. Os autos de prisão hábito

e tonsura apresentavam as características físicas do preso e suas vestimentas no momento da

13

prisão. Os alvarás de soltura presentes nos códices 355 e 584 do AHCMM também compõem

a base de dados, na medida em que trazem além de algumas informações sobre o preso, a data

em que este foi solto. Os relatórios de Presidente e Vice-Presidente de Província foram

importantes fontes para verificarmos de que maneira a administração local via o dia a dia da

sociedade do século XIX. É válido lembrar que os relatórios abordam um período posterior ao

proposto neste estudo, se iniciando no ano de 1837, mas o diálogo com esta fonte se torna

muito interessante. Os processos-crime também foram utilizados para verificarmos as

especificidades de alguns casos. As referências documentais se encontram pormenorizadas no

final deste trabalho.

Primeiramente foi montado um banco de dados a partir das informações contidas nos

assentos de prisão do códice 167 do AHCMM. Esse banco de dados inicial era composto de

425 assentos entre os anos de 1800 e 1830. A quantidade de assentos não era a mesma da de

presos porque alguns destes presos apareciam mais de uma vez na contabilização, sendo por

falha da administração da Cadeia ou por reincidência criminal. Este banco de dados continha

o nome do preso, a localidade de origem do mesmo, o sexo, a cor da pele, o crime cometido e

a data da prisão.

Posteriormente, cruzamos estas informações com os alvarás de soltura dos códices

355 e 584 do AHCMM chegando, portanto, a data da soltura de muitos desses presos.

Infelizmente, não foi possível encontrar os alvarás de todas as pessoas liberadas da Cadeia.

De posse das datas das solturas foram acrescentadas outras duas informações naquele banco

de dados inicial: a data da soltura e o tempo em que este preso passou encarcerado.

Agregamos a este banco de dados mais uma fonte, o auto de prisão hábito e tonsura.

Apenas 45 desses assentos foram encontrados no códice 167 do AHCMM, mas enriqueceram

imensamente a base de dados na medida em que traziam informações completas sobre a

característica física dos presos e as vestimentas que estes usavam quando foram detidos.

Foram utilizados também como fonte para essa pesquisa os processos-crime

presentes no Arquivo Histórico da Casa Setecentista. Apenas dez foram descritos. Talvez, este

número reduzido parece irrelevante, mas, quando as informações destes processos-crime são

cruzadas com o restante do banco de dados diversos apontamentos de ordem qualitativa

podem ser feitos.

A obtenção de informações oficiais e de autoridades sobre a condição das Cadeias de

Minas no século XIX foi obtida graças aos relatórios de presidente e vice-presidente de

província. Foram observadas nos relatórios quaisquer informações que se referissem às

Cadeias. A partir destas informações o banco de dados pode ser interpretado.

14

Esta pesquisa buscou utilizar o aparato da história serial relacionando os dados

obtidos a informações qualitativas. As estatísticas nos ajudam exatamente a pensar no

contexto histórico da região estudada, sem deixar os aspectos qualitativos de lado. A

particularidade das ocorrências criminais foi pensada e analisada para que a pesquisa se

tornasse enriquecedora. De acordo com Carlo Ginzburg, em uma análise serial corre-se o

risco de perder a complexidade das relações que ligam um indivíduo a uma sociedade

determinada. É este risco a que se referiu Ginzburg que buscamos não correr na pesquisa.

Uma análise serial atenta permitiu muitas possibilidades. Os estudos de história da família,

com ligação estreita à demografia histórica, procuram mesclar a utilização de fontes

quantitativas e qualitativas, desde que estas últimas sejam circunscritas em um contexto

específico tornando-se representativas. O nome dos presos nos permitirá a análise das

particularidades das ocorrências. Uma metodologia de pesquisa que se baseia na história

serial, mas que está atenta ao individual é a proposta do trabalho que se segue.

No primeiro capítulo deste trabalho buscou-se apresentar a visão da historiografia a

respeito da criminalidade, da violência e do controle social no Brasil e em outros países. No

segundo capítulo foi traçado um breve panorama das ações da Casa de Câmara e Cadeia

Pública da cidade de Mariana nos primeiros trinta anos do século XIX, além de uma ampla

quantificação das informações sobre a população carcerária da referida instituição. No

terceiro capítulo, intitulado Relatos, buscou-se verificar, a partir dos processos-crime, as

especificidades que compunham o quadro da sociedade mineira do século XIX em sua relação

com a Justiça. Por fim, no quarto e último capítulo é apresentada a estrutura judiciária do

período e a maneira que essa Justiça aplicava-se ao cotidiano dos mineiros.

15

CAPÍTULO 1: CRIMINALIDADE E HISTORIOGRAFIA

O estudo da criminalidade e da violência tem ganhado a cada dia maior destaque

entre os historiadores que buscam entender a dinâmica do controle social em diversos países.

Entender de que maneira o controle social ocorreu ao longo dos anos nos permite visualizar a

história do sistema prisional e a metodologia empregada no tratamento dos encarcerados. O

estudo do controle social ganha força, inicialmente, com os sociólogos. Apesar da visão e das

intenções distintas, os trabalhos realizados inicial e incisivamente na Sociologia são

necessários ao historiador que procura se aventurar nesse campo de pesquisa.

Na Sociologia, a expressão �controle social� parece ser definida como o conjunto dos

recursos materiais e simbólicos de que uma sociedade dispõe para assegurar a conformidade

do comportamento de seus membros a um conjunto de regras e princípios prescritos e

sancionados. 1 Segundo Marcos César Alvarez, tal definição sintética, pouco contribui no

desenvolvimento das diversas questões que estariam envolvidas nessa discussão, inclusive

porque a noção parece sobrepor-se a outras, como as de poder ou de autoridade.

Émile Durkheim, já pensando na imposição do poder e da autoridade, apresenta

formulações clássicas acerca do problema da ordem e da integração social. O autor se detém

igualmente em fenômenos como o crime e a pena, que dizem respeito aos mecanismos

empregados pela sociedade no momento em que alguém desobedece a normas sociais pré-

estabelecidas e ameaça a ordem social.

O crime, conforme mostramos alhures, consiste num ato que ofende certos sentimentos coletivos dotados de uma energia e de uma clareza particulares. Para que, numa sociedade dada, os atos reputados criminosos pudessem deixar de ser cometidos, seria preciso que os sentimentos que eles ferem se verificassem em todas as consciências individuais sem exceção e com o grau de força necessário

para conter os sentimentos contrários. Ora, supondo que essa condição pudesse

efetivamente ser realizada, nem por isso o crime desapareceria, ele simplesmente mudaria de forma; pois a causa mesma que esgotaria assim as fontes da criminalidade abriria imediatamente novas. (DURKHEIM, 1999. p. 68) 2

1 ALVAREZ, Marcos César. Controle Social: notas em torno de uma noção polêmica. São Paulo em

Perspectiva, 18 (1): 168-176, 2004. p. 169. 2 DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Coleção Tópicos)

16

É necessário atentar que as reflexões de Durkheim inscreviam-se no contexto

histórico da construção da Terceira República, que buscava justamente rearticular um

consenso na sociedade francesa num período social e politicamente conturbado. Por isso, para

Durkheim, se o crime ofendia certos sentimentos coletivos dotados de uma energia e de uma

clareza particulares, a pena nada mais seria que a reação coletiva que, embora aparentemente

voltada para o criminoso, visa na realidade reforçar a solidariedade social entre os demais

membros da sociedade e, consequentemente, garantir a integração social. 3

A expressão �controle social� foi posteriormente desenvolvida pela Sociologia norte-

americana, sobretudo no século XX. Em autores como George Herbert Mead e Edward

Alsworth Ross, o termo passa a ser utilizado para apreender sobretudo os mecanismos de

cooperação e de coesão voluntária da sociedade norte-americana. Ao invés de pensar a ordem

social como regulada pelo Estado, os autores estavam mais interessados em encontrar na

própria sociedade as raízes da coesão social. 4

Após a Segunda Guerra Mundial, no entanto, a expressão �controle social� começa a

apontar para uma direção oposta, voltando-se para o âmbito da história, passando a ser vista

como o resultado de práticas de dominação organizadas pelo Estado ou pelas classes

dominantes. Nos anos 60, ainda seguindo a perspectiva da história, começam a surgir

pesquisas empíricas sobre prisões, asilos, hospitais, etc. Autores como Thompson e Foucault,

por exemplo, surgem, com uma perspectiva mais crítica acerca dos mecanismos de controle

social. 5

Ao longo das discussões em torno da noção de controle social desde o final do século

XIX até o final do século XX, a teoria social parece ter se limitado a reproduzir o diagnóstico

de Max Weber acerca do processo de racionalização da modernidade como desenvolvimento

incontornável da instituição prisional. No final do século XX essa noção encontrou amplo

descrédito, pois os estudos a respeito do controle social privilegiavam o papel do Estado e das

práticas formalizadas de controle social em detrimento das práticas informais, mais próximas

de grupos sociais específicos. 6

Michel Foucault foi um dos autores que mais influenciou os debates recentes em

torno da temática do controle social. Ele acreditava que as práticas de poder funcionam como

produtoras de comportamentos, de forma de saber e de formas de subjetividade. O autor

perseguia aspectos da vida social que o processo de racionalização da modernidade excluía ou

3 ALVAREZ, op. cit., p. 169. 4 Ibid. 5 Ibid. 6 Ibid.

17

tomava como desvios a serem normalizados. Na obra Vigiar e Punir, a analise de Foucault irá

desconstruir tanto a concepção liberal, que vê no nascimento da prisão moderna um avanço

em termos de humanização das práticas penais em relação às formas brutais de punição da era

pré-moderna, quanto à concepção marxista, que vê as transformações nas penalidades apenas

como um mero epifenômeno do modo de produção. Foucault abre espaço para interpretações

multidimensionais, ao articular as práticas de punição como tecnologias de poder complexas

às demais práticas sociais.

Segundo Foucault, as práticas disciplinares da prisão espalham-se por toda a

sociedade, desde as fábricas, até as escolas e hospitais. O suplício passa a ser entendido como

um procedimento técnico e ritual. O poder disciplinar visava o adestramento dos indivíduos,

se utilizando de um olhar hierárquico e de uma sanção normalizadora. A prisão passava a ser

então, a pena por excelência. A principal função da mesma era gerir as ilegalidades das

classes dominadas, criando um meio delinqüente fechado, separado e útil em termos políticos.

O historiador que busca discutir a questão do controle social pode e deve observar os

estudos realizados pela Sociologia, verificando seus méritos e falhas e atentando para as

lacunas deixadas por tais estudos. As novas pesquisas nessa área tendem a destacar a

multidimensionalidade que o tema exige, tornando mais abrangente o campo de análise.

Assim como estudo do controle social, o interesse contemporâneo pelo fenômeno da

violência coletiva nas sociedades pré-industriais não apenas consolidou um rico campo de

análise histórica, como acabou por notabilizar autores e trabalhos que o tomaram como seu

objeto. Ao analisarmos a produção historiográfica sobre violência e criminalidade no Brasil,

encontramos uma gama enorme de trabalhos referentes ao final do século XIX e início do

século XX, portanto, em um contexto de pós-escravidão e de modernização. O período

colonial também desperta a atenção dos pesquisadores, principalmente quando a discussão

atinge a região das Minas, no auge da mineração. Pesquisas privilegiarão a ação coletiva da

multidão nas sedições, revoltas e motins durante os séculos XVII e XVIII, sendo que outros

estudos darão conta da criminalidade interpessoal no século XVIII. Quando o recorte espaço

temporal passa a ser a Minas Gerais da primeira metade do século XIX, poucos são os

trabalhos desenvolvidos que discutem especificamente o controle social, a criminalidade e a

violência dos povos.

Pensando o século XVIII, Carla Maria Junho Anastasia acredita que uma visão

particular dos processos globais de acumulação primitiva de capital, além de levar à

superestimação do papel do comércio colonial para as economias metropolitanas, acarretando

privilégio quase que exclusivo do viés circulacionista nos estudos sobre as colônias,

18

menospreza a lógica peculiar da sociedade colonial que, muitas vezes não foi exclusivamente

determinada pela política colonizadora metropolitana. 7 �Superar a prevalescência da lógica

externa, calcada na hegemonia do viés circulacionista, buscando um equilíbrio entre as

decisões da metrópole e as respostas da colônia, é condição decisiva para se estudar a

imprevisibilidade da ordem social mineira no século XVIII�. (ANASTASIA, 1998. p. 11) 8

De acordo com Anastasia, apesar das reiteradas medidas para controlar os moradores

das Minas, foi impossível para a Coroa Portuguesa, nas primeiras décadas de vida da

Capitania, tornar a ordem social previsível, em razão da imprevista capacidade dos homens

poderosos da região de concentrar recursos de poder. Segundo documento utilizado por ela,

de finais do século XVII, início do XVIII, parecia ser impossível controlar a população das

Minas. Por ele, comunicava-se ao Rei que não havia meios de impedir a desobediência dos

vassalos na Capitania, em razão da dificuldade de se encontrar instrumentos eficazes para

submeter a população: �Com preceitos? Não obedecem. Com força? A maior não basta. Com

indústrias? Não se descobrem eficazes, porque a qualquer supera a sua malícia�. 9

Para a autora, nas áreas excluídas do circuito direto do capital mercantil e naquelas

que, embora dedicadas à extração do ouro, se caracterizavam como de fronteira, ou tiveram

um povoamento muito peculiar, ficando à margem do controle do poder público, o grau de

violência foi extremamente alto. Nelas, foi facultado aos proprietários o exercício pleno da

dominação ao nível interno, ao que se somou a ausência de mecanismos eficazes de

subordinação externa. Esta situação engendrou a consolidação de pólos de poder privado que

passaram a colocar em xeque as regras do jogo determinadas para arbitrar as relações entre

colônia e metrópole em momentos de colapso de formas acomodativas. Nas áreas

mineradoras, nas quais o controle político-administrativo se cumpriu de forma mais efetiva, o

rompimento da acomodação foi, em geral, resultado do constrangimento pela Coroa de

interesses dos poderosos e/ou dos conflitos intra-autoridades. 10

Anastasia concorda que a viabilidade da manutenção das formas acomodativas entre

os atores coloniais e os metropolitanos dependeu, entre outras coisas, da existência de um

consenso dos magistrados em torno das políticas determinadas pela Coroa para a Capitania. O

colapso destas formas acomodativas em razão de conflitos intra-autoridades gerou

movimentos nos quais se explicitava o desrespeito às regras estabelecidas para arbitrar as

7 ANASTASIA, Carla Maria Junho. Vassalos Rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira metade do

século XVIII. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 1998. 8 Ibid. p. 11. 9 Ibid. p. 13. 10 Ibid. p. 14.

19

relações entre Colônia e Metrópole. De acordo com Anastasia, no �mundo violento� das

Minas, a viabilidade da manutenção das formas acomodativas entre os atores políticos

coloniais e os metropolitanos dependeu: da preservação dos acordos firmados entre a

população e as autoridades, relativos aos limites da cobrança de impostos, à distribuição de

terras, à garantia de abastecimento dos núcleos urbanos, enfim, da preservação dos acordos

que estipulavam tanto procedimentos justos por parte da Coroa quanto obediência dos colonos

a Portugal, uma vez mantidas as regras do jogo nas áreas onde o controle metropolitano era

eficaz; da capacidade da Metrópole de resguardar a autonomia de certos setores da população

da Capitania, inseridos em áreas de povoamento peculiar ou de fronteira; e do respeito das

autoridades portuguesas pelos interesses dos poderosos e do consenso dos magistrados em

torno das políticas apresentadas pela Coroa para a Capitania. 11

O colapso da acomodação derivado do aumento de impostos, estabelecimento de

contratos de gêneros de primeira necessidade, abuso de poder pelas autoridades etc, tomou a

forma de motins reativos, marcados pela tradição, dentro das regras do jogo colonial. Segundo

Anastasia o rompimento de acordos relativos à �economia moral� dos habitantes da Capitania

gerou revoltas inscritas dentro das regras do jogo colonial, movimentos reativos que

buscavam retornar às formas acomodativas anteriormente estabelecidas. Estes conflitos têm

sido tradicionalmente denominados movimentos de contestação e sua ocorrência foi

delimitada temporalmente na primeira metade do século XVIII. Nestas revoltas, a consciência

do �viver em colônias� estaria ausente. Neste mesmo registro, os movimentos de oposição,

por sua vez, refletiriam a consciência adquirida pelos colonos em virtude, principalmente, das

influências iluministas que teriam permitido o desvelamento das estruturas metropolitanas de

dominação, baseadas nos ditames do pacto colonial. A característica mais fundamental destes

movimentos teria sido a tentativa de romper com as disposições do monopólio comercial e,

por conseqüência, com a dominação portuguesa. 12

De acordo com João Pinto Furtado, a aplicação do conceito de economia moral para

uma sociedade escravista parece questionável, visto ser esta uma realidade diversa da Europa

no Antigo Regime à qual o conceito parece se ajustar. Segundo o autor, parece existir uma

diferença sensível nas administrações governamentais das Minas no século XVIII. Em

11 Ibid. p. 23. 12 Ibid. p. 139.

20

diferentes momentos o tratamento para com os habitantes desta região conflitava, sendo, os

povos, ora tratados com respeito ora com desdém. 13

Legalidade, legitimidade e protesto popular; tributo justo, injusto ou aviltante; métodos conflitantes de administração e cobrança de direitos da Coroa; o próprio

status da colonização no limiar do século XVIII; todos são temas que emergem a

partir das instruções de 1788. Incipientemente, elas expressam e traduzem, mais do

que uma simples iniciativa do governo, um conflito visceral que contrapôs, no

interior da Monarquia portuguesa, grupos políticos, projetos diferenciados e

personagens ávidos por conquistar algumas relevantes posições de poder. A

Monarquia portuguesa esteve, por todo o século XVIII, às voltas com a

necessidade de redefinição do formato de seu sistema colonial. (FURTADO, 2005.

p. 405) 14

Para Furtado, duas concepções básicas pareciam se rivalizar no que tange à definição

das linhas gerais da administração colonial, sempre resguardados os interesses da Coroa. Uma

delas era representada por gestores como D. Luís da Cunha, o conselheiro Antonio Rodrigues

da Costa, o duque Silva-Tarouca, o próprio Marquês de Pombal e, mais tarde, D. Rodrigo de

Souza Coutinho. Fundamentalmente, não obstante reafirmassem incontestavelmente a

autoridade da Coroa sobre seus domínios, esses gestores pareciam mais sensíveis à percepção

da relativa complementaridade de interesses entre metrópole e colônia que, em certas

relações, marcham unidas. Estes governadores acreditavam mais na contigüidade que na

ruptura, reconhecendo assim alguns direitos dos colonos, e aplicando a astúcia com a

autoridade para manter a obediência dos povos ao rei. 15

Bastante diversa é a outra linha de intervenção nos assuntos administrativos

coloniais, da qual o conde de Assumar, nas primeiras décadas do século, e Martinho de Melo

e Castro, nas últimas, seriam os maiores expoentes. Ao olhar desses administradores, os

colonos são tidos como insubmissos desleais e perigosos. O uso de todo o peso da autoridade

metropolitana, e da força, nesse contexto, é tido como recurso político desejável, uma vez que

só por meio da autoridade se anulam e minimizam possíveis conflitos de interesses. 16

De acordo com Furtado, a região das Minas tornou-se, ao longo de todo o século

XVIII um grande foco de agitação social e política. Nesse contexto, disseminavam-se idéias

que iam desde as iniciais demandas mais localizadas quanto ao afrouxamento da presença

metropolitana até a propaganda de inspiração anticolonial. Tais idéias fermentavam em meio

13 FURTADO, João Pinto. �Viva o rei, viva o povo, e morra o governador�: tensão política e práticas de

governo nas Minas do Setecentos. In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Modos de

Governar: idéias e práticas políticas no Império Português, séculos XVI a XIX. São Paulo: Alameda, 2005. 14 Ibid. p. 405. 15 Ibid. 16 Ibid. p. 407.

21

a uma massa populacional heterogênea e atingiam em boa medida algumas parcelas dos

setores menos favorecidos, encontrando apoio também das classes mais favorecidas, mesmo

que por interesses diversos. 17

Maria Verônica Campos, ao estudar a região de Goiás no século XVIII afirma que a

ação eficiente da administração Real na nova região mineradora foi impedida devido a dois

fatores primordiais: primeiramente, o tempo despendido pela Coroa para se impor em cada

novo pólo minerador dependeu do poder do descobridor da lavra, da sua maior ou menor

força para reunir agregados, escravos e aliados, assim como da existência ou não da

concorrência entre o descobridor e outros homens poderosos; em segundo lugar, outro fator

que interferiu na ação régia foi a disputa de jurisdição sobre o novo descobrimento

patrocinada pelos governadores de capitanias limítrofes aos novos pólos de mineração. 18

Segundo a autora, os motins ocorridos na região não fugiam ao padrão das disputas

entre poderosos, inclusive o conflito em torno da memória do pioneiro no descobrimento, a

eleição de autoridades, a redação de termos de reivindicações e a assinatura de termo de

conduta. Distúrbios ainda maiores vieram com a mudança na política de tributação do ouro.

As revoltas ocorreram principalmente pelo aumento das taxas relativas à extração do ouro e à

administração, irregular para os colonos, de alguns funcionários da Coroa. Esta se valia de ter

aplicado a cobrança do quinto na região das Minas, a mais rica e populosa de todas as regiões

mineradoras, para que servisse de exemplo aos demais distritos auríferos.

Os conflitos descritos poderiam ser classificados como típicos de um contexto de expansão de fronteira, em que potentados pioneiros na abertura de uma nova frente

de colonização, líderes de correntes povoadoras diversas, autoridades nomeadas

pela Coroa instaladas em jurisdições limítrofes, comerciantes ligados a praças

comerciais divergentes, religiosos e seculares defensores de suas províncias e

bispados entravam em disputa aberta pelo poder, pela partilha de lavras, pelas rotas comerciais, pela arrecadação de rendas e tributos, criando grande instabilidade.

(CAMPOS, 2005. p. 354) 19

Para Campos, nas regiões de fronteira, era utilizada a dupla jurisdição, pois a

presença de autoridades régias era pequena e instável. Um motim podia representar uma

vitória temporária, mas depois, a Coroa retornava sua posição de centralização administrativa.

Todas as áreas rebeladas acabavam acatando as ordens vindas de Lisboa. Os colonos se

17 Ibid. p. 409. 18 CAMPOS, Maria Verônica. Goiás na década de 1730: pioneiros, elites locais, motins e fronteira. In:

BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Modos de Governar: idéias e práticas políticas

no Império Português, séculos XVI a XIX. São Paulo: Alameda, 2005. 19 Ibid. p. 354.

22

aproveitam de suas mercês, mais nunca na proporção desejada, visto que a Coroa soube dosar

muito bem suas concessões de acordo com seus interesses fiscais e administrativos, o

potencial de revolta dos governados, a importância econômica da região e os serviços

prestados pela coletividade ao rei.

A análise de Maria Verônica Campos torna-se ainda mais interessante quando ela

pensa a trajetória dos motins ocorridos em Goiás destacando a falsidade ideológica e os

papéis forjados como forma de ascensão social ou de escapar das malhas da justiça. Outro

aspecto evidente nos motins é a importância da história de famílias para a compreensão da

política no Império Português. A família era o centro da produção, do consumo e de relações

políticas, como agregadora de aliados e dependentes mais ou menos favorecidos

economicamente. Uma família numerosa antiga e rica cujos membros ocupavam posição

proeminente era essencial para uma boa colocação, fosse na corte fosse nas colônias. 20

E. P. Thompson, na obra Costumes em comum, aborda o papel da tradição nas ações

do povo frente às medidas políticas e administrativas por parte de uma liderança

governamental ou local que rompessem com a tradição popular. Segundo Thompson é

possível detectar em quase toda ação popular do século XVIII uma noção legitimadora. Por

noção de legitimação, Thompson entende que os homens e as mulheres da multidão estavam

imbuídos da crença de que estavam defendendo direitos ou costumes tradicionais; e de que,

em geral, tinham o apoio do consenso mais amplo da comunidade. De vez em quando, esse

consenso popular era endossado por alguma autorização concedida pelas autoridades e o mais

comum era o consenso ser tão forte a ponto de passar por cima das causas do medo ou da

deferência. 21

Em A economia moral da multidão inglesa no século XVIII Thompson destaca a

reação da população frente às mudanças na venda dos grãos, mudanças que iam contra a

tradição popular. O motim da fome na Inglaterra do século XVIII era uma forma altamente

complexa de ação popular direta, disciplinada e com objetivos claros. É certamente verdade

que os motins eram provocados pelo aumento dos preços, por maus procedimentos dos

comerciantes ou pela fome, mas essas queixas operavam dentro de um consenso popular a

respeito do que eram práticas legítimas e ilegítimas na atividade do mercado, dos moleiros,

dos que faziam o pão etc. Isso, por sua vez, tinha como fundamento uma visão consistente

tradicional das normas e obrigações sociais, das funções econômicas peculiares a vários

20 Ibid. p. 356. 21 THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia

das Letras, 1998. p. 152.

23

grupos na comunidade, as quais, consideradas em conjunto, constituem a economia moral dos

pobres. O desrespeito a estes pressupostos morais, tanto quanto a privação real, era o motivo

habitual para a ação direta. 22 �O notável sobre essas insurreições é, primeiro, a sua disciplina,

e, segundo, o fato de mostrarem um padrão de comportamento cuja origem devemos buscar

centenas de anos antes; um padrão que se torna, e não menos, sofisticado no século XVIII;

que se repete aparentemente de forma espontânea, em diferentes partes do país e depois da

passagem de muitos anos tranqüilos�. (THOMPSON, 1998. p. 176) 23

Seguindo a lógica dos motins e das manifestações populares, Luciano Raposo de

Almeida Figueiredo discute a relação dos governadores com os colonos quando o governo

tenta implementar uma maior centralização do poder. Para o autor, os colonos responderam

aos prejuízos que a centralização representava para sua autonomia através da deposição e

expulsão dos governadores e vice-reis. 24

No longo percurso das alterações de vassalos no Império, a continuidade e o

enrijecimento da política colonizadora no século XVIII, combinados com as

experiências políticas de resistência que vinham se concentrando no eixo Atlântico,

tornavam Minas Gerais uma ameaça, sobretudo diante da emergência do

imaginário político nativista. Foi nas Minas que mais se avizinhou a �terceira

espécie de perigo� a que estavam sujeitos todos os Estados, quando as ameaças das

invasões inimigas se juntavam às insatisfações internas, através da �vontade, e da

força interna dos mesmos vassalos e naturais�. (FIGUEIREDO, 2001. p. 241) 25

De acordo com Figueiredo, os vassalos do Rei assistiam diariamente a seus direitos

naturais serem desrespeitados. Tais circunstâncias produzem uma polêmica vigorosa, que

cruza os mares e os séculos, em torno da qualidade das relações que uniam soberanos e

vassalos. Ela será delimitada por discursos de toda a sorte regidos pela cultura letrada e suas

estratégias persuasórias, em que súditos na América Portuguesa afetam padecimentos aos mil:

comedimento da liberdade régia em relação ao desprendimento da conquista, despotismo dos

governos locais, dificuldade de acesso aos cargos da república, desordens na administração do

patrimônio régio, violação do bem comum e outros. Essa produção discursiva, contudo

22 Ibid. p. 152. 23 Ibid. p. 176. 24 FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. O Império em apuros: notas para o estudo das alterações

ultramarinas e das práticas políticas no Império Colonial Português, séculos XVII e XVIII. In: FURTADO, Júnia Ferreira. Diálogos Oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império

Ultramarino Português. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. (197-254) 25 Ibid. p. 241.

24

conhecerá uma metamorfose significativa quando os apelos foram seguidos pela sublevação

dos povos, em rebeliões que explodiram com incomoda freqüência na América. 26

A ação violenta da população não se limitava a questões tributárias e administrativas.

Natalie Zemon Davis, por exemplo, discute a ação violenta da população nos levantes

religiosos do século XVI. Segundo a autora, os que participam de levantes religiosos tem seu

zelo suscitado pelo estado das relações dos homens com o sagrado. Na França, em meados do

século XVI, todas essas fontes de violência produziam muito, e às vezes é difícil distinguir

um oficial da milícia de um assassino e um soldado de um destruidor de imagens, mas não

obstante, há ocasiões em que é possível destacar para a observação uma multidão violenta

constituída com finalidades religiosas. 27

As multidões podiam defender a verdade e a purificação, mas havia um terceiro aspecto dos levantes religiosos � o político. E. P. Thompson mostrou como, no

levante contra o preço da comida no século XVIII, o comportamento das multidões

era legitimado por uma crença amplamente compartilhada de que assim agiam em

nome do governo. Se a justiça dos tempos de paz fracassava em seu dever legal de

garantir o suprimento alimentar, a multidão se encarregaria de implementar as

decisões [...]. (DAVIS, 1990. p. 136) 28

Davis comenta ainda alguns levantes referentes ao aumento dos preços dos cereais

em Lyon, citando autores que consideram os participantes dos levantes como �a escória do

populacho, sem ordem, sem freio, sem líder... uma besta de muitas cabeças... uma ralé

insana�, e das massas de Paris como �uma multidão ignorante, recolhida de todos os países...

governada pelos apetites dos que a incitam a extremos de raiva, à espera da oportunidade de

cometer qualquer tipo de crueldade�. 29

De acordo com Davis, essa visão é equivocada, e é possível ver essas multidões

sendo inspiradas por tradições políticas e morais que legitimam e até prescrevem sua

violência. Podem-se ver os integrantes de levantes urbanos não como uma massa miserável,

instável e sem raízes, mas como homens e mulheres que frequentemente têm certa posição em

sua comunidade, que podem ser artesãos ou algo melhor e que, mesmo quando pobres e não

qualificados, podem parecer respeitáveis para seus vizinhos de todos os dias. Por último, é

possível ver sua violência, não importa o quão cruel ela seja, não como casual e sem limites,

26 FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Narrativas das rebeliões: linguagem política e idéias radicais na

América Portuguesa moderna. In: Revista USP, São Paulo, n° 57, março-maio de 2003. (6-27) p. 07. 27 DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do Povo: Sociedade e Cultura no início da França Moderna. Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1990. (Coleção Oficinas da História). 28 Ibid. p. 136. 29 Ibid. p. 131.

25

mas dirigida a alvos definidos e escolhidos dentre um repertório de punições e formas de

destruição tradicionais. 30

Davis destaca os massacres religiosos, como o de são Bartolomeu em 1572, por

exemplo. Mas, mesmo no caso extremo da violência religiosa, as multidões não agem de

maneira impensada. Elas possuem, em certa medida, uma percepção de que o que estão

fazendo é legítimo, as ocasiões estão de algum modo relacionadas à defesa de sua causa e seu

comportamento violento possui certa estrutura. Mas os ritos de violência não são, em nenhum

sentido absoluto, um direito à violência. Segundo a autora eles apenas nos relembram que, se

tentarmos ampliar a segurança e a confiança no interior de uma comunidade, se tentarmos

garantir que a violência ali gerada tomará formas menos destrutivas e cruéis, então devemos

pensar menos a respeito de como pacificar os �desviantes� e mais em como mudar os valores

centrais. 31

A obra de George Rudé parece ser referência para todos os pesquisadores que

discutem os motins, as revoltas e as manifestações da multidão. Sua obra clássica A Multidão

na História 32 foi publicada pela primeira vez no ano de 1964 e ainda hoje permeia os

trabalhos que discutem a ação coletiva.

O marco temporal de Rudé, nesta obra, são os anos de 1730-1848. Segundo ele, neste

período já é possível sentir os efeitos das revoluções política e industrial na transformação das

velhas instituições, cortando as raízes da velha sociedade, modificando velhos hábitos e

modos de pensar, além da imposição de novas técnicas. Rudé menciona algumas inovações,

como as fábricas urbanas, as ferrovias, os sindicatos estáveis, um movimento trabalhista, as

idéias socialistas, a nova Lei dos Pobres e uma força policial na Inglaterra, que eram indícios

de que uma nova era havia surgido. 33

Rudé, ao discutir a composição da multidão nos motins e revoltas, se opõe a opinião

de alguns autores que acreditam que a multidão reduz seus elementos sadios e racionais a um

nível comum de animalidade e que ela tende a atrair tipos criminosos, degenerados, e pessoas

de instintos destrutivos. Segundo ele dificilmente se poderia negar que as condições de

comoção social nas quais os motins ocorreram proporcionaram oportunidades admiráveis para

os ladrões e os saqueadores se juntarem à agitação e, sob o disfarce do motim ou revolução,

fazer uma boa colheita. Mas na França, por exemplo, os que participaram dos motins e

30 Ibid. 31 Ibid. p. 156. 32 RUDÉ, George F.E. A Multidão na História: estudo dos movimentos populares na França e Inglaterra 1730-

1848. Rio de Janeiro: Campus, 1991. 33 Ibid. p. 03.

26

distúrbios pré-industriais foram, nas cidades, predominantemente os mestres de pequenas

oficinas, os lojistas, aprendizes, artesãos independentes, jornaleiros, trabalhadores, os pobres

da cidade; e, no campo, os vinicultores, pequenos camponeses proprietários, trabalhadores

sem terras e artesãos rurais. 34

A ação coletiva da multidão, como vimos foi amplamente discutida por diversos

autores em diversas localidades do mundo. Rudé, Thompson e Davis são alguns dos grandes

nomes que têm como objeto de estudo a ação popular coletiva. Estes autores, por sua vez,

�despertaram� nos pesquisadores brasileiros o interesse em discutir o tema para o Brasil. No

caso específico de Minas Gerais, Carla Anastasia se dedica ao estudo dos motins ocorridos ao

longo do século XVIII. Entender de que maneira estas manifestações se desenvolveram é

deveras importante para conhecermos a história de Minas Gerais. Sabemos ainda, que muito

diferente desta violência, a dos motins, outra violência é fonte de pesquisa para os

pesquisadores, a violência manifestada na criminalidade interpessoal cotidiana, representada

pelos homicídios, furtos e agressões físicas. Mas a criminalidade se manifesta ainda, mesmo

que de maneira não violenta, nos arrombamentos, na falsificação de moeda, nas dívidas, se

tornado assim, um campo rico de estudo para os historiadores.

Segundo Caio Prado Júnior era possível perceber um vácuo imenso entre os

extremos da escala social na Colônia: os senhores e os escravos. Para ele os primeiros eram os

dirigentes da colonização nos seus vários setores e os outros a massa trabalhadora. Entre estas

duas categorias, nitidamente definidas para Caio Prado, os senhores e os escravos, comprimia-

se e aumentava com o tempo o número dos desclassificados, dos inúteis e inadaptados,

indivíduos de ocupações mais ou menos incertas e aleatórias ou sem ocupação alguma. 35

Finalmente a última parte, a mais degradada, incômoda e nociva é a dos

desocupados permanentes, vagando de léu em léu à cata do que se manter e que,

apresentando-se a ocasião, enveredam francamente pelo crime. É a casta numerosa

dos vadios que nas cidades e no campo é tão numerosa, e de tal forma caracterizada

por sua ociosidade e turbulência, que se torna uma das preocupações constantes das

autoridades e o leitmotiv de seus relatórios; [...]. (PRADO JR, 1983. p. 283) 36

De acordo com Caio Prado, então, esta camada �intermediária�, composta por

�desclassificados, inúteis e inadaptados� enveredariam pelo mundo do crime como meio de

sobrevivência. Mas onde se encaixam nesta análise, por exemplo, os pequenos produtores

34 Ibid. p. 221. 35 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

(Intérpretes do Brasil) 36 Ibid. p. 283.

27

rurais? Parece-nos assim, que o crime está relacionado à pobreza e que esta é seu principal

motivador. Hoje esta discussão parece estar esgotada e com certeza sabemos que crimes são

cometidos tanto por pobres quanto por pessoas mais abastadas, mas em que proporção?

Parece ser senso comum na historiografia relacionar o crime à pobreza, mas cabe aqui a

pergunta: o que é considerado crime neste período? O que levaria, por exemplo, um juiz a ir

preso?

Laura de Mello e Souza, assim como Caio Prado, acredita que a extrema pobreza foi

uma das principais marcas da camada existente entre os senhores e os escravos, a qual, em

1799, o Bispo de Mariana se referia da seguinte forma: �famílias pobres impossibilitados (sic)

de homens pardos, pretos libertos, nascidos na miséria; criados na indigência, e sem a menor

subsistência [...]�. 37

De acordo com Souza, a violência latente no seio da camada se desdobrou numa

variedade enorme de infrações, das mais insignificantes às mais graves. Segundo a autora,

eram à noite que as infrações aconteciam e procurando evitá-las os vereadores e as

autoridades judiciárias mandaram fazer um sino e o colocaram na casa de Câmara, devendo

este tocar das oito para as nove horas da noite, para �depois de tocado saírem rondas pelas

ruas da vila a prender a todas as pessoas que cometeram semelhantes insultos e delitos, e a

perturbarem a paz e sossego público, que se castigarão pelas justiças de El-Rei Nosso

Senhor...�. 38

Brigas, ferimentos, querelas, conflitos familiares, ocultação de bens, vadiagem,

incêndios, arrombamentos, deserção, concubinato, prostituição, feitiçaria, roubos, furtos,

mortes e o extravio eram os crimes mais presentes em Minas Gerais durante o século XVIII,

segundo a autora.

Outro senso comum na historiografia parece ser o �alto grau� de violência presente

no cotidiano da Minas. Mas qual é a proporção dos crimes cometidos em relação ao número

total da população? Talvez seja impossível contabilizar o número de delitos, visto que a

administração colonial não alcançava o território como um todo, e a maioria dos crimes eram

ocultados. Como determinar se uma sociedade é violenta ou pacífica onde problemas como a

falta de oficiais e a extensão do território eram obstáculos?

Em texto intitulado Tensões sociais em Minas na segunda metade do século XVIII,

Laura de Mello e Souza aborda a questão dos vadios. Segundo a autora, os vadios eram um

37 SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do Ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro:

Edições Graal, 1986. p. 144. 38 Ibid. p. 162.

28

grupo infrator caracterizado, antes de tudo, por sua forma de vida. Era o fato de não fazerem

nada, ou de nada fazerem de forma sistemática, que os tornava suspeitos ante a parte bem

organizada da sociedade. Por não terem família, domicílio certo nem vínculo empregatício

constituíam um grupo fluido e indistinto, difícil de controlar e até mesmo de enquadrar.

De acordo com uma instrução

devem os comandantes fazer que de noite não andem vadios fazendo distúrbios

pelos arraiais dos seus distritos, porém não devem impedir que andem de noite

aquelas pessoas que vão a negócios precisos, nem os criados ou escravos, que vão a

alguma parte, por ordem de seus amos e senhores, nem aquelas pessoas que andam viajando, por que da prisão ou retenção destas se pode seguir gravíssimo prejuízo

na demora das contas, e da entrega, e encomendas, que levarem ou recados que forem mandados. (SOUZA, 1999. p. 100) 39

Segundo Souza, tais cautelas sugerem que muitas vezes era difícil, numa sociedade

de sedimentação recente e de alto grau de mestiçagem, separar o infrator do bom súdito.

Como diferenciar os criados e escravos dos bandidos e facinorosos? Sugere ainda que, à noite,

tudo podia acontecer sendo este o momento propício ao crime, na forma real ou imaginária.

Quem andava de noite, portanto, era suspeito em potencial, e podia ser confundido com os

vadios e facinorosos. 40

Walter Fraga Filho, pensando a Bahia do século XIX, acredita que o vadio podia ser

o desempregado ou o aquele que mantinha vínculo inconstante com o mercado de trabalho,

podia ser o agregado da grande propriedade rural expulso da terra ou o citadino que se

disfarçava de mendigo para pedir esmola, sobrevivendo assim, de trabalhos esporádicos, da

mendicância, do roubo e, no caso das mulheres, da prostituição. 41

A vadiagem recobria, portanto, a itinerância e a ociosidade, comportamentos

considerados ameaçadores à estabilidade social. Mesmo assim a percepção do que

era vadio ou ocioso era muito fluida. A palavra vadiagem algumas vezes podia recortar categorias muito restritas de �ociosos�, o submundo de �delinqüentes� que

viviam à margem do trabalho �honesto�, recorrendo a meios �ilícitos� de

sobrevivência, tais como jogo e roubo. Podia remeter também à conduta

transgressiva do jornaleiro que interrompia seus afazeres em proveito das �vadiações� e divertimentos de rua. Na sua acepção mais ampla, o termo vadio

remetia às camadas livres pobres tradicionalmente vistas como inclinadas para

ociosidade e vadiagem. (FRAGA FILHO, 1996, p. 76) 42

39 SOUZA, Laura de Mello e. Norma e Conflito: aspectos da história de Minas no século XVIII. Belo Horizonte:

Editora UFMG, 1999. p. 100. 40 Ibid. 41 FRAGA FILHO, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. São Paulo: Hucitec; Salvador:

EDUFBA, 1996. 42 Ibid. p. 76.

29

Como se dava no início do século XIX a relação da vadiagem com a prática de

crimes? Quem eram verdadeiramente as pessoas que cometiam crimes e qual era sua condição

econômica? Quem era mandado para a Cadeia? Qual era a cor da pele destes �criminosos�?

Será que a vadiagem foi um problema para a cidade de Mariana no século XIX, sendo estes

�vadios� os grandes responsáveis pela prática de crimes?

Marco Antonio Silveira, seguindo a linha de pensamento proposta por Caio Prado

Júnior e Laura de Mello e Souza, nos informa que a vida cotidiana nas Minas esteve longe de

se caracterizar por um clima de humanidade e confiança, pois os �inúmeros� conflitos diários

multiplicavam-se em agressões e assassinatos; casas eram com �freqüência� violadas;

armavam-se tocaias por vingança; mulheres sofriam �constantes� surras de seus parceiros;

soldados abusavam livremente de sua autoridade. Segundo o autor, o conjunto destes crimes,

em sua maioria cometidos nas �perigosíssimas noites� do mundo mineiro, desvendava uma

realidade em que a violência tornava-se uma linguagem fundamental. �Um certo ar de

impunidade parecia vigorar, dada a facilidade com que alguns crimes eram cometidos�. 43

Para Silveira está claro que tal contexto de insegurança associava-se à pobreza e a

uma estrutura econômica de desigualdades. Como não podia deixar de ser em uma sociedade

em que a riqueza se concentrava e a dívida era generalizada, os embates entre devedores e

credores alimentavam boa parte das transgressões. Silveira destaca ainda outro problema da

violência mineira, que foi o abuso dos �homens de patente�, talvez por um possível reflexo da

crescente militarização da capitania, a despeito dos baixos soldos e descuido das tropas. 44

Segundo o autor, o contexto do �aluvionismo social� originava demandas

intermináveis que só desgastavam fortunas e canalizavam cabedais para as mãos de

burocratas, gerava ainda um movimento de marginalização de grande parte dos habitantes que

também buscavam a criminalidade como meio de sobrevivência. Devemos considerar ainda,

segundo Silveira, que por detrás dos inúmeros conflitos e mortes cotidianas, assentava-se um

forte desejo de vingança. A violência no Brasil desempenhava, sem dúvida, importante papel

disciplinador e purificador da população escrava, todavia, em um enfoque mais amplo, ela se

proliferava, �notadamente no universo urbano em incontáveis confrontos vicinais ancorados

no movimento dinâmico de ruptura e preservação da honra�. 45

Qual o número de crimes cometidos em Mariana no início do século XIX? Voltemos

à questão dos números. O que podemos considerar um alto índice de violência para a região

43 SILVEIRA, Marco Antonio. O universo do indistinto: Estado e Sociedade nas Minas Setecentistas (1735-

1808). São Paulo: Hucitec, 1997. p. 143. 44 Ibid. p. 145. 45 Ibid. p. 148.

30

das Minas? É possível dizer com certeza que a região era muito violenta e que a sociedade

convivia diariamente com ela? Afinal, o sistema escravista era violento por si só. O que

podemos considerar como inúmeros delitos? Os homens de patente abusam da violência, mas

qual a origem social destes oficiais?

Kalina Vanderlei Silva afirma, sobre a Capitania de Pernambuco, que a tropa de

linha do exército regular é o retrato do que de pior poderia haver entre os homens livres na

Colônia. Isso quanto aos soldados, pois os postos de oficiais eram revestidos de muito

prestígio, e disputados pelos fidalgos. 46

De acordo com a autora, apesar de a Coroa Portuguesa utilizar tropas pagas desde

seu início enquanto reino independente relutava em adotar a disciplina dos corpos e vontades

como ferramentas de controle sobre seus soldados e sua sociedade. Optava por uma política

de concessão de tarefas militares a particulares, na forma da constituição de tropas auxiliares,

gratuitas, que sustentavam os sistemas defensivos metropolitanos e imperiais melhor do que

as tropas burocráticas. É nesse contexto que se insere o organismo militar montado na zona

açucareira da América portuguesa, baseado principalmente nas Milícias e Ordenanças,

instituições que enquadram toda a população livre urbana na estrutura militar oficializada pela

Coroa. Oficializada, ainda que não sustentada.

Segundo a autora, a tropa burocrática, que surge como um instrumento de

centralização de poder régio na zona de açúcar assolada pelos poderes particulares dos

senhores de engenho, é uma tropa mal gerenciada e desestruturada e que assume um caráter

de ferramenta de controle social sobre os centros urbanos, na medida em que assimila os

párias e marginais dessas povoações açucareiras, controlando assim os danos que esses

poderiam causar à sociedade, ao mesmo tempo em que os aproveita como peças do sistema de

defesa do Estado. O controle que a Coroa portuguesa exerce sobre essas tropas burocráticas e

marginais passa não tanto pela disciplinarização dos corpos como pela subordinação dos

espíritos. Uma subordinação que a fome, a miséria e certa equiparação social aos escravos se

encarregam de garantir, segundo Kalina.

A política de manutenção das tropas tem como conseqüência social mais explícita a

miséria em que deixa esses homens. Miséria percebida pelos contemporâneos,

como Tollenare: os militares são infelizes; o soldo é diminuto e quase todos são

casados; o preconceito não permite que procurem manter a sua existência por meio

de quaisquer trabalhos estranhos à sua profissão. E Koster: os quartéis são muito

46 SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. O miserável soldo e a boa ordem da sociedade colonial: histórias de

homens, militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. Dissertação de

Mestrado, Universidade Federal de Pernambuco, 1999.

31

negligenciados. A tropa regular consiste em dois regimentos de infantaria, que formarão juntos uns 2500 homens, mas seu efetivo raramente chega a 600, apenas suficiente para fazer o serviço obrigatório em Recife, Olinda e fortalezas. Paga é

menor de 2 ¾ d por dia, uma porção de farinha de mandioca, semanalmente.

(SILVA, 1999, p.183) 47

Na região das Minas a situação não era muito diferente e podemos entender o abuso

por parte destes homens, que em nome da lei abusavam de um pequeno poder. A �origem�

destes oficiais, a ineficiência no treinamento destes soldados e a falta de pagamento dos

soldos, talvez despertasse nestes homens o abuso de poder.

Carla Maria Junho Anastasia, em A Geografia do Crime, trata das áreas da Capitania

de Minas Gerais onde a violência, segundo a autora, se fazia mais freqüente, ou seja, de

lugares onde se generalizaram os atos violentos previsíveis de negros, forros e mulatos e

aqueles imprevistos perpetrados por respeitados vassalos e autoridades régias. De acordo com

a autora, esses atos violentos combinaram previsibilidade e imprevisibilidade, tornando mais

difícil a normatização dessas áreas. Anastasia parte do pressuposto de que nessas áreas onde a

violência predominou foi possível a constituição de territórios de mando, onde se disseminou

o mandonismo bandoleiro, lugares nos quais a tirania era exercida fundamentalmente pela

violência armada e pela intimidação física. A autonomização da burocracia que se expressou,

fundamentalmente, nos conflitos de jurisdição entre as autoridades, na iniqüidade e/ou

omissão da ação pública alimentava, nessas áreas, a noção da legitimidade da violência. 48

Segundo Anastasia, em geral, numa capitania razoavelmente urbanizada, como foi a

de Minas Gerais, foram os sertões, as matas gerais, as serras, as zonas proibidas, os lugares

onde a autonomização da burocracia gerou um grau mais baixo de institucionalização política.

Salteadores, quilombolas, vadios, contrabandistas e monstros das mais variadas estirpes

povoavam essas áreas. As autoridades responsáveis pela previsibilidade da ordem nas áreas

mineradoras acreditavam que tumultos, desordens, motins, descaminhos, contrabando,

assassinatos e roubos eram resultados da �má qualidade dos povos� que haviam se dirigido

para as Minas. 49

Norbert Elias discute a ação violenta de determinada população quando esta se

encontra distante de um centro regulador de poder e o respeito às normas pré-estabelecidas

quando este centro está próximo. Para o autor, a moderação das emoções espontâneas, o

controle dos sentimentos, a ampliação do espaço mental além do momento presente, levando

47 Ibid. p. 183. 48 ANASTASIA, Carla Maria Junho. A Geografia do Crime: violência nas Minas Setecentistas. Belo Horizonte:

Editora UFMG, 2005. p. 22. 49 Ibid. p. 22.

32

em conta o passado e o futuro e o hábito de ligar os fatos em cadeias de causa e efeito são

todos distintos aspectos da mesma transformação de conduta, que necessariamente ocorre

com a monopolização da violência física e a extensão das cadeias da ação e interdependência

social. Ocorre segundo Elias, uma mudança �civilizadora� do comportamento. 50

As sociedades sem um monopólio estável da força são sempre aquelas em que a

divisão de funções é relativamente pequena, e relativamente curtas as cadeias de

ações que ligam os indivíduos entre si. Reciprocamente, as sociedades com

monopólios mais estáveis da força, que sempre começam encarnadas numa grande

corte de príncipes ou reis, são aquelas em que a divisão de funções está mais ou

menos avançada, nas quais as cadeias de ações que ligam os indivíduos são mais

longas e maior a dependência funcional entre as pessoas. Nelas o individuo é

protegido principalmente contra ataques súbitos, contra irrupção da violência física

em sua vida. Mas, ao mesmo tempo, é forçado a reprimir em si mesmo qualquer

impulso emocional para atacar fisicamente outra pessoa. (ELIAS, 1993, p. 198) 51

Graças à formação de monopólios de força, a ameaça que um homem representa para

outro fica sujeita a controle mais rigoroso e tornou-se, numa sociedade dita �civilizada�, mais

calculável. A vida diária torna-se mais livre de reviravoltas súbitas da sorte e a violência física

é confinada aos quartéis, de onde irrompe apenas em casos extremos, em tempos de guerra ou

sublevação, penetrando na vida do indivíduo. Como monopólio de certos grupos de

especialistas, ela é habitualmente excluída da vida dos demais. 52

Seguindo o raciocínio de Elias podemos deduzir que regiões, onde o processo

civilizador era menor, estavam mais sujeitas a atos intempestivos de violência. A falta de

fiscalização possibilitava às pessoas uma maior liberdade, liberdade que poderia incluir a

prática da criminalidade, por exemplo. Anastasia discute esta questão para o território mineiro

e entende que a falta de fiscalização efetiva por parte da administração colonial permitia a

constituição de territórios de mando, a presença de um mandonismo bandoleiro, além da

autonomização da burocracia. Regiões afastadas do centro administrativo estariam sujeitas

ainda, segundo a autora, a explosões constantes de violência.

Questões importantes surgem desta análise. Pensar, por exemplo, o abuso de poder

por parte de proprietários rurais e a autonomização da burocracia para os �sertões mineiros�

nos faz refletir sobre a situação descrita para regiões centrais como a cidade de Mariana. É

difícil quantificar o crime e devemos entender que em regiões mais distantes esta tarefa se

tornava mais difícil ainda, senão impossível. Mas nas regiões centrais esta quantificação era

50 ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador � volume 2: formação do estado e civilização. Rio de Janeiro, Jorge

Zahar Editor, 1993. 51 Ibid. p. 198. 52 Ibid. p. 200.

33

possível? Fala-se muito em uma sociedade mineira violenta, mas com base em quais dados

podemos fazer esta afirmação? Minas era tão violenta assim?

Ivan de Andrade Vellasco, ao fazer um balanço da produção historiográfica brasileira

acerca do tema da criminalidade, ressalta que as questões suscitadas por tais estudos prendem-

se, com certa insistência, à função repressiva dos aparelhos coativos, notadamente o aparelho

policial, e a caracterização da criminalidade como resistência às formas de repressão e

dominação. O controle da violência privada, segundo Vellasco, é exclusivamente enfocado

enquanto função do domínio da população e suas atividades, e a criminalidade mantém uma

relação metonímica com a resistência aos poderes do Estado. Estabelece-se assim, para o

autor, uma lógica cuja soma é sempre zero, tornando-se extremamente difícil pensar a

contenção da criminalidade, senão na sua negatividade. 53

Silvia Hunold Lara nos lembra ainda que a defesa militar e a dominação política

eram os dois mecanismos que asseguravam a exclusividade portuguesa sobre a Colônia,

estando estas, voltadas para a submissão dos colonos. Visando a manutenção da ordem e a

preservação da dominação política a Coroa intensificava o controle sobre a população. Para

controlar os moradores, na segunda metade do século XVIII aumentaram as disposições legais

contra vadios, ciganos e pessoas que escondiam o rosto, aumentaram também os instrumentos

de controle das populações, as correições dos ouvidores, as devassas janeirinhas e o

policiamento nas zonas urbanas. 54 Segundo a autora, existia uma preocupação constante da

Metrópole na manutenção da ordem, sendo responsabilidade desta o controle social e do

senhor de escravos o controle de seu plantel. Os escravos deviam ser preservados de qualquer

contestação e o castigo teria papel fundamental neste sentido. 55

Cabia, portanto à Metrópole a manutenção do controle social, mas o medo de uma

revolta escrava preocupava, e muito. Apesar do controle do plantel ser de responsabilidade do

senhor de escravos a administração colonial colaborava sobremaneira com estes senhores no

que se refere ao controle dos escravos. A Prisão, no século XVIII, tinha fundamental

importância no controle destes escravos, pois �acolhia-os� quando seus senhores se

53 VELLASCO, Ivan de Andrade. As Seduções da Ordem: violência, criminalidade e administração da justiça:

Minas Gerais � século 19. São Paulo: EDUSC, 2004. p. 30. 54 O quadrilheiro era responsável pela �chefia� de um conjunto de vizinhos. Cabia a ele controlar uma área da

cidade com o fim de evitar delitos como alcouces (prostituição), tabulagem (casas de jogo ou jogos com prêmios), furtos, barreguices (concubinatos), alcoviteiros (que têm casa de alcouce) e feiticeiros, além de

acalmar desordens e insultos, e auxiliar na prisão e castigos dos culpados. As devassas janeirinhas eram

devassas anuais, feitas no mês de janeiro, que inquiriam os membros das Câmaras sobre o funcionamento da

administração e da Justiça. 55 LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência: escravos e senhores da capitania do Rio de Janeiro. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1988.

34

ausentavam e prendia, quando possível, os fugidos. 56 Entrando na questão do cárcere

propriamente dito pensamos quem eram as pessoas presas na Colônia. Quem ficava

encarcerado no século XIX?

Como afirma João Pinto Furtado, os governantes das Minas adotavam medidas

distintas em relação aos colonos. Enquanto alguns governantes, como D. Luís da Cunha,

Antonio Rodrigues da Costa, Silva-Tarouca, o Marquês de Pombal e D. Rodrigo de Souza

Coutinho, pareciam complacentes com os colonos, entendendo a necessidade de um bom

relacionamento com os mesmos, outros, como o Conde de Assumar e Martinho de Melo e

Castro, acreditavam que a manutenção da ordem só se faria com o uso da força, pois o povo

que habitava a região das Minas era indolente. As medidas administrativas, e incluem-se aqui,

as questões relativas ao cárcere, tomadas pelos primeiros governantes citados se aproximam

das proposições de Antonio Manuel Hespanha para os séculos XVI e XVII português,

enquanto a adoção de medidas mais rígidas por parte dos governadores tende a se aproximar

da caracterização proposta por Mafalda Soares da Cunha e Nuno Gonçalo Monteiro para fins

do século XVII e todo o XVIII. No século XIX a preocupação com as prisões e com o

controle social aumenta e discussões dos governantes sobre o assunto passam a ser constantes.

Antonio Manuel Hespanha afirma, pensando o século XVI português, afirma que no

plano político, o poder real se confronta com uma pluralidade de poderes periféricos, frente

aos quais se assume, sobretudo, como árbitro, em nome de uma hegemonia apenas simbólica.

Também no domínio da punição, a estratégia da coroa não está voltada para uma intervenção

punitiva cotidiana e efetiva. Em termos de normação e punição efetiva, o direito penal da

Coroa se caracteriza por uma ausência e os dispositivos de efetivação da ordem penal, tal

como vinha na lei, careciam de eficiência. 57

O autor nos mostra que essa ineficiência se dava devido a uma série de fatores, entre

eles, uma multiplicidade de jurisdições e problemas de ordem processual, como livramentos e

condicionalismos. As únicas penas facilmente executáveis eram as de aplicação momentânea,

como os açoites, a amputação de membro ou a morte natural. Mas, mesmo estas parecem ter

sido, por razões diferentes, raramente aplicadas e a pena de morte natural era, em termos

56 As particularidades da sociedade de Minas Gerais, nesse período, ofereciam à Cadeia os substratos necessários

para a sua sustentação. Em troca, a mesma Cadeia contribuía para a manutenção da ordem escravocrata e da

ordem social como um todo. Vejamos o que diz um alvará de soltura do ano de 1732: �[...] Mando ao

Carcereiro da cadea desta villa ou quem suas vezes fizer que visto este alvará hindo por mim aignado em seu

comprimento solte da prizão Paulo angolla escravo de Manuel Pereira por ser apanhado de noite fora de

hora nal estando por al prezo nem embargado cumpram no al fasão dado e pasado nesta dita villa aos sinco

dias de Outubro de mil sete centos e trinta e dous annos [...]�. 57 HESPANHA, António Manuel. A Punição e a Graça. In: MATTOSO, José. História de Portugal vol. 4 (O

Antigo Regime 1620-1807). Lisboa: Editorial Estampa, 1992. p. 239.

35

estatísticos, muito pouco aplicada durante o Antigo Regime. Ocorre, segundo Hespanha, uma

não correspondência entre o que estava estabelecido na lei e os estilos dos tribunais. 58

Independentemente dos mecanismos de graça e da atenuação casuística das penas, o

rigor das leis fora sendo temperado com estilos de punir cada vez mais brandos. Hespanha nos

informa ainda, que mais frequentemente do que punir devia o rei ignorar e perdoar. Quanto ao

perdão se observa alguns requisitos importantes, como o caráter de regalia, uma justa causa

para a concessão e a precedência de perdão. 59

Se referindo aos encarcerados, Hespanha destaca que do rol de réus presos à ordem

da Casa de Suplicação de Lisboa, quase metade daqueles de que se sabe o destino saem

soltos, por perdão, fiança ou eventualmente, por falta de culpas; e, em relação a muitos outros,

�corria livramento� por meios ordinários. �Se ao ameaçar punir o rei se afirmava como

justiceiro, ao perdoar ele se caracterizava como pastor e como pai�. Por essa dialética do

terror e da clemência, o rei constituía-se, ao mesmo tempo, em senhor da Justiça e mediador

da Graça. �Tal como Deus, ele desdobrava-se na figura do Pai justiceiro e do Filho doce e

amável�. (HESPANHA, 1992. p. 248) 60

Há ainda, de acordo com o autor, a criação de um habitus de obediência. Antes e

depois da prática do crime, nunca se quebram os com o Poder. Em comunidades em que os

meios duros de exercício do Poder eram escassos, modelos que garantissem ao máximo as

condições de um exercício consentido do poder eram fortemente funcionais. O resultado era

de um sistema real/oficial de punição pouco orientado para a aplicação de castigos, sendo a

prisão raramente utilizada como pena, dada às dificuldades logísticas que envolvia (cárceres,

transporte e alimentação dos presos). 61

Para Hespanha, tal como o Supremo Juiz, o rei devolvia aos equilíbrios naturais da

sociedade o encargo de instauração da ordem social. Hespanha menciona a consciência da

multidimensionalidade das tecnologias do poder. Este aproveitamento sábio das formas doces

de condicionamento, como substitutos do uso de formas violentas de disciplina. No fundo,

isto não era senão o sintoma, no plano político, das intenções do poder da coroa em relação

aos equilíbrios sociais estabelecidos. Longe de querer alterar, a coroa queria arbitrá-los,

assumindo-se não como centro único do Poder, mas como pólo coordenador de uma

sociedade politicamente policentrada. 62

58 Ibid. 59 Ibid. p. 247. 60 Ibid. p. 248. 61 Ibid. p. 249. 62 Ibid. p. 250.

36

A centralização do poder dos déspotas iluministas trouxe conseqüências diretas na

política penal, visto que o conceito de punição muda, tendo agora o objetivo de controlar

comportamentos, dirigir, instituir uma ordem social e castigar as violações a esta ordem. O

crime passa a ser nitidamente distinguido do pecado ou do vício. Do ponto de vista da

implantação efetiva da ordem penal real, esta restrição do seu campo de intervenção evitava a

dispersão de esforços dos aparelhos de justiça na punição de fatos que, para além de

dificilmente averiguáveis, eram irrelevantes na perspectiva da ordem social. 63

Hespanha ainda menciona que a disciplina pode também ser conseguida por outros

meios, como a propaganda, a educação e a ridicularização, e não só através da punição. Uma

das formas mais gritantes da desproporção entre delito e a pena era a das penas

excessivamente rigorosas e, sobretudo, das penas cruéis, portanto proscritas, pois, para além

de inúteis, corroíam a legitimidade da punição e do Poder. A estratégia de vigilância

sistemática da sociedade e de exercício de uma disciplina contínua, embora em doses leves e

discretas, veio substituir a estratégia de punição rara, mas espetacular. Surgem também novos

problemas, como os da política penal e a nova delinqüência dos crimes �de polícia�. 64

Segundo Mafalda Soares da Cunha e Nuno Gonçalo Monteiro, a Coroa, no século

XVIII adotou medidas mais rígidas que visavam a melhor fiscalização do território

ultramarino. Dentro de uma Monarquia pluricontinental caracterizada pela comunicação

permanente e pela negociação com as elites da periferia imperial, a tendência foi no sentido

de uma crescente diferenciação das diversas esferas institucionais e não na direção da sua

tendenciosa confusão. Para os autores, a Coroa utilizava-se das diferentes instituições para

obter o máximo de informação sobre a periferia. As novas unidades políticas integraram

anteriores administrações autônomas e reduziram um pouco a pulverização política que

caracterizava até então os territórios ultramarinos. 65

A relevância da cultura de remuneração dos serviços como dispositivo central da

monarquia para a captação e a garantia de continuidade da produção de serviços e, em

particular dos serviços militares dos seus súditos, era considerável. A Coroa se utilizava

destes dispositivos para exercer seus interesses no vasto território que possuía. A nomeação

de governadores, por exemplo, funcionava como uma remuneração de serviços. No entanto, a

crescente integração política dos impérios hispânicos e a progressiva uniformização

63 Ibid. p. 253. 64 Ibid. p. 254. 65 MONTEIRO, Nuno Gonçalo F. e CUNHA, Mafalda Soares da. Governadores e Capitães-Mores do Império

Atlântico Português nos séculos XVII e XVIII. In: MONTEIRO, Nuno Gonçalo F.; CARDIM, Pedro e CUNHA, Mafalda Soares da. Optima Pars: elites Ibero-Americanas do Antigo Regime. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005. (191-250).

37

legislativa relativa ao conjunto dos territórios têm relação com a importância econômica do

território. Logo, era mais fácil ser governador do Brasil do que conseguir uma promoção no

Reino.

Com o crescimento da produção aurífera, o interesse no Brasil, e na região das

Minas, por conseguinte, aumentou. De acordo com Cunha e Monteiro, após 1643, a escolha

dos governadores e capitães-mores se dava por meio de concurso e posterior consulta do

Conselho Ultramarino, tornando ainda mais elitista e rígida a escolha dos governantes. Os

governadores quase sempre tinham carreira militar, denotando assim, a dimensão imperialista

do império português. Além disso, no século XVIII, preocupada com a manutenção da ordem,

a Coroa diminui, no quadro administrativo, o número de governantes nascidos no Brasil. 66

Os autores que discutem a violência coletiva têm um enfoque distinto de nossa

proposta de pesquisa, no entanto, pudemos perceber que seus trabalhos são importantíssimos

para conhecermos os vários mecanismos que engendram a sociedade mineira no século

XVIII. Quando a discussão refere-se à criminalidade interpessoal em Minas Gerais, as

pesquisas, na sua maioria, utilizam a pobreza como cenário para os atos violentos e

criminosos.

Acreditamos que uma análise, em primeira instância, que pense a pobreza como

causa da criminalidade, oculta do processo histórico, outros grupos sociais que tem

participação fundamental na organização social.

Por outro lado, voltando-se à análise de crimes característicos de grupos sociais

bem determinados social e historicamente, a abordagem proposta tem se recusado, ao menos em primeira instância, a atrelar os comportamentos criminosos a

processos amplos, tais como urbanização, industrialização e pobreza, enquanto

caminho interpretativo. A extensão desses eventos, atingindo a sociedade como um

todo, pode ocultar realidades históricas multifacetadas, uma vez que tais processos

não abrangem ao mesmo tempo, nem da mesma maneira, todos os grupos sociais. (MACHADO, 1987. p.25) 67

Outro senso comum entre os pesquisadores parece ser o caráter violento das Minas.

A historiografia afirma que a região das Minas, no século XVIII, era muito violenta e que a

violência fazia parte do cotidiano da população. Mas o que significa afirmar que uma

determinada sociedade é violenta? O início do XIX parece ser bastante diverso dos séculos

XVIII e XVII. De que maneira isto afeta a administração carcerária no período? Qual é a

66 Ibid. 67 MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e Escravidão: trabalho, luta e resistências nas lavouras

paulistas (1830-1889). São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 25.

38

relação entre crime e população para o século XIX? Quais as características do sistema

prisional para o século XIX?

Os primeiros trinta anos do século XIX no Brasil são marcados por diversos

acontecimentos que, direta ou indiretamente, ocasionaram mudanças na estrutura e na ação

judiciária no fim do período colonial e no início do Império. A vinda da Corte Portuguesa

para o Brasil, a criação do Conselho Supremo Militar e de Justiça, a elevação do Tribunal da

Relação à categoria de Casa de Suplicação do Brasil e a criação da Intendência Geral da

Polícia da Corte e do Estado do Brasil, no ano de 1808; a elevação do Brasil a Reino Unido a

Portugal e Algarves, no ano de 1815; a declaração de Independência do Brasil, em 1822; a

aprovação da primeira Constituição brasileira, em 1824; a Lei de 15 de outubro de 1827, que

definiu os crimes e regulou os processos de responsabilidade dos ministros e conselheiros de

Estado; a Lei de 18 de setembro de 1828, criando o Supremo Tribunal de Justiça e dispondo

sobre suas atribuições e a lei de 16 de dezembro de 1830 que instituía o Código Criminal são

alguns destes acontecimentos.

Quais as características da prisão nas primeiras décadas do XIX? De que maneira a

Justiça pensava o crime no período? Quais eram os delitos mais praticados? No decorrer dos

capítulos seguintes discutiremos a ação da Justiça no início do século XIX, as prisões e os

crimes cometidos em Mariana no referido período, tentando assim, responder a estas

perguntas.

39

CAPÍTULO 2: A CASA DE CÂMARA E CADEIA DE MARIANA

2.1 UM BREVE HISTÓRICO

O principal órgão executor das disposições contidas nas Ordenações Filipinas, era

nas colônias, a Câmara Municipal. Esta reunia o poder político-administrativo e judicial na

sua expressão mais elaborada. Ao mesmo tempo em que possuía grande autonomia na

condução dos assuntos locais, era também por meio das Câmaras que a metrópole fazia

chegar suas determinações de âmbito geral. As Câmaras Municipais eram compostas por um

conjunto de oficiais, com atribuições estipuladas pelo Livro I do código filipino: um juiz

ordinário, três vereadores, um procurador, um ou dois almotacés e um escrivão. Em muitos

casos, a complexidade e importância das municipalidades proporcionavam o provimento de

outros cargos como o de meirinho, carcereiro, juiz de fora, tesoureiro e outros. O juiz

ordinário, os vereadores, o procurador, o escrivão e o tesoureiro, quando havia, eram

escolhidos por meio de eleição indireta, dentre os homens bons da localidade. As funções

deliberativas cabiam exclusivamente aos vereadores sob a presidência do juiz. De acordo com

Renato Pinto Venâncio, a Câmara Municipal de Mariana entre 1746-1808 apresentava uma

intensa distribuição de funções, o que fazia com que a mesma se dividisse em cargos de

natureza econômica, judiciária, política, fiscal-administrativa, assistencial e territorial. 68

A Cadeia Pública era parte constitutiva do poder municipal. Era a ela que recorria a

Câmara, com seus oficiais, para apreender criminosos e todo tipo de transgressores. Instalada

em um cômodo qualquer, numa casa alugada ou numa dependência ao lado da Câmara, nunca

apresentava condições adequadas de segurança, iluminação e higiene. Nas vilas e cidades

melhor providas de recursos, construía-se a Casa de Câmara e Cadeia, um prédio de dois

pavimentos no qual a parte de baixo era ocupada por enxovias 69 e o andar superior pela

Câmara.

68 VENÂNCIO, Renato Pinto. Estrutura do Senado da Câmara. In: Termo de Mariana: história e documentação.

Ouro Preto: Editora da UFOP, 1998. p. 140. 69 Enxovias eram cárceres térreos ou subterrâneos, escuros, úmidos e sujos. Em Bluteau encontramos ainda, para

caracterizar as enxovias, os adjetivos baixa, escura, asquerosa e imunda.

40

A prisão deve tomar a seu cargo todos os aspectos do indivíduo, seu treinamento

físico, sua aptidão para o trabalho, seu comportamento cotidiano, sua atitude moral,

suas disposições; a prisão, muito mais que a escola, a oficina ou o exército, que

implicam sempre numa certa especialização, é �onidisciplinar�. Além disso, a

prisão é sem exterior nem lacuna; não se interrompe, a não ser depois de terminada

totalmente sua tarefa; sua ação sobre o indivíduo deve ser ininterrupta: disciplina

incessante. (FOUCAULT, 1987, p. 198) 70

A distância entre a prisão idealizada e retratada por Michel Foucault e a realidade

encontrada nas Minas do século XIX é gritante, não somente pela diferença estrutural, mas

pela função delegada a cada uma. A prisão colonial não visava à recuperação do delinqüente,

não tinha o intuito de prepará-lo para o retorno à sociedade, mas prestava-se realmente ao

armazenamento dos infratores. As Ordenações Filipinas não estipulavam para nenhum crime

ou circunstância a pena de prisão isoladamente, sendo o encarceramento freqüentemente

utilizado como um recurso coercitivo.

Em 1824 foi instituída a primeira Constituição do Brasil. De acordo com o artigo 21

as cadeias deveriam ser seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para

separação dos réus, conforme suas circunstâncias e natureza de seus crimes. Já no ano de

1830, o Código Criminal traduzia no seu artigo 48, que as prisões públicas tinham que

oferecer comodidade e segurança para os detentos. O Código Criminal visava o

remanejamento das estruturas de poder. A partir de 1828, os presidentes de províncias do

Brasil Império eram responsáveis pelas fiscalizações de suas respectivas prisões. A Lei de 1°

de outubro de 1828 determinava que se nomeasse uma comissão de cidadãos respeitados que

visitariam as prisões civis, militares e eclesiásticas para informarem do seu estado e dos

melhoramentos necessários. Esta comissão deveria enviar o relatório sobre as condições

encontradas para os presidentes e vereadores das Câmaras Municipais. 71

Elizabeth Rouwe destaca dois pareceres referentes à Cadeia Pública de Mariana, um

do ano de 1834 e um de 1855, totalmente distintos. Enquanto o primeiro verificou ótimas

condições para a prisão, o segundo condenou não somente sua estrutura física, como também

o tratamento que os presos recebiam. Essa segunda comissão afirmou que a casa de reclusão

se assemelhava aos antigos calabouços da inquisição. Além disso, as paredes das celas, por

serem de adobe 72, necessitavam com urgência serem forradas com espessas tábuas. Também

as grades, o assoalho e o lajeamento interno precisavam de reparos. O inspetor chamou a

70 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 198. 71 SOUZA, Elizabeth Valéria Rouwe. A administração carcerária de Mariana no século XIX. Monografia de

Bacharelado. Departamento de História do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto. Mariana, 2003.

72 Espécie de ladrilho grosso, não cozido ao fogo, mas seco ao sol.

41

atenção ainda, para as águas das chuvas, que constantemente infiltravam-se nas paredes das

celas. 73

A cadeia de São João del-Rei também se encontrava num estado deplorável. Na

década de 1830, os inspetores, ao vistoriarem essa instituição, disseram que a mesma parecia

mais um caverna, e que a qualquer instante desmoronaria, pelo estado de ruína em que se

encontrava. No ano de 1828, as autoridades administrativas de São João del-Rei enviaram um

relatório à Assembléia Legislativa pedindo a liberação dos recursos para continuar as obras do

novo prédio que abrigaria a cadeia da vila. Segundo Maria Tereza Cardoso, a cadeia de

Lavras, a exemplo, da de São João del-Rei, não oferecia comodidade e segurança, podendo

esta ser facilmente arrombada. 74

Em meados da década de 1850, os relatórios apresentados pelos fiscais sobre as

condições de várias cadeias da província de Minas Gerais demonstraram que as mesmas

necessitavam urgentemente de reformas, como era o caso de Ouro Preto, Patrocínio e São

Romão. 75 Outros locais como Baependi, Pouso Alegre, Diamantina, Pitangui, Paracatu e

Sabará precisavam reconstruir as suas prisões devido ao estado precário em que elas se

encontravam. Na vila do Rio Pardo 76 a situação também não era cômoda, uma vez que não

havia �presídio� na mesma. Diversas reformas foram feitas ao longo do século XIX, e mesmo

com essas, a cadeia de Mariana não oferecia à sociedade e aos detentos a segurança

necessária. Em 1855 os funcionários afirmavam que a cadeia de Mariana não reeducava os

presos devido às condições precárias da mesma, devendo ser enviados para a Cadeia de Ouro

Preto, os detentos mais perigosos. 77

Várias casas de reclusões da província mineira no século XIX estavam em condições

críticas. Infelizmente as pequenas reformas feitas nessas instituições não resolveram os

problemas, uma vez que as mesmas necessitavam de mudanças drásticas. O sistema carcerário

de Mariana no século XIX, segundo Rouwe, além de não promover reformas estruturais

73 SOUZA, Elizabeth Valéria Rouwe, op. cit. 74 Ibid. 75 João Manuel Pohl, cujo livro �Viagem no Interior do Brasil� foi editado em 1837, viu o arraial de Nossa

Senhora do Patrocínio como um �lugar pobre, com uma Igreja de madeira e barro, que só recebe luz pelas

portas, e umas trinta casas, cuja construção denuncia claramente a penúria de seus donos�. Patrocínio teve as

regalias de paróquia, com o título de Nossa Senhora do Patrocínio, com a lei n° 114, de 09 de março de 1839.

A lei n° 171, de 23 de março de 1840, criou a vila, que foi instalada em 1842. São Romão é um município do

Alto Médio São Francisco criado pela lei n° 843, de 07 de setembro de 1923. O arraial primitivo denominado Manga ou Santo Antônio do Manga surgiu nos primórdios do século XVIII. Foi elevado à categoria de vila no

dia 13 de outubro de 1831, com o nome de Vila Risonha de São Romão. 76 Freguesia criada em 1740, subordinada ao bispado da Bahia, é das antigas paróquias de Minas. Em 1831, era

dos mais importantes arraiais da região; e o decreto da Regência de 13 de outubro de 1831 criou a vila, com o

nome de Rio Pardo. Foi solenemente instalado o novo município a 24 de agosto de 1833. 77 SOUZA, Elizabeth Valéria Rouwe, op. cit.

42

efetivas, colaborava para garantir a reincidência. A comissão encarregada de inspecionar as

repartições públicas decretou em 1855 que �a grande máxima evangélica a respeito do homem

é corrigir, e não destruir�. Partindo desses princípios, os fiscais afirmavam que a prisão não

dispunha de uma política de reeducação dos prisioneiros e seu sistema colaborava para a

permanência desses homens na criminalidade.

Numa época em que inexistiam meios mais sofisticados, burocratizados de fazer

cumprir o pagamento de uma multa, por exemplo, a detenção do indivíduo se

tornava a garantia física, corporal, de que ele saldaria o pagamento imposto. Assim, é comum encontrarmos no Livro V das Ordenações a fórmula �sejam presos e da

cadeia paguem [...] cruzados�. Com relação às outras penas � morte, açoite,

degredo, etc �, até que fossem atribuídas ou executadas, contava-se com a prisão

como meio para garantir a contenção do acusado ou criminoso. (SALLA, 1999, p.

34) 78

A primeira Câmara, da ainda Vila de Nossa Senhora do Carmo 79, situava-se, no ano

de 1711, na Rua Direita do Rosário, local em que se iniciou o povoado e que abrigava as

pessoas mais ilustres. Já em 1722 a Câmara se instalou em uma casa assobradada na ladeira

do São Gonçalo. A falta de uma sede própria para a instalação da Casa de Câmara e Cadeia e

as necessárias mudanças preocupava as autoridades locais. Em várias ocasiões os oficiais da

Câmara queixaram-se à Coroa da precariedade de suas instalações. As enchentes do Ribeirão

do Carmo, principalmente as que ocorreram em 1737 e 1743 destruíram boa parte da vila e

acentuaram sua carência de casas que poderiam servir às funções públicas. Frente ao

problema, no ano de 1744, a Coroa restituiu à Câmara um edifício situado na atual Rua

Direita da cidade, próximo à Catedral da Sé. 80

Após o reconhecimento da vila como cidade de Mariana, em 1745, os oficiais da

Câmara expuseram novamente à Coroa a necessidade de se construir uma sede própria para a

Casa de Câmara e Cadeia. A Coroa, ciente dos problemas ocorridos, recomendou, no ano de

1746, a reconstrução da cidade em uma área elevada, a salvo das enchentes, demarcando-se

uma praça espaçosa e ruas direitas onde seriam erguidos seus edifícios públicos. Em 1748 o

governador Gomes Freire, juntamente com o Ouvidor Geral e os oficiais da Câmara, decidiu

que o terreno mais adequado para a construção da tão sonhada Câmara, em função de suas

78 SALLA, Fernando. As Prisões em São Paulo: 1822-1940. São Paulo: Annablume, 1999. p. 34. 79 Em 1698, João Lopes de Lima, morador em Atibaia, levando consigo o Padre Manuel Lopes e seu irmão

descobriu e ocupou o ribeirão que denominou de Nossa Senhora do Carmo. Em 1711 o arraial passou a

condição de vila até tornar-se cidade de Mariana no ano de 1745. 80 FONSECA, Cláudia Damasceno. A casa de Câmara e Cadeia de Mariana: algumas considerações. In: Termo

de Mariana: história e documentação. Mariana: Imprensa Universitária da UFOP, 1998. p. 181.

43

dimensões e da segurança que oferecia, seria aquele ocupado pelos antigos quartéis dos

Dragões, que seriam demolidos. 81

A construção do edifício que abrigaria a Casa de Câmara e Cadeia de Mariana foi

arrematada, no ano de 1782, pelo alferes José Pereira Arouca, por trinta e sete mil cruzados.

Embora tivesse o ofício de pedreiro e carpinteiro, Arouca foi um dos melhores e mais

poderosos empreiteiros do setecentos nas principais vilas do ouro. Em Mariana administrou e

executou outras diversas obras, como igrejas, pontes, chafarizes, paredões, estradas e

calçadas. A construção da Casa de Câmara e Cadeia foi iniciada dentro do prazo estipulado, e

prosseguiu pelo menos até junho de 1782, data em que Arouca requereu ao Senado da Câmara

o pagamento já vencido, no valor de cinco mil cruzados. Não se sabe exatamente até quando

Arouca dirigiu a construção, já que morreu em 1795 e ainda em 1802 a construção não estava

totalmente concluída. Possivelmente, restavam pouquíssimos detalhes, já que em 1798 a

Câmara já havia se instalado no edifício. 82

Um mesmo edifício público seria sede do poder político e jurídico. Tal disposição

tinha suas origens em Portugal, o Domus Municipalis, sede judicial e administrativa

municipal. O Domus Municipalis sempre era colocado em lugar de honra da cidade, como

uma praça central ou a de um mercado. Em Mariana, esse lugar de honra seria o Largo do São

Francisco. Entre as igrejas de São Francisco de Assis e Nossa Senhora do Carmo se

encontraria a partir de agora a Casa de Câmara e Cadeia da cidade de Mariana. Mais que um

belo cenário arquitetônico, o Largo do São Francisco abrigaria além das construções, o

controle político, administrativo, judicial e espiritual da população marianense. 83

A Cadeia de Mariana possuía doze palmos de profundidade nos alicerces das paredes

externas. Os alicerces foram feitos de pedra grande e bem maciçada a cal, os pisos foram

lajeados na frente das chaminés e das comuas em todo o comprimento e as janelas bem

reforçadas com quatro dedos de grossura. As enxovias se localizavam abaixo das celas e o

acesso a elas se dava por meio de alçapões. Em cada enxovia existia ainda um fogão do qual o

preso se utilizava. O abastecimento de água, tanto da Câmara quanto da Cadeia, se dava pela

canalização de uma fonte. 84

A renda da Cadeia provinha de sua arrematação em leilões públicos, nos quais uma

dada pessoa se dispunha a tal negócio durante certo período que correspondia geralmente há

um ano. O pagamento desta arrematação pertencia a Câmara, enquanto que o arrematante

81 Ibid. 182. 82 Ibid. p. 183. 83 SOUZA, Elizabeth Valéria Rouwe, op. cit. 84 BARRETO, Paulo Thedim. Casas de Câmara e Cadeia. In: Arquitetura Oficial I, 1978.

44

responsabilizava-se pelo aluguel das carceragens, pelas custas da prisão, pelas boas condições

das carceragens e de fazer, igualmente, boas às condições de permanência dos brancos e

escravos presos. Estes últimos, por serem peças valiosas para os seus senhores.

Segundo Elizabeth Rouwe é interessante observar que num mesmo prédio público

funcionassem dois universos bastante distintos, um marcado pela delicadeza interna dos

ornamentos e móveis luxuosos, e outro caracterizado pela rigidez de sua edificação sem

qualquer decoração ou mobília à espera daqueles que cometeram algum delito. Em sua

concepção, a disposição do edifício que tinha a Câmara na parte de cima e a Cadeia na de

baixo, simbolizava a mão da justiça sobre o crime. 85

Para a Administração do Reino, a Cadeia constituía um lugar seguro, onde se

aprisionariam ladrões, assassinos e criminosos da mais variada espécie. A função principal da

execução da Justiça, na Colônia e no início do Império, era o combate ao desrespeito às leis

Reais, e o papel da Cadeia neste intuito era fundamental. Não importavam as más condições

de higiene do local, e talvez fosse até este o verdadeiro intuito da Administração Real, um

ambiente extremamente insalubre que serviria de depósito para os que se atrevessem a

desobedecer à lei. Com certeza ninguém gostaria de ficar recluso, muito menos num lugar

como este. Mas era este ambiente, essa região mais sombria do aparelho de justiça, que

aguardava aqueles que ousassem cometer os crimes.

É importante demarcar aqui a maneira como as autoridades pensavam a estrutura

carcerária do inicio do século XIX. Parecia existir uma grande preocupação com este

ambiente, mesmo que esta não resultasse em soluções eficazes para o problema. Entre os anos

de 1800 a 1830 a administração carcerária contabilizou 445 delitos no território que

compunha o Termo de Mariana. A documentação referente à Cadeia Pública nos mostra uma

variação social muito grande da população carcerária, na medida em que encontramos ali

detidos, homens e mulheres, escravos e livres, brancos e mestiços. Os capítulos que se

seguem têm por objetivo identificar o perfil da população carcerária da Cadeia Pública de

Mariana nos primeiros trinta anos do século XIX e sua relação com o crime.

85 SOUZA, Elizabeth Valéria Rouwe, op. cit.

45

Fonte: Desenho da frontaria da Casa de Câmara e Cadeia de Mariana. Coleção Felix Pacheco. Biblioteca Municipal de São Paulo. In: ROMEIRO, Adriana; BOTELHO, Angela Viana. Dicionário Histórico das Minas

Gerais. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. p. 59.

46

Fonte: Planta da Casa de Câmara e Cadeia de Mariana. Coleção Felix Pacheco. Biblioteca Municipal de São

Paulo. In: ROMEIRO, Adriana; BOTELHO, Angela Viana. Dicionário Histórico das Minas Gerais. Belo

Horizonte: Autêntica, 2004. p. 59.

47

2.2 OS CRIMES E OS PRESOS: UMA ANÁLISE QUANTITATIVA DAS FONTES

O Termo da cidade de Mariana é limitado ao norte pelo das vilas de Sabará, Vila

Nova da Rainha e vila do Príncipe. Ao sul, pela cidade de Ouro Preto e vila de Barbacena. A

leste pela Província do Espírito Santo, e ao oeste, pelo da vila de Queluz. A sua superfície está

calculada em 1.086 léguas quadradas, e cada uma das quais compreende 51 almas. 86 A cidade

de Mariana acha-se situada em terreno quase plano e desagradável, na margem direita do

Ribeirão do Carmo que se perde no Rio Doce, e a duas léguas de caminho distante da cidade

de Ouro Preto. É pequena, tem duas praças, várias ruas bem calçadas, sete chafarizes, a Igreja

Catedral do Bispado, o Palácio e o Seminário Episcopal, vários templos, 515 fogos, Casa da

Câmara, Cadeia, e outros edifícios notáveis. Mariana tem uma única paróquia e não decaiu

muito da sua antiga grandeza por servir de residência ao bispo, e a muitos ministros

eclesiásticos e seculares. Está bordada de muitas casas, atravessa dois arraiais, tem três pontes

de pedra, e é calçada em alguns lugares. Respiram-se aqui ares saudáveis. Do distrito desta

paróquia dependem os pequenos lugares ou distritos que se seguem: Monsus, Morro de Santo

Antônio, Passagem, Morro de Santa Ana e Várzea. 87 O Termo, além de Mariana, acolhe

outros 13 distritos, que por sua vez são responsáveis por 40 arraiais. No total, segundo dados

de Raimundo José da Cunha Matos para o ano de 1821, o Termo possuía 8.090 fogos que

abrigavam 50.191 almas. Logo, a Administração era responsável por todo este território e

consequentemente pela prisão de todas as pessoas que cometiam crimes.

O sistema carcerário de Mariana funcionava conforme as determinações da Câmara

Municipal, sendo regido pelas Ordenações Filipinas. A partir de 1824, as Câmaras Municipais

perderiam os seus poderes para as Assembléias Provinciais, que se tornariam as responsáveis

pelos assuntos policiais e econômicos dos municípios. As autoridades responsáveis pela

Cadeia Pública de Mariana eram o alcaide-pequeno, o meirinho das execuções, o carcereiro e

o porteiro do juízo. O oficial de Justiça encarregado de defender a autoridade judicial local era

o alcaide-pequeno. Este era escolhido pela Câmara de uma lista tríplice apresentada pelo

alcaide-mor. Acompanhado de um tabelião nomeado pelo conselho da Câmara, tinha a

obrigação de policiar dia e noite as cidades e vilas que lhe coubesse vigiar, prender os

transgressores da lei em flagrante ou por ordem dos juízes, trazerem os presos às audiências

86 A légua é uma antiga unidade brasileira de medida itinerária, equivalente a 3.000 braças, ou seja, 6.600

metros. Portanto, a superfície do Termo de Mariana estaria calculada em aproximadamente 7168 Km². 87 MATOS, Raimundo José da Cunha. Corografia histórica da Província de Minas Gerais, vol. 1. Belo

Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1981. p. 101.

48

públicas e fiscalizar a atuação dos almotacés com relação a carnes e pescado. 88 Auxiliar do

ouvidor ou juiz ordinário, o meirinho das execuções era nomeado pelo capitão-mor. Era ele

que realizava os mandados judiciais. 89 A responsabilidade da cadeia estava nas mãos do

carcereiro. Ele evitava que os presos fossem soltos sem um mandado de justiça, conduzia-os

às audiências, registrava a entrada e a saída dos prisioneiros e levava alimentos aos detentos

pobres. 90 Já o porteiro do juízo apreendia os bens e os leiloava de acordo com as

determinações da Câmara. 91 Os cargos de delegado e subdelegado surgiram somente no ano

de 1841 para assumir as funções que eram de responsabilidade do juiz de paz.

2.2.1 As estatísticas criminais

Tabela 1 - Os crimes cometidos no Termo de Mariana (1800-1830)

Crimes Número Porcentagem

Desordem 02 0,40%

Crimes Infração de posturas 12 2,70%

Contra a Resistência à autoridade 03 0,70%

Ordem Agressão de autoridades 05 1,10%

Pública Vadiagem 01 0,20%

Porte de armas proibidas 03 0,70%

Homicídio 48 10,80%

Crimes Tentativa de homicídio 12 2,70%

Contra a Crime sexual 02 0,40%

Pessoa Injúrias 01 0,20%

Agressões físicas 88 19,80%

Mancebia 02 0,40%

Atravessamento 01 0,20%

Danos à propriedade 14 3,10%

Crimes Dívida e penhora 79 17,80%

Contra a Furto 37 8,30%

Propriedade Fabricação de moeda falsa 03 0,70%

Porte de ouro falso 02 0,40%

Pagamento com ouro falso 01 0,20%

Outros Querela 28 6%

Não menciona 101 23%

Total 445 100% Fonte: AHCMM

88 SALGADO, Graça (coord.) Fiscais e Meirinhos: a administração no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1985. p. 138. 89 Ibid. p. 129. 90 Ibid. p. 140. 91 Ibid. p. 139.

49

Podemos perceber, de acordo com a tabela 1, que durante os primeiros trinta anos do

século XIX ocorreram 445 crimes no Termo de Mariana, evidentemente crimes em que foi

possível a identificação dos réus resultando na prisão dos mesmos. O número total de crimes

não corresponde ao número exato de presos, na medida em que alguns destes cometeram mais

de um delito. É possível identificar três categorias definidas por nós para a melhor

classificação dos crimes: contra a ordem pública, contra a pessoa e contra a propriedade. 92

Enquadrados nestas três categorias dispõem-se os tipos de crime, o número de ocorrências

destes crimes e a percentagem de cada um em relação ao número total de delitos.

Entre os crimes contra a ordem pública pudemos observar casos de desordem,

infração de posturas, resistência à autoridade, agressão de autoridades, vadiagem e porte de

armas proibidas.

A desordem representou apenas 0,4% do número total de crimes, com apenas duas

ocorrências, mas estas preocupavam a Administração da Coroa no século XIX, já que quando

praticadas em grupo poderiam se transformar em um motim. A prática de assuada,

caracterizada como desordem foi causa da prisão de José Manuel. José, homem pardo, de 30

anos de idade, que exercia a profissão de sapateiro, foi preso no distrito de Sumidouro, no dia

06 de março de 1804 por uma assuada que com outros praticou no Rosário de Mariana. 93 A

assuada é uma reunião de pessoas, armadas ou não, que tem como intuito fazer mal ou causar

danos a alguém. Ainda é definida nas Ordenações Filipinas como tumulto ou um motim com

grande alarido. �Qualquer pessoa que com ajuntamento de gente, além dos que em sua casa

tiver, entrar em casa de alguém para lhe fazer mal e o ferir a ele ou a outrem que na dita casa

estiver, morra morte natural.� 94 Parece clara a preocupação da Administração com este tipo

de delito, haja vista sua punição. Logicamente, dependendo da �qualidade� do réu, esta pena

seria amenizada, se transformando em degredo, por exemplo.

As infrações de posturas representaram 2,7% do total de crimes, com doze

ocorrências. Manuel da Fonseca Ribeiro foi preso dia 08 de agosto de 1804 por não ter feito

exame de corpo delito a respeito de uns ferimentos e tiros ocorridos no distrito de São

92 O código responsável pelo direito penal no Reino de Portugal desde o início do século XVII até meados do

século XIX era o Livro V das Ordenações Filipinas. Este livro não apresenta divisões claramente definidas

quanto à qualidade dos delitos. Estas divisões só surgiriam com a criação do Código Criminal do Império em 1830. Optamos então, por classificar os crimes nestas três categorias para proporcionar à pesquisa uma visão

mais clara da diversidade de crimes cometidos no Termo de Mariana. 93 AHCMM. Códice 167, folha 120. Ao longo deste capítulo utilizaremos intensamente as Ordenações Filipinas

para demonstrar as punições previstas para todos os delitos cometidos no Termo de Mariana. Procuramos transpor o texto das ordenações com a maior fidelidade possível ao original, o que justifica os termos hoje

desconhecidos e as inversões das frases. As possíveis dúvidas quanto ao significado de palavras e termos

seguem explicadas, sempre que possível, nas notas de rodapé. 94 Ordenações Filipinas. Livro V, p. 162.

50

Caetano. 95 Ao que tudo indica o Sr. Manuel era o juiz responsável por esta função em seu

distrito, e não a realizando infringiu uma postura e acabou sendo preso. Outro caso

classificado por nós como infração de posturas deveu-se a prisão de Antônio Batista. Antônio

foi preso no distrito de Infincionado no dia 09 de setembro de 1816 por soltar da prisão um

crioulo forro de nome João Ribeiro. 96 Este delito também era punido com �morte natural� se

o preso já estivesse em poder do carcereiro e debaixo de sua guarda, se as portas ou ferrolhos

da prisão fossem quebrados, se as paredes ou telhados fossem furados e se as chaves do

carcereiro fossem tiradas com força e entregues ao preso. Se o preso libertado já fosse

condenado em juízo e tivesse confessado o malefício pelo qual foi preso, aquele que o soltou,

além de morrer, deveria perder seus bens, se não possuísse descendentes ou ascendentes

legítimos. 97 Os dois casos citados mostram a preocupação da Administração com a

obediência e disciplina de seus funcionários e o perfeito funcionamento da ordem e da lei,

visto que, o não cumprimento da função pré-determinada de um cargo administrativo e a

soltura de um preso sem ordem da Justiça é, além de uma infração de posturas, um

desrespeito à lei, uma desobediência à palavra Real.

Os oficiais responsáveis em conduzir os réus até a Cadeia Pública sofriam na pele a

ira dos futuros presos, visto que nem todos aceitavam a idéia de ir para a cadeia

tranquilamente, resistindo assim à prisão e agredindo estas autoridades. Estes dois delitos

representam juntos 1,8% do total de crimes cometidos, com oito ocorrências. A resistência à

autoridade ou à prisão, na maioria dos casos vinha acompanhada de uma agressão física

qualquer. Luísa Antônia Pinheiro, mulher parda forra, de 40 anos de idade, que exercia o

ofício de fiandeira foi presa no dia 21 de junho de 1804 no distrito de Barra Longa por resistir

à prisão e ferir o Capitão Maximiano Gomes. 98 Tomé Teixeira, homem identificado como

pardo ou caboclo, foi preso no dia 10 de julho de 1818 na cidade de Mariana pelo crime de

agressão de autoridades devido a umas pancadas dadas em alguns Oficiais de Justiça. 99 Quem

resistisse com agressividade a algum dos juízes ordinários, vereadores, almotacés, alcaides

das vilas e conselhos dos reinos e senhorios, porteiros, jurados, vinteneiros 100 deles e homens

dos meirinhos da Corte e comarcas e ilhas, e aos homens dos alcaides, assim da cidade de

Lisboa como das outras cidades, vilas e conselhos, e na resistência ferisse cada um deles, teria

95 AHCMM. Códice 167, folha 125 v. 96 AHCMM. Códice 167. 97 Ordenações Filipinas. Livro V, p. 167. 98 AHCMM. Códice 167, folha 124 v. 99 AHCMM. Códice 167. 100 De acordo com Bluteau, vinteneiros eram homens que assistiam em lugares pequenos e tinham seu distrito

separado, onde serviam para fazer as diligências ordenadas pelo Juiz e pelos Oficiais da Câmara.

51

decepada uma mão e seria degredado para a África por dez anos. 101 Com certeza este era um

delito gravíssimo, haja vista a enorme lista de variações de pena contida nas Ordenações

Filipinas, que variavam de acordo com a gravidade dos ferimentos, com a ocorrência de morte

etc.

O porte de armas proibidas também era uma preocupação para os administradores da

região das Minas. No Termo de Mariana ocorreram apenas três casos, 0,7% do total, que

resultaram na prisão dos réus. Martinho Correia da Silva, homem pardo, foi preso no distrito

de Catas Altas no dia 06 de junho de 1815, pois se encontrava culpado na Devassa Janeirinha 102 por fazer uso de armas proibidas. 103 Segundo as Ordenações Filipinas era proibido a

qualquer pessoa, em qualquer parte do Reino, portar péla de chumbo nem de ferro, 104 nem de

pedra feitiça, 105 e sendo achado com ela, seria preso e ficaria na cadeia por um mês, pagando

quatro mil réis e sendo açoitado publicamente com baraço 106 e pregão, pela cidade, vila ou

lugar onde fosse achado. Especificava-se ainda a proibição ao porte de armas ofensivas e

defensivas, tanto de dia quanto de noite, salvo se fosse espada, punhal ou adaga, sob pena de

perder as ditas armas e pagar duzentos réis de pena da cadeia, se for peão, porque sendo

escudeiro e daí pra cima, ou mestre de nau ou de semelhante ou maior condição, a arma seria

apreendida e este pagaria a pena sem a necessidade de ficar preso. 107

Apenas um caso, definido por nós como vadiagem, ocorreu no Termo de Mariana,

representando apenas 0,2% do total de crimes. José Pereira da Silva, homem pardo, foi preso

no dia 19 de fevereiro de 1801 por querer ir à Vila Rica mesmo estando enfermo da perna e

sem conseguir andar. 108 A vadiagem, no século XVIII e XIX está ligada principalmente a

itinerância e a ociosidade, comportamentos considerados ameaçadores à estabilidade social.

Infelizmente não sabemos por que o senhor José Pereira queria ir à Vila Rica, mas o que torna

o caso interessante é a sua prisão. O quê, para os oficiais da Câmara, um homem pardo, com a

perna machucada e sem conseguir andar ia fazer em Vila Rica? Este era um caso de

vadiagem? As Ordenações Filipinas mandavam prender e açoitar qualquer homem que não

vivesse com senhor ou com amo, que não tivesse ofício nem outra profissão em que

trabalhasse ou ganhasse sua vida, que não andasse negociando alguma mercadoria sua ou

101 Ordenações Filipinas. Livro V, p. 169. 102 As Devassas Janeirinhas eram feitas anualmente, todo o mês de janeiro, e tinham como principal função

inquirir os membros das Câmaras sobre o funcionamento da administração e da Justiça. 103 AHCMM. Códice 167. 104 Bala de chumbo ou ferro presa a uma corda ou corrente, para ser recolhida de volta depois de atirada. 105 Pedra preparada para servir como arma ofensiva. 106 Em Bluteau, baraço é a corda usada nos enforcamentos. 107 Ordenações Filipinas. Livro V, p. 246. 108 AHCMM. Códice 167, folha 101.

52

alheia, e que, passados vinte dias do dia que tivesse chegado a qualquer cidade, vila ou lugar,

não tomasse dentro nos ditos vinte dias amo ou senhor com quem vivesse, ou ofício em que

trabalhasse e ganhasse sua vida, ou se o tomasse e depois o deixasse e não continuasse. �[...]

E achando que as há (pessoas vadias), as mandarão prender e cada um deles procederá

sumariamente, sem mais ordem nem figura de Juízo que a que for necessária para se saber a

verdade�. 109 Este trecho das Ordenações Filipinas deixa clara a preocupação do Reino com os

vadios, visto que estava autorizada perante a lei a prisão de qualquer pessoa, sem ordem

especial da Justiça, que fosse suspeita de vadiagem. Devemos ressaltar que os assentos de

prisão não identificaram o crime cometido em 23% dos casos. Estas prisões poderiam se

referir às ocorrências de vadiagem, já que a apreensão de pessoas, nestes casos, não exigia

uma formalidade maior por parte da Justiça. Logicamente isto se torna mera suposição na

medida em que nos faltam documentos que comprovem esta prática.

No que se refere aos crimes contra a pessoa pudemos observar casos de homicídio,

tentativa de homicídio, crime sexual, injúrias, mancebia e agressões físicas.

Os denominados crimes sexuais e os casos de mancebia totalizam juntos, quatro

ocorrências, portanto 0,8% do total de crimes cometidos. A prisão de Bernardo José Vilela,

acusado de crime sexual, é no mínimo estranha. Bernardo era um homem branco de 72 anos

de idade natural do Arcebispado de Braga e negociador de tecidos vindos de Portugal, e foi

preso no dia 24 de janeiro de 1804 por ter tirado a honra e a virgindade de Maria Pacheca, sua

mulher. 110 A característica de punir o crime e o pecado estava presente nas Ordenações

Filipinas, o que tornava, às vezes, a prisão um pouco ridícula. Imaginemos os oficiais

tomando o depoimento do casal sobre a perda da virgindade da senhora Maria Pacheca. De

acordo com o código filipino, todo homem, de qualquer estado e condição que seja que

forçosamente dormisse com qualquer mulher, posto que ganhasse dinheiro ou não por seu

corpo, deveria morrer por isso. E posto que o forçador depois do malefício feito casasse com a

mulher forçada e ainda que o casamento fosse feito por vontade dela, não seria revelado da

dita pena, mas morreria, assim como com ela não tivesse se casado. 111 O crime e o pecado

também justificaram a prisão de Francisco de Paula e Sousa. Francisco, homem branco de 38

anos, alfaiate, foi preso no distrito de Barra Longa no dia 27 de abril de 1805 por furtos e por

mancebia. 112 De acordo com o Código Filipino qualquer pessoa, de qualquer condição que

seja que costumasse andar na Corte, não deveria trazer nela manceba nem a ter nela teúda. E

109 Ordenações Filipinas. Livro V, p. 216. 110 AHCMM. Códice 167, folha 118 v. 111 Ordenações Filipinas. Livro V, p. 103. 112 AHCMM. Códice 167, folha 135.

53

que o contrário fizer na Corte e a dita manceba tiver teúda em sua pousada ou fora dela, posto

que ele e ela fossem solteiros, se fosse cavaleiro ou daí pra cima, deveria pagar vinte

cruzados, se fosse escudeiro, pagaria dez cruzados e se fosse homem de menos qualidade

pagaria cinco cruzados e seria degredado cada um deles, um ano fora da Corte. 113

O caso de injúria ocorreu apenas uma vez, portanto apenas 0,2% do total de crimes

cometidos. Mas este caso se torna muito curioso, pois envolveu uma autoridade da Câmara

Municipal. O meirinho das execuções Antônio João Ramos foi preso em Mariana no dia 02 de

outubro de 1804 por insultar e se desentender com palavras �certas mulheres� da cidade, por

conta de uma cobrança. 114 Segundo as Ordenações Filipinas, toda a pessoa que ferisse,

dissesse ou fizesse qualquer injúria a outra que com ela tivesse qualquer demanda ou o

mandasse fazer deveria cumprir a pena crime e cível em dobro do que se com ela não

trouxesse demanda. E se a pena for tal que se não pudesse dobrar, ficaria em arbítrio do

julgador, dar-lhe mais outra, segundo o caso merecer. 115

As agressões físicas resultaram em 88 prisões, logo, 19,8% do total de delitos

cometidos. Ciúme, preservação da honra, demonstração de poder, vingança ou simples

banalidade eram motivos para que as brigas acontecessem. Jacinto de Souza Novaes, homem

branco de 42 anos de idade, negociador de gado, foi preso em Mariana no dia 14 de janeiro de

1804 por ferir uma mulher parda chamada Suzana Ferreira. 116 Maria Martins, mulher crioula

forra, de 26 anos de idade, foi presa em Mariana no dia 19 de maio de 1804 pelos ferimentos

causados no rosto de Violante Maria dos Santos. 117 Manuel de Santa Rita, homem pardo, foi

preso em Mariana no dia 25 de abril de 1808 pelos ferimentos causados em Vicente, um

escravo crioulo de propriedade do Reverendo Cônego Joaquim Thomas. 118 João, escravo de

Nação Angola, pertencente a José de Souza foi preso em Mariana no dia 06 de maio de 1814

pelos ferimentos causados em José da Cunha de Macedo. 119 Justino, escravo cabra, foi preso

em Mariana no dia 07 de outubro de 1823 pelos ferimentos causados em Manuel, escravo de

Nação Angola, pertencente ao Capitão Francisco Machado da Luz. 120 Gregório, escravo

crioulo do Capitão Francisco Machado foi preso em Mariana no dia 21 de setembro de 1829

pelos ferimentos causados e açoites aplicados em uma crioula chamada Maria. 121 Como já

113 Ordenações Filipinas. Livro V, p. 125. 114 AHCMM. Códice 167, folha 127. 115 Ordenações Filipinas. Livro V, p. 159. 116 AHCMM. Códice 167, folha 117 v. 117 Ibid. folha 123. 118 Ibid. folha 152 v. 119 AHCMM. Códice 167. 120 Ibid. 121 AHCMM. Códice 167.

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mencionamos as brigas que originavam as agressões físicas começavam por variados motivos

e consequentemente eram causadas por uma gama variada de pessoas, sejam estes homens,

mulheres, livres, escravos, forros etc. As penas para este delito eram variadas e eram

aplicadas de acordo com a situação. Segundo as Ordenações Filipinas, e semelhantemente ao

caso de injúria, toda pessoa que ferisse outra que com ela tivesse demanda ou o mandasse

fazer pagaria a pena crime e cível em dobro do que se com ela não trouxesse demanda

alguma. As Ordenações ainda previam que todo aquele que matasse ou ferisse qualquer

pessoa na Corte, sem premeditação, deveria como pena, pagar cinco mil e quatrocentos réis, e

se fosse propositalmente, deveria pagar o dobro. �E se de propósito tirar arma ou ferir ou

aleijar, pague o dobro do que pagaria sendo em rixa; e isto além das penas pecuniárias

conteúdas nos forais dos lugares onde forem feitos os ditos malefícios�. 122 Um agravante nos

casos de agressão física era a aleivosia. Aleivosia é uma maldade cometida traiçoeiramente,

sob mostra de amizade, �e comete-se quando alguma pessoa mata ou fere, ou faz alguma

ofensa ao seu amigo sem com ele ter rixa nem contenda, como se lhe dormisse com a mulher,

filha ou irmã, ou lhe fizesse roubo ou força�. E nestes casos, em que se cometiam esta

maldade atraiçoada e aleivosamente, a pena corporal seria muito mais grave e maior do que se

daria em outro semelhante malefício em que tal qualidade de aleivosia não houvesse. 123

Ainda, de acordo com o código filipino, não deveriam ser punidos aqueles que usassem armas

ou ferissem outros em defesa própria, aqueles que se utilizassem de pau e pedra para ferir os

escravos, aqueles que fossem menor de quinze anos de idade e matassem ou ferissem, fossem

cativos ou forros, aqueles que com pau ou pedra ferissem as mulheres, aqueles que usassem

armas ou ferissem acidentalmente alguma pessoa tentando apartar uma briga, aqueles que

ferissem seu criado ou discípulo com intuito de castigá-lo, aqueles que ferissem sua mulher ou

seu filho ou seu escravo e aqueles, que sendo mestre ou piloto de navio, ferissem alguém que

estivesse sob seu comando. 124

Os casos de homicídio e tentativa de homicídio totalizaram juntos, 60 ocorrências,

portanto 13,5% do total de crimes cometidos. Encontramos uma séria dificuldade na

classificação de alguns delitos, mas nada comparado às tentativas de homicídio. É complicado

afirmar qual ação tinha a intenção de matar, visto que os assentos de prisão não trazem esta

afirmação. Optamos por definir como tal, as ações cometidas com o auxílio de armas que

causaram ferimentos nas vítimas. Acreditamos que uma pessoa que atira com uma arma de

122 Ordenações Filipinas. Livro V, p. 149. 123 Ibid. p. 150. 124 Ordenações Filipinas. Livro V, p. 149.

55

pólvora numa outra ou até mesmo desfere uma facada em alguém, tem a intenção de matar,

ou no mínimo, sabe que os ferimentos causados por estas armas podem ser fatais. A

motivação para a prática destes delitos, assim como para as agressões, variava muito. Ciúme,

preservação da honra, rixas, interesses, vingança e até mesmo o não pagamento de dívidas

poderiam ser a causa desta violência extremada. Bento Rodrigues, homem pardo forro, foi

preso no distrito de São Sebastião no dia 07 de janeiro de 1800 por matar um escravo negro.

125 Francisco Pires, homem branco de 73 anos de idade, Capitão que vivia de roça, foi preso

no distrito de Rio Pomba no dia 05 de abril de 1804 pela acusação de ter matado um tal João,

filho de Joana Maria de Lima. 126 Ana, mulher parda forra, foi presa em Mariana no dia 29 de

outubro de 1811 por ter matado João Nunes. 127 Tomás, escravo crioulo do Ajudante João

Gonçalves, foi preso em Mariana no dia 05 de agosto de 1823 por matar José Caetano,

escravo de Nação Angola, que pertencia a um Capitão da cidade. 128 Domingos foi preso no

distrito de Camargos no dia 30 de maio de 1802 por matar com uma faca João de Souza e ferir

com a mesma José Rodrigues Silva. 129 Antônio Eusébio, homem crioulo foi preso em

Mariana no dia 28 de setembro de 1809 por ter dado um tiro em Antonio Jorge Machado. 130

Antonio, escravo de Joaquim José de Santa Anna foi preso em Mariana no dia 31 de julho de

1824 por ter dado um tiro em um Coronel. 131 De acordo com as Ordenações Filipinas

qualquer pessoa que matasse ou mandasse matar uma outra, deveria morrer por isso morte

natural. Porém, se a morte ocorresse em defesa própria não haveria pena alguma, salvo se nela

acontecesse excesso, porque então seria punido segundo a qualidade do mesmo. E se a morte

fosse causada sem malícia ou vontade de matar, seria punido ou revelado segundo sua culpa

ou inocência que no caso tivesse. Porém, se algum fidalgo de grande solar matasse alguém,

não seria julgado à morte sem que se averiguasse o estado, linhagem e condição da pessoa,

assim do matador como do morto, além de qualidade e circunstâncias da morte. O código

filipino ainda traz algumas especificações para cada tipo de homicídio. Se uma pessoa desse a

outra peçonha para matá-la ou lha mandasse dar, posto que de tomar a peçonha se não siga a

morte, morra morte natural. E qualquer pessoa que matasse outra por dinheiro, ser-lhe-iam

ambas as mãos decepadas e morreria por isso morte natural, além de perder sua fazenda para a

Coroa do Reino, se não tivesse descendentes legítimos. E se ferisse alguma pessoa por

125 AHCMM. Códice 167, folha 95 v. 126 Ibid. folha 121. 127 AHCMM. Códice 167. 128 AHCMM. Códice 167. 129 Ibid. folha 105 v. 130 Ibid. folha 158 v. 131 AHCMM. Códice 167.

56

dinheiro, morreria por isso morte natural. E estas mesmas penas ocorreriam aqueles que

mandassem matar ou ferir alguém por dinheiro, seguindo-se a morte ou ferimento. E se

alguma pessoa, de qualquer condição que fosse, matasse outra com besta ou espingarda, além

de por isso morrer morte natural, lhe seriam decepadas as mãos ao pé do pelourinho. E se com

a dita espingarda ou besta ferisse de propósito com farpão 132, palheta 133, seta, ou virote

ferrado 134, posto que não matasse, morreria por isso morte natural. 135

A terceira categoria demonstrada na tabela 1 se refere aos crimes contra a

propriedade. Nesta categoria encontramos os delitos contra a propriedade privada e contra a

propriedade do Reino. No primeiro grupo encontramos os furtos, os danos à propriedade em

geral, como os arrombamentos de residências, por exemplo, e as prisões por dívidas. No

segundo, observamos a fabricação de moeda falsa e o atravessamento de mantimentos.

Os furtos resultaram na prisão de 37 pessoas, 8,3% do total de crimes cometidos.

Existia uma preocupação muito grande por parte da Administração da Coroa em relação a este

delito. Esta preocupação podia ser demonstrada com o toque de recolher, aplicado pelas

autoridades locais. De acordo com as Ordenações Filipinas as pessoas que fossem encontradas

nas ruas após o toque de recolher, com algum material que pudesse ser utilizado para abrir ou

quebrar portas deveria ser degredado para o Brasil. 136 Infelizmente, o código filipino não

informa qual seria a punição para os habitantes das terras brasileiras, mas esta postura deixa

clara a atitude das autoridades em relação a este delito. Quase tudo que valesse algum

dinheiro era possível ser furtado. Moeda, jóias, papéis, escravos, gado, alimento e até as

igrejas eram alvos da ação dos ladrões. Vicente Barbosa, filho de Josefa Barbosa, foi preso

em Mariana no dia 08 de novembro de 1803 por ter furtado dez selos de 640 réis cada um,

pertencentes a João de Oliveira Souza. 137 De acordo com as Ordenações Filipinas qualquer

pessoa que furtasse um marco de prata ou outra coisa alheia que valesse tanto como o dito

marco, estimada em sua verdadeira valia que a dita prata valesse ao tempo do furto, morreria

por isso. E qualquer pessoa que furtasse valia de quatrocentos réis e daí para cima, não sendo

132 Farpão era uma antiga arma de guerra, espécie de dardo ou seta grande que se disparava com besta. 133 Palheta era uma lâmina de prata tirada à fieira. 134 Virote era uma seta curta e empenada que poderia ser usada para arremesso. 135 Ordenações Filipinas. Livro V, p. 143. 136 Ordenações Filipinas. Livro V, p. 198. O toque de recolher era executado através do toque de um sino.

Segundo o título 45 do livro I das Ordenações Filipinas, nos lugares onde era costume tanger o sino, os juízes

ordinários deviam mandar os alcaides das cidades e vilas principais tocarem o sino de recolher durante uma

hora inteira, entre as oito e nove horas da noite do princípio de outubro até o final de março (no inverno) e das nove às dez horas entre o princípio de abril e o final de setembro (no verão). Nas outras vilas e lugares

bastava tocar o sino por apenas meia hora, desde que se terminasse às nove horas no inverno e as dez no verão.

137 AHCMM. Códice 167, folha 114.

57

o furto de qualidade por que deveria morrer, seria publicamente açoitado com baraço e

pregão, e se o que foi furtado fosse de valia de quatrocentos réis para baixo, seria açoitado

publicamente com baraço e pregão ou lhe seria dada outra menor pena corporal que os

julgadores decidirem, havendo respeito à quantidade e qualidade do furto e do ladrão. 138

Félix da Silva Pontes, homem pardo forro, de 50 anos de idade, que vivia de roça, foi preso no

distrito de Barra Longa no dia 14 de maio de 1804 por furtar várias cabeças de gado. 139 Se

alguma pessoa tirasse gado sem licença do rendeiro ou jurado, ou do oficial de justiça que

para isso tivesse poder, ou se não pusesse penhor bastante na mão do curraleiro, ou da

vizinhança quando aí não houvesse curraleiro ou se não pudesse achar, pagaria dois mil réis

para o conselho e seria degredado um ano para fora da vila e termo. 140 Os furtos cometidos

nas estradas também ocorriam, a talvez até mais intensamente, na medida em que os crimes

cometidos nas áreas mais desertas dificultavam a ação das autoridades. Bento da Silva

Borges, homem crioulo e forro, foi preso em Mariana no dia 29 de janeiro de 1806, por furtos

feitos na estrada de Catas Altas a um preto de nome Paulo, além de ferimentos causados no

mesmo. 141 De acordo com o código filipino a pessoa a que for provado que em caminho ou

no campo, ou em qualquer lugar fora de povoação, tomou por força ou contra vontade a outra

pessoa coisa que valha mais de cem réis, morreria morte natural. E se fosse de valia de cem

réis para baixo, seria açoitado e degredado para sempre para o Brasil. 142 Perguntamos-nos

novamente qual seria a punição aplicada a este delito se o mesmo fosse praticado nas terras

brasileiras. Já Germano de Souza foi preso em Mariana no dia 05 de outubro de 1809 por

furtos feitos na Catedral da Sé. 143 Segundo o código filipino qualquer pessoa que furtasse

alguma prata ou ouro, vestimentas, vestidos dos santos, ornamentos dos altares e outros da

igreja ou mosteiro, ou de alguma casa que dentro da igreja ou mosteiro estiver ou furtasse

alguma escritura de algum cartório de igreja ou mosteiro, morreria por isso morte natural,

posto que a quantia chegasse à valia de marco de prata. E se a quantia furtada das igrejas não

equivalesse a um marco de prata, os ladrões deveriam ser publicamente açoitados e

degredados por quatro anos para galés. E se qualquer pessoa fosse tomada cortando ou

desatando bolsa ou metendo a mão em alguma algibeira, nelas achando dinheiro ou não, se

fosse peão, seria açoitado e, se o delito fosse cometido dentro de uma igreja deveria ser além

138 Ordenações Filipinas. Livro V, p. 193 e 194. 139 AHCMM. Códice 167, folha 122 v. 140 Ordenações Filipinas. Livro V, p. 275. 141 AHCMM. Códice 167, folha 141 v. 142 Ordenações Filipinas. Livro V, p. 199. 143 AHCMM. Códice 167, folha 158 v.

58

de açoitado, degredado dois anos para as galés. 144 Ainda era possível encontrar o furto de

escravos. Serafim Gomes da Silva foi preso em Mariana no dia 19 de outubro de 1813 por

furtar uma escrava de propriedade de Dona Maria Martins no distrito de Guarapiranga. 145 A

posse de escravos alheios poderia ser punida como furto, com pena equivalente, dependendo

do valor do escravo, salvo se o dito escravo fosse encontrado à solta e o mesmo fosse

devolvido ao seu dono ou ao juiz da cabeça do almoxarifado da comarca em que for achado.

146 As punições para o crime de furto traziam ainda mais variações. De acordo com as

Ordenações, se alguma pessoa cometesse três furtos por diversos tempos, e se cada um dos

furtos valesse um cruzado ao menos, morreria por isso, posto que já pelo primeiro, segundo

ou por ambos já deveria ter sido punido. 147

O atravessamento ocorria quando alguma pessoa comprava pão, vinho ou azeite para

revender, sem autorização da Câmara. Apenas um caso de atravessamento foi identificado em

Mariana no período estudado. O Capitão Manuel Ribeiro de Souza foi preso em Mariana no

dia 19 de julho de 1800 por atravessar mantimentos. 148 As Ordenações defendiam que pessoa

alguma não pudesse comprar vinho, nem azeite para tornar a vender no lugar onde o comprou,

e se isto ocorresse, seria preso e perderia a valia do vinho ou azeite em dobro, a metade para

quem o acusasse e a outra metade para a Câmara. Contudo, poderiam comprar vinho e azeite

para revender no mesmo lugar as pessoas a quem a Câmara desse licença para o venderem por

medidas miúdas de canada 149 e daí para baixo. E pela mesma maneira poderiam comprar

vinho os estalajadeiros para vender pelo miúdo, quando a Câmara desse para isso licença. 150

Os arrombamentos de casas e o incêndio criminoso de residências se enquadram nos

danos à propriedade. No Termo de Mariana foram 14 ocorrências desta natureza, portanto,

3,1% do total de delitos cometidos. Francisco Gonçalves de Moraes, homem pardo forro, de

38 anos de idade, que se ocupava de mineração foi preso no distrito de Furquim no dia 08 de

janeiro de 1805 por ter queimado a casa de Teodora Teixeira. 151 Miguel de Araújo, homem

crioulo, foi preso em Mariana no dia 03 de agosto de 1814 pelo arrombamento da casa de

André Monteiro e por ferimentos feitos neste. 152 Miguel Jorge Machado, homem branco, foi

144 Ordenações Filipinas. Livro V, p. 195. 145 AHCMM. Códice 167. 146 Ordenações Filipinas. Livro V, p. 200. 147 Ibid. p. 194. 148 AHCMM. Códice 167, folha 98 v. 149 Medida de líquidos, que variava de 1,4 litros (canada de Lisboa) a 2,6 litros (canada do Rio de Janeiro),

enquanto a canada velha chegava a valer 6,890 litros em alguns lugares. 150 Ordenações Filipinas. Livro V, p. 240. 151 AHCMM. Códice 167, folha 129 v. 152 AHCMM. Códice 167.

59

preso em Mariana no dia 25 de agosto de 1818 por ter arrombado uma casa. 153 Martinho,

escravo crioulo do Alferes Manuel Vaz de Lima, foi preso em Mariana no dia 27 de janeiro de

1819, pelo arrombamento da casa do Capitão Manuel Ribeiro. 154 Os arrombamentos de casas

geralmente vinham acompanhados de furto ou agressão física, e as Ordenações Filipinas

previam estas variações. Segundo o código, qualquer pessoa que por força entrasse em

alguma casa quebrando as portas ou lançando-as fora do couce 155, ora consigo levasse gente

de assuada, ora não, e fosse para ferir, matar, roubar, forçar ou tomar mulher, ou injuriar

alguma pessoa que dentro da casa estivesse, posto que nenhuma das sobreditas coisas fizesse,

seria degredado para sempre para o Brasil e mais pagaria a injúria à parte pela força que lhe

assim fez, havendo respeito pela qualidade das pessoas. E, além disso, seria punido, segundo

o dano ou ofensa que fizesse. 156 Quanto aos incendiários, era proibido a qualquer pessoa, de

qualquer qualidade e condição que fosse, pusesse fogo em parte alguma. E se o culpado pelo

incêndio fosse achado, sendo este peão, seria preso e da cadeia pagaria o dano, além de ser

conduzido e degredado com baraço e pregão pela vila por dois anos para a África. E sendo

escudeiro, seria degredado por dois anos para a África com pregão na audiência e pagaria o

dano ao dono da propriedade. E se fosse cavaleiro ou fidalgo, por seus bens fariam as Justiças

pagar o dano às partes e mais no-lo fariam saber para a Justiça lhe dar o castigo que melhor

lhe parecesse, segundo o dano causado. 157

Os crimes que se referem à fabricação e ao porte de moeda falsa, e ao pagamento de

dívidas com ouro falso, representam juntos, 1,3% do total de crimes cometidos, com seis

ocorrências. Thomé Pereira da Silva, homem branco de 24 anos, caldeireiro, foi preso em

Mariana no dia 24 de novembro de 1803 por fabricar moeda falsa. 158 Martinho José da Silva,

homem pardo forro de 22 anos de idade, foi preso em Mariana no dia 07 de maio de 1804 por

também fabricar moeda falsa. 159 Moeda falsa era toda aquela que não era feita por mandado

do rei, em qualquer maneira que se faça, mesmo que fosse feita da mesma matéria e forma de

que se faz a verdadeira, porque conforme o direito ao rei somente pertence fazê-la, e a outro

algum não, de qualquer dignidade que seja. 160 Para o Reino, fabricar moeda falsa era coisa

muito prejudicial e todos que fossem culpados deste crime mereceriam ser gravemente

castigados. As Ordenações Filipinas mandavam que todo aquele que fabricasse moeda falsa

153 Ibid. 154 Ibid. 155 Couce é a peça de madeira sobre a qual a porta gira em suas dobradiças. 156 Ordenações Filipinas. Livro V, p. 164. 157 Ordenações Filipinas. Livro V, p. 270. 158 AHCMM. Códice 167, folha 114 v. 159 Ibid. folha 122. 160 Ordenações Filipinas. Livro V, p. 86.

60

ou ajudasse a fazê-la deveria por isso, morrer morte natural de fogo e ter todos os seus bens

sejam confiscados para a Coroa do Reino. E neste crime de moeda falsa ninguém gozaria de

privilégio pessoal que tenha, de fidalgo, cavaleiro, cidadão ou qualquer semelhante, porque

sem embargo dele seria atormentado e punido, como cada um do povo que privilegiado não

fosse. Já Francisco Alves da Costa, homem branco de 30 anos de idade foi preso em Vila Rica

no dia 22 de outubro de 1805 por portar ouro falso. Francisco ainda foi preso portando uma

faca e uma pistola. 161 João Alves Pereira, homem pardo, foi preso em Mariana no dia 10 de

fevereiro de 1808 por pagar uma conta com ouro falso misturado ao ouro verdadeiro a

Vicente Pereira Alves. 162 Se alguma pessoa comprasse, vendesse ou pagasse com moeda

falsa alguma dívida a que fosse obrigado, ou a usasse de qualquer outra maneira, sabendo que

era falsa, se na moeda que assim juntamente e por uma vez comprasse ou despendesse, ou o

que com ela comprasse ou despendesse por duas vezes, montasse mil réis, morreria por isso e

perderia todos os seus bens, a metade para quem o acusasse e a outra metade para a Coroa do

Reino. 163 A lei ainda recomendava à Justiça, que quando alguma autoridade descobrisse cada

uma das ditas coisas, esta por sua vez, deveria manter segredo, e querendo a isto provar,

deveria ser breve e tirar inquirição do caso, fazendo todas as diligências para se achar a dita

moeda, se descobrir os culpados e os prender, e logo, escrever e seqüestrar suas fazendas,

procedendo contra eles como for justiça. 164 Podemos perceber, que entre os crimes cometidos

no Termo de Mariana no início do século XIX, a fabricação de moeda falsa era a que

acarretava a punição mais pesada. A morte na fogueira e a perda de todos os bens, sem

distinção de privilégio a qualquer pessoa que fosse, tinham com certeza, a intenção de dar o

exemplo, de mostrar àquele que se atrevesse a cometer tal delito qual seria o seu destino. Não

discutiremos aqui o problema enfrentado pela Coroa com o contrabando de ouro nas Minas

Gerais, principalmente no período áureo da mineração, mas já podemos perceber, através da

punição prevista em lei a este crime, o quanto esta ofensa aos cofres reais era detestável.

As dívidas e penhoras motivaram setenta e nove prisões no Termo de Mariana,

portanto, 17,8% do total de delitos cometidos. As dívidas faziam parte do cotidiano das Minas

e a penhora representava uma solução para o pagamento das mesmas. Segundo Bluteau,

penhora é a ação de penhorar os bens que bastam para a condenação, ou satisfação da dívida,

por que se faz a penhora. 165 A penhora era prática comum na realização das compras a prazo

161 AHCMM. Códice 167, folha 140. 162 AHCMM. Códice 167, folha 151 v. 163 Ordenações Filipinas. Livro V, p. 88. 164 Ibid. p. 90. 165 BLUTEAU, op. cit. p. 394.

61

e no pagamento das dívidas. Mais vale penhor na arca, que fiador na praça, diz o adágio

português. 166 Ainda segundo Bluteau, penhorar significa embargar o uso dos bens de alguém

e entregá-los à justiça para segurar o que basta para pagar ao credor. 167 Aqueles que não

traziam seus bens, já penhorados, à Praça Pública no tempo determinado acabavam sendo

detidos. Vicente, homem crioulo, foi preso em Mariana no dia 07 de março de 1803 por não

pagar uma precatória no tempo devido. 168 Joaquim Rodrigues Lima foi preso no distrito de

Infincionado no dia 17 de janeiro de 1804 por não pagar uma dívida a João Fernandes no

tempo devido. 169 Antônio José de Oliveira foi preso no distrito de Antônio Pereira no dia 02

de dezembro de 1812 por ser depositário de bens penhorados. 170 José da Costa Bernardes foi

preso no distrito de São Sebastião no dia 08 de maio de 1817 por ser depositário de bens

penhorados. 171 Assim como estas, várias outras prisões ocorreram no Termo de Mariana por

causa de dívidas. De acordo com as Ordenações Filipinas os presos que estivessem nas

prisões por dívidas, que dependessem dos feitos crimes e custas das partes dos mesmos feitos,

se fossem degredados para a África por alguns anos, além das condenações do dinheiro por

que eram embargados, estando um ano na prisão depois de serem julgados e não satisfazendo

as partes o dinheiro das condenações, deveriam ser levados presos ao Brasil, contando-lhes

um ano no Brasil para dois de África. 172 O que torna a análise mais curiosa é a lei de 20 de

junho de 1774, que na verdade, deveria abolir as prisões causadas pelo não pagamento de

dívidas. Vimos que no início do século XIX estas prisões ainda ocorriam, o que nos faz

pensar sobre a diferença da lei escrita e sua execução na prática, especialmente nos territórios

pertencentes à Coroa no ultramar.

Destacamos ainda na tabela 1 as prisões por querelas. As querelas se encontram em

separado, pois na verdade podem pertencer a todas as categorias, já que se referem aos mais

variados delitos. A querela também era uma forma de exteriorização de conflitos. Podia-se

querelar sobre tudo, furto, agressão, homicídio, e qualquer outro crime cometido. A querela

na verdade, era a queixa de um crime perante o juiz, que devia ser assinada pela parte que a

desse e pelo julgador. Era responsabilidade deste último, conhecer a pessoa que estava se

queixando ou as testemunhas que presenciaram o crime. Segundo as Ordenações Filipinas, se

alguém querelasse de outro, e o réu acusado fosse livre por sentença do malefício e querela,

166 Ibid. 393. 167 Ibid. 394. 168 AHCMM. Códice 167, folha 110 v. 169 Ibid. folha 118. 170 AHCMM. Códice 167. 171 Ibid. 172 Ordenações Filipinas. Livro V, p. 491.

62

por se não provar o contido nela, o tal quereloso seria nessa mesma sentença condenado nas

custas, e em todo o dano e perda que o réu por razão dessa querela e acusação recebesse, na

cadeia. E se o quereloso fosse achado em malícia, seria condenado nas custas em dobro, ou

em tresdobro, segundo a malícia em que fosse achado. 173 Além disso, o juiz se devia receber

qualquer querela que tivesse ocorrido há mais de um ano, nem casos que já houvessem sido

julgados. Com certeza, muitas querelas se originavam de rixas antigas e brigas entre vizinhos.

Era a oportunidade de se vingar e ver, sendo punido pela a Justiça, uma pessoa que você não

gostasse e que alguma vez tivesse lhe prejudicado. As querelas ofereciam esta oportunidade

às pessoas, mas estas deveriam estar cientes de que uma denúncia sem provas e sem

testemunhas poderia fazer com que ela acabasse sendo detida, ao invés de seu inimigo.

Discutimos até aqui, os crimes cometidos no Termo de Mariana no início do século

XIX e as respectivas punições previstas na lei para cada um destes delitos. Atentamos ainda

para a classificação destes delitos em crimes contra a ordem pública, contra a pessoa e contra

a propriedade, mas afinal qual destas três categorias prevaleceu ao longo destes trinta anos?

Observemos o gráfico abaixo.

21

153142

28

0

20

40

60

80

100

120

140

160

Gráfico 1 - A incidência de crimes no Termo de Mariana

(1800-1830)

Crimes contra a ordem pública Crimes contra a pessoa

Crimes contra a propriedade Outros

Fonte: Assentos de prisão. Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana.

173 Ordenações Filipinas. Livro V, p. 397.

63

O gráfico nos mostra mais claramente o que a tabela 1 já evidenciava: um número

maior de crimes contra a pessoa, seguidos dos crimes contra a propriedade, e uma menor

incidência de crimes contra a ordem pública. Foram realizadas no Termo de Mariana, ao

longo dos primeiros trinta anos do século XIX, 425 prisões, que totalizaram 445 delitos, dos

quais pudemos identificar 344. Os crimes contra a ordem pública totalizam 21 ocorrências, os

crimes contra a propriedade somaram 142, enquanto que os crimes contra a pessoa

predominaram com 153 casos. Entre os 28 delitos enquadrados na categoria outros se

encontram as querelas.

�O povo mineiro é quase em geral honrado, honesto, pacífico, trabalhador, generoso,

hospitaleiro, inclinado às ciências e artes liberais, e acima de tudo patriota�. 174 Desta

maneira, Cunha Matos caracteriza os habitantes das Minas no início dos oitocentos. Seria esta

a realidade encontrada nas Minas no século XIX, ou esta afirmação é uma pura exaltação ao

povo mineiro? Cunha Matos, no entanto, faz uma ressalva quanto à �qualidade� da população,

afirmando que assim como em todos os países do universo, em Minas, também se

encontravam pessoas de qualidades absolutamente opostas às precedentes, sendo ferozes,

vingativas, bandoleiras e inimigas do trabalho. A classe inferior da sociedade, e muito

principalmente os libertos e os habitantes dos lugares menos povoados, mais remotos das

grandes povoações e nos limites da província, seriam para ele a parcela da população contra

quem havia motivos de queixa mais repetidos e justificados.

Seriam então os libertos os principais responsáveis pela prática do crime nas Minas

do século XIX? Discutiremos este ponto mais a frente, contudo, já devemos mencionar que as

prisões realizadas não apontam esta perspectiva, sendo a camada livre da população a

principal responsável pelos delitos cometidos e não os alforriados. Os habitantes de lugares

menos povoados seriam então os responsáveis pela maior parte dos delitos? Os lugares mais

remotos das grandes povoações e os limites da província seriam as regiões onde o crime

prevalecia? Acreditamos ser possível a hipótese proposta por Cunha Matos, na medida em

que delitos cometidos em regiões mais distantes de um centro regulador são mais difíceis de

serem averiguados e punidos. Entraremos mais a fundo nesta questão ao longo deste capítulo,

quando poderemos identificar os crimes contabilizados pela administração carcerária do

Termo de Mariana na cidade e nos distritos.

É interessante observar, num primeiro momento, que Cunha Matos elogia o povo

mineiro enaltecendo suas virtudes e qualidades frente a outros países. Em seguida o autor tece

174 MATOS, op. cit.

64

ressalvas afirmando que uma camada originada da escravidão, portanto para ele, inferiorizada

em todos os sentidos, é a principal responsável pelos crimes e violência praticados no

território mineiro. Posteriormente ele viria a afirmar que a classe distinta da população em

nada tinha que invejar aos mais polidos do Brasil, pois todos os habitantes de Minas, quer

ricos quer pobres, tanto os rústicos como os mais polidos, exercitavam em �grau heróico� a

virtude da hospitalidade, portanto eram excelentes pessoas. Afinal, os mineiros no início do

século XIX apresentavam mais qualidades ou �defeitos�? Eram os mineiros bons ou ruins?

Pela afirmação de Cunha Matos, nos parece, que se não fosse pela presença dos libertos e

logicamente dos escravos, o índice de crimes seria infinitamente menor. Mas como explicar

então um maior índice de crimes cometidos por livres? E pior, como explicar que estes livres

eram responsáveis por um número maior de crimes cometidos contra a pessoa?

Dos 344 crimes identificados, 153 correspondem aos crimes contra pessoa, portanto,

aproximadamente 44,5% do total de delitos cometidos. Homicídios e agressões físicas

contribuíram com grande parcela para esta predominância de crimes contra a pessoa. Buscar

explicações para estes delitos é deveras complicado, na medida em que os motivos eram

variados. No entanto, devemos considerar que muitos conflitos eram resolvidos com o uso da

violência. Já comentamos o quanto era complicado para a Justiça administrar e controlar todas

as ocorrências no vasto território do Termo de Mariana. Em um território em que se tornava

difícil a aplicação da lei e da justiça de maneira eficaz, o uso da violência era uma alternativa.

Brigas corriqueiras de vizinhos, discussões banais e ofensas morais sempre foram

motivadores para as agressões físicas e homicídios e não seria diferente na Minas Gerais

Colonial. As agressões e homicídios eram um meio simples de se resolver estas contendas.

Francisco Pires foi preso no ano de 1804 por ter matado o filho de Joana Maria de Lima. Que

intenções tinha Francisco ao matar o filho da dita Joana? Qual o motivo para o homicídio? O

processo crime do caso deve apresentar os motivos, que poderiam ser muitos: vingança,

preservação da honra, crueldade etc. Mas o que se torna interessante é o fato de Francisco, o

assassino, ser um homem branco, Capitão e roceiro, portanto distante do estereótipo proposto

por Cunha Matos para um possível arruaceiro. Longe de ser liberto, Francisco era branco,

longe de ser vadio, era Capitão e roceiro. Provavelmente este crime foi mais um atrito entre as

partes que resultou na morte do filho de Joana. Falando desta maneira pode parecer que

estamos banalizando o crime, mas precisamos entender que esta era uma maneira de resolver

os conflitos diários. A sociedade mineira na primeira metade do século XIX estava inserida

num sistema escravista de produção, um sistema violento por si só. Não podemos dizer com

isso que a sociedade mineira era violenta, pois esta era uma realidade vivida pela população.

65

Como podemos afirmar que uma determinada sociedade é violenta baseada em relatos e casos

que estão muito distantes do nosso tempo? Propusemos como possível motivo para a

predominância de crimes contra a pessoa a ineficiência da Justiça, mas isto pode parecer um

paradoxo na medida em que a maioria das prisões realizadas tem como causa este tipo de

delito. No entanto, de acordo com nosso argumento, se a maioria das prisões eram motivadas

por crimes contra a pessoa podemos concluir que estes delitos eram os mais praticados e com

certeza muitos destes, fugiam do olhar da Justiça. Outra possibilidade seria a de que a Justiça

determinava a pena de prisão para os delitos cometidos contra a pessoa e para outras

categorias, os crimes contra a propriedade e contra a ordem pública, esta punição não seria tão

utilizada. Esta segunda possibilidade parece improvável, pois as Ordenações Filipinas não

utilizavam a prisão como pena isolada para nenhum crime, devido aos gastos com a

manutenção das cadeias. Além disso, seria mais preocupante para a administração carcerária

punir os crimes que afetassem diretamente o poder exercido pela Coroa.

Os crimes contra a propriedade, seja esta pública ou privada, totalizaram 142

ocorrências, portanto aproximadamente 41,3% do total de crimes cometidos. Esta categoria

parecia dispensar atenção especial da Justiça, pois afetava de maneira mais evidente os

interesses da administração colonial. Fabricação e porte de moeda falsa, por exemplo,

afetavam de maneira incisiva um dos grandes interesses do reino português, o ouro da região

das Minas. No auge minerador o contrabando foi um dos grandes problemas enfrentados pela

administração colonial. Podemos considerar que a utilização de ouro para a fabricação de

moeda falsa ou ilegal é contrabando, e este no século XIX, também esteve presente e foi

punido com pena de prisão. A preocupação da administração colonial com os crimes contra a

propriedade se torna ainda mais clara quando as prisões têm como causa o não pagamento das

dívidas, delito responsável pelo �inchaço� desta categoria. Foram realizadas no total, 79

prisões por não pagamento de dívidas, nos primeiros trinta anos do século XIX, mas as

Ordenações Filipinas nos informam que a pena de prisão por dívida estava abolida desde o dia

20 de junho de 1774. 175 E no Termo de Mariana esta lei �chegou� com atraso de pelo menos

cinqüenta anos, na medida em que encontramos prisões por dívidas aproximadamente até o

ano de 1825. Com este exemplo podemos perceber a preocupação da Coroa com assuntos

referentes à circulação de capital, seja o da Coroa ou dos colonos, pois na verdade, a falta de

pagamento das dívidas gerava um problema de interesse geral. As compras a prazo eram

comuns, e veremos isto mais detalhadamente a frente, mas de imediato é necessário ressaltar

175 Ordenações Filipinas. Livro V, p. 491.

66

que quando um comerciante não recebia uma dívida feita por seus fregueses ele não

conseguia pagar os produtos adquiridos para sua venda nem adquirir outros, por exemplo.

Quando uma dívida não era paga todos os setores acabavam sendo afetados, uns mais

intensamente outros menos. Talvez daí a repreensão com a pena de prisão ser aplicada, pois se

tornava uma garantia de ressarcimento aos credores.

O furto, assim como a prisão por dívidas, contribuiu para este considerável índice de

crimes contra a propriedade. Talvez, este delito, possa ser relacionado à pobreza da

população, isso, se entendermos que os furtos são motivados pela falta de condições

financeiras necessárias à sobrevivência. Furtava-se de tudo: ouro, jóias, selos, papéis,

escravos, e nem mesmo o interior das igrejas escapava à ação dos ladrões. Consideramos

ladrão simplesmente aquele que furta ou rouba independentemente de motivação ou

necessidade. Entendemos que a pobreza era uma das causas para a prática de pequenos furtos,

mas a generalização do tema se torna um problema. Assim como pequenos furtos eram

cometidos, de mantimentos ou até mesmo baixas quantias de ouro, por exemplo, grandes

furtos também eram realizados. Furtar um escravo é sinal de pobreza? Furtar cabeças de gado

e agregá-las à sua propriedade é sinal de miséria? É importante diferenciar estas variações e

não generalizar suas motivações, pois o quadro da sociedade mineira no início do século XIX

era complexo. Alguns furtos ocorriam devido à miséria enfrentada por parte da população,

outros se deviam à ganância de pessoas que estavam longe de serem caracterizadas como

pobres e outros eram cometidos pela facilidade de se formar bandos e quadrilhas nos vastos

territórios mineiros.

Os crimes contra a ordem pública resultaram em 21 prisões, o que representa

aproximadamente 6,1% do total de crimes praticados. As prisões por crimes contra a ordem

pública resultaram principalmente das arruaças, das resistências e agressões à autoridade, do

porte de armas proibidas e das infrações de posturas. Nesta categoria se encontra a maior

variação no que respeita a ocupação de cada um destes presos, além de ser a categoria que

permite à Justiça identificar o criminoso e aplicar a respectiva punição com mais eficiência.

As ocorrências envolvendo autoridades podem ser facilmente identificadas na medida em que

são estas autoridades as responsáveis pelas prisões. As infrações de posturas, neste caso, se

referem ao não cumprimento ou ao cumprimento indevido de funções desenvolvidas por

autoridades locais, um juiz ou outro oficial qualquer que não tenha desempenhado seu ofício

de forma correta, por exemplo. A providência correta e necessária para tal infração pode

demorar e até mesmo nunca acontecer, mas as irregularidades chegam ao conhecimento da

Câmara Municipal e cabe a ela a decisão a ser tomada. Já arruaças e o porte de armas

67

proibidas, especialmente este último, se tornam mais complicadas para a administração

carcerária. O território é muito grande e o número de oficiais é reduzido e fica difícil controlar

todos os conflitos ocorridos. Os casos de arruaças, por exemplo, na documentação pesquisada,

se limitam a apenas dois casos, definidos por nós como desordem. Para as autoridades

responsáveis talvez seja fácil tomar conhecimento dos delitos, mas ao mesmo tempo se torna

complicado prender os culpados, principalmente se estas manifestações ocorressem à noite. Já

o porte de armas proibidas somente seria descoberto se o oficial responsável pela prisão visse

a pessoa armada ou recebesse denúncia de que alguém estava portando alguma arma e

imediatamente se dirigisse ao local.

De acordo com Cunha Matos os costumes do povo sofreram alterações à medida que

a população crescia. Para ele, os antigos mineiros, nos seus arraiais fortificados de paliçadas

bem semelhantes aos senhores feudais da Europa, pouco respeitavam as leis e as autoridades

constituídas, quando uma e outras não favoreciam os seus caprichos ou as suas justas

pretensões. Por muitas vezes famílias poderosas, ajuntando uma grande clientela, zombavam

das leis e desafiavam as autoridades do país. Neste caso, os seus ressentimentos eram

acompanhados de terríveis hostilidades e as contendas de família terminavam nos

sanguinolentos campos de batalha. 176

Cunha Matos toca agora numa questão interessante, o desrespeito à lei e às

autoridades pelas famílias mais importantes das antigas localidades. Norbert Elias afirma que

quanto mais complexas são as redes de relações de uma determinada sociedade mais os

homens tendem a controlar seus impulsos. Cunha Matos simplesmente constata esta

afirmação já no início do século XIX, quando afirma que as famílias importantes agiam de

acordo com seus interesses desrespeitando as leis e as autoridades. Isto ocorria,

primeiramente, pela importância que estes colonos detinham na localidade, e posteriormente

pela ineficiência do sistema punitivo. Além disso, as redes de ligações não pareciam ser tão

fortes assim e estas famílias, detentoras de poder, conseguiriam tudo o que desejassem.

Quando estas redes se tornam mais complexas e a administração colonial parece bem

constituída, estas famílias necessitam repensar suas atitudes, pois teoricamente estariam mais

vigiadas e dependeriam de uma boa relação com as autoridades.

Cunha Matos aponta dois lados na questão do passar dos anos e na mudança nos

hábitos dos mineiros. Segundo ele tudo mudou com os progressos da civilização, mas

infelizmente, por volta dos anos trinta dos oitocentos os ranchos eram atacados e os

176 MATOS, op. cit.

68

viandantes eram assaltados nas estradas, fazendo com que se tornasse uma rigorosa

necessidade os homens caminharem armados. Para Matos até o ano de 1820 existia uma

maior segurança nas estradas, podendo as cargas dos tropeiros e as bagagens dos viandantes

ficarem nos ranchos ou no meio dos campos sem correrem risco de serem roubadas. 177

Afinal de contas, o passar dos anos fez aumentar ou diminuir a criminalidade? Para

Matos a �civilização� fez com que as pessoas reconhecessem as leis, mas encontrassem

também meios para infringi-las. Seria tão simples assim? A �civilização� mencionada por

Matos não deveria além de tornar a lei uma realidade, fazer com que as pessoas às

respeitassem?

Segue Cunha Matos afirmando que com a �civilização� a moralidade da classe

inferior do povo diminuiu. Para ele isto se deve a quatro motivos. Primeiramente aos

recrutamentos, pois um grande número de homens, para não entrarem no serviço militar,

abandonaram suas famílias e habitações, acostumando-se a vida errante e a sustentar-se a

custa alheia, por todos os meios possíveis. Em segundo lugar, a presença de vadios e

estrangeiros. Em terceiro, ao luxo que vinha sendo introduzido na então Província de Minas

Gerais. E por último, o aumento progressivo dos jogos de azar como o motivo principal da

imoralidade das classes inferiores dos habitantes de Minas. 178

O recrutamento forçado para o serviço militar era realmente um grande problema

enfrentado pelas autoridades e pela população. Outras regiões do país também enfrentavam

esta situação. A falta de pagamento, a má alimentação, e os riscos a serem enfrentados nas

matas e sertões mineiros não encorajavam os homens a ocuparem as tropas. Mas daí afirmar

que a fuga dos homens frente ao recrutamento fazia com que eles usassem de meios ilícitos

para sobreviver é uma longa distância. A presença de vadios e estrangeiros também

preocupava. A vadiagem teria aumentado ao longo dos anos? A atenção da Coroa para a

questão dos vadios se tornava realmente intensa na medida em que estes eram acusados de

viver no ócio e de perambular pelas noites cometendo delitos. E os estrangeiros nisso tudo,

longe de suas terras e família aproveitariam para viver uma outra vida aqui nas Minas. Os

estrangeiros interferiram então na moralidade dos mineiros? E a vinda de produtos luxuosos

para as Minas gerava uma revolta na camada economicamente mais inferiorizada da

sociedade? E o aumento no número de jogos de azar, foi o grande responsável pela

imoralidade da população? Vejamos que Cunha Matos enumera fatores variados em todos os

sentidos, e poderia enumerar vários outros. É realmente possível identificar motivos para a

177 Ibid. 178 Ibid.

69

proposição de Cunha Matos? Como se deu a incidência de crimes ao longo dos anos?

Observemos o gráfico abaixo que mostra os crimes mais cometidos ao longo dos primeiros

trinta anos do século XIX no Termo de Mariana.

Gráfico 2 - Os crimes mais cometidos no Termo de

Mariana ao longo dos anos (1800-1830)

0

5

10

15

20

25

30

35

40

45

1805 1810 1815 1820 1825 1830

Agressão física Furto Homicídio Penhora

Fonte: Assentos de prisão. Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana.

Os crimes com maior número de ocorrências que resultaram na prisão foram: as

agressões físicas, os homicídios, os furtos e o não pagamento de dívidas. De maneira geral o

gráfico nos mostra que o número de crimes que resultaram na prisão diminuíram ao longo dos

primeiros trinta anos do século XIX, e apesar de algumas oscilações, o número de delitos

cometidos apresentava uma tendência de queda.

As agressões físicas, nos cinco primeiros anos dos oitocentos somam 12 ocorrências.

Este número sobe ao longo dos anos, sendo que puderam ser contabilizadas 19 agressões entre

os anos de 1805 e 1810, e 23 entre 1810 e 1815. Nos quinze anos seguintes o número de

ocorrências cai, sendo 16 casos entre 1815 e 1820, 11 entre 1820 e 1825 e apenas 7 entre

1825 e 1830. O número de homicídios oscila ao longo dos anos, mas também apresenta

70

tendência de queda. Entre 1800 e 1805 ocorreram 12 mortes e nos cinco anos seguintes 13.

No período entre 1810 e 1815 foram somente 5 ocorrências, seguidos de 3 casos nos

próximos cinco anos. Após esta queda, sobem para 10 o número de homicídios entre 1820 e

1825, voltando a cair, agora para 5, entre os anos de 1825 e 1830. Os furtos também

diminuem ao longo dos anos sendo 22 casos nos dez primeiros anos e 15 nos próximos vinte.

As prisões pelo não pagamento de dívidas apresentam uma diminuição mais acentuada ao

longo dos trinta anos estudados. Só nos cinco primeiros anos são contabilizados 41 delitos

desta natureza, caindo para 19 entre 1805 e 1810 e para 16 entre 1810 e 1815. Nos próximos

cinco anos são realizadas somente 3 prisões e os outros dez anos este delito não aparece mais

entre a documentação carcerária.

Para Cunha Matos até o ano de 1820 existia uma maior segurança nas estradas,

podendo as cargas dos tropeiros e as bagagens dos viandantes ficarem nos ranchos ou no meio

dos campos sem correrem risco de serem roubadas. A partir deste período, segundo ele, a

violência aumenta consideravelmente, tendo os mineiros de se preocupar a toda hora com o

acometimento de um possível delito. Podemos notar no gráfico acima que todos os delitos

apresentam uma queda em relação aos primeiros anos dos oitocentos. Mas o que representaria

esta queda? Uma real diminuição na prática de crimes ao longo dos anos ou uma redução nas

prisões devido a alguns problemas de ordem administrativa?

A prisão, no século XVIII funcionava como um armazém, principalmente para

guardar escravos fugidos e aqueles deixados por seus donos quando estes saíam de viagem.

No século XIX passamos a encontrar na prisão uma vasta gama de pessoas, encarceradas ali

pela prática dos mais variados delitos, que nem sempre deveriam ser punidos com este tipo de

pena.

As reformas no campo jurídico foram necessárias, sendo a Constituição de 1824 e o

Código Criminal do Império, de 1830, as principais. A Constituição de 1824 apresentava uma

significativa transformação jurídica. O seu Artigo 21º dizia que "as cadeias serão seguras,

limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para a separação dos réus, conforme suas

circunstâncias e natureza de seus crimes". Em 1830, foi criado o primeiro Código Criminal

brasileiro que "assentou a precedência da conduta criminosa; a irretroatividade; a referência

legal da pena perante a lei; a abolição dos açoites para pessoas livres; torturas; marcas de ferro

quente; das penas de confisco e de infâmia; a inviolabilidade do domicílio; a garantia do

direito de propriedade; o princípio do habeas corpus etc". 179

179 SOUZA, Elizabeth Valéria Rouwe, op. cit.

71

Criado em 1827, o cargo de Juiz de Paz representou, após a instituição do Código

Criminal em 1830 significativas mudanças. Ele expedia ordem de prisão, julgava o processo

crime, elaborava culpa, além de encarcerar e condenar o indivíduo que cometeu pequena falta.

Segundo Elizabeth Rouwe, todas essas atribuições concedidas ao juiz de paz o tornaram

ineficiente e arbitrário, pois sua atuação nos processos crimes resultava em dúvidas e até na

impunidade do réu. 180

O gráfico 2 nos mostra que o número de prisões diminuíram com o passar dos anos,

principalmente a partir de 1815. Mas afinal, é possível apresentar motivos para esta queda?

Acreditamos que o índice de crimes não diminuiu e sim o número de prisões. Sabemos

também que a prisão não deveria ser aplicada isoladamente e que existia uma intenção

diferente entre a prisão do século XVIII e a do XIX. Observamos ainda que o início do século

XIX foi um período de mudanças consideráveis no âmbito da Justiça e que a Constituição de

1824 previa mudanças quanto à disposição das cadeias. Estas mudanças em andamento,

mesmo que não modificassem de maneira efetiva a administração carcerária, guardando ainda

resquícios do Antigo Regime, podem juntas ter afetado a aplicação da Justiça principalmente

a partir de 1815. Vejamos as prisões pelo não pagamento de dívidas que diminuíram ao longo

dos anos até não serem mais encontradas por volta de 1815, pensando o período estudado que

vai de 1800 a 1830.

180 Ibid.

72

Fonte: Assentos de prisão. Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana.

A prisão pelo não pagamento de dívidas parecia comum no Termo de Mariana no

início do século XIX, haja vista que depois das agressões físicas, foi o delito que mais

apareceu na documentação pesquisada. Mais interessante ainda é o fato de que a prisão por

dívidas estava abolida desde o dia 20 de junho de 1774. 181 Contudo as prisões continuam

ocorrendo até pelo menos o ano de 1817. Entre os anos de 1800 e 1805 foi possível verificar

41 prisões, cuja causa foi o não pagamento de dívidas. Nos cinco anos seguintes este número

cai para 19, chegando a 16 entre 1810 e 1815. Entre 1815 e 1820 foram registradas apenas 3

ocorrências e nos anos seguintes nenhuma. A grande maioria dessas prisões deveu-se a

penhora de bens, que se origina das dívidas e aparece como possível garantia de pagamento.

A venda a prazo parecia ser comum e a penhora de bens tornava-se garantia de quitação da

dívida, o que por muitas vezes acabava não acontecendo. Quando os bens penhorados não

eram entregues ao credor no tempo determinado a prisão do depositário ocorria na tentativa

de fazer com que o bem fosse repassado ao credor, ou a dívida fosse quitada.

José Caetano foi preso em Mariana no dia 05 de julho de 1802 por não trazer à praça

seus bens penhorados. 182 O Alferes José Joaquim de Vasconcelos foi preso em Mariana no

181 Ordenações Filipinas. Livro V, p. 491. 182 AHCMM. Códice 167, folha 106.

Gráfico 3 - A prisão por dívidas ao longo dos anos

(1800-1830)

00 3

16

19

41

0

10

20

30

40

50

1805 1810 1815 1820 1825 1830

Dívida e penhora

73

dia 22 de março de 1803 pelo mesmo motivo. 183 Manuel Teixeira Sampaio foi preso em

Mariana no dia 01 de junho de 1807 por ser depositário de bens penhorados. 184 Maria

Severina foi presa em Mariana no dia 25 de agosto de 1808 por ser depositária de uma escrava

de nação Angola penhorada chamada Tereza. 185 O Alferes Antonio Pereira de Azevedo foi

preso em Mariana no dia 06 de novembro de 1810 por ser depositário de bens penhorados. 186

Todas as prisões citadas acima e tantas outras motivadas pelo não pagamento de dívidas

documentadas nos assentos de prisão da Cadeia Pública de Mariana demonstram a real

intenção da administração camarária referente a este delito. A prisão funcionava realmente

como meio de intimidação, fazendo com que o devedor quitasse sua dívida. Além disso, os

assentos de prisão correspondentes a este delito não trazem informações substanciais a

respeito do preso, informando somente o nome do indivíduo. A cor da pele, por exemplo, não

era informada. Já mencionamos que quando o devedor quitava a dívida ou entregava os bens

penhorados o mesmo era solto imediatamente, e que, além disso, o tempo máximo que uma

pessoa poderia ficar presa por este crime era de seis meses. Veremos a frente o tempo que os

indivíduos presos pelo não pagamento de dívidas passavam encarcerados na Cadeia Pública.

Mas por que tantas pessoas eram presas pela prática deste delito na Minas do século XIX?

A compra e venda de mercadorias era também um fenômeno distinto para diferentes

estratos sociais. Pensando o período colonial, a circulação mercantil nas Minas se deu, em

grande medida, por meio do pagamento a prazo, principalmente as grandes compras de

mercadorias. As compras miúdas eram feitas à vista.

Nas Minas essas práticas se propagaram juntamente com o comércio e se

intensificaram principalmente nas grandes vilas e arraiais. O crédito passava a ser a maneira

mais comum de se adquirir uma mercadoria ou adquirir um serviço. As compras a prazo eram

acertadas tanto de maneira escrita, onde as partes assinavam algum documento, ou só na

palavra mesmo. As compras a prazo, o fiado, o crédito, o empréstimo e a penhora faziam

parte do dia a dia do comércio. Esta última proporcionava uma garantia ao comerciante ou

prestador de serviço, na medida em que se a dívida não fosse quitada o mesmo ficaria com o

bem penhorado pelo devedor. Alguns comerciantes, por precaução, exigiam que seus

devedores escrevessem, ou pelo menos assinassem títulos de compra a fim de que, caso não

fossem cumpridos os contratos, eles não enfrentassem dificuldades em iniciar querela judicial.

É preciso acrescentar que as dívidas eram contraídas tanto por compradores quanto por

183 AHCMM. Códice 167, folha 111. 184 AHCMM. Códice 167, folha 149. 185 AHCMM. Códice 167, folha 154. 186 AHCMM. Códice 167, folha 160.

74

vendedores, criando assim, um verdadeiro circuito de crédito. O comércio dependia do crédito

para sua sobrevivência e parte da sociedade mineira funcionava ora como credora ora como

devedora, compensando assim, esta troca. 187

No entanto, no início do século XIX, esta troca entre devedores e credores pareceu

não acabar muito bem. A penhora tornava-se assim uma faca de dois gumes. Num primeiro

momento apresentava uma garantia em um possível negócio e num segundo momento poderia

levar o indivíduo à prisão. É preciso compreender que a prisão nestes casos reforçava a

garantia do credor, pois assim que a dívida fosse quitada o até então devedor sairia em

liberdade. A penhora, no momento do negócio, se tornava interessante para os dois lados.

Uma pessoa que está sem condições, por exemplo, de comprar bens de consumo numa venda

usa a penhora como uma garantia para a realização da compra. O comerciante por sua vez vê

a oportunidade de não sair perdendo, já que possui um bem como garantia. Quando o devedor

não consegue quitar sua dívida tem de entregar o bem penhorado num tempo determinado

pela Justiça. No entanto a pessoa acreditava que isso não seria necessário, pois conseguiria o

dinheiro necessário para o pagamento. O bem penhorado nestes casos com certeza era um

bem importante que a pessoa não poderia se desfazer e se vê obrigada a fazê-lo. Quando não o

faz o resultado é a prisão.

Outro aspecto a ser analisado referente às prisões é o local onde os crimes são

cometidos, afinal é mais fácil para a administração carcerária tomar conhecimento e fazer

punir os delitos cometidos nas regiões mais próximas de sua sede, no caso a Casa de Câmara

e Cadeia de Mariana. Observemos o que nos mostra a documentação pesquisada. A maioria

dos crimes é cometida em Mariana ou em seus distritos? Ou melhor, a atuação da Justiça se

faz mais eficaz em Mariana ou nos distritos? Vejamos o gráfico abaixo.

187 ROMEIRO, Adriana. Dicionário Histórico das Minas Gerais. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. págs. 113,

114 e 115.

75

288

136

0

50

100

150

200

250

300

Gráfico 4 - A incidência de crimes cometidos na cidade

e nos distritos (1800-1830)

Mariana Distritos

Fonte: Assentos de prisão. Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana.

Como mencionado, o Termo de Mariana, além da sede, acolhia outros 13 distritos,

que por sua vez eram responsáveis por 40 arraiais. Uma população estimada no ano de 1821

por Cunha Matos 188, em torno de 50.191 almas habitando 8.090 fogos. Portanto, a

Administração Carcerária era responsável por qualquer crime ocorrido neste território e

consequentemente pela prisão de todos os infratores.

A sede, Mariana, possuía 336 fogos e 2.040 almas. Somados aos 613 fogos e as

2.917 almas correspondentes aos �pequenos lugares� de Passagem de Mariana, Morro de

Santa Ana, Várzea, Morro de Santo Antônio e Monsus, Mariana teria no total 949 fogos

abrigando 4.957 almas. Logo, os distritos de Antônio Pereira, Sumidouro, São Caetano, São

Sebastião, Furquim, Camargos, Barra Longa, Guarapiranga, Cuieté, Infincionado, Catas Altas

do Mato Dentro, São João Batista do Presídio e São Manuel dos Índios da Pomba totalizavam

juntos 7.141 fogos e 45.234 almas.

188 MATOS, op. cit.

76

Podemos visualizar no gráfico 4 que o número de crimes cometidos pelos habitantes

de Mariana é consideravelmente maior que os cometidos pelos habitantes dos distritos. No

total, 288 crimes foram cometidos pelos moradores de Mariana, portanto, aproximadamente

68% do total, enquanto que nos distritos, foram 136 crimes, logo 32% do total de ocorrências.

Uma chave para explicação destes dados pode ser a ineficiência da fiscalização e aplicação da

Justiça nos distritos.

O território a ser vigiado pela administração carcerária era extenso, o que tornava

complicada a ação dos oficiais responsáveis pelas prisões. Como todo o corpo de oficiais da

Câmara e Cadeia se localizava em Mariana a efetiva repreensão dos delitos cometidos nos

distritos e arraiais do Termo ficava prejudicada. Certamente a administração da Câmara

contava com auxílio de pessoas que delatavam seus vizinhos e conhecidos nestas regiões. Já

mencionamos a questão das querelas, e talvez estas fossem o meio mais fácil de identificar e

prender os infratores.

Silvia Hunold Lara destaca, para o Rio de Janeiro do século XVIII, a ação dos

quadrilheiros. Estes quadrilheiros chefiavam um conjunto de vinte vizinhos e deviam

controlar uma área da cidade com o fim de evitar delitos como alcouces (prostituição),

tabulagem (casas de jogos), furtos, barreguices (concubinatos), alcoviteiros e feiticeiros, além

de acalmar desordens e insultos, e auxiliar na prisão e castigos dos culpados. Notemos que os

quadrilheiros vigiavam algumas áreas das cidades e eram responsáveis até mesmo pelo

auxílio nas prisões dos indivíduos. Não temos notícia de tal prática em Minas para o século

XIX, mas esta alternativa, nos distritos a arraiais se tornava possível, na medida em que o

número de oficiais da Cadeia era reduzido e o auxílio da população se fazia essencial. 189

Antônio Pereira, Sumidouro, Barra Longa, Guarapiranga, Infincionado, Catas Altas

do Mato Dentro e São Manuel dos Índios da Pomba foram os distritos com maior número de

delitos contabilizados pela administração carcerária do Termo de Mariana entre 1800 e 1830.

Os dados apresentados no gráfico 4 nos apontam que a maioria dos crimes eram cometidos

por moradores de Mariana e não dos distritos. No entanto, devemos ressaltar que a estatística

se refere não ao total de crimes ocorridos e sim ao total de prisões. O número de delitos

cometidos pelos moradores dos distritos possivelmente era muito maior, o que a estatística

não mostra. Vejamos então como é complicada a afirmação de que Minas era uma região

violenta. As fontes oficiais referentes aos crimes não nos permite comprovar o alto índice de

violência atribuído à região das Minas. Quando buscamos comparar o número de crimes

189 LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1988.

77

contabilizados pela administração carcerária com o número de pessoas que habitavam a

região, isto se torna mais evidente. Talvez por isso, dados quantitativos não representem a

maneira mais clara de se estudar a prática do crime. Contudo, os dados quantitativos nos

apontam o total de pessoas que foram presas, e nosso estudo se remete a elas, uma parte da

população que a Justiça conseguiu repreender. Afirmar a violência de uma determinada

sociedade baseando-se em dados oficiais é complicado na medida em que a Justiça não

atingia a população como um todo. Contudo, afirmar a violência de uma determinada

sociedade somente com casos e relatos escolhidos de forma aleatória é mais complicado

ainda, pois não sabemos efetivamente se estes demonstram somente uma impressão quanto ao

povo mineiro ou uma realidade. O que é ser violento na Minas da primeira metade do século

XIX? A região da Minas era muito violenta? Depende de quem olha. Um estrangeiro que

chega a Minas no século XIX e depara-se com uma realidade diferente da sua pode afirmar

que esta sociedade é violenta, já o residente nesta, se adequava à situação. 190

Outro questionamento interessante é a dificuldade da Justiça em lidar com regiões

mais afastadas de seu pólo de poder e que ainda não possuíam uma rede de ligações

estreitadas. Acreditamos que os distritos do Termo de Mariana eram mais difíceis para a

Justiça observar atentamente. O número de oficiais parecia ser reduzido para a população total

do Termo e uma ação eficiente por parte dos mesmos tornava-se complicada.

[...] as sociedades com monopólios mais estáveis da força, que sempre começam

encarnadas numa grande corte de príncipes ou reis, são aquelas em que a divisão de

funções está mais ou menos avançada, nas quais as cadeias de ações que ligam os

indivíduos são mais longas e maior a dependência funcional entre as pessoas. Nelas

o indivíduo é protegido principalmente contra ataques súbitos, contra a irrupção de

violência física em sua vida. Mas, ao mesmo tempo, é forçado a reprimir em si

mesmo qualquer impulso emocional para atacar fisicamente outra pessoa. (ELIAS, 1993, p. 198) 191

De acordo com Carla Anastasia, numa capitania razoavelmente urbanizada, como foi

a de Minas Gerais, foram os sertões, as matas gerais, as serras, as zonas proibidas, os lugares

190 Podemos perceber um olhar de estranhamento e reprovação por parte dos viajantes quanto aos hábitos da

população colonial em geral, e não só o crime e a violência eram alvos de seus relatos. A historiadora Sônia

Maria de Magalhães ao pesquisar o habitus alimentar dos mineiros afirma o seguinte: �Naturalmente, são os

viajantes estrangeiros que nos fornecem os depoimentos mais interessantes acerca dos costumes, dos hábitos

e do comportamento à mesa do brasileiro. Eles interpretam o cotidiano do brasileiro considerando-o muitas vezes insólito e exótico. Dessa forma, esses relatos devem ser analisados com cautela, pois os viandantes

interpretaram o Brasil baseando-se na realidade de seus próprios países: estava bem e era bom o que era

igual ou parecido, e o diferente, aquilo que identificava nossa cultura, era sempre depreciado�. Logicamente

os relatos referentes à violência e ao crime excediam o aspecto do costume, mas toda a análise baseava-se numa realidade diferente daquela vivida pelo viajante em seu país.

191 ELIAS, op. cit.

78

onde a autonomização da burocracia gerou um grau mais baixo de institucionalização política.

Isto facilitava segundo a autora a ação de salteadores, quilombolas, vadios e contrabandistas

nestas regiões. Anastasia parte do pressuposto de que nessas áreas onde a violência

predominou foi possível a constituição de territórios de mando, onde se disseminou o

mandonismo bandoleiro, lugares nos quais a tirania era exercida fundamentalmente pela

violência armada e pela intimidação física. A autonomização da burocracia que se expressou,

fundamentalmente, nos conflitos de jurisdição entre as autoridades, na iniqüidade e/ou

omissão da ação pública alimentava, nessas áreas, a noção da legitimidade da violência. 192

Logicamente as áreas as quais Anastasia se refere são regiões mais distantes do

centro minerador. Os distritos do Termo de Mariana não chegam a tanto, mas se entendermos

que o distanciamento de uma região em relação a seu centro regulador permite que

determinada população seja menos observada, podemos reconhecer então, que os distritos de

Mariana, principalmente os mais distantes, eram menos atingidos pelas ações da Justiça.

Mencionamos até aqui informações referentes à qualidade dos delitos, mostrando

quais eram os mais praticados na região, qual a punição para tais infrações, qual a incidência

de crimes ao longo do período estudado e se estes crimes prevaleciam em Mariana ou nos

distritos. Agora buscaremos analisar o perfil dos presos, começando pelo número de homens e

mulheres dentre os encarcerados na Cadeia Pública de Mariana.

192 ANASTASIA, op. cit.

79

404

20

0

100

200

300

400

500

Gráfico 5 - Homens e mulheres presos na Cadeia

Pública (1800-1830)

Homens Mulheres

Fonte: Assentos de prisão. Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana.

Encarcerados na Cadeia Pública de Mariana pudemos encontrar 424 pessoas, sendo

404 homens e apenas 20 mulheres. Logo, 95% dos presos eram homens e 5% eram mulheres.

Esta imensa diferença encontra explicação em uma realidade importante: o papel a ser

desempenhado pela mulher na sociedade dos oitocentos. Apesar de sabermos que na camada

mais pobre da população a mulher exercia um papel fundamental no auxílio financeiro ao lar,

a responsabilidade pelos problemas da família, quando esta estava constituída, era atribuída

ao homem. Um problema financeiro a ser solucionado ou uma questão de honra da família

devia ser resolvido pelo homem, que muitas vezes acabava sendo preso.

Entre as 20 mulheres presas conseguimos identificar os delitos que levaram dezesseis

destas a prisão. Foram quatro homicídios, quatro agressões físicas, três querelas, três prisões

por dívidas, um furto e uma resistência à autoridade. Maria Martins, crioula forra, casada, de

26 anos de idade, foi presa em Mariana no dia 19 de maio de 1804 por ferir o rosto de

Violante Maria dos Santos. 193 Luísa Antônia Pinheiro, parda forra de 40 anos de idade,

fiandeira, foi presa na Barra Longa no dia 21 de junho de 1804 por ferir o Capitão Maximiano

Gomes e por resistir à prisão. 194 Thereza, preta escrava, foi presa em Mariana no dia 12 de

janeiro de 1808 por ter matado um tal Simão, escravo de propriedade de seu senhor Antônio

193 AHCMM. Códice 167, folha 123. 194 AHCMM. Códice 167, folha 124 v.

80

José da Cunha. 195 Justina, mulher cabra foi presa em Mariana no dia 20 de fevereiro de 1809,

juntamente com o crioulo Manuel Brandão, por ter furtado gado do Capitão Boa Ventura

Fernandes de Oliveira. 196 Dentre os casos relacionados podemos observar uma briga entre

mulheres, uma resistência à prisão, a morte de um escravo e um furto com o auxílio de um

homem. Estes delitos representam uma tendência entre as mulheres presas. O que motivaria

uma briga entre mulheres? O que levaria uma escrava a matar outro cativo? Por que a ajuda

de um homem no furto?

As respostas podem ser muitas, mas algumas parecem se aproximar mais da

realidade da mulher neste período. As brigas entre mulheres, por exemplo, faziam parte do

cotidiano, principalmente se estas fossem mestiças e libertas. Isto se deve não a uma questão

racial, mas sim ao papel atribuído ao liberto nesta sociedade ainda escravista. E o papel deste

liberto estava na maioria das vezes ligado a pobreza, a uma situação de penúria. Maria

Martins, por exemplo, parecia ser uma mulher pobre, haja vista as roupas que usava no

momento de sua prisão: uma saia de pano grosso e chinelas de couro velhas. 197

Os locais freqüentados por estas mulheres e a posição destas na sociedade colonial

devem ser considerados. Os conflitos surgiam no ambiente freqüentado pelas mulheres. Os

rios nos quais as mulheres lavavam as roupas de sua família, por exemplo, eram ambientes

freqüentados por muita gente e os conflitos poderiam surgir a partir de qualquer discussão

sem muita expressão.

A questão dos crimes cometidos por mulheres escravas é outra questão complicada e

mais a frente discutiremos esta questão, pensando como a Justiça lidava com a situação. No

caso citado acima, em que Thereza foi presa por matar Simão, devemos ter em mente que o

sistema escravista é violento por si só, e talvez fosse mais fácil para Thereza acabar com

alguma desavença desta maneira. Esta é uma realidade. O que motivou a ação da escrava

infelizmente não se sabe, mas este não é ponto mais importante. Mais do que desvendar os

motivos do crime, que por sinal, poderiam ser muitos, torna-se interessante verificar a ação da

Justiça nestes casos, vistos que o controle e o castigo a ser ministrado aos escravos, cabiam a

seu senhor, ainda mais quando o �criminoso� e a vítima faziam parte de seu plantel.

Justina foi presa junto com Manuel por furtar gado. Ela contou com a ajuda de um

homem, mas não conseguimos identificar uma ligação próxima entre os dois, se eram

casados, amancebados, parentes ou só conhecidos. Casos como estes e os outros citados

195 AHCMM. Códice 167, folha 151 v. 196 AHCMM. Códice 167, folha 157 v. 197 AHCMM. Códice 167, folha 123.

81

envolvendo mulheres são pouquíssimos, como vimos, e entre as criminosas não há sequer

uma mulher branca. Estes casos demonstram qual o lugar destas mulheres na sociedade. O

número de mulheres brancas era reduzido e muito inferior ao de mestiças, o que pode explicar

a questão. As mulheres brancas conseguiam os melhores casamentos e usufruíam de melhores

condições de vida, o que dificilmente acontecia com as mestiças. Muitas das vezes, a mulher

parda, cabra ou crioula ajudava na renda familiar com a execução de pequenos serviços, e

talvez Justina tivesse �colaborando� com Manuel.

O homem era o chefe da família, sendo o responsável pela solução de problemas,

sejam estes de ordem financeira ou moral. Nas Minas, as mulheres estiveram excluídas de

qualquer exercício de função política nas Câmaras Municipais e na administração eclesiástica,

sendo proibidas de ocupar cargos da administração colonial que lhes garantissem

reconhecimento social.

Entre os ofícios que se multiplicam pelas Gerais, por multidões de ferreiros,

latoeiros, sapateiros, pedreiros, carpinteiros, ourives, pouco se vislumbra da presença feminina. Apareciam, sim, ocupadas na panificação, tecelagem e

alfaiataria, dividindo com os homens essas funções, cabendo-lhes alguma exclusividade quando eram costureiras, doceiras, fiandeiras e rendeiras. Ainda como cozinheiras, lavadeiras ou criadas reproduziam no Brasil os papéis que

tradicionalmente lhes eram reservados. (FIGUEIREDO, 2004, p. 142) 198

Além destes serviços, a presença feminina foi sempre destacada no exercício do

pequeno comércio. O comércio ambulante representava ocupação preponderantemente

feminina. De acordo com Luciano Figueiredo a atuação das mulheres no pequeno comércio

era fruto da convergência de duas referências culturais determinantes no Brasil. A primeira

delas está relacionada à influência africana, uma vez que nessas sociedades tradicionais as

mulheres desempenhavam tarefas de alimentação e distribuição de gêneros de primeira

necessidade. O segundo tipo de influência deriva da transposição para esta sociedade da

divisão de papéis sexuais vigentes em Portugal, onde a legislação amparava de maneira

incisiva a participação feminina. 199 A estabilidade nas uniões consensuais instituídas entre as

camadas populares possibilitou uma divisão de papéis no domicílio caracterizada por uma

maior atuação feminina do que a prevista no casamento cristão, afirma Figueiredo.

198 FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Mulheres nas Minas Gerais. In: DEL PRIORE, Mary. História

das Mulheres no Brasil. São Paulo: Com texto, 2004. (141-188) 199 Ibid. 144.

82

O verdadeiro estímulo para a definição de papéis não foi o discurso teológico que

fixava a submissão feminina no casamento, mas as exigências de um cotidiano que

era vital a repartição de tarefas ou a transferência de papéis para a sobrevivência do

grupo doméstico. Mesmo com a presença do parceiro nestas uniões, à mulher

cabiam funções determinantes para sua manutenção: umas ocupadas no pequeno

comércio, outras na administração da casa e dos negócios do companheiro,

permanentemente ou em sua ausência. Se para a Igreja a atuação feminina em determinadas funções domésticas parecia ultrapassar os limites desejáveis da moral

cristã, é necessário situar a importância da associação entre o trabalho feminino e a

economia doméstica. (FIGUEIREDO, 2004, p. 178) 200

Exatamente nesta divisão de papéis que entendemos a prática do crime pelas

mulheres. Ao que tudo indica, entre as camadas empobrecidas, a divisão dos papéis obedeceu

muito mais às necessidades econômicas que qualquer preconceito sexual na distribuição de

tarefas, e no caso do crime também. Talvez isto explique o motivo de não se encontrar sequer

uma mulher branca entre os encarcerados da Cadeia Pública, visto que estas conseguiam os

melhores casamentos, do ponto de vista financeiro, estando a ação da mulher nestes casos,

estreitamente ligada à ação do homem, de seu marido, do chefe do domicílio. Quando a

família necessitava de uma mobilização de todos residentes no domicílio para a manutenção

do mesmo, a mulher passava a exercer um pequeno ofício que lhe proporcionasse alguma

renda, mesmo que pequena. A transferência da chefia dos domicílios para a mulher nos

núcleos familiares simples tornou a atuação feminina tão mais importante quando mais íntima

era a associação entre vida doméstica e trabalho produtivo. No caso específico do crime,

existia também uma maior participação das mulheres pertencentes a uma camada

inferiorizada, uma camada que necessitava da participação conjunta da família nas atividades

financeiras, o que demonstra uma autonomia maior por parte destas mulheres na condução

dos assuntos cotidianos.

Quando buscamos fontes oficiais que apontem a criminalidade no Brasil do século

XIX é possível notar a preocupação da Justiça com a presença de escravos e libertos na

sociedade. Os viajantes europeus quando visitaram o Brasil no século XIX também

destacavam a grande presença de negros e libertos e os prejuízos causados por estes à boa

ordem de uma determinada localidade. Os libertos afligiam as autoridades, mas eram eles os

principais responsáveis pelos crimes cometidos? Vejamos.

200 Ibid. 178.

83

335

47

39

0 50 100 150 200 250 300 350

Gráfico 6 - A condição dos presos da Cadeia Pública (1800-

1830)

Livre Escravo Forro

Fonte: Assentos de prisão. Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana.

Podemos observar no gráfico 6 a condição dos presos da Cadeia Pública de Mariana

nos primeiros trinta anos do século XIX. No total foram 335 delitos praticados por livres, 47

por escravos e 39 por forros. Logo, aproximadamente 80% dos crimes eram praticados pelos

livres, 11% pelos escravos e 9% pelos forros. A preocupação da administração colonial com

os escravos e forros era intensa e tornava-se costumeiro encontrar reclamações das

autoridades que tinham como teor a qualidade dos povos. O gráfico nos mostra uma realidade

bem diferente, visto que 80% dos encarcerados da Cadeia Pública eram homens livres, o que é

natural, na medida em que a população livre prevalece.

Os dados apresentados por Raimundo José da Cunha Matos para o Termo de

Mariana no ano de 1821 apontam a composição da população na seguinte proporção: 30.924

livres, sendo 14.690 homens e 16.234 mulheres; e 20.751 escravos, sendo 13.346 homens e

7.405 mulheres. Portanto, 60% da população eram livres e 40% escravos. Os homens

representavam 60% da população e as mulheres 40%. 201

O índice de crimes cometidos pelos livres pode ser considerado alto se relacionarmos

o número de crimes com o total de população. No entanto, devemos fazer duas considerações:

a primeira, que o controle dos escravos cabia ao senhor, e a segunda que este índice se refere

201 MATOS, op. cit. p. 60.

84

aos crimes punidos pela Justiça. Muitos escravos, principalmente no século XVIII, ficavam

alojados na Cadeia Pública quando seus senhores viajavam. Os senhores pagavam as diárias

dos escravos na Cadeia e os cativos eram alimentados e principalmente, vigiados. Os fugidos

que conseguiam ser capturados também ficavam aprisionados na Cadeia até seus donos irem

buscá-los. A Justiça, muitas das vezes, não conseguia identificar os autores dos crimes e no

caso dos escravos, isto se complicava. O senhor não poderia perder a mão-de-obra e o

investimento feito na compra do cativo entregando-o ao cárcere. Por isso grande parte dos

delitos pode não ter sido registrada pela administração carcerária.

No caso específico das mulheres as taxas se modificam um pouco, sendo que 55%

dos crimes são cometidos por mulheres livres, 28% por forras e 17% por escravas. Como

comentamos ao longo deste capítulo, os crimes cometidos pelas mulheres têm estreita relação

com a posição que estas ocupam na sociedade, principalmente as mulheres negras e mestiças.

Os locais freqüentados pelas mulheres mestiças também influenciavam a prática dos

delitos. De acordo com Luciano Figueiredo as vendas eram quase sempre o lar de mulheres

forras ou escravas que nelas trabalhavam no trato com o público. O destaque da presença

feminina no comércio era ainda acentuado pelas mulheres chamadas de negras de tabuleiro.

�Elas infernizaram autoridades coloniais e todos os rios de tinta despejados na legislação

persecutória e punitiva não foram capazes de diminuir seu ânimo em Minas e pelo Brasil

afora�. 202

Logo as mulheres foram identificadas como um perigo na região de Minas. As

mulheres congregavam em torno de si segmentos variados da população pobre mineira,

muitas vezes prestando solidariedade a práticas de desvio de ouro, contrabando, prostituição e

articulação com os quilombos, o que motivou a criação de uma série de proibições tentando

impedir o funcionamento do comércio ambulante próximo às áreas de mineração. 203

A pobreza de muitas mulheres fazia a prostituição lhes servir de atividade

complementar e a região mineradora era um atrativo para elas. De acordo com Luciano

Figueiredo, foi necessário proibir que as mulheres saíssem dos limites das vilas e arraiais e, ao

mesmo tempo, adotar medidas fiscais para regular seu funcionamento. Para controlá-las,

estimulava-se a delação, prática comum da administração colonial quando reconhecia sua

incapacidade de reprimir transgressões. As punições que aguardavam as transgressoras eram

202 FIGUEIREDO, op. cit. 145. 203 Ibid. p. 146.

85

invariavelmente severas, quase sempre dirigidas às negras, mulatas ou carijós, fossem forras

ou escravas. 204

[...] momentos de violência ocorreram nestes ambientes freqüentados pelas prostitutas e seus clientes, locais de brigas e mortes. Fregueses ciumentos, inquietos, geravam as bulhas de que se tem notícia. Por tudo isso, nessas ocasiões

de encontros e trocas, conflitos e desavenças, bebidas e devaneios, o lazer e o ócio

dos grupos populares passavam a ser ingredientes perigosos em uma sociedade escravista movida a trabalho. (FIGUEIREDO, 2004, p. 160)

Esta sociedade escravista apresentou no início do século XIX um índice de

criminalidade em que prevaleceu a atuação de homens livres, homens que representavam 60%

da população em meados dos anos vinte dos oitocentos. As mulheres negras e mestiças

aparecem entre os encarcerados da Cadeia Pública como as responsáveis pelos delitos, mas

longe de representarem uma preocupação para a administração carcerária, como as negras de

tabuleiro no auge da mineração. Afinal apenas 5% dos crimes foram cometidos por mulheres.

Já os escravos cometeram apenas 11% dos delitos. A administração colonial devia se

preocupar mais com os escravos ou com os homens livres? Logicamente, a preocupação com

os escravos aumentava devido ao medo de uma revolta que alterasse a ordem vigente e esse

medo intensificava-se quando os cativos estavam envolvidos em algum crime. A manutenção

do sistema de trabalho escravista era essencial para os interesses da Coroa e qualquer ação de

rebeldia ou infração da lei por parte dos escravos seria reprimida. Observemos então o gráfico

abaixo que aponta os crimes cometidos pelos escravos.

204 Ibid. p. 154.

86

Gráfico 7 - Os crimes cometidos pelos escravos (1800-1830)

35%

3%44%

12%6%

Homicídio Tentativa de homicídio Agressão física

Furto Danos à propriedade

Fonte: Assentos de prisão. Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana.

Como vimos na análise do gráfico anterior apenas 11% dos crimes eram cometidos

por escravos. Destes, 44% eram representados por agressões físicas, 35% por homicídios,

12% por furtos, 6% por danos à propriedade e apenas 3% por tentativas de homicídio.

Notamos que todos os delitos praticados pelos escravos eram violentos, considerando que no

momento do furto também poderia ocorrer o uso da violência.

O escravo Antônio crioulo foi preso no distrito de São Manuel dos Índios da Pomba

no dia 23 de dezembro de 1803 por ter matado seu senhor, José Joaquim Nunes. 205 Francisco,

escravo crioulo, foi preso em Sumidouro no dia 20 de agosto de 1804 também por ter matado

seu senhor, Eleutério Pereira. 206 Eduardo, escravo cabra do Capitão José Luiz França Lira, foi

preso em Mariana no dia 06 de fevereiro de 1805, por causa de alguns furtos feitos ao

Reverendo Cônego Francisco da Silva Campos. 207 Bento, escravo crioulo de Dona Antônia,

foi preso em Mariana no dia 24 de agosto de 1809 pelos ferimentos causados a Francisca

Dias. 208 O escravo Felipe, de Nação Mina, foi preso em Mariana no dia 29 de outubro de

1811 por ter matado João Nunes. 209 Antônio, escravo de Joaquim José de Santa Anna foi

preso em Mariana no dia 31 de julho de 1824 por ter dado um tiro em um determinado 205 AHCMM. Códice 167, folha 116. 206 AHCMM. Códice 167, folha 126. 207 AHCMM. Códice 167, folha 132. 208 AHCMM. Códice 167, folha 158 v. 209 AHCMM. Códice 167.

87

Coronel. 210 De maneira geral, todos estes casos denotam a prática de crimes violentos pelos

escravos. Os homicídios de dois senhores de escravos, os tiros dados no Coronel e os furtos

feitos ao Reverendo Cônego eram motivos de preocupação para a administração da Câmara,

tendo em vista que todos iam contra os interesseis da Coroa. E sobre estes delitos, a Justiça

era aplicada com uma maior força.

De acordo com Maria Cristina Cortez Wissenbach, em estudo realizado sobre a

criminalidade escrava em São Paulo durante a segunda metade do século XIX, aos escravos,

autorizavam-se trabalhos autônomos já consentidos pelos senhores. Os cidadãos queixavam-

se das arruaças e aglomerações ruidosas provocadas por eles, descrevendo em alguns casos

momentos de rebeldia, que chegaram a ameaçar os proprietários da cidade. Identificados

como agentes de desordem social, sobre eles concentrava-se o olhar desconfiado e

preconceituoso da sociedade da época. Ligados a atividades econômicas de pequena monta,

no geral informais, tiveram-nas fiscalizadas e por vezes reprimidas. (WISSENBACH, 1998,

p. 34) 211

Segundo Wissenbach as direções tomadas pelos crimes cometidos pelos escravos não

surpreendem. A primazia dos delitos de sangue foi traço comum à criminalidade nas

sociedades pré-capitalistas e a criminalidade escrava não destoava da regra geral. Inicialmente

e pela própria condição dos réus, surgia forte a problemática do domínio escravista e sua

contrapartida, a resistência dos escravos ao domínio e por vezes à própria escravidão. Dessa

forma, os delitos praticados pelos cativos contra senhores e afins informam conteúdo

historicamente persistente dos crimes de escravos: em muitos sentidos, homicídios de

senhores e feitores ocorridos nos distritos rurais, nas cidades, na época colonial ou nos tempos

da desagregação do regime assemelham-se entre si, refletindo a contradição básica do

sistema. 212

Os primeiros trinta anos do XIX não destoavam desta realidade, pois a maioria dos

crimes era violenta, 82% no total se considerarmos homicídios, agressões físicas e tentativas

de homicídio. O medo de uma insurgência escrava contra as autoridades coloniais era

constante, e, devido a esta situação, os crimes cometidos pelos escravos que tivessem caráter

de rebelião contra o sistema escravista seriam punidos severamente. 213

210 AHCMM. Códice 167. 211 WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos Africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo

(1850-1880). São Paulo: Hucitec, 1998. p. 34. 212 Ibid. p. 49. 213 Foram diversas as �revoltas� escravas que perpassaram todo o século XVIII. De acordo com Anastasia é

possível notar que a ameaça de uma generalizada revolta escrava perdurou por todo o período imperial, e

que o medo da �haitinização� do Brasil determinou a necessidade de um firme controle dos negros. Devido

88

[...] no início do povoamento das Minas, o Rei de Portugal escrevia ao Governador

Geral do Rio de Janeiro, comentando os roubos e malefícios cometidos nas

estradas pelos negros fugidos, os quais se reuniam nas serras e, durante a noite, desciam aos caminhos, colocando em pânico os viajantes. O Rei recomendava ao

Governador ter cuidado no trato com os negros, insinuando a defesa de uma certa acomodação entre os atores sociais das minas para que �os escravos não viessem a

fazer nessa capitania o que fizeram nos Palmares de Pernambuco�. (ANASTASIA,

1998, p. 126) 214

Os furtos cometidos pelos escravos representaram apenas 12% do total de delitos

praticados pelos escravos. Segundo Wissenbach, os furtos denotam existência de práticas

econômicas de caráter residual realizadas entre escravos e extensivas aos homens livres

pobres, instituindo, na maior parte das vezes, formas pelas quais proviam suas necessidades

básicas ou um pouco mais além do mero vestir e comer. Como maneira complementar de

sobrevivência, explica-se a apropriação de produtos de pequeno valor, mas que se revertiam

em suplementação monetária, importante num regime de trabalho e numa sociedade nos quais

ausentavam fontes regulares de suprimento de dinheiro, ao mesmo tempo em que exigiam dos

escravos a participação como pequenos consumidores. 215

Nesse sentido, furtos ou roubos pouco se distinguiam, em conteúdo, da venda de

capim, de água aos soldados, de tarefas esporádicas feitas nos intervalos do trabalho. Além, disso, parte das apropriações teve sentido claramente simbólico: o

roubo de um par de botinas ou de um chapéu elegante de mulher que, no dia

seguinte, eram desfilados desajeitados, mas orgulhosamente pelos escravos nas ruas da cidade. (WISSENBACH, 1998. p. 52) 216

A preocupação com a criminalidade escrava visava controlar a ação dos cativos,

impedindo que estes se rebelassem contra o sistema vigente. Se analisarmos os índices de

crimes cometidos pelos escravos, apenas 11% em relação ao total de crimes contabilizados

pela administração carcerária, estes não deveriam afligir as autoridades, pois 80% dos crimes

eram cometidos por livres. Pudemos observar ainda que a imensa maioria dos delitos

praticados pelos escravos era violenta, prevalecendo os homicídios, as agressões físicas e as

a crescente preocupação das autoridades com as ameaças provenientes da radicalização do comportamento

dos negros foram adotados como punição para qualquer sublevação o castigo exemplar e a extensa

legislação para controlá-los. O Haiti foi colonizado por franceses. Sua população era caracterizada pelas

diferenças entre uma aristocracia colonial de origem branca, riquíssima, e cerca de 500 mil escravos que

viviam em condições miseráveis, freqüentemente maltratados. Entre essas duas classes formou-se uma casta de mulatos libertos. A Revolução Francesa inspirou e favoreceu as rebeliões escravas e a luta dos �pequenos

brancos� contra os mulatos. A Revolta do Haiti foi então, uma rebelião escrava que durou de 1784 a 1804,

expulsando os franceses e proclamando a sua independência. 214 ANASTASIA, Carla Maria Junho. Vassalos Rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira metade do

século XVIII. Belo Horizonte: C/ Arte, 1998. 215 WISSENBACH, op. cit. 52. 216 Ibid.

89

tentativas de homicídio. O olhar atento das autoridades mirava não só os escravos e os forros,

sendo também, alvo de discussão a cor da pele destas pessoas. Para as autoridades o grande

número de mestiços que compunham a população mineira eram os maiores responsáveis pelas

práticas ilícitas. Atentemo-nos ao gráfico abaixo.

7% 6%

14%

22%

2%

49%

0%

5%

10%

15%

20%

25%

30%

35%

40%

45%

50%

Gráfico 8 - A cor da pele dos presos da Cadeia Pública

(1800-1830)

branco cabra crioulo pardo preto não consta

Fonte: Assentos de prisão. Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana.

Dentre os encarcerados da Cadeia Pública de Mariana pudemos notar, no que diz

respeito à cor da pele, que 22% destes eram pardos, 14% eram crioulos, 6% eram cabras, 2%

eram pretos e 7% eram brancos. Ainda de acordo com os assentos de prisão pudemos verificar

que esta informação não consta em quase metade das ocorrências. Se desconsiderássemos os

assentos em que a cor da pele não foi mencionada teríamos: 42% de presos pardos, 28% de

crioulos, 11% de cabras, 5% de pretos e 14% de brancos. Juntos, negros e mestiços

representariam 86% da população carcerária, enquanto os brancos apenas 14%. Esta

estatística poderia ser usada pela Câmara Municipal de Mariana como desculpa para afirmar o

caráter inferior dos negros e mestiços. Contudo, a análise estatística nestes moldes é

90

equivocada. O número de assentos em que não constava a informação referente à cor do

criminoso prejudica esta análise. No entanto, em todas as ocorrências registradas pela a

administração carcerária, a cor da pele dos presos era informada quando estes eram pardos,

crioulos, cabras ou pretos. Além disso, quando as prisões eram referentes a dívidas a cor da

pele do preso não era mencionada. A identificação da cor da pele dos presos quando estes

eram negros ou mestiços funcionava como uma marca, distinguindo-os assim dos brancos. Os

únicos assentos que mencionam a cor da pele de presos brancos são os assentos de prisão

hábito e tonsura 217, porque a lei assim determina. A análise atenta das fontes nos faz crer que

os assentos que não trazem informação referente à cor dizem respeito a pessoas brancas ou

pessoas mestiças que ascenderam socialmente.

A preocupação da administração camarária com os escravos e forros se estendia aos

mestiços, sendo estes, alvo das queixas das autoridades locais. A discussão sobre a

composição racial de uma população é muito antiga e perpassa todos os períodos da história.

As Minas Gerais do início do século XIX não era diferente, sendo os mestiços considerados

inferiores aos brancos.

Os relatos dos viajantes que passaram pelo Brasil, inclusive pelas Minas Gerais,

revelam um racismo que não tinha origem no desconhecimento ou simples preconceito dos

viajantes, e sim constituía uma visão escravista de raízes profundas, reproduzidas e repassadas

através dos séculos. Durante todo o século XIX, a maioria dos viajantes que chegavam ao

Brasil se defrontava com o grande número de negros em relação ao de brancos, e apesar de

conhecerem algumas estimativas de população, fornecidas pelos primeiros viajantes ou por

informações divulgadas em seu país, recebiam um forte impacto provocado pela

preponderância de negros nas ruas, nas lojas, nas casas, em qualquer lugar aonde iam. De

acordo com Degler, no século XIX, o Brasil era conhecido como o país dos pretos e do

sangue mestiço, e para os estrangeiros que visitaram o Brasil neste período, as palavras, negro

e escravo eram quase sinônimos. 218

Em suas viagens, Saint-Hilaire deparou com negros em quase todos os lugares por

onde andou, procurando dialogar e conhecer suas vidas. Para ele, a predominância numérica

dos negros representava um perigo. Saint-Hilaire chegou a concluir que a população do sertão

era quase toda composta de homens de cor, e os considerou ociosos e indolentes. Ao passar

por Vila Rica, Saint-Hilaire qualificou como péssimas a aparência e maneiras dos

217 Auto de prisão hábito e tonsura é um auto que caracteriza fisicamente o preso no momento da prisão. No 4°

capítulo deste trabalho detalharemos e discutiremos a aplicação desses documentos. 218 LEITE, Ilka Boaventura. Antropologia da Viagem: escravos e libertos em Minas Gerais no século XIX. Belo

Horizonte: Editora da UFMG, 1996. p. 106.

91

vilariquenhos, verificando também, que, a maior parte da população consistia de negros e

mulatos. 219

[...] raça de gente que demonstra possuir uma mistura de sangue de várias origens e

eu me sinto propenso a crer que toda e qualquer mistura resulta num aviltamento do espírito humano, que por mais que a prole lucre da inteligência superior de um

dos pais, ela se perverte pelas qualidades más do outro. O vício jamais surge tão

disforme, nem produz tanto mal como quando unido à atividade mental. Conforme

sempre se dá em circunstâncias tais, o lugar está tão repleto de misérias quanto de

perversão. (LEITE, 1996, p. 116) 220

É em Raynal que se condensam e cristalizam todas essas linhas do pensamento

ilustrado sobre o sistema colonial. Ele se pergunta se a colonização é útil à natureza humana,

pondo-a assim, em julgamento. Segundo ele, a razão e a equidade são princípios dos quais

não devia ser permitido afastar-se na fundação das colônias. Se os exploradores exigem mais

que uma hospitalidade por parte das colônias, tornam-se ladrões e assassinos, afirma Raynal.

As palavras de Raynal tinham forte impacto político. Ele queria que todos acordassem para a

situação em que viviam os escravos. 221

Segundo Hebe Mattos, as sociedades do Antigo Regime naturalizavam como

construções divinas, as desigualdades sociais, e assim a montagem de sociedades escravistas

nas Américas não chegava a destoar desse quadro. Nesse contexto, apesar de as diferenças de

219 Ibid. 220 Ibid. p. 116. 221 Raynal condena a escravidão africana e o tráfico negreiro, refutando um a um os argumentos correntes para

justificar tal escravismo. A escravidão era fenômeno de todos os tempos e lugares? Para Raynal, se a

universalidade de uma prática provasse sua inocência, estaria acabada a apologia das usurpações, conquistas

e opressões de toda sorte. A escravidão moderna diferia da antiga? Raynal acreditava que a América estava

povoada por colonos atrozes que, usurpando insolentemente dos direitos soberanos, fazem expiar a ferro e fogo as infortunadas vitimas de sua avareza. Os negros são homens nascidos para a escravidão, pois são

limitados, patifes e maus? Raynal afirma que os negros são limitados porque a escravidão destrói todas as

energias da alma. São malvados, mas não o bastante com os senhores. São velhacos, porque aos tiranos não

se devem a verdade. Eram os governos que vendiam os escravos? Raynal indaga porque o Estado tem esse direito. Os próprios escravos se vendiam? Raynal afirma que o homem não tem o direito de se vender. Os escravos tinham sido aprisionados em guerra? Raynal pergunta se sem os colonos haveria tais combates e se as dissensões desses povos não são obras dos próprios colonizadores. Os negros escravizados eram

criminosos dignos de punição? Raynal discute a condição de carrasco exercida pelos colonizadores em

relação aos povos da África, afirmando que os menores não foram sequer julgados. Os negros eram mais

felizes na América que na África? Por que então esses escravos suspiram incessantemente pela sua pátria,

pergunta Raynal. Por que sempre que podem retomam sua liberdade? Por que preferem o deserto e o convívio com os animais ferozes a um estado que vos parece tão doce? Por que suas mulheres provocam

tantas vezes o aborto, para que seus filhos não partilhem seu triste destino? A escravidão era o único meio de

cristianizar os africanos? Para Raynal, o que pensaria Jesus se este tivesse previsto que suas doces máximas

serviriam à justificação de tantos horrores. Se a religião cristã autorizasse assim a avareza dos impérios, era

preciso proscrever para sempre os dogmas sanguinários dela, afirma Raynal.

92

cor e características físicas reforçarem as marcas hierárquicas nas sociedades escravocratas,

elas não eram necessárias para justificar a escravidão. 222

O conceito de raça é uma construção do século XIX e também uma justificativa da

escravidão americana. Ela se tornou a contrapartida possível à generalização de

uma concepção universalizante de direitos do cidadão em sociedades que não

reuniam condições políticas efetivas para realizá-la permitindo, em diversos contextos, o estabelecimento de restrições aos direitos civis de determinados

grupos considerados racialmente inferiores, bem como a legitimação da própria

manutenção da escravidão no sul dos Estados Unidos, associada a um progressivo

fechamento das possibilidades de alforria. A noção de raça está estreitamente

ligada às contradições entre os direitos civis e políticos inerentes à cidadania

estabelecida pelos novos estados liberais e o longo processo de abolição do

cativeiro. (MATTOS, 2000, p.11) 223

De acordo com dados apresentados por Hebe Mattos, no final do período colonial, o

Brasil contava com cerca de 3.500.000 habitantes, dos quais 40% eram escravos. Dos

restantes, 6% eram índios aldeados e os demais classificados metade como brancos, metade

como pardos. Já na década de 1780, os homens livres classificados como pardos eram

estimados em cerca de 1/3 da população, grande parte deles sendo possuidores de escravos. A

própria construção da categoria �pardo� é típica do final do período colonial e tem uma

significação muito mais abrangente do que a noção de �mulato� ou mestiço que muitas vezes

lhe é associada.

Na verdade, durante todo período colonial, e mesmo até bem avançado o século

XIX, os termos �negro� e �preto� foram usados exclusivamente para designar

escravos e forros. Em muitas áreas e períodos, �preto� foi sinônimo de africano, e

os índios escravizados eram chamados de �negros da terra�. �Pardo� foi

inicialmente utilizado para designar a cor mais clara de alguns escravos, especialmente sinalizando para a ascendência européia de alguns deles, mas

ampliou sua significação quando se teve que dar conta de uma população para a

qual não era cabível a classificação de �preto� ou de �crioulo�, na medida em que

estas tendiam a congelar socialmente a condição de escravo ou ex-escravo. A emergência de uma população livre de ascendência africana � não necessariamente

mestiça, mas necessariamente dissociada, já por algumas gerações, da experiência

mais direta do cativeiro � consolidou a categoria �pardo livre� como condição

lingüística necessária para expressar a nova realidade, sem que recaísse sobre ela o

estigma da escravidão, mas também sem que se perdesse a memória dela e das restrições civis que implicava. Ou seja, a expressão �pardo livre� sinalizará para a

ascendência escrava africana, assim como a designação �cristão novo� antes

sinalizara para a ascendência judaica. Era assim, condição de diferenciação em

relação à população escrava e liberta, e também de discriminação em relação à

222 MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e Cidadania no Brasil Monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,

2000. p. 11. 223 Ibid. p. 12.

93

população branca; era a própria expressão da mancha de sangue. (MATTOS, 2000,

p. 16) 224

As estatísticas criminais nos apontam um número maior de mestiços entre os

encarcerados da Cadeia Pública de Mariana nas três primeiras décadas dos oitocentos.

Infelizmente, metade dos assentos de prisão não menciona a cor da pele dos presos.

Acreditamos, contudo, que estes assentos se referem a pessoas brancas, ou mestiças que

ascenderam socialmente, visto que os registros das prisões por dívidas, por exemplo, não

mencionam a cor da pele do devedor. As autoridades coloniais realmente acreditavam na

inferioridade dos escravos, forros, negros e mestiços, e a estes dirigiam atenção especial

quanto o assunto era criminalidade. Alguns filósofos contribuíram sobremaneira para esta

visão, visão ratificada pelos viajantes que chegavam ao Brasil no século XIX e se deparavam

com uma realidade totalmente diferente da que estavam acostumados.

Visto que a administração camarária se atentava para os delitos cometidos por

negros, mestiços, escravos e forros resta saber de que a maneira a pena de prisão contribuía

para a execução da Justiça. Ao longo deste capítulo buscamos identificar algumas

características que compusessem a população carcerária da Cadeia Pública de Mariana.

Vejamos então a questão da Cadeia. Quanto tempo os presos passaram encarcerados? As

Ordenações Filipinas estipulavam as penas que deviam ser aplicadas em caso de infração da

lei e a pena de prisão esteve presente. Mas qual a relação entre a prática de delitos, a ação da

Justiça e a pena de Prisão? Observemos o gráfico abaixo.

224 Ibid. p. 16.

94

Gráfico 9 - Tempo em que os presos passavam encarcerados

na Cadeia Pública (1800-1830)

26%

24%25%

12%

13%

até 5 dias 5 dias a um mês um mês a 6 meses

6 meses a um ano mais de um ano

Fonte: Assentos de prisão. Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana.

Verificando os alvarás de solturas da Cadeia Pública de Mariana foi possível calcular

o tempo que as pessoas passavam encarceradas. Em média, 26% das pessoas ficavam presas

por até cinco dias, 24% de cinco dias a um mês, 25% de um mês a seis meses, 13% de seis

meses a um ano e só 12% ficavam encarcerados por mais de um ano. Logo, 75% das pessoas

presas ficavam no máximo seis meses encarceradas.

No rol de réus presos à ordem da Casa de Suplicação, quase metade daqueles de

que se sabe o destino saem soltos, por perdão, fiança ou eventualmente, por falta de culpas; e, em relação a muitos outros, �corria livramento� por meios ordinários.

�Sua Majestade manda advertir V. M., que as leis são feitas com muito vagar e

sossego, e nunca devem ser executadas com aceleração; e que nos casos crimes

sempre ameaçam mais do que na realidade mandam [...] porque o legislador é mais

empenhado na conservação dos Vassalos do que no castigo da Justiça, e não quer

que os ministros procurem achar nas leis mais rigor que elas impõem�.

(HESPANHA, 1992, p. 248) 225

A Cadeia era parte constitutiva do poder municipal. Era a ela que recorria a Câmara,

com seus oficiais, para recolher criminosos e todo tipo de transgressores � escravos fugidos,

índios rebelados, indivíduos que se recusavam a servir como carcereiro da própria cadeia,

infratores de posturas municipais e tantos outros. Ora um cômodo aqui, ora uma casa alugada

225 Ibid. p. 248.

95

ali, ora uma dependência ao lado da Câmara, porém, sempre sem condições adequadas de

segurança, iluminação, higiene.

Numa época em que inexistiam meios mais sofisticados, burocratizados de fazer cumprir o pagamento de uma multa, por exemplo, a detenção do indivíduo se

tornava a garantia física, corporal, de que ele saldaria o pagamento imposto. Assim,

é comum encontrarmos no Livro V das Ordenações a fórmula �sejam presos e da cadeia paguem [...] cruzados�. Com relação às outras penas � morte, açoite,

degredo, etc �, até que fossem atribuídas ou executadas, contava-se com a prisão

como meio para garantir a contenção do acusado ou criminoso. (SALLA, 1999, p.

34) 226

A prisão no período colonial e até mesmo no início do período imperial não tinha

qualquer interesse na recuperação dos indivíduos, pelo menos de maneira efetiva. Ela

funcionava como um depósito temporário de criminosos. Além disso, a prisão não possuía

estrutura alguma, sendo praticamente impossível manter os criminosos encarcerados por

muito tempo. Para Foucault, a prisão:

Deve tomar a seu cargo todos os aspectos do indivíduo, seu treinamento físico, sua

aptidão para o trabalho, seu comportamento cotidiano, sua atitude moral, suas disposições; a prisão, muito mais que a escola, a oficina ou o exército, que

implicam sempre numa certa especialização, é �onidisciplinar�. Além disso, a

prisão é sem exterior nem lacuna; não se interrompe, a não ser depois de terminada totalmente sua tarefa; sua ação sobre o indivíduo deve ser ininterrupta: disciplina

incessante. (FOUCAULT, 1987, p. 198) 227

Podemos perceber que diferentemente da prisão destacada por Foucault, no Brasil

dos séculos XVIII e XIX não existiu este tipo de prisão. Embora existissem variadas penas, as

Ordenações Filipinas não estipulavam para nenhum crime ou circunstância a pena de prisão

isoladamente. Freqüentemente utilizava-se a prisão como um recurso coercitivo para o

cumprimento de outras penas. As prisões pelo não pagamento de dívidas retrata bem o papel

da prisão. Foi possível encontrar na documentação carcerária da Cadeia Pública de Mariana

os alvarás de soltura de 38 pessoas presas pelo não pagamento de dívidas, sendo que 84%

destes ficaram detidos por no máximo um mês. Como afirma Hespanha, existia uma grande

diferença entre o que estava previsto na lei e o que era efetivamente aplicado. A variação

encontrada no tempo em que as pessoas ficavam presas é uma evidência disto, pois

homicidas, agressores e ladrões não cumpriam a pena estipulada nas Ordenações Filipinas.

226 SALLA, Fernando. As prisões em São Paulo: 1822-1940. São Paulo: Annablume, 1999. 227 FOUCAULT, op. cit.

96

Observamos ao longo deste capítulo algumas características da população carcerária

da Cadeia Pública de Mariana nos primeiros trinta anos do século XIX, verificando os crimes

cometidos na cidade e nos distritos, o número de homens e mulheres que compunham este

quadro, se estes eram livres ou escravos, quais eram os crimes praticados pelos escravos, a cor

da pele dos presos e o tempo que estes passavam detidos na Cadeia.

A criminalidade e a violência são temas recorrentes na história mineira. Os motins

ocorridos em Minas ao longo do século XVIII, na maioria das vezes, representavam a

insatisfação dos mineiros com a administração da Coroa, e representavam a resistência contra

os desmandos estabelecidos pela Coroa. Estes motins, além de demonstrarem certa brecha na

soberania da Coroa, indicavam também que reunido, o povo, poderia causar preocupação e

temor aos governantes das Minas. Estes governantes por sua vez, já vinham para a região,

avisados do caráter insurrecional de Minas Gerais e de que deveriam tomar cuidado ao lidar

com os mineiros.

Minas Gerais apresentou ainda, no século XVIII, certo número de infrações que

preocupavam as autoridades coloniais. Homicídios, agressões e furtos, entre outros, estiveram

presentes no cotidiano da população. A participação de negros e mestiços nestes delitos,

cometidos nos caminhos mineiros, preocupavam e aterrorizavam as autoridades

principalmente quando os delitos insurgiam contra a ordem escravista. Observamos ainda que

a Coroa possuía meios próprios para conter ou diminuir a violência e a criminalidade em suas

colônias e que as Ordenações Filipinas previam punição rigorosa à diversidade de infrações

cometidas.

Ao longo dos séculos estes delitos se repetiam e os primeiros anos dos oitocentos não

se diferenciariam dos anos anteriores, vistos que os crimes continuavam a serem cometidos.

Todas as sociedades conviveram e ainda convivem com o problema da criminalidade. Este

problema com certeza existiu e os dados apresentados mostram isso. No entanto, é possível

afirmar que uma determinada sociedade é violenta com base nestes dados? É possível afirmar

ainda a violência de uma sociedade com base em relatos de autoridades e estrangeiros? Minas

Gerais no século XIX era violenta? Prestemos atenção a estes últimos dados.

97

Tabela 2 - O número de crimes cometidos ao longo dos anos no Termo de Mariana

1800 17 1808 21 1816 15 1824 08

1801 08 1809 17 1817 14 1825 12

1802 22 1810 07 1818 14 1826 03

1803 25 1811 14 1819 06 1827 04

1804 31 1812 26 1820 03 1828 07

1805 30 1813 19 1821 05 1829 09

1806 18 1814 21 1822 06 1830 02

1807 22 1815 09 1823 09

Fonte: AHCMM.

É extremamente complicado afirmar que uma determinada sociedade é violenta. A

partir de dados oficiais isto é impossível. A tabela acima mostra o número de ocorrências

registradas pela administração carcerária de Mariana e podemos notar que estes números, num

universo de aproximadamente 50.000 pessoas, não ratificam o caráter violento atribuído à

região das Minas. O ano de 1804 foi marcado pelo maior número de prisões realizadas no

Termo de Mariana, trinta e uma no total. Uma sociedade que registra trinta e uma ocorrências

ao longo de um ano inteiro pode ser considerada violenta? Acreditamos que não. Se

considerarmos todos os anos, a média é de 14 ocorrências por ano. Ainda mais baixa. Com

base nestes dados oficiais não poderíamos afirmar que a sociedade mineira no século XIX era

violenta. Aparecem então como fontes importantes para o estudo da criminalidade os relatos

dos viajantes e as queixas das autoridades. Se dados quantitativos não podem afirmar o grau

de violência de uma determinada sociedade estes relatos muito menos. Vejamos, no entanto, o

que nos mostram os processos crimes referentes à prática de delitos no território de Mariana

nos primeiros trinta anos do século XIX.

98

CAPÍTULO 3: RELATOS

Podemos vislumbrar a partir das análises dos gráficos apresentados no capítulo

anterior uma imagem da população carcerária de Mariana nos primeiros trinta anos do século

XIX. No entanto, esta análise quantitativa não nos permite dar conta das particularidades

encontradas em cada uma das prisões realizadas pelas autoridades ao longo do período. A

análise dos processos crimes torna-se essencial para a compreensão dos motivos que levaram

as pessoas a serem encarceradas. Optamos por apresentar então, algumas histórias obtidas

através da análise dos processos crimes, sem com isso querer traçar qualquer tipo de

paradigma quanto à prática criminal, e sim mostrar a imensa variedade de um caso para outro

e até mesmo as particularidades de cada uma das ocorrências.

Por volta das sete horas da noite do dia 13 de abril de 1809 dois homens adentraram

em uma casa localizada na Rua Direita da cidade de Mariana pertencente a uma crioula forra

de nome Jacinta Maria e lá a encontrando feriram-na com uma espada. Foram acusados e

denunciados pelo ocorrido o Oficial de Justiça Joaquim José Pinto e um crioulo cujo nome

não foi mencionado nos autos. A Justiça então, procede com os trâmites legais indiciando o

referido Oficial de Justiça pelo crime. É lavrado, portanto, um auto de devassa, citando ter

sido o réu Joaquim José Pinto juntamente com um crioulo os praticantes de tal delito, na

medida em que foram vistos por certo indivíduo saindo da casa da ofendida, o primeiro

trazendo uma espada na mão e o crioulo portando uma pistola. O réu ficou assim pronunciado

e teve que se livrar com carta de seguro, devido às penas civis e crimes, estabelecidas pela lei

do Reino, impostas a ele.

Seguiu-se após a pronúncia do réu o exame de corpo delito, realizado somente no

dia 12 de julho de 1809. Na casa do Dr. Antônio José Duarte Gondim, Cavaleiro da Ordem de

Cristo e Juiz de Fora da leal cidade de Mariana, estando presentes os cirurgiões do partido da

Câmara Caetano Coelho Martins e José Luís Brito, foi examinada a crioula Jacinta Maria.

Examinando-a puderam notar um ferimento em sua face. Tal ferimento estava localizado na

face do lado esquerdo sobre o músculo e tinha um dedo de diâmetro, resultando na mesma um

aleijão ou deformidade, no entanto, já se achava são e somente a cicatriz era visível, mas com

o tempo desapareceria.

99

O réu, Joaquim José Pinto, Oficial de Justiça em Mariana, alegou em sua defesa que

no dia 13 de abril de 1809, data do acontecido, estava ausente da cidade, relatando que no

referido dia, por volta das oito horas da manhã saiu juntamente com o Oficial de Justiça

Manuel da Cruz em direção a um lugar denominado Boa Vista 228 na Freguesia de São

Caetano, e que lá pernoitaram na estalagem de Helena de tal, uma mulher parda. Já no dia

seguinte foram fazer uma penhora a Dona Clara Maria da Trindade. Joaquim José Pinto

informa que a distância entre o lugar que se encontravam e a cidade de Mariana era de sete

léguas, portanto, era impossível, estando estes em Boa Vista, terem cometido um delito em

Mariana às sete horas da noite.

O processo agora, parece tomar uma direção diferente. O réu já havia declarado onde

e com quem estava na noite do dia 13 de abril de 1809 e surge um fato novo: Jacinta não o

acusa. Ela afirma não declarar parte do réu, e que antes lhe dá perdão pelo amor de Deus. Diz

Jacinta Maria, crioula forra, que na devassa que se procedeu ex-ofício pelos ferimentos feitos

nela feitos, e que ficou pronunciado Joaquim José Pinto, ao qual já deu o perdão, não ter sido

o Oficial de Justiça que praticou o tal delito, e sim um preto que ela tinha visto. Após o relato

de Jacinta, todos se convencem de que foi um escravo preto o autor do crime.

No dia 22 de setembro de 1809, o Juiz manda aos escrivões do crime 229 do Auditório

da Câmara que lavrem um alvará com as culpas ou sem elas, que tiveram o réu seguro

Joaquim José Pinto, Meirinho neste Auditório, e na forma da lei, se cumpram. Fica declarado

então que Joaquim José Pinto que pelos ferimentos feitos em Jacinta crioula foi pronunciado,

e que tendo o mesmo de livrar-se com seguro, foi perdoado pela suplicante, na medida em que

esta não o reconheceu como autor do delito, se acha o dito Joaquim José Pinto nos termos de

ser absolvido e que os autos se façam conclusos. 230

O processo crime acima apresentado traz informações importantes a respeito da

prisão de Joaquim José Pinto. O primeiro ponto se refere ao horário do delito, sete horas da

noite. As autoridades afirmavam que a noite era o período preferido pelos criminosos, pois

estes, logicamente, seriam menos facilmente descobertos. No entanto, um dos réus acusados

pela prática de tal delito era um Oficial de Justiça, portanto uma autoridade. O outro

envolvido era um crioulo, que muito bem poderia ser seu escravo.

228 Povoado no distrito de Ouro Preto. Foi já sede de distrito, suprimido pela Lei nº 45, de 17 de março de 1836,

incorporado seu território ao de Ouro Preto. 229 Em Bluteau, escrivão é aquele que oferece atos públicos. Oficial de pena que ganha a vida com as pontas dos

dedos. Escrivão do crime, rerum capitalium scriba, é assim dos mais, segundo a diferença dos tribunais. 230 Arquivo da Casa Setecentista de Mariana. Códice 193, auto nº 4828.

100

O segundo ponto a ser destacado é quanto ao porte de armas. O Oficial de Justiça

estaria portando uma espada e o crioulo uma pistola. Vimos que nas Ordenações Filipinas

especificava-se a proibição ao porte de armas ofensivas e defensivas, tanto de dia quanto de

noite, salvo se fosse espada, punhal ou adaga. Neste caso, o referido crioulo estava agindo

contra a lei, na medida em que portava uma pistola.

Outra questão importante que surge no decorrer do processo é a carta de seguro que

os réus são obrigados a apresentar para se verem livres.

A carta de seguro foi um recurso previsto nas Ordenações Filipinas, Livro

Primeiro, título VII e foi regulamentada em lei de 19 de janeiro de 1692. Desde a

lei de 10 de janeiro de 1692 o rei �tinha servido lançar o remédio das cartas de

seguro� para melhorar as ações da justiça real com a intenção de atender as partes

que se queixavam, pois elas �viam seus ofensores� transitando livremente pelas

ruas. Contra isso sua alteza real prescreveu o remédio das cartas de seguro.

(CHAVES, 2006) 231

De acordo com Maria Lúcia Resende Chaves, a carta de seguro servia como

instrumento de promoção do equilíbrio no vasto império para se transformar num elemento

organizador das noções de justiça da Capitania das Minas, sobretudo no que tange aos pontos

fracos de justiça e no exercício de poder local. Nas Minas Gerais foram amplamente

requeridas. O indiciado, pronunciado em devassa ou libelo, na condição de réu não iria para a

prisão caso ele conseguisse a carta de seguro. Para isso �o réu seguro� apresentar-se-ia ao juiz

do crime para tratar de seu livramento em audiências, permanecendo assim nas redes do

poder. 232

Segundo a autora, a última concessão de carta de seguro no território mineiro foi no

ano de 1832, na verdade até que o Código Criminal de 1831 entrasse em vigor. Entre os anos

de 1769 e 1831, o uso da carta de seguro revelou permanência no serviço de Sua Majestade

em aplicações da justiça na Comarca do Rio das Mortes. A carta era requerida em petição pela

parte e, em nome de sua majestade, o serviço era concedido em termos de �graça régia�.

Outro ponto importante desta prisão, e que parecia ser comum a todas as outras era o

exame de corpo e delito. Já no início do século XIX a Câmara de Mariana realizava tal exame

e verificava as condições físicas da vítima de uma agressão, por exemplo.

231 CHAVES, Maria Lúcia Resende. Punição e Graça: elementos da matriz doutrinária portuguesa no tratamento

da justiça em território de Minas (1769-1831). In: Anais eletrônicos do XV Encontro Regional de História (2006, jul. 10-15: São João del-Rei, MG). São João del-Rei: ANPUH-MG, 2006.

232 Ibid.

101

Por fim, e o que torna esse processo tão interessante é o perdão dado pela vítima aos

acusados. Na última hora ela inocenta o Oficial de Justiça e acusa um escravo preto de ser o

autor da agressão. A culpa recaiu no final sobre um escravo preto, o qual a vítima não

conseguiu identificar. No entanto Jacinta, a vítima afirmou que o agressor era um escravo

negro. Seria este mais um indício para que as autoridades se preocupassem cada vez mais com

os escravos e com os negros? Ou era mais fácil incriminar um escravo negro sem

identificação do que um Oficial de Justiça?

No dia 04 de maio de 1819 na cidade de Mariana se achou em poder de um escravo

do Reverendo Cônego Joaquim Cardoso Camargo nove vinténs de peso de ouro falso.

Iniciou-se assim, a investigação do referido delito. Indagado pelos oficiais de Justiça sobre o

porte do falso ouro o dito escravo se queixou de que uma crioula forra de nome Maria

Tomásia moradora em Mariana que lhe havia dado aquele ouro em paga dos ovos que tinha

lhe vendido. Este por sua vez, foi até a casa de negócio de Bernardo José Vilela comprar um

pouco de sal e utilizou como pagamento o ouro que havia recebido com a venda dos ovos. Ao

receber a quantia paga pelo sal, o comerciante desconfiou da qualidade do ouro e chamou

alguns alferes para examinarem o ouro. Os alferes examinaram o tal ouro que por sinal

parecia verdadeiro e lançaram-lhe água forte. Instantaneamente o �ouro� começou a arder e

eles puderam verificar que se tratava de uma falsificação. O �bestial� escravo de propriedade

do Revendo Cônego Joaquim Cardoso Camargo e a crioula forra Maria Tomásia, disseram

não saber da falsidade do ouro e muito menos quem o tinha fabricado.

Juntamente com essa, outras ocorrências em que o uso de ouro e moeda falsa foi

empregado, vinham acontecendo na cidade, e as autoridades exigiam a identidade dos

fabricantes do tal ouro para que estes pudessem ser castigados na forma da lei. Foram presos,

alguns meses depois, como os responsáveis pelo crime de falsificação de moeda Caetano

Coelho Martins e seus escravos, estes apelidados escravos de prata e ouro.

Realizou-se então, o auto de prisão hábito e tonsura na pessoa do réu Caetano Coelho

Martins no dia 09 de setembro de 1819. Ele era um homem pardo, solteiro, natural da cidade

de Mariana, filho legítimo de Caetano Coelho Martins e de Maria Teresa Martins, se

empregava no ofício de latoeiro 233 e tinha de idade 36 para 37 anos. Não possuía sinal de

coroa na cabeça, era de estatura ordinária, barbado, tinha os cabelos da cabeça meio ruivos, os

dentes tortos, sobrancelhas fechadas, olhos pardos, nariz apontado, testa ordinária denotando

princípio de calvície, beiços pequenos e mãos e pés ordinários ao seu corpo. No momento da

233 Em Bluteau, oficial que faz caldeiras, candeeiros, bacias, tachos de latão ou cobre.

102

prisão se achava vestido com uma véstia 234 de pano azul e calças também do mesmo pano,

uma camisa de paninho 235, calçava um chinelo de couro preto e usava um rosário de

Jerusalém no pescoço. Em seguida o réu foi entregue ao carcereiro Joaquim José Teixeira que

o �guardou debaixo de chaves�.

O dito Caetano, juntamente com seus escravos, ficou pronunciado na devassa tirada

ex-ofício pelo porte e pela fabricação de ouro falso. A situação do réu preso era muita

delicada na medida em que a fabricação de ouro falso era considerada uma agressão aos

direitos reais e consequentemente o caracterizava como réu de lesa majestade. Foi lavrado o

despacho de sua prisão e pronunciou-se agravação para o Tribunal da Suplicação do Rio de

Janeiro.

Na seqüência do processo-crime do réu Caetano Coelho Martins pode-se verificar

que não encontraram provas suficientes que o condenassem. O dito ouro falso não foi

encontrado em seu poder e sim na posse de seu escravo. Desta maneira, a Justiça se declara

incompetente para o caso, mandando assim, lavrar o alvará de soltura do réu. A culpa que

tinha lhe resultado na devassa por fabricação de moeda falsa foi então retirada e o mesmo

pode ficar em liberdade. 236

Crime de lesa majestade, a fabricação de ouro falso era um grave problema com que

a Coroa tinha de lidar. O uso deste ouro no comércio parecia ser comum, na medida em que

os donos das vendas vinham sofrendo com este tipo de delito há algum tempo. As próprias

autoridades afirmavam que este crime vinha ocorrendo na cidade constantemente. A

importância dada ao problema pelas autoridades era clara, mas nem por isso, a Justiça estava

sendo feita a qualquer preço, como comprova o caso acima citado. A partir do momento em

que provas contundentes que incriminassem o réu Caetano Coelho Martins não foram

encontradas, o mesmo foi inocentado.

Às três horas da tarde, do dia 19 de setembro de 1806, foi chamado para acudir uma

briga ou discórdia, ainda sem maiores informações, o Capitão e Comandante do distrito de

Espera 237 Antônio Ferreira Coelho. Chegando ao local da briga o dito Capitão encontrou um

quadro lastimável. Ao que parecia, a referida briga tinha se dado entre o Alferes João José dos

Santos e um pardo forro chamado Antônio Pereira. O Alferes, juntamente com seu escravo

234 Em Bluteau, vestidura de homem com mangas que chega até os joelhos. 235 Em Bluteau, pano pequeno ou pano muito delgado de seda ou lã. 236 Arquivo da Casa Setecentista de Mariana. Códice 201, auto nº 5027. 237 Espera foi a denominação primitiva do lugar onde se ergueu a capela de Nossa Srª da Piedade da Espera,

demarcada a 20 de outubro de 1760, benta pelo vigário Taborda, a 4 de março de 1763. O curato de Espera

foi elevado a freguesia com o título de Nossa Srª da Piedade da Boa Esperança, pela lei n° 471, de 1° de

junho de 1850, desmembrada da de São José do Xopotó, município de Piranga.

103

Vicente Rebolo, feriram o dito Antônio Pereira até que esse viesse a falecer. Utilizando-se de

sua espada o Alferes feriu a vítima enquanto o escravo Vicente, que usava um bastão, também

o atingiu. O próprio Capitão ao ver o corpo da vítima constatou que este não poderia mais

sobreviver devido a grande quantidade de sangue que lhe saía da boca em decorrência das

pancadas que recebera.

Assim que tomou conhecimento dos fatos ocorridos no tumultuoso caso o Capitão

Antônio Ferreira Coelho prendeu o agressor, Alferes João José dos Santos. O escravo, por sua

vez, resistiu intensamente à prisão e acabou sendo espancado pelo Capitão. No entanto, com a

aglomeração de pessoas ao redor da ocorrência e de um princípio de tumulto causado por essa

gente, o escravo espancado foi ajudado por dois homens, que o levantaram e o conduziram até

a casa do tronco 238. Em questão de pouco tempo saíram da casa do tronco o escravo e os dois

homens que o haviam ajudado. O escravo vinha com um machado na mão e os outros dois

com armas de fogo em punho. O tumulto havia se generalizado. Os companheiros do dito

escravo meteram as armas no peito dos guardas daquela praça que haviam se aproximado,

enquanto o escravo, com o machado, cortou a corrente de ferro que prendia o Alferes

agressor.

Ao que tudo indica o tumulto se dissipou, os agressores fugiram e o Capitão foi

embora para sua residência. Mal sabia o Capitão, que o Alferes, agora solto, juntamente com

o escravo Vicente e os outros dois homens foram refazer-se de armas e unidos se

encaminhavam para a sua casa. Segundo relato do próprio Capitão, o Alferes e seus

comparsas tinham a intenção de matá-lo em desforra ao aprisionamento do Alferes durante a

confusão do ocorrido. Segue o Capitão dizendo, que ao chegarem a sua casa, o dito Alferes o

ultrajou com palavras, e que, mesmo este sendo Alferes, suas ações não deixavam de ser

criminosas. Afirma o Capitão que o tal Alferes é culpado de cometer este e outros delitos

naquele arraial e que é pública e notória sua péssima conduta.

O Capitão, com medo de morrer pelas mãos do tal Alferes e seus comparsas, teve

que vir acompanhado por quatro pedestres até Mariana, para que pudesse fazer a queixa do

acontecido. Além disso, ficou o Capitão jurado de morte pelo Alferes que prometeu matá-lo

juntamente com todos os outros que ajudaram a prendê-lo, procedimento segundo o próprio

Capitão tão indecoroso pelas leis divinas e humanas. O Capitão recomenda ainda que não se

238 Em Bluteau, Tronco é nome de uma prisão ou cadeia por causas civis em Lisboa. Parece que nesse sentido se

poderá derivar Tronco de Truneus, que originariamente nas Igrejas do Norte é um cofre ou arca de madeira,

com uma abertura na parte superior, pela qual os fiéis deixam o dinheiro que querem dar de esmola para os

pobres da Freguesia, fábrica da Igreja ou outra caridade. No dito cofre fica o dinheiro debaixo de chave e

como encarcerado os presos no Tronco. Direito que em Lisboa se paga ao tronqueiro mor. Tronqueiro é um

guarda do Tronco ou prisão, uma espécie de carcereiro.

104

deixe sem castigo o referido insulto e aleivosia, pois, o povo do tal distrito ficará livre não só

para assassiná-lo, mas matar também a quem quer que fosse obrigado a realizar sua obrigação

com a Justiça.

A prisão do réu e de seus comparsas foi logo decretada por ordem do Exm° Sr.

Governador, devido não só a todo o ocorrido, mas a um ferimento sofrido pelo Capitão

Antônio Ferreira Coelho cujo autor tinha sido o Alferes João José dos Santos. O Alferes foi

preso no mesmo dia, sendo lavrado o auto de prisão hábito e tonsura.

O Alferes João José dos Santos era um homem branco, casado com Dona Ana Maria

do Espírito Santo, filho legítimo de José de Oliveira Flores e de sua mulher Maria Quitéria

Ferreira. Nasceu e foi batizado no arraial de Piranga e era residente no arraial de Espera, no

termo de Mariana. Vivia do negócio de fazenda, tinha 30 anos de idade, não possuía sinal de

coroa na cabeça, era de estatura alta, tinha o corpo delgado, a cara comprida, a barba cheia,

cabeludo nos peitos e tinha uma grande cicatriz ao pé da sobrancelha do olho esquerdo que se

encaminhava até quase o meio da testa. Seus dentes eram alvos, sendo os da frente abertos,

seu cabelo era preto e crescido e se achava vestido unicamente com uma camisa de pano de

linho alvo com babados em volta de um [...] de baeta 239 com bandas de pelúcia, carregava um

rosário preto ao pescoço e estava com chinelos nos pés.

Para se ver livre, o Alferes João José dos Santos apresentou uma carta de seguro. No

entanto, e consta nos autos do processo, o efeito do seguro ficou frustrado, pois a prisão do

mesmo era lícita. Não consta no processo, maiores explicações sobre a negação do seguro,

mas é interessante apontar, que o réu apresentou uma segunda carta de seguro e que o mesmo

não estava preso em prisão pública e sim particular.

Em sua defesa, diz o Alferes João José dos Santos, morador do distrito de Espera do

termo de Mariana, que estava andando tranquilamente quando foi acometido por um mulato

pião, chamado Antônio Pereira, que lhe avançou com uma faca ferindo assim suas mãos. Para

reparar as facadas que tinha sofrido o Alferes valendo-se da própria espada que tirou da

cintura, atingiu o dito pião, mas acreditava não tê-lo ferido. Segundo o Alferes, neste tempo,

chegou ao lugar do conflito o Capitão Antônio Ferreira Coelho, Comandante do distrito, e

assim o fez prender. Agora vem o mais curioso do relato do Alferes. O Alferes informa nos

autos que o dito Capitão era seu cunhado e que por isso fugiu da prisão, achando que o

mesmo não prestaria queixa dele. Contudo, lhe chegou a notícia que o Capitão tinha dado

239 Em Bluteau, pano de lã a que com o uso ou com instrumentos se levanta o pelo. Há de muitas castas. Baeta, a

que chamam Castelete, que é de cinqüenta e quatro fios, baeta de Cofal, baeta de conta nova, baeta de Barca, baeta Cacheira, baetinha de Bestable, baeta Imperial. Também das diferentes terras onde se fabrica toma

baeta o nome. Baeta da Inglaterra, de Holanda, de França, de Barcelona, da Moscóvia.

105

queixa não só da sua fuga, mas também dos golpes que proferira em sua legítima defesa no

pião Antônio Pereira, das palavras injuriosas ditas ao Capitão e mais umas chicotadas que

havia dado em José de Matos com sua escrava. De acordo com o réu, ele não atingiu

ninguém, somente ralhou com os ora citados, porque o estavam insultando com o nome de

ladrão. Cego de paixão, segundo o próprio réu, o mesmo se precipitou contra o tal José Matos

e sua escrava e lhes fez algumas ameaças com o açoite que trazia nas mãos, em desforra a sua

honra e sem ânimo premeditado de ofender, tendo cometido o ato em justa defesa da vida e da

honra ultrajada e que seguro pretendia mostrar, alegando assim, sua defesa.

O processo segue e a ordem para que o Alferes fosse solto foi dada no dia 10 de

outubro de 1806. Em cumprimento do despacho mando que relaxado e solto os agravantes da

prisão siga o seu livramento seguro e não preso. Vários motivos resultaram na soltura do réu.

Primeiramente ele tinha em seu poder uma carta de seguro válida por um ano. Em segundo

lugar, comprovou-se ser falsa a queixa do Comandante do distrito de Espera Capitão Antônio

Ferreira Coelho em relação aos ferimentos do pião Antônio Pereira. Em terceiro lugar, a

Justiça alegou que o uso de espada não era proibido, sendo permitido nas Ordenações. Em

quarto lugar, indagaram o Capitão sobre um possível ferimento que este havia sofrido por

parte do réu e não encontraram nenhuma cicatriz ou marca no seu rosto. Por último, foi

alegado que o réu não foi capturado por ordem da Justiça e sim por mando do dito Capitão. 240

Este caso destaca-se pelo envolvimento de autoridades locais, o Capitão e

Comandante do distrito de Espera Antônio Ferreira Coelho e o Alferes João José dos Santos.

O dito Alferes envolveu-se numa contenda com um pardo forro chamado Antônio Pereira. A

averiguação do ocorrido pelo Capitão de Espera aumentou ainda mais o problema. O caso

mostra de que maneira exercia-se a autoridade dos oficiais em caso de conflitos. Um Alferes

fere um homem com uma espada ajudado por um escravo. Um Capitão chega ao local, prende

o Alferes e agride o escravo. Em seguida o mesmo Capitão é ameaçado de morte pelo escravo

espancado e seus comparsas. Qual era o respeito que as pessoas mantinham pelas

autoridades? Até que ponto a presença das autoridades intimidavam a população? E talvez o

mais importante, será que as autoridades agiam de acordo com a lei em todas as ocasiões,

fazendo com que a população os identificasse como agentes da lei?

Já se passava das nove horas da noite do dia 04 de novembro de 1806, quando na

cidade de Mariana, José Alves Quinta foi agredido fisicamente por dois homens. Foram

acusados da referida agressão Fernando José da Fonseca, homem branco e seu escravo

240 Arquivo da Casa Setecentista de Mariana. Códice 190, auto nº 4771.

106

Antônio cabra. Lavrou-se então auto de devassa, no qual os réus acima citados ficaram

pronunciados e obrigados a livrarem-se com carta de seguro.

Realizou-se posteriormente o exame de corpo delito no dito José Alves Quinta.

Verificou-se que seu braço esquerdo estava ferido desde o cotovelo até o punho e que o braço

direito trazia uma contusão menor com uma pequena ferida próxima ao punho. A análise dos

ferimentos possibilitou aos médicos afirmarem que as contusões foram causadas por um

chicote �em xipa nova�, e que o dito José não corria perigo de morrer vítima de tais

ferimentos.

Neste caso, não foi possível analisar a totalidade do processo, mas foi possível

identificar que a referida agressão ocorreu mais uma vez no decorrer da noite. A agressão

teria sido cometida por dois homens, um branco e um escravo. A presença de um escravo dá a

idéia de que o mesmo auxiliava seu senhor nesse tipo de ação. Um acerto de contas, uma

vingança, um aviso. Lá estava o escravo acompanhando seu dono. O uso do chicote denota

também a alternativa para a proibição do uso de armas. Utilizado para punir seus escravos o

chicote aparecia aqui como peça fundamental no acerto de contas.

No dia 28 de setembro de 1809 chegou uma notícia às autoridades locais de que a

Igreja Catedral da cidade de Mariana havia sido saqueada. No local foi possível constatar

ausência de algumas peças: um castiçal de prata pequeno, uma cruz do [...] da Irmandade do

Santíssimo Sacramento, uma parte da Coroa de Nossa Senhora da Conceição também de

prata, além de outras peças da mesma Igreja. Inquirido sobre o roubo, o Sacristão Menor da

Igreja, Manuel Gonçalves de Souza, declarou que já vinha dando falta das duas primeiras

peças desde o dia 30 de maio do referido ano e que só reparou que as outras peças citadas

haviam desaparecido alguns meses depois.

Lavrou-se então, auto de devassa pelos furtos ocorridos na catedral, ficando

pronunciado como autor do delito o Capitão Manuel Ribeiro de Souza, morador em Mariana.

O mesmo conseguiu ver-se livre da prisão por meio de uma carta de seguro. No entanto, o

prazo desta carta estava vencendo e uma segunda carta deveria ser apresentada. Infelizmente

não pudemos descobrir se o Capitão apresentou esta segunda carta, mas foi possível verificar

sua justificativa para tal �calúnia�, de que ele era o ladrão das peças da Igreja.

Segundo o Capitão, lhe chegou a notícia de que algumas pessoas, suas inimigas, mas

desconhecidas para ele, o denunciaram perante as justiças criminosas da cidade de Mariana na

devassa que se procedeu pelos furtos de vários trastes de prata que dizem feitos na Catedral da

107

dita cidade, afirmando que o suplicante cometera o referido delito bem como outros mais

proibidos por direito comum das leis do reino. 241

Mais uma vez, o resultado final deste processo não foi possível saber. No entanto,

verificamos no decorrer das ações contidas nos autos, aspectos importantes da ação da Justiça.

Primeiramente, a averiguação do roubo na Igreja Catedral levou a acusação do Capitão

Manuel Ribeiro de Souza, autoridade local, portanto. O fato do mesmo ser Capitão não

impediu que fosse ordenada sua prisão mesmo sem provas contundentes, no caso as peças

roubadas. Isso denota a posição da Justiça frente à prática de delitos. Em segundo lugar,

podemos nos perguntar de que maneira a Justiça chegou ao nome do referido Capitão. O

próprio Capitão afirma que pessoas suas inimigas o incriminaram injustamente. Injustamente

ou não, sabemos que a Justiça chegou até o réu através da delação. A delação era comum no

período e a Justiça a utilizava para chegar a possíveis suspeitos. O delator por sua vez,

aproveitava para incriminar uma pessoa de quem não gostava, mesmo que essa não fosse

realmente culpada. Podemos pensar que por ser uma autoridade o Capitão tinha inimigos, e

estes poderiam se aproveitar para incriminá-lo perante a lei.

Caso curioso ocorreu também no ano de 1828 242 envolvendo Dona Maria Angélica,

moradora em Águas Claras, freguesia de São Caetano. 243 Dona Maria Angélica era viúva de

Manuel Fernandes e recentemente também havia perdido um tio seu, de nome José Dias, que

viera a falecer na cidade do Rio de Janeiro. Seu tio, no entanto, não a desamparou e lhe

deixou um legado de cem mil réis.

Para receber o dito legado, Dona Maria Angélica encarregou a cobrança a um tal

João Pinto Leão, dando-lhe toda a documentação necessária para o exercício da função. O

homem não só cobrou o legado deixado à referida senhora, como se viu no direito de ficar

com uma comissão de 50%. Entregou apenas cinqüenta mil réis à Dona Maria Angélica e

tomou os outros cinqüenta mil réis para si. A dita senhora move ação de libelo 244 contra João

Pinto Leão, pois não acha justo o que foi feito com ela. Pretende com isso, reaver os ditos

cinqüenta mil réis que lhe é de direito. 245

241 Arquivo da Casa Setecentista de Mariana. Códice 221, auto nº 5502. 242 Não foi possível descobrir a data completa deste processo, por isso falta à informação do dia e do mês do

ocorrido. 243 Águas Claras é um povoado no município de São Pedro dos Ferros. Hoje, São Pedro dos Ferros é um

município da Zona da Mata, criado pelo decreto-lei n° 1058, de 31 de dezembro de 1943, desmembrado do

município de Rio Casca. 244 Em Bluteau, libelo é um papel ou breve escrito em que pessoa pede à outra, o que lhe deve em matéria civil

ou matéria crime, pondo em qualquer delas a sua razão e justiça por artigos e provas. Este que faz isto se

chama autor, e contra quem se chama réu. Vai vista do libelo ao réu para contrariar, e faz uma contrariedade também por artigos e provas, mostrando que não deve, e no crime, que não tem culpa ou que não o fez.

245 Arquivo da Casa Setecentista de Mariana. Códice 214, auto nº 5349.

108

Nem só as agressões, os furtos e os homicídios caracterizavam o crime em Mariana

no início do século XIX. O caso acima citado denota claramente esta afirmação. Uma senhora

foi enganada por um malandro, que tomou 50% do legado deixado a ela por seu tio. Maiores

investigações devem ser feitas nesse sentido para verificar se tal ação era corriqueira no

território mineiro no século XIX. Contudo, a exposição do caso permite visualizarmos mais

uma ação criminosa presente no cotidiano da população marianense no século XIX.

Na noite do dia 27 de outubro de 1815 chega uma queixa às autoridades locais de

que Ana Gomes Ribeiro havia sido roubada por um crioulo chamado André. A mesma

afirmava que o tal crioulo era o autor do roubo, pois segundo ela, já o havia presenciado dar

tiros à noite e furtar gado de moradores próximos. Foi mandado para fazer as averiguações

necessárias o Comandante do Distrito de Infincionados.

Ana Gomes Ribeiro, moradora no Infincionados, estava entretida no exercício da

mineração em lugar distante mais de meia légua do arraial de Infincionados. Por isso, era

indispensável deixar sua casa pelo espaço de toda a semana, visto que não tinha outra pessoa

consigo mais que sua neta. Segundo Ana Maria Gomes, era do conhecimento de todos, que no

arraial existiam algumas pessoas libertinas, ociosas e de vida depravada que não se ocupavam

em laboratório algum e viviam de prejudicar a sociedade, matando gado alheio, roubando

hortas e vivendo na rua à noite fora de hora.

A suplicante continua seu relato, informando que têm ocorrido várias disputas entre

esses vadios 246 e os donos das testadas 247 locais, estes últimos, com medo de serem

roubados. Ainda por cima, nestas disputas, o crime cometido por tais vadios 248 tem ficado

impune. Por serem malévolos e extravagantes foram os ditos à casa da suplicante e roubaram

o que puderam. Tal roubo pode ser constatado quando a suplicante voltava do serviço e

adentrava na sua residência.

O rol das coisas roubadas 249 na casa de Ana Gomes Ribeiro foi apresentado junto

com a queixa para que se conhecesse sua pobreza e que fosse possível o resgate de alguma

parte do roubo. Segundo a suplicante, parte componente da presa usurpada se achava em

246 Grifo meu. 247 Segundo Bluteau, testada é o espaço de terra que entesta com a outra, ou seja, que fica de fronte a outra. 248 Grifo meu. 249 Lista dos trastes roubados: um balaio pequeno com três pares de brinco de ouro e um sem companheiro; uma

volta de contas de ouro com bordas de fio de ouro; um coração de ouro; uma figa de ouro; um casilho de prata; um botão de prata de abotoar camisa; um espírito santo de prata; uma saia branca com bucal; um lenço

branco; três varas de renda fina; meia quantia de algodão; um ferro de engomar; três pratos finos; três pratos

de estanho sendo dois pequenos e um maior; um tacho de cobre; uns pares de colheres de latão; um funil e

uma lima de aço de limar.

109

algumas vendas do Arraial e a mesma tem pedido aos vendeiros que conservassem os tais

roubos para que quando os responsáveis pelo delito fossem presos fosse possível descobrir

quantos foram os participantes na presa e onde estava o restante dos bens roubados.

Verificando que tinha sido roubada a suplicante deu logo parte do acontecido ao Capitão

Comandante da freguesia, o qual mandou ordem ao seu Sargento para fazer esta diligência, já

que este tinha sido rogado várias vezes pela suplicante e por outras pessoas do arraial para

cumprir com esta ordem.

Prosseguindo com a diligência, o Sargento chegou até uma determinada família, da

qual faz parte um crioulo chamado André. Esse crioulo, parecia não ter bons antecedentes,

visto que já tinha participado de algumas confusões no arraial. Tinha fama de valente pelas

muitas que tem feito, como ter desferido um golpe de navalha na cara de um crioulo chamado

Domingos Ribeiro, com pretensão de lhe separar a cabeça, tendo sido necessário fechar o

ferimento com oito pontos. Também havia dado um tiro à noite em homem chamado Luiz

Correa, o qual esteve à beira da morte. 250 André, juntamente com seus irmãos, no tempo do

ouro, antes de surgir a moeda, enganava os taverneiros com ouro falso. Além disso, várias

eram as queixas contra ele pelo roubo de gado e demais criações. Dando uma busca na casa

da Ana Araújo Barreiras, pessoa particular do dito crioulo, o Sargento junto com algumas

testemunhas, encontrou uma rês morta e já quase toda esbanjada, a qual verificou ser roubada

e abatida pelo crioulo André.

Ao que tudo indica, pelas informações contidas no processo, fazia aproximadamente

um ano que o Sargento rondava o distrito na diligência de averiguar os até então possíveis

delitos que o crioulo André era acusado. O acusado, agora possivelmente culpado, estava

pescando e ainda na beira do rio, soube que o Sargento estava a sua procura para prendê-lo.

André, após ficar sabendo da diligência em busca dele, teve o atrevimento de esperar o

Sargento em um lugar deserto, em posse de armas, para fazer uma tocaia. Encontrando o

Sargento, aproveitou que o mesmo estava só e desarmado para lhe dar um aviso. Disse ao

Sargento que já lhe tinha feito outras tocaias e que toda a sua felicidade foi não passar por

elas. Porém, continua André, que tivesse a certeza que se fosse com ronda até sua casa para

prendê-lo, ele havia de matar alguém, pois não se entregaria facilmente. O dito crioulo

acreditava que nunca seria preso, pois tudo que tem feito até hoje, ficou impune. O Sargento

afirmou em seu depoimento que nunca o prendeu, porque não poderia prender ninguém sem

250 André, juntamente com outros, varriam as portas das casas e vendas do Arraial e se aproveitavam quando o

proprietário estava ausente para adentrar na propriedade e realizar um roubo. O tal Luiz Correa, ferido por André, se desentendeu com ele por não querer que a porta da sua casa fosse varrida em sua ausência, com

medo de ser roubado. Em meio ao desentendimento, acabou levando um tiro.

110

ordem da Justiça. Para que fosse feita a Justiça, o Sargento deu parte ao juiz de todos os

desacatos sofridos, antes que esse acabasse morto.

O juiz ordenou que todos os envolvidos no roubo fossem presos. Logo o Sargento

apresentou o respeitável despacho de Vossa Excelência, e notificou a todos os envolvidos que

entregassem os trastes roubados na casa da suplicante, o que não fizeram sem antes protestar.

Para encerrar o sargento declara sua obediência como súdito fiel a tudo o que por Vossa

Excelência for decretado. 251

Parece fazer parte do cotidiano das autoridades serem desrespeitadas e agredidas

quando tentam cumprir seu ofício no início do século XIX. No caso exposto acima, esse

desrespeito é flagrante, pois o réu ameaça a vida do oficial. Além disso, informa ao Sargento

que havia feito diversas tocaias para ele e que até agora a sorte do oficial o tinha impedido de

matá-lo. Mas quem era essa autoridade? Muitas vezes, as autoridades extrapolavam o limite

do conceito de Justiça, agindo conforme seus instintos.

Esse caso apresenta uma questão interessante quanto às autoridades locais. Por mais

que os oficiais se sentissem acima da lei, nesse caso, podemos perceber que a lei havia sido

cumprida corretamente. Segundo o Sargento, ele nunca tinha realizado a prisão do réu porque

não possuía ordem da justiça. Se isso era verdade, ou se ele apenas temia o réu, não podemos

descobrir, mas o certo, é que a lei foi cumprida.

Outro aspecto referente à Justiça que o caso nos permite discutir é a sua lentidão. Os

moradores do local, pelo que o processo crime nos informa, vinham sendo incomodados há

tempos pelos tais �varredores� e a Justiça não se pronunciava em relação a isso. Foi

necessário roubar a casa toda de Ana Gomes Ribeiro para o réu ser investigado. Contudo, não

sabemos se tal medida iria resolver o problema, visto que tais homens não tinham medo da

Justiça e descumpriam a lei em suas várias proposições.

A notícia chegara à cidade de Mariana que no dia 24 de março de 1804, indo o

Capitão Maximiano Gomes apreender a Felix da Silva Pontes por bem de uma ordem do

excelentíssimo General atual desta Capitania e a mandado deste juízo, se opusera a dita prisão

o mencionado Felix da Silva Pontes, e nesta ocasião, ficaram feridos o dito Felix da Silva

Pontes, o Capitão Maximiano Gomes e um seu escravo crioulo de nome Lourenço.

Foi por ordem da Justiça que o delinqüente fosse castigado na forma da lei. Lavrou-

se então, auto de devassa que ex-ofício da Justiça mandou fazer o Capitão Tomás Joaquim

Pedroso da Silveira vereador mais velho e Juiz pela ordenação desta cidade e seu termo, pela

251 Arquivo da Casa Setecentista de Mariana. Códice 215, auto nº 5375.

111

resistência e ferimentos constantes da declaração e corpo de delito do Capitão Maximiano

Gomes e outros.

Após a constatação do acontecido por parte da Justiça local corre então o processo

criminal. Vejamos então, na visão do Capitão, de que maneira, ele, seu escravo e o réu

ficaram feridos. Primeiramente segue o auto de declaração que fez o Capitão Maximiano

Gomes no dia 23 de março de 1804. O Capitão Maximiano Gomes, morador na freguesia do

Sumidouro deste termo, no dia de sábado, 24 de março de 1804, juntamente com um seu

escravo, vinha pela estrada que vai para Santa Ana do Deserto, no lugar chamado Gambá,

freguesia de São José da Barra Longa, junto ao sítio do de Felix da Silva Pontes, em sua

porteira, se encontrou com seis homens pardos, desconhecidos para ele. Tais homens o

embaraçaram dizendo-lhe que ali estavam para prender ao dito Felix da Silva Pontes por

virtude de um mandado assinado pelo Tenente Antonio Gonçalves da Mota, Juiz que foi pela

ordenação desta cidade e de um despacho do Ilustríssimo e Excelentíssimo General desta

Capitania, e que ele declarante devia ajudar na referida prisão. Para comprovar a autenticidade

de tal informação os seis homens apresentaram ao Capitão o mandado e despacho de Sua

Excelência. Sendo assim, se propôs a ajudar os seis homens em tal tarefa. Mal sabia o Capitão

em que enrascada estava se metendo.

Adentrou junto com os seis homens no sítio do tal Felix e de fato a prisão foi

realizada. No entanto, o dito Felix, ora preso, gritou para que sua mulher lhe trouxesse uma

zagaia. 252 Em instantes vem correndo sua mulher de zagaia na mão acompanhada de três cães

bravos. Com a zagaia ela fere o Capitão e o escravo Lourenço que segurava seu marido.

Quando avistaram a mulher de Felix com zagaia em punho e os três cães bravos, os seis

homens pardos, que seriam os responsáveis iniciais pela prisão, fugiram em disparada. O que

aconteceu foi que quase todos acabaram feridos, exceto a mulher do dito Felix. O Capitão e

seu escravo pelos golpes de zagaia e pelas mordidas dos cães; Felix da Silva Pontes pela luta

corporal para se soltar. No fim o Capitão e seu escravo, depois de muita luta, acabaram

prendendo Felix e sua valente mulher.

Realizada a prisão foi expandido mandado de prisão contra Felix da Silva Pontes

pelos ferimentos que fez na pessoa do Capitão Maximiano Gomes e pelos demais delitos 253

252 Em Bluteau, zagaia, ou melhor, azagaya, é uma lança pequena arrojadiça usada pelos mouros. �Com suas

armas, que são dardos, e azagayas guarnecidas nos cabos de ossos e pontas de cornos de alimarias

(animais) com que ferem, como se fosse de verdadeiro aço�. 253 Félix da Silva Pontes parecia ser um homem que não gostava muito de respeitar a lei. Ele já havia sido

identificado em dois assentos de prisão para crimes diferentes, além de possuir quatro alvarás de soltura, sendo três com a data de 13 de dezembro de 1806 e um outro com data de 02 de março de 1805.

112

que já havia praticado, na medida em que era temerário e desobediente às leis. Em anexo ao

processo, segue o mandado de prisão do réu.

Começava agora a etapa da realização dos exames de corpo e delito. Os exames

foram feitos no Capitão Maximiano Gomes, no seu escravo Lourenço e no réu Felix da Silva

Pontes. Examinando o corpo do Capitão foi possível encontrar quatro pequenas contusões

com escoriações da pele sobre os músculos intercostais e vértebras lombares, assim como

outra no olho esquerdo.

O escravo Lourenço estava bem mais machucado. Tinha duas feridas, uma no peito

esquerdo com três dedos de profundidade e dois dedos de largura, e que, segundo os médicos,

se ele não tivesse desviado do ferro certamente teria morrido. Outra ferida se encontrava no

meio da coxa esquerda e tinha quatro dedos de profundidade e três dedos de largura, ferida tal

que lhe impedia os movimentos de toda a perna. As feridas, segundo os médicos, denotavam

serem feitas com instrumento perfurante de zagaia e no presente não ameaçavam perigo à

vida do escravo.

É no exame de corpo e delito do réu Felix da Silva Pontes que podemos perceber que

o mesmo levou a pior nesta contenda. Ao que parece, durante o conflito, ele também acabou

ferido pela zagaia. Ele apresentava duas feridas nas costas da parte esquerda. Uma ao pé do

lombo três dedos de profundidade e dois dedos de largura, outra sobre o lombo, distantes uma

da outra meio palmo, com um dedo e meio de profundidade. Tais feridas denotavam ser feitas

com instrumento perfurante de zagaia e uma das duas feridas apresenta grande perigo à vida

de Felix. 254

O desrespeito às autoridades também está presente no caso acima. Contudo, o

interessante nesta prisão, é a presença dos seis pardos na porteira do sítio do réu. O Capitão

foi ajudar esses pardos na prisão do réu por ordem de um Tenente e de um General da

Capitania. Quem era responsável pelo despacho das ordens de prisão? Elas partiam de vários

pólos de poder? De que maneira as jurisdições eram respeitadas?

Por último, destacaremos um caso que é particular em todos os sentidos.

Primeiramente ele ocorreu no ano de 1794, logo, seis anos antes do período proposto para

estudo nesta pesquisa. Em segundo lugar, e daí a importância de tal relato, identificamos no

processo crime uma relação clara entre senhor e escravo, e suas conseqüências, quando esta

relação acaba em crime.

254 Arquivo da Casa Setecentista de Mariana. Códice 224, auto nº 5584.

113

No dia 23 de outubro de 1794, na Freguesia de Furquim, foi preso o Alferes

Francisco Gonçalves de Moraes, por culpa que lhe resultou da devassa que a ex-ofício da

Justiça se procedeu pela morte feita em um crioulinho seu escravo por nome de Felisberto o

qual consta do rol de culpados. Segundo informação dos autos, o Alferes Francisco Gonçalves

de Moraes mandou enterrar o corpo do referido escravo no ádrio da Capela de Santo Antônio

da Pinduca na Freguesia de Furquim.

Partindo destas informações iniciais a investigação prossegue. No momento da

prisão, lavra-se um auto de prisão hábito e tonsura na pessoa do réu Francisco Gonçalves de

Moraes. Este era um homem de estatura ordinária, rosto comprido e magro, olhos ordinários

pretos, cabelo todo branco, com falta de dentes na parte de cima e de baixo da boca, cor pálida

e uma verruga sobre a capela do olho direito, orelhas grandes, tinha na cabeça um barrete 255

branco de algodão e um rosário preto e grosso no pescoço, tinha vestido uma camisa de

algodão fino, um jaleco de pano azul ferrete 256, calção do mesmo, umas ceroulas de algodão

fino, umas meias de algodão grosso arrolados nas pernas e nos pés, um chinelo de couro, tinha

vestido pelos braços um timão 257 de baeta azul de forro da mesma. Era natural da cidade do

Porto do Reino de Portugal, tinha de idade 80 e tantos anos e era solteiro. Tinha o privilégio

de ter servido no senado da Câmara desta cidade e que também tinha sido síndico da Terra

Santa e que não tinha ordens menores nem sacras por onde deixava de ser punido pelas

Justiças seculares de sua Majestade e abaixando o mesmo réu a cabeça examinei que não

tinha coroa alguma e menos sinal dela.

Segundo consta, o réu, com a maior desumanidade e com tanta crueldade mandou

açoitar um seu escravo por nome Felisberto que acabou morrendo por ocasião dos ditos

açoites. O tal crioulo Felisberto era de tenra idade, tendo apenas seis anos, como se prova sua

certidão de batismo de junho de 1788. Ao que tudo indica, era costume o escravo ser açoitado.

Quando o réu estava em casa e fosse preciso fazer algum pequeno castigo ao escravinho, o

mesmo era amarrado em uma escada com a cabeça para baixo e era açoitado com instrumento

de bacalhau.

Após a constatação da morte do escravo o Alferes, seu senhor, o enterrou no dia 02

de junho de 1794 na Capela de Santo Antônio da Pinduca. No entanto, o Alferes não contava

que a Justiça ordenasse que o corpo fosse desenterrado no dia seguinte para averiguações, já

255 Em Bluteau, barrete é um certo gênero de cobertura para a cabeça. 256 Em Bluteau, há três castas de azul: O celeste, o ferrete e o ultramarino. O ferrete é um azul mais escuro. 257 Em Bluteau, timão é o pau que unido ao arado, vai a pegar na canga, em que vão os bois presos.

114

que ninguém chegou a ver o corpo e examinado em que estado este se encontrava na hora da

morte.

Já o réu apresenta uma versão diferente para o ocorrido. Segundo ele, estava no seu

serviço de minerar quando foi chamado pelos pais e avós do crioulinho Felisberto, recebendo

destes a notícia que o menino tinha morrido. O Alferes afirma que o menino havia morrido

inchado por ter comido muita terra, vício antigo que possuía. Além disso, o réu afirma que o

menino já estava muito cansado em vista da doença e não tinha esperança de melhora. Sendo

assim, após a constatação da morte do escravinho, o réu mandou enterrar o corpo na Capela

de Santo Antônio da Pinduca. De acordo com o réu, não havia motivo para que ele matasse o

escravo, visto que o mesmo era filho natural de Ana crioula, sua escrava, e foi batizado por

ele. Além disso, segundo o réu, a criança era de casa, criada como um filho, com muito amor.

Carregou-o nos braços e deixava-o comer à mesa com ele.

Entre as testemunhas ouvidas no caso encontra-se Manuel José Martins. Manuel era

um homem branco, morador do Furquim, vivia de cobranças, tinha 21 anos de idade, e sabia

por ouvir dizer os vizinhos do réu, que este mandara açoitar o crioulo com a cabeça para

baixo, até que o matara em uma escada. Além disso, ouvira dizer, que um crioulo por nome

Manuel da Silva ou um irmão deste, sabia, também de ouvir dizer, os açoites foram dados

pelo Senhor, agora réu.

No entanto, apesar das evidências e dos depoimentos contra o réu, a absolvição do

mesmo foi recomendada. Para a Justiça, o réu vivia conforme as leis naturais, era temente a

Deus e tinha uma vida regular e compassiva. Somado a isso, não era certeza que o corpo

desenterrado que se examinou era do crioulo Felisberto, escravo do réu, por não poder estar

em estado de ser conhecido, estando corrupto e podre. Nos dias próximos ao enterro do

escravinho outros corpos tinham sido enterrados e os defuntos encontravam-se em estado de

putrefação. Por isso, não tinha a certeza se o corpo examinado era de Felisberto.

Fica declarada portanto a inocência do réu, por falta de provas que o incriminassem,

por sua idade avançada e porque, segundo o próprio réu, o mesmo possuía inimigos que o

queriam incriminar. 258

Vimos nos casos citados acima, questões referentes à Justiça e a criminalidade. No

capítulo seguinte observaremos a teoria judicial no período e de que maneira a mesma

procurava agir.

258 Arquivo da Casa Setecentista de Mariana. Códice 211, auto nº 5261.

115

CAPÍTULO 4: NAS MALHAS DA JUSTIÇA

4.1 AS ORDENAÇÕES FILIPINAS E A JURIDICIZAÇÃO DA CONSCIÊNCIA

O poder nas sociedades de Antigo Regime está estreitamente ligado à figura do

monarca. Como grande soberano o rei constituía o centro único e indissolúvel do poder e da

ordenação social, concentrando todo o poder em suas mãos e tendo todo o controle sobre o

público e o privado. �Para com ele nenhuma coisa mais pode, que sua própria vontade, e o

próprio juízo�. (BLUTEAU, 1712, p. 563). 259 No que se refere à execução da justiça, também

se obedece à vontade do monarca. Punir, controlar os comportamentos e instituir uma ordem

social, castigar as violações a essa ordem e afirmar o poder do soberano constituíam

elementos inerentes ao poder real. Para ser eficaz, portanto, a punição devia ser afirmativa e

exemplar, como exercício de poder, ela devia explicitar a norma, fazer-se inexorável e

suscitar temor. As punições no Antigo Regime tinham por objetivo não só punir o corpo do

supliciado, mas também dar o exemplo, para os expectadores ao pé do cadafalso, de que a

infração da lei, como a desobediência ao próprio rei em pessoa, seria punida com vigor.

Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757, a pedir perdão publicamente

diante da porta principal da Igreja de Paris aonde devia ser levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras;

em seguida, na dita carroça, na praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí será

erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão

direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de

enxofre, e às partes que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo

fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpos consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento.

(FOUCAULT, 1987, p. 09). 260

259 BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez e latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus,

1712. p. 563. 260 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 09. Além de todo

esse sofrimento, o desmembramento do corpo do supliciado foi muito longo, porque os cavalos não estavam

afeitos à tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi

necessário, para desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas.

116

É comum que a sistematização e a codificação das leis visem a imposição de limites

ao poder monárquico. No entanto, a compilação das leis e das ordens emanadas dos

sucessivos monarcas e das cortes correspondeu a uma afirmação do poder real. No início da

época moderna, o aparecimento de códigos legislativos acompanhou a formação e o

fortalecimento das monarquias nacionais, destacando-se o pioneirismo português. Associadas

diretamente ao monarca que as promulgou, as chamadas Ordenações portuguesas constituíram

o corpo legal de referência para todo o Reino. 261

Em meados do século XV uma codificação de leis civis, fiscais, administrativas,

militares e penais, com a fixação de regras nas relações com a Igreja, foi concluída e

promulgada, sob o título de Ordenações do senhor D. Afonso V ou, simplesmente,

Ordenações Afonsinas. 262 Essa primeira codificação foi reformada durante o reinado de D.

Manuel e concluída em 1521 sob o título de Ordenações Manuelinas. 263 No início do reinado

de Filipe I, entre 1583 e 1585, os trabalhos preparatórios para uma outra sistematização

legislativa foram iniciados; contudo, por razões desconhecidas, as novas ordenações somente

entraram em vigor no início do reinado de Filipe II, quase uma década depois. 264 Publicada

com o pomposo título de Ordenações e leis do reino de Portugal, recopiladas por mandado do

muito alto, católico e poderoso rei Dom Filipe, o primeiro, a compilação constituiu o mais

bem feito e duradouro código legal português. 265

261 LARA, Silvia Hunold. (org.) Ordenações Filipinas: Livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 29.

Compiladas e ordenadas, as diversas leis regulamentavam a estrutura hierárquica dos cargos públicos, as

relações com a Igreja, a vida comercial, civil e penal dos súditos e vassalos. Acima de tudo, porém, estava o

monarca; ou, como expressa uma passagem das Ordenações Filipinas: �O rei é lei animada sobre a terra e

pode fazer lei e revogá-la quando vir que convém fazer assim�. 262 Ibid. p. 30. As regulamentações existentes nas Ordenações Afonsinas foram reunidas e ordenadas em cinco

livros: o primeiro ocupou-se dos cargos da administração e da Justiça; o segundo trata das relações entre o

Estado e a Igreja e dos privilégios e direitos do clero e da nobreza; o terceiro cuida basicamente do processo civil; o quarto estabelece as regras para contratos, testamentos, tutelas, formas de distribuição e aforamento

de terras etc.; e o último estipula os crimes e suas respectivas penas. Essas Ordenações, entretanto, não

chegaram a ser impressas durante o tempo em que vigoravam, circulando sob a forma de cópias manuscritas

que demoravam a ser concluídas e traziam muitas vezes pequenas alterações. 263 Ibid. p. 31. As Ordenações Manuelinas seguem a mesma estrutura das Afonsinas, com algumas revisões e

atualizações. Entretanto, agora os textos aparecem escritos em nome do rei, como se dele sempre tivessem

emanado, diferentemente da anterior, que chegava a reproduzir textos publicados por outros monarcas. Configura-se assim, sob o reinado de D. Manuel, a associação entre o monarca e sua lei, cujo poder se

expande à medida de suas próprias Conquistas: aqui, as penas de degredo incorporam Ceuta, São Tomé e

outras �colônias� da África. 264 Ibid. p. 33. No reinado de D. Sebastião, o jurisconsulto Duarte Nunes de Leão realizou uma compilação de

leis extravagantes e dos assentos da Casa de Suplicação, aprovada em 1569. Embora não houvesse intenção,

posteriormente essa obra ficou conhecida pelo nome de Código Sebastiânico. 265 Ibid. p. 34. Apesar de promulgado sob a égide do domínio de Castela, o texto das Ordenações Filipinas segue

a tradição legal portuguesa, tanto do ponto de vista formal como do normativo, com raras influências

castelhanas. Conserva, assim, a mesma divisão em cinco livros das Ordenações anteriores, igualmente subdivididos em títulos e parágrafos. O livro I delineia as atribuições, direitos e deveres dos magistrados e

oficiais da Justiça, com exceção dos ligados ao desembargo do Paço, cujo regimento, embora datado de 27 de julho de 1582, não foi incorporado às Ordenações. No segundo livro estão definidas as relações entre o

117

Quando pensamos no estudo do crime no Brasil, até a década de 20 do século XIX,

devemos ter em mente que as disposições relativas aos crimes e às formas de punição, durante

quase todo o período colonial até a adoção da Constituição de 1824 e do Código Criminal do

Império de 1830, encontravam-se estabelecidas no Livro V, das Ordenações Filipinas.

Abrangia essa legislação questões as mais diversas possíveis, como blasfêmia, feitiçaria,

benzimento de animais, moeda falsa, sodomia, incesto, adultério, homicídio, injúria, furto,

falsificação de mercadorias, vadiagem, batuques, resgate de presos, porte de armas, jogos,

ocultamento de criminoso, incendiários, mexeriqueiros, caças e pescarias, judeus e mouros,

deserções, etc. Ali estava prevista a pena de morte, nas suas diversas concepções, segundo a

legislação portuguesa; previa a pena de degredo para galés e degredo para outros lugares;

estipulava também penas corporais como açoites, queimaduras com tenazes, a mutilação de

mãos, da língua, etc. O confisco de bens e as multas eram igualmente utilizados como pena. E

havia ainda um conjunto de penas que se destinava a expor ao ridículo ou à condenação

pública dos infratores.

É peculiar nas Ordenações Filipinas, que por tanto tempo nortearam as ações do

corpo político-administrativo colonial, a distribuição das penas segundo a condição social do

transgressor. O mesmo crime poderia ser punido, portanto, de formas distintas: se o indivíduo

era peão ou escravo poderia ser recolhido à prisão, pagar multa ou ainda ser açoitado ou

condenado à morte. Porém se fosse um indivíduo de �maior condição�, pagava apenas a multa

ou então era degredado para o Brasil ou África, recebendo sempre tratamento distinto. 266

A punição do pecado aparece constantemente nas Ordenações e não será muito

diferente nos séculos seguintes. Apesar da separação entre Igreja e Estado no que se refere às

punições, o Estado se utiliza da juridicização da consciência para o julgamento das pessoas. A

idéia é transformar todo o crime em pecado, e punir de acordo com a consciência. Qual a

diferença, portanto, de punir o pecado e punir a consciência?

De acordo com Paolo Prodi, o século XVII pode ser chamado de era da consciência.

Após a ruptura religiosa e o nascimento das igrejas territoriais, a questão do juramento de

fidelidade e da profissão de fé impõe-se como fundamental para a ordem política, e no dilema

entre a obediência às leis do Estado e a adesão ao próprio credo pessoal funda-se todo o

debate que anima as nações européias, seja qual for o país ou a profissão religiosa a que

Estado e a Igreja, os privilégios desta última e os da nobreza, bem como os direitos fiscais de ambas. O

terceiro trata das ações cíveis e criminais, isto é, do processo civil e do criminal, regulando o direito

subsidiário. O livro IV determina o direito das coisas e pessoas, estabelecendo as regras para contratos,

testamentos, tutelas, formas de distribuição e aforamento de terras etc. O último é dedicado ao direito penal,

estipulando-se os crimes e suas respectivas penas. 266 SALLA, Fernando. As prisões em São Paulo: 1822-1940. São Paulo: Annablume, 1999.

118

pertence. 267 �A juridicização da consciência é, de fato, uma passagem chave, seja porque

representa a reação das igrejas e dos indivíduos diante da concentração do poder do Estado,

seja porque a própria evolução do direito positivo não pode ser compreendida se não

considerarmos a elaboração realizada pelos juristas da consciência do século XVII�. (PRODI,

2005. p. 357) 268

Segundo Prodi, após a separação entre Igreja e Estado, no que se refere ao judiciário,

abre-se caminho para um novo tipo de dualismo, não mais entre diversos ordenamentos

jurídicos, mas entre a lei civil e a eclesiástica. A moral, da ação eclesiástica, passa a adotar

leis do direito, e o direito, se moraliza, colocando em movimento um processo de

criminalização do pecado, de um lado, e um processo de condenação moral do ilícito civil ou

penal, de outro. A justiça tem, portanto, duas faces distintas, aquela do juízo divino e aquela

humana, e com base nessa distinção são discutidos todos os problemas concretos, desde a

restituição do bem roubado até os vários delitos.

O mundo eclesiástico medieval agia com uma fusão compacta de direito, costume e

moral, que eram mantidos numa união inseparável em parte por poderes mundanos, em parte

por poderes espirituais. O Estado e o direito se libertam dessa fusão, e a moral, uma vez que

tivera de se desvincular da tradição e da autoridade, é obrigada a distinguir-se tanto do direito

quanto do costume, buscando uma nova fundação autônoma e iniciando um caminho em

direção aos valores internos. 269

A casuística luterana do século XVII exerce papel importante nesta separação entre

Igreja e Estado, afirmando que o cristão deve ser auxiliado pelos tratados de teologia prática a

encontrar um acordo ou uma consonância entre a justiça de Deus, contida na Escritura, e a

justiça dos homens, pois a experiência cotidiana da vida demonstra que ele deve ser amparado

nas suas decisões. Nessa concepção do direito natural ou �lei de Deus�, não há apenas o início

da laicização e da fundação de uma ética autônoma, mas também a consciência do fim do

direto natural como ordenamento: o juspositivismo será, em grande parte, o resultado desse

processo de relativização, permitindo assim, o nascimento do dualismo moderno entre

consciência e direito positivo ou a �lei dos homens�.

O jusnaturalismo pensa o direito de forma diferente, caracterizando-se por uma

crítica aos �excessos� do Antigo Regime, pela separação entre direito natural e positivo, por

267 PRODI, Paolo. Uma História da Justiça: do pluralismo dos foros ao dualismo moderno entre consciência e

direito. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 355. 268 Ibid. p. 357. 269 Ibid.

119

uma preocupação maior com os réus e pelo julgamento justo. Aqui, se enquadra o pensamento

de Cesare Beccaria, por exemplo.

Referente aos �privilégios�, presentes nas leis do Antigo Regime, Beccaria

acreditava na concessão, de maneira geral, aos magistrados incumbidos de fazer as leis, um

direito que contrariava o fim da sociedade, que é a segurança pessoal. De acordo com o autor,

isto se apresentava no direito de prender, de modo discriminatório, os cidadãos, de vedar a

liberdade ao inimigo sob pretextos frívolos e, conseqüentemente, de deixar em liberdade os

protegidos do rei, apesar de todas as evidências do delito. 270

Segundo Beccaria, a prisão de um indivíduo só poderia ocorrer se fossem

apresentadas provas evidentes de que este cometeu um delito. À proporção que as penas

forem mais suaves, quando as prisões deixarem de ser a �horrível mansão do desespero e da

fome�, quando a piedade e a humanidade adentrarem as celas, quando, finalmente, os

executores implacáveis dos rigores da justiça �abrirem o coração à compaixão�, as leis

poderão satisfazer-se com provas mais fracas para pedir a prisão. 271

A idéia está em que o sistema atual da jurisprudência criminal apresenta aos nossos

espíritos a idéia de força e do poder, em vez da justiça; é que se atiram, na mesma masmorra, sem distinção alguma, o inocente suspeito e o criminoso convicto; é que

a prisão, entre nós, é antes de tudo um suplício e não um meio de deter um

acusado; é que, enfim, as forças que estão externamente em defesa do trono e dos

direitos da nação estão separadas daquelas que mantêm as leis no interior, quando

deveriam estar intimamente ligadas. Nossos costumes e nossas leis retrógradas

estão muito distantes das luzes dos povos. Somos ainda dominados pelos

preconceitos bárbaros que recebemos como herança de nossos antepassados, os

bárbaros caçadores do Norte. (BECCARIA, 2003, p. 27). 272

Ainda, conforme o pensamento de Beccaria é preferível prevenir os delitos a ter de

puni-los; e todo legislador sábio deve antes procurar impedir o mal que repará-lo, pois uma

�boa legislação não é mais do que a arte de proporcionar aos homens a maior soma de bem-

estar possível e livrá-los de todos os pesares que se lhes possam causar, conforme o cálculo

dos bens e dos males desta existência�. 273

No jusnaturalismo, o papel do juiz torna-se crucial, pois este agirá de acordo com as

leis e de maneira imparcial. Mesmo conhecendo uma verdade diferente dos fatos legalmente

surgidos e, às vezes, estando convencido de que a lei é injusta, o juiz deve aplicá-la com base

nos testemunhos contra as próprias convicções. Segundo Thomas Hobbes é perigoso dizer ao

270 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas. São Paulo: Martin Claret, 2003. 271 Ibid. p. 26. 272 Ibid. p. 27. 273 Ibid. p. 101.

120

povo que as leis não são justas, uma vez que ele só as obedece por considerá-las justas. E por

isso é necessário, ao mesmo tempo, dizer-lhes que precisam obedecer a elas porque são leis,

assim como é necessário obedecer aos superiores, não porque são justos, mas porque são

superiores. Desse modo, toda sedição pode ser prevenida caso se consiga fazer com que

compreendam tal fato e que esta é propriamente a definição da justiça. 274

A passagem do pluralismo dos ordenamentos jurídicos de herança medieval à

afirmação do moderno direito estatal, ocorre em um duplo movimento, segundo Prodi. De um

lado, tende-se a construir um novo direito da consciência, absorvendo nele o antigo direito

natural, e, de outro, tende-se a inserir no direito positivo os princípios que até então haviam

sido considerados externos à norma positiva e que, naquele momento, passam a ser

englobados com um lento processo, que levará, com o percurso secular, ao nascimento do

sistema constitucional moderno, das constituições escritas e dos códigos. 275

Caberá a Cristiano Tomásio, nos primeiros anos do século XVIII, dar o último

passo, proclamando que, em sentido restrito e próprio, apenas à lei positiva diz

respeito a definição de �lei� enquanto ligada ao conceito de �comando�. Já ao

direito natural (que compreende toda a filosofia moral, ética e política) é confiado o

papel do �conselho�: com a conseqüência muito prática de subordinar não apenas

as Igrejas (colocando-se, assim, um final ao Estado confessional, surgido com a Reforma), mas também a ciência do direito ao poder do príncipe. (PRODI, 2005, p. 448.) 276

O Estado, no entanto, se utiliza da definição de pecado para envolver toda a ação não

permitida. �Um pecado não é apenas a transgressão de uma lei, mas também, qualquer

desprezo para com o legislador, pois tal desprezo é uma infração de todas as suas leis de uma

só vez�. 277 Assim, todo o crime ou toda falta contra a sociedade e o Estado é caracterizado

como pecado, transformando em culpa moral toda e qualquer infração à lei positiva. A

laicização do conceito de crime também ocorre, na medida em que o crime é caracterizado

como uma infração, como uma simples violação da lei positiva, liberando-o, de certo modo,

do seu componente sagrado e preparando, assim, o desenvolvimento da secularização e

garantismo penal.

Segundo Prodi, as novas orientações levam a ressaltar o aspecto delituoso do pecado

como infração à ordem social e à ideologia burguesa dominante. Diferentemente da época

anterior, tende-se a considerar cada vício ou pecado como delito, seja nos catequismos que,

274 PRODI, op. cit. 275 Ibid. 276 Ibid. p. 448. 277 Ibid.

121

desde o final do século XVIII, se difundem juntamente com a escrita nas populações

subalternas, seja por parte da legislação. Para o autor, os códigos do século XIX tendem a

tutelar uma ordem social, que se amplia no direito de família, no controle da esfera sexual em

relação ao adultério, à situação dos filhos ilegítimos, à prostituição etc. Aprofunda-se ainda a

análise da ação considerada delituosa com a distinção entre delitos culposos e dolosos,

transpondo os ensinamentos dos juristas da idade moderna para o novo ordenamento dos

códigos. O esforço de distinguir o dolo da culpa e de dar a essa distinção um caráter científico

torna-se o furor da criminalística na tentativa de reduzir ao mínimo, se não de anular, a

dimensão subjetiva da infração e a arbitrariedade do juiz. 278

4.2 A �ESTRUTURA� JUDICIÁRIA

No ano 1640, foi criado por D.João IV, o Conselho Ultramarino, que tinha como

principal intuito resolver as questões jurídicas no ultramar. A criação do Órgão gerou um

pequeno conflito intra-autoridades, já que a instituição responsável pelas questões jurídicas

era o Desembargo do Paço. 279

O conflito foi suscitado por dúvidas acerca da competência dos conselhos

ultramarinos em matérias de justiça e surgiu na seqüência de uma série de tensões entre o

novo conselho palatino e os órgãos pré-existentes. Atingindo o seu ponto culminante em abril

de 1647, a querela tornou-se de tal forma grave que o próprio monarca teve de intervir,

mandando reunir uma junta especificamente vocacionada para acalmar a situação.

A sociedade era composta por um conglomerado de grupos de natureza corporativa,

e cada um deles poderia satisfazer suas necessidades da vida coletiva à margem do poder da

Coroa. A Coroa não era um sujeito unitário, mas sim um agregado de órgãos e de interesses

pouco articulados entre si, estando longe de atuar na sociedade de forma homogenia. Era

claramente perceptível a pluralidade administrativa da Coroa e a grande diversidade de

vínculos e obrigações que a mesma possuía. 280

278 Ibid. 279 CARDIM, Pedro. �Administração� e �governo�: uma reflexão sobre o vocabulário do Antigo Regime. In:

BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Modos de Governar: idéias e práticas políticas

no Império Português, séculos XVI a XIX. São Paulo: Alameda, 2005. 280 Ibid.

122

Esta pluralidade parecia ser intencional, na medida em que os poderes ficavam

divididos entre várias pessoas, mas todas, obedientes ao Rei. Pedro Cardim assim define o

termo jurisdição: poder exercido no espaço público, exterior ao âmbito doméstico, pois dentro

da família não imperava a lógica jurisdicional. A jurisdição era um poder legítimo e, meio de

equilíbrio entre os pólos de poder.

No antigo regime, julgar, legislar e executar eram facetas de um mesmo poder

público, daí, as contendas envolvendo os tribunais. Neste regime, a Coroa acabava por exercer

a maior força, pois realizava o que era da sua vontade. Tanto a Coroa quanto a administração

dos órgãos públicos objetivavam �fazer justiça�, mantendo os equilíbrios sociais, sem

interferir nem mudar qualquer situação executivamente. A Coroa agia muito mais dentro da

jurisdição e em casos extremos, utilizava seu poder de império quando os súditos solicitavam.

Eis a origem da graça. Esta era, uma interferência na justiça por parte do príncipe, quando este

acreditava, que o juiz não tinha condição de julgar determinados casos.

Os órgãos eram criados com a função de auxiliar o monarca. Consequentemente

ocorreu um alargamento da atividade jurisdicional. A ação jurisdicional era uma intervenção

de último momento, dificultando, portanto, a prevenção dos delitos. Era possível perceber a

independência dos magistrados, fruto do respeito jurisdicional.

A Coroa criava novas instituições sem descrever corretamente a maneira que estas

lhe dariam com as instituições pré-existentes. Todavia, o mal-estar entre os órgãos públicos

decorria do caráter especialmente concentrado das funções atribuídas a estes novos braços da

Coroa. Esta atuação específica parecia polarizar num só órgão, uma prática universal e antiga

que, privilegiando os valores da ponderação e do equilíbrio, sustentava que os dispositivos

colegiais eram os mais adequados para o exercício de qualquer tarefa pública. A separação

entre a justiça e as finanças eram uma das regras mais enraizadas da concepção tradicional do

ofício. Assim, e salvo raras exceções, nenhum oficial podia administrar a Justiça e ter, em

simultâneo, responsabilidades financeiras. 281

Um dos aspectos mais sugestivos de todo este processo é o fato de ele se ter

desenrolado num quadro de forte continuidade e até de coexistência, lado a lado, entre

elementos novos e quadros tradicionais.

Não há dúvida de que foi no próprio seio do mundo jurisdicional que acabaram por

ser dados os primeiros passos no sentido na libertação das estruturas tradicionais de

legitimação. Porém, trata-se de medidas que sempre enfermaram de limitações, desde logo

281 Ibid.

123

culturais, já que os juristas estavam como que prisioneiros das suas próprias categorias. Não

devemos esquecer que a cultura política jurisdicionalista era mais do que um mero saber

técnico aprendido nos claustros das Faculdades de Direito. A cultura jurídica era todo um

sistema cultural, de origem ancestral e profundamente enraizada; era um modo de pensamento

e um modo de representar a realidade. 282

Devemos considerar ainda a dificuldade encontrada por parte da Administração

Colonial no que se refere à falta de prisões e oficiais responsáveis pela manutenção da ordem

nas cidades, vilas e distritos. Nos Relatórios Executivos Provinciais podemos encontrar

algumas queixas referentes a estes problemas 283. Eis a queixa do relator sobre a falta de

cadeias na Província de Minas Gerais:

(...) Sendo já por vós bem conhecido que quase todos os Municípios da Província

carecem de Cadeias, e Casas de prisão com tais cômodos, e segurança, que

facilitem a exata observância das leis penais, só posso agora informar-vos, que a desta Capital está quase concluída, e que as outras, que se acham em construção,

não tiveram adiantamento notável no decurso do ano. Vê-se do Balanço da

Despesa provincial, que sendo a consignação para este objeto de 25:000 $ réis,

apenas se despenderam 2:429 $ 999 réis no ano [?] de1810 a 1841, não porque

devesse o Governo deixar por qualquer motivo de despender toda a consignação,

mas não por haver fundos para realizar os pagamentos pedidos, ou já prometidos às Câmaras, que não têm cessado de instar por eles. É pois da primeira necessidade,

que igual consignação (visto que não pode ser maior) se inclua na Lei do

Orçamento, do ano futuro. 284

Após se queixar da insuficiência de cadeias e da falta de investimentos na construção

das mesmas, o relator direciona suas reclamações à Força Policial, ou a falta desta.

(...) Seria talvez suficiente o que acabo de referir [?] do emprego da Guarda Nacional no serviço da guarnição para convencer-vos da insuficiência da Força Policial [?] decretada para as diversas e numerosas diligências, que estão a seu

cargo: reconhecendo porém que é este um dos objetos, que exigem considerável

dispêndio da Fazenda Provincial, que não deve ser autorizado sem poderosas

razões, que o justifiquem; julgo necessário dar-vos a respeito mais minuciosas informações (...).

285

282 Ibid. 283 Devemos ressaltar aqui que os Relatórios Executivos Provinciais começam a ser confeccionados no início da

década de 30 dos oitocentos, portanto um período posterior ao recorte temporal de nossa pesquisa. Contudo os Relatórios se tornam uma fonte riquíssima para os pesquisadores que tem como espaço físico de seus

estudos as Minas Gerais. No caso específico desta pesquisa sua utilização se justifica pela caracterização,

por parte dos Presidentes e Vice-Presidentes de Província, da situação do sistema carcerário e do corpo de

oficiais responsáveis pelas prisões e pela Cadeia Pública de maneira geral. 284 Relatórios Executivos Provinciais. In: Subject Guide to Statistics in the presidential Reports of the Brazilian

Provinces, 1830-1889. Austin, Texas: Institute of Latin American Studies, University of Texas at Austin, 1977.

285 Ibid.

124

É necessário considerar, para o século XVIII, a vastidão do território e a dificuldade

que a Administração Colonial encontrava na manutenção da ordem, principalmente nos

chamados sertões mineiros, como bem nos lembra Carla Anastasia. Na primeira metade do

XIX, a nosso ver, parece que a dificuldade com a falta de oficiais responsáveis pela

manutenção da ordem continua, pois os Presidentes e Vice-Presidentes de Província

continuam se queixando. Vejamos as justificativas destes para o aumento da Força Policial na

província de Minas Gerais.

(...) No Relatório do ano passado fez-se ver que contendo então o Corpo Policial o

número efetivo de 400 Praças, não era possível conservar nas diversas Comarcas Destacamentos, que auxiliassem as autoridades locais no cumprimento de seus deveres. A Lei Provincial n° 218 de 13 de abril de 1841 reduziu a Força a 400

Praças, incluídas 40 de Cavalaria, e agora vê-se pelo mapa, que vos ofereço sob n°

[?] que o estado efetivo não excede a 373. Destas achavam-se destacadas até o dia

15 de abril último, 225, sendo 9 na Comarca do Rio das Velhas, 20 na do Rio das

Mortes, 20 na do Serro, 22 na do Parahybuna, 14 na do Jequitinhonha, 19 na de Paracatu, 21 na do Rio Grande, 16 na do Sapucaí, 3 no Armazém da Pólvora, e 82

nas Recebedorias, e Barreiras, de sorte que além das empregadas em diligências, e

as doentes, não se acham prontas mais de 90, incluindo-se os músicos, e 17

diariamente ocupadas com a guarda dos condenados à galés que se empregaram

nas obras públicas sob a direção do Inspetor Geral das Estradas, e da Câmara

Municipal. Este estado de coisas não tem melhorado, nem é possível que melhore

sem providências legislativas, cuja execução exigira tempo e trabalho (...). 286

Não contente com o número efetivo das tropas o alvo das queixas é agora a

ineficiência para o desempenho de algumas atividades e a falta de disciplina apresentada na

realização de tarefas por parte destas Tropas, devido a constante ausência de seus

comandantes, que nem sempre podem estar próximos.

(...) Os Destacamentos de que tenho feito menção não correspondem de sorte

alguma às necessidades das Comarcas, onde existem, 3 delas não tem uma só

Praça, e as reclamações das autoridades, que pedem auxilio de força não podem ser

mais repetidas nem mais urgentes. O mesmo sucede quanto às Recebedorias, onde

a falta de conveniente guarnição dá lugar ao extravio, e consequentemente a um

constante desfalque das rendas públicas. A experiência vai também mostrando que

o serviço destas Estações Fiscais nem sempre é bem desempenhado por Praças do

Corpo, por isso que achando-se por muito tempo fora das vistas de seus comandantes, e tendo de lidar unicamente com os administradores, relaxa-se a disciplina, e algumas delas cometem ora omissões ora excessos, que mal podem ser

punidos segundo o Regulamento, que manda formar os Conselhos na Capital da Província, além de perder-se muito tempo, e despesas com as contínuas

substituições das que se destacam nos lugares mais remotos (...). 287

286 Ibid. 287 Ibid.

125

O relator sugere então a criação de um órgão que possibilitasse aos administradores o

poder de correção aos oficiais da Força Policial. Ainda agradece a criação de uma força de 1ª

Linha que se fazia necessária para um desempenho satisfatório de funções necessárias e

importantes para o bom desempenho da Administração Provincial.

(...) A organização de um Corpo de Guarda privativo das Recebedorias, e

Barreiras, com obrigações assim definidas em regulamento próprio, que conferisse

também aos Administradores, a necessária autoridade para corrigi-los, seria a meu ver providência mui profícua. Conhecendo assim o Governo da Província que o

serviço público tem padecido por falta de Força, e considerando por outro lado que

o Cofre Provincial não se acha habilitado para fazer fase a maiores despesas,

solicitou-se do Governo de S. M. o Imperador em fevereiro deste ano o auxilio que ele podia prestar a Província por meio da criação de alguma Força de 1ª Linha. Esta

representação foi prontamente atendida, determinando S. M. Imperial que aqui se organizasse o 3° Esquadrão de Cavalaria, que deverá destinar-se particularmente ao serviço da Província. Trata-se hoje dessa organização com esperança de completar-se em breve tempo, e como as 150 Praças, de que deverá compor-se o esquadrão,

podem ser vantajosamente empregadas em destacamentos, condução de cabedais, e

outras diligências, que se acham a cargo do Corpo Policial, não insistirei em que a

força deste seja atualmente elevada (...). 288

Por fim outro problema passa a ser abordado: a falta de pagamento aos soldados. O

relator reconhece que é impossível manter a disciplina sem pagar os vencimentos às Tropas.

A falta de pagamento e as difíceis condições financeiras enfrentadas pelos soldados não são

problemas exclusivos das Minas Gerais, e nem do século XIX, pois outras regiões do país, em

outros momentos, se defrontaram com uma situação semelhante ou até mesmo pior. 289

(...) Parece-me também oportuna a ocasião para participar-vos que o Governo da Província conhecendo que não é possível manter-se rigorosa disciplina, que constitui o principal mérito da Força pública, sem que os soldados recebam

prontamente os seus vencimentos, tem aplicado a este objeto particular atenção, e

não obstante os embaraços provenientes da falta de dinheiro nos Cofres Provinciais, já pode regular os pagamentos, de sorte que cessassem os principais

queixumes, que a demora deles excitara, além de fornecer ao Comandante do

288 Ibid. 289 Kalina Vanderlei Paiva da Silva em O miserável soldo e a boa ordem da sociedade colonial: história de

homens, militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos Séculos XVII e XVIII busca

discutir a utilização de criminosos e marginais na formação do aparato militar da Capitania de Pernambuco e as dificuldades enfrentadas pelos soldados que lutavam pela sobrevivência, devido à falta de pagamentos. Segundo a autora, a tropa burocrática, que surge como um instrumento de centralização de poder régio na

zona de açúcar assolada pelos poderes particulares dos senhores de engenho, é uma tropa mal gerenciada e desestruturada e que assume um caráter de ferramenta de controle social sobre os centros urbanos, na

medida em que assimila os párias e marginais dessas povoações açucareiras, controlando assim os danos que

esses poderiam causar à sociedade, ao mesmo tempo em que os aproveita como peças do sistema de defesa

do Estado. O controle que a Coroa portuguesa exerce sobre essas tropas burocráticas e marginais passa não

tanto pela disciplinarização dos corpos como pela subordinação dos espíritos. Uma subordinação que a

fome, a miséria e certa equiparação social aos escravos se encarregam de garantir.

126

Corpo os meios precisos para acudir à algumas necessidades mais urgentes das Praças, isentando-as assim de recorrer a onerosos empréstimos particulares (...).

290

Devemos ter em mente que a administração colonial se preocupava bastante com o

controle social e a manutenção da ordem, visto que boas relações com os colonos dependiam

disso. Revoltas e levantes escravos, a grande extensão do território das Minas e falta de

oficiais nas regiões mais distantes dos centros administrativos eram alguns dos problemas que

atormentavam os administradores coloniais.

De acordo com Vellasco, com a chegada da Corte, tem início o processo, que mais

tarde se mostraria irreversível, de independentização e expansão do aparelho de administração

judiciária da Colônia, que irá preparar as bases do movimento de ruptura com Portugal e

construção de uma nova ordem institucional. De todas as medidas então tomadas, a mais

significativa é a transformação, pelo Alvará de 10 de maio de 1808, da Relação do Rio de

Janeiro em Casa da Suplicação do Brasil, o que tornava o Brasil independente de Portugal no

que diz respeito aos pleitos jurídicos que, a partir de então, passavam a ter como última

instância de apelação um tribunal no Rio de Janeiro, e não mais em Lisboa como até então.

Seguem-se a criação das Relações do Maranhão (1812) e Pernambuco (1821) e uma

significativa expansão do quadro judiciário com a criação de inúmeros postos e ofícios de

justiça em todo o território colonial, aí incluída a comarca do Rio das Mortes. 291

A criação da Casa da Suplicação do Brasil e os estabelecimentos das Relações

ampliavam e facilitavam os recursos às decisões tomadas em primeira instância. A expansão

dos cargos de ouvidor e juiz de fora representou uma intervenção direta na administração da

justiça nos níveis locais, antes exercida, sobretudo pelos juízes ordinários, eleitos localmente e

membros do Senado das Câmaras. Enquanto o cargo de juiz ordinário era exercido por

homens da própria localidade, em geral despreparados e que tinham de seguir cuidando de

seus interesses � interesses esses que não raro influenciavam suas decisões jurídicas -, o cargo

de juiz de fora era profissionalizado, como parte da burocracia judiciária, e ocupado por

homens de formação jurídica, que, a princípio, guardavam uma posição de externalidade em

relação aos interesses locais. 292

290 Ibid. 291 VELLASCO, Ivan de Andrade. O Juiz de Paz e o Código do Processo: vicissitudes da justiça

imperial em uma comarca de Minas Gerais no século XIX. Revista JH, v. 3, n. 6, 2003. Disponível

em: www.tj.rs.gov.br/institu/memorial/RevistaJH/vol3n6/03-Ivan_vellasco.pdf-. Acesso em 24 mar. 2007.

292 Ibid. p. 03.

127

As mudanças que se põem em marcha então, buscam estreitar o espaço de abusos e

arbítrio praticados pelos magistrados, enfrentar o problema crônico da ineficácia e

morosidade dos serviços jurídicos, conseqüência em grande parte da escassez de

profissionais �letrados� e � o mais importante � prover o Império de leis adequadas

ao sistema constitucional e à marcha civilizatória. Ao lado das ações que visavam

disciplinar os aspectos processuais da justiça preparam-se as transformações

fundamentais que irão definir a estrutura jurídica brasileira: o Código Criminal,

promulgado em 16 de dezembro de 1830, e o Código do Processo Criminal,

tornado lei em 29 de novembro de 1832. (VELLASCO, 2003, p. 04) 293

A criação do juizado de paz marcava uma mudança importante na configuração do

poder judiciário e criava um personagem que marcaria toda a década seguinte, alterando

profundamente o cotidiano da justiça. Com atribuições administrativas, policiais e judiciais, o

juiz de paz, eleito, acumulava amplos poderes, até então distribuídos por diferentes

autoridades (juízes ordinários, almotacés, juízes de vintena) ou reservados aos juízes letrados

(tais como julgamento de pequenas demandas, feitura do corpo de delito, formação de culpa,

prisão etc.), que passavam então a ter de compartilhá-los com esse intruso personagem. O

exercício do juiz de paz envolvia a justiça conciliatória e o julgamento de causas cujo valor

e/ou a pena não ultrapassasse certo limite, a imposição do termo de bem viver, a manutenção

da ordem pública e emprego da força pública, vigiar o cumprimento das posturas municipais,

a condução das eleições, enfim, funções administrativas, judiciais e policiais as mais amplas.

Os argumentos em torno da administração da justiça e suas vicissitudes que levaram à

introdução do juizado de paz se desenvolviam, fundamentalmente, em dois campos. O

primeiro, centrado nas críticas aos reiterados problemas e queixas da estrutura jurídica, em

grande parte herdada do período colonial, com o predomínio abusivo dos magistrados e seus

sistemas de emolumentos. O segundo situava-se no campo da percepção de que era necessário

introduzir mecanismos de implementação da justiça, capazes de levar seus benefícios a toda,

ou quase toda, extensão do território do Império; o que constituiria um dos pilares básicos de

sustentação e fortalecimento do sistema constitucional e uma tarefa primeira do Estado em

construção. No primeiro caso, o juiz de paz seria uma alternativa de distribuição da justiça,

baseada no poder local e capaz de se contrapor às práticas ortodoxas de uma máquina lenta,

decadente e ineficiente. Como acentuou Thomas Flory, imaginava-se �uma espécie de

guerrilha burocrática� (Flory, 1986: 85). No segundo caso, a ênfase recaía nas funções de

conciliação e arbítrio das pequenas causas � o que tornaria efetiva a extensão da justiça ao

grosso da população livre � bem como na atividade de policiamento e controle da ordem,

ambas então em estado mais que precário.

293 Ibid. p. 04.

128

A Relação de Minas Gerais só seria criada em 1873 e a idéia de um curso ou o

funcionamento de cadeiras de Direito na província não se realizou no Império. Entretanto, as

demais mudanças apontadas foram realizadas com as reformas que vieram. Segundo Flory, a

antecipação do implemento do juizado de paz em relação a um novo código legal, que

atacasse o problema da reorganização e transformação da estrutura judicial, teria sido

responsável pelo fato de o juiz de paz ter ficado inicialmente �à deriva na estrutura incompleta

e hostil de uma judicatura colonial sem mudança�. Tal opção teria sido tomada pelos

partidários do �melhorismo� judicial em função da urgência em dar resposta ao estado de

desmantelamento da antiga estrutura e da impossibilidade de retardar as mudanças possíveis à

espera de soluções legais abrangentes, que demandariam um demorado processo de

maturação e realização; �desse ponto de vista�, segue Flory, �o estabelecimento do juiz de paz

brasileiro foi um recurso momentâneo. Impediria as obstruções e legitimaria parcialmente o

sistema legal existente sem transtorná-lo de todo�. Podemos imaginar pelo menos duas

explicações para o aumento da produção judicial verificada a partir do advento do juizado de

paz, tal como demonstrado nos dados acima. A primeira é a de que se teria estabelecido um

contexto cooperativo entre os juízes de paz iniciantes, ainda experimentando o alcance de

suas atribuições e poderes e ciosos do papel preeminente das autoridades judiciais, e os

magistrados, seguros de sua posição e domínio dos expedientes forenses, o que lhes garantiria

uma situação confortável uma ascendência moral indubitável. A segunda explicação plausível

seria a do estabelecimento de um contexto competitivo entre nossos protagonistas, ambos

emulados pela presença do novo: de um lado, os juízes de paz, investidos de um papel

institucional sobre o qual repousavam as expectativas, tanto de setores da elite politicamente

envolvida, quanto da população como um todo, que passaria a ter uma autoridade local a

quem recorrer; de outro, os juízes letrados, desafiados por uma realidade que fora fruto, entre

outras coisas, das sucessivas críticas à ineficiência e elitização da estrutura jurídica que

representavam; enfim, todos buscando mostrar serviço. Creio que ambos os raciocínios são

possíveis. Até porque não são excludentes. É razoável supor que uma cooperação competitiva

tenha se estabelecido de início, com resultados positivos para o andamento da justiça e seus

beneficiários. E, desse ponto de vista, a criação do juizado de paz teria representado uma

lufada de ar em um ambiente viciado e pouco arejado.

O crime era uma afronta ao poder metropolitano e o criminoso deveria ser

combatido. As Ordenações Filipinas afirmavam esta máxima, mas como já comentamos

acima nem todas as pessoas sofriam as mesmas punições, o que faz deste código criminal uma

execução de justiça muito particular, já que as leis não eram para todos. A falta de prisões

129

preocupava o poder português. Os relatórios executivos provinciais posteriormente

mostrariam essa inquietação. Além disso, as prisões possuíam características e fins diferentes

das prisões atuais. Afinal de contas quem eram estes criminosos que causavam tanto temor na

administração colonial, que pessoas eram consideradas criminosas?

Thompson 294, se referindo à Inglaterra, nos informa que é possível isolar duas

maneiras pelas quais as tradições �subpolíticas� afetam o movimento operário inicial: os

fenômenos do motim e da turba, e as noções populares de um �direito de nascimento do

inglês�. Quanto aos primeiros, devemos compreender que sempre persistiram atitudes

populares em relação ao crime, chegando por vezes a constituir um código não-escrito

totalmente diferente das leis do país. Certos crimes eram condenados por ambos os códigos:

um assassino de mulheres ou crianças seria lapidado e execrado a caminho de Tyburn. Os

salteadores e piratas pertenciam às baladas populares, em parte como mito heróico, em parte

como advertência aos jovens. Mas outros crimes eram ativamente perdoados por comunidades

inteiras: a cunhagem de moedas falsas, a caça e pesca ilícitas, a sonegação de taxas ou

impostos de consumo, a fuga ao recrutamento. Comunidades contrabandistas viviam num

estado de guerra constante contra as autoridades, e suas normas não-escritas eram

compreendidas por ambos os lados; as autoridades podiam apreender um barco ou dar uma

batida na aldeia, e os contrabandistas podiam resistir a prisão, mas não fazia parte das táticas

contrabandistas levar a guerra além da defesa devido às medidas de retaliação que

seguramente se seguiriam. Por outro lado, outros crimes que eram comumente cometidos, e,

no entanto afetavam a subsistência de determinadas comunidades, como o roubo de ovelhas

ou de roupas em varais ao ar livre, suscitavam a condenação popular. Esta distinção entre

código legal e o código popular não-escrito, segundo Thompson, é um lugar comum em

qualquer época.

Pensando as três primeiras décadas do século XIX para Minas Gerais, para a cidade

de Mariana, buscamos numa documentação oficial denominada auto de prisão hábito e

tonsura 295 algumas informações que nos ajudem a identificar quem era considerado

criminoso no início do século XIX.

A aplicação dos autos de prisão hábito e tonsura está assim definida no Livro V das

Ordenações Filipinas:

294 THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa. Vol. 1. São Paulo: Paz e Terra, 1987. p. 62. 295 Códice 167 do AHCMM.

130

Mandamos aos desembargadores, corregedores, juízes e mais justiças, alcaides,

meirinhos, escrivões e tabeliães que nas prisões de quaisquer pessoas se acharem,

sejam obrigados perguntar às pessoas que prenderem, tanto que forem presos, se

têm ordens menores; e o que responderem escrevam ou façam escrever no ato, e os

vestidos e trajos em que forem achados, e as cores e feição, e comprimento deles,

declarando se trazem coroa e o tamanho e comprimento dos cabelos dela, e quanto mais curtos são que os outros cabelos da cabeça; e não o fazendo assim o julgador

que ai presente estiver à prisão e os tabeliães ou escrivões que aí presentes forem

percam os ofícios. (ORDENAÇÕES FILIPINAS, livro V, 1999, p. 405).

Encontramos na documentação referente à Cadeia Pública de Mariana presente no

Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana, entre os anos de 1803 e 1809, quarenta e

cinco (45) autos de prisão hábito e tonsura. A aplicação destes autos está determinada nas

Ordenações Filipinas, mas esta documentação surge na cidade de Mariana pela primeira vez

no ano de 1803, e como veremos nem todas as prisões eram acompanhadas da aplicação

destes autos. 296

Através das informações contidas nos 45 autos de prisão, hábito e tonsura

encontrados para Mariana entre 1803-1809 pudemos traçar o perfil 297 do criminoso da Cadeia

de Mariana: homem pardo, com idade entre 21 e 30 anos, escravo, com boa estatura, olhos

pardos e pequenos, cabelos negros e crespos, corpo cheio, rosto comprido e com alguns

sinais, orelhas pequenas, sobrancelhas pretas e abertas, falta de muitos dentes na boca, beiços

grossos e mãos cabeludas. Era esta, a figura do criminoso com que a Câmara tinha de lidar,

um criminoso, que tinha no seu fenótipo a marca da miscigenação. Analisando estes poucos

autos temos uma visão equivocada de qual era, na realidade, o perfil da população carcerária

de Mariana como um todo. Parecia-nos assim que o escravo em geral e o mestiço eram os

criminosos do início do século XIX.

Ao verificarmos a incidência dos autos de prisão hábito e tonsura na documentação

referente à Cadeia de Mariana percebemos que ao longo dos anos sua aplicação foi muito

dispersa e sem uma regularidade que nos permitisse maiores estudos em relação ao criminoso.

Estes autos não eram padronizados e na maioria dos casos, diversas informações que

apareciam em documento não eram encontradas no documento seguinte. Vale ressaltar, que

apesar desta variação, os anos de 1804 e 1805, são os anos em que esta documentação está

mais presente, e são aplicados em quase 100% dos casos de homicídio, furtos e agressões

físicas.

296 Procuramos entre os assentos de prisão da Cadeia Pública de Mariana ao longo dos séculos XVIII e XIX,

sendo estes 45 autos de prisão hábito e tonsura os únicos encontrados. 297 Este �perfil� não possui qualquer caráter determinista e é colocado aqui justamente para demonstrarmos o

que a fonte enganosamente nos mostra em relação a uma totalidade de pessoas que eram presas na Cadeia Pública de Mariana.

131

O primeiro auto de prisão hábito e tonsura documentado na Cadeia Pública de

Mariana foi aplicado no dia 24 de novembro de 1803, e se referia ao réu Thomé Pereira da

Silva, filho de Domingos Pereira da Silva. Thomé era um homem branco, de 24 anos de

idade, exercia o ofício de caldeireiro, possuía estatura proporcionada, olhos azuis claros,

corpo delgado, rosto comprido, poucas sobrancelhas, boca com todos os dentes, beiços

grandes, mãos trigueiras com dedos compridos, sem sinal de coroa na cabeça, calças de

algodão brancas, camisa de Bretanha, chinelos nos pés, jaleco de ganga, com um rosário no

pescoço, ignorava a causa de sua prisão e foi preso por fabricar moeda e ouro falso.

O último auto de prisão, hábito e tonsura documentado na Cadeia Pública de

Mariana foi feito no dia 15 de fevereiro de 1809, e se referia aos réus Manuel e João Luis.

Manuel era um escravo crioulo de propriedade de Manuel Lopes da Silva, tinha 18 anos de

idade, possuía boa estatura, corpo alguma coisa cheio, rosto comprido e sem barba, boca com

todos os dentes da frente, sem sinal de coroa na cabeça, camisa de algodão, jaleco e calças do

mesmo algodão, chapéu na cabeça. João Luis era um escravo cabra que vivia alugando dando

jornal à senhora Brígida Maria Barbosa, tinha 35 anos de idade, possuía boa estatura, corpo

proporcionado, cabelos torcidos, rosto proporcionado e barbado, boca com falta de três

dentes, sem sinal de coroa na cabeça, camisa e calças de algodão branco, jaleco azul. Ambos

foram presos por causarem ferimentos em José Basílio de França Lira, filho de Dona Lúcia

Maria de Ataíde.

Tabela 3: a aplicação dos autos de prisão hábito e tonsura (1803-1809)

1803 1804 1805 1806 1807 1808 1809

Prisões 25 31 30 18 23 20 17

Prisão hábito e tonsura 2 21 11 1 3 5 2

Porcentagem 8% 68% 37% 6% 13% 25% 11%

Fonte: Códice 167 do AHCMM.

A tabela 3 nos mostra que os anos de 1804 e 1805 foram os anos em que os autos de

prisão hábito e tonsura estiveram mais presentes entre a documentação carcerária. No ano de

1804 foram realizadas 31 prisões, sendo que em 68% delas foram aplicados os autos de prisão

132

hábito e tonsura. Mas, devemos relatar que entre os dez casos em que não foram aplicados os

ditos autos não há sequer um homicídio, uma agressão física, ou um furto. 298

Já no ano de 1805 foram realizadas 30 prisões, sendo que em 37% delas foram

aplicados os autos de prisão hábito e tonsura. Esta porcentagem pode parecer pequena, mas,

notamos que entre os dezenove casos em que não foram aplicados os ditos autos não há, assim

como para o ano de 1804, sequer um homicídio ou agressão física. 299

Violência e criminalidade são fatores recorrentes em nossa história. Observamos que

a região das Minas, no século XVIII, segundo a historiografia, conviveu com altos índices de

violência, violência esta, que poderia estar presente tanto nos motins e revoltas ocorridas no

território mineiro neste período, quanto nos homicídios e agressões cometidas pela �gente

comum�.

Os motins, na maioria das vezes, representavam a insatisfação dos mineiros com a

administração colonial, e representavam a resistência contra os �desmandos� estabelecidos

pela Coroa. Estes motins, além de demonstrarem certa brecha na soberania da Coroa,

demonstravam também que reunido, o povo, poderia causar preocupação e temor aos

governantes das Minas. Estes governantes por sua vez, já vinham para a região, avisados do

caráter insurrecional das Minas e que deveriam tomar cuidado ao lidar com os mineiros.

Minas Gerais apresentou no período citado, além dos motins, um grande número de

infrações que de certa maneira, preocupavam os governantes. Homicídios, agressões e furtos,

entre outros, estiveram presentes nos assentos da Cadeia Pública de Mariana analisados. A

participação de negros e mestiços nestes delitos, cometidos nos caminhos mineiros,

preocupavam e aterrorizavam o povo e as autoridades principalmente pela morte de Senhores

causadas por seus próprios escravos.

Observamos ainda que a Coroa possuía meios próprios para conter ou diminuir a

violência e a criminalidade em suas colônias. As Ordenações Filipinas previam punição

rigorosa à diversidade de infrações cometidas. A Cadeia por sua vez, neste período, não tinha

298 Cinco dos dez casos se referiam a prisão por penhora de escravos, penhora de duas bestas, e penhora de bens

em geral. Um caso foi por uma querela feita por não ter ocorrido o pagamento de uma dívida no seu tempo

devido. Dois casos envolviam autoridades, no primeiro, um Juiz não fez exame de corpo delito que deveria

ter feito a respeito de uns ferimentos e tiros ocorridos no distrito de São Caetano; no segundo, o Meirinho

das Execuções insultou e se desentendeu com palavras, certas mulheres da cidade por conta de uma cobrança. E em duas prisões não consta sequer o crime cometido pelo preso.

299 Apenas em um caso de furto não foi realizado o auto de prisão hábito e tonsura, um furto cometido no fim do dito ano. Sete dos dezenove casos se referiam a prisão por penhora de escravos e penhora de bens em

geral. Um caso ocorreu porque o réu não compareceu no Termo no tempo em que o Juiz lhe determinou. Um

caso foi por uma querela. Um outro caso se referia a uma desobediência, pois o réu não exibiu em juízo, os

papéis e provisão, que por uma determinada pessoa lhe foi intimado. Em oito prisões não consta também o

crime cometido pelo preso.

133

qualquer intenção de recuperar o indivíduo e quando utilizada, objetivava a punição e a

demonstração de poder, buscando simplesmente retirar da sociedade aqueles que

desrespeitavam e não cumpriam as leis, trancafiando em celas aqueles que eram julgados e

considerados delinqüentes. Quem eram estes delinqüentes é uma pergunta de difícil resposta

que estamos tentando descobrir. Notemos que os autos de prisão, hábito e tonsura não eram

utilizados, por exemplo, quando o delito se referia a penhora, e acreditamos que as pessoas

presas por penhora não eram consideradas criminosas, pois participavam das atividades

econômicas e sociais na Colônia. Então poderíamos dizer que criminosos eram os que

cometiam homicídios, furtos e agressões, por exemplo. Mas não é tão simples assim, pois a

condição social pesava na prisão e na punição. O que nos parece é que o termo criminoso não

se referia a todos que cometiam delitos e que talvez, o código moral mencionado por

Thompson perpassasse os interesses da comunidade e atingisse também os interesses da

administração colonial.

A aplicação dos autos de prisão hábito e tonsura demonstra a preocupação da

administração colonial com a prática do crime no território mineiro no início do século XIX.

A aplicação destes autos permitia que os oficiais da Cadeia Pública registrassem, como em

uma fotografia, as características físicas de cada uma das pessoas presas naqueles tempos. Um

olhar mais atento sobre a população tornava-se possível, na medida em que estes registros

criminais gravavam a �imagem� do criminoso. Os autos de prisão hábito e tonsura auxiliavam

ainda nos casos de fuga, já que seria muito mais fácil capturar o fugitivo tendo em mãos além

do nome do indivíduo, suas características físicas. No entanto, a aplicação destes autos

desaparece no ano de 1809 e não foi possível identificar o motivo deste desaparecimento. O

início do século XIX é afetado por significativas mudanças e talvez estas, interfiram na

aplicação da Justiça. A chegada da família Real no Brasil, o processo de Independência, a

Constituição de 1824, a criação do cargo de Juiz de Paz e o Código Criminal do Império em

1830 são alguns dos acontecimentos que poderiam ter interferido na aplicação da Justiça.

134

CONCLUSÃO

A discussão gerada a partir dos métodos de controle social nas várias sociedades nos

permite uma aproximação com a realidade local. E qual seria a realidade no início do século

XIX em Minas Gerais? Quando pensamos numa sociedade violenta a imagem que temos é de

uma região na qual o número de crimes cometidos é muito alto. Com os dados apresentados

ao longo deste trabalho é possível afirmar que as Minas do XIX eram violentas? Certamente

não. Aliás, determinar o índice de violência de qualquer cidade ou região só é possível através

da quantificação. Relatos eventuais de violência por parte de algum criminoso, seja na

Colônia ou no início do Império, não são representativos, visto que as fontes oficiais não

abarcam a sociedade como um todo.

E qual era então o papel da Cadeia Pública neste quadro? Existia alguma

preocupação que visasse a recuperação do criminoso? Não existiu no período qualquer

intenção de reeducar o preso para sua volta à sociedade. Além do que, esta volta poderia ser

rápida. Como vimos, o tempo que os criminosos passavam encarcerados era, na maioria dos

casos, curto. E era essa a intenção da administração carcerária. A cadeia funcionava como

método coercitivo e sequer tinha condições estruturais para manter um grande número de

pessoas presas por um longo tempo. Os relatórios dos presidentes e vice-presidentes de

província apontam para uma preocupação com o número reduzido de cadeias em Minas

Gerais e com a falta de estrutura das que já existiam. No entanto, tais apontamentos não saíam

do campo do discurso e as cadeias continuavam sujas, úmidas e com uma péssima estrutura

física.

Analisando a população carcerária de Mariana no período é possível notar uma

variação no que diz respeito à �qualidade� dos presos. Logicamente, algumas categorias

prevalecem, como o número de homens presos, por exemplo, mas o quadro geral é

diversificado. O número de ocorrências na sede é maior que nos distritos, tendo em vista que

é mais fácil tomar conhecimento dos delitos quando estes ocorrem próximos a um centro

regulador. O número de homens é infinitamente maior que o de mulheres. Os livres são os

responsáveis pelo maior número de crimes, seguido pelos escravos e forros, sendo que os

crimes cometidos pelos escravos, na sua maioria, são violentos. Os mestiços, segundo os

135

dados, cometeram mais crimes que os brancos. Para esta estatística vale lembrar o número

total da população de brancos e mestiços na cidade de Mariana, e que quase 50% dos autos

não identificaram a cor do preso. Foi possível notar ainda que apenas 13% da população

carcerária ficou presa por um período maior que um ano.

Os relatos contidos nos processos-crime permitiram verificar a ação da Justiça e a

diversidade de alguns casos dentro de uma quantificação. A relação da população com as

autoridades era conturbada. Nem todas as pessoas reconheciam a autoridade dada a certos

indivíduos da população. E esta falta de reconhecimento recaía nas atitudes cotidianas deste

povo. Por outro lado, vimos oficiais tentando cumprir suas obrigações e arriscando suas vidas

em empreitadas perigosas, como tocaias, por exemplo.

As Ordenações Filipinas regiam a ação da sociedade e da Justiça. Como vimos este

era um código que privilegiava as figuras mais importantes da sociedade em detrimento aos

homens livres pobres da população. Contudo a Coroa nunca perdia, e qualquer atitude que a

prejudicasse seria punida exemplarmente com a �morte natural�. A Justiça não era cega no

período. Sua ineficiência devia-se ao número reduzido de oficiais, de cadeias e de recursos

financeiros.

Enfim, este foi o quadro pintado ao longo da pesquisa. O cruzamento de fontes foi

essencial para atingirmos esse resultado. Inúmeros trabalhos serão realizados nesta área e

existe um número de fontes muito grande para tal. A análise e a utilização de outras fontes

devem ser feitas para conhecermos ainda mais o universo dos encarcerados e da sociedade ao

seu redor.

136

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Códice 167 � Autos de prisão hábito e tonsura

Códice 355 � Alvarás de soltura

Códice 584 � Alvarás de soltura

Arquivo Histórico da Casa Setecentista

Processos-crime 2° ofício (1714-1899)

Códice 221 � n° do auto: 5502

Códice 214 � n° do auto: 5336

Códice 193 � n° do auto: 4828

Códice 190 � n° do auto: 4771

Códice 211 � n° do auto: 5261

Códice 230 � n° do auto: 5729

Códice 201 � n° do auto: 5027

Códice 214 � n° do auto: 5349

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