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Criação / Artes Visuais

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UANDO ALBERTO DA VEIGA GUIGNARD chegou a Minas Gerais, em fins de1943, a convite do então prefeito Juscelino Kubitschek, trouxe consigouma bagagem artística já consolidada pela crítica. Desde essa época, era

respeitado como grande artista e reconhecido internacionalmente. Na década de40 passou três anos em Itatiaia, estado do Rio, e foi ali que recebeu a notícia deque sua Noite de São João acabara de ser adquirida pelo Museu de Arte Modernade New York.

Guignard sempre se deu bem nas montanhas. Em carta a Portinari, dizia:“Sabes que sou montanhês e por isso, forte de saúde”. Deslocando-se para BeloHorizonte, descobriu a luminosidade dos céus de Minas. As montanhas lhe ofe-reciam cenário para paisagens líricas, transparentes, igrejas surgindo da bruma,balões coloridos subindo aos céus.

Naquela época, a arte em Minas Gerais ainda estava ligada a um academismoformal. A presença de Guignard em Belo Horizonte trouxe uma completa reno-vação para o meio artístico. Juscelino Kubitschek abria novas direções para aarquitetura, criando o conjunto da Pampulha, convidando o maestro Bosmanspara dirigir a orquestra sinfônica e Guignard para tomar sob sua direção a Escolade Belas Artes.

Um grupo de jovens se reuniu em torno desse artista vindo do Rio deJaneiro, amigo de Portinari, Di Cavalcanti e Santa Rosa.O Parque Municipalservia de inspiração para o mestre e seus discípulos. Exuberante, cheio de entusi-asmo, conduzia seus alunos a longas caminhadas pelas alamedas do parque. An-tes de começar o desenho, eles teriam de aprender a ver, a sentir a natureza emseu silêncio. A atenção consciente no agora, a observação da realidade exteriorcom a interioridade de cada um, possibilitava o despertar da liberdade criadora.

A carreira de Guignard como mestre teve início na Fundação Osório, noRio de Janeiro. Desde essa época, ele estimulava o crescimento interno do aluno.

Guignard não perdeu a inocência das crianças. Durante toda sua vida man-teve a espontaneidade criadora e pintou naturalmente, como cantam os pássaros.A espontaneidade, a alegria, o entusiasmo pela vida, o prazer de descobrir coresnovas nos céus e nas montanhas, nos reflexos das águas, nos cortes das árvores,nas manchas dos muros velhos, eram qualidades inerentes à sua personalidade.

Guignard estendia esse entusiasmo aos seus alunos. A natureza era seuponto de referência. “Olhe, o colorido dos céus de Minas Gerais tem um brilhodiferente, repare as árvores, as folhagens, as raízes...”.

Guignard, o mestreMARIA HELENA ANDRÉS

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Sua disciplina não se fundamentava em conceitos teóricos, mas na experi-ência: era observação, concentração e integração total da pessoa com a paisagem.O aluno, desprovido de recursos fáceis, submetido ao lápis duro, sem borracha,acabava afinando-se com a beleza de um olho humano e tinha uma semana paraterminar o desenho de um rosto. O prazer não estava em terminar rápido, masna própria concentração exigida pelo trabalho, no próprio ato de fazer, pacientee silencioso, no uso das mãos, no artesanato metódico e limpo. O desenvolvi-mento da percepção era também um dos caminhos para o autoconhecimento ea auto-expressão. Criatividade e disciplina, liberdade e concentração, esponta-neidade e reflexão fundiam-se dentro do mesmo estímulo.

A personalidade de Guignard como mestre delineia-se com maior nitidezmediante o confronto de seu método revolucionário de ensino, baseado no apoioà iniciativa pessoal, com o ensino nas escolas de arte de orientação acadêmica. Asescolas acadêmicas prevaleciam nos grandes centros brasileiros quando Guignardchegou a Minas. Aos conhecimentos adquiridos na Europa, ele aliava seu grandepoder intuitivo para desvendar o caminho ainda obscuro do ensino moderno, noqual técnica e capacidade criadora se desenvolvem de maneira conjugada, o lápisnão reproduz a fria documentação de um objeto, mas transmite toda a forçaemocional de um momento de criação.

Nessa orientação artística, o aluno não visa apenas o recebimento de umsimples diploma ao final de um currículo, mas a vivência de uma formação esté-tica que não termina no período de aprendizagem, mas prolonga-se por toda avida. De acordo com essa visão, a arte constitui uma riqueza insubstituível, por-que se apóia numa estrutura viva e espiritual e não apenas no interesse imediato.Procura a integração do homem ao universo, através do desenvolvimento desuas aptidões individuais.

Mais do que ninguém, Guignard conseguia vislumbrar a coisa nova, a in-dividualidade que se revela na variedade de temperamentos humanos, agora es-tudados com grande interesse à luz da psicologia moderna. Observações feitas àmargem de um catálogo, referindo-se às tendências de cada aluno em particular,revelam esse senso profundo para descobrir vocações e conhecer temperamen-tos. Uma concepção ampla da realidade humana o levava a valorizar tanto oaluno que desenhava realisticamente um retrato a lápis duro, quanto aquele quese afastava por completo do modelo, para imprimir na tela imagens subjetivas.Ao se dirigir ao aluno, seus olhos enxergavam através da insegurança, conse-guiam vislumbrar o traço feliz, a mancha de cor e todas as possibilidades que seescondem atrás de um tímido desenho.

Guignard era simples e possuia a humildade daqueles que são realmentegrandes. Não via no aluno um futuro concorrente, mas um companheiro de arteque despertava diante de seus olhos. Muitas vezes, ao criticar um trabalho, seuentusiasmo chegava a ser comovente: “Você desenha melhor do que eu”, escu-tei-o dizer a um colega, “mas deixa estar que ainda chegarei lá”. Ao corrigir otrabalho de um aluno ele muitas vezes se entusiasmava e o assinava.

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Em 1447, Guignard me presenteou com um quadro, representando umcaminho no Parque Municipal de Belo Horizonte. Esse quadro sugeriu o títulopara o meu livro Os caminhos da arte. Mais tarde, depois de sua morte, descobridebaixo de um de meus desenhos uma pequena aquarela de Guignard represen-tando os céus de Minas. Foi exatamente na época em que iniciei a minha fase denaves espaciais.

Trabalhando junto com seus alunos, Guignard reviveu de maneira quaseúnica o antigo mestre, figura desaparecida nos tempos modernos. Atualmente, oensino se distribui em diversas cátedras, com horários marcados e contato redu-zido do professor com os alunos. Anteriormente às academias de Belas Artes, omestre – fosse ele filósofo ou artesão – trabalhava lado a lado com seus aprendi-zes e a eles se misturava, sem preocupação de superioridade, desejando apenastransmitir experiências. Assim foi Guignard, o mestre moderno, que ensinavauma arte de vanguarda, não ditava leis, mas fazia o aluno descobrir o equilíbrio ea proporção no próprio trabalho, sem demonstrações dogmáticas.

Mestre autêntico, não julgava segundo suas inclinações e preferências, masdesinteressadamente, compreendia o aluno e o conduzia. Ele não trazia valoresfixos a decretar – despertava valores novos no contato de sua presença, de seuestímulo.

A influência de Guignard sobre seus alunos não pode ser medida pela me-lhor maneira de copiar o mestre em suas telas, mas na maneira de segui-lo em seuentusiasmo pela arte, seu amor pela natureza e pelas crianças, seu lirismo perantea vida, seu desprendimento pelo dinheiro, seu estímulo à pesquisa e à iniciativaindividual. Juntamente com o aprendizado técnico, Guignard procurava formarno aluno toda uma filosofia de vida.

Sua disciplina não se fundamentava em conceitos teóricos , mas na experi-ência. Guignard era curioso, gostava de observar cenas de rua e registrá-las empequenos croquis. Escondia-se atrás das árvores para não ser visto. Um dia, en-contrei-o numa avenida central de Belo Horizonte, captando as cenas dolorosasde um enterro. Tentava passar despercebido, mas as crianças, sentadas no meio-fio repetiam em coro:

– Ei, Guignard!

Guignard tentava impedir a imprudência das crianças, mas elas continua-vam a importunar o mestre, gritando mais alto ainda:

– Olha o Guignard desenhando!

Os pequenos croquis que fazia nas ruas, serviam de motivação para futu-ros quadros. Recomendava registrar os acontecimentos do cotidiano, captar omomento presente em sua intensidade emocional, para depois recriá-los no pa-pel ou na tela:

– ”Façam croquis do natural, estejam atentos ao movimento das ruas, aos

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mercados, às feiras, às festas de S. João, aos casamentos, aos enterros... O croquisé necessário, ele é a base de tudo!”

Guignard detestava o academismo gerador de formas estereotipadas. Oimportante era o nascimento do novo. O que realmente pertencia à essência doaluno. Disciplina e liberdade se conjugavam para a formação dos alunos, nãosomente no nível estético, mas também no plano do desenvolvimento humano.

Maria Helena Andrés é artista plástica, escritora e ex-aluna de Guignard. Reside emBelo Horizonte.

Parte deste texto foi extraída do livro da autora Os caminhos da arte, publicado pelaEditora Vozes, Petrópolis, 1977.

Foram alunos de Guignard, em Minas Gerais, entre outros, os seguintes artistas plásticos:Aparecida Carvalho Barbosa, Bax, Chanina Sznbejn, Heitor Coutinho, Amilcar de Cas-tro, Holmes Neves, Laetitia Renault, Álvaro Apocalypse, Jarbas Juarez, Wilde Lacerda,Aneto, Vilma Rabelo, Ione Fonseca, Santa, Sara Ávila, Leda Gontijo, Haroldo Matos,Wilma Martins, Maria Helena Andrés, Lizete Meinberg, Eduardo de Paula, Ruth MichelPerrela, Yara Tupinambá, Solange Botelho, Jeferson Lodi, Amarylles Coelho Teixeira,Marília Giannetti Torres, Mário Silésio, Estevão José de Souza, Mary Vieira, GavinoMudado Filho, Nina Xavier, Melo Alvarenga, Augusto Degois, Washington Filho e CéliaLaborne Tavares.

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LEGENDAS:

1 Guignard em seu atelier – anos 50.

2 Auto-retrato, óleo s/tela, 1952. Acervo do Museu da Pampulha de Belo Horizonte.

3 Vaso com flores, óleo s/papelão, 1933. Coleção Mário de Andrade do Instituto deEstudos Brasileiros.

4 Família do fuzleiro naval, óleo s/madeira. Coleção Mário de Andrade do Instituto deEstudos Brasileiros

5 Cabeça de velho, lápis e pastel s/papel, 1929. Coleção Mário de Andrade do Institutode Estudos Brasileiros.

6 S/título, Aquarela s/papel, 1947. Coleção Maria Helena Andrés.

7 Três mulheres, nanquim preto e vermelho s/papel, 1930. Coleção Mário de Andradedo Instituto de Estudos Brasileiros.

8 Guignard e seus alunos no Parque Municipal de Belo Horizonte – anos 40.