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Crianças vitimizadas: relato de experiência de intervenção Maria Paula Panúncio-Pinto Bruna Maria Coelho Freitas Resumo A violência doméstica contra a criança apresenta raízes históricas, possui caráter cíclico, com a repetição de um padrão de relacionamento interpessoal violento, e podemos compreendê-la como relação interpessoal de poder, assimétrica, hierárquica, com fins de dominação, exploração e opressão. No Brasil, a Lei Federal 8069/90 prevê o abrigamento como medida de proteção para crianças em situação de risco social ou pessoal. Experiências adversas vividas na infância podem gerar conseqüências para o desenvolvimento desses sujeitos, sendo a violência doméstica uma importante questão de saúde pública no mundo. Intervir junto á criança vitimizada para protegê-la e resgatar sua saúde constitui-se como grande desafio ás políticas públicas no Brasil. O presente estudo realizou-se a partir de abordagem documental, descritivo-exploratória, de relatos de atendimentos de terapia ocupacional junto a crianças (2-4 anos) abrigadas em instituição para vítimas de violência doméstica. A rotina empobrecida e baixa inserção em atividades, dentro e fora do abrigo; os déficits em habilidades cognitivas e psicossociais, além de alterações no brincar e em atividades de vida diária nortearam os objetivos de favorecer a vivência de alternativas de relacionamentos pessoais e formação de vínculos; favorecer o exercício de atividades próprias á faixa etária visando o desenvolvimento de habilidades e do senso de auto- eficácia. Para tanto, foram propostas atividades lúdicas e expressivas, utilizando estratégias que privilegiaram a mediação de conflitos, a valorização do diálogo e do respeito, o estímulo à comunicação e ao fazer. Ao final das 14 semanas de intervenção foi possível observar uma positiva formação de vínculo entre crianças e estagiárias, uma adesão crescente às propostas de atividade, aumento da autoestima, redução das interações agressivas e melhor expressão e comunicação entre as crianças. Palavras-chave: crianças vitimizadas; intervenção terapêutica ocupacional; desenvolvimento infantil. Abstract Domestic violence against children has historical roots, with the repetition of a pattern of interpersonal violence, and we understand it as an interpersonal relationship of power, with the purpose of domination and oppression. In Brazil, the Federal Law 8069/90 provides the shelter as a measure of protection for children at social or personal risk situation. Adverse experiences lived in childhood can lead to consequences for the development of these subject, and domestic violence has been recently assumed as a major public health issue worldwide. Intervene near the victimized children to protect them and rescue their health is as challenge to public policies in Brazil. This study was carried out from documental, descriptive and exploratory approach, from reports of occupational therapy

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Crianças vitimizadas

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Crianças vitimizadas: relato de experiência de intervenção

Maria Paula Panúncio-Pinto Bruna Maria Coelho Freitas

Resumo

A violência doméstica contra a criança apresenta raízes históricas, possui caráter cíclico, com a repetição de um padrão de relacionamento interpessoal violento, e podemos compreendê-la como relação interpessoal de poder, assimétrica, hierárquica, com fins de dominação, exploração e opressão. No Brasil, a Lei Federal 8069/90 prevê o abrigamento como medida de proteção para crianças em situação de risco social ou pessoal. Experiências adversas vividas na infância podem gerar conseqüências para o desenvolvimento desses sujeitos, sendo a violência doméstica uma importante questão de saúde pública no mundo. Intervir junto á criança vitimizada para protegê-la e resgatar sua saúde constitui-se como grande desafio ás políticas públicas no Brasil. O presente estudo realizou-se a partir de abordagem documental, descritivo-exploratória, de relatos de atendimentos de terapia ocupacional junto a crianças (2-4 anos) abrigadas em instituição para vítimas de violência doméstica. A rotina empobrecida e baixa inserção em atividades, dentro e fora do abrigo; os déficits em habilidades cognitivas e psicossociais, além de alterações no brincar e em atividades de vida diária nortearam os objetivos de favorecer a vivência de alternativas de relacionamentos pessoais e formação de vínculos; favorecer o exercício de atividades próprias á faixa etária visando o desenvolvimento de habilidades e do senso de auto-eficácia. Para tanto, foram propostas atividades lúdicas e expressivas, utilizando estratégias que privilegiaram a mediação de conflitos, a valorização do diálogo e do respeito, o estímulo à comunicação e ao fazer. Ao final das 14 semanas de intervenção foi possível observar uma positiva formação de vínculo entre crianças e estagiárias, uma adesão crescente às propostas de atividade, aumento da autoestima, redução das interações agressivas e melhor expressão e comunicação entre as crianças.

Palavras-chave: crianças vitimizadas; intervenção terapêutica ocupacional; desenvolvimento infantil. Abstract

Domestic violence against children has historical roots, with the repetition of a pattern of interpersonal violence, and we understand it as an interpersonal relationship of power, with the purpose of domination and oppression. In Brazil, the Federal Law 8069/90 provides the shelter as a measure of protection for children at social or personal risk situation. Adverse experiences lived in childhood can lead to consequences for the development of these subject, and domestic violence has been recently assumed as a major public health issue worldwide. Intervene near the victimized children to protect them and rescue their health is as challenge to public policies in Brazil. This study was carried out from documental, descriptive and exploratory approach, from reports of occupational therapy

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attendances with children (2-4 years) living in an institution for victims of domestic violence. The impoverished routine and low participation in activities within and outside the shelter, the deficits in cognitive and psychosocial skills, and changes in play and daily activities guided the goals of promoting alternative experiences of personal relationships and forming bonds ; encourage the exercise of their own age activities for the development of skills and sense of self-efficacy. Thus, we proposed recreational and expressive activities, using strategies that gave priority to conflict mediation, promotion of dialogue and respect, encouraging communication and attitudes to “make it for yourself”. At the end of 14 weeks of intervention was possible to observe a positive bonding between children and trainees, increasing adherence to the proposed activity, increased self-esteem, reduction in aggressive interactions and better expression and communication among children. Keywords: victimized children, occupational therapy intervention, child development. Introdução

A Violência Interpessoal Doméstica (VIPD) é um tipo de violência que ocorre no lar e é praticada por pais contra os filhos, por filhos contra pais idosos ou doentes, por homens contra mulheres, por cuidadores, parentes ou não, de pessoas com deficiências ou idosos Essas quatro formas de violência interpessoal devem ser pensadas como fenômeno único, que se manifesta em contextos diversos e nos chama a atenção para o fato de que a violência sempre se constitui a partir de relações de poder: crianças, mulheres, idosos e portadores de deficiência são sujeitos que se tornam mais vulneráveis à violência em função de possuir menos poder dentro das relações sociais (PANÙNCIO-PINTO, 2006). Nesse contexto, o poder é um conceito que nasce e se constrói através de relações de gênero, raça, idade e classe social. Relações de poder se dão em cadeia e se caracterizam pela conversão de diferentes em desiguais (AZEVEDO; GUERRA,1998).

Especificamente no que tange à violência entre pais e filhos, podemos compreendê-la como relação interpessoal de poder, assimétrica, hierárquica, com fins de dominação, exploração e opressão e defini-la como:

Todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis contra crianças e/ou adolescentes que, sendo capaz de causar dano físico, sexual ou psicológico á vítima, implica de um lado uma transgressão do poder/dever de proteção do adulto e, de outro, uma coisificação da infância, isto é, uma negação do direito que crianças e adolescentes têm de serem tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento (AZEVEDO;GUERRA, 1995, P.78).

Azevedo e Guerra (1989, 1993, 1995, 2000, 2001) nos chamam atenção para a complexidade e multicausalidade do fenômeno, destacando que ele se constitui como fenômeno universal, não sendo privilégio dos países subdesenvolvidos, ocorre em todas as sociedades. Além disso, destacam que a violência doméstica não está ligada apenas às condições sócio-econômicas ocorrendo em todas as classes sociais indistintamente. Outra marca importante da violência doméstica que atinge crianças e adolescentes, é o seu

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caráter cíclico (crianças que sofreram violência no lar, tendem a repetir o padrão de relacionamento violento com seus filhos, no futuro).

O relacionamento adulto-criança está cercado por complexas questões que envolvem, sobretudo, a assimetria presente na relação de dependência estrita do cuidado, que coloca o adulto numa posição de poder em relação à criança, gerando consequências para as práticas de criação de filhos. Assim, a violência doméstica emerge como importante fator de risco ao desenvolvimento infantil saudável (PANÚNCIO-PINTO, 2006).

A violência praticada contra os filhos pelos pais é extremamente comum, assumindo

cifras assustadoras nos países que já se organizaram para o recebimento das denúncias e atendimento dessas situações (MINAYO;SOUZA,1998; MOUDEN; BROSS, 1995; JESSE, 1998).

A doutrina da proteção integral

No Brasil, desde a promulgação da Lei Federal 8069/90 – o Estatuto da Criança e do

Adolescente - ECA (BRASIL, 1990) muito se tem discutido sobre a proteção especial e os direitos de crianças e adolescentes em situação de risco. Além dos riscos que se enquadram na categoria de "sociais", na verdade somando-se a eles, estão os riscos pessoais e a violência doméstica se enquadra aqui, como categoria diferenciada.

De acordo com o artigo 227 da Constituição Federal (BRASIL, 1988) quem se cala diante do sofrimento de uma criança está descumprindo a lei, pois:

É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes á vida, á saúde, á educação, ao esporte, ao lazer, á profissionalização, á cultura, á dignidade, ao respeito, á liberdade e á convivência familiar e comunitária.

De acordo com a legislação em vigor no Brasil, uma das medidas cabíveis em casos notificados de violência doméstica é o abrigamento provisório em instituição de proteção, o que implica na retirada da criança de casa e muitas vezes na perda do pátrio poder por seus pais/responsáveis. Nesse país, a violência doméstica praticada contra crianças e adolescentes, engloba violência física, sexual, psicológica e negligência/abandono, formas de abuso que são em sua maioria, praticados no interior das famílias (BRASIL, 2002).

A partir do ECA, ocorreu uma importante mudança de paradigma: as crianças e os adolescentes passaram de objetos de tutela a sujeitos de direitos. Para que os dispositivos dessa legislação federal sejam cumpridos é necessário que tanto os responsáveis por sua aplicação quanto os executores, tenham amplo conhecimento do aparato legal, mas também partilhem seus objetivos, contribuindo para que efetivamente as crianças e adolescentes possam exercer plenamente seus direitos (SILVA, 2004).

Entre os direitos previstos pelo ECA (1990), destaca-se o direito à convivência familiar e comunitária, que prevê o fim do isolamento, o qual era uma característica da institucionalização em décadas anteriores (RIZZINI; RIZZINI, 2004; SILVA, 2004). O ECA também preconiza a desinstitucionalização no atendimento de crianças e adolescentes em situação de abandono e valoriza o papel da família, as ações locais e as parcerias no

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desenvolvimento de atividades de atenção, trazendo mudanças no panorama do funcionamento das instituições de abrigo. Assim, as instituições de abrigo devem estar configuradas em unidades pequenas, com poucos integrantes, manter um atendimento personalizado, estimular a participação em atividades comunitárias e preservar o grupo de irmãos, entre outros pontos. A implantação do ECA contribuiu para mudanças efetivas no que tange às instituições de assistência e à sua configuração como um todo, partindo não de uma visão puramente assistencialista, mas concebendo-as como espaço de socialização e de desenvolvimento (SIQUEIRA et al., 2006).

Desde a consagração da doutrina da proteção integral a crianças e adolescentes no país, com a Constituição de 1988 e o ECA, vem-se exigindo das instituições que prestam serviços de atendimento a esse segmento da população brasileira a revisão e a mudança de suas práticas visando a mudança de paradigma, do assistencialismo histórico para modelos que contemplem ações emancipatórias, baseados na visão de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e pessoas em situação peculiar de desenvolvimento (SILVA; AQUINO, 2005). Contudo, a transformação de práticas cristalizadas por séculos de repetição não ocorrem como passe de mágica, e muitas vezes, na prática sérios problemas são enfrentados para garantir que as instituições de abrigo ofereçam o atendimento preconizado em lei. A institucionalização na infância

A problemática da institucionalização na infância e na adolescência está presente na

realidade de muitas famílias brasileiras, que vivem em condições socioeconômicas desfavorecidas (SIQUEIRA et al., 2006).

O Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes encontrou cerca de 20 mil crianças e adolescentes vivendo em 589 abrigos pesquisados no Brasil, sendo na sua maioria meninos entre as idades de 7 e 15 anos, negros e pobres. Os dados mostraram ainda que 87% das crianças e adolescentes abrigados têm família, sendo que 58% mantêm vínculo com seus familiares. No entanto, foi também constatado que o tempo de duração da institucionalização pode variar até um período de mais de 10 anos (SILVA, 2004). Os efeitos de um período de institucionalização prolongado têm sido apontados na literatura, por interferirem na sociabilidade e na manutenção de vínculos afetivos na vida adulta (SIQUEIRA et al., 2006).

O ambiente institucional, por muitas vezes ofertar um atendimento padronizado, possuir um alto índice de criança por cuidador, apresentar falta de atividades planejadas e fragilidade das redes de apoio social e afetivo, pode não ser o melhor ambiente para o desenvolvimento saudável das crianças e adolescentes (CARVALHO, 2002). Por outro lado, existem as oportunidades que podem ser oferecidas pelo atendimento em uma instituição, pois em casos de situações de grave violação de direitos na família, a instituição pode se configurar como a única medida de proteção possível (DELL’AGLIO, 2000). Violência doméstica e saúde

A recente compreensão de que a exposição a qualquer situação de violência oferece

riscos para a saúde global dos indivíduos e grupos, fez com que a violência fosse reconhecida como questão de saúde pública pela Organização Mundial de Saúde (KRUG et al, 2002). A literatura relata de forma extensa as conseqüência negativas de sofrer violência para o desenvolvimento e a saúde das crianças vitimizadas.

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Algumas conseqüências psicológicas da vitimização infantil relatadas na literatura são diminuição da auto-confiança e da confiança em outras pessoas; a construção de um auto conceito negativo e uma visão de mundo negativa. Estudos também apontam consequências psicológicas como raiva e medo do agressor, dificuldades escolares, autoritarismo e delinquência (GUERRA,1998, ALVES, 2007). As consequências imediatas e a longo prazo das várias formas de vitimização infantil podem incluir desajuste psico-social, prejuízo do desenvolvimento emocional, dificuldades de relacionamento e a possibilidade de que a violência repita novamente seu ciclo quando a criança agredida cresce e estabelece relações de violência com filhos, parceiros e subalternos (ALVES, 2007).

São muitos os estudos que relatam os efeitos da violência doméstica sobre a saúde a qualidade de vida das crianças que são vítimas ou testemunhas de situações desse tipo, sendo que estudos referem sintomas orgânicos e mentais, que podem emergir em qualquer período do curso de vida, e são relacionados a experiências ligadas à violência doméstica. Igualmente, são encontradas referências que discutem o impacto negativo de testemunhar e/ou sofrer violência sobre a saúde e apontam tanto os efeitos imediatos ou de curto prazo sobre a saúde mental de crianças e adolescentes, quanto os efeitos que podem ser identificados em adultos que foram vítimas de violência doméstica em sua infância.

Panúncio-Pinto (2006) cita inúmeros estudos que estabelecem tais relações: a experiência de abuso aparece associada a alterações negativas na qualidade de relacionamento com pares, no funcionamento social, na percepção de suporte social e apego (LEVENDOSKY, HUTH-BOCKS;SEMEL, 2002)1; determinante no aparecimento de comportamento violento/agressivo/delinquente de crianças e adolescentes na escola (HORTON, 20012; JONSON-REID ,19983) e em outras situações envolvendo convivência social (FLYNN; 1999)4; aumento da disposição para comportamento agressivo, presença de problemas emocionais (depressão, ansiedade), baixa competência social e funcionamento acadêmico pobre (FANTUZZO;MOHR, 1999)5; fuga do lar e envolvimento em situações de conflito com a lei - destruição de propriedade e roubo (YEO, 1998)6 e alteração no desempenho escolar (SULLIVAN; KNUTSON, 2000); atos socialmente desaprovados e fisicamente destrutivos (GALLO,1998)7; presença de sintomas como depressão, sintomas traumáticos, comportamento antissocial e comportamento suicida em mulheres adultas

1 LEVENDOSKY, Alytia A.; HUTH-BOCKS, Alissa & SEMEL, Michael A. Adolescent peer relationships and mental health

functioning in families with domestic violence. Journal of Clinical Child and Adolescent Psychology. Vol. 31(2): 206-218, 2002. 2 HORTON, Arthur. The prevention of school violence: New evidence to consider. Journal of Human Behavior in

the Social Environment. Vol. 4(1): 49-59, 2001. 3 JONSON-REID, Melissa. Youth violence and exposure to violence in childhood: An ecological review. Aggression

and Violent Behavior. Vol. 3(2): 159-179, 1998. 4 FLYNN, Clifton P. Exploring the link between corporal punishment and children's cruelty to animals. Journal of

Marriage and the Family.Vol. 61(4): 971-981, 1999. 5 FANTUZZO, John W MOHR, Wanda K. The neglected variable of physiology in domestic violence. Journal of

Aggression, Maltreatment and Trauma. Vol. 3(1): 69-84, 2000. 6 YEO, Soo-See. Legislated residential treatment of emotionally disturbed chronic runaways: a contentious

approach. Child Abuse Review. Vol. 7(4): 230-240, 1998. 7 GALLO, Donald Philip. The differential effects of domestic violence and child abuse upon responses to the

Roberts Apperception Test for Children. Dissertation Abstracts International: Section B-The Sciences and Engineering. Vol. 58(10-B): 5642, 1998.

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com história de violência familiar (MAKER, KEMMELMEIER; PETERSON, 19988; ROBERTS et al, 19989); a identificação da violência doméstica como evento negativo ou potencialmente estressante também apareceu em alguns estudos (KUBANY et al. , 200010); relacionado ao risco para tentativa de suicídio (DUBE et al, 2001)11; ao envolvimento de mulheres entre 22 e 28 anos em crimes (KATZ, 2000)12; ao envolvimento de mulheres com severos problemas de saúde mental na vitimização de seus filhos (STANLEY & PENHALE, 1999)13.

Como é possível compreender, crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica podem ter seu desenvolvimento e saúde afetados pelos eventos de vida ligados a essa situação. Além disso, pensando que a própria medida de proteção para as vítimas, pode leva-las a viver anos em uma instituição, é muito importante considerar essa complexidade e discutir possibilidades de intervir junto as vítimas. Objetivos

Descrever a experiência de intervenção terapêutica ocupacional com crianças

abrigadas em instituição para vítimas de violência doméstica num município do interior do estado de São Paulo – Brasil. Materiais e Método

Em abordagem descritivo-exploratória, foi realizado estudo documental de relatos de

14 sessões grupais de atendimento terapêutico ocupacional, realizadas com crianças (2 a 4 anos), de ambos os sexos, ao longo de 3 meses do estágio profissional de Terapia Ocupacional na Área da Infância e Adolescência, em abrigo para crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica.

A leitura dos relatórios privilegiou a descrição das demandas encontradas (diagnóstico das principais situações alvo para a intervenção); os objetivos definidos para a intervenção; as atividades e estratégias utilizadas e os resultados observados. 8 MAKER, Azmaira Hamid; KEMMELMEIER, Markus & PETERSON, Christopher.Long-term psychological consequences

in women of witnessing parental physical conflict and experiencing abuse in childhood. Journal of Interpersonal Violence. Vol. 13(5): 574-589, 1998. 9 ROBERTS, Gwenneth L.; WILLIAMS, Gail M.; LAWRENCE, Joan M. & RAPHAEL, Beverley. How does domestic violence

affect women's mental health? Women and Health. Vol. 28(1): 117-129, 1998. 10

KUBANY, Edward S.; LEISEN, Mary Beth; KAPLAN, Aaron S; WATSON, Susan B.; HAYNES, Stephen N.; OWENS, Julie A . & BURNS, Katie. Development and preliminary validation of a brief broad-spectrum measure of trauma exposure: The Traumatic Life Events Questionnaire. Psychological Assessment. Vol. 12(2): 210-224, 2000. 11

DUBE, Shanta R.; ANDA, Robert F.; FELITTI, Vincent J.; CHAPMAN, DANIEL P.; WILLIAMSON, David F. & GILES, Wayne H. Childhood abuse, household dysfunction, and the risk of attempted suicide throughout the life span: Findings from the adverse childhood experiences study. Journal of the American Medical Association. Vol. 286(24): 3089-3096, 2001. 12

KATZ, Rebecca S. Explaining girls' and women's crime and desistance in the context of their victimization experiences: A developmental test of revised strain theory and the life course perspective. Violence Against Women. Vol. 6(6): 633-660, 2000. 13

STANLEY, Nicky & PENHALE, Bridget. The mental health problems of mothers experiencing the child protection system: Identifying needs and appropriate responses. Child Abuse Review. Vol.8(1): 34-45, 1999.

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Universo de Pesquisa O presente trabalho foi realizado em abrigo municipal, que é caracterizado pelo

atendimento à crianças e adolescentes de 02 a 17 anos de ambos os sexos que tiveram seus direitos violados e lhes foi aplicada medida de proteção de acolhimento institucional (regime de abrigo com funcionamento de 24 horas). Tal abrigo objetiva oferecer atendimento global às necessidades desses sujeitos, preservando a sua identidade e história de vida, através de atendimento por equipe interdisciplinar, composta por técnicos de serviço social, psicologia, terapia ocupacional, pedagogia, educadores e equipe de apoio. Atualmente dispõe de 30 vagas/dia, divididas em três casas, e tem por meta a reinserção de 70% dos abrigados em suas famílias de origem. Terapia Ocupacional

A terapia ocupacional consiste em intervenção que visa favorecer o engajamento do

sujeito em ocupações que permitam a participação ativa na vida. Nesse sentido, o terapeuta ocupacional é um profissional que atua nas áreas da saúde, da educação e no campo social para apoiar e promover o desempenho em atividades cotidianas; atuar em fatores que influenciam o desempenho dessas atividades (AOTA, 2002, 2008).

Na perspectiva da terapia ocupacional, a participação em contextos de vida se dá através de áreas de ocupação (atividades de vida diária, atividades instrumentais de vida diária, brincar, educação, trabalho, lazer, participação social e sono e descanso) e envolve habilidades e padrões de desempenho (AOTA, 2008).

Toda a estruturação da intervenção no contexto do abrigo parte desses princípios e dessa compreensão. Resultados e discussão

A longo do período estudado foram atendidas 11 crianças, sendo sete meninos e 4 meninas, os quais participaram de todos os atendimentos grupais ofertados (uma vez por semana, ao longo de 14 semanas).

Em relação à realidade encontrada, foi possível observar uma rotina empobrecida, com baixa inserção em atividades, dentro e fora do abrigo. No que tange ao desenvolvimento das crianças os principais déficits referiam-se às habilidades cognitivas e psicossociais, sendo possível observar um brincar empobrecido, permeado por interação social pobre, agressividade e déficit importante nas habilidades sociais.

Tais observações acerca do comportamento e do desenvolvimento das crianças são corroboradas pela literatura: crianças abrigadas costumam apresentar maior déficit intelectual, especialmente no desenvolvimento da linguagem, tendem a ser mais distraídas e agressivas, apresentando dificuldades emocionais, de comportamento e incapacidade de formar laços afetivos duráveis (SIQUEIRA & DELL´AGLIO, 2006).

Alguns comportamentos, contudo, fazem parte do período de desenvolvimento: agressões são constantes durante o período pré-escolar, crianças costumam demonstrar sua raiva e frustração por meio de agressões físicas às outras crianças (2 a 3 anos) e através de deboches ou uso de palavrões ( 4 a 5 anos). A competição também é constante e surge com o objetivo de se desenvolver a hierarquia e dominação, já o caráter de popularidade e

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interações sociais positivas com outras crianças se manifestam apenas mais tardiamente durante esta fase, sendo essas características mais encontradas em crianças mais socialmente competentes, positivas e prestativas (BEE, 1997).

Diante da situação encontrada, os objetivos terapêuticos principais centraram-se no favorecimento de vivência de alternativas de relacionamentos pessoais e formação de vínculos (área de ocupação: participação social); além de propiciar o exercício e a experimentação de atividades próprias á faixa etária visando o desenvolvimento de habilidades (cognitivas, psicossociais, motoras) e do senso de auto-eficácia. Para tanto, foram propostas atividades lúdicas e expressivas, utilizando estratégias que privilegiaram a mediação de conflitos, a valorização do diálogo e do respeito, o estímulo à comunicação e ao fazer.

Embora o brincar seja a principal atividade de crianças na faixa etária em questão, a necessidade de estimular habilidades cognitivas (atenção, concentração, criatividade, memória, seqüenciamento, compreensão e respeito a regras), psicossociais (interesses, habilidades, valores, autoestima) e motoras (destreza, integração viso-motora, coordenação motora global e marcha) levaram à estratégia de integrar brincadeiras, contação de historias e atividades de faz de conta à atividades estruturadas de confecção de brinquedos e adereços. As atividades propostas foram: brincadeiras com a bola; confecção de malabares individuais (com jornal, barbante e papel crepom); confecção de máscaras de “coelhinho da páscoa”( utilizando molde de cartolina, algodão, glitter e lápis de cor); confecção de bonecos de jornal; confecção de brinquedo em duplas “vai-e-vem” (com material reciclável); confecção de brinquedo individual: bilboquê (com material reciclável).

Ao longo do desenvolvimento da intervenção foi possível identificar resultados positivos que se traduzem por: positiva formação de vínculo entre crianças e estagiárias; envolvimento crescente nas atividades propostas; elevação da autoestima (“não sei fazer” substituído por “deixa eu fazer”); aumento do nível de atenção e concentração com estímulos verbais; aumento do repertório para solução de problemas; redução das interações agressivas; melhor expressão e comunicação entre as crianças.

Embora a intervenção tenha se estruturado em grupo, as estagiárias foram orientadas a manter atenção individualizada em cada criança, oferecendo um modelo alternativo de relacionamento privilegiando a comunicação verbal com cortesia, afeto, paciência. O foco na interação e no relacionamento interpessoal levou as crianças a experimentarem uma nova forma de estar na instituição. Além disso, as experiências ligadas ao fazer – atividades estruturadas, com produto final interessante para as crianças – favoreceram o desenvolvimento de habilidades e o senso de auto-eficácia, colocando as crianças na posição de sujeitos capazes de agir para transformar.

De fato, as crianças e os adolescentes institucionalizados precisam interagir efetivamente com pessoas, objetos, símbolos e com um mundo externo acolhedor. Assim, o abrigo precisa fazer parte da rede de apoio social e afetivo, fornecendo recursos para o enfrentamento de eventos negativos presentes em sua história de vida, modelos que permitam identificação positiva, segurança e proteção. Somente assim oferecerá um ambiente propício para o pleno desenvolvimento cognitivo, social e afetivo das crianças e adolescentes inseridos nesse contexto (SIQUEIRA; DELL’AGLIO, 2006).

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Considerações Finais

As ações institucionais de Terapia Ocupacional devem buscar a organização de uma vida cotidiana mais saudável onde os conflitos institucionais rotineiros possam ser mais adequadamente solucionados e a rotina institucional seja rica em experiências e flexível no funcionamento. Trabalhos grupais que venham a trabalhar o fortalecimento dos vínculos ou facilitar a dinâmica operativa do cotidiano institucional são iniciativas que devem ser incentivadas (GALHEIGO, 2003).

A intervenção proposta a partir do estágio de Terapia Ocupacional na atenção a infância e adolescência tem priorizado o investimento no pessoal, no sentido de favorecer o desenvolvimento das crianças, auxiliando-as a desenvolver habilidades, criando e fortalecendo mecanismos de enfrentamento do cotidiano na instituição. Contudo, uma etapa subseqüente a ser considerada deve incluir na proposta uma intervenção voltada ao contexto institucional e comunitário.

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