crianças fazem arte? um estudo sobre a escrita ... · a partir da pergunta simples – do que...

7

Click here to load reader

Upload: nguyenkiet

Post on 07-Nov-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Crianças fazem arte? Um estudo sobre a escrita ... · A partir da pergunta simples – do que você tem medo? – a artista convidava cada um a desenhar uma capa diante da resposta

DepartamentodeLetras

Criançasfazemarte?Umestudosobreaescritaimaginativacomcrianças

Aluna:JulianaReisOrientadora:RosanaKohlBines

"Emlábiosdecrianças,loucos,sábios,apaixonadosousolitários,brotamimagens,jogosdepalavras,expressõessurgidasdonada...feitasdematériainflamável,as

palavrasseincendeiamassimqueasroçamaimaginaçãoouafantasia."OctavioPaz

Introdução

PALAVRADECRIANÇA

No livroCasa das Estrelas (2013), o professor colombiano JavierNaranjo retratou o

resultadodeumapesquisafeitaaolongode10anossobreoqueseusalunos,de3a

12anos,pensavameentendiamdomundoaoseuredor.Algumasdefiniçõescuriosas

sugiram,comoporexemploadeAmor:“Quandobatememvocêedóimuito”eade

Igreja: “Onde as pessoas vão perdoar Deus”. Segundo a editora Isa Pessoa, “essas

definiçõesnãosãonadainocentes.Sãoespertas,melancólicasemordazes.”Inspirada

eintrigadaporessaobra,projeteinestapesquisachamada“Criançasfazemarte?Um

estudosobreaescritaimaginativacomcrianças”questõesrelacionadasàinfânciaeao

seu potencial criativo. Em nossos tempos, vivemos na lógica da produção, e é

constantemente descartado o que é entendido como inútil. O idoso e a criança se

encaixamnessecaso:ambosnãoconseguemdarcontadesisozinhos,dependemde

outros, não produzem nada aparentemente efetivo. Por conta disso, suas vozes

tendemasersilenciadas,comoseporquenãoproduzemconformealógicadanossa

sociedade,elesnãotivessemmaisnadaadizer.

Desde o final século XVIII, a noção de infância vem passando por umamudança de

paradigmas. A compreensão desenvolvimentista, segundo a qual a criança é um ser

incompleto,secomparadaaoadulto,estágradativamenteperdendoforça.Oprocesso

queproporcionouoreconhecimentodascriançasnãoapenascomoalvodecuidados,

massujeitosdaação,baseia-seemnumadinâmicahistóricaqueconferiuvisibilidadea

Page 2: Crianças fazem arte? Um estudo sobre a escrita ... · A partir da pergunta simples – do que você tem medo? – a artista convidava cada um a desenhar uma capa diante da resposta

DepartamentodeLetras

elas e, consequentemente, voz. Essa passagem teve início na industrialização e se

intensificounopós-guerra.NoséculoXIX,acriançaeravistademodoambivalente:às

vezes,puraeamável,necessitadadeproteçãoeoutrasvezescomopequenoanimal

irracional, que deveria ser trazido para o mundo adulto para sua salvação. (AMIN;

REILY,2011,p.3).OantropólogoGeorgeBoas (1990)elucidaas transformaçõesnas

formas de conceber a infância. O percurso de Boas começa com Sócrates, que

entendeuainfânciacomofaseemqueasprimeirassensaçõessãobasicamenteprazer

edor,eporelasascriançaspautamsuasatitudes.JáPlatãodefiniuascriançascomo

seressemrazão,sendosuaúnicasaídaumaeducaçãodocilizadora.Aristótelesasviu

comoseresperseguidoresdeprazerpróprio,eporissoincapazesdeamaratémesmo

os seus pais. Boas identifica Rousseau como pensador decisivo na reimaginação da

infânciaemoutrasbases.Emseulivro“Emílio”,ofilósoforetomouainfânciaapartir

desuasprópriassingularidades,valorizandoanaturezainfantil.Paraele,ainfânciaera

maisnaturaldoqueamaturidade,pois“crescerédegenerativo”.(BOAS,1990,p.42)A

partir dessa ruptura inaugurada por Rousseau, a associação entre infância e

genialidadecomeçouaganharadeptos.ApartirdoRomantismo,comavalorizaçãoda

expressãoindividual,asproduçõescaseirasdedesenhosinfantiscomeçaramaganhar

importância. As vanguardas artísticas do entre-guerras também colaboraram para

fortalecer o novo paradigma. As dimensões de liberdade e espontaneidade,

observadas nos desenhos das crianças, passam a ser consideradas como valores

afirmativosparaa arteemgeral. "Juntoa isso,o interessepeloprimitivo,pelonão-

europeu acentuou uma relação atrasada com o Romantismo, mesmo durante a

modernidade" (KOUVOU,2014,p.2).Comoadventodapsicanálise,aassociaçãoda

infânciacomouniversodaarteseestreitaaindamais.Freudafirmou(KOUVOU,2014,

p. 3) que a arte é uma manifestação inconsciente, a que a criança teria acesso

ilimitado. Em outras palavras, se tomarmos a arte como um campo aberto de

construçãodelinguagens,eseconsiderarmosquenascriançasoaparatodalinguagem

apresenta-se ainda em formação, também aberto e flexível, poderemos supor que

nelassedaráaarteemsua formamais livreeexpandida. "Acriança,aoaprendera

falar, transforma experiência sensível em discurso humano" (KRAMER, 1998, p. 3),

destacando que ela, na sua experiência de “descoberta do mundo” (SOUSA LEAL,

2011) cria expressões de festiva e sábia irresponsabilidade com as palavras,

Page 3: Crianças fazem arte? Um estudo sobre a escrita ... · A partir da pergunta simples – do que você tem medo? – a artista convidava cada um a desenhar uma capa diante da resposta

DepartamentodeLetras

evidenciandoaforçadeseudesajustecomomundo.Ainfânciaseexpressacomoalgo

quenãosabemos,queserevestedonovo,repletadecuriosidade.Acriançainaugura

sentidos,comofazaarte.Emcontrapontoàinocência,WalterBenjaminreforçaquea

potênciadohomemnãorepousasomentesobresuaforçaepoder,mastambémsobre

suas faltas e suas fraquezas (GAGNEBIN, 1997). É, então, a inabilidade e a

desorientaçãodacriançaasuaprincipalpotência,éasuatemporalidadeintempestiva

e travessa em contraste com a temporalidademais severa e controlada domundo

adulto.AnaMariaJiménez,de6anos,descreveudeformasingular:“Criançaéquem

temossos, temolhos, temnariz, temboca, caminha e come e não toma rum e vai

dormirmaiscedo."(NARANJO,2013).

Infância vem do latim infans - o que não fala.Mas as crianças não conhecem essa

definição: falam, tagarelame, assim, criam.Ao longodesseano,pesquiseiumvasto

acervo bibliográfico a fim de operar deslocamentos da visão tradicional da infância

enquanto etapa cronológica restrita, pautada pela inocência e por uma visão

simplificadadavida-aquecorresponderiaumaarteigualmenteredutora-emdireção

a um pensamento da infância como experiência radical da linguagem em estado

nascente, como potência do dizer, uma infância do dizer. No processo da pesquisa,

pudeperceberqueocontatocomessaarteproduzidaporcriançasnosdevolveparao

estranhodenossaprópria língua, revelandonossa fragilidadedaexperiência comas

palavras,comalinguagemecomaarte,entendendoainfânciacomoacontecimento,

como forma de inauguração de sentidos, do nunca visto, violentando nossa

comodidadedomundoadulto.Essapesquisaconvocaocamposemânticodainfância

para pensar as possibilidades da escrita inventiva em produções de crianças com

adultos, numa atuação coletiva, namedida emque a criança sinaliza, no âmbito da

experiênciahumanacomalinguagem,nãooviésdepoderecontrolesobreaspalavras

numaperspectivaprodutiva,masas “incompetências”eos “fracassos”,abraçandoe

assumindosua“inutilidade”.

ResultadoseDiscussões

AARTENÃOTEMMEDODAINFÂNCIA

Page 4: Crianças fazem arte? Um estudo sobre a escrita ... · A partir da pergunta simples – do que você tem medo? – a artista convidava cada um a desenhar uma capa diante da resposta

DepartamentodeLetras

Para enfrentar as questões teóricas, elegemos duas obras artísticas como corpus

principal do projeto: o vídeo Two Stage Transfer Drawing (1971) do artista norte-

americano Dennis Oppenheim e a exposição O nome do medo (2016) da artista

mineiraRivaneNeuenschwander.Ovídeoeaexposiçãotraçamsobreainfânciaóticas

diferentes, mas ambos motivam a reimaginação da fronteira criança-adulto,

mostrandocomoacriançapodebrincardeseradultoevice-versa,tornandoamargem

entre os dois mais elástica, plástica e móvel, abrindo campos de experimentação

formalqueredesenhamessasrelações.

EmOnomedomedo,RivaneNeuenschwander,operandonosinterstíciosdapalavrae

da imagem, disponibiliza seu instrumental poético para um mergulho na história e

experiênciadooutro– crianças reunidasemoficinasnoMuseudeArtedoRioena

EscoladeArtesVisuais.Aartistabrasileirasepropôsa investigaromedoapartirdo

olhardascrianças,queforamestimuladasalistaredesenharseusmaiorestemoresea

construircapascommateriaisricosemtexturasecorescomoumaformadeajudá-las

enfrentar e brincar com o que as amedronta. Os desenhos e os relatos produzidos

pelas criançasnosencontros foram transformadosemcapasestilizadas, criadaspela

artistacomacolaboraçãododesignerGutoCarvalhoneto.Ascrianças,aoelaborarem

textualmenteevisualmenteosseusuniversosíntimos,evidenciamapossibilidadede,

atravésdaarte, renomearereinventaromundo.Nasoficinasondeoselementosda

exposição foram gerados, 200 crianças de toda parte da cidade envolveram-se em

etapas de desbloqueio gradativo de seus sentimentos guardados, como forma de

elaborar seus conflitos internos. A partir da pergunta simples – do que você tem

medo?–aartistaconvidavacadaumadesenharumacapadiantedaresposta.Desde

osmedosclássicos,comoosdeescuroedejacaré,atéaquelesligadosaomeioemque

sevive,comoosdesastresnaturaisouotemordapolícia,todoseramtransfigurados

emumdesenhodecapa,ondeelaspoderiamseproteger.

Oqueuniriamaisacriançaaoadultodoqueomedo?Esseelementoassombraavida

detodocidadãobrasileiroouquiçádetodaahumanidade.Omedoparalisaefazda

vidaumregimedesobrevivência,emvezdeum lugardeexperiências. Juntocomos

artistas,acriançareencontraoseumedonaarenapública,juntoaosmedosdetodas

as outras pessoas que participaram do trabalho, tornando-se, assim, um projeto de

Page 5: Crianças fazem arte? Um estudo sobre a escrita ... · A partir da pergunta simples – do que você tem medo? – a artista convidava cada um a desenhar uma capa diante da resposta

DepartamentodeLetras

partilhas, mesclando individualidades e abalando a noção de autoria individual. Ao

visitaromuseu,“acriançanãoreencontraráseugestooriginal,everáquesedissolveu

em tantas outras subjetividades” (LAGNADO, 2017, p. 42). Trata-se de uma obra

conjunta,pois“oadultodeveriadeixar-secontaminarcontinuamentepelacriança,isso

é de uma riqueza extraordinária.” (LAGNADO, 2017, p. 41). A criança é vista, nesta

exposição, como agente criador, como produtor de cultura. Diz a curadora, “sendo

assim,nãoémaisomeunemoseumedo,masummedocomumquenosassombra,a

todos, adultos ou crianças” (LAGNADO, 2017, p. 42). Elas, a partir do estímulo

desempenhadopelosartistas-adultos,geramvivênciaslúdicasereflexivascapazesde

desencadear aproximações do adulto com a complexidade da infância. Nesta

experiência,nãohá linhademarcatóriaentreexpressãomaduraeexpressão infantil.

Naexposição,ascapasnãotêmassinatura,nãosabemosquecriançainventouoquê,e

issodenotaumaestratégiada curadoriade ressaltaro caráterpartilhado, coletivoe

fluido da criação. Desse modo, reaguça-se a percepção de que somos todos, em

algumamedida,refénsdosnossosmedos.Atravésdalinguagem,quefoidescritapor

Victor Ramírez (7 anos) como "A pele" (NARANJO, 2013), crianças e adultos

reinventam, revivem e renomeam seus medos. O fato de tais temores terem se

metamorfoseadoemcapasétambémumaaçãoderedesenharodestinodosnossos

afetos.

NovídeoTwoStageTransferDrawing,DennisOppenheim teceumdiálogo íntimoe

sensorialentrepaiefilhoatravésdotracejardeumnascostasdooutroedatradução

visualdessecontatodoscorpos,exibindoumaduplanarrativa:emumdosmonitores,

vê-se o artista deslizar uma caneta nas costas do filho, que simultaneamente tenta

reproduzirnaparedeodesenhodopai;nooutromonitoréomeninoquedesenhanas

costasdopai,queporsuavezdesenhanaparedeostraçosquesenteofilhopercorrer

emseucorpo.Cria-seumcircuitodegestosenvolvendoprocessosdetransferênciade

sensações, sentidos e percepções. Nessa obra, a linguagem é apresentada de uma

maneira não verbalizada, algo que comunica silenciosamente, exigindo nossa

concentraçãomaisacentuadaenossasensibilidadeaguçada.Aquestãodatransmissão

intergeracionalentraemjogo,porémsubvertendotambémalógicatradicionalquevai

dopaiao filho,dandoao filhoapossibilidadede transmitir tambémaopai.Nota-se

Page 6: Crianças fazem arte? Um estudo sobre a escrita ... · A partir da pergunta simples – do que você tem medo? – a artista convidava cada um a desenhar uma capa diante da resposta

DepartamentodeLetras

que, nesse caso, a criança tem poder gerador e se afasta da imagem infantilizada,

improdutivaedependentequecertatradiçãodepensamentoajudouaconsolidar.A

interaçãoentrepaie filhonos remete tambémanossas relaçõesmais comuns,pois

silenciosamente expressamos nossas intenções, interesses, sentimentos e ideias

atravésdereaçõescorporais.TwoStageTransferDrawingfoidescritoporOppenheim

comoumtrabalhocooperativo:“As I runamarkeralongErick’sbackheattemptsto

duplicatethemovementonthewall.Myactivitystimulatesakineticresponsefromhis

sensory system. I am, therefore, Drawing Through Him. Sensory retardation or

disorientationmakeupthediscrepancybetweenthetwodrawings,andcouldbeseen

aselementsthatareactivatedduringthisprocedure.BecauseErickismyoffspringand

we share similar biological ingredients, his back (as surface) can be seen as an

immature version of my own. In a sense, I make contact with a past state.”

(OPPENHEIM,2001).Emcontrapartida,quandoseufilhodesenhanassuascostas,ele

afirma:“hemakesacontactwithafuturestate”.Atemporalidadedodesenhoassume

umaduraçãofísica,maséexplicitadaemumestatutosensorialmaiscomplexo.

Conclusões

Aescolhadocorpusdeestudodesseprojetocontemplaobjetoshíbridosqueperfazem

um percurso reflexivo de desessencializar a imagem da criança como ser ingênuo e

puronoâmbitodeproduçõescolaborativasentreadultoecriança.Emambasasobras,

abrem-secamposdeexperimentaçãoformalqueredesenhamasrelaçõesdohumano

com a criança, gerando a sondagem de um campo heterogêneo de forças, de

interações e de atravessamentos entre crianças e adultos na criação de escritas

permeáveis, que desestabilizam um único ponto fixo de enunciação, instaurando

entrelugares e entrempos que demandam reflexão mais acurada, abrindo mundos

transpassáveisaoentrelaçamentodasgerações.

Referências

CLEMANS, Gayle. Parental points of view: Photografic and Filmic Acts inContemporary.WashingtonUniversity,2011.SOUSALEAL,BernardinaMariade.Chegaràinfância.EDUFF,2011.GABNEBIN, Jeanne Marie. Sete Aulas sobre Linguagem, Memória e História.EditoraImago,1997.KRAMER,Sonia.Infância,educaçãoecríticadaculturaemWalterBenjamin.1998.

Page 7: Crianças fazem arte? Um estudo sobre a escrita ... · A partir da pergunta simples – do que você tem medo? – a artista convidava cada um a desenhar uma capa diante da resposta

DepartamentodeLetras

BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. SãoPaulo:Summus,1984.BOAS,George.Thecultofchildhood.SpringPublications,1990.MEIRA,AnaMarta.Benjamin,osbrinquedosea infância contemporânea.Psicol.Soc.[Disponívelem:http://www.scielo.br/scielo.php?scrpit=sci_arttex&pid=S0102-71822003000200006,acessoem05/05/2017.]2003.CIRINODANTAS,MariaReilta;OLÍMPIADACUNHA,Edna.Experiênciaeescritanapesquisacomcrianças.FilosofiaeEducação[online].2016.AMIN, Raquel; REILY, Lucia. A poética infantil em foco: fundamentos históricosparaentenderaartedacriança.SãoPaulo:ANPUH,2011.KOUVOU,Ourania.ChildArtandModernity.AthensUniversity,2014.Exposição “Brinquedos àMão” – Coleção Sálua Chequer. CAIXA Cultural, Rio deJaneiro,18/12/2016a19/02/2017.LAGNADO,Lisette(org).Onomedomedo.RiodeJaneiro:MuseudeArtedoRio;InstitutoOdeon.2017.NARANJO, Javier. Casa das Estrelas: O universo contado pelas crianças. EditoraFoz,2013.