criança, a alma do negócio -...

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Recentemente retornou à agenda das discussões na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 5291/2001, com o objetivo de regulamentar a publicidade dirigida ao público infantil. Ao que parece, a proposta inicial do PL de proibir a publicidade dirigida a este público causou certo rebuliço nos meios de comunicação que se posicionaram contra a proibição, recorrendo ao argumento de que a censura é inadmissível num Estado democrático. Sem desconsiderar a relevância do argumento, chama a atenção que não sejam levados em consideração outros fatores importantes que poderiam ser destacados numa discussão desta relevância. Sabemos que o discurso publicitário influencia sobremaneira a forma como as nossas crianças se subjetivam. Nos anúncios publicitários, os produtos são apresentados como capazes de trazer ao consumidor todas as sensações, bens, posses e prazeres nele enun- ciados, além do que as imagens e mensagens do anúncio extrapolam o produto: é o tênis que torna seu usuário campeão do jogo, o salgadinho que supostamente dá a quem o consome a mesma força do super-herói que estampa a sua embalagem. A criança é ainda mais susceptível à propaganda, pois a linguagem nela utilizada é a do pensamento mágico no qual, diferentemente do pensamento racional, não há uma adequação lógica entre meios e fins. Mais que no do adulto, este tipo de funcionamento caracteriza o pen- samento infantil. Um documentário muito interessante, “Criança, a alma do negócio”, produzido pelo Insti- tuto Alana, nos dá uma noção de o quanto as nossas crianças estão passivamente submetidas ao discurso publicitário e como são influenciadas por ele. No filme aparecem crianças que não sabem nomear frutas e verduras comuns, embora reconheçam imediata- mente diversos produtos em que a marca está escondida, apenas através de sua embala- gem. Aparecem ainda alguns dados alarmantes como, por exemplo, que 80% dos alimen- tos veiculados pela propaganda dirigida às crianças brasileiras possuem níveis não reco- mendados de gorduras, açúcares, calorias e são pobres em nutrientes, mas são larga- mente consumidos por elas. Neste documentário também fica clara a preferência de crian- ças muito novas por comprar, em detrimento de brincar, o que é muito grave, pois o consumo em massa estimula a padronização e as crianças precisam ter mais tempo para brincar livremente. Existem muitos países como Suécia, Alemanha, Holanda, Canadá, dentre outros, que regu- lamentaram a publicidade dirigida ao público infantil, seja em termos de duração, horário, qualidade do produto anunciado, ou mesmo de proibição. Considerando-se o discurso publicitário como um discurso persuasivo que influencia os padrões de consumo das crianças e, mais que isso, incide sobre o modo como se subjetivam e se desenvolvem, não é possível deixar de submetê-lo a uma ampla discussão social que envolva todos os protagonistas dessa cena. A censura não é compatível com um Estado democrático, mas a liberdade deve estar atrelada à responsabilidade e, neste caso, o discurso publicitário, carece sim de uma regulamentação e de um responsável controle social. Rua Cardeal Arcoverde, 308, Graças - Recife, PE | 81. 3423 5751 | [email protected] | www.cppl.com.br INFÂNCIA Ano 1 - Número 4 | Recife, Setembro de 2011 Criança, a alma do negócio Maria Clara Batista – Psicóloga

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Page 1: Criança, a alma do negócio - primeirainfancia.org.brprimeirainfancia.org.br/wp-content/uploads/2011/09/noticia15.pdf · Um documentário muito interessante, “Criança, a alma

Recentemente retornou à agenda das discussões na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 5291/2001, com o objetivo de regulamentar a publicidade dirigida ao público infantil. Ao que parece, a proposta inicial do PL de proibir a publicidade dirigida a este público causou certo rebuliço nos meios de comunicação que se posicionaram contra a proibição, recorrendo ao argumento de que a censura é inadmissível num Estado democrático. Sem desconsiderar a relevância do argumento, chama a atenção que não sejam levados em consideração outros fatores importantes que poderiam ser destacados numa discussão desta relevância. Sabemos que o discurso publicitário in�uencia sobremaneira a forma como as nossas crianças se subjetivam. Nos anúncios publicitários, os produtos são apresentados como capazes de trazer ao consumidor todas as sensações, bens, posses e prazeres nele enun-ciados, além do que as imagens e mensagens do anúncio extrapolam o produto: é o tênis que torna seu usuário campeão do jogo, o salgadinho que supostamente dá a quem o consome a mesma força do super-herói que estampa a sua embalagem. A criança é ainda mais susceptível à propaganda, pois a linguagem nela utilizada é a do pensamento mágico no qual, diferentemente do pensamento racional, não há uma adequação lógica entre meios e �ns. Mais que no do adulto, este tipo de funcionamento caracteriza o pen-samento infantil.Um documentário muito interessante, “Criança, a alma do negócio”, produzido pelo Insti-tuto Alana, nos dá uma noção de o quanto as nossas crianças estão passivamente submetidas ao discurso publicitário e como são in�uenciadas por ele. No �lme aparecem crianças que não sabem nomear frutas e verduras comuns, embora reconheçam imediata-mente diversos produtos em que a marca está escondida, apenas através de sua embala-gem. Aparecem ainda alguns dados alarmantes como, por exemplo, que 80% dos alimen-tos veiculados pela propaganda dirigida às crianças brasileiras possuem níveis não reco-mendados de gorduras, açúcares, calorias e são pobres em nutrientes, mas são larga-mente consumidos por elas. Neste documentário também �ca clara a preferência de crian-ças muito novas por comprar, em detrimento de brincar, o que é muito grave, pois o consumo em massa estimula a padronização e as crianças precisam ter mais tempo para brincar livremente.Existem muitos países como Suécia, Alemanha, Holanda, Canadá, dentre outros, que regu-lamentaram a publicidade dirigida ao público infantil, seja em termos de duração, horário, qualidade do produto anunciado, ou mesmo de proibição. Considerando-se o discurso publicitário como um discurso persuasivo que in�uencia os padrões de consumo das crianças e, mais que isso, incide sobre o modo como se subjetivam e se desenvolvem, não é possível deixar de submetê-lo a uma ampla discussão social que envolva todos os protagonistas dessa cena. A censura não é compatível com um Estado democrático, mas a liberdade deve estar atrelada à responsabilidade e, neste caso, o discurso publicitário, carece sim de uma regulamentação e de um responsável controle social.

Rua Cardeal Arcoverde, 308, Graças - Recife, PE | 81. 3423 5751 | [email protected] | www.cppl.com.br

INFÂNCIAAno 1 - Número 4 | Recife, Setembro de 2011

Criança, a alma do negócio

Maria Clara Batista – Psicóloga