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CRIANÇA DESNUTRIDA É AMEAÇA SOCIAL: DANTE COSTA E A ALIMENTAÇÃO INFANTIL NO BRASIL. Marcela Fogagnoli IFRJ [email protected] Autor de diversos livros sobre temas como alimentação, nutrição e alimentação infantil, Dante Costa está entre os expoentes da Nutrição e Nutrologia do país. Entre os principais cargos e funções que exerceu, foi professor de Dietética e pesquisador do Serviço de Alimentação da Previdência Social, professor de Nutrição do Departamento Nacional de Saúde, médico da Santa Casa de Misericórdia, membro do International Nutrition Institute e representante do Brasil no VIII Congresso Pan-Americano da Criança, em Whashington, em 1942. Foi também fundador do Partido Socialista Brasileiro em 1945. Nasceu na cidade de Baião, no Pará, em 1912 e realizou os estudos primários em Belém, capital do estado. Cursou o ensino secundário no Rio de Janeiro, devido à transferência de toda família para a capital federal, por motivos de trabalho de seu pai. Em novembro de 1934, Dante Costa se diplomou médico pela Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil. Em 1939, concluiu sua especialização na Universidade de Paris, na capital francesa. A trajetória profissional e intelectual de Dante Costa se concentrou na alimentação da criança, sobretudo dos escolares. Entre os anos de 1935 e 1950, Dante Costa publicou diversos livros e trabalhos sobre alimentação infantil e merenda escolar, além de obras sobre assuntos relacionados à pedagogia, como recreação infantil e frequência dos escolares nos cinemas. Sobretudo, durante o governo de Getúlio Vargas, atuou institucionalmente em diversos órgãos no sentido de implementar merenda aos escolares. Em 1935, recém-formado, aos 23 anos, Dante Costa foi chamado para assumir a Chefia de Expansão Social, na Campanha Nacional pela Alimentação, uma primeira iniciativa do governo brasileiro nessa área. A campanha está inserida no contexto de

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Page 1: CRIANÇA DESNUTRIDA É AMEAÇA SOCIAL: DANTE COSTA E A ... · Outro importante livro de Dante Costa foi Tratado de Nutrição, publicado em 1947, no momento em que o autor atuava

CRIANÇA DESNUTRIDA É AMEAÇA SOCIAL: DANTE COSTA E A

ALIMENTAÇÃO INFANTIL NO BRASIL.

Marcela Fogagnoli

IFRJ

[email protected]

Autor de diversos livros sobre temas como alimentação, nutrição e alimentação

infantil, Dante Costa está entre os expoentes da Nutrição e Nutrologia do país. Entre os

principais cargos e funções que exerceu, foi professor de Dietética e pesquisador do

Serviço de Alimentação da Previdência Social, professor de Nutrição do Departamento

Nacional de Saúde, médico da Santa Casa de Misericórdia, membro do International

Nutrition Institute e representante do Brasil no VIII Congresso Pan-Americano da

Criança, em Whashington, em 1942. Foi também fundador do Partido Socialista

Brasileiro em 1945.

Nasceu na cidade de Baião, no Pará, em 1912 e realizou os estudos primários em

Belém, capital do estado. Cursou o ensino secundário no Rio de Janeiro, devido à

transferência de toda família para a capital federal, por motivos de trabalho de seu pai.

Em novembro de 1934, Dante Costa se diplomou médico pela Faculdade Nacional de

Medicina da Universidade do Brasil. Em 1939, concluiu sua especialização na

Universidade de Paris, na capital francesa.

A trajetória profissional e intelectual de Dante Costa se concentrou na alimentação

da criança, sobretudo dos escolares. Entre os anos de 1935 e 1950, Dante Costa publicou

diversos livros e trabalhos sobre alimentação infantil e merenda escolar, além de obras

sobre assuntos relacionados à pedagogia, como recreação infantil e frequência dos

escolares nos cinemas. Sobretudo, durante o governo de Getúlio Vargas, atuou

institucionalmente em diversos órgãos no sentido de implementar merenda aos escolares.

Em 1935, recém-formado, aos 23 anos, Dante Costa foi chamado para assumir a

Chefia de Expansão Social, na Campanha Nacional pela Alimentação, uma primeira

iniciativa do governo brasileiro nessa área. A campanha está inserida no contexto de

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assistência social à infância do governo Vargas, com políticas de amparo às crianças,

grávidas e nutrizes. Após o fim da Campanha, Dante Costa se afastou das atividades

institucionais, durante o período de 1936 a 1940. Durante esse tempo, dedicou-se às

atividades acadêmicas e publicou diversos trabalhos, entre eles, Bases da Alimentação

Racional (1938), uma obra importante para o então emergente campo da nutrição no

Brasil.

Em 1940, Dante Costa voltou à cena institucional, novamente em parceria com

Olinto Oliveira, numa breve atuação no recém-criado Departamento Nacional da Criança.

Transferiu-se para o SAPS, no final do ano de 1941, assumindo a Chefia da Seção Técnica

do SAPS após a saída de Josué de Castro. A partir de então, a atuação do SAPS na

alimentação infantil ocorreu, quase que exclusivamente, em torno de Dante Costa. No

que se pode destacar a criação de um inquérito alimentar com crianças em idade escolar

e a implementação do desjejum escolar no Restaurante Central do SAPS no Rio de

Janeiro.

A atuação profissional de Dante Costa foi também marcada por sua militância no

Partido Socialista Brasileiro. Alguns de seus discursos e propostas demonstram nuances

das ideias dos socialistas brasileiros. Além de membro fundador, Dante Costa teve papel

destacado no partido quando, ao lado de outros nutrólogos como Nelson Chaves, Ruy

Coutinho, Cleto Seabra e Benjaminm Albagli, apresentou na Convenção do partido de

1949, as “Diretrizes de uma Política alimentar” resumidas em seis pontos principais

(COSTA, 1954). O primeiro reconhecendo o Brasil como um território de desnutrição e

fome, o que resultava no prejuízo da capacidade de produção dos trabalhadores. Hipótese

que se repete no segundo ponto que afirma que o operário mal alimentado, além de estar

vulnerável às doenças, tem sua capacidade de trabalho diminuída. O terceiro ponto

apresentado no documento foi baixo consumo dos chamados alimentos protetores,

aqueles ricos em proteínas, vitaminas e minerais, presentes nos vegetais, legumes, carnes

e leite., resultando em uma dieta com menor valor nutricional e expondo a pessoa a

doenças. A causa para o pouco consumo desses alimentos estaria diretamente ligada à

condição econômica da maioria da população, conforme cita o autor:

“é assim o drama alimentar das famílias do povo, em cujas casas a carne é

alimento de festa e os ovos estão mais na lembrança de encontros passados que

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na mesa quotidiana, casas de desconforto que [...] expõem seus moradores à

agressão das silenciosas infecções que a desnutrição afaga e propaga”

(COSTA, 1954)

No quinto ponto de seu discurso na Convenção, Dante Costa defendeu que os

problemas de alimentação no país poderiam ser resolvidos com algumas medidas, como

reforma agrária e valorização dos salários dos trabalhadores, além de campanhas

assistenciais e educacionais através dos restaurantes do SAPS. Por fim, propôs a extensão

da legislação trabalhista aos trabalhadores rurais. Essas propostas aparecem, de forma

mais sutil, nas obras de Dante Costa sobre alimentação da população brasileira. Desse

modo, ao analisarmos algumas obras e propostas de Dante Costa, podemos notar nuances

de sua militância política e do discurso do PSB a respeito de questões como alimentação

e reforma agrária.

Embora tenha publicado obras literárias, como Itinerário de Paris (1939) e Israel,

Terra Viva (1958), a maior parte da produção de Dante Costa foi a questão da alimentação

do brasileiro, sobretudo dos escolares. Sua obra mais conhecida foi o livro Bases da

Alimentação Racional, publicado em 1937 e rapidamente esgotado, sendo reeditado duas

vezes, em 1940 e 1949. De modo geral, o livro buscou sintetizar os princípios da

alimentação racional – tema que vinha florescendo no campo da nutrição – utilizando

uma linguagem didática com objetivo de alcançar um público mais amplo, não se

restringindo apenas a médicos e nutricionistas. Alimentação racional seria uma nova

forma de se alimentar: não mais apenas comer para matar a fome, e sim se alimentar de

acordo com os novos padrões da nutrologia e nutrição, uma alimentação, digamos,

consciente da função de cada alimento no nosso organismo.

Outro importante livro de Dante Costa foi Tratado de Nutrição, publicado em

1947, no momento em que o autor atuava plenamente no SAPS como pesquisador e

professor de dietética. Conforme ele mesmo afirmou, o livro é produto dos “mais de dez

anos de especialização vivida em seu tríplice aspecto: o clínico, nos hospitais, o

experimental, no laboratório de pesquisa, e social, na organização de serviços públicos de

alimentação” (COSTA, 1947). Embora seja um livro mais técnico e voltado para médicos

e estudantes de medicina e nutrição, ele apresenta questões ligadas à vertente social da

Nutrição, como a alimentação dos escolares e dos trabalhadores, e propõe a criação de

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restaurantes populares e a instituição de merenda escolar nas escolas. O livro foi impresso

em mil e cinquenta exemplares, todos assinados pelo autor. Embora a tiragem não tenha

sido grande, trata-se de uma obra de 630 páginas com 22 capítulos, 112 gravuras e 82

quadros, onde aborda questões relacionadas a dietética, nutrologia e alimentação.

Publicado após mais de dez anos de exercício da medicina, o livro foi, segundo Dante

Costa, resultado de experiência e atuação “vivida em seu tríplice aspecto: o clínico, nos

hospitais, o experimental, no laboratório de pesquisa, e o social, na organização de

serviços públicos de alimentação” (COSTA, 1947).

A obra Alimentação e Progresso, publicada em 1951, sintetiza algumas das ideias

e propostas de Dante Costa para alimentação, nos possibilitando conhecê-lo ainda mais.

Vencedora do Prêmio Nacional de Alimentação1, concedido pelo SAPS em 1949, trata-

se de uma compilação de comunicações em conferências e congressos e de estudos

publicados pelo autor sobre os problemas da alimentação da população brasileira. Com

310 páginas, o livro está dividido em três partes: a primeira traça o que o autor

considerava sobre os problemas da alimentação no Brasil e apresenta algumas medidas

para sanar a questão; a segunda parte apresenta as experiências de políticas de

alimentação de alguns países, sobretudo dos Estados Unidos, e um breve histórico sobre

a evolução do consumo de alguns alimentos, como leite, trigo e carne; na última parte do

livro constam algumas questões importantes colocadas por Dante, como a conceituação

do termo desjejum escolar.

Na vasta lista de publicações de Dante Costa, a alimentação infantil, sobretudo a

merenda escolar, se destaca. Em 1948 publicou pelo Ministério da Educação e Saúde o

livro Alimentação do Escolar, no qual abordou temas como merenda e desjejum escolar,

carências nutricionais em crianças e o papel da escola na educação alimentar. A primeira

parte do livro é um guia com 25 sugestões de merenda escolar. As merendas nesse caso

seriam trazidas de casa e consumidas no intervalo entre as aulas. As sugestões foram

divididas por regiões do Brasil, adaptando o cardápio de acordo com os hábitos regionais

e a disponibilidade de alimentos nas regiões. Na segunda parte do livro, Dante Costa

1 Prêmio oferecido pelo SAPS como incentivo à produção cientifica nacional. Participaram da comissão

julgadora: Franklin A. de Moura Campos (Faculdade de Medicina de São Paulo – atual USP), Nelson

Chaves (Faculdade de Medicina de Recife e P.A. da Costa Couto (membro da Comissão de Estudos

Técnicos do SAPS).

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apresentou sugestões e exemplos de desjejum escolar. Ao contrário da merenda, que seria

de responsabilidade da família, o desjejum seria uma medida de assistência alimentar, a

primeira refeição da criança, concedida pelo governo.

Destaco ainda o livro Merendas Escolares. Publicado em 1939 pelo Ministério de

Educação e Saúde, os cinco mil exemplares do livro foram rapidamente esgotados. Em

1943 o SAPS publicou a 2ª edição ampliada da obra. Trata-se de um modesto livro com

vinte e cinco sugestões de merendas para as crianças escolares brasileiras, conforme

veremos a seguir.

Esse breve panorama sobre as principais obras de Dante Costa sobre alimentação

nos permite identificar o pensamento do autor a respeito do tema. Para Dante Costa o

problema da “má” alimentação da população brasileira era um problema nacional, tanto

por sua amplitude quanto por ser considerado como uma das causas para o “atraso”

econômico e social do país. As causas para o problema alimentar no Brasil estariam,

segundo o autor, relacionadas a quatro fatores: pobreza, prática histórica da monocultura,

estrutura econômica do país enquanto uma economia agrário-exportadora e ignorância da

população a respeitos dos princípios da alimentação racional. Assim, o caminho para

transformar essa realidade teria duas vias: acabar com a pobreza e sanar seus efeitos e

efetivar um programa de educação alimentar que fosse capaz de instruir a população e

eliminar os antigos hábitos alimentares.

Dante Costa e a alimentação infantil

Para o autor, as causas mais comuns do problema alimentar no Brasil eram:

pobreza, escolha errada dos alimentos e falta de alimentos disponíveis para a maior parte

da população. Nesse contexto, quem mais sofria era a criança escolar. Isso porque, na

perspectiva de Costa, a nutrição na infância era determinante para a fase adulta, por ser

esse um período de desenvolvimento do corpo humano. Assim, é fundamental que a

criança receba uma alimentação variada e rica em nutrientes.

Dante Costa defendia que uma alimentação “errada” na infância prejudicaria a

vida adulta em diversos sentidos. Um deles seria o que chamou de “verdadeira ameaça

social”: mortalidade infantil e a formação de adultos doentes. Esses dois fatores seriam,

os responsáveis por impedir o progresso do país. A solução era, portanto, intervir ainda

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na infância e evitar que a “má” alimentação e os “maus” hábitos condenassem o país ao

tão temido atraso. (COSTA, 1948)

A infância era vista, principalmente a partir dos anos iniciais do governo de

Getúlio Vargas, como uma fase privilegiada para intervenções. O projeto político do

estado varguista reforçava a ideia da construção de uma “nova nação” a partir de um

“novo homem”. Nesse sentido, a imagem da criança passou a ser associada à imagem da

nação que se pretendia construir. Segundo Cristina Fonseca, proteger a criança, defender

seus direitos, significava por extensão resguardar a própria nação2. Questões relativas à

infância começaram a ganhar destaque e a assistência social à criança começou a surgir

como uma política de Estado.

A partir da criança se formaria o adulto forte, saudável, trabalhador e capaz de

levar o país ao progresso. Era necessário, portanto, trabalhar a criança, moldá-la como

futuro cidadão para mudar os rumos do país. Conforme afirmou Cristina Fonseca,

infância e nação entrelaçavam-se, formando assim um todo único, como bem indicam as

palavras de Getúlio Vargas ao afirmar “que é preciso plasmar na cera virgem que é a alma

da criança, a alma da própria pátria”. A partir de sua “plasticidade”, como algo ainda a

ser moldado, a criança seria capaz de absorver os novos hábitos – alimentares, higiênicos

e comportamentais – propostos pela ciência da época. (FONSECA, 2007)

Era preciso educar a população, ensinando-a a comer e o caminho para isso era

começar pelas crianças. Educar era inculcar, imprimir na criança o desejo consciente de

executar as ações esperadas por aqueles técnicos: se alimentar bem, lavar as mãos antes

das refeições, beber água, fazer as refeições nos horários, manter-se limpa. Educar até

que essas ações se tornassem rotina para as crianças, até que gostassem do que deveriam

comer. Conforme definiu o autor: (COSTA, 1948)

a educação alimentar é levar à consciência infantil a noção de que ‘um corpo

forte é governado por leis que precisamos respeitar’. E ainda mais: ‘devemos

inculcar-lhe a ideia de que o alimento deve ser escolhido pelo que irá realizar,

como ação útil, no organismo, e imprimir a noção de que, como regra social,

precisamos aprender a gostar do que devemos comer. Isso é também educar.

2 FONSECA, Cristina M. Oliveira. A saúde da criança na política social do primeiro Governo Vargas. Em:

Physis – Revista de Saúde Coletiva, vol. 3, nº 2, 1993, p. 102.

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Nesse sentido, a escola seria o local ideal para educação alimentar, que poderia ser feita

através de projetos, aulas teóricas e práticas, palestras e até efetivamente com a merenda

escolar.

Do ponto de vista de Dante Costa, a escola seria uma continuidade do lar. E de

certa forma, o lar seria um prolongamento da escola, no sentido de que ali seriam

colocados em prática os princípios inculcados na criança. O elo da conjunção casa/escola

seria, portanto, a merenda escolar. Costa, em seu livro Merendas Escolares, propôs 25

cardápios de merendas para serem preparadas no lar e levadas para a escola. Os menus

foram elaborados ponderando as especificidades das regiões do país, considerando os

alimentos disponíveis e, em certa medida, os hábitos alimentares daquela população.

Alguns cardápios de merenda sugeridos no livro exemplificam as propostas do

autor. É o caso da merenda número um. Feita para as regiões Nordeste e Sul do país3, tem

a peculiaridade de sugerir um pedaço de rapadura, doce muito comum nessa parte do país.

Além de ser um hábito na região comer rapadura, ela era também uma opção para o doce,

tão apreciado pelas crianças. Ao invés de comerem doces industrializados, elas comeriam

a rapadura, feita a partir da cana-de-açúcar.

Imagem 1: cardápio de merenda nº 14

3 Em 1941 os estudos da Divisão Regional do IBGE, sob a coordenação do Prof. Fábio Macedo Soares

Guimarães, sistematizaram as diversas “divisões regionais” do território que vinham sendo feitas,

estabelecendo uma única Divisão Regional do Brasil, aprovada em 1942 através da Circular nº 1 da

Presidência da República. Dessa forma, a divisão regional do país ficou dividida da seguinte forma:

REGIÃO NORTE – Amazonas, Pará, Maranhão, Piauí e Acre; REGIÃO CENTRO – Goiás, Mato Grosso

e Minas Gerais; REGIÃO LESTE – Bahia, Sergipe e Espírito Santo; REGIÃO NORDESTE – Ceará, Rio

Grande do Norte, Pernambuco, Paraíba e Alagoas; REGIÃO SUL – Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do

Sul, São Paulo e Rio de Janeiro.

http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/monografias/GEBIS%20-%20RJ/divisaoregionalbrasil.pdf

Acesso em 20 de dezembro de 2016.

4 Os cardápios do livro Merendas Escolares foram repetidos no livro Alimentação do Escolar. As imagens

foram digitalizadas desse livro devido a estar mais conservado que o Merendas Escolares e, portanto, nos

possibilitando aqui uma melhor visualização.

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FONTE: COSTA, Dante. Alimentação do Escolar. DF: Ministério da Educação e Saúde, 1948, p. 21.

A merenda número 10 foi proposta novamente para a região Nordeste e possui

dois alimentos muito comuns entre aquela população, a rapadura e o caju. A presença

dessa fruta na merenda era, possivelmente, para enriquecer a dieta da criança com

vitamina C, já que o caju era uma grande fonte dessa vitamina. Vencer os hábitos

alimentares da população brasileira era um grande desafio para os nutrólogos da época.

Um dos costumes mais combatidos era o de não comer frutas, ou comer sempre as

mesmas, sem variedade alguma. Para superar este obstáculo, os nutrólogos e

nutricionistas recorreram a algumas estratégias como os artigos publicados no Boletim do

SAPS e os conselhos dados no Consultório de Alimentação Popular, da mesma autarquia.

Principalmente durante as décadas de 1940 e 1950, as frutas típicas das diversas regiões

do país foram estudadas por pesquisadores, sobretudos os ligados ao SAPS. É o caso do

caju, que surgiu como queridinho dos nutrólogos após 1950, ano em que técnicos do

SAPS divulgaram os resultados de suas pesquisas destacando a fruta como uma das

principais fontes de vitamina C. Naquele mesmo ano o tema do baile de carnaval da

autarquia foi “No reino das vitaminas” e o rei desse reino era o caju. (FOGAGNOLI,

2011)

Imagem 3: cardápio de merenda nº 10

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FONTE: COSTA, Dante. Alimentação do Escolar. DF: Ministério da Educação e Saúde, 1948, p. 25.

A população do Amazonas também recebeu uma sugestão de merenda, um tanto

quanto exótica para nossa época e costumes nas demais regiões do país. No cardápio,

sanduíche de peixe com agrião acompanhado de ovo de tartaruga ou tracajá5. Dante Costa

parte de alimentos regionais para sugerir uma merenda rica em ferro, proteínas e fósforo6.

Imagem 4: cardápio de merenda nº 22

5 O tracajá é uma tartaruga de água doce encontrada nos rios amazônicos, possui cerca de 50 cm. Seus ovos

são apreciados na culinária local. Um dos pratos mais comuns com ovos de tracajá é o arabu (também

conhecido como mujangüê), uma mistura feita com os ovos, açúcar e farinha de mandioca.

6 Segundo a tabela de referências do autor. COSTA. Merendas Escolares. op. cit., p. 23.

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FONTE: COSTA, Dante. Alimentação do Escolar. DF: Ministério da Educação e Saúde, 1948, p. 31.

Essa e outras – para não dizer todas – merendas se mostravam um tanto quanto

dispendiosas para a maioria da população. Um inquérito alimentar realizado por Costa no

SAPS em 1942 mostrou que na capital federal muitas crianças escolares não faziam nem

a primeira refeição do dia de forma satisfatória – para os padrões nutricionais da época.

Em que pese a importância do estudo e das 25 sugestões de merendas elaboradas por

Dante Costa, deve-se questionar o seu alcance para a maior parte da população e refletir

que tipo de escolar tinha condições financeiras de levar sua própria merenda para a escola

e que tipo de merenda era essa. No entanto, nossa intenção aqui não é discutir a

aplicabilidade das sugestões de merenda, pois isso foge nosso alcance. O que se pretende

é discutir as propostas de Dante Costa para alimentação escolar a partir da observação do

que sugeriu como possíveis refeições. Importa-nos notar o que ele considerava como

“merenda ideal” e o quanto essa merenda estava alinhada aos preceitos da nutrição que

surgia naquele momento.

E a “merenda ideal” deveria ser elaborada a partir das especificidades das diversas

regiões do país. Considerando, na medida do possível, os hábitos alimentares que “não

poderiam ser esquecidos” (COSTA, 1943). Deveria também ser variada, com alimentos

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combinados harmonicamente do ponto de vista nutricional. E, claro, com um elemento

quase sempre presente, o leite.

Dante Costa e técnicos do SAPS fizeram um inquérito alimentar em 1942 que

buscou revelar a situação nutricional de uma parte dos escolares do Rio de Janeiro, capital

federal. O objetivo da pesquisa era identificar e mensurar a incidência de sinais de

desnutrição nas crianças pertencentes a famílias de trabalhadores. Os resultados da

pesquisa revelaram um quadro de desnutrição e doenças, chamando atenção dos

profissionais da saúde e da nutrição e de governantes para o problema. O resultado

imediato do inquérito foi a implantação do Desjejum Escolar no SAPS Central, um

programa de distribuição de uma refeição matinal para os escolares.

Apesar de toda problematização em torno dessas sugestões de merenda propostas

no livro, não se pode negar sua importância, pois colocaram a alimentação do escolar em

questão. Além das sugestões de merenda e o papel de importância a ela atribuído, Dante

Costa implementou o primeiro “projeto piloto” merenda escolar para os filhos dos

trabalhadores através dos desjejuns escolares do SAPS.

Como se pode notar, Dante Costa teve notável contribuição para alimentação dos

escolares. Em suas publicações, escreveu incansavelmente sobre esse tema e sua trajetória

profissional possibilitou que contribuísse de diversas formas nesse sentido. O caminho da

alimentação escolar no Brasil é profundamente marcado por seus esforços. A maior

política de assistência aos escolares do país foi, sem dúvida, a merenda escolar e a

contribuição de Costa foi fundamental para as possiblidades e caminhos desse ousado

projeto de alimentar uma “pequena nação”.

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