criação do mundo no antigo egito [ogdoade]

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313 Rogério Ferreira de Sousa Instituto das Ciências da Saúde – Norte O Imaginário simbólico da criação do Mundo no antigo Egipto 1 Eu louvo a tua perfeição (...), Deus venerável do primeiro tempo, Que fez a humanidade e criou os deuses, Ser primevo que lhes deu vida, Que lhes falou no seu coração, Que os viu crescer Que enunciou o que nunca aconteceu E concebeu o que existe. Nada cresceu sem ti 2 . Resumo Apresentamos neste artigo as principais características do pensamento cosmogónico do antigo Egipto. Começando por delinear alguns aspectos relacionados com a cosmovisão egípcia, prosseguimos com a definição da linguagem simbólica especificamente relacionada com a criação do mundo. Depois de traçado este quadro apresentamos as características essenciais das tradições cosmogónicas de Hermópolis, de Heliópolis, de Mênfis e de outros centros cultuais do Egipto. Abstract This paper analyzes the main features of the cosmogonist thought of Ancient Egypt. We begin with an overview of some features of the Egyptian worldview, followed by the definition of the symbolic language which is specifically related with the creation of the world. We conclude by presenting the key aspects of the cosmogonist traditions of Her- moupolis, Heliopolis, Memphis and other Egyptian cult centres. 1 Este texto é dedicado ao muito estimado Professor Geraldo Coelho Dias e constitui uma singela homenagem ao modo como soube sempre aliar o rigor científico à profundidade espiritual dos seus ensinamentos. 2 Hino de louvor, a Ptah em ALLEN, Genesis in Ancient Egypt, p. 39.

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Mitologia Egipcia.

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313O IMAGINRIO SIMBLICO DA CRIAO DO MUNDO NO ANTIGO EGIPTORogrio Ferreira de SousaInstituto das Cincias da Sade NorteOImaginriosimblicodacriaodo Mundo no antigo Egipto1Eu louvo a tua perfeio (...),Deus venervel do primeiro tempo,Que fez a humanidade e criou os deuses,Ser primevo que lhes deu vida,Que lhes falou no seu corao, Que os viu crescer Que enunciou o que nunca aconteceu E concebeu o que existe.Nada cresceu sem ti2.Resumo Apresentamos neste artigo as principais caractersticas do pensamento cosmognico do antigo Egipto. Comeando por delinear alguns aspectos relacionados com a cosmoviso egpcia,prosseguimoscomadefiniodalinguagemsimblicaespecificamente relacionada com a criao do mundo. Depois de traado este quadro apresentamos as caractersticasessenciaisdastradiescosmognicasdeHermpolis,deHelipolis,de Mnfis e de outros centros cultuais do Egipto. AbstractThispaperanalyzesthemainfeaturesofthecosmogonistthoughtofAncientEgypt. We begin with an overview of some features of the Egyptian worldview, followed by the definition of the symbolic language which is specifically related with the creation of the world. We conclude by presenting the key aspects of the cosmogonist traditions of Her-moupolis, Heliopolis, Memphis and other Egyptian cult centres.1 Este texto dedicado ao muito estimado Professor Geraldo Coelho Dias e constitui uma singela homenagemaomodocomosoubesemprealiarorigorcientficoprofundidadeespiritualdosseus ensinamentos.2Hino de louvor, a Ptah em ALLEN, Genesis in Ancient Egypt, p. 39.314ROGRIO FERREIRA DE SOUSAIntroduoComo em todos os tempos, no antigo Egipto, a temtica da origem do mundo foi alvo de um enorme interesse e suscitou a elaborao de uma grande variedade de especulaes teolgicas. Devido extenso do tema e tendo bem em mente que cada um dos aspectos que aqui nos propomos abordar poderia conduzir, por si s, a uma monografia, apresentamos, neste pequeno texto, as principais noes que permitem compreender a linguagem simblica utilizada nos mitos egpcios da criao. Quando analisamos os mitos cosmognicos do Egipto deparamos, em primei-ro lugar, com uma desconcertante heterogeneidade de formulaes mitolgicas que, desafiando toda a lgica, apresentam contradies evidentes. A explicao para esta diversidade reside, em primeiro lugar, no carcter regional da religio egpcia. Os templos locais tiveram, desde o Neoltico, um papel decisivo na coeso social e cultural das comunidades implantadas ao longo do vale do Nilo. Nestes centros foram elaboradas diferentes verses da criao que evoluram de forma relativamente independente entre si. Quando, no incio do III milnio, o Alto e o Baixo Egipto foram unificados politicamente sob a gide da casa real tinita, os principais centros espirituais ligados a esta monarquia recm criada3 elaboraram novas verses mticas da criao que se tornaram preponderantes em relao s restantes. As verses cosmognicas que conhecemos actualmente provm, deste modo, de uma lenta justaposio de imagens e de smbolos que se verificou ao longodemilnios.Assntesesteolgicasmaiscomplexasforammuitasvezeso produtodenovasleituraseinterpretaesdemitosmaisantigos.Paraoleitor contemporneo, o resultado desta evoluo pode afigurar-se bastante intrincado e pouco coerente. Ela reflecte, no entanto, duas importantes caractersticas do pensamento religioso do antigo Egipto. A tendncia para a conservao, por um lado, preservou smbolos que, apesar de contraditrios com outras explicaes, continuaram a ser veiculados e respeitados. A tendncia para a justaposio e a indiferena pela linearidade da lgica permitiram, por outro lado, que as dife-renasteolgicas,mesmoasmaiscontraditrias,nuncafossemperspectivadas como inaceitveis.Asfontesquedispomosparaacederaopensamentocosmognicoegpcio so,tambm elas,extremamente heterogneas. Documentos alusivoscriao do mundo so datveis de todas as pocas do Egipto, desde o Imprio Antigo (c. 2700-2160 a. C.) at ocupao greco-romana (332 a. C.-395), testemunhando umaproblematizaoconstantementerenovadaereactualizadaemtornodo 3Osprincipaiscentrosreligiososligadoscoroagravitavamemtornodasedeadministrativa dopoderpoltico.Mnfis,anovacapitaldoEgiptounificado,eHelipolisdominaramtotalmenteo panorama cultural do Egipto ao longo de todo o III milnio. Nestas cidades, importantes santurios como o de R, em Helipolis, e o de Ptah, em Mnfis, regeram a vida espiritual e religiosa do pas, irradiando a sua influncia para as regies mais perifricas.315O IMAGINRIO SIMBLICO DA CRIAO DO MUNDO NO ANTIGO EGIPTOproblema das origens. Os textos mais antigos, redigidos no interior das pirmides do rei Unas (2375-2345 a. C.) e dos faras da VI dinastia (2345-2181 a. C.), fazem inmeras referncias a mitos que foram, com toda a probabilidade, elaborados muito antes e que podem remontar ao alvorecer do IV milnio4.A maior parte destes documentos raramente apresenta um relato organiza-doecompletode umacosmogonia.ApenasaTeologiaMenfita,umtextoque apresentaaversodacriaodomundoorquestradapelodeusPtah5,possui uma coeso didctica e explicativa. Na maior parte das vezes, as referncias cos-mognicas consistem apenas em breves aluses dispersas em frmulas mgicas, hinos religiosos e outros textos diversos6. Estas referncias indirectas traam um quadro que permitem identificar trs grandes centros espirituais responsveis pelas correntes cosmognicas mais influentes: Helipolis, Mnfis e Hermpolis. Estas tradies dominantes no deixaram, no entanto, de influenciar outros importantes centros cultuais, como Tebas, Elefantina ou Esna, que tambm desenvolveram verses prprias.Paraldadiversidadeedascontradies,surpreendenteconstatarque, subjacenteatodososrelatos,seencontraimanenteumimaginriosimblico inesperadamentecoerenteeatuniforme.esseimaginriocomumquenos propomos, desde j, caracterizar.1. Elementos simblicos da criaoA estrutura do cosmos: cu, terra, mundo inferior e caos Aconcepoegpciadocosmoseloquentementeilustradanasrepre-sentaesquemostramadeusaNut,personificandoocu,suspensasobrea terra, o deus Geb, atravs da aco de Chu, o deus do ar e da atmosfera. Debaixo dosolestendia-seocosmos,odomniodaluzedavida,aopassoque,para ldasfronteirasdocuedaterra,estendia-seocaos,aescurido,osilncio eainrcia.Aestecaosqueenvolviaomundo,osegiptlogosdoonomede Nun.7 Nos textos egpcios, no entanto, a palavra utilizada para designar a regio exterioraocosmosnu,termoquesignificaguaou,maiscorrectamente, 4 SAUNERON e YOYOTTE, La naissance du monde..., p. 20.5 O deus Ptah, a principal divindade cultuada em Mnfis, comeou por ser um deus associado aos artesos. Mais tarde, medida que se foi identificando com Tatenen, um deus criador cultuado na regio menfita, a personalidade demirgica de Ptah foi ganhando mais visibilidade. Era tambm um deus com fortesconotaestelricasqueoassociaramquerstemticasdaregeneraoedafertilidadequerao horizonte funerrio. Sobre o deus ver ARAJO, Ptah, em Id. Dicionrio do Antigo Egipto, pp. 717-718.6sobretudonaliteraturafunerriaqueseconcentramasalusessdiferentestradiescos-mognicas. Os Textos das Pirmides, redigidos no interior das pirmides reais do Imprio Antigo, mas tambmOsTextosdosSarcfagos(doImprioMdio)eoLivrodosMortos(doImprioNovoe poca Baixa) apresentam abundantes aluses criao do mundo.7NarealidadeNunumavocalizaocoptaquederivadaexpressoegpcianni,quesignifica inerte.316ROGRIO FERREIRA DE SOUSAgua primordial8. Estas guas formavam um oceano infinito e esttico que se estendia acima do cu e se prolongava para o mundo inferior, dando origem gua que alimentava os rios e os oceanos da terra9. A ligao entre o cu e a gua era de tal forma estreita que o nome da deusa do cu, Nut, significava A que pertence gua. Congruente com esta perspectiva lquida do cu, o deus R, ao percorrer os cus durante o dia, fazia-se deslocar numa barca10. Omundoinferioreraumaoutraregioqueestavasituadadebaixoda terraepossuaumanaturezaambgua.EstaregionebulosaqueosEgpcios denominavam Duat, tinha um enorme valor simblico pois era a terra dos deuses e dos mortos11. Era tambm um mundo invertido, onde pululavam os monstros e onde os mortos se deslocavam de pernas para o ar correndo assim o abominvel risco de comer as suas prprias fezes12. A pior das ameaas do mundo inferior eraprotagonizadapelomaistemvelinimigodosol:Apopisaserpenteque personificava as trevas e que combatia a luz. Apesar deste carcter ameaador, a Duat era igualmente o local onde reinava Osris, o deus dos mortos, e onde se verificava o mais prodigioso mistrio csmico: a unio do disco solar (R) com o seu cadver (Osris), a qual garantia a regenerao do astro e a manuteno da grande engrenagem csmica13.O percurso dirio do Sol entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos obrigava a postular a existncia de passagens entre os mundos. Estas fronteiras eramsimbolizadaspelasbelasimagensdosleesdoOntemedoAmanh,os guardies que assistiam o sol no seu nascimento e no seu ocaso14. Em conjunto, o cu, a terra, a atmosfera e a Duat, constituam os elementos que faziam parte do mundo povoado pelos homens, pelos mortos e pelos deuses. Apesar da sua amplitude, este mundo no passava de uma bolha luminosa e viva no meio de uma imensido escura, fria e inerte. Esta viso do mundo foi o ponto de partida para todas as cosmogonias15.8 Este termo distinto do vocbulo mw que tambm significa gua. Ver FAULKNER, Concise Dictionnary of Middle Egyptian, p. 105.9 ALLEN, Genesis in Ancient Egypt, p. 4.10 A barca diurna de R tinha o nome de mandjet.11 Noutros casos a Duat associada ao cu, sendo ento identificada com o interior do corpo da deusa Nut que, de acordo com essas verses, o sol atravessa durante a noite. De qualquer forma, a Duat aparece sempre como uma extenso ou de Nut, o cu, ou de Geb, a terra.12 Sobre os vrios temores da morte consultar ZANDEE, Death as na enemy according to ancient egyptian conception, Brill, Leiden, 1969.13 Para aprofundar esta temtica consultar ASSMANN, Mort et lau-del dans lgypte ancienne, pp. 282-320.14 ALLEN, Genesis in Ancient Egypt, p. 6. A Grande Esfinge de Guiza evoca precisamente a funo protectoradestesanimaismticosquevelamparaqueapassagemdosolentreosmundodecorrasem anomalias.15 Para uma descrio mais detalhada da cosmologia egpcia consultar LESKO, Ancient Egyptian Cosmogonies and Cosmology, pp. 116-122.317O IMAGINRIO SIMBLICO DA CRIAO DO MUNDO NO ANTIGO EGIPTOA colina primordialComo vimos, o mundo anterior criao era visualizado como um oceano primordial, o Nun, cujas guas caticas continham, em potncia, toda a criao. Na religio egpcia, o papel das guas do Nun era ambivalente e revestia-se de um significado simultaneamente negativo e positivo. semelhana da cheia que submergiatudomasfertilizavaosolodoEgipto,oNuninfinito,semforma, catico e insondvel era tambm a fonte da regenerao do mundo e continha, em potncia, todas as possibilidades da criao16. Foi deste mundo informe que emergiu um elemento essencial das cosmogonias egpcias que assinalava o incio da criao: a colina primordial. Baseando-se no fenmenoanualdascheiasdoNiloque,medidaqueseretirava,deixava vistapequenaselevaesdeterrafirme,ostelogosegpcios,concentraram nessa imagem todo o poder evocativo do incio do mundo. Na maior parte dos casosacolinaprimordialconsubstanciou-seaoprpriocorpodocriador.Em Helipolis esta colina era vista como a corporizao de Atum, mas em Mnfis era tida como o corpo de Ptah-Tatenen. Em Hermpolis, onde tambm estava presente, a colina primeva era evocativa da gdoade17. De uma forma geral, a colinaprimordialilustravaasduasfacetaslatentesnaMnadeinicial:porum lado possua uma dimenso ctnica, associada aos poderes generativos da terra, por outro, revestia-se de uma dimenso solar, j que era desta colina que o deus sol, na forma de uma criana, emergira e iniciara a criao do mundo.Unidade e dualidadeComoaprprianaturezadocaosdesafiavaqualquertentativade compreenso, o mundo anterior criao era caracterizado como uma negao da criao. A melhor forma de o descrever era atravs da enumerao dos aspectos que nele estavam ausentes, ou seja, atravs da no-existncia. Deste modo, antes da criao no havia humanidade, nem deuses, nem vida, nem morte:O rei foi concebido pelo seu pai Atum antes do cu ter existido, antes da terra ter existido, antes da humanidade ter existido, antes dos deuses terem nascido, antes da prpria morte existir18.A diferena entre o caos primordial e a criao era expressa atravs do con-traste entre a unidade e a multiplicidade, o qual foi traduzido numericamente na oposio entre o um e o dois. Na numerologia sagrada, a unidade exprimia a inrcia do caos anterior criao, ao passo que duas coisas exprimiam a diver-sidade da criao. Por essa razo dizia-se que, antes da criao, no havia duas coisas19. Na tradio heliopolitana, todo o dinamismo da criao se originou com 16 TOBIN, Creation Myths, em REDFORD, Oxford Encyclopedia of Ancient Egypt, Vol. II, p. 469.17 A gdoade hermopolitana rene quatro casais de deuses que so responsveis pela criao do sol.18 Textos das Pirmides, 1466.19 Textos dos Sarcfagos, II, 396 b; III, 383 a.318ROGRIO FERREIRA DE SOUSAo nascimento do primeiro par, Chu e Tefnut20. A diferenciao sexual, a separao entre o princpio masculino e o feminino assinalava assim o incio da criao. Da oposiocriativaentredoiselementosantagnicosecomplementaresnasciao trs, nmero que traduzia toda a complexidade e diversidade da criao. Trs coisas e milhes constituam, deste modo, manifestaes do mesmo fenmeno: a diversidade do mundo criado21.O criador mediava e separava a existncia da no existncia. Ele era o ser ori-ginal que emergiu do Um. Dessa unidade indivisvel, o criador rasgou a pluralidade dos seres que formaram a criao. A emergncia de duas coisas possua, do ponto de vista religioso, um enorme significado pois simbolizava o momento inaugural da criao, aquele em que o demiurgo criou os princpios antagnicos indispensveis para cunhar o cosmos com o dinamismo necessrio sua perptua transformao. o significado csmico do nmero dois que explica a natureza dualista da monarquiaegpcia22.Emboraunidopoliticamente,dopontodevistareligioso era imperioso que o Egipto nunca deixasse de conservar a sua identidade dual. Lembremos que, na terminologia oficial, nunca existiu um termo para designar o Egipto23. Pelo contrrio, o Alto e o Baixo Egipto foram sempre mantidos como entidades distintas de modo a evocar a funo demirgica do poder real24. Atravs do equilbrio que era mantido entre as Duas Terras, bem patente no motivo ico-nogrfico do sema-taui25, o fara identificava-se com Atum responsabilizando-se assim pela recriao do universo inaugurado pelo deus do sol.20 Para alguns autores Chu era o deus da atmosfera superior, ao passo que Tefnut, representada com cabea de leoa, personificava a humidade e a atmosfera inferior da Duat (Ver ALLEN, Genesis in Ancient Egypt, p. 9). Para outros, este par primordial constitui a personificao do ar (Chu) e do fogo (Tefnut).Ver ASSMANN, Mort et lau-del dans lgypte ancienne, p. 48.21Estasconcepesnumricastraduziram-seeloquentementenaescritahieroglficaatravsda distino entre o plural dual e o plural comum aplicado indiferentemente a todos os agrupamentos maiores ou iguais a trs elementos. Trata-se, ainda hoje, de um trao comum nas lnguas de influncia semita.22 A insistncia e profuso das manifestaes dualistas presentes na definio do programa real atesta bem a importncia do seu significado. A coroa real, em primeiro lugar, uma coroa dupla, o chamado pa-sekhemty, ou seja, As Duas Poderosas, composto atravs da sobreposio da coroa branca, evocativa do Alto Egipto, com a coroa vermelha, evocativa do Baixo Egipto. Evocando a unio dos princpios masculino (coroa branca) e feminino (coroa vermelha), a coroa dupla manifestava o poder criativo de Atum, razo pelaqualoprincipalatributoiconogrficodestedeus.Tambmnatitulaturarealsemanifestavao carcter dual do seu poder: o ttulo das Duas Senhoras, bem como o ttulo de rei do Alto e do Baixo Egipto, definiam o papel criativo do poder real. Ver BONHME e FORGEAU, Pharaon, pp. 102-110.23OEgiptoeranormalmentedesignadopelotermoKemitquesignificaANegra.Apalavra, aludindo ao solo frtil do Egipto, no designa a realidade poltica do pas, mas sim o cho geogrfico. Do ponto de vista poltico, o Egipto foi sempre intitulado As Duas Terras.24Osdoisreinos,reunidossobreoduplotronodofara,nuncapoderiamtornar-senumanica entidade, uma vez que isso seria equivalente a efectuar um regresso catastrfico ao caos primordial. 25Osema-tauiummotivoiconogrficoquerepresentaasduasplantasherldicasdoAltoedo Baixo Egipto, o ltus e o papiro, respectivamente, reunidas em torno do smbolo hieroglfico que significa unio. 319O IMAGINRIO SIMBLICO DA CRIAO DO MUNDO NO ANTIGO EGIPTOO criadorO ser que desencadeou a multiplicidade do universo, no possua a mesma natureza em todos os relatos. De uma forma geral podemos distinguir dois tipos de demiurgos, os que se geraram a si prprios ou os que resultaram da criao de outros seres.A viso de um criador auto-gerado era partilhada pelas tradies heliopolitana e menfita que explanaremos posteriormente. Nestes casos,o demiurgo veio existncia atravs de si mesmo. Esta concepo pressupe uma certa indefinio entre o criador e o Nun. O vir existncia, em egpcio, kheper, no traduz um nascimento, mas sim uma transformao, uma mudana de forma. Nestas tradi-es, o criador surgira atravs de uma mutao de si prprio. De uma sonolncia inicial, onde o criador se manifestava como Nun, o deus primordial passou ao estado consciente e activo, espoletando ento a criao do mundo26.Paralelamente aos centros de Helipolis e Mnfis, que reconheciam a exis-tnciadeumcriadorauto-gerado,verificou-seumaoutratendnciateolgica que admitia que, embora o sol fosse o criador do universo, outra ou outras di-vindades o haviam gerado: eram os proto-criadores. A tradio hermopolitana, mas tambm outras versesregionaismais arcaicas,partilhavam esta crena27. Em Hermpolis, era a gdoade a responsvel pela gestao do criador, mas em Esna o proto-criador era Neit28, sob a forma de Mehetueret29, uma deusa bovina, que concebera R.A ordem, o caos e a monarquia divinaAo exercer a sua actividade criadora o demiurgo no anulou o caos. Contor-nando o cosmos, como uma gigantesca serpente, o Nun continuou sempre a existir nas fronteiras da criao, obrigando a que o cosmos e o caos estabelecessem uma relao dualista, da qual, em ultima anlise, resultava a ordem csmica30. Na verdade, o cosmos estava intimamente ligado ao caos e dependia deste para sobreviver31. A desejada regenerao do mundo s era possvel no exterior do 26 SAUNERON e YOYOTTE, La naissance du monde, p. 28.27Ibidem, p. 36.28 Uma das deusas mais antigas do Egipto, Neit possua uma natureza complexa que compreendia umaspectoguerreiro(quemotivouasuaidentificaocomadeusaAtena),mastambmumafaceta materna e criadora. Nesta funo era identificada com Mehetueret. Ver WILKINSON, The Complete Gods and Goddesses, p. 157.29Mehetueret,cujonomesignificaAGrandeCheia,corporizavaospoderesprocriativosdo oceano primordial, identificado com a cheia do Nilo. De acordo com o mito, a deusa emergira das guas doNunederaluzodeussol,colocando-o,emseguida,entreacornamenta.Comomuitasdeusas bovinas, Mehetueret estava associada ao cu, visto como um mar celeste onde navegava a barca de R. Ver Ibidem, p. 174.30 Ver CARREIRA, Filosofia antes dos Gregos, pp. 54-59.31 Os dois grandes princpios da ordem csmica, o sol e o Nilo, estavam relacionados com o caos e no podiam existir sem ele. Com efeito, era no mundo inferior, resduo das foras do Nun, que o sol efectuava 320ROGRIO FERREIRA DE SOUSAcosmos. Para rejuvenescer era preciso sair da influncia do tempo e mergulhar no Nun, onde as foras que regiam o cosmos, como o tempo, no se faziam sentir32. Deste modo, embora o caos constitusse uma ameaa sempre constante ordem csmica, a maet, era nas foras desagregadoras do Nun que o cosmos voltava sua pureza primordial33. esta relao dinmica entre o cosmos e o caos que explica que, no pen-samentocosmognicodoantigoEgipto,acriaotenhasemprepermanecido incompleta. Na verdade, ao contrrio da tradio bblica, as cosmogonias egp-cias no apresentavam o mundo como uma obra acabada do criador. O carcter inacabado da criao, longe de ser encarado como uma imperfeio, garantia a sua renovao peridica. Era justamente esta viso que conferia monarquia faranicaoseucarcterdemirgico,jquecabiaaoreiprosseguiratarefade completar a criao divina. Esta ideia reflectiu-se na prpria contagem do tempo, a qual retomava o zero inicial no incio de cada reinado. Desta forma, ao subir ao duplo trono de Atum, o fara fazia emergir as Duas Terras do caos, relanando-as numa nova era. A importncia da realeza na manuteno da ordem csmica contrasta viva-mente com o estatuto que a humanidade usufrui nas cosmogonias egpcias, as quais esto longe de lhe conferir a centralidade patente na verso hebraica da criao. A tradio heliopolitana refere que Chu e Tefnut se haviam perdido na imensido do cosmos, razo pela qual Atum enviou o seu Olho para os encontrar. Ao reencontrar a sua prole, Atum chorou e dessas lgrimas nasceu a humanidade34. Se a origem divina da humanidade est implcita neste mito, a criao dos homens parece mais resultante do acaso do que de uma inteno do demiurgo em coroar a criao, como acontece no caso do Antigo Testamento. Tal no impediu, no entanto, que o rei tivesse assumido um papel decisivo na conservao da criao. Era ele que envolvia a humanidade em torno de um compromisso que a unia ao criador. O demiurgo fez a sua parte, mas cabia humanidade velar pela sua obra para que ela permanecesse pura como no primeiro dia. Nesta responsabilidade residia a principal funo da monarquia. Sempre retrospectiva, a aco real colocava-se no momento inaugural da criao, aquele em que duas coisas foram geradas a partir da unidade inicial, informe e inerte. Obrigando o marcador inexorvel do secretamente a sua regenerao quotidiana. Do mesmo modo, o Nilo, atravs da cheia, trazia o potencial regenerador do Nun para garantir a fertilidade do Egipto. Tambm os humanos viviam em estreita ligao s foras do Nun. O sono, por exemplo, era tido como um regresso temporrio ao Nun, durante o qual se restabeleciam as foras do organismo.32 Sobre as concepes religiosas do tempo no antigo Egipto ver HORNUNG, Time in the Egyptian Netherworld, Cadmo, 11 (2001), pp. 7-13.33 HORNUNG, LUn et le Multiple, pp. 136-150.34 Este quadro mitolgico muito curioso j que recorre a um jogo lingustico que pe em evidncia umcertoparalelismoentreostermoshumanidade(remetje umcertoparalelismoentreostermoshumanidade( umcertoparalelismoentreostermoshumanidade( )elgrimas(remut )elgrimas( )elgrimas( ).Paraconsultarasremut remutverses hieroglficas destes termos ver GARDINER, Egyptian Grammar, p. 578.321O IMAGINRIO SIMBLICO DA CRIAO DO MUNDO NO ANTIGO EGIPTOtempo a retomar o zero original, cada fara inaugurava, ao subir ao trono, uma nova era com a qual regenerava o universo inteiro. Atravs da sua assimilao ao imaginrio cosmognico, a monarquia egpcia enriquecia-se assim com um sentido religioso que fazia participar a ordem poltica na ordem csmica.2. As principais cosmogoniasComojreferimos,osmitoscosmognicosmaisimportantesforam elaborados em alguns dos principais centros de culto do Egipto, como Helipolis, MnfiseHermpolis35.Longedeprocurarumasnteseteolgicaentreestes templos, os sacerdotes egpcios nunca tentaram eliminar a diversidade original. Almdomais,comoveremos,asdiferenasentreestasverseserammais evidentes na linguagem e nos smbolos utilizados do que na mensagem veiculada. Efectivamente,umaanlisemaisdetalhadaindicaque,dissimuladaporuma linguagem e uma simbologia aparentemente contraditria, os vrios relatos da criao fornecem uma viso profundamente coerente entre si.A perspectiva hermopolitanaAcidadedeHermpolis,noMdioEgipto,constituiu,duranteoperodo histrico do Egipto, um dos principais centros de culto do deus Tot (ou Djehuti, como era denominado em egpcio), cujos smbolos eram a bis e o babuno. Deus dalua,Tottutelavaocalendriomastambmoshierglifos,(oumedu-netjer, em egpcio, ou seja, as palavras divinas). Senhor do conhecimento sagrado, os Gregos compararam-no a Hermes, razo pela qual denominaram a sua cidade de Hermpolis.Apesar da sua preponderncia na cidade, Tot no participou na cosmogonia hermopolitana,aqualdestacavaopapeldeoitodivindadesprimordiais,que formavam a, j referida, gdoade hermopolitana. Infelizmente, esta cosmogonia s conhecida por aluses indirectas e bastante tardias feitas a partir das outras tradies cosmognicas. O nome egpcio da cidade, Khemunu, ou seja, A (cidade) dos Oito, testemunha, no entanto, a antiguidade do mito cosmognico. Este mito poder mesmo ser o mais antigo dos relatos da criao36.De acordo com a perspectiva hermopolitana, as oito divindades primordiais repartiam-se em quatro pares de casais, cada um deles associados a um elemento particular do caos inicial: Nun e Naunet personificavam a gua, Heh e Hauhet, 35 Embora ainda aguarde publicao, uma boa e sucinta apresentao do imaginrio simblico da criao pode ser encontrada em SILVA, O Cosmos Egpcio, pp. 4-29. Uma sntese sobre as principais tra-dies cosmognicas pode tambm ser encontrada em SALES, Cosmogonia, em ARAJO, Dicionrio do Antigo Egipto, pp. 243-246.36 TOBIN, Creation Myths, em REDFORD, Oxford Encyclopedia of Ancient Egypt, vol. II, p. 470.322ROGRIO FERREIRA DE SOUSAo Infinito, Kek e Kauket, a Escurido e Amon e Amonet identificavam-se com oInsondvel,oOculto37.Oselementosmasculinosdestasdivindadeseramre-presentados como rs, ao passo que os elementos femininos eram representados como serpentes38. Atravs da sua prolfica unio sexual, os elementos da gdoade tornaram-se os pais e as mes do deus sol. Vrias verses descrevem o nas-cimento do astro. Numa destas tradies, o sol nasceu do ovo csmico, colocado pela gdoade39:A lenda conta que, no meio das guas primordiais do abismo inicial, surgiu uma ilha onde mais tarde se formaria a cidade de Hermpolis: a Ilha do Fogo. Nesse local depositaram os oito deuses um ovo, de onde nasceu o Sol (o deus R) progenitor de todo o mundo40.Outra tradio hermopolitana referia que o sol brotara do ltus primordial41. Nesta verso, o sol nasceu, sob a forma de uma criana, entre as ptalas desta flor dando origem primeira manh do mundo: Incandescente pelos raios solares da alvorada, a Ilha do Fogo emergiu das guas abissais do caos primordial. O ltus divino, flutuando nas guas, recebeu o smen da gdoade e concebeu. Ao abrir as ptalas, surgiu um menino solar, criando e iluminando tudo em seu redor42.Noutras verses a gdoade no terminou aqui a sua realizao. Depois de fazer nascer a luz, os oito deuses puseram em marcha a montagem do universo e a instalao da ordem csmica criando a idade de ouro do universo.Como se torna evidente, a tradio hermopolitana deu mais relevo origem dos fenmenos naturais do que ordem poltica, totalmente ignorada43. Tal no foi o caso das restantes cosmogonias egpcias cujas linhas gerais iremos apresentar em seguida. 37Estacaracterizaodomundoanteriorcriaolembracuriosamenteorelatobblico:No princpio quando Deus criou os cus e a terra, a terra era informe e vazia, as trevas cobriam o abismo e o esprito de Deus movia-se sobre as guas (Gn 1, 1-2).38 Como sempre acontece na iconografia egpcia, as formas animais procuram enfatizar e definir a natureza das divindades. Neste caso, as rs e as serpentes constituem uma aluso fertilidade e obscuri-dade dos tempos primordiais, respectivamente.39 Sobre o simbolismo do ovo csmico ver LEFEBVRE, LOeuf Divin dHermopolis, ASAE 23 (1923), pp. 65-67. Por vezes o ganso celestial vem referido no feminino como a Grande Grasnadora.40 HALL, gdoade, em ARAJO, Dicionrio do Antigo Egipto, p. 640.41 O rico imaginrio cosmognico do ltus reflecte-se, por exemplo, nas cerimnias de oferenda do Grande Ltus, uma jia feita de ouro e de lpis-lazli.42 Para reforar a forte carga potica desta imagem adaptmos o, j de si muito belo, texto de HALL, gdoade em L. ARAJO, Dicionrio do Antigo Egipto, p. 641. Os telogos hermopolitanos utilizavam assimafamiliarimagemproporcionadapelainundaoparailustraracriaodomundo:davastido da gua da cheia, emergiam as pequenas colinas de terra, de onde brotavam os primeiros botes de ltus anunciadores de um novo ciclo de vida na Terra Negra.43 Este justamente um dos argumentos a favor do carcter arcaico deste mito e da sua anterioridade em relao aos restantes.323O IMAGINRIO SIMBLICO DA CRIAO DO MUNDO NO ANTIGO EGIPTOA perspectiva heliopolitanaIunu, a cidade do culto solar, conhecida entre os Gregos como Helipolis, foi o maior centro religioso e cultual do Egipto. No seu templo era venerado o deus solar nas suas trs manifestaes: Khepri (o sol nascente), R (o sol do meio dia) e Atum (o sol poente). A se cultuava tambm o benben, um monlito associado colina primordial e que constituiu a inspirao para a concepo das pirmides e dos obeliscos44.A teologia solar, a concebida desde a mais remota antiguidade, foi decisiva para a vida religiosa do Egipto. A associao de R monarquia consolidou-se na IV dinastia (c. 2600-2500 a. C.) e, apesar da ascenso de Amon e de Osris, o velho deus solar de Helipolis permaneceu sempre uma divindade de alcance nacional.AseforjouomaisdifundidorelatocosmognicodoantigoEgipto, protagonizado por nove deuses, a Enade (Pesedjet, em egpcio). Apesar de no existir nenhum relato que nos explique directamente a sucesso dos acontecimentos mticos protagonizados pela Enade, a cosmogonia de Helipolis transparece em abundantes aluses nos Textos das Pirmides, nos Textos dos Sarcfagos e no Livro dos Mortos45.Esta cosmogonia enfatizava naturalmente o papel do deus sol na criao do mundo, descurando quase totalmente a caracterizao do caos inicial, que, na cosmogoniahermopolitana,tinhaumpesomuitomaissignificativo.Averso heliopolitana debruava-se assim sobre um momento diferente da criao, o que, em parte, explica as suas diferenas em relao tradio hermopolitana. O primeiro deus da Enade foi Atum, a divindade suprema que deu origem criao46. O nome Atum47, deriva do verbo tem e o seu significado estranha-menteambguo.Porumladopodesignificarcompletarouterminar,por outro tambm pode significar no existir. Embora de significado paradoxal, Aquele que se completou, ou o que deixou de existir, so tradues igualmente possveis do seu nome48. 44 Para aprofundar o extraordinrio impacto da cidade de Helipolis na civilizao egpcia consultar QUIRKE, The cult of Ra: Sun Worship in Ancient Egypt, Thames and Hudson, Londres, 2001.45 Estes textos funerrios so recolhas de frmulas que procuravam garantir a sobrevivncia do de-funto no Alm e a sua iniciao ao crculo das divindades. A abundncia de aluses permitiu reconstituir a sucesso de acontecimentos que aqui descrevemos.46Nasimbologiaegpciadosnmeros,onovepossuiumsignificadodecisivoecomplexoque seprende,porseuturno,comosignificadodonumerotrs,oqualserelacionacomamultiplicidade quecaracterizaacriao.Dadoqueonoveseobtmatravsdetrsrepetiesdonumerotrs,esta multiplicidadereveste-sedeumsignificadoexponencial,enunciandoatotalidadedadiversidadedos elementos criados. Aplicado ao plano divino, como o caso, a Enade pode tambm evocar a totalidade das divindades. 47 De notar o lao lingustico patente entre Nefertum e Atum, j que o primeiro nome resulta da conjugao de Nefer (Bom, Belo ou, como parece ser o caso, Jovem) com o prprio Atum. Nefertum , deste modo, o deus Atum numa manifestao juvenil.48 ALLEN, Genesis in Ancient Egypt, p. 9.324ROGRIO FERREIRA DE SOUSADe acordo com as aluses conhecidas, Atum emergiu do oceano primordial criando-se a si mesmo49. Em certos relatos, a criao do mundo comeou com a masturbao de Atum que, ao ejacular, originou Chu (representado no fluxo de energia associado libertao do smen)50 e Tefnut (identificada com o potencial fecundador do smen)51. Devido sua indispensvel colaborao no processo cria-tivo, a mo do demiurgo acabou por merecer uma hipostizao sob a forma da deusa Iusas que assim se tornava no princpio feminino subjacente criao52.Como j referimos anteriormente, o significado cosmolgico da criao de Chu e Tefnut ambguo. No entanto, parece consensual que este par primordial corporizavaadiferenciaodualistaentreoprincpiomasculinoeoprincpio feminino que perpassa por toda a criao. Uma vez constitudo, o casal primordial deu origem a duas outras divindades, Geb, o deus da terra, e Nut, a deusa do cu,originandoassimoreferencialespao-tempoquemarcaosciclosdavida humana.Daunioentreadeusacelestecomodeusdaterranasceramdois outros pares de deuses: Osris e sis, por um lado, e Set e Nftis, por outro. Esta gerao representava os elementos que caracterizam a paisagem egpcia. sis e Osris eram conotados com a terra frtil e com as guas da cheia, ao passo que Set protagonizava as foras hostis e desagregadoras do deserto53.Modelo do rei bom e civilizador, Osris foi, de acordo com o mito, assassinado peloinvejosoirmo.Nasequnciadessecrime,siseNftis,conseguiram ressuscitar Osris tornando-o, dessa forma, no rei do mundo inferior. Um ltimo elemento, exterior Enade, estabelecia um elo entre a criao do mundo e o plano humano e poltico. Tratava-se de Hrus, o filho e herdeiro de Osris, que se tornou o paradigma do rei vivo. Traaram-se assim os fundamentos religiosos dopoderpoltico.Oreivivoidentificava-secomHrus,herdeirodotronodo 49 Do ponto de vista iconogrfico, estabelece-se uma clara identificao entre o fara e Atum: ambos usam o pa-sekhemti (As Duas Poderosas, ou pchent, na designao grega), a coroa dupla do Alto e do Baixo Egipto. O deus Atum tornou-se assim o modelo divino do rei do Egipto. Subjacente ficava tambm a ideia que, atravs da unio das Duas Terras, o rei repetia a criao do mundo inaugurada por Atum.50 Chu tem sido frequentemente associado ao ar, ou ao sopro de vida, ver VELDE,JEOL 26 (1979-1980), pp. 23-28. A imagem da ejaculao bastante interessante pois fornece uma imagem visual do poder de projeco para cima deste sopro. A imagem preconiza assim aquele que o seu atributo mais comum como deus da atmosfera: o poder de erguer o cu.51 A deusa frequentemente associada humidade, muito embora o seu mbito no se esgote nesta associao. Na maior parte das vezes possui uma conotao vincadamente solar, personificando o Olho de R e o uraeus real. Sobre as conotaes solares da deusa verSALES, Divindades Egpcias, p. 112-113.52OutrasversesperspectivamacriaodeChueTefnutatravsdasalivaoudosuordeAtum. Evidentementenenhumadestasformaseraconsideradacomoumaverdadeiraetiologiadacriao. Atravs das imagens corporais procurava-se explicar a transmisso da matria de uma fonte una para a heterogeneidade do mundo exterior. Para a deusa Iusas ver ARAJO, Iusas em Id, Dicionrio do Antigo Egipto, p. 456.53Divindadeambgua,semumadefiniomuitomarcada,Nftisconstituiumparalelodesis, estando, na maior parte das vezes, mais associada a Osris do que a Set. 325O IMAGINRIO SIMBLICO DA CRIAO DO MUNDO NO ANTIGO EGIPTOEgipto mas, uma vez morto, transformava-se em Osris, canalizando, a favor do Egipto, os seus poderes regeneradores54.AprincipalinovaodamensagemreligiosadeHelipolisconsistiana preocupaoemconstituirumquadromticoquefundamentasseaorigem demirgica do poder real, combinando indissociavelmente a criao do universo com a ordem poltica. A tradio heliopolitana procurava assim estabelecer os fundamentosteolgicosdamonarquiasagrada,consolidandoassuasbasesde poder. O tempo comprovaria bem a fora e o vigor desta construo destinada a durar cerca de trs mil anos.A perspectiva menfitaDa cidade de Mnfis, primeira capital do Egipto unificado, originria a verso cosmognica centrada sobre a figura de Ptah. Sendo uma das divindades maisantigasdoEgipto,aiconografiadePtahsurpreendeporadoptaruma representao inteiramente humana55. Com uma atitude mumiforme, de onde apenas emergem as mos, Ptah prefigura, desde as primeiras dinastias tinitas, o modeloquefoiutilizado,muitomaistarde,noenfaixamentodasmmias56.A origem deste motivo iconogrfico pode estar relacionada com a associao deste deus foras ctnicas das profundezas da terra. EmboraaTeologiaMenfitasejaotextoqueapresentaamaiscompleta explanao da cosmogonia menfita, as concepes nela veiculadas tm eco em muitas outras fontes. O papel demirgico de Ptah referido, pela primeira vez, nos Textos dos Sarcfagos, datados do Imprio Mdio (2055-1650 a. C.) mas nos textos do perodo ramsssida (1295-1069 a.C.) que esta funo surge ple-namente definida57.Na frmula 647 dos Textos dos Sarcfagos Ptah surge caracterizado como rei dos deuses que d e distribui o poder da vida. J nesta fase, a conscincia e a palavra se insinuam como os seus veculos de expresso criativa:Eu sou o Rei do Cu, O que distribui o poder da vida (...)Pois eu sou a palavra na sua bocaE conhecimento no seu ventre.54EstamesmaperspectivamitolgicadospoderesreaistransparecenaTeologiaMenfita.Ver SOUSA, Teologia Menfita, no prelo.55 Sobre o carcter de Ptah ver DJIK, Ptah, em REDFORD, The Oxford Enciclopedia of Ancient Egypt, III, pp. 74-76. Uma excelente sntese tambm pode ser consultada em ARAJO, Ptah, em Id (dir.),DicionriodoAntigoEgipto,pp.717-718.VeraindaamonografiadeHOLMBERG,TheGod Ptah, Lund, 1946.56 Com efeito as primeiras mmias eram enfaixadas de forma a preservar a autonomia dos membros, sinal que a caracterstica configurao mumiforme foi importada de um modelo divino e no o contrrio. Ver IKRAM, DODSON, The Mummy in Ancient Egypt, p. 156.57 Sobre a controversa questo a respeito da datao da Teologia Menfita ver BREASTED, The 326ROGRIO FERREIRA DE SOUSAO deus Ptah, s foi claramente identificado como um demiurgo a partir do Imprio Novo (1550-1069 a.C.) quando foi assimilado a um deus local da criao, Tatenen58. Pai e me dos deuses, Ptah aproximava-se da doutrina hermopolitana ao se identificar com Nun, a personificao do caos primordial. No entanto, a aproximao mais notria foi conseguida com a tradio heliopolitana, j que o deus Ptah foi guindado, pelos sacerdotes do seu culto, categoria de pai e me da Enade. Outro ponto em comum com esta doutrina a valorizao de uma leitura poltica da origem do mundo, j que, na Teologia Menfita, a autoria das instituies polticas, religiosas e administrativas atribuda ao criador. MasseacosmogoniadePtahseenraizavaprofundamentenasprincipais tradiesreligiosasdoEgipto,elaapresentava-seprofundamenteinovadoraao nvel da linguagem teolgica que utilizava. Mais elaborada, distanciando-se do plano das aces mitolgicas (como era o caso das tradies anteriores), a cosmo-gonia menfita revelava que Ptah moldara o mundo de acordo com o plano do seu corao, como refere a Teologia Menfita: (55) do corao que vem todo o conhecimento. A lngua repete o conhecimento do corao.Elegeroutodososdeuses,ecompletouasuaEnade.Naverdade,todaapalavra divina nasce a partir do conhecimento do (57) corao e do comando da lngua.A criao levada a cabo por Ptah nascia assim da conscincia59 do criador emanifestava-sepelopoderdasuapalavradivina.Eraomaisantigoexemplo conhecido da doutrina do logos to cara ao horizonte teolgico do judasmo e do cristianismo, onde o mundo foi formado atravs do poder criativo da palavra de Deus. Nesta perspectiva, a cosmogonia menfita considerada habitualmente como um dos mitos da criao mais elaborados que surpreende tanto mais como a sua formulao assumiu um grau de abstraco invulgar para o ambiente cultural do Prximo Oriente antigo. 3. Consideraes finaisLonge de se apresentarem como incompatveis, as trs vises cosmognicas queapresentmosevidenciamumagrandecomplementaridadeentresi. Perspectivadas nas suas grandes linhas constatamos que a tradio hermopolitana procura descrever o mundo anterior criao do sol, enquanto que a tradio heliopolitana prossegue com a obra da criao empreendida por este astro. J a PhilosophyofaMemphitePriest,ZAS39(1901),pp.39-54.Cf.IVERSEN,TheCosmogonyofthe Shabaka Text, pp. 485-493.58 Uma sntese das caractersticas regionais dos cultos menfitas apresentada em HARVEY e HAR-TWIG, Gods of Ancient Memphis, University of Memphis, Memphis, 2001.59 A noo de corao est sobretudo relacionada com a conscincia. A noo de corao de uma enorme relevncia no mbito da espiritualidade egpcia. Uma sntese desta temtica pode ser encontrada em SOUSA, A noo de corao no Egipto faranico: uma sntese evolutiva, pp. 529-554.327O IMAGINRIO SIMBLICO DA CRIAO DO MUNDO NO ANTIGO EGIPTOtradio menfita, largamente posterior duas primeiras, assume a herana das anteriores e articula-as numa linguagem filosfica. Ptah identificado com o Nun inicial que, num dado momento desperta e, ao acordar, cria na sua mente as representaes sobre os seres que a sua lngua, ou seja, o seu poder criador, torna visvel na matria. Se,encaradasdistncia,asdiversastradiescosmognicasapresentam algunstraosdecontinuidade,quandoperspectivadasdeperto,novamente apluralidadequedomina,manifestando-senumavariaocaleidoscpica deversesmticaselaboradasapartirdasprincipaisversescosmognicasj mencionadas. Nos mitos da criao do sol, por exemplo, o astro pode ter nascido sob a forma de um falco, ou de uma ave benu (a fnix dos Gregos), ou ainda com a aparncia de uma criana ou mesmo de um escaravelho. Outras variaes so alusivas forma como o criador originou o mundo. Se, em alguns relatos, Atum criou o mundo atravs da masturbao, noutros, a saliva ou simplesmente o suor, ou mesmo as lgrimas produziram o mesmo efeito60.Noutroscentrosdeculto,elaboraram-serelatoscosmognicosque,muito emborafizessemrefernciaaoutrasdivindades,continuaramarecorrerao mesmo imaginrio simblico, mantendo-se visvel a influncia das trs grandes verses da criao.Em Karnak, o grande centro espiritual da cidade de Tebas, o deus Amon que, no relato hermopolitano, fazia parte da gdoade primordial, transformou-se no protagonista da criao em resultado do invulgar desenvolvimento poltico doseuculto61.ParaossacerdotesdeTebas,oprincpiodostemposhaviasido dominadoporumaserpentechamadaKamutef62dominadoporumaserpentechamadaKamutef dominadoporumaserpentechamadaKamutef .OseufilhoIrta(onome significa fazedor da terra)63, desencadeou a criao do mundo e fez nascer a gdoade, no seio da qual Amon renasceu. Um tanto paradoxalmente, ao nascer noseiodagdoade,Amondeclarou-seasimesmocomoaserpenteinicial, Kamutef. Apesar da confusa sucesso de nascimentos, as vrias manifestaes de Amon exprimem o mistrio do carcter cclico do cosmos. Ao engendrar-se a si mesmo, Amon originou sucessivos ciclos csmicos, ao longo dos quais o prprio universo se regenera.60 Sobre os diferentes meios utilizados pelos deuses criadores consultar a excelente sntese patente em BICKEL, La Cosmogonie gyptienne, pp. 70-111.61OcultodeAmonfoiprojectadodeformadecisivaapartirdaXVIIIdinastia,atravsdasua afirmao como deus imperial. As razes para a valorizao do seu culto pela coroa relacionam-se com o apoio decisivo que o templo de Amon prestou resistncia durante a ocupao dos Hicsos (1650-1550 a. C.). Sobre este interessante episdio da histria egpcia ver SHAW, The Oxford History of Ancient Egypt, pp. 203-217.62 O nome Kamutef significa O touro de sua me. Esta designao fazia referncia capacidade auto-regenerativa de Amon sendo particularmente associada forma do deus Amon venerada no templo de Karnak.63 Irta identificado desta feita com Amon-Min cultuado no templo de Luxor.328ROGRIO FERREIRA DE SOUSAEm Elefantina e Esna, Khnum, um deus carneiro, era encarado como o oleiro divino que modelou todas as formas da criao na sua roda (o seu nome significa O Modelador). Venerado desde tempos pr-histricos, o seu culto esteve muito tempo circunscrito fronteira meridional do Egipto, a primeira catarata do Nilo, de onde vinham as guas da cheia. Enquanto guardio do Nilo o deus estava naorigemdavidanoEgipto.Segundoosseustelogos,Khnummoldou,na suarodadeoleiro,oovoprimordialdeondefezsairomundo.Tambmera estedeusquemodelavaocorpoeokadoshomens,enquantoHeket,adeusa batracomorfa, os dotava com o sopro de vida64.O caso de Neit bastante contrastante no mbito das cosmogonias egpcias, umavezqueconstituiumdospoucosexemplosdeactividadedemirgica desenvolvida no feminino. Sendo uma das mais antigas e importantes divindades pr-histricas, Neit era identificada com as guas do Nun, o Oceano Primordial. No templo de Khnum em Esna, Neit era evocada como uma deusa do Alto Egipto queemergiudasguasprimordiaisparacriaromundo.Nomesmotemplo, ostextosreferemqueNeitcriouoprincpiodaluz,R,eoseuarqui-inimigo, Apopis, o princpio da treva. Tambm foi ela a criadora da humanidade e era tida como a antiga, me dos deuses, aquela que iluminou o primeiro rosto65. Muitas outras cosmogonias, de mbito mais circunscrito, foram elaboradas em torno de deuses como Min, Khonsu, Sobek ou Mehetueret uma deusa que se manifestava sob a forma de vaca. Tambm no perodo de Amarna, Aton viu reconhecido o seu papel como criador. O que espantoso em todas estas verses o quadro geral que compem sobreopensamentoreligiosodoantigoEgipto.Utilizandoumasimbologia complementar mas tambm contraditria entre si, as cosmogonias egpcias no se fixaram em dogmas estticos e imutveis. Muito pelo contrrio, a diversidade dos mitos e das verses cosmognicas atesta um fluxo constante de elaborao resultante da actualizao permanente destes smbolos experincia vivida66.Esta desenvoltura para adaptar os mitos s novas realidades mostra que, para os telogos do antigo Egipto, o smbolo no passava de uma tentativa de des-crever a realidade e de captar o seu mistrio. Muito embora os mitos procurassem descrever certas noes sobre o mundo, o smbolo no se sobrepunha divindade constituindo, pelo contrrio, um meio para a atingir e, como tal, tornava-se sempre susceptvel de ser alterado e transformado para melhor servir esse propsito.64 SALES, Cosmogonia em ARAJO, Dicionrio do Antigo Egipto, p. 246.65 WILKINSON, The Complete Gods, p. 157.66 Uma interessante abordagem comparativa entre as vrias cosmogonias egpcias apresentada em TOBIN, Theological Principles of Egyptian Religion, pp. 57-75.329O IMAGINRIO SIMBLICO DA CRIAO DO MUNDO NO ANTIGO EGIPTOBibliografiaJames ALLEN, Genesis in Egypt: the Philosophy of Ancient Egyptian Creation Accounts, Yale University, New Haven, 1988.Lus Manuel de ARAJO, Enade, em Id. 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Note-se, sobre o corpo de Nut, a trajectria da barca solar desde o nascer ao pr do sol.O nascer do sol Sob a forma de uma criana acocorada, o sol colocado no mundo pelos braos da deusa celeste, envolvido pela serpente Uroboros, o smbolo do caos que envolve a criao. Os lees do horizonte representam os limites espao-temporais do cosmos (o Oriente e o Ocidente, mas tambm o Ontem e o Amanh).Lebre sobre um estandarte rodeada pela serpente Uroboros A representao evoca o caos que rodeia o domnio da existncia (a lebre , na verdade, um hierglifo que se l uen, existir). XXI dinastia.333O IMAGINRIO SIMBLICO DA CRIAO DO MUNDO NO ANTIGO EGIPTOFig. 2 - (de cima para baixo e da esquerda para a direita):A Enade de Helipolis Atum, o astro solar, modelo divino da realeza, encabea a procisso divina, seguido pelo primeiro par de deuses, Chu e Tefnut, que originaram a terra e o cu (Geb e Nut). Por fim os elementos que personificam a paisagem egpcia: Osris e sis (o Nilo e a terra frtil), Set e Nftis (o deserto).AgdoadedeHermpolisNote-sequeosmachostmcabeasdersaopassoqueas fmeastmcabeasdeserpentes.Comosempreacontecenaiconografiaegpcia,as formasanimaisprocuramenfatizaredefiniranaturezadasdivindades.Nestecaso,asrs e as serpentes constituem uma aluso fertilidade e obscuridade dos tempos primordiais, respectivamente.Nefertum Esta representao mostra o menino solar emergindo do ltus primordial. A figura colocada sobre o signo hieroglfico mer que, embora evocativa da gua, tambm significa amor. A criao do sol a partir da gua primordial fica assim associada a um acto de amor da gdoade primordial.Ptah, o demirgo menfita As principais caractersticas da sua iconografia consistem na calote bem justa ao crnio, na configurao corporal mumiforme e no colar usekh. Nas mos usa os ceptros uase, ankh e djed, ou seja, poder, vida e estabilidade.334ROGRIO FERREIRA DE SOUSA